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Hannah Arendt e o sentido original da liberdade

Hannah Arendt and the original meaning of freedom

Victor Frohlich1

Resumo: Neste artigo, procuraremos compreender o sentido original da liberdade


segundo Hannah Arendt. Para isso, nos debruçaremos sobre um recorte bastante sucinto
da longa obra da pensadora política alemã, observando algumas passagens do ensaio “Que
é Liberdade?”, presente em Entre o Passado e o Futuro, e alguns breves momentos do
capítulo “II - As esferas pública e privada” de A Condição Humana. A exposição nas
páginas seguintes está dividida em duas partes. Num primeiro momento,
contextualizaremos de maneira sumária estes escritos no interior do corpus arendtiano,
clarificando a importância capital do conceito de liberdade em seus escritos; feito isso,
adentraremos em alguns dos elementos marcantes deste conceito, além do conceito de
ação da autora. Em segundo lugar, as indicações do ensaio supracitado são comparadas e
complementadas com uma análise mais detida dos conceitos de esfera pública e esfera
privada em A Condição Humana, sobretudo no que tange à relação entre a esfera pública,
a política e a liberdade, de um lado, e entre esfera privada, a relação doméstica de domínio
e a necessidade, de outro. Acreditamos que esta exposição permite uma visão precisa,
posto concisa, do sentido radical da liberdade política em Hannah Arendt e dos conceitos
centrais de seu pensamento acerca de tal questão.
Palavra-chaves: Arendt; Liberdade; Necessidade; Público; Privado.

Abstract: In this article, we shall attempt to understand the original meaning of freedom
according to Hannah Arendt. For such, we shall dwell over a rather succinct scope of the
lenghty work of the german political thinker, observing some passages of the essay “What
is Freedom?”, in Between Past and Future, and some brief moments of the chapter “II -
The public and the Private Realm” of The Human Condition. The approach of the
following pages is divided in two parts. In the first moment we shall summarily
contextualize these writings inside the arendtian corpus, clarifying the capital importance
of the concept of freedom in her writings; after that, we shall address some of the
remarkable elements of this concept, as well as of the author’s concept of action. In the
second moment, the indications of the aforementioned essay are compared and
complemented with an attentive analisys of the public and private realm in The Human
Condition, mainly on that regarding the relation between the public realm, politics and
freedom, on the one hand, and between the private realm, domain relations inside the
household and necessity, on the other hand. We believe that such approach allows a
precise, although concise, outlook of the radical meaning of political freedom in Hannah
Arendt and of the central concepts of her thought regarding such question.
Keywords: Arendt; Freedom; Necessity; Public; Private.

***

1
Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da FAPESP sob a orientação da
Profa. Dra. Silvana de Souza Ramos. E-mail: fcortez.victor@gmail.com.
Hannah Arendt e o sentido original da liberdade

1. A liberdade no centro da reflexão política


Realizaremos uma análise baseada em duas obras publicadas entre a segunda
metade da década de 1950 e o começo dos anos 1960, redigidas em um momento bastante
especial da obra da autora e atravessada por um élan muito similar: segundo Margaret
Canovan, encontra-se nos escritos de Arendt deste período o esforço de desenvolver “algo
mais próximo [de uma] afirmação sistemática de sua teoria política”, (CANOVAN, 1995,
p. 100)2. Essa teoria vinha sendo desenvolvida desde a redação de As Origens do
Totalitarismo, publicado em 1951, e começaria a tomar formas mais sólidas e refinadas a
partir das pesquisas sobre os elementos totalitários na tradição do pensamento marxista,
realizadas na primeira metade da década de 1950, e da redação de A Condição Humana,
publicada em 1958. Assim, a intenção de Arendt era a de continuar suas investigações
com o objetivo de elaborar um projeto mais acabado, como ela mesma afirma em uma
proposta de pesquisa enviada à Rockefeller Foundation ao concluir A Condição Humana.
Este novo projeto, intitulado Introdução à Política, deveria trazer, em continuidade aos
temas abordados na obra precedente, “um reexame crítico dos principais conceitos e
quadros conceituais da tradição do pensamento político - por exemplo: meios e fins;
autoridade; governo; poder; lei; etc”, além de “um exame mais sistemático daquelas
esferas do mundo e da vida humana que chamamos adequadamente de políticas, isto é, o
espaço público, de um lado, e [o espaço] da ação, de outro” (CANOVAN, 1995, p. 100)3.
Todavia, é sabido que este projeto não se realizou - ao menos neste formato
preliminar, a exposição sistemática e introdutória à teoria política por parte de Arendt
nunca foi escrita. Em seu lugar, encontramos uma vasta gama de escritos, publicados no
período ou organizados posteriormente, onde a autora expõe alguns de seus principais
conceitos e argumentos sobre os temas apontados: Entre o Passado e o Futuro, O que é
Política?, Sobre a Revolução, além da própria A Condição Humana, são os que merecem
maior destaque neste sentido, por serem os escritos onde, efetivamente, “uma grande
porção das matérias propostas por ela encontrou seu lugar” (CANOVAN, 1995, p. 101) 4.
Em Entre o Passado e o Futuro, defrontamo-nos com uma série de ensaios sobre variados
temas de discussão política, como as marcantes discussões históricas e conceituais de

2
“something more like [a] systematic statement of her political theory”.
3
“a critical reexamination of the chief traditional concepts and conceptual frameworks of political thinking
- such as, means and end; authority; government; power; law; etc”; “a more systematic examination of those
spheres of the world and human life which we properly call political, that is, of the public realm on one
hand, and [the realm] of action on the other”.
4
“a good deal of her proposed material found its way”.

