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FROHLICH Hannah Arendt e o Sentido Original Da Liberdade
FROHLICH Hannah Arendt e o Sentido Original Da Liberdade
Victor Frohlich1
Abstract: In this article, we shall attempt to understand the original meaning of freedom
according to Hannah Arendt. For such, we shall dwell over a rather succinct scope of the
lenghty work of the german political thinker, observing some passages of the essay “What
is Freedom?”, in Between Past and Future, and some brief moments of the chapter “II -
The public and the Private Realm” of The Human Condition. The approach of the
following pages is divided in two parts. In the first moment we shall summarily
contextualize these writings inside the arendtian corpus, clarifying the capital importance
of the concept of freedom in her writings; after that, we shall address some of the
remarkable elements of this concept, as well as of the author’s concept of action. In the
second moment, the indications of the aforementioned essay are compared and
complemented with an attentive analisys of the public and private realm in The Human
Condition, mainly on that regarding the relation between the public realm, politics and
freedom, on the one hand, and between the private realm, domain relations inside the
household and necessity, on the other hand. We believe that such approach allows a
precise, although concise, outlook of the radical meaning of political freedom in Hannah
Arendt and of the central concepts of her thought regarding such question.
Keywords: Arendt; Freedom; Necessity; Public; Private.
***
1
Graduando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da FAPESP sob a orientação da
Profa. Dra. Silvana de Souza Ramos. E-mail: fcortez.victor@gmail.com.
Hannah Arendt e o sentido original da liberdade
2
“something more like [a] systematic statement of her political theory”.
3
“a critical reexamination of the chief traditional concepts and conceptual frameworks of political thinking
- such as, means and end; authority; government; power; law; etc”; “a more systematic examination of those
spheres of the world and human life which we properly call political, that is, of the public realm on one
hand, and [the realm] of action on the other”.
4
“a good deal of her proposed material found its way”.
5
“a kind of prolegomena”.
6
“a single, systematic statement of her mature political theory”.
7
“can be reconstructed from the mass of her work, published and unpublished”.
um caminho produtivo para começar a compreender a rica teia conceitual de Arendt, além
de seus estudos sobre a experiência política clássica na Grécia antiga 8. Estes estudos por
parte da autora, marcadamente presente em todos os escritos citados, é central para o
desenvolvimento de suas reflexões políticas, uma vez que a significação original da vida
política - e, consequentemente, o sentido primeiro da liberdade - irrompem da experiência
na Antiguidade Clássica e se revelam em sua curiosa especificidade a partir de nossa
perspectiva moderna.
Esta é uma das premissas iniciais de “Que é Liberdade?”, premissa que indica a
originalidade da abordagem de Arendt. Em suma, não se tratará de tomar a liberdade
enquanto um conceito filosófico, a ser definido e demonstrado no sentido costumeiro em
que se realizam essas tarefas em nossa disciplina. Sobretudo, porque isso não é
necessário: a liberdade da qual se pretende tratar é, antes de mais nada, um fenômeno
político, aberto à experiência humana em todas as circunstâncias em que os seres
humanos se encontram em contato com as prerrogativas essenciais para o seu
aparecimento. O equívoco primordial da tradição filosófica acerca deste fenômeno é,
justamente, o esforço em “transpô-la de seu campo original, o âmbito da política e dos
assuntos humanos em geral, para um domínio interno, a vontade, onde ela estaria aberta
à auto-inspeção” (ARENDT, 2014, p. 191), transposição que, segundo Arendt, encontra
suas raízes originais nas formulações filosóficas de Epicteto, que a apresenta como a
liberdade interior de se fazer o que se quer e de se exercer o domínio de seus desejos, e
de Agostinho, em sua notória discussão acerca do livre-arbítrio no âmbito de um intenso
conflito interno da vontade.
É preciso indicar que essas reflexões críticas sobre a história da filosofia são
extremamente notáveis e passíveis de debate. Quanto a isso, indico apenas um comentário
de Gérard Lebrun em seu “A liberdade segundo Hannah Arendt”, em que analisa
criticamente o ensaio da autora. Além de seu argumento geral de que a proposta
arendtiana desvincula indevidamente o plano econômico do político - um equívoco,
segundo Lebrun, pautado na recusa a perceber que não há mais “um discurso político que
8
Isso parece coadunar, de algum modo, com a própria opinião da autora sobre sua obra: teria sido
justamente seu Entre o Passado e o Futuro, segundo apontamento de Eduardo Jardim, “o livro escolhido
pela autora para introduzir sua obra no Brasil, em 1972” (JARDIM, 2011, p. 19). Revela-se, assim, não
apenas o apreço de Arendt a esse conjunto de ensaios; mais ainda, torna-se evidente a capacidade destes
artigos de iniciarem e incitarem debates sobre alguns temas caros à autora - algo também evidente no
subtítulo original da obra, que infelizmente não foi incluído na tradução brasileira e classifica seu conteúdo
ensaístico, simplesmente, como “oito exercícios de pensamento político [eight exercises in political
thought]” (ARENDT, 2006, p.3).
ao mundo e dela se torna independente” (ARENDT, 2014, p. 199, grifo nosso). Assim, a
realização ativa na política pode ser compreendida pela metáfora artística, nos diz a
autora; contudo, desde que nos atentemos à diferença entre as artes criativas e as artes
performativas, que se revela na indicação de que, por mais que também “o artista criativo
seja livre no processo de criação” (ARENDT, 2014, p. 200), este mesmo processo
permanece oculto do mundo público, e, neste caso, o que “finalmente surge e que
interessa ao mundo [é] a própria obra de arte, o produto final do processo” (ARENDT,
2014, p. 200). As artes performativas, do contrário, não culminam em um objeto acabado
e plenamente cristalizado; e mesmo que tenha um inestimável valor o texto reificado de
um drama - tão essencial, por exemplo, para que possamos conhecer as antigas tragédias
gregas - ele não indica senão a grandeza de um ato que fora pensado para ser encenado,
ativamente, por atores e suas personagens neles encarnadas. A perfeição9 da arte
performativa, em oposição ao pleno acabamento objetivo do artesão, se revela apenas no
agir dos artistas que realizam um determinado ato virtuoso. Neste sentido, esta forma
artística
têm com efeito uma grande afinidade com a política. Os artistas executantes -
dançarinos, atores, músicos e o que o valha - precisam de uma audiência para
mostrarem seu virtuosismo, do mesmo modo como os homens que agem
necessitam da presença de outros ante os quais possam aparecer; ambos
requerem um espaço publicamente organizado para sua “obra”, e ambos
dependem de outros para o desempenho em si (ARENDT, 2014, p. 200-201).
9
Atenção aqui à etimologia original desta palavra. Ela é oriunda do termo latino perfictio: termo formado,
segundo o Oxford Latin Dictionary, a partir dos termos per - “através de” (GLARE, 1968, p. 1326) - e
factio, - “ato de fazer, produzir” (GLARE, 1968, p. 670) -, de onde derivam-se ainda termos análogos como
perfectio ou perfectus (GLARE, 1968, p. 1337). O sentido mais preciso de perfictio, portanto, é “levar (uma
ação ou processo) a seu fim ou conclusão, completar, terminar” (GLARE, 1968, p. 1338). Ou seja:
respeitando sua raiz latina, o termo perfeição poderia ser definido mais precisamente como feito completo
ou criação totalmente acabada - como sugere o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, cuja
definição completa de Perfeição é: “Execução completa; acabamento; bondade ou excelência no maior
grau; primor; correção; formosura; pureza; maestria; requinte” (FERREIRA, 1969, p. 926). Como esta
mesma indicação no dicionário brasileiro sugere, este sentido pode não ser indicado adequadamente pelo
termo português perfeição, uma vez que o uso coloquial moderno da palavra costuma remeter não apenas
a uma obra acabada mas também a um feito irretocável, que prescinde de qualquer modificação, que é
sublime etc. Por mais que este sentido ainda se relacione ao sentido mais literal de acabamento e também
esteja relativamente presente no uso latino, ele pode enganar-nos e fazer-nos pensar que Arendt se refere
aqui a uma espécie de “grandiosidade sublime” das performances artísticas e políticas. Isto, nos parece,
seria impreciso, e de um matiz romântico que nada adicionaria aos argumentos expostos: ao contrário disso,
a autora utiliza o termo em seu sentido mais simples, indicando o “feito plenamente acabado” e o sentido
que revelam, em ato, em ambos os casos.
seu sentido e sua relevância não podem ser devidamente compreendidos ou mesmo
mensurados. Na vida política, onde os agentes realizam feitos e palavras em conjunto com
outros agentes, algo quase idêntico se dá; e é indicativo que o conceito de virtù remeta
indiretamente ao fato de “os gregos utilizarem sempre metáforas como tocar flauta,
dançar, pilotar e navegar para distinguir as atividades políticas das demais” (ARENDT,
2014, p. 200), ou seja, todas as artes onde “o virtuosismo do desempenho é decisivo”
(ARENDT, 2014, p. 200). O agir, portanto, enquanto expressão da liberdade, se mostra
novamente distinto das motivações privadas que não se mostram em público e também
das metas estabelecidas para atingir um fim, algo que guarda bastante similaridade com
o trabalho (work) do artífice, cuja liberdade criativa restringe-se à teleologia dos meios e
dos fins. Mas também revela-se outra vez, nessas indicações, uma das especificidades em
que se envolve a ação e, por conseguinte, a liberdade: enquanto atividade performativa,
ela guarda sempre esta característica de tornar-se atual pela praxis, que se inspira em
princípios cuja existência depende da pluralidade política e que, num sentido ainda mais
básico, se radica na necessidade imprescindível de uma cena de ação, de um espaço
organizado e permanente para estas realizações, algo que tomou sua forma axiomática na
polis grega, que foi, de fato, a forma politicamente instituída que “proporcionou aos
homens um espaço para a aparição onde pudessem agir - [i.e.,] uma espécie de anfiteatro
onde a liberdade podia aparecer” (ARENDT, 2014, p. 200). Essa especificidade, assim
como as prerrogativas básicas de sua existência, serão nosso objeto central na seção
seguinte.
Não é exagero algum dizer que este excerto resume uma grande parcela do
pensamento arendtiano, uma vez que aborda nominalmente uma miríade relativamente
ampla de temas essenciais que a autora articula em sua obra - os conceitos de liberdade,
libertação e necessidade, em sua articulação mais fundamental, e os conceitos de esfera
pública e esfera privada, sendo este último o único que não aparece literalmente e fica
apenas subentendido na passagem. É patente, ainda, que estes conceitos se apresentam
aqui de forma intimamente relacionada num esforço de abordar as prerrogativas centrais
para a vida política e, portanto, para a experiência concreta da liberdade.
Vemos, assim, a liberdade associada ao fenômeno da libertação, responsável por
promover a condição de cidadania em seu sentido básico, a saber, de desimpedimento das
necessidades impostas pela própria condição biológica do ser humano - aqueles aspectos
que fazem com que a vida em seu sentido biológico se apresente, nas palavras de Correia,
como a impositiva e “permanente reposição de necessidades que, por sua vez, protestam
por atividade humana para sua saciedade” (CORREIA, 2014, p. 80) - e de possibilidade
de relacionamento e convivência política com outros cidadãos, a partir do discurso e do
agir. Deste modo, a liberdade política só poderia ser experimentada por aquele que
houvesse antes se libertado da necessidade, na medida do possível. Essa libertação, por
sua vez, remete-se diretamente à esfera privada e ao seu papel dentro da vida política
grega, relacionado aos empreendimentos exigidos pelas urgências materiais da vida
humana.
A outra prerrogativa apresentada é, precisamente, a existência organizada de um
espaço público que possa permitir a interação dos cidadãos. Trata-se, nesse sentido, de
destacar a especificidade da estrutura política, pontuando que ela não se compõe como
que naturalmente a partir da convivência humana. Antes o contrário: as formas mais
frequentes de convivência são, justamente, meramente sociais e gregárias; nestas
modalidades de convivência, onde não se constitui “um organismo político - como, por
exemplo, nas sociedades tribais ou na intimidade do lar -, o fator que rege suas ações e
sua conduta não é a liberdade, mas as necessidades da vida e a preocupação com sua
preservação” (ARENDT, 2014, p. 194-195). O espaço politicamente organizado assenta-
se, em sua especificidade, na existência de um “mundo artificial [que] se torna palco para
ação e discurso” (ARENDT, 2014, p. 195), ou seja, para atividades que não se restringem
aos motivos internos e às necessidades privadas do indivíduo, mas que remetem cada um
aos outros e aos objetos e eventos comuns e públicos que os relacionam. Em outras
palavras, em todas as modalidades de convivência em que o espaço público de aparição
e relacionamento político não se efetiva, também “a liberdade não possui realidade
concreta” (ARENDT, 2014, p. 195), de modo que os seres humanos, mesmo que
convivam com outros, não o fazem de modo a realizar a experiência concreta da
liberdade10.
Afirmamos que este excerto remete, implicitamente, à existência de uma esfera
privada da vida humana, sem a qual a esfera pública enquanto espaço de aparência não
pode ser adequadamente compreendida. Uma caracterização mais profunda destes duas
esferas é realizada em A Condição Humana, onde a autora descreve e analisa o significado
axiomático de ambas no interior da polis com o fito de compreender a diluição deste
significado no desdobramento histórico do ocidente até a ascensão de uma nova esfera da
vida, marcada pela associação plena da estrutura política com a organização econômica e
administrativa da sociedade e com a identificação do Estado com uma espécie de
“administração doméstica coletiva” (ARENDT, 1999, p. 38) objetivando, sobretudo, a
garantia de segurança dos indivíduos: trata-se da esfera social, onde, em síntese, a linha
divisória entre estas duas esferas primordiais encontra-se “inteiramente difusa”
(ARENDT, 1999, p. 37) e seus significados originais totalmente comprometidos pela
associação moderna entre o privado e a intimidade e entre o público e o comportamento
massificado.
Os argumentos exclusivos sobre a era moderna e a esfera social, entretanto, não
nos interessam tanto nessa exposição, uma vez que nosso objetivo se relaciona à
10
É algo que se evidencia com bastante clareza no seguinte comentário: “Estar liberado da opressão é
condição para o exercício da liberdade, mas não constitui a sua condição suficiente: entre os momentos da
liberação e da constituição da liberdade pública jaz um pequeno hiato, próprio à abertura onde um novo
início pode instaurar uma realidade ainda não constituída, não bastando estar liberto para ser livre”
(DUARTE, 2000, p. 207).
11
É a percepção deste fato - para dar um exemplo na raiz de nossa tradição filosófico-política e portanto
nos termos daqueles que o perceberam pela primeira vez - que levou Platão a falar na República de que a
gênese da cidade se relaciona à “impotência de cada indivíduo de bastar-se a si próprio e [à] sua necessidade
de uma multidão de coisas” (2014, p. 75), sendo premente, então, organizar um agrupamento com
indivíduos capacitados em todos os ofícios necessários à vida e com uma adequada divisão social do
trabalho.
grego, termo que remetia em suas origens à existência de um grupo de aliados com um
fim determinado qualquer e que passa, mais tarde, a designar algo como uma “condição
humana fundamental” (ARENDT, 1999, p. 33).
A inexistência de um equivalente a esse termo na língua grega, todavia, não
implica que os pensadores e cidadãos da antiga polis julgassem irrelevante o fato “de que
o homem não pode viver fora da companhia dos homens” (ARENDT, 1999, p. 33);
implica, antes, que “simplesmente não incluíam tal condição entre as características
especificamente humanas” (ARENDT, 1999, p. 33, grifo nosso). A convivência gregária
era antes tomada como uma característica compartilhada por todos os viventes e, por
conseguinte, não especificamente humana. Assim, os sentidos da política e do bios
politikos, enquanto fenômenos estritamente humanos, mostram-se bem distintos da
concepção latina de “vida social”, invariavelmente relacionada aos interesses privados e
também à sobrevivência dos indivíduos e da espécie. Citando novamente Jaeger, Arendt
menciona que:
Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política
não apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo
centro é constituído pela casa (oikia) e pela família. O surgimento da cidade-
estado significava que o homem recebera, “além de sua vida privada, uma
espécie de segunda vida, o seu bios politikos” (ARENDT, 1999, p. 33).
Isto é, a vida política se caracteriza como diametralmente oposta àquilo que tange
a existência meramente gregária e social dos seres humanos, por mais necessárias e
inevitáveis que sejam tais formas de existência. Essa segunda vida, por sua vez, é
caracterizada, segundo Aristóteles, por duas atividades específicas: “a ação (praxis) e o
discurso (lexis)” (ARENDT, 1999, p. 34), ou seja, atividades que não se motivariam pelo
que fosse “apenas necessário e útil” (ARENDT, 1999, p. 34) - não motivadas e nem
voltadas, por exemplo, por quaisquer coisas que remetam à vida individual ou gregária e
aos seus desejos particulares ou sociais, e sim pela interação com outros agentes
igualmente capazes de agir e discursar.
Neste aspecto, é essencial reparar que o traço central das duas esferas descritas -
especialmente no que tange ao fato de que a esfera pública se caracterizaria por abrigar
atividades não meramente úteis ou necessárias - é o fato de que na “esfera familiar [...] os
homens viviam juntos por serem a isso compelidos por seus desejos e necessidades”
(ARENDT, 1999, p. 39), onde essas necessidades, consequentemente, imperariam e
determinariam todas as suas atividades, enquanto que a “esfera da polis, ao contrário, era
a esfera da liberdade” (ARENDT, 1999, p. 40), marcada por uma outra modalidade de
12
Vide a descrição de Aristóteles em sua Política, I, 1253b25-35: é imprescindível ser proprietário de uma
casa, bens e instrumentos (como os escravos) que permitam a administração adequada da vida privada, “já
que sem os bens de primeira necessidade não só não se pode viver como não se pode viver bem”
(ARISTÓTELES, 1998, p. 59, grifo nosso), i.e., viver politicamente.
13
Aqui também seguimos Aristóteles em sua descrição das funções primeiras da família e da comunidade
natural em Política, I, 1252b10, momento em que o autor cita uma passagem de Os trabalhos e os dias, de
Hesíodo, que teria razão “ao dizer na sua poesia ‘a casa primeiro que tudo, mulher e boi para o arado’”
(ARISTÓTELES, 1998, p. 51).
Conclusão
Para encerrar o presente artigo, cumpre abordar sucintamente algumas
consequências do que foi exposto ao final da última sessão e que se tornam plenamente
visíveis apenas neste momento. Parece-nos evidente que o vínculo inexorável entre a
liberdade de uns e a completa exploração de outros, reduzidos à condição de não-humanos
através da privação do espaço da palavra, da liberdade e do relacionamento próprio dos
seres humanos, de modo que a liberdade dos cidadãos “pressupunha a existência de
‘desiguais’; e estes, de fato eram sempre a maioria da população na cidade-estado”
(ARENDT, 1999, p. 42) guarda uma infinidade de problemas, e seria pertinente tratar
dessa questão com mais apuro para evitar o risco de simplesmente descrever - e, pior,
legitimar - alguns dos discursos dominantes da tradição. Soma-se a esses problemas o
fato de que a abordagem arendtiana da estrutura social e política da polis, em sua
preocupação analítica e descritiva, é pouco crítica com relação às consequências de
estratificação dessa mesma estrutura, o que faz com que a obra da própria autora fique
exposta à crítica sobre a ausência de uma abordagem mais objetiva sobre estes fenômeno.
Destacamos, neste sentido, alguns apontamentos pertinentes de Duarte, que afirma, p.ex.,
que “Arendt jamais refletiu criticamente sobre as origens e a transmissão da hierarquia de
gênero, tal como constituída a partir dos modelos [antigos], os quais legitimaram a
exclusão das mulheres do exercício da cidadania até muito recentemente” (DUARTE,
2000, p. 275). De modo similar, Duarte também destaca que a reflexão política de Arendt
se ancora numa divisão excessiva “entre o político e o econômico, cuja falta de mediações
pode acabar prejudicando os aspectos mais propriamente positivos de sua reflexão
política” (DUARTE, 2000, p. 275) ao descartar, p.ex., as potencialidades emancipatórias,
em sentido político, de reivindicações sociais - por outra via e com implicações políticas
distintas, um comentário que ecoa a crítica de Lebrun que vimos antes.
Em termos teóricos diretamente vinculados à argumentação de Arendt, o
problema torna-se mais complexo. Afinal, a discussão acerca das esferas privada e
pública revela mais claramente, como pudemos ver, o que Arendt tem em mente ao
afirmar que “a liberdade como fato demonstrável e a política coincidem e são relacionadas
uma à outra como dois lados da mesma matéria” (ARENDT, 2014, p. 195): fora do espaço
político, orientados pelos motivos internos e pelas necessidades privadas, de um lado, e
sem a possibilidade de interação pública com outros seres humanos, de outro, não é
possível conceber o fenômeno da liberdade em seu sentido original. Assim, não é nada
descabido dizer, segundo Arendt, que ao entender “o político no sentido da polis, sua
finalidade [...] seria estabelecer e manter em existência um espaço em que a liberdade,
enquanto virtuosismo, pudesse aparecer” (ARENDT, 2014, p. 201), i.e., garantir a
existência do espaço onde tanto a participação coletiva dos cidadãos quanto a revelação
pessoal dos agentes pudessem se efetivar.
Isso, de algum modo, nos reconduz ao comentário crítico de Lebrun, que
destacava a desvinculação completa dos planos econômico e político a partir de tal
caracterização. De fato, Arendt insiste no fato de que as preocupações estritamente
econômicas ou relacionadas ao bem-estar de indivíduos, em sentido rigoroso, nada teriam
de políticas neste sentido original do termo: enquanto atividades restritas à garantia das
condições básicas de subsistência e à manutenção da vida em seu sentido biológico, elas
estariam condicionadas pelas necessidades impostas pela própria natureza. Enquanto
espaço da liberdade, seria imprescindível ao espaço político, segundo a descrição da polis
ora realizada, manter tais questões fora do conteúdo formal de suas considerações:
justamente por seu conteúdo necessário e por estarem inseridas no interior das
prerrogativas essenciais que se pressupõem resolvidas para a condição da cidadania, tais
atividades nada teriam de livres.
Não obstante o evidente interesse da descrição histórica de Arendt e de seu
posicionamento acerca desta, a preocupação que subjaz às críticas mencionadas é justa:
como pensar a política dissociada das discussões econômicas e de questões sociais? Tais
temas não se relacionam meramente à lógica produtiva do capitalismo, mas envolvem-se
ao conteúdo mesmo da administração do corpo político e, ainda mais importante, às
condições de vida que situam a existência social e política dos cidadãos que constituem
estes corpos - sendo assim, por direito, questões a serem endereçadas à esfera política.
Talvez fosse possível ser ainda mais incisivo e inquirir: até que ponto a argumentação
arendtiana, ao excluir todas as preocupações com a manutenção do processo vital da
esfera propriamente política, não estaria próxima de legitimar uma estrutura política de
que só participaria efetivamente quem já tivesse condição material para tal - por
exploração e privilégio de classe, por exemplo - contribuindo, assim, para a
desmobilização pública dos que lutam pela emancipação econômica e política das classes
exploradas, fato ainda mais grave por somar-se à negligência às questões estruturais que
estariam na raiz da análise sobre a polis que mencionamos antes?
É importante levantar estas críticas e problemas neste momento, uma vez que isso
nos permite refletir sobre um dos grandes temas de debate acerca da obra arendtiana:
como sua descrição do político, apesar de sua radicalidade acerca da liberdade em ato e
em participação, não realizam uma negação formal e até mesmo elitista do social e de
suas demandas. Pode parecer, à luz do resgate do sentido original das esferas pública e
privada e, portanto, das noções de liberdade e necessidade à elas vinculadas, que uma
série de pressupostos tradicionais e valores políticos que ainda mereceriam revisão crítica
são tomados como pressuposto da análise e se colocam sub-repticiamente na descrição
da autora - por exemplo: o lugar privilegiado do ímpeto de aien aristeuein, “sempre
exceler” ou “ser sempre o melhor”, ou a centralidade do logos, do discurso, sem uma
análise cuidadosa sobre as implicações práticas de “exceler’ dentro de um sistema de
estratificação social ou sobre a imposição dos discursos hegemônicos sobre todas as
práticas e formas de vida que possam ser consideradas, ontem e hoje, aneu logou por
parte da cultura ocidental. O risco de uma análise que ecoe estes valores acriticamente é
grande.
Por várias razões, todavia, não é possível esgotar todos estes problemas nesta
conclusão. Em primeiro lugar, pois acreditamos que os elementos trazidos por este artigo
apontam para o grave laconismo de Arendt frente à estrutura da desigualdade nos corpos
políticos ocidentais que está enraizada nas dicotomias apresentadas, mas não abordam os
outros momentos da obra arendtiana onde estes temas também são debatidos - não
apresentando, como seria necessário, os elementos textuais para avaliar e compreender os
motivos de tais escolhas e omissões por parte de Arendt e, por conseguinte, suas
consequências em seu corpus. Isso nos desvia de uma conclusão mais assertiva sobre esse
assunto; ao mesmo tempo, parece-nos essencial que tal lacuna nunca seja perdida de vista
em nossos estudos sobre a autora.
Em segundo lugar, deve-se destacar que um olhar mais atento revela que não se
trata, como afirma Lebrun, de dirimir as questões econômicas e mesmo sociais, mas de
circunscrever sua localização adequada a partir de seu sentido primeiro. Ao delimitar a
esfera privada como espaço da vida gregária e das necessidades do animal humano -
compartilhadas por ele com todos os animais - e o espaço político como espaço da
igualdade jurídica e de fala, ou seja, da não-dominação, os gregos compreendiam com
clareza que a especificidade do agir somente se revelava em situação de desimpedimento
com relação às obrigações e necessidades; trazer para o espaço público aquilo que,
originalmente, seria tratado na esfera privada, como acontece no mundo contemporâneo,
seria colocar em risco a esfera política ao ameaçar submetê-la inexoravelmente ao caráter
da necessidade biológica e da administração econômica - precisamente o oposto do que
ela seria na Grécia. Seria, em outras palavras, não somente trazer ao debate público aquilo
que originalmente referia-se apenas à administração da casa 14, mas abrir margens, como
no caso da contemporaneidade, para a diluição de qualquer tipo de concepção
efetivamente participativa na esfera política em detrimento de uma perspectiva
exclusivamente econômica e administrativa.
É inegável que a concepção grega da bios politikos e da liberdade segundo Arendt
nos apresenta uma série de ponderações produtivas sobre a política. Quando se atenta ao
fato de que só pode ser livre quem se liberta, na medida do possível, das imposições da
necessidade - quem tem o tempo necessário para outras atividades além daquelas exigidas
pela própria vida, além de ter se libertado de suas motivações inexoráveis - está aberto o
campo para a defesa da garantia de condições de ação e participação para todos, na
14
Aqui é imprescindível lembrar da origem da palavra “economia”, mero neologismo da expressão grega
oikonomia, formada pelos radicais oikos (“casa”) e némo (“distribuir” ou “organizar”).
Referências Bibliográficas
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014.
__________. Between past and future: eight exercises in political thought. Nova York:
Penguin, 2006.
__________. The human condition. London: The University of Chicago Press, 1998.