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SOBRE O NASCIMENTO E
DESENVOLVIMENTO DA
MECÂNICA QUÂNTICA
Francisco Caruso & Enrico Predazzi

Things must be made


as simple as possible.
But no more.
Albert Einstein

Introdução

O final do século passado foi testemunho de um enorme


entusiasmo e otimismo em todos os campos da atividade humana. A
Ciência, vista como propulsora do progresso e, em particular, a Fı́sica
não foram exceções. Por outro lado, tal otimismo parece justificado
pelo fato de que a comodidade da vida moderna, e.g., eletricidade,
meios de transporte, meios de comunicação, teve, de fato, suas raı́zes
nos resultados conseguidos exatamente no final do século passado.
No final do século XIX, a Mecânica Clássica tinha praticamente
alcançado um sucesso completo. O que se sabia calcular estava em
completo acordo com os dados da Mecânica Celeste e o que não
se sabia calcular era somente por dificuldades práticas. Lagrange,
Euler, Hamilton, Maupertuis, d’Alembert, Jacobi, Poisson, Laplace
e Poincaré tinham “resolvido” completamente qualquer problema
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e, dadas convenientes e precisas condições de contorno, poder–se–


ia predizer com absoluta precisão o desenvolvimento de qualquer
movimento (Laplace). Por outro lado, já se sabia que, dei-
xando-se passar um tempo suficientemente grande, condições de
contorno por menos que diferissem daquelas precedentes levariam
a evoluções completamente diferentes do mesmo sistema (Poincaré).
Portanto, sabendo que nenhuma medida pode ser absolutamente
perfeita, o problema de ter que dar as condições de contorno com
absoluta precisão perturbava um número considerável de pessoas.
A Mecânica foi reescrita de várias maneiras partindo da
formulação de Newton. Primeiro chegou-se à equação de Euler-
Lagrange, depois, com o formalismo canônico, chegou-se às equações
de Hamilton e, introduzindo-se os parênteses de Poisson, às equações
de Poisson
f˙(q, p) = {H, f }
onde H(q, p) é a hamiltoniana (a energia total para um sistema
conservativo) do sistema, f (q, p) é uma função qualquer das variáveis
canônicas de Hamilton e a sua evolução temporal é dada por f˙ =
df /dt. Finalmente, através das transformações canônicas chega-se à
equação de Hamilton-Jacobi

∂S
H(q, p) + =0
∂t

onde S(q, t) é a função “ação”, cuja dimensão é obviamente a de


energia vezes tempo. É importante ressaltar que toda essa nova
formulação da Mecânica teve um grande papel no desenvolvimento
da Mecânica Quântica.
Por outro lado, a teoria atômica, depois de cerca de 25 séculos
havia sido revitalizada a partir do séc. XIX (∗) pelos trabalhos
fundamentais de quı́micos como Dalton, Proust, Gay-Lussac e, mais
tarde, principalmente de fı́sicos como Avogadro, Ampère e Faraday,
até chegarmos aos trabalhos de Maxwell, Boltzmann, Gibbs e outros.
Como terceiro e último aspecto que gostarı́amos de ressaltar
está a importância da teoria da Eletricidade e do Magnetismo.
Também revitalizada depois de adormecida por 25 séculos, ela havia
atingido seu ápice com a unificação feita por Maxwell, que obteve
(∗)
Note a coincidência da primeira nota de Avogadro ter sido publicada em 1811,
exatamente um século antes do átomo de Rutherford.
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confirmação experimental, em 1888, através da observação de ondas


eletromagnéticas por Hertz (∗∗) .
Enfim, em 1897, J.J. Thomson descobre o elétron abrindo um
novo horizonte para a compreensão do átomo. Apesar disto, havia
ainda uma grande esperança na Fı́sica Clássica. Lord Kelvin, por
exemplo, acreditava que no céu azul da Fı́sica Clássica existiam
apenas duas nuvens [1]. Ditas ainda de outra maneira tı́nhamos ainda
duas coisas a esclarecer:
i) por um lado as equações de Maxwell não são invariantes sob
o grupo das transformações de Galileu, que se aplicam bem à
Mecânica, e não se compreende bem o que seja o éter;
ii) por outro lado, existia uma grande discrepância entre o espectro
de emissão de radiação de um corpo negro e não se entendia bem
porque os espectros de emissão dos átomos fossem em raias e não
em bandas.
Pequenas coisas! A primeira dará origem nada menos que à
Teoria da Relatividade, uma das duas grandes revoluções culturais
ocorridas na Fı́sica do século XX, como foi brilhantemente recordado
nesta Escola pelo Prof. Leite Lopes, e não falaremos mais sobre ela.
A segunda dará lugar à Mecânica Quântica. Pequenas coisas mesmo!