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“Que é Autoridade?” e “Que é Liberdade?”; em O que é Política?, organizado


postumamente por Ursula Ludz, encontramos diversos ensaios e anotações da autora que
estavam intrinsecamente relacionados ao projeto de elaboração da obra de introdução à
política; em Sobre a Revolução, a autora discute, dentre outras questões, os caminhos e
descaminhos das revoluções Americana e Francesa, oportunidade privilegiada para
elaborar ainda outros elementos de sua crítica à esfera social, destacada inicialmente na
Condição Humana, numa discussão orientada pela emergência da questão social nas duas
grandes revoluções do século XVIII.
Um maior aprofundamento nas prerrogativas destas obras não nos interessa aqui,
nem uma discussão mais aprofundada sobre o sentido de A Condição Humana no corpus
de Arendt, classificada naquela mesma proposta enviada à Rockefeller Foundation como
“uma espécie de prolegômeno” (CANOVAN, 1995, p. 100)5 à obra incompleta da qual
falávamos. Importa apenas destacar que essa miríade de trabalhos, longe de representar
fragmentos incompletos de um sistema teórico-político, contém justamente uma densa
teia conceitual sobre a tradição do pensamento político e aponta para a necessidade de
revisitar criticamente alguns de seus conceitos-chave, teia essa que, certamente, comporia
de alguma forma a abordagem mais “definitiva” que Arendt intentara elaborar. Como
sugere Canovan, se, de um lado, não encontramos “uma única e sistemática afirmação de
sua teoria política madura” (CANOVAN, 1995, p. 101) 6, por outro, seu pensamento
político “pode ser reconstruído a partir do conjunto de seus escritos, publicados e não
publicados” (CANOVAN, 1995, p. 101) 7 em toda a sua riqueza.
Assim se justifica mais claramente o nosso objetivo de analisar o que esta autora
entende por liberdade. A centralidade desta categoria do pensamento político é uma
afirmação recorrente em seus escritos, sobretudo neste período: algo evidente quando ela
diz, por exemplo, que “o sentido da política é a liberdade” (ARENDT, 1999, p. 38),
fórmula cuja objetividade se radica na antiga experiência da polis grega, onde se tomava
como uma verdade axiomática o fato de que “a liberdade situa-se exclusivamente na
esfera política” (ARENDT, 1999, p. 40), i.e., num tipo de vida marcado pela deliberação
e pela aparição pública dos cidadãos onde revelava-se nitidamente que a “raison d'être
da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação” (ARENDT, 2014, p.
192). Dada esta centralidade, acreditamos que privilegiar a interpretação deste conceito é

5
“a kind of prolegomena”.
6
“a single, systematic statement of her mature political theory”.
7
“can be reconstructed from the mass of her work, published and unpublished”.

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um caminho produtivo para começar a compreender a rica teia conceitual de Arendt, além
de seus estudos sobre a experiência política clássica na Grécia antiga 8. Estes estudos por
parte da autora, marcadamente presente em todos os escritos citados, é central para o
desenvolvimento de suas reflexões políticas, uma vez que a significação original da vida
política - e, consequentemente, o sentido primeiro da liberdade - irrompem da experiência
na Antiguidade Clássica e se revelam em sua curiosa especificidade a partir de nossa
perspectiva moderna.
Esta é uma das premissas iniciais de “Que é Liberdade?”, premissa que indica a
originalidade da abordagem de Arendt. Em suma, não se tratará de tomar a liberdade
enquanto um conceito filosófico, a ser definido e demonstrado no sentido costumeiro em
que se realizam essas tarefas em nossa disciplina. Sobretudo, porque isso não é
necessário: a liberdade da qual se pretende tratar é, antes de mais nada, um fenômeno
político, aberto à experiência humana em todas as circunstâncias em que os seres
humanos se encontram em contato com as prerrogativas essenciais para o seu
aparecimento. O equívoco primordial da tradição filosófica acerca deste fenômeno é,
justamente, o esforço em “transpô-la de seu campo original, o âmbito da política e dos
assuntos humanos em geral, para um domínio interno, a vontade, onde ela estaria aberta
à auto-inspeção” (ARENDT, 2014, p. 191), transposição que, segundo Arendt, encontra
suas raízes originais nas formulações filosóficas de Epicteto, que a apresenta como a
liberdade interior de se fazer o que se quer e de se exercer o domínio de seus desejos, e
de Agostinho, em sua notória discussão acerca do livre-arbítrio no âmbito de um intenso
conflito interno da vontade.
É preciso indicar que essas reflexões críticas sobre a história da filosofia são
extremamente notáveis e passíveis de debate. Quanto a isso, indico apenas um comentário
de Gérard Lebrun em seu “A liberdade segundo Hannah Arendt”, em que analisa
criticamente o ensaio da autora. Além de seu argumento geral de que a proposta
arendtiana desvincula indevidamente o plano econômico do político - um equívoco,
segundo Lebrun, pautado na recusa a perceber que não há mais “um discurso político que

8
Isso parece coadunar, de algum modo, com a própria opinião da autora sobre sua obra: teria sido
justamente seu Entre o Passado e o Futuro, segundo apontamento de Eduardo Jardim, “o livro escolhido
pela autora para introduzir sua obra no Brasil, em 1972” (JARDIM, 2011, p. 19). Revela-se, assim, não
apenas o apreço de Arendt a esse conjunto de ensaios; mais ainda, torna-se evidente a capacidade destes
artigos de iniciarem e incitarem debates sobre alguns temas caros à autora - algo também evidente no
subtítulo original da obra, que infelizmente não foi incluído na tradução brasileira e classifica seu conteúdo
ensaístico, simplesmente, como “oito exercícios de pensamento político [eight exercises in political
thought]” (ARENDT, 2006, p.3).

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possa seriamente convidar os homens a abandonar sua preocupação com a segurança e o


