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TEMAS DA

DIVERSIDADE
experiências e práticas
de pesquisa

2
volume

editora científica
TEMAS DA
DIVERSIDADE
experiências e práticas
de pesquisa

2
1ª EDIÇÃO volume

editora científica

2021 - GUARUJÁ - SP
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APRESENTAÇÃO
A coletânea reúne resultados de pesquisas desenvolvidas em diferentes perspectivas teórico-
metodológicas, contemplando áreas que, num primeiro momento, podem se mostrar até mesmo distantes,
mas na medida em que embarcamos na leitura dos capítulos, logo percebemos certa intimidade entre
suas propostas. Como já denuncia o próprio título da coletânea, “a diversidade” se apresenta como o fio
condutor das análises apresentadas nos capítulos, que busca compartilhar o conhecimento produzido
por diversos pesquisadores, oriundos de instituições de ensino e pesquisa das cinco regiões geográficas
do Brasil, reafirmando a própria diversidade investigativa da academia brasileira. A obra contribui para
o aprofundamento e ampliação da discussão sobre temas que dialogam com a idéia da diversidade,
permitindo que a educação, a história, a filosofia, a antropologia, a saúde e a literatura dialoguem com
temas muito diversos e urgentes para a compreensão da contemporaneidade, como as questões de raça,
de gênero, de identidades, de práticas em contextos diversos e do próprio uso das tecnologias em uma
sociedade em processo de transformação cada vez mais rápidas e profundas. Dessa forma, reafirmar
a importância da diversidade, como um elemento fundamental de respeito à vida e aos processos que
constituem as manifestações culturais, se coