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3. As FONTES DE UMA REPRESENTACAO MODERNA DO CORPO O cORPO-MAQUINA 3.1 A revolucio galileana Com as diferentes etapas epistemoldgicas marcadas pelos tra- balhos de Copérnico, Bruno, Kepler e, sobretudo, Galileu, a socie- dade “erudita” ocidental, infinitamente minoritaria, mas atuante, passa do mundo fechado da escolastica ao universo infinito da fi- losofia mecanicista. Ela se desloca, segundo a palavra de Koyré, do “mundo da aproximagao, ao universo da precisdo”'. Passagem an- tes de um modo de inteligibilidade a outro, mais preciso em rela- go a certos critérios culturais, que introduzem com forga as novas nocGes de medida, exatidao, rigor etc. Os homens do Renascimen- to “vivem a vontade em um mundo singular, no qual os fenéme- nos nao so exatamente percebidos, onde o tempo nio estabelece, 1. KOYRE, A. Du monde clos a I’univers infini. Paris: Gallimard, 1973. Esta obviamente fora de questéo desenvolver aqui 0 percurso dessa metamorfose radical da viséo do mundo ocidental, que se inicia assim no século XVII e se prolonga até nossos dias com uma eficdcia crescente, pelo menos no plano do dominio da natureza e do homem, que é seu projeto essencial. Remetemos, pois, as obras cativantes de Robert Lenoble, Georges-Gusdorf, Alexandre Koyré... Aqui Nos interessam apenas as incidéncias dessa change of mind sobre as represen- tagdes modernas do corpo. Importa, no entanto, precisar que essa mutacao da imagem do mundo é obra das “camadas eruditas", e que as tradigGes populares Serdo apenas muito lentamente afetadas. entre os eventos € as existéncias, uma os rigorosa de SUCessiio, onde 0 que deixou de ser pode ainda existir, onde a morte nao impede um ser de existir ainda, ¢ de se retirar €m outros seres, des. de que apresente consigo certas similitudes [...] eles que nao tém sempre, € em toda parte, nossa certeza instintiva de que existem leis”. Com o século XVII € 0 advento da filosofia mecanicista, Europa ocidental perde sua base religiosa. A reflexao sobre a na- tureza, conduzida pelos fildsofos, ou pelos eruditos, emancipa-se da autoridade da Igreja e das causas transcendentes; ela situa-se em outro nivel: a altura do homem. Mas se o mundo da-se a altura do homem, esta em. condicao de racionalizar o homem e de rejeitar as percepgdes sensoriais ao do- minio da ilusao. A astronomia e a fisica de Galileu se escrevem em formulas matematicas. Elas so abstratas, refutando os dados sen- soriais eo sentimento da orientacao do homem no espaco. Elas sao também radicalmente estrangeiras as suas conviccdes teligiosas, uma vez que reduzem 0 espaco da Revelacao a um ponto infimo, imerso em um universo sem fim. Elas relativizam o lugar do Deus criador. A tampa do mundo, que tampava a cena da Revelacao eda Paixao, abre-se nos espacos infinitos que tanto assustavam Pascal. As novas formas de conhecimento, o individualismo nascente, 0 avango do capitalismo, libertam certos homens de sua fidelidade as tradicées culturais e religiosas. Pascal, em quem se partilham © espirito de geometria do Novo Mundo eo espirito de fineza do fildsofo sensivel aquilo que funda a existéncia do homem, vive na angistia essa partilha entre uma época e outra... Ele oferece nas Provinciales uma formula luminosa para caracterizar essas trés modalidades de conhecimento, doravante chamadas a uma radi- 2. FEBVRE, L, Fral 7 ngois Rabelais et ke i Xvie siecle. Paris: Albin Mich et le probléme de I'incroyance au lel, 1968, p, 404-409, 78 cal d 0. “Os trés principios dos nossos conhecimentos: os sentidos, ar fé, tém cada um os seus objetos separados € as cert extensio” Mas ele jé mede 0 perigo que 0 espirito de geometria faz.o homem correr: De que serve ao homem ganhar 0 universo se ele vem a perder sua alma? Com a fratura epistemolégica introduzida com uma forga defi- nitiva por Galileu, a formula do mundo é dada pelos matematicos. E os engenheiros tornam-se os novos mestres de obras. Em 1632, descrevendo em seus Dialoghi um encontro de engenheiros no ar- senal de Veneza, dissertando sobre os sistemas do mundo, Galileu efetua 0 ato de fundagao simbélica de uma dominagao propria- mente humana sobre uma natureza doravante privada de trans- cendéncia. Com Copérnico, e, sobretudo Galileu, a estrutura do universo oscila em seu eixo anterior, milenar, e projeta a terra no anonimato de um espaco infinito, onde torna-se impossivel situar o lugar da Revelagéo. Que a astronomia de Galileu seja refutada por dignitdrios da Igreja ignorando tudo de astronomia, e que este seja constrangido, para salvar sua vida, a abjurar suas descobertas nao é mais do que uma peripécia da histéria, 0 ultimo sobressal- to da Igreja Romana para reter um mundo que lhe escapa cada vez mais. O sucesso provisdrio que ela obtém sobre o homem nao ir a difusio de suas ideias através da Europa. Uma nova pode impedi nas épocas precedentes (notadamente etapa do saber, em germe com Vesalius ou Leonardo), inicia sua progressao. Ea passagem da scientia contemplativa a scientia activa. io mais de maravilhar-se com a engenho- suas obras, mas de empregar a ou para conhe- Doravante, trata-se ni sidade do criador em cada uma de uma energia humana para transformar a naturez 10 corpo. Sob a égide dos matemiaticos, con- dem a recorréncia dos fendme- leve dar ao homem a cer o interior invisivel d vém estabelecer as causas que presi nos. O conhecimento racional de suas leis d 79 ité-las ao seu modo ou de contrarié-las segun capacidade de sus do set interesse. Esvaziada de seus mistérios, a natureza torna-se um “brinquedo mecanico” (Robert Lenoble) entre as maos dos homens que participam dessa mutacio epistemoldgica e técnica, Importa agora tornarem-se “dominadores e possuidores da natu- a”. A continuidade entre o homem e seu ambiente é denunciada to da subordinagao sem apelo do segundo ao primeiro, do pensamento mecanicista, que conduz a criagdo rez: em provei Com o advento de uma relagao de dominio sobre 0 conjunto das caracteristicas do mundo, desaparecem Os hinos a natureza, associados, entretanto, 4 maioria dos pensadores das épocas anteriores, de Platao aos filéso- fos do Rena: a compreensao dos po 0 sentimento poético ligado a este ultimo. A alianga é rompida em nome da dominagao. O conhecimento deve ser util, racional, despido de sentimento e capaz de produzir eficacia social’. O ho- co do mundo, nem o mundo o eco do homem scimento’. A consagra¢ao do modelo matematico para dados da natureza arruina por um longo tem- mem nao é mais 0 e entre 0 sujeito do conhecimento e seu objeto; as tnicas corres- pondéncias possiveis competem as matematicas. A natureza néo é mais o sinal propicio no qual se inscreve a existéncia do homem, natureza maternal, na qual os designios de Deus, impenetraveis, deixam sempre lugar ao milagre, e onde nada, jamais, é impossivel. As causalidades miraculosas cedem perante as causalidades fi- sicas em um mundo onde tudo é concebido segundo 0 modelo do mecanismo. A perspectiva teoldgica se apaga. A maquina fornece 3, LENOBLE, R. Histoire de I'idée de nature. Paris: Albin Michel, 1969, P- 326. Esse seré, pouco a pouco, 0 fim do paradigma da anima ‘mundi, a passage™ de uma concep¢ao metafisica do mundo a uma concepgao legal € mecanicista- 4. P.ex., DESCARTES, R. Discours de la méthode. Paris: Garnier-Flamarion, (s.d.}, p. 53. Descartes enfatiza os conhecimentos “que sejam extremamente Uteis 4 vida", Ele rejeita “essa filosofia especulativa que se ensina nas escolas”- O vetor desse conhecimento sem escéria, produtivo, é 0 engenheiro. 80 a formula desse novo sistema: “O universo é uma maquina em que nao hd absolutamente coisa alguma a considerar a nao ser as figuras e os movimentos de suas partes’, escreve Descartes, fornecendo o ptincipio e o programa do mecanismo. A natureza é identificada a um conjunto sistematico de leis, ao cardter impessoal, nao axioldgi- co. O mundo nao é mais um universo de valores, mas de fatos. E de fatos subordinados a uma apreensao racional, submetida a exigén- cia do possivel, porquanto doravante o non posse s6 pode engendrar o non esse®. Nao ha mistério cuja razdo nao possa vir 4 tona. O relégio pelo qual se realiza a redugéo do tempo ao deslo- camento no espaco, exorcismo do inapreensivel em tangivel, é a metéfora privilegiada, o modelo refinado do mecanismo; 0 recurso que legitima a assimilagao de todos os aspectos da natureza em um conjunto de engrenagens invaridveis cujos deslocamentos, causados por um choque inicial e exterior, sao previsiveis, por- quanto dependem de leis imutaveis. Mas 0 sucesso do mecanismo implica que todos os contetidos aparentemente irredutiveis sejam submetidos a esse modelo ou eliminados. E a conquista do tempo pelo relégio, e a espacializacao da duragao, oferecem uma imagem triunfante do fato de que nada finalmente escapa ao mecanismo. E, sobretudo, o homem, ou, antes, essa parte isolada dele mesmo em que se tornou seu corpo. Com o século XVII chega o tempo do racional para uma par- cela do campo social que transtorna os sistemas simbélicos ante- riores, Mas a imensa maioria dos homens permanece no mesmo quadro de pensamento pré-copernicano, mesmo se em suas eXIS- téncias comecam a reter os efeitos desse empreendimento novo so- bre a natureza, notadamente pelas condi¢ées de trabalho, que sao 5. FEBVRE, L. Frangois Rabelais et le probleme de l'incroyance au XVI" siécle Op. cit., p. 407. 81 manufatura as Stas, s, A fratura epistemoldgica Salilean, : mesmo se ela perturba a ordem do mu mentalidades populares quase nao sao afetadas, a é uma onda de superfic indo, as Nada escapa a essa vontade de dominio. Assim, quando Deg, ele constata, que elas nao passam de um efeito da maquinaria do COrpo: uma Conse. cartes busca identificar a natureza das paixées, quéncia do deslocamento dos espiritos animais. Mas ele Pensa que o homem pode aprender a controla-las: “Eu nao sou absolutamen. te da opiniao [...] de que devemos nos eximir de ter PaixGes, basta sujeita-las 4 razao” (carta a Elisabeth, de 1° de setembro de 1645), Robert Lenoble analisou com fineza os pressupostos de tal atitu- de: “As questes ansiosas do moralista, inquieto com as causas do pecado, [Descartes] substitui a tranquilidade objetiva do técnico as voltas com um problema de equilibrio de forcas”’, Encontra- mos em Maquiavel ou Hobbes posicées bastante proximas, mas aplicadas as paixdes politicas. Os movimentos do pensamento, que buscam reduzir 0 conjunto dos movimentos do mundo, ou as turbuléncias da condicéo humana a um conjunto de leis objetivas, a recorréncias previsiveis, desenvolve-se no século XVII, e, desde entao, nunca mais cessou de exercer sua influéncia. 3.2 O corpo na filosofia cartesiana Homem do cogito e nao do cogitare ou do cogitamus, homem do “Para mim, eu [...]”, Descartes coloca-se claramente como um individuo. A divida metédica que ele institui nos Discursos é dis- 0 a ilustracao mais flagrante. Descartes pertence a uma época na qual o individuo comega a tornar-se uma estrutura significativa da an . 59s socialidade, nao em seu Conjunto, certamente, mas em suas franja 6. LENOBLE, R. Histoire de I'idée de nature. Op. cit., p. 335. 82 mais ativas. Além disso, é um homem errante através da Europa, um homem que escolheu permanentemente o exilio, para nao di- zer 0 exilio interior, pela disciplina da davida metédica, e a quem seu proprio corpo nao pode nao aparecer como uma realidade am- bigua. Essa atencao circunspecta que ele concede ao corpo é uma atitude de viajante confrontado, onde quer que seja, ao irredutivel do corpo que se fatiga; deve modificar sem cessar seus habitos de conforto, suas maneiras de ser etc. Esse sentimento de dualidade, sempre provisério, se nos situarmos no ambito da vida cotidiana, Descartes o eterniza, faz dele um absoluto sob a forma do dualis- mo. Mas entre a dualidade e 0 dualismo estende-se um abismo, porquanto, se a primeira permanece fixada pela presen¢a humana, labil, sem consequéncia, a segunda torna o corpo auténomo, pri- vilegia o polo espiritual sob uma forma absoluta. Certamente, nao ha mais do que esse sentimento de viajante ou de exilado volunta- rio; as légicas sociais e culturais que conduzem a dissociacao do sujeito e iluminam o corpo em negativo sao anteriores a Descartes. A filosofia cartesiana é reveladora da sensibilidade de uma época, ela nao é uma fundagao. Ela nao é 0 ato de um sé homem, mas a cristalizagao, a partir da palavra de um homem, de uma weltans- chauung difusa nas camadas sociais mais avancadas. Pertence a Descartes, que teria vivido com insisténcia sua pr6- pria individualidade e sua independéncia, pronunciar de uma ma- neira em certa medida oficial as formulas que distinguem o ho- mem de seu corpo, fazendo deste ultimo uma realidade a parte e, além disso, depreciada, puramente acess6ria. Nao que o dualismo cartesiano seja o primeiro a operar uma cisao entre 0 espirito (ou alma) e 0 corpo, mas esse dualismo é de outra espécie, ele nao estd mais fundado sobre um solo religioso, ele nomeia um aspecto so- cial manifesto, cujas etapas nés evocamos anteriormente: a inven- 40 do corpo ocidental; 0 batente do corpo como limite a propria 83 individualidade. Em uma sociedade onde o carater individualista exerce seus primeiros efeitos significativos, o enclausuramento do sujeito em si mesmo faz, do corpo uma realidade ambigua, a marca mesma da individualidade. Pruto, com efeito, de uma partigao social, 0 individuo encon- tra-se dividido ontologicamente em duas partes heterogéneas: o corpo ¢ 0 espirito, soldados pela glandula pineal. A dimensao cor- poral da pessoa recolhe toda a carga de decepgao de nao valor, Em contrapartida, como se fosse necessdrio conservar no homem uma parcela de divindade, malgrado 0 desencantamento do mundo que se inicia, o espirito permanece sob a tutela de Deus. O homem esta sobrecarregado de um corpo que tem a desvantagem, mesmo se é considerado como uma maquina, de nao ser suficientemente confidvel e rigoroso em sua percepcao dos dados do ambiente. 0 racional nao é uma categoria do corpo, mas é uma das categorias possiveis do espirito. Para os filésofos mecanicistas, de resto, ai reside sua qualidade mais eminente. Nao sendo um instrumento da razio, o corpo, distinguido da presenga humana, esta votado a insignificdncia. O pensamento, para Descartes, é inteiramente independente do corpo, ele se funda em Deus; sua imanéncia alma repousa na dupla exclusio, impensdvel ainda alguns decénios antes, da crianga e do louco: Pelo fato de a faculdade de pensar estar adormecida nas crian- as, € de nos loucos ela nao estar, na verdade, extinta, mas Perturbada, nao é preciso pensar que ela esteja de tal maneira ligada aos érgaos corporais, que nao possa existir sem eles. Porque pelo fato de nés vermos frequentemente que ela ¢)4 impedida pelos seus drgios, nao se segue, absolutamente, que ela seja produzida por eles’, ee eee ee 7. DESCARTES, R. Discours de fa méthode. Op. cit, p. 206. 84 O dualismo cartesiano prolonga o dualismo vesaliano. Em am- bos manifesta-se uma preocupacdo com o corpo descentrado do sujeito ao qual empresta sua consisténcia e seu rosto. O corpo é visto como um acessério da pessoa, que se processa no registro do ter, j4 nao sendo indissociavel da presenga humana. A unidade da pessoa é rompida, e essa fratura designa o corpo como uma reali- dade acidental, indigna do pensamento. O homem de Descartes é uma colagem no qual se friccionam um espirito que s6 encontra sentido em pensar, e um corpo, ou antes, uma maquina corporal, redutivel exclusivamente a sua extensao*. A despeito de suas inumeras dificuldades para justificar essa fragmenta¢ao do homem, Descartes escreve na Sexta meditagao: E, portanto, pelo fato mesmo de que conhe¢o com certeza que existo, e de que, no entanto, nao noto absolutamente que per- tence necessariamente nenhuma outra coisa 4 minha natureza ou a minha esséncia, a nao ser que sou uma coisa que pen- sa, concluo efetivamente que minha esséncia consiste nisso somente, que sou uma coisa que pensa, ou uma substancia cuja Unica esséncia ou natureza consiste apenas em pensar. E, embora talvez (ou, antes, certamente, como direi em breve) eu tenha um corpo ao qual estou muito estreitamente conju- gado; nada obstante, jé que, de um lado, tenha uma ideia clara ¢ distinta de mim mesmo, na medida em que sou somente uma coisa que pensa e ndo uma coisa extensa, e que, de outro, tenha uma ideia distinta do corpo, na medida em que ele é so- certo que eu, isto mente uma coisa extensa e que nao pensa, 6, minha alma, pela qual eu sou isso que sou, ¢ inteiramente ¢ 8. Em outro plano o “dualismo” entre o homem e seu corpo se encontra nas primeiras manufaturas onde o “trabalho em migalhas", mondtono, desgastante, mal-pago, solicita do operdrio exclusivamente sua forga fisica, seu “corpo”, € nao sua identidade de homem. Marx fara dessa alienagdo do trabalho uma magistral anélise, evocando notadamente a fabula de Agrippa na qual um homem é reduzi- do a um s6 de seus érgaos. 85 verdadeiramente distinta de meu corpo, e que ela ; Pode 5 Ser ony evistir seme Nos Discursos, a formulagao da certeza de sua propria existén, cia pelo cogito subentende a onipoténcia do pensamento € Suscita a dificuldade de, apesar de tudo, associar um corpo a esse Pensa- mento. A natureza do homem nao ¢ angélica, e Descartes luta con- tra um obstdculo intransponivel, qual seja, a impossibilidade de considerar 0 homem fora de seu enraizamento corporal. Ele nao faz senao constatar que a uniao substancial do corpo e do espiri- to é uma manutengao da vida. “Eu nao nego, no entanto, escreye ele em suas Meditagdes, que essa estreita ligacao do espirito e do corpo, que experimentamos todos os dias, nao seja a causa de nao descobrirmos facilmente, e sem uma profunda meditacio, a dis- tingao real que existe entre um e outro”, Ele desenvolve alhures a ideia de que, se tomarmos um membro do Corpo, a mio, por exemplo, esta nao é uma substancia incompleta, a nao ser que ela esteja relacionada ao corpo, mas, em contrapartida, nela mesma ela é considerada como uma substancia completa. “E, de forma se- melhante, conclui ele este singular raciocinio, o espirito e 0 corpo sao substncias incompletas, uma vez que estao relacionados ao homem que compéem, mas sendo considerados separadamente, eles sao substancias completas”", O corpo é tornado axiologicamente estrangeiro ao homem, dessacralizado e objeto de investigacdes que fazem dele uma reali- dade a parte. © nascimento em uma escala coletiva de uma socia- bilidade na qual o individuo prima sobre o grupo corresponde a0 advento moderno do Corpo. O estreitamento da nogio de pessoa 9. DESCARTES, R. Méditat tions métaphysiques. Paris: PUF, 1970, p. 118-119: 10. thid., p, 206, 11. tbid., p, 202, 86 traz sobre 0 corpo um esclarecimento ambiguo, que, conforme o dissemos, designa-o como “fator de individuagio”, fronteira do su- jeito. Mas é forgoso constatar que o corpo é afetado por um indice depreciativo"”. Descartes chega mesmo a conduzir o paradoxo até a recusa a reconhecer-se nele: “Eu nao sou, diz ele, essa assembleia de membros que denominamos corpo humano”. Nés j4 evocamos a passagem das Meditagées na qual Descartes assimila categorica- mente seu corpo a um cadaver. O corpo aparece no pensamento do século XVII como a parte menos humana do homem, o cada- ver em suspensao no qual o homem nao conseguiria se reconhe- cer. Essa suspensao do corpo ao olhar da pessoa aparece como um dos dados mais significativos da Modernidade. Lembremo-nos 0 quanto esta distin¢ao ontoldgica entre 0 corpo e 0 espirito sé é cla- ramente acessivel aos homens das camadas privilegiadas e eruditas da burguesia. As camadas populares inscrevem-se em tradicdes muito afastadas e nao isolam o corpo da pessoa. A epistemologia do século XVIII (seguindo o caminho aberto especialmente por Vesalius, tratando da questao do corpo), cujos desenvolvimentos ulteriores vao fecundar os valores e as praticas cientificas e técni- cas da Modernidade, esta indissoluvelmente ligada a esse divér- cio com 0 corpo. Divércio também, e 0 fato é significativo, com a 12. Cf. em outro plano os trabalhos de Norbert Elias, ja citados. Certos setores da burguesia, que elaboraram etiquetas corporais rigorosas, comegam a colocar © corpo a distancia, a ter por desprezivel aquilo que esclarece de maneira de- masiadamente crua a existéncia corporal do homem: 0 arroto, a flatuléncia, o escarro etc. Elas regulam de maneira extremamente cerrada a parte do corpo no campo social. Ela inventa essa “fobia do contato” (Elias Canetti) que caracteriza ainda a socialidade ocidental contemporanea. A sexualidade mesma comega a colocar alguns problemas. Montaigne jé se insurge: “Quem fez a obra de carne. e Vemos também af o quanto a questdo do corpo preocupa as camadas privilegia- das da sociedade do Renascimento e do século XVII que acedem a uma ampla autonomia de suas aces, individualizam-se, mas tropegam no corpo e regulam Minuciosamente os ritos de interagao social. 87 imaginacio, considerada, Coe como Ponca de ilusao, fonte ‘onstante de erros. Além disso, a imaginacio éuma atividade apa. rentemente inttil, improdutiva, irracional, ee maiores para g jovem pensamento burgués. Em uma palavra, a imaginacao ¢ to i 0. supranumerdria quanto © corp. 3.3 O corpo supranumerario A inteligibilidade mecanicista fez das matematicas a Unica cha- ve de compreensao da natureza. O corpo , portanto, atingido pela suspeita. O universo vivido, sentido, tal como aparece gracas as atividades perceptivas, cai em desgra¢a em proveito de um mundo inteligivel, puramente conceitual. Ao mesmo titulo que a imagi- nacao, os sentidos sao enganadores, nao se poderia fundar sobre eles a menor certeza racional. As verdades da natureza ja nao sio imediatamente acessiveis evidéncia sensorial; elas sao objeto de um distanciamento, de uma purificagao, de um calculo racional, E preciso remover as escorias corporais que elas sao suscetiveis de revestir. E Descartes, a esse respeito, oferece uma memordvel ilus- tragao, no curso da Meditacao segunda, com a parabola do pedaco de cera. Este tiltimo, recolhido no Ppavio, evidentemente manifesta certo mimero de qualidades sensiveis aparentemente irredutive forma, odor, volume, consisténcia etc. Mas, ao contato da chama, © pedaco de cera comeca a perder sua substancia primeira, ele der- rama-se em liquido, torna-se brilhante, seu odor desaparece etc. Finalmente, as qualidades que se dao por intermédio dos sentidos Tevelam-se ilusérias: nem a cor, Permanecem as mesmas e, Sente. Descartes destitui a ii €88e respeito, A Tealidade a imaginacao do que Por nem o odor, nem a consisténcia entretanto, o pedaco de cera est pre imaginacao de todas as prerrogativas ® do pedago de cera nao é mais acessivel intermédio dos sentidos. Importa P* 88 nas “o mero poder de julgar que preside em meu espirito”. Con- yém isolar o momento da apropriacdo do mundo pela inteligéncia por meio da marginalizagao “do testemunho variavel dos senti- dos ou dos juizos enganadores da imaginagao”. A partir da con- fusio mantida pela sensorialidade e a imaginac4o do homem, a razao desbasta para si um caminho, dissipa os equivocos, impde sua verdade abstrata de encontro as evidéncias sensiveis. Aceder 4 yerdade consiste em despojar as significagdes de seus tragos cor- porais ou imaginativos. A filosofia mecanicista reconstréi o mun- do a partir de sua categoria de pensamento, ela dissocia o mundo habitado pelo homem, acessivel ao testemunho dos sentidos, do mundo real, acessivel apenas 4 inteligéncia. Descartes é perfeita- mente lucido malgrado todas as consequéncias de tal divércio; ele retorna a esse tema em suas Respostas as quintas objegdes. Assim como Pascal estabelece trés ordens de verdade segundo o angulo de aproximagao do fenémeno: segundo os sentidos, a razao ou a fé, Descartes contrap6e uma apreensao da realidade das coisas sob 0 Angulo da vida cotidiana, a outra, sob 0 angulo da razao: “Mas, entretanto, é preciso ter cuidado com a diferenca que existe entre as acées da vida e a busca da verdade, a qual eu tantas vezes incul- quei; pois, quando é a condugao da vida que esta em questdo, seria algo inteiramente ridiculo nao se reportar aos sentidos, razdo pela qual sempre debocharmos desses céticos que a tal ponto negli- genciavam todas as coisas do mundo, que, para impedirem-se de lanar-se eles mesmos nos precipicios, deviam ser vigiados pelos seus amigos”, Da mesma maneira Descartes escreve a Elizabeth que “somente usufruindo da vida e das conversacoes ordinarias, e abstendo-se de meditar e de estudar as coisas que exercitam a ima- 13, DESCARTES, R. Méditations métaphysiques. Op. cit., p. 227. 89 ginagdo, é que aprendemos a conceber a unido da alma e do corpo” (28 de janeiro de 1643). Mas a filosofia s6 se entende radicalmen ‘orpo, ¢ Descartes oferece, no limiar da Terceira te dissociada do ¢ meditagao, essa expressao fulgurante: Eu fecharei agora os olhos i os meus ouvidos, desviai pensamentos até mesmo todas as imagens das coisas taparel rei todos os meus sentidos, apaga- rei de meus corporais, ou pelo menos, ja que isso dificilmente pode ser feito, eu as considerarei como vas e como falsas”. Essa frase ressoa como um manifesto da epistemologia mecanicista. Ela legitima a distingao operada entre 0 homem € seu corpo. Malgrado a resisténcia dos romanticos, entre os sentidos e a realidade aparece hoje como uma estrutura fundadora da Modernidade. E 0 aperfeicoamento técnico aprofun- Espinosa oferece uma formula lumi- da psicanilise, da fenomenologia husserliana, a cisio da ainda mais essa distanci nosa da nova episteme. Segundo ele, nao é com os olhos do corpo que é preciso decifrar os mistérios da natureza, mas “com 0 olho da alma”, O corpo é tornado supranumerario. Para os filésofos mecanicistas, a natureza nao é mais a forma viva do Renascimento, ela é composta de um grande numero de objetos em inter-relacdo, mutuamente subordinados a leis intangi- veis. Ela se estende sobre um espaco geométrico, absolutamente es- tranho as categorias corporais, um espaco acessivel somente a uma compreensao muito avisada. Uma série de descobertas, como por exemplo, a do telescépio ou a do microscépio, a da imprensa ¢ 0 14, Descartes, em Méditations, p. 60, opde o sol sensivel, apreendido pelos thos do homem, ao sol astrondmico. Os olhos percebendo pequeno aquilo que > astrénomo avaliaré “muitas vezes maior que toda a terra’. Encontramos a mest mt po ape aplicada a distancia, os olhos do homem concebem © sol se manté imo, “a cerca de duzentos pés", quando 0 sabio sol nos ensina aut ak m a uma distancia “de mais de seiscentas vezes o didmetro terest . : SPINOZA. Ethique. Paris: Garnier/Flammarion, 1965, p. 109. 90 inicio do maquinismo, contribuem ainda para dissociar a atividade dos sentidos daquela da inteligéncia, Com as diferentes mediagées técnicas, que ampliam o dominio pelo homem utilitério do mun- do que 0 cerca, outro uso dos sentidos aparece, mas dissociado do corpo. O homem consegue ver astros furtarem-se a apreciagao do mero olhar, ele percebe o infinitamente longe e o infinitamente pe- queno. E essas descobertas sio como a confirmacao experimental para os mecanicistas das insuficiéncias da sensorialidade humana. “O universo é uma maquina onde nao ha absolutamente nada a considerar senao as figuras e os movimentos de suas partes” é a formula, enunciada por Descartes, na qual se condensa 0 mecani- cismo. Para esses homens radicalmente afastados das fontes e do espirito do Renascimento, a natureza nao é mais do que uma for- ma vazia, regida por um Deus mecanico ou calculador. O universo se comp6e de engrenagens invariantes, mas inertes nelas mesmas, sem dinamismo proprio. O movimento lhe vem sempre do exte- rior (donde a ideia do famoso peteleco dado por Deus no momen- to da criagao). Todos os movimentos do mundo seriam suas consequéncias: tal é a visio de Descartes. O mecanismo repousa, com efeito, em um dualismo entre o movimento e a matéria. O tempo, a dura¢ao, nao aparece nesse sistema senao de maneira espacializada (0 re- légio). O homem é objeto da mesma cisao entre a alma, vetor de movimentos, e 0 corpo, matéria, maquina, onde se repercutem os movimentos da alma. 15, Claude Tresmontant observa que, entre os diferentes movimentos possiveis, Descartes e depois dele Malebranche e Hume estudam apenas 0 movimento de deslocamento, isto 6, 0 mais afastado do organismo. “O universo cartesiano € um universo de “coisas”, isto 6, de objetos fabricados. Ele é caracterizado Por um desconhecimento total daquilo que é 0 organico. Descartes confunde organico e mecénico, isto , criagao e fabricagdo", cf. TRESMONTANT, C. Essai sur la pensée hébraique. Paris: Cerf, 1953, p. 32. 91 Oadvento do modelo mecanicista como principio de inteligibj associado a difusdo de mecanismos de todo n lo XVI, a imprensa, o reldgio, por exemple D, ntimento de poder sobre o mundo desco, lidade do mundo est os tipos desde o sécul que dio ao homem um se nhecido anteriormente. Da mesma forma, a assimilacao do corpo ede suas fungdes a um esquema mecanicista supde a anterioridade da construcao de autématos engenhosos, parecendo bastarem-se a si mesmos em seus movimentos'®. A matematiza¢ao dos fendme- nos naturais ndo poupa a esfera do biolégico. O vivo esta subordi- nado ao modelo da maquina e nele esgota-se inteiramente. Esse modelo subentende ainda novas praticas sociais inaugura- das pela burguesia, 0 capitalismo nascente e sua sede de conquista, Uma vontade de dominio do mundo, que entao so é pensavel sob a condicao de generalizar 0 modelo mecanicista. Se 0 mundo é uma maquina, ele est na medida do desafio do engenheiro e do empreendedor. Quanto ao corpo, razovel, euclidiano, ele est nas antipodas da ubris, corpo sequencial, manipulavel pelas discipli- nas nascentes, depreciado enquanto tal, 0 que justifica o trabalho segmentirio e repetitivo das manufaturas nas quais o homem se enxerta na mdquina sem realmente distinguir-se dela. Corpo des- pojado do homem, o que permite pensé-lo, sem reticéncia, segun- do o modelo da maquina. 3.4 O animal-maquina O dualismo entre o pensamento e 0 corpo, a preeminéncia do Primeiro por meio do cogito, leva 4 conclusao da natureza pura mente corporal do animal, este ultimo sendo posto como des- 16. Cf, CANGUILHEM, G. “Machine et organisme”. La connaissance de la Paris: Vrin, 1965, p. 104ss. 92 provido de linguagem e de pensamento. Os comportamentos do animal organizam-se sob o paradigma da maquina. O animal é uma figura do autémato. Na quinta parte dos Discursos, Descartes funda a teoria do animal-maquina”. Se os animais nao falam, é menos por lhes faltarem os érgios adequados do que por auséncia de pensamento. O automatismo de suas acdes é concluido de sua falta de latitude, esta decorrente da disposicao de seus Orgaos e nao do uso da razao. Além disso, atribuir-lhes um pensamento equi- valeria a conferir-Ihes uma alma, hipotese que Descartes rejeita. A teoria do animal-maquina manifesta a sensibilidade de uma épo- ca (ou mais precisamente de certas franjas sociais de uma época, aquelas que elaboram uma cultura erudita), ela funciona mesmo a maneira de um lugar-comum. Mersenne assim o enuncia em seu Harmonie universelle, no qual ele se maravilha com a composi¢ao e os movimentos de um mosquito, “de maneira que, se pudéssemos comprar a viséo de todas as molas presentes neste pequeno animal, ou mesmo aprender a arte de fazer autématos ou maquinas que tivessem tantos movimentos, tudo quanto o mundo jamais pro- duziu em frutos, ouro e prata nao bastaria para o justo preco da simples visio dessas molas”"’. Tais sao as formidaveis proezas do Deus mecanico. E Descartes, negando toda sensibilidade ao animal, desculpa-se pelas inumeraveis dissecgdes e vivissecdes que realiza, durante sua vida inteira, nos animais a fim de melhor compreender “a maqui- 17. Hipétese prometida a uma respeitavel fortuna critica até Pavlov e os beha- Vioristas, essa nogao caminhou e concorreu ainda para nossa visao do animal; cf. BAUDRILLARD, J. “Les bétes: territoire et métamorphoses”. Simulacres et simu- lations. (s.1.]: Galilée, 1981. Cf. tb. as paginas esclarecedoras de GUSDORF, G. La revolution galiléene. T. \I. Paris: Payot, 1969, p. 148ss. 18. Apud LENOBLE, R. Mersenne ou la naissance du mécanisme. Paris: Vrin, 1943, p. 74-75, 93 na do corpo” (ele também desculpa o homem por fazer deles um uso servil, e os homens de ciéncia, por experimentar neles; como um mecanismo conheceria o sofrimento?). Em uma carta, Descar. tes da a entender que sua “opiniao nao é tao cruel em Telacao as bestas quanto nao é piedosa em relacdo aos homens, libertos das superstigdes dos pitagdricos, porque ela os absolveu da Suspeita de culpa cada vez que eles comem ou que eles matam animais” (carta a Morus, 21 de fevereiro de 1649). Os animais, e de certa forma os homens, retinem assim a natureza sob o mesmo paradigma do mecanismo; ambos sao purificados de todos os rancos vitalistas ou hilozoistas. A dessacralizagao ganha todos os dominios acessiveis Acondicéo humana, inclusive o vivo. As mentalidades esclarecidas concordam em tornar pensdveis e possiveis uma acao de trans- formagao radical da natureza e uma experimentagao no corpo do homem ou do animal que nao suscita qualquer indignacao moral, 3.5 O corpo segundo o modelo da maquina O dualismo, malgrado seus tortuosos raciocinios para provar a uniao da alma e do corpo, nao poupa o homem desse deslize para 0 mecanismo. Para Descartes, o corpo, senao o homem todo intei- To, é uma maquina. No rastro do cogito, o homem aparece a ma- neira de um autémato movido por uma alma. “Como um relégio composto de engrenagens e contrapesos [...] eu considero 0 corpo do homem? (Sexta medita¢ao). Toda poderosa analogia relojoeira, que funciona como um paradigma para explicar tao bem os mo- vimentos das estrelas, da natureza ou do corpo humano. “O corpo vivo difere tanto do de um homem morto quanto um reldgio, ou Outro autémato, quando montado, e o mesmo reldgio, ou outra maquina, quando est4 quebrada e o principio de seu movimento cessa de agir” (Traité de Phomme). 94, Certamente a fisiologia ¢ a anatomia de Descartes so lacunares ¢ aproximativas, como se observou frequentemente, mas o interes- se dessa observagio & secundario. O elemento significativo reside 0 do corpo, em s 1a de! mais na planific simbolizagao, ja reali- zada pelos natomistas, Mas que a filosofia mecanicista prolonga por meio da redugio mecanicista e do assentimento de seu divér- cio com o homem a quem ela da consisténcia. O corpo humano é uma mecanica discernivel das outras pela exclusiva singularidade de suas engrenagens; nao é mais do que um capitulo da mecanica geral do mundo. O fato de encarnar a presenca humana nao lhe dota de qualquer privilégio. No Traité de l'homme, Descartes leva bem longe a metdfora mecanicista e verdadeiramente pode-se muito bem comparar os nervos da maquina que eu vos descrevo as tubulagdes das maqui- nas dessas fontes; seus musculos e seus tendées as diversas engrenagens e recursos que servem para movimenti-las; seus espiritos animais a Agua que os move, cujo coragao é a fonte e as concavidades do cérebro so os olhares. Além disso, a res- piraco e outras tais ages, que lhe sao naturais e ordinarias, que dependem do curso dos espiritos, s4o como os movimen- tos de um relégio ou de um moinho que o curso ordinario da Agua pode tornar continuo. O organismo é nao somente cindido do homem, mas é, além. disso, privado de sua originalidade, da riqueza de suas respostas possiveis. O corpo aqui nao é mais do que uma constelagao de utensilios em interagdo, uma estrutura de engrenagens bem-ajus- tadas e sem surpresa. Que 0 organismo humano nao seja tao espe- cializado quanto um utensilio ou um mecanismo nao é percebido. Ea unidade da presenga humana e do corpo nao suscita qualquer objecdo. A Razao persegue sua eviccao do corpo por sua reducao ao autémato. 95 Ilustrando, alias, 0 sentimento de onipoténcia que invade os filésofos mecanicistas, 0 aut6mato proveniente das maos do ar- tesio se oferece como uma figura da criagao. O homem aparece menos criatura do que rival do Deus mecanico. Com toda justica Descartes atribui a Deus 0 privilégio mesurado de ser um artesio mais habil do que os outros: “[...] todo corpo é uma maquina, e as maquinas fabricadas pelo divino artes4o sdo as melhor ajustadas, sem deixarem, entretanto, de serem maquinas. Nao ha, conside- rando-se apenas 0 corpo, qualquer diferenga de principio entre as méaquinas fabricadas pelos homens e os corpos vivos engendrados por Deus. Existe apenas uma diferenga de aperfeigoamento e de complexidade” (Discours de la méthode, p. 102). 3.6 Uma “anatomia politica” Uma “tecnologia politica do corpo’, bem analisada por Michel Foucault, prolonga a metafora mecanica nos movimentos mesmos do corpo e racionaliza a forca de trabalho do individuo; ela coor- dena nas instituigdes (usinas, escolas, casernas, hospitais, prisdes etc.) a justaposicéo dos corpos segundo um calculo que deve cul- minar na docilidade dos sujeitos e na eficdcia que se espera da agao empreendida. Objeto entre outros objetos, caracterizado somente talvez por uma teimosia maior pelo fato de ser humano e, portan- to, tributdrio de uma inaliendvel subjetividade, o corpo esta sub- metido ao principio de uma ordenagio analitica que se esforca em nao omitir detalhe algum. As disciplinas impdem-se no século XVII e no século XVIII como “formulas gerais de dominagao” (Michel Foucault) chama- das a um futuro Préspero, O grande livro do Homem-maquina foi escrito simultanea- mente segundo dois registros, diz Michel Foucault, aquele 96 ndtomo-metafisico, cujas primeiras s foram escritas por Descartes, ¢ que os médicos ¢ 05 filésofos continuaram; aquele técnico-politico, que foi constituide por todo um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares, € por procedimentos empiricos ¢ refletidos para controlar ou corrigir as operagdes do corpo [...]. O homem-mdquina de La Mettrie é a0 mesmo tempo uma reducdo materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro das quais reina a nogio de “docilidade”, que junta ao corpo ana- lisavel 0 corpo manipulavel””. A uma concepgao racional do mundo acrescentam-se, a partir do século XVII e XVIII, uma racionalizacdo capciosa do corpo e de suas atitudes, uma analitica social de seu funcionamento, que inscreve a relacao natural do homem com seu corpo em uma dua- lidade que Marx descreverd com forca, por meio da imagem emprestada de Agrippa, do homem reduzido a apenas um de seus membros. Descartes oferece uma garantia filosdfica a utilizacdo instru- mental do corpo em diversos setores da vida social. A metafisica, que ele inaugura seriamente, encontra, no que concerne ao mundo industrial, seu executor privilegiado em Taylor (e Ford), os quais realizam de facto o julgamento pronunciado implicitamente por Descartes. O analogon da maquina, que é 0 corpo, esta alinhado a outras maquinas da produgao, sem beneficiar-se de uma indul- géncia particular. O corpo é “apéndice vivo da maquina’, com esse residuo necessdrio e embaracoso que é o homem que ele encarna. Mas, efetivamente, é menos o homem que trabalha do que tal seg- 19. FOUCAULT, M. Surveiller et punir - Naissance de la prision. Paris: Galli- mard, 1975, p, 138, Para uma andlise aprofundada das disciplinas, nés reme- temos a essa obra. 97 nesmo constrangido a incansavel repeti¢ao dos mes. sim plin, em Os tempos modernos, faz uma admiraye| mento de gestos. Cha a instrument: orges Friedmann, constata que o fato de “os critica dess alizagio do homem. Canguilhem, evocan- critica des do os trabalhos de Ge movimentos técnicos supe cessarios foi o primeiro entrave camente tecnicista do animal humano a maquina”. Malgrado eas criticas das quais péde ser objeto, a me- rfluos serem movimentos biolégicos ne. encontrado por essa assimilacao uni seus estritos limites, téfora mecdnica do corpo conheceu uma grande fortuna histérica, Nés a reencontraremos frequentemente em nossa estrada ao longo deste caminho sinuoso no seio da Modernidade. 3.7 Aberturas Desde o século XVII uma ruptura com o corpo se iniciou nas sociedades ocidentais. Sua posi¢ao a titulo de objeto entre outros, sem dignidade particular, o recurso banalizado desde essa época 4 metéfora mecanica para descrevé-lo, as disciplinas, as proteses corretivas que se multiplicam?!. Tantos indices entre outros que deixam entrever a suspeita que pesa sobre o corpo e as vontades ae de corrigi-lo, de modifica-lo, caso nao seja possivel submeté- bnienae insaniso. Uma fantasia implicita, certamente , jacente, aquela de abolir o corpo, de apaga-lo 20. CANGUILHEM, , “Li / : 1543". Op. cit, p. 126, ‘Lhomme de Vesalius dans le monde de Copernic, NO século ; xv ; de aparcthagens cones urea multiplica de maneira decisiva os exemplos Cidade sobre um corso oe © o¥® Pensamento mecanicista desdobra sua fecu cresce bruscamente on oe tomnou, ele mesmo, maquina. O arsenal terapéutico briitvas, visam a endireten wer Ue: Malgrado suas engrenagens gastas © Que se generaizasce seta” Eta preciso que se banalizasse o espago corporal € opto &. “Panopties reatismo para que nascessem tals proposicoes" (VIGA- 979, 0. 121), Ch th. do mec se Jalons pour une histoire”. Traverses, 1 lesmo autor: Le corps redressé, Paris: Delarge, 1978: 98 purae simplesmente; nostalgia de uma condigéo humana que nao deveria mais nada ao corpo, lugar da queda. A técnica e a ciéncia contempordneas se inscrevem em conso- nncia com essa busca que desde entdo nao foi desmentida: Como fazer desse rascunho, que é 0 corpo, um objeto confidvel, digno dos procedimentos técnicos e cientificos? A ciéncia esta em uma rela- go espantosamente ambivalente com 0 corpo: ele é seu antimode- lo, ela o contorna, busca desembaracar-se dele, ao mesmo tempo em que tenta, sem cessar, duplicd-lo com seus préprios meios e de maneira desajeitada. Talvez toda a histéria da ciéncia seja apenas a hist6ria das corre¢ées operadas sobre as insuficiéncias (aos seus olhos) do corpo, das inumeraveis rasuras para escapar de sua preca- riedade, de seus limites. Tentacao demiurgica também de imita-lo, de agir tecnicamente sobre ele. Hoje outra faceta revela-se sempre mais evidente: a luta contra o corpo desvela sua estrutura oculta, 0 reprimido que a sustentava: 0 medo da morte. Corrigir 0 corpo, fazer dele uma mecanica, associd-lo a ideia da maquina, é escapar dessa decadéncia, é apagar “a insustentavel leveza do ser” (M. Kun- dera). O corpo, lugar da morte no homem. Nao é isso 0 que escapa a Descartes, 4 maneira de um lapso, quando em suas Meditacées a imagem do cadaver se impée espontaneamente ao seu raciocinio Para nomear sua condi¢ao corporal: “Eu me considerarei primei- tamente como tendo um rosto, mos, bracos, e toda essa maquina composta de ossos e de carne, tal como ela parece em um cadaver, a qual eu designarei pelo nome de corpo” Imagem tanto mais pertur- badora quanto menos necesséria e mesmo insdlita. A assimilagao do corpo ao mecanismo tropega contra 0 resi- duo que ela é constrangida a negligenciar sob pena de invalidar-se: © homem. A complexidade infinita da condigao humana ligada a dimensao simbélica é um limite contra o qual se choca a analogia Corrente entre 0 corpo (e até mesmo o individuo) ea maquina. O 99 corpo, confrontado a esses procedimentos de racionalizacio, pa- rece-se com um animal alojado no coragao do ser, inapreensivel, a nao ser de maneira provisoria e parcelar. O corpo, vestigio multi- milenar da origem nao técnica do homem. Culpa das origens que numerosos procedimentos se esforcam em corrigir. A assimilagio mecanica do corpo humano, que dei- xa estranhamente a espessura humana de lado, traduz na Moder- nidade a unica dignidade que seja possivel conferir ao corpo. A admiracao dos cirurgides ou dos bidlogos perante 0 corpo, cujos arcanos eles tentam penetrar, ou aquela, mais candida, do profa- no, traduzem-se pelo mesmo grito: “Que maravilhosa maquina é © corpo humano”. Nao contamos mais o numero de obras ou de capitulos que testemunham essa assimilacao. A linguagem corren- te faz mesmo um esteredtipo dela. Nao conseguiriamos exprimir melhor nosso maravilhamento hoje senao reconduzindo 0 corpo a maquina. A filosofia mecanicista prevaleceu historicamente sobre as outras visdes do corpo. A carne do homem presta ao embaraco, como se este devesse declinar de uma realidade tio pouco gloriosa. A metafora mecanica aplicada ao Corpo ressoa como uma repara- 40 para conferir ao corpo uma dignidade que ele nao seria capaz de ter permanecendo simplesmente um organismo. 100 TOR, wt Ay, f 4 a ES 7 'O pmest0) Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Le Breton, David Antropologia do Corpo / David Le Breton ; traducao de Fabio dos Santos Creder Lopes. 4. ed. ~ Petropolis, RJ : Vozes, 2016. Titulo original : Anthropologie du corps et modernité Bibliografia ISBN 978-85-326-5185-3 1. Corpo humano ~ Aspectos sociais I. Titulo. 10-10370 CDD-304.2 Indices para catalogo sistema 1. Antropologia do Corpo: Sociologia 304.2 ico:

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