bem-estar” (LEBRUN, 1983, p. 57) - o filósofo francês contesta a leitura de Arendt acerca
da filosofia de Epicteto, oriunda de “uma distância excessiva em relação aos textos”
(LEBRUN, 1983, p. 54) que a levaria a diminuir até que ponto o filósofo estóico estaria
ciente do caráter derrisório da fórmula que associa o ‘viver como se quer’ à liberdade.
Epicteto, do contrário, enfatizava a importância de distinguir entre “o que está e o que
não está em seu poder” (LEBRUN, 1983, p. 54, grifo do autor) com o objetivo de
“assumir uma atitude tal que, seja o que for que me acontecer, o acontecimento, em lugar
de me encontrar passivo, será incorporado à minha ação” (LEBRUN, 1983, p. 54, grifo
do autor). Ou seja, tratar-se-ia de ter ciência das condições objetivas de uma dada situação
e de promover uma atitude coerente a tal situação, e não, como sugere Arendt, de
promover uma resignação ou um devaneio de soberania.
Para nossos fins, todavia, é mister deixarmos tais aprofundamentos em segundo
plano por um momento e apenas reafirmar o que a essa altura já está claro: a liberdade da
qual pretendemos tratar aqui não é um fenômeno subjetivo da vontade e da capacidade
de escolher entre distintos objetos, e muito menos um sinônimo de livre-arbítrio. Basta,
como indica a autora no começo do texto, atentar-se para a curiosa aporia de que, ao
realizar algo e refletir sobre sua realização, sejamos levados a compreendê-la “sob o
domínio de duas espécies de causalidade: a causalidade da motivação interna, por um
lado, e o princípio causal que rege o mundo exterior, por outro” (ARENDT, 2014, p. 190),
além da complexidade presente na própria etimologia do conceito, liberum arbitrium, que
justapõe uma espontaneidade subjetiva à imposição arbitrária da vontade ou da razão,
sendo então no mínimo interessante reparar que “a faculdade da vontade, cuja atividade
essencial consiste em impor e mandar, seja quem deva abrigar a liberdade” (ARENDT,
2014, p. 190). Essa caracterização é produtiva para compreender um dos elementos mais
básicos da liberdade arendtiana, que se revela na capacidade de realizar, na medida do
possível, um ato desimpedido destas duas formas de causalidade, tanto aquela da
psicologia e das relações inconscientes do sujeito, quanto aquela das causas externas,
sejam elas físicas ou relacionadas ao convívio social. Sendo assim, a liberdade expressa
na capacidade de agir caracteriza-se por ser:
a liberdade de chamar à existência o que antes não existia, o que não foi dado
nem mesmo como um objeto de cognição ou de imaginação e que não poderia
portanto, estritamente falando, ser conhecido. Para que seja livre, a ação deve
ser livre, por um lado, de motivos e, por outro, do fim intencionado como um
efeito previsível. Isso não quer dizer que motivos e objetivos não sejam fatores
importantes em todo ato particular, mas sim que eles são seus fatores

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determinantes e a ação é livre na medida em que é capaz de transcendê-los


(ARENDT, 2014, p. 198, grifo nosso).

Ou seja, não se trata de menosprezar as condições específicas que influenciam um


ato qualquer - vontade e intelecto possuem um papel relevante, impulsionando o agente
através de seus credos e desejos ou identificando uma meta adequada, por exemplo - mas
apenas de ressaltar que tais especificidades não restringem ou determinam completamente
o agir. Contudo, a colocação de que o agir livre se define pela capacidade de chamar o
inexistente à existência pode soar um tanto abstrata num primeiro momento, dando a
impressão de que a agência se radicaria numa espontaneidade inapreensível e
completamente imaterial. De fato, os motivadores objetivos não entram em jogo enquanto
condicionantes absolutos, mas isso não significa que o agir descrito por Arendt se dissocie
por completo da realidade objetiva - o que seria um patente contrassenso em uma
discussão política, diga-se de passagem. Em breve, trataremos com maior detalhe das
relações da ação com a mundanidade e com outros agentes no espaço público; num
primeiro sentido, porém, essa aparente distância da realidade por parte do agir se dissipa
na descrição feita pela autora, a partir de um conceito presente na obra de Montesquieu,
de que a ação livre irrompe de um tipo distinto de inspiração, que ela intitula de princípios.
Diferentemente dos motivos, que são internos e particulares, os princípios “inspiram do
exterior” (ARENDT, 2014, p. 199), do mundo humano onde os agentes se inserem, e são
“demasiado gerais para prescreverem metas particulares” (ARENDT, 2014, p. 199).
Além disso, e justamente por não se radicar na experiência subjetiva do agente, um
princípio “torna-se plenamente manifesto somente no próprio ato realizador” (ARENDT,
2014, p. 199), ou seja, a partir da sua realização pública e da percepção plural no espaço
devidamente político.
Curiosamente, os princípios descritos pela autora possuem um outro trunfo em
relação aos motivos e metas específicos. Por radicar-se no espaço público, “a validade de
um princípio é universal, não se ligando a nenhuma pessoa ou grupo em especial”
(ARENDT, 2014, p. 199); por conta disso, e por efetivar-se apenas em sua realização
pública e ao tornar-se visível aos outros agentes - que podem, ademais, somar-se ao ato -
, o princípio, motivação genuína da ação política, “nada perde em vigor e em validade
através da execução. Distintamente de sua meta, o princípio de uma ação pode ser repetido
mais de uma vez, sendo inexaurível” (ARENDT, 2014, p. 199). Ao destacar alguns pontos
dessa descrição, diversos traços marcantes do pensamento político de Arendt se revelam.

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O princípio encontra-se dotado também de uma espécie de potência infinita, justamente


porque irrompe de um espaço não-individual, a esfera da política, que abriga feitos
virtualmente ilimitados, característica marcante dos atos humanos enquanto processos
inseridos num mundo plural e em uma teia de relações e histórias humanas que, apesar
de sua “qualidade [...] de certo modo intangível” (ARENDT, 1999, p. 195), é tão real e
visível quanto o mundo dos artefatos humanos.
Além dessa indicação de uma das características marcantes da ação, de um lado,
e da centralidade do espaço político para sua realização, de outro, nota-se que a
abordagem arendtiana da liberdade volta-se, imprescindivelmente, para a sua expressão
na atividade da ação, i.e., uma das três atividades da vita activa, ao lado do labor (do
inglês labor) e do trabalho (do inglês work), conforme A Condição Humana. Mais uma
vez, a liberdade política se desvela enquanto atualização da capacidade humana de agir,
e assim a importância de vincular o tema da liberdade a uma descrição da ação se torna
mais clara; é que os seres humanos “são livres - diferentemente de possuírem o dom da
liberdade - enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são a mesma
coisa” (ARENDT, 2014, p. 199, grifo da autora). A liberdade, assim, em seu aspecto mais
primário, se revela como uma capacidade humana que se concretiza em ato a partir da
agência efetiva em um mundo público e habitado por outros agentes; ela é, como bem
destaca Jardim, “a matéria de que é feita a vida política” (2011, p. 19), inspirada não pelas
motivações privadas ou desígnios particulares num sentido exclusivo, mas, do contrário,
por princípios comuns, demasiado gerais para serem prescritivos e que se mantêm vivos
e atuais através da praxis e de sua publicidade.
Na sequência do ensaio, Arendt parte para outra caracterização da ação, cuja
qualidade ilustrativa permite uma compreensão mais cristalina do elo entre a liberdade e
essa atividade. Para isso, Arendt recorre a outro conhecido pensador político e a um de
seus conceitos mais marcantes: trata-se do “conceito maquiavélico de virtù, a excelência
com que o homem responde às oportunidades que o mundo abre ante ele à guisa de
fortuna” (ARENDT, 2014, p. 199). O ponto central da questão, destaca a autora, é o
elemento de virtuosidade ou performatividade presente no conceito do filósofo italiano;
i.e., enquanto a melhor tradução de seu sentido é, justamente, “virtuosidade”, este
conceito vincula-se indissociavelmente à ideia de “uma excelência que atribuímos às artes
de realização (à diferença das artes criativas de fabricação), onde a perfeição está no
próprio desempenho e não em um produto final que sobrevive à atividade que a trouxe

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ao mundo e dela se torna independente” (ARENDT, 2014, p. 199, grifo nosso). Assim, a
realização ativa na política pode ser compreendida pela metáfora artística, nos diz a
autora; contudo, desde que nos atentemos à diferença entre as artes criativas e as artes
performativas, que se revela na indicação de que, por mais que também “o artista criativo
seja livre no processo de criação” (ARENDT, 2014, p. 200), este mesmo processo
permanece oculto do mundo público, e, neste caso, o que “finalmente surge e que
interessa ao mundo [é] a própria obra de arte, o produto final do processo” (ARENDT,
2014, p. 200). As artes performativas, do contrário, não culminam em um objeto acabado
e plenamente cristalizado; e mesmo que tenha um inestimável valor o texto reificado de
um drama - tão essencial, por exemplo, para que possamos conhecer as antigas tragédias
gregas - ele não indica senão a grandeza de um ato que fora pensado para ser encenado,
ativamente, por atores e suas personagens neles encarnadas. A perfeição9 da arte
performativa, em oposição ao pleno acabamento objetivo do artesão, se revela apenas no
agir dos artistas que realizam um determinado ato virtuoso. Neste sentido, esta forma
artística
têm com efeito uma grande afinidade com a política. Os artistas executantes -
dançarinos, atores, músicos e o que o valha - precisam de uma audiência para
mostrarem seu virtuosismo, do mesmo modo como os homens que agem
necessitam da presença de outros ante os quais possam aparecer; ambos
requerem um espaço publicamente organizado para sua “obra”, e ambos
dependem de outros para o desempenho em si (ARENDT, 2014, p. 200-201).

Ao contrário de um quadro acabado, que pode ser guardado, esquecido e trazido


novamente à luz pública em toda sua relevância, a performance só se revela
verdadeiramente em ato e, portanto, enquanto pode ser testemunhada por outros. Antes,

9
Atenção aqui à etimologia original desta palavra. Ela é oriunda do termo latino perfictio: termo formado,
segundo o Oxford Latin Dictionary, a partir dos termos per - “através de” (GLARE, 1968, p. 1326) - e
factio, - “ato de fazer, produzir” (GLARE, 1968, p. 670) -, de onde derivam-se ainda termos análogos como
perfectio ou perfectus (GLARE, 1968, p. 1337). O sentido mais preciso de perfictio, portanto, é “levar (uma
ação ou processo) a seu fim ou conclusão, completar, terminar” (GLARE, 1968, p. 1338). Ou seja:
respeitando sua raiz latina, o termo perfeição poderia ser definido mais precisamente como feito completo
ou criação totalmente acabada - como sugere o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, cuja
definição completa de Perfeição é: “Execução completa; acabamento; bondade ou excelência no maior
grau; primor; correção; formosura; pureza; maestria; requinte” (FERREIRA, 1969, p. 926). Como esta
mesma indicação no dicionário brasileiro sugere, este sentido pode não ser indicado adequadamente pelo
termo português perfeição, uma vez que o uso coloquial moderno da palavra costuma remeter não apenas
a uma obra acabada mas também a um feito irretocável, que prescinde de qualquer modificação, que é
sublime etc. Por mais que este sentido ainda se relacione ao sentido mais literal de acabamento e também
esteja relativamente presente no uso latino, ele pode enganar-nos e fazer-nos pensar que Arendt se refere
aqui a uma espécie de “grandiosidade sublime” das performances artísticas e políticas. Isto, nos parece,
seria impreciso, e de um matiz romântico que nada adicionaria aos argumentos expostos: ao contrário disso,
a autora utiliza o termo em seu sentido mais simples, indicando o “feito plenamente acabado” e o sentido
que revelam, em ato, em ambos os casos.

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seu sentido e sua relevância não podem ser devidamente compreendidos ou mesmo
mensurados. Na vida política, onde os agentes realizam feitos e palavras em conjunto com
outros agentes, algo quase idêntico se dá; e é indicativo que o conceito de virtù remeta
indiretamente ao fato de “os gregos utilizarem sempre metáforas como tocar flauta,
dançar, pilotar e navegar para distinguir as atividades políticas das demais” (ARENDT,
2014, p. 200), ou seja, todas as artes onde “o virtuosismo do desempenho é decisivo”
(ARENDT, 2014, p. 200). O agir, portanto, enquanto expressão da liberdade, se mostra
novamente distinto das motivações privadas que não se mostram em público e também
das metas estabelecidas para atingir um fim, algo que guarda bastante similaridade com
o trabalho (work) do artífice, cuja liberdade criativa restringe-se à teleologia dos meios e
dos fins. Mas também revela-se outra vez, nessas indicações, uma das especificidades em
que se envolve a ação e, por conseguinte, a liberdade: enquanto atividade performativa,
ela guarda sempre esta característica de tornar-se atual pela praxis, que se inspira em
princípios cuja existência depende da pluralidade política e que, num sentido ainda mais
básico, se radica na necessidade imprescindível de uma cena de ação, de um espaço
organizado e permanente para estas realizações, algo que tomou sua forma axiomática na
polis grega, que foi, de fato, a forma politicamente instituída que “proporcionou aos
homens um espaço para a aparição onde pudessem agir - [i.e.,] uma espécie de anfiteatro
onde a liberdade podia aparecer” (ARENDT, 2014, p. 200). Essa especificidade, assim
como as prerrogativas básicas de sua existência, serão nosso objeto central na seção
seguinte.

2. O espaço da liberdade e o espaço da necessidade


Como dizíamos, a constituição do espaço político enquanto abrigo da liberdade é
um fenômeno bastante específico para Arendt, comentado pela primeira vez neste ensaio
quando a autora justapõe a liberdade a dois outros fenômenos: (i) a necessidade, o seu
contrário, e (ii) a libertação, sua principal prerrogativa - com a qual, apesar da
proximidade etimológica, a liberdade não se confunde. O apontamento em questão
vincula-se ainda àquela tese central que descrevemos, a saber, ao fato de que a liberdade
surge como um elemento concreto aos seres humanos a partir da experiência com “a
condição de ser livre como uma realidade mundanamente tangível” (ARENDT, 2014, p.
194), de onde foi possível a formulação tardia por parte dos filósofos “de uma liberdade

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interior e apolítica” (ARENDT, 2014, p. 194). Anteriormente a essa formulação e


ancorada na experiência política grega:
[...] a liberdade era entendida como o estado do homem livre, que o capacitava
a se mover, a se afastar de casa, a sair para o mundo e a se encontrar com outras
pessoas em palavras e ações. Essa liberdade, é claro, era precedida da
libertação: para ser livre, o homem deve ter-se libertado das necessidades da
vida. O estado de liberdade, porém, não se seguia automaticamente ao ato de
libertação. A liberdade necessitava, além da mera libertação, da companhia de
outros homens que estivessem no mesmo estado, e também de um espaço
público comum para encontrá-los - um mundo politicamente organizado, em
outras palavras, no qual cada homem livre poderia inserir-se por palavras e
feitos (ARENDT, 2014, p. 194, grifo nosso).

Não é exagero algum dizer que este excerto resume uma grande parcela do
pensamento arendtiano, uma vez que aborda nominalmente uma miríade relativamente
ampla de temas essenciais que a autora articula em sua obra - os conceitos de liberdade,
libertação e necessidade, em sua articulação mais fundamental, e os conceitos de esfera
pública e esfera privada, sendo este último o único que não aparece literalmente e fica
apenas subentendido na passagem. É patente, ainda, que estes conceitos se apresentam
aqui de forma intimamente relacionada num esforço de abordar as prerrogativas centrais
para a vida política e, portanto, para a experiência concreta da liberdade.
Vemos, assim, a liberdade associada ao fenômeno da libertação, responsável por
promover a condição de cidadania em seu sentido básico, a saber, de desimpedimento das
necessidades impostas pela própria condição biológica do ser humano - aqueles aspectos
que fazem com que a vida em seu sentido biológico se apresente, nas palavras de Correia,
como a impositiva e “permanente reposição de necessidades que, por sua vez, protestam
por atividade humana para sua saciedade” (CORREIA, 2014, p. 80) - e de possibilidade
de relacionamento e convivência política com outros cidadãos, a partir do discurso e do
agir. Deste modo, a liberdade política só poderia ser experimentada por aquele que
houvesse antes se libertado da necessidade, na medida do possível. Essa libertação, por
sua vez, remete-se diretamente à esfera privada e ao seu papel dentro da vida política
grega, relacionado aos empreendimentos exigidos pelas urgências materiais da vida
humana.
A outra prerrogativa apresentada é, precisamente, a existência organizada de um
espaço público que possa permitir a interação dos cidadãos. Trata-se, nesse sentido, de
destacar a especificidade da estrutura política, pontuando que ela não se compõe como
que naturalmente a partir da convivência humana. Antes o contrário: as formas mais
frequentes de convivência são, justamente, meramente sociais e gregárias; nestas

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modalidades de convivência, onde não se constitui “um organismo político - como, por
exemplo, nas sociedades tribais ou na intimidade do lar -, o fator que rege suas ações e
sua conduta não é a liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupação com sua
preservação” (ARENDT, 2014, p. 194-195). O espaço politicamente organizado assenta-
se, em sua especificidade, na existência de um “mundo artificial [que] se torna palco para
ação e discurso” (ARENDT, 2014, p. 195), ou seja, para atividades que não se restringem
aos motivos internos e às necessidades privadas do indivíduo, mas que remetem cada um
aos outros e aos objetos e eventos comuns e públicos que os relacionam. Em outras
palavras, em todas as modalidades de convivência em que o espaço público de aparição
e relacionamento político não se efetiva, também “a liberdade não possui realidade
concreta” (ARENDT, 2014, p. 195), de modo que os seres humanos, mesmo que
convivam com outros, não o fazem de modo a realizar a experiência concreta da
liberdade10.
Afirmamos que este excerto remete, implicitamente, à existência de uma esfera
privada da vida humana, sem a qual a esfera pública enquanto espaço de aparência não
pode ser adequadamente compreendida. Uma caracterização mais profunda destes duas
esferas é realizada em A Condição Humana, onde a autora descreve e analisa o significado
axiomático de ambas no interior da polis com o fito de compreender a diluição deste
significado no desdobramento histórico do ocidente até a ascensão de uma nova esfera da
vida, marcada pela associação plena da estrutura política com a organização econômica e
administrativa da sociedade e com a identificação do Estado com uma espécie de
“administração doméstica coletiva” (ARENDT, 1999, p. 38) objetivando, sobretudo, a
garantia de segurança dos indivíduos: trata-se da esfera social, onde, em síntese, a linha
divisória entre estas duas esferas primordiais encontra-se “inteiramente difusa”
(ARENDT, 1999, p. 37) e seus significados originais totalmente comprometidos pela
associação moderna entre o privado e a intimidade e entre o público e o comportamento
massificado.
Os argumentos exclusivos sobre a era moderna e a esfera social, entretanto, não
nos interessam tanto nessa exposição, uma vez que nosso objetivo se relaciona à

10
É algo que se evidencia com bastante clareza no seguinte comentário: “Estar liberado da opressão é
condição para o exercício da liberdade, mas não constitui a sua condição suficiente: entre os momentos da
liberação e da constituição da liberdade pública jaz um pequeno hiato, próprio à abertura onde um novo
início pode instaurar uma realidade ainda não constituída, não bastando estar liberto para ser livre”
(DUARTE, 2000, p. 207).

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compreensão do sentido original do público e do privado e sua relação com a liberdade.


Neste aspecto, o que realmente se mostra essencial em A Condição Humana é a
interpretação arendtiana do significado prático destas duas esferas - numa palavra, ao fato
de que o espaço privado do lar abrigava as atividades “pertinentes à manutenção da vida”
(ARENDT, 1999, p. 37) enquanto a existência da esfera pública permitia a realização de
tudo o que se remetia “a um mundo comum” (ARENDT, 1999, p. 37); ou seja, em termos
gregos, como indica Werner Jaeger, ao fato de que havia “uma grande diferença [...] entre
aquilo que [...] é próprio (idion) e o que é comum (koinon)” (ARENDT, 1999, p. 33),
percebida pelo cidadão da polis através das duas esferas.
Compreender a posição das duas esferas na vida política grega exige que se atente
ao fato - também indicado na citação de “Que é Liberdade?” que destacamos no começo
desta seção - de que o ser humano é “um animal ‘social’ antes de ser animal ‘político’”
(ARENDT, 1999, p. 37), ou seja, que em sua concepção mais primal, o ser humano
depende da convivência para a manutenção de sua própria vida - isso tanto no sentido de
que a existência de uma comunidade é imprescindível para que, através da divisão do
trabalho, todas as urgências da vida individual de seus habitantes sejam sanadas 11, quanto
no sentido de que o animal humano depende de outro para reproduzir-se e garantir a
sobrevivência da espécie. Em outras palavras, isto implica a constatação de que, em
termos materiais, a primeira coisa a se impor à vida humana e a se solicitar da coexistência
social, é a resposta à urgência vital e a toda sorte de elementos relacionados ao
cumprimento de suas demandas. Contudo, precisamente esta concepção axiomática do
ser humano como necessariamente social indica a distância da existência gregária do
modo de vida político, o que se evidencia, afirma Arendt, com a análise da formulação
aristotélica original, do ser humano como zoon politikon, e de sua costumeira tradução
para o latim, animal socialis. Essa tradução, que expressa também nosso hábito de
associar os termos “social” e “político” como paralelos e até mesmo de empregá-los como
sinônimos, “revela até que ponto a concepção original grega de política havia sido
esquecida” (ARENDT, 1999, p. 32) já no momento de sua tradução. Isto porque, continua
Arendt, o termo “social” é de origem romana e não encontra equivalente algum no idioma

11
É a percepção deste fato - para dar um exemplo na raiz de nossa tradição filosófico-política e portanto
nos termos daqueles que o perceberam pela primeira vez - que levou Platão a falar na República de que a
gênese da cidade se relaciona à “impotência de cada indivíduo de bastar-se a si próprio e [à] sua necessidade
de uma multidão de coisas” (2014, p. 75), sendo premente, então, organizar um agrupamento com
indivíduos capacitados em todos os ofícios necessários à vida e com uma adequada divisão social do
trabalho.

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grego, termo que remetia em suas origens à existência de um grupo de aliados com um
fim determinado qualquer e que passa, mais tarde, a designar algo como uma “condição
humana fundamental” (ARENDT, 1999, p. 33).
A inexistência de um equivalente a esse termo na língua grega, todavia, não
implica que os pensadores e cidadãos da antiga polis julgassem irrelevante o fato “de que
o homem não pode viver fora da companhia dos homens” (ARENDT, 1999, p. 33);
implica, antes, que “simplesmente não incluíam tal condição entre as características
especificamente humanas” (ARENDT, 1999, p. 33, grifo nosso). A convivência gregária
era antes tomada como uma característica compartilhada por todos os viventes e, por
conseguinte, não especificamente humana. Assim, os sentidos da política e do bios
politikos, enquanto fenômenos estritamente humanos, mostram-se bem distintos da
concepção latina de “vida social”, invariavelmente relacionada aos interesses privados e
também à sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Citando novamente Jaeger, Arendt
menciona que:
Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política
não apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo
centro é constituído pela casa (oikia) e pela família. O surgimento da cidade-
estado significava que o homem recebera, “além de sua vida privada, uma
espécie de segunda vida, o seu bios politikos” (ARENDT, 1999, p. 33).

Isto é, a vida política se caracteriza como diametralmente oposta àquilo que tange
a existência meramente gregária e social dos seres humanos, por mais necessárias e
inevitáveis que sejam tais formas de existência. Essa segunda vida, por sua vez, é
caracterizada, segundo Aristóteles, por duas atividades específicas: “a ação (praxis) e o
discurso (lexis)” (ARENDT, 1999, p. 34), ou seja, atividades que não se motivariam pelo
que fosse “apenas necessário e útil” (ARENDT, 1999, p. 34) - não motivadas e nem
voltadas, por exemplo, por quaisquer coisas que remetam à vida individual ou gregária e
aos seus desejos particulares ou sociais, e sim pela interação com outros agentes
igualmente capazes de agir e discursar.
Neste aspecto, é essencial reparar que o traço central das duas esferas descritas -
especialmente no que tange ao fato de que a esfera pública se caracterizaria por abrigar
atividades não meramente úteis ou necessárias - é o fato de que na “esfera familiar [...] os
homens viviam juntos por serem a isso compelidos por seus desejos e necessidades”
(ARENDT, 1999, p. 39), onde essas necessidades, consequentemente, imperariam e
determinariam todas as suas atividades, enquanto que a “esfera da polis, ao contrário, era
a esfera da liberdade” (ARENDT, 1999, p. 40), marcada por uma outra modalidade de

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atividade humana capaz de transcender os ditames da necessidade, como vimos


anteriormente. Em suma, percebe-se que as esferas privada e pública se vinculam, em
seus aspectos capitais, à justaposição do espaço da necessidade ao espaço da liberdade,
isto é, do espaço onde as atividades são regidas pelas necessidades de sobrevivência e
pelas obrigações de todo tipo e por um espaço que permite a realização de diferentes
modalidades de relacionamento, não mais pautadas pelos caracteres imperativos da vida
e da carência.
Isso se revela mais claramente na perspectiva grega acerca das diferentes “formas
de proceder” nas duas esferas, ou melhor, nos distintos modos de inter-relacionamento
que eram tomados como ideais ou característicos do espaço privado e do espaço público.
Enquanto submetidos à necessidade, todos os seres humanos encontram-se, em alguma
medida, fatalmente sujeitos à ausência de liberdade imposta pelas próprias necessidades
da vida biológica. Este é um fato inescapável, atrelado à própria condição humana da
vida; mas é possível que um indivíduo se liberte dessas necessidades, por exemplo,
transferindo as responsabilidades relacionadas à sua sobrevivência para outros indivíduos
- isto é, através da coerção, da servidão e da exploração destes outros. Essa era a
perspectiva dos cidadãos da polis, e assim se compreendia o fenômeno da escravidão
enquanto uma necessidade relacionada, justamente, às necessidades vitais abrigadas pela
esfera privada: “a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem [para
os gregos] os únicos meios de vencer a necessidade - por exemplo, subjugando escravos
- e alcançar a liberdade” (ARENDT, 1999, p. 40). Este é, em outras palavras, o sentido
especificamente grego de libertação: eximir-se das necessidades vitais que constrangem
todos os viventes para poder, enfim, unir-se a outros cidadãos na mesma condição 12. A
figura do despotés, termo grego que significava simplesmente “chefe da família” ou
“patriarca”, também tem relação com este fenômeno: é este chefe, por ser o proprietário
de uma casa e de toda sorte de viventes domésticos que garantem sua subsistência - a
saber, gado, escravos e mulheres, sobretudo 13 - que se abre a possibilidade da cidadania.
Todavia, a convivência entre cidadãos, justamente por dar-se entre indivíduos em

12
Vide a descrição de Aristóteles em sua Política, I, 1253b25-35: é imprescindível ser proprietário de uma
casa, bens e instrumentos (como os escravos) que permitam a administração adequada da vida privada, “já
que sem os bens de primeira necessidade não só não se pode viver como não se pode viver bem”
(ARISTÓTELES, 1998, p. 59, grifo nosso), i.e., viver politicamente.
13
Aqui também seguimos Aristóteles em sua descrição das funções primeiras da família e da comunidade
natural em Política, I, 1252b10, momento em que o autor cita uma passagem de Os trabalhos e os dias, de
Hesíodo, que teria razão “ao dizer na sua poesia ‘a casa primeiro que tudo, mulher e boi para o arado’”
(ARISTÓTELES, 1998, p. 51).

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condição de igualdade com relação à necessidade, implicava num modelo de relação


completamente distinto daquele do lar.
A polis diferenciava-se da família pelo fato de somente conhecer “iguais”, ao
passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre
significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao
comando de outro e também não comandar. Não significava domínio, como
também não significava submissão. Assim, dentro da esfera da família, a
liberdade não existia, pois o chefe da família, seu dominante, só era
considerado livre na medida em que tinha a faculdade de deixar o lar e
ingressar na esfera política, onde todos eram iguais (ARENDT, 1999, p. 41-
42, grifo nosso).

A igualdade grega, definida pelos conceitos de isonomia e isegoria, revela-se


como uma outra prerrogativa para a existência da liberdade: não bastava a libertação
implicada pelo domínio das necessidades, mas o ingresso ao espaço público politicamente
organizado, onde estes cidadãos poderiam, enfim, agir, realizar atividades cuja razão de
ser já não seria mais pautada pelas necessidades e motivações privadas e sim pelos
assuntos comuns da cidade. Além disso, evidencia-se que a partir da libertação o agente
pode efetivamente ingressar no espaço da liberdade por ter seus assuntos privados
resolvidos, por assim dizer, de modo que suas imposições não precisariam condicionar
também seus atos e palavras - i.e., macular seu caráter livre do mesmo modo que maculam
suas atitudes domésticas.

Conclusão
Para encerrar o presente artigo, cumpre abordar sucintamente algumas
consequências do que foi exposto ao final da última sessão e que se tornam plenamente
visíveis apenas neste momento. Parece-nos evidente que o vínculo inexorável entre a
liberdade de uns e a completa exploração de outros, reduzidos à condição de não-humanos
através da privação do espaço da palavra, da liberdade e do relacionamento próprio dos
seres humanos, de modo que a liberdade dos cidadãos “pressupunha a existência de
‘desiguais’; e estes, de fato eram sempre a maioria da população na cidade-estado”
(ARENDT, 1999, p. 42) guarda uma infinidade de problemas, e seria pertinente tratar
dessa questão com mais apuro para evitar o risco de simplesmente descrever - e, pior,
legitimar - alguns dos discursos dominantes da tradição. Soma-se a esses problemas o
fato de que a abordagem arendtiana da estrutura social e política da polis, em sua
preocupação analítica e descritiva, é pouco crítica com relação às consequências de
estratificação dessa mesma estrutura, o que faz com que a obra da própria autora fique

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exposta à crítica sobre a ausência de uma abordagem mais objetiva sobre estes fenômeno.
Destacamos, neste sentido, alguns apontamentos pertinentes de Duarte, que afirma, p.ex.,
que “Arendt jamais refletiu criticamente sobre as origens e a transmissão da hierarquia de
gênero, tal como constituída a partir dos modelos [antigos], os quais legitimaram a
exclusão das mulheres do exercício da cidadania até muito recentemente” (DUARTE,
2000, p. 275). De modo similar, Duarte também destaca que a reflexão política de Arendt
se ancora numa divisão excessiva “entre o político e o econômico, cuja falta de mediações
pode acabar prejudicando os aspectos mais propriamente positivos de sua reflexão
política” (DUARTE, 2000, p. 275) ao descartar, p.ex., as potencialidades emancipatórias,
em sentido político, de reivindicações sociais - por outra via e com implicações políticas
distintas, um comentário que ecoa a crítica de Lebrun que vimos antes.
Em termos teóricos diretamente vinculados à argumentação de Arendt, o
problema torna-se mais complexo. Afinal, a discussão acerca das esferas privada e
pública revela mais claramente, como pudemos ver, o que Arendt tem em mente ao
afirmar que “a liberdade como fato demonstrável e a política coincidem e são relacionadas
uma à outra como dois lados da mesma matéria” (ARENDT, 2014, p. 195): fora do espaço
político, orientados pelos motivos internos e pelas necessidades privadas, de um lado, e
sem a possibilidade de interação pública com outros seres humanos, de outro, não é
possível conceber o fenômeno da liberdade em seu sentido original. Assim, não é nada
descabido dizer, segundo Arendt, que ao entender “o político no sentido da polis, sua
finalidade [...] seria estabelecer e manter em existência um espaço em que a liberdade,
enquanto virtuosismo, pudesse aparecer” (ARENDT, 2014, p. 201), i.e., garantir a
existência do espaço onde tanto a participação coletiva dos cidadãos quanto a revelação
pessoal dos agentes pudessem se efetivar.
Isso, de algum modo, nos reconduz ao comentário crítico de Lebrun, que
destacava a desvinculação completa dos planos econômico e político a partir de tal
caracterização. De fato, Arendt insiste no fato de que as preocupações estritamente
econômicas ou relacionadas ao bem-estar de indivíduos, em sentido rigoroso, nada teriam
de políticas neste sentido original do termo: enquanto atividades restritas à garantia das
condições básicas de subsistência e à manutenção da vida em seu sentido biológico, elas
estariam condicionadas pelas necessidades impostas pela própria natureza. Enquanto
espaço da liberdade, seria imprescindível ao espaço político, segundo a descrição da polis
ora realizada, manter tais questões fora do conteúdo formal de suas considerações:

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justamente por seu conteúdo necessário e por estarem inseridas no interior das
prerrogativas essenciais que se pressupõem resolvidas para a condição da cidadania, tais
atividades nada teriam de livres.
Não obstante o evidente interesse da descrição histórica de Arendt e de seu
posicionamento acerca desta, a preocupação que subjaz às críticas mencionadas é justa:
como pensar a política dissociada das discussões econômicas e de questões sociais? Tais
temas não se relacionam meramente à lógica produtiva do capitalismo, mas envolvem-se
ao conteúdo mesmo da administração do corpo político e, ainda mais importante, às
condições de vida que situam a existência social e política dos cidadãos que constituem
estes corpos - sendo assim, por direito, questões a serem endereçadas à esfera política.
Talvez fosse possível ser ainda mais incisivo e inquirir: até que ponto a argumentação
arendtiana, ao excluir todas as preocupações com a manutenção do processo vital da
esfera propriamente política, não estaria próxima de legitimar uma estrutura política de
que só participaria efetivamente quem já tivesse condição material para tal - por
exploração e privilégio de classe, por exemplo - contribuindo, assim, para a
desmobilização pública dos que lutam pela emancipação econômica e política das classes
exploradas, fato ainda mais grave por somar-se à negligência às questões estruturais que
estariam na raiz da análise sobre a polis que mencionamos antes?
É importante levantar estas críticas e problemas neste momento, uma vez que isso
nos permite refletir sobre um dos grandes temas de debate acerca da obra arendtiana:
como sua descrição do político, apesar de sua radicalidade acerca da liberdade em ato e
em participação, não realizam uma negação formal e até mesmo elitista do social e de
suas demandas. Pode parecer, à luz do resgate do sentido original das esferas pública e
privada e, portanto, das noções de liberdade e necessidade à elas vinculadas, que uma
série de pressupostos tradicionais e valores políticos que ainda mereceriam revisão crítica
são tomados como pressuposto da análise e se colocam sub-repticiamente na descrição
da autora - por exemplo: o lugar privilegiado do ímpeto de aien aristeuein, “sempre
exceler” ou “ser sempre o melhor”, ou a centralidade do logos, do discurso, sem uma
análise cuidadosa sobre as implicações práticas de “exceler’ dentro de um sistema de
estratificação social ou sobre a imposição dos discursos hegemônicos sobre todas as
práticas e formas de vida que possam ser consideradas, ontem e hoje, aneu logou por
parte da cultura ocidental. O risco de uma análise que ecoe estes valores acriticamente é
grande.

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Por várias razões, todavia, não é possível esgotar todos estes problemas nesta
conclusão. Em primeiro lugar, pois acreditamos que os elementos trazidos por este artigo
apontam para o grave laconismo de Arendt frente à estrutura da desigualdade nos corpos
políticos ocidentais que está enraizada nas dicotomias apresentadas, mas não abordam os
outros momentos da obra arendtiana onde estes temas também são debatidos - não
apresentando, como seria necessário, os elementos textuais para avaliar e compreender os
motivos de tais escolhas e omissões por parte de Arendt e, por conseguinte, suas
consequências em seu corpus. Isso nos desvia de uma conclusão mais assertiva sobre esse
assunto; ao mesmo tempo, parece-nos essencial que tal lacuna nunca seja perdida de vista
em nossos estudos sobre a autora.
Em segundo lugar, deve-se destacar que um olhar mais atento revela que não se
trata, como afirma Lebrun, de dirimir as questões econômicas e mesmo sociais, mas de
circunscrever sua localização adequada a partir de seu sentido primeiro. Ao delimitar a
esfera privada como espaço da vida gregária e das necessidades do animal humano -
compartilhadas por ele com todos os animais - e o espaço político como espaço da
igualdade jurídica e de fala, ou seja, da não-dominação, os gregos compreendiam com
clareza que a especificidade do agir somente se revelava em situação de desimpedimento
com relação às obrigações e necessidades; trazer para o espaço público aquilo que,
originalmente, seria tratado na esfera privada, como acontece no mundo contemporâneo,
seria colocar em risco a esfera política ao ameaçar submetê-la inexoravelmente ao caráter
da necessidade biológica e da administração econômica - precisamente o oposto do que
ela seria na Grécia. Seria, em outras palavras, não somente trazer ao debate público aquilo
que originalmente referia-se apenas à administração da casa 14, mas abrir margens, como
no caso da contemporaneidade, para a diluição de qualquer tipo de concepção
efetivamente participativa na esfera política em detrimento de uma perspectiva
exclusivamente econômica e administrativa.
É inegável que a concepção grega da bios politikos e da liberdade segundo Arendt
nos apresenta uma série de ponderações produtivas sobre a política. Quando se atenta ao
fato de que só pode ser livre quem se liberta, na medida do possível, das imposições da
necessidade - quem tem o tempo necessário para outras atividades além daquelas exigidas
pela própria vida, além de ter se libertado de suas motivações inexoráveis - está aberto o
campo para a defesa da garantia de condições de ação e participação para todos, na

14
Aqui é imprescindível lembrar da origem da palavra “economia”, mero neologismo da expressão grega
oikonomia, formada pelos radicais oikos (“casa”) e némo (“distribuir” ou “organizar”).

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contramão de quaisquer estruturas oligárquicas, ainda frequentes no mundo moderno.


Quando se afirma que só pode ser livre quem se une a outros agentes em condição similar,
está aberto o campo para a defesa radical para a realização de um espaço onde aqueles
em condição de agir possam participar e agir em concerto da forma mais profunda. É fácil
notar de que modo tais definições poderiam ser de extrema relevância a um debate político
comprometido com a atenuação da violência e com o fim das explorações humanas em
suas diversas formas, mesmo que não seja tão fácil dirimir as tensões internas ao
pensamento arendtiano que os apontamentos realizados evidenciam.

Referências Bibliográficas
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__________. Between past and future: eight exercises in political thought. Nova York:
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