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a , , Conversacées Terapéuticas em Familias com Criangas Helena Maffei Cruz (Org.) Casa do Psicélogo® ~As : < © 2000 Casa do Psicdlogo Livraria ¢ Editora Ltda, proibida a reprodugio toral ou parcial desta publicagio, para qualquer finalida. de, sem autorizagio por escrito dos editores, I Edigio 2000 28 Bdigi 2002 Produgio Gréfica Renata Vieira Nunes Capa Valgutvia Farias dos Santos Bonecos da Capa Maria Augusta Lousada Grecco Foto da Capa Frederico Melcher Revisio Grifica Miriam Moreira Soares Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SR, Brasil) Papai, mame, voce... € eu?: conversagées terapeuticas em familias com criancas/ organizadora Helena Maffei Cruz. — Sio Paulo: Casa do Psicdlogo, 2000. Varios autores Bibliografia. ISBN 85-7396-089-2 1. Criangas ¢ adultos 2. Pais filhos 3. Psicoterapia de familia I. Cruz, Helena Maffei. III. Titulo: Conversagées terapéuticas em familias com criangas. CDD-616.89156 00-2697 NLM-WM 420 Indices para catélogo sistematico: 1, Familias com criangas: Terapia Familiar: Psicoterapia: Medicina 616.89156 2. Terapia Familiar: Familias com criangas: Psicoterapia: Medicina 616.89156 Impresso no Brasil Printed in Brazil Reservado todos os direitos de publicagdo em lingua portuguesa GBF casa do Psicdtogo Sq Rua Simao Alvares, 1020 Vila Madalena 05417-020 Sao Paulo/SP 7 Tel/Fax: (11) 3034-3600 - www.casadopsicologo.com.br A Nossa Casa UMA SESSAO ESTRUTURADA NA TERAPIA DE FAMILIAS COM CRIANCAS Tinia Almeida No inicio da década de 80, quando comecamos a trabalhar com criangas em psicoterapia, faziamos uma avaliagdo diagnéstica clds- sica: ouviamos 0s pais em sessées de anamnese e estévamos com a crianca em sess6es livres, quantas vezes sentissemos necessidade. Poucos anos depois, a terapia de familia passou a despertar-nos enorme interesse. A teoria sistémica e seu enfoque relacional trou- xeram-nos inquietagGes a respeito de nosso Pposicionamento como terapeuta de criangas, bem como, mudanga significativa em nossa pratica clinica. Bagagem ampliada, curiosidade dobrada... A exigéncia de dedicar um olhar a interagiio familiar apresenta- va-se cada vez que uma crianga era encaminhada para avaliagao; era preciso contextualizar 0 que apresentava-se como sintoma. Ti- nhamos ciéncia de que a criagao de um espago que gerasse informa- go para todos, familia e terapeuta, no poderia advir de conversa convencional, pois, nela, o verbal dos adultos, enunciado com elabo- ragdo e mestria, permaneceria inacessivel as criangas, assim como desvirtuaria nossa intengdo e possivelmente inviabilizaria a proposta. Por essa época, recebemos de Gladis Brun — Diretora do Insti- tuto de Terapia de Familia do Rio de Janeiro — a sugestao de pro- por uma sesso liidica com a familia, mais precisamente de elaborar um desenho com o tema A Nossa Casa. Metéfora perfeita. Desse modo, tornar-se-ia possivel conversar a respeito da familia manten- do criangas e adultos na mesma sessio. O ltidico, terreno acessfvel a todos em virtude de constituir linguagem universal, veio entdo ao encontro de nosso intento. O tema foi sendo transformado, aos poucos, em formato estruturado de sesso, em jogo, cujas regras e seqiiéncia catalisavam Guestionamentos e possiveis reflexdes. Enfim, por meio dessa ativi- 56 Tania Almeida dade, parecia emergir um espago propulsor de informagées acess. veis a todos. a O passo seguinte, algum tempo depois, foi incluir, de forma sistemética, o olhar para a interagdo familiar na avaliacao de crian. gas por meio desse modelo de sessio. ie ‘Consideramos hoje A Nossa Casa nao mais “instrumento de s “recurso terapéutico”; um recurso eficaz de refle. Jitar uma conversa em famflia e nao apenas em fam(. avaliagio”, ma’ xo, por possibi lias com criangas. _ Quando compartilhamos esse trabalho, em um primeiro momen. to — meados da década de 80—, tinhamos a intengao de focalizar a importancia e a riqueza da interacao familiar ao receber uma crian ¢a sintomética para avaliagao. Em 1993, revisitamos esse recurso com o propésito de acrescentar-lhe uma leitura teérica. Hoje, vira- da do milénio, voltamos a ele para atualizar sua linguagem e ampli- ar seu referencial tedrico. . Assim, A Nossa Casa tornou-se um “recurso terapéutico” que utiliza leituras e técnicas origindrias da Primeira e Segunda. Ciberné. ticas, recontextualizadas em uma Optica de Segunda Ordem. Por fim, esse instrumento fez-nos ratificar a crenga de que a utiliza- ¢do de sessio estruturada, como vefculo de conversa ¢ intervengio, no fere uma convic¢ao/atuagao construtivista-construcionista social. Propondo o jogo na sesso Em uma sesso, ao reunir a familia, falamos da possibilidade de conversar “brincando”. Assim, propomos 0 jogo como um dese- nho feito por todos. Mostramos 0 material disponivel — duas folhas de cartolina, um rolo de fita gomada e um estojo que contém pilots de varias cores — e oferecemos 0 titulo do desenho: A Nossa Casa. Explicamos que, como qualquer jogo, este também tem suas re- gras € que todos devem cuidar para que sejam cumpridas. Sugeri- mos entao trés regras: a realizaco de desenho tinico para 0 qual todos contribuam, a participagiio de todos, e, por fim, a escolha indi- vidual de uma cor, para que possamos identificar depois o que coube acada um no desenho. O limite do espaco — uma ou duas folhas de cartolina — e do tempo — em torno de 15 minutos —, além da a A nossa casa 57 solicitagdo de se posicionarem confortavelmente, dard continéncia & familia, uma pated 0 terapeuta Permanecera como “observador”. : Tal introdugao ao trabalho esta repleta de metacomunicagées e de imagens metaféricas. O jogo interativo assemelha-se a familia, na medida em que solicita a participagdo e conseqiiente inter-relagio de todos os seus membros para a obtenciio de desenho tinico. A identifi- cacao pela cor busca Tepresentar as individualidades e suas possiveis fronteiras no sistema. Por sua vez, ao adotarmos o conceito de totali- dade sistémica como referencial, temos em mente que 0 desenho ndo ser o resultado da soma das individualidades — cores e tragos de cada um —, mas, sim, da interago entre elas. A metéfora A Nossa Casa estar, portanto, falando a respeito de A Nossa Familia. A maneira como as pessoas vio lidar com 0 jogo, de que forma vio interagir durante a brincadeira, ser 0 foco da atengio, pois é 0 que dard qualidade e movimento & metéfora. O retrato metaférico da familia, que se exprimird no desenho, adquirir4 valor significativo se puder ser transformado em filme, ou seja, incorporar a seqiiéncia de agdes, durante e apds sua execuc4o. Quanto a fotografia concre- tizada no desenho, os fotégrafos sabem do sendo que é a sua nature- za estatica, magistralmente expresso na frase de Cartier Bresson: 2PNao se pode revelar nem copiar uma lembranga”. O mérito maior desse trabalho e o que o qualifica estd expresso m sua forma de execugio. Assim, enquanto a familia interage na ‘confecgao do desenho, o terapeuta observa os movimentos relacionais, ‘ou seja, seu modo de executar a proposta. @, © Tania Almeida 58 Observando a familia brincar Considerando a linguagem_ analégica como uma forma de tam. bém dizer coisas, torna-se exeqiifvel, a partir do jogo, a construcio de versdes concernentes aos movimentos interacionais da familia, aos estilos individuais e relacionais; & qualidade das relagdes, as de- finigdes de territdrio ¢ & permeabilidade de suas fronteiras; as varia- ges de flexibilidade, aos aspectos intergeracionais, as aliangas, coa- lizdes, relagdes diddicas triangulos; aos padrdes de funcionamento da familia, 2 sua negociagdo com regras e tantas outras imagens metaféricas que paregam tteis elaborar. Do mesmo modo, 0 jogo apresenta a possibilidade de construir des- crigGes relativas 4 danga comunicacional a partir da interagao familiar, as diversas formas de linguagem nas diferentes relag6es, 4s congruéncias e incongruéncias das mensagens, do estilo verbal e do nao-verbal, 4 utilizagao do espago na relagao, enfim, a linguagem do sintoma. . Conversando com a famtlia Com 0 término do desenho, pedimos que seus criadores o pren- dam na parede — em posicao de tela de proje¢ao — e o terapeuta senta-se junto a familia, como se todos féssem espectadores em uma sala de cinema. Perguntamos entao como foi, para cada um, fazer 0 trabalho, solicitando-lhe que mostre o que fez, seu lugar de preferén- A nossa casa 59 cia na casa € 0 que achou do resultado final. Utilizamos perguntas cujo teor esteja ao alcance de todos, adultos e criangas, de modo que estas também possam participar; as perguntas de contetido mais abstrato, mais generalizante, desnivelariam adultos e criangas quan- to a possibilidade de construir respostas, movimento incongruente com a proposta inicial do trabalho. Voltando 4 metéfora do filme, imagine-se que 0 terapeuta ofere- ceu a familia um argumento com o tema A Nossa Casa, € que a familia passou a trabalhd-lo, produzindo um desenho. Enquanto isso, o “terapeuta-observador” vai construindo um roteiro, juntando ima- gem e ac¢do — desenho/execugo, Em um primeiro momento, a fa- miflia tende a olhar o desenho como um retrato, algo estatico, relatan- do-o de modo descritivo. No entanto, de modo geral, acontece de algum membro da familia acrescentar a sua narrativa, especificando que fez isso ou aquilo em razdo do que fulano fez ou deixou de fazer, gerando relatos interativos associados ao trabalho realizado e, a par- tir dai, relativos ao dia-a-dia familiar, Quando o terapeuta identifica que pode ser util, acrescenta pedacos do filme que viu A conversa, parte de seu proprio roteiro, pontuando passagens da interagao fami- liar durante a execugao do trabalho. Caso nenhum membro da fami- lia inclua a ago em seu discurso, procuramos fornecer 0 estimulo inicial, destacando os relacionais que nos parecem importantes para que se tenha “em tela”. A seguir, convidamos a familia a dar conti- nuidade ao tema, perguntando se é assim que acontece em casa, se a descrigo feita pelo terapeuta faz sentido para eles, se 0 roteiro dele se acopla ao da familia. Com base nesta conversa, tendo como ponto de partida o argu- mento oferecido pelo terapeuta — A Nossa Casa —, os roteiros construfdos tanto por ele quanto pela familia, so articulados e um filme dessa interacao é editado. Contudo, da mesma forma que para 0 terapeuta existe dife- renga entre escutar um relato ou vé-lo, também fard diferenga para a familia escutar o terapeuta a respeito de uma situagao ou ver-se nela. Atente-se que este € um momento delicado na sessio. Ver-se na tela nem sempre é confortdvel. E muito bom quando nos vemos atuando bem, mas é constrangedor quando nos vemos atuando mal. Todo cuidado € pouco para nao convidar a familia a um desnudamento. Devemos respeitar os poss{veis sinais de descon- forto diante de algum tema, de forma que, juntos, possamos cons- ttuir os cortes e os zooms dessa nova edigao. a Tinia Almeida A proposta de contextualizar 0 sintoma Nasce uma familia — Quando uma familia ase eons ex. i ar da relagio nu. plicitos e implicitos sao estabelecidos eae a eee Cp clear e entre eles e suas redes de Pes “O hoje Eanes gem, as miltiplas expectativas associadas j é eu lugar. crengas, os mitos € OS desejos tem, Coe cee um multiplicidade de rearranjos acontece; C eee de comunicagdo sao compartilhados € fear SOA S tacitamente; projecdes € identificagdes bu: Jo consigo mesmo € com 0 outro garante uma sobrevivéncia func ¢i igo mes! a igéncias didrias. dangas sao exigencias 7 e contexto em que mu s Siio exig ; onal Nines de contexto e de fungdes sao oe pelo nasci- mento dos filhos, exigindo do casal novas identidades; por sua vez, os filhos precisam ajustar-se a tal contexto, a tais pessoas, a tais aaa ais nao se exige atitude diferente. Se aoe um sistema — A familia pode ser descrita como um sistema entre sistemas; um sistema ativo, em Constante transformagao, auto-regulavel, mas igualmente aberto & interagao com outros sistemas. Entender a interagao humana sob uma Optica sistémica, e a familia como se fosse um sistema, envolve aplicar-lhe os principios validos para os sistemas em geral. Implica estarmos atentos as relages interpessoais e a seus contextos, bem como ao estilo de funcionamento que cada interagao tem a possibilidade de produzir em contextos e momentos determinados. Osintoma como linguagem — Tomando como foco o sintoma e, mais precisamente, o sintoma na crianga, podemos entendé-lo como mensagem n4o-verbal no campo da comunicagao. Constitui uma narrativa analégica, uma forma metaférica de comunicar. Se aceitamos essa idéia, 0 sintoma pode ser compreendido e legitimado mediante sua contextualizagdo no Ambito interpessoal. Sob essa Optica, na qual o individuo € parte integrante de um contexto de interag6es, o comportamento diferente, o sintoma, assumiria um sig- nificado especifico e diria respeito nao somente ao contexto, como também as relacdes que 0 compdem. _Os sintomas podem entao representar dificuldades tanto indivi- duais quanto telacionais e, dessa maneira, condensar, em simbolo UNICO, Os intimeros elementos que contribuem para sua existéncia. A nossa casa 61 O jogo X um objeto metafotico Sabemos que a comunicagao verbal é apenas um dos vefculos da comunicagao humana. Os adultos dominam a condigao verbal da comunicagao e regem com mestria sua combinagdo digital e analdgica. Por sua vez, as criangas nao dominam 0 mundo verbal, € as modalidades analégicas da comunicagao configuram o principal veiculo de comunicagao na infancia e pré-adolescéncia. As crian- gas utilizam, em especial, 0 corpo, o comportamento e o brincar pata conversar acerca de seus pensamentos e sentimentos. O jogo, objeto metaférico, particularmente valorizado como meio mediante 0 qual as criangas expressam emogées e conflitos, exerce importante papel como linguagem relacional. Por intermédio do liidico, criangas e adultos interagem. Na medida em que os membros de uma familia lidam uns com os outros no curso do jogo, desenvolvem um retrato analdgico de sua vida em conjunto, O.uso do brincar em sesso de familia faculta entao uma lingua- gem universal para as diferentes idades, facilitando a Participagao de criangas em sessdo com adultos. A brincadeira da vazio a motricidade infantil e auxilia a fixar a atengao no decorrer da sesso. Por um lado, ela é capaz de criar um clima emocional positivo, possibilitando que uma conversa a respeito da familia possa ocorrer, na medida em que gera menos ansiedade em todos os envolvidos. Por outro lado, ao nao criar dis- tancia afetiva em demasia, permite que haja conexdo com a emo- ¢4o, com a interagdo e, conseqiientemente, com a construgao de novas narrativas relacionais e afetivas. Como metéfora, o jogo possibilita falar de acontecimentos e si- tuages delicadas, fazendo-se vefculo da expresso de sentimen- tos, por vezes dificeis de serem manifestos em palavras tanto para criangas como para adultos. Cada membro da familia tem a possibilidade de identificar pa- drdes interativos, de se ver na relago com 0 outro, tanto como par- ticipante quanto como observador, 0 que viabiliza uma visio critica e auto-implicativa a respeito da propria contribuig&o para o que est4 ocorrendo. Ele torna exeqiifvel, ao terapeuta e a familia, a co-construgéo de hipoteses; amplia para eles a visdo do problema e cria a base Para um contexto de redefinigdes em co-autoria: redefinig&o das re- Tinia Almeida 62 : redefini¢ao da peeao entre . -autoria da famfli; 3 «aa Jema. A co-au ia pa redefinicao 40 Boe , da mesma forma, co. © terapeuta, a torna para novas verses sobre @ eri conseqiientes mudangas, Fa. éutica ¢ ‘ogo viabiliza a criaga osta te as 9 i020 vial 0 de autora da prep informagoes, 0J8 ao outro cultando um contexto para infor jogador, eas ‘prio aoe . novas narrativas to do texto inicial associado ag it 3 ovel interagdes, prom ta 0 de feedback positivo no que J nl sintoma, 0 qual fome! fio. diz respeito a sua manuten¢a' flia, tre os membros da famél va um circuit de mstijire acriagdo de uma imagem das emocdes, {fora abre campo 2 © Ses com 0 Outro, ; pis das pessoas & de suas rela n out % eet as dramatizam uma situacao © inciona. i foto- oe a de, na qual podemos virtualmente vei algo que erat t pontecendO naquele momento. Blas | con ens ee pes 6 ac od incluem o individuo, ampliam sua visao € 0 Ip’ aa no- aos vers seu respeito € quanto as relagdes de que participa. Nasties «cag pode ser 0 foco, 0 eixo de um trabalho ‘A metéfora de uma situaga0 pode , 0 €l balhi éutico; ela pode funcionar como ponto de partida e de referéncia lerapéutico; pa familia e para o terapeuta no decorrer do trabalho e fora dele, A familia: um contexto ling stico Com o advento do paradigma sistémico, nogdes como circularidade, recursividade, contexto e interagao ganharam desta- que no pensamento cientifico como um todo, geraram transforma- Gao nas ciéncias sociais e hoje permeiam os entendimentos acerca do mundo, seu existir, seu ontem e seu devir. A terapia de familia, filha da década de 50, surgiu regida por esse paradigma e foi incorporando outras nogGes e teorias ao longo do tempo. As primeiras escolas em terapia de familia foram fundamental- mente norteadas pela teoria da comunicagao, marco teérico das pes- quisas iniciais com familias de pacientes esquizofrénicos. Naquele Sa Teituras tedricas e clinicas estavam regidas pela Optica da » que entendia 0 sintoma como elemento homeostatico 4 aT ee ————— — A nossa casa 63 servigo de manter 0 equilibrio relacional na familia, O marco técnico era a exploragao das seqiiéncias comunicacionais, visando a apreen- der as repeticOes e redundancias ¢ a entendé-las como o padrao de funcionamento familiar. Esse movimento inicial na terapia de familia foi posteriormente denominado Primeira Cibernética. O desenvolvimento seguinte, nomeado Segunda Cibernética, dei- xou de ter a estabilidade como foco Principal e passou a adotar a mudanga como operador de suas leituras técnicas e teoricas, Na- quele enfoque, explorava-se primordialmente os recursos de mudan- ga na familia e as técnicas provocativas alcangaram destaque na busca daquele propésito. As perguntas circulares, a redefinigao e os questionamentos que visavam a identificar solugGes alternativas ja empregadas pela fami- lia — uso dos pr6prios recursos em outras situagdes — caminha- vam, lado a lado, em auxilio da mesma proposta. Esses dois movimentos estavam bastante ocupados com 0 com- portamento — em particular, com 0 comportamento sintomatico — ecreditavam ao terapeuta um lugar de observador — terapeuta isento — que confiava na veracidade de sua observagao e aplicava técni- cas diretivas, na suposic¢ao de saber 0 que seria mais funcional para a familia, regido pela crenga de que o sistema familiar seria passfvel de instrugao. O passo seguinte veio questionar esse limite cristalino entre 0 ob- servador — terapeuta — e 0 observado — familia —, acoplando-os em uma interacdo nomeada Sistema Terapéutico. Sob a regéncia des- sa Optica, hoje chamada de Segunda Ordem, o significado ganhou des- taque sobre 0 comportamento e a diretividade cedeu lugar a co-cons- trugdo. Especialmente voltada para a interagao, a postura construtivista veio desconstruir o lugar da verdade objetiva, para admitir a Possibili- dade de miiltiplas versdes, miltiplas co-construgées. A tealidade objetiva — inapreensivel sob esse prisma — cedeu lugar as realidades co-construidas norteadas pelo estilo de cada um estar e olhar 0 mundo, selecionando determinados aspectos entre as vivéncias e percepgdes e deixando de considerar outros, Desse modo, € 0 consenso entre as pessoas que vai co-construir versdes, proble- mas, significados, redefinigdes, solugdes e verdades consensuais, Nesta virada de milénio, a terapia de familia é percebida como €spago social de conversa, capaz de gerar informagao, co-construir Rovas narrativas, propiciar a reflexao e a redefinicao de significados e, Tecursivamente, afetar todos os que dela participam ou so por ela direta ou indiretamente tocados, ndo predizendo o que disso possa advir. et Tania Almeida Ambito lingiifstico no qual estamos imersos desde antes do nascimen. to, a microcomunidade social propiciada pela familia contribui com sey, tom, som e sabor para o que externamos ser. E vice-versa. Buscando articulagées tedricas para 0 desenho de sessio agyj descrito, podemos identificar, em sua proposigao, movimentos ue dos pela Primeira e Segunda Cj. corresponderiam a olhares enfatiza a A g bernéticas e, em sua utilizagao, a oportunidade de intervir em ¢. autoria com e na familia, criando um espace de conversa propiciadoy de mudangas em conformidade com 0 estilo contemporaneo de aty. acdo terapéutica. Quando propomos, com A Nossa Casa, tomar a interagio na sessdio como uma possivel similar do funcionamento de uma familia, estamos empregando um olhar enfatizado pela Primeira Ciberética, que € o de redundancia e repeti¢ao do padrao. Ao convidar a familia a identificar seus recursos de mudanga ou quando situagdes/signifi- cados sao redefinidos, estamos pondo em pratica olhares salientados pela Segunda Cibernética. | Por seu turno, quando nos pomos, na qualidade de terapeuta, como terapeuta-observador, nao estamos regidos pela crenca na divisibilidade pela postura de Primeira entre observador e observado, apregoada Ordem, mas, sim, norteados pela premissa de Segunda Ordem, que assinala a mttua influéncia entre familia e terapeuta, particularizando a familia, nesse momento, como foco do trabalho. Cada um, familia e terapeuta, com sua singularidade e visio de mundo, estaré sendo mu- tuamente afetado por esta interagao. No entanto, a complexidade que h4 em se estar simultaneamente como sujeito e objeto privilegia a fa- milia como objeto de percepcao & atengado nesse momento do atuar terapéutico, de modo que viabiliza ao terapeuta pautar sua interagdo com ela por meio de intervengdes que tém intengdo terapéutica. No momento em que 0 terapeuta € a familia est’o construindo 0 filme ao conversar a respeito do desenho realizado, todos estarao compartilhando suas construg6es, seus roteiros, testando seus encai- xes, buscando ou nao consenso na qualidade de sujeitos-observado- res que também sao da situagao vivida. O que julgamos precioso € pensar que recursos técnicos, privilegi- ados pelos pensamentos iniciais da terapia de familia, podem estar articulados com um posicionamento de co-construgao. O que dita essa tomada de posigdo sao crengas teéricas, visdes de mundo e norteadores nae para a vida, determinantes da forma, da expectativa e do propési- to com que utilizamos os distintos recursos em terapia. A nossa casa 65 O lugar do terapeuta Postura Co-evoluindo com a terapia de familia em seu percurso tempo- ral-tedrico € em termos de propésitos, 0 lugar inicial do terapeuta de familia, como decodificador, instrutor, sabedor inequfvoco de suas observagGes e das necessidades da famflia, cedeu espago a um terapeuta que aprende com a familia a respeito de suas possibilida- des e, com ela, identifica sua coeréncia e amplia narrativas e signifi- cados em contexto que tem a reflexdo como mtisica de fundo. O lugar de expert do terapeuta fica reduzido Aquele que 0 co- nhecimento vivencial, te6rico e clinico lhe confere e que o faz indicar esse ou aquele formato de terapia, o faz eleger essa ou aquela inter- vencao, o faz privilegiar as singularidades daquele contexto. Sujeito diferenciado pelo saber teérico, pela vivéncia clinica e existencial €, naturalmente, dessemelhante pela sua forma de ver e estar no mundo, oriundo de uma construgao social Particular, com narrativa distinta daquelas conhecidas pela familia, 0 terapeuta con- tribui para que o contexto terapéutico de conversa possa ser gerador de informagao e, conseqiientemente, de um contexto de mudanga. Mudangas imprevisiveis que facam encaixe com as possibilidades da familia, deslocando-a de antigas descrigées e agdes. E possivel, portanto, vermos, na relacio terapéutica, uma relacdo de co-construcdo e, por conseguinte, de colaboragao que tem por ob- jetivo o estabelecimento de um espago consensual de reflexao. Desse modo, 0 espago do jogo na relagdo terapéutica faculta a criagdo de um cendrio para a co-construgio, a reflexao, a redefinigZo de discursos e as incertas, mas provaveis, mudancas. Quando brincadeira vira coisa séria Transcrevemos aqui experiéncias interessantes de serem com- partilhadas, uma vez que exemplificam a idéia do filme e seu roteiro. Elas foram vividas no dia-a-dia da clinica e estdo descritas de forma sucinta, guardando-se o sigilo que esse tipo de relato exige. O critério para a selegdo dos casos foi o cardter interativo do sintoma e as abor- dagens terapéuticas que incluiram distintas pessoas da mesma familia. ee | Tania Almeida 66 i essivl 1] — Sofia, # menina og" Caso 1 — a 4 anos, que passa toda a seses, menina de ”. para sua irmi de 2 hocolate P: an edago de © ia filha, protegendo-a © recusando-se a dat A Cal Sonsolat a Ee pee en a ae Seu padrasto ocupa-se Tr quanto a Mae oe da mesina he maldade da irma ma! et com algum des » 01 i olina a os espagos vaaios da eR conversa com alge ae Quando So. que os pequenosslenci9s "chocolate 8 im minim CePare oy fia resolve dar ul Pe atitudes adversas ganhal aca lultos, comenta. Somente sue a separacao a , Meses de, _ Do ponto ene sua irmé a se afastarem das divergéncias dig, pois, auxiliou SO! ncia de compo alterna rtamentos desejaveis © Niio. Fae Ovando as da exclusividade dos esteredtipos de vitimae desejaveis, pt Bs vitimario. Sofia € uma linda ino aprontador Caso 2 — Rodrigo, 0 ment —“ m menino esperto, que foi deixado por sua mie ando tinha 1 ano, tendo sido adotado io é jovem, nao teve a possibilidade de ter filhos biolégicos € mantém, entre si, uma relagdo afetiva dis- tante; contudo, com Rodrigo sao extremamente afetuosos e dedica- dos. Rodrigo passa toda a sessao solicitando dos pais que “coloquem suas cores” em seu desenho ou que 0 pal coloque sua cor no dese- nho feito pela mae e vice-versa. . Em entrevistas posteriores, quando Rodrigo estava ausente, os pais trouxeram, como reflexao, 0 fato de Rodrigo ser 0 tinico elo entre eles, o motivo de manutencao do casamento. Co-construiu-se a idéia de uma terapia de casal que, do ponto de vista de todos, muito contribuiu para mudangas ocorridas no comportamento de Rodrigo. Rodrigo é w mn biolégica na casa dos patrées qua pelo casal aos 6 anos. O casal na Caso 3 — Duas mites: a Bela e a Fera André e Pedro sdo primos, filhos de duas irmiis, nascidos no mes- ony porém com diferenga de trés meses. Todos habitam o mesmo ee yee André € mau e Pedro é bom. André bate e Pedro apa- arta é incapaz € Pedro é capaz. André no sabe desenhar € oan Na am Pedido de desenharem uma s6 casa integrar a see ae : André desenha no canto da cartolina uma € sua mae, verbalizando claramente ser este 0 A nossa casa 67 seu sonho. As mies divergem durante toda a sessdio quanto ao que deveria ou nao ser feito no desenho e a respeito do que estava correto ou nao. Poucas semanas depois, as mies compareceram a uma ses- sao e colocaram em pauta 0 fato de, na familia de origem, terem per- sonificado (¢ ainda personificam) o mesmo par de opostos hoje repre- sentado por seus filhos: A Fera e a Bela de ontem assinalam a repro- dugdo de sua histéria. André e sua mae permanecem em terapia, rea- lizam 0 sonho da prépria casa e redefinem suas hist6rias de pouco capazes. Pedro e sua mae nao concordaram em participar; na ultima vez em que chegaram noticias de Pedro, ele nao estava