O Espectro do corpo negro

É sabido que todo corpo irradia “luz” na região de freqüência em


que é capaz de absorvê–la (lei de Kirchhoff). Um corpo negro emite (e
absorve) em todas as freqüências, desde 0 até ∞, mas a distribuição
de intensidade de radiação varia apenas com a temperatura em que
o corpo se encontra [2]. Ela não depende da constituição material
do corpo, nem tampouco da sua forma geométrica. Esta incrı́vel
simplicidade deveria ser explicada com hipóteses simples.
As duas leis que exprimem essa dependência com a temperatura
podem ser deduzidas sem que se vá além da termodinâmica e da teoria
eletrodinâmica clássica da luz. São elas as leis de Stefan (1879) e a
de Wien (1893), também chamada lei do deslocamento.
A lei de Stefan, que pode ser derivada da lei de Wien, nos diz
que a radiação total emitida é proporcional à quarta potência da
temperatura do radiador. Portanto, a radiação será tanto maior
(∗∗)
De novo, por uma fantástica coincidência, quase exatamente um século antes da
verificação experimental da unificação da força eletrofraca feita por Rubbia.
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quanto mais quente for o corpo. Já Wien foi mais longe ao establecer
que a distribuição espectral da densidade de energia é dada pela
seguinte equação:
uν = ν 3 F (ν/T ),
onde F é uma função apenas da razão entre a freqüência ν
e a temperatura T , que não pode ser determinada no âmbito
da termodinâmica. Pode–se mostrar que esta lei explica o fato
experimental de que a intensidade da radiação emitida é infinitamente
pequena para ondas de comprimento de onda muito pequenos ou
muito grandes, passando, portanto, por um comprimento máximo
λmáx. . De fato, vemos que um corpo aquecido fica rubro e nunca
chega a emitir luz violeta. Verificou–se ainda empiricamente que o
produto λmáx. × T é uma constante. Este fato é explicado pela lei
de Wien e é o motivo pelo qual ela é também conhecida por lei do
deslocamento, i.e., variando–se a temperatura do corpo negro o valor
de λmáx. varia no sentido inverso.
Como explicar teoricamente estas leis? A resposta correta
vem do trabalho de Planck e tem origem estatı́stica. Inicialmente
Planck concentra–se num modelo simples para o corpo radiante.
Imagina–o composto por vários osciladores harmônicos simples. Com
este modelo ele obtem uma simplificação da interpretação dos fatos
empı́ricos, sendo capaz de propor uma expressão para a função F ,
mas isto não é o suficiente como veremos agora.
A energia radiada por segundo (potência) de um oscilador
harmônico é dada pela conhecida lei de Larmor. Se o corpo negro está
em equilı́brio termodinâmico, podemos igualar esta potência àquela
fornecida ao oscilador por um campo de radiação com densidade de
energia espectral uν . Daı́ resulta a equação

8πν 2
uν = ²̄,
c3
onde c é a velocidade da luz, e ²̄ é a energia média de um oscilador.
Se esta média for calculada pelos métodos da estatı́stica clássica de
Boltzmann, teremos ²̄ = KT , onde K é a constante de Boltzmann.
Desta forma obterı́amos para a função F da lei de Wien a seguinte
expressão:

8πν 2 KT
F (ν/T ) = .
c3 ν3
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Esta fórmula está, contudo, errada para grandes valores de


freqüência.
A idéia original e audaciosa de Planck foi postular um novo modo
para calcular a média para obter ²̄. Planck verificou que se ele:
• substituı́sse a média sobre uma variável contı́nua por uma média
discreta para a energia do oscilador;
• fizesse ainda a hipótese de que as possı́veis energias de um
oscilador seriam múltiplos inteiros de um certo valor ²0 (ou nula);
seria possı́vel somar os termos de uma progressão geométrica e obter
a seguinte expressão analı́tica para uν :

8πν 2 ²0
uν = .
c3 exp(²0 /KT ) − 1
Naturalmente, esta fórmula só pode ser compatı́vel com a lei
empı́rica de Wien se admitirmos que

²0 = hν
onde h é uma nova constante universal da Natureza, conhecida por
constante de Planck, que será de fundamental importância para
o desenvolvimento da Fı́sica Atômica e, mais tarde, da Mecânica
Quântica.
Esta idéia de quantum de energia de Planck foi utilizada,
com grande sucesso, na explicação do efeito fotoelétrico, no
cálculo dos calores especı́ficos dos sólidos, na descrição do efeito
Compton, dentre outras aplicações. Mas é através da genialidade
de Bohr que a constante de Planck vai transcender a descrição de
fenômenos luminosos e passará a desempenhar um papel igualmente
fundamental na estabilidade de matéria.

O Átomo do Século XX

A eterna busca do átomo foi revista na palestra de F. Caruso


[3] e vocês viram que o modelo atômico de Rutherford é um modelo
nuclear, que descreve corretamente o espalhamento de partı́culas α
por lâminas metálicas muito delgadas, mas tem sérios problemas
quanto a sua estabilidade.
Estudando a espectroscopia dos átomos, e particularmente dos
átomos mais simples, como o hidrogênio, encontra–se um espectro
de raias onde todas as linhas são bem reproduzidas a partir de
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fórmulas empı́ricas que envolvem diferenças de razões que são inverso


de quadrados de números inteiros [4] do tipo:
µ ¶
1 1
νn,m = R −
m2 n2
onde m, n = 0, 1, 2, 3, ...∞, n > m e R é uma certa cons-
tante. Trata–se, portanto, de um espectro discreto. Este fato já
era conhecido à época de Rutherford e é surpreendente que em seu
modelo, que descreve tão bem o espalhamento α, o elétron acelerado
em uma órbita circular em torno do núcleo irradiaria energia e,
sendo assim, de acordo com a Fı́sica Clássica, perderia energia
continuamente. Desta forma o espectro deveria ser de banda contı́nua
e não de raias.
Pequenas discrepâncias de novo ?!
Não, segundo Bohr. Ele vai postular a quantização do momento
angular orbital do elétron atômico em certas órbitas estacionárias
(onde o elétron não emitiria) e a quantização da energia emitida pelo
elétron quando ele transita entre duas destas órbitas. Em ambos
os postulados aparece a constante de Planck h (que tem a mesma
dimensão de momento angular). Com estes postulados, por estranhos
que sejam em face da Fı́sica Clássica, Bohr está dando um passo
gigantesco. Ele está, em última análise, ampliando os horizontes da
crise da Fı́sica Clássica. Esta crise havia se iniciado com o trabalho
de Planck, envolvendo a descrição de alguns fenômenos da radiação.
Ao introduzir hipóteses adicionais à dinâmica clássica, estranhas ao
átomo de Rutherford, intimamente dependentes da nova constante h,
Bohr extende esta crise à descrição da matéria mas, mais do que isto,
mostra que assim ele é capaz de assegurar a estabilidade do átomo e
da matéria!
Mais tarde, L. de Broglie vai perceber a profundidade das idéias
de Bohr e vai unificar a crise no seguinte sentido. Após a descoberta
de Planck e dos efeitos fotoelétrico e Compton, ficou comprovado que
a luz se comporta, em certas circunstâncias, como um conjunto de
partı́culas, os quanta de luz, ou fótons, sem que, contudo, se pudesse
abdicar da visão ondulatória da luz para descrever fenômenos como
o da difração, por exemplo. Este fato ficou conhecido na literatura
como a dualidade onda–partı́cula da luz e, de certa forma, depende
crucialmente da constante de Planck como ilustram as famosas
relações
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h
E = hν; p = ,
λ
válidas para o fóton. Ora, o fato desta constante de Planck parecer
ser fundamental também para assegurar a estabilidade da matéria,
como queria Bohr, levou de Broglie a fazer a conjectura de que a
relação entre p e λ deveria valer também para uma partı́cula massiva
como o elétron. Com isto ele postulou a existência do que chamou
onda de matéria. Agora a dualidade onda–corpúsculo não é mais
uma prerrogativa da luz, mas também da matéria. É a unificação da
crise. Mas qual seria a equação diferencial desta onda de matéria? E
restava ainda o desafio de como aplicar as idéias de Bohr a sistemas
mais complicados do que o átomo de hidrogênio.
Esta crise vai ter duas soluções, cuja equivalência será
demonstrada um pouco mais tarde. É o surgimento da Mecânica
Quântica, uma nova teoria dinâmica para o microcosmo. Primeiro
nasce a chamada Mecânica das Matrizes, formulada por Heisenberg,
em 1925, e depois, em 1926, a Mecânica Ondulatória de Schrödinger
[6].
Segundo Dirac [7], a grande contribuição de Heisenberg é sua
idéia de que uma teoria fı́sica deve se basear em quantidades
intimamente relacionadas àquelas observáveis. Neste sentido,
Heisenberg afirma que uma órbita de Bohr não tem qualquer
significado fı́sico; o que têm significado são duas órbitas de Bohr.
O efeito prático desta convicção é que as grandezas fı́sicas passam a
ser descritas por matrizes, onde linhas e colunas estão associadas a
diferentes possı́veis estados.
Por outro lado, Schrödinger busca estabelecer uma equação
diferencial para a onda de L. de Broglie, que é a equação fundamental
da Mecânica Quântica:

∂ψ(~x, t)
Hψ(~x, t) = ih̄ ,
∂t

onde H = p2 /2m + V (~x) é a hamiltoniana do sistema, ψ(~x, t) é


a função de onda de um sistema (necessariamente complexa). A in-
terpretação mais aceita hoje é a interpretação probabilı́stica de Max
Born, embora ela ainda seja questionada por alguns cientistas do
ponto de vista epistemológico. Infelizmente este é um assunto muito
vasto e complexo e não teremos tempo de discutı́–lo aqui. O leitor
interessado poderá ler os livros citados na Ref. [8].
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Este é sem dúvida um assunto fascinante e sem a Mecâ-


nica Quântica terı́amos certamente avançado muito pouco no
conhecimento da Estrutura da Matéria, do átomo e das partı́culas
elementares.

Bibliografia e Notas
[1] Phil. Mag. 6 S, vol. 2 (1901) pp. 1-2, Apud F. Cajori,
A History of Physics, revised edition, Macmillan Co., 1929.
Uma terceira nuvem foi mais tarde introduzida por Sommerfeld.
Cf. A. Sommerfeld, Thermodynamics and Statistical Mechanics,
Academic Press, New York, 1956, p. 233. Agradecemos a R.
Moreira Xavier a gentileza de ter-nos apontado estas referências.
[2] Uma exposição completa do problema é encontrada em M.
Planck, The Theory of Heat Radiation, Dover Publ., New York,
1991; para uma apresentação didática Cf. Max Born, Atomic
Physics, Blackie & Son, London, 1962; tradução portuguesa de
E. Namorado, Fı́sica Atómica, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa, 1965; uma abordagem histórica do problema do Corpo
Negro pode ser encontrada em T.S. Kuhn, Black–Body Theory
and the Quantum Discontinuity, 1894–1912, Claredon Press,
Oxford, 1978.
[3] F. Caruso, Dividindo o Indivisı́vel, p. 55 neste livro.
[4] G. Herzberg, Atomic Spectra and Atomic Structure, Dover, New
York, 1945.
[5] A tradução portuguesa dos três principais artigos de Bohr sobre
o seu modelo Atômico, precedido de uma ótima introdução
histórica, é encontrada em: N. Bohr, Sobre a Constituição
dos Átomos e Moléculas, segunda edição, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1979.
[6] Para uma tradução em lı́ngua inglesa de vários artigos
fundamentais para o nascimento e desenvolvimento da Mecânica
Quântica cf. B.L. Van der Waerden, Sources of Quantum
Mechanics, Dover, New York, 1968.
[7] P.A.M. Dirac, “The Development of Quantum Mechanics”, in
Directions in Physics, editado por H. Hora e J.R. Shepanski, J.
Wiley & Sons, New York, 1978.
[8] M. Jammer, The Philosophy of Quantum Mechanics: the
Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective,
J. Wiley & Sons, New York, 1974; P.A.M. Dirac, The
Development of Quantum Theory, Gordon & Breach, New
York, 1971; H. Reichenbach, Philosophical Foundations of
Quantum Mechanics, Univ. of California Press, Berkeley, 1982;
J.A. Wheeler and W.H. Zurek (Eds.), Quantum Theory and
Measurement, Princeton Univ. Press, Princeton, 1983.

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