bem. Consideragoes finais Foi em 1986 que propusemos, pela primeira vez, uma sesso lidica com familias que envolviam criangas sintométicas mediante o emprego do tema A Nossa Casa como metéfora da interagao fami- liar. Desde entdo, a sesséo com a familia e 0 contato com os demais contextos, nos quais a crianga participa, passaram a fazer parte da avaliago de criangas. Consideramos que, em razio de uma formagao médica e pela longa atuagao em psicoterapia de base analitica com criangas e ado- lescentes, os aspectos bioldgicos e os psicodinamicos mantiveram sua relevancia, juntamente com os aspectos sociais que a interagio e a imersao na linguagem ajudam a construir. Portanto, a proposta de ava- liag&o de uma crianga vem sendo o produto das articulagdes de seus aspectos biolégicos, emocionais e relacionais, recursivamente interativos ¢ legitimados por seu percurso de vida e por sua insercdo no social. No curso normal do desenvolvimento, a primeira década de vida impGe a todos um percurso carregado de mudangas. Pode-se comparé-la a uma corrida com obstéculos, como no atletismo, nao guardando, porém, intervalos regulares entre os obstaculos, nao man- tendo sua universalidade de tamanho e trocando a energia fisica para execugdo daquela tarefa pela energia psiquica. Nessa metéfora, cada pequeno corredor é que dird que tamanho de obstdculo tem determi- nada mudanga. A evolucao no social impord a distancia ocorrida entre cada mudanga, e obstdculos adicionais aos do desenvolvimen- to natural serao acrescidos pelo contexto no qual a crianga esté co Tania Almeidar vos, expressac jmersa. Alguns sintomas so, portanto, evolutivos, expressdo da an. jistia do crescimento. . sio . Conversar com oS pais e estar co a tnicos ; aes que auxiliam a articular dados histdricos, jac oF movimento eagtte onais, contextualizando, passo a pat cal » cada com. portamento. O uso do jog: de sessiio, A Noss versar com a famil relacional do sintoma. O jogo UP” atendem a0s obje' de um modelo estruturadg sendo recurso uti zado para con. ia de criangas sintomaticas e para incluir a Visio um objeto metafOrico, possui qualida. jai tivos dessa proposta. eat elacionais ampliam, para o terapeuta ea familia, a ‘pilitando que esta participe de sua 0 — mais precisamente, a Casa — ver Os aspectos Fé A visio a respeito do sintoma, poss! egg ¢ seja co-autora da proposta de mudanga. — ‘A forma como este trabalho est agora desenvolvido nao foi intencional. Sua redacao inicial visava a apresentar um recurso téo- nico que viabilizasse contextualizar os sintomas das criangas que avalidvamos segundo uma Optica relacional. A leitura tedrica ocor- reu a posteriori € yeio atender a uma inquietagao: observaramos que, ao longo do tempo, vinhamos modificando a postura € ainteragio nos trabalhos com as familias, e resolvemos entao rever esse movi- mento, articulando-o com sua evolugdo te6rico-pratica. E prazeroso poder manter teoricamente atualizado o recurso A Nossa Casa e ratificar a idéia de que, desde uma postura construtivista-construcionista social, recursos pautados em visdes de Primeira Ordem possam viabilizar-se como instrumentos terapéuticos em uma Optica contemporanea. A nossa casa 6 \ atk @ TTA VA FE Saba adh QTE Tania Almeida eS i lalate A nossa casa 7 Referéncias bibliograficas do texto original, 1986 ANDOLFI, M. A terapia familiar. Lisboa, Editorial Vega, 1981. ANDOLFI, M., ANGELO, C., MENGHI, P., NOCOLO, A.M. & CORIGLIANO, Por trés da mascara familiar. Porto Alegre, Ed. Artes Médicas Sul, 1984. ANGELO, C. The use of metaphoric object in family therapy. The American Journal of Family Therapy, 1979. HALEY, J. Los sintomas y las relaciones humanas. In: HALEY, J. Estratégias en Psicoterapia. Barcelona, Ediciones Toray, 1971. E Psicoterapia familiar, Belo Horizonte, Ed. Interlivros de Mi- nas Gerais, 1978. PINCUS, L. & DARE, C. Psicodindmica da familia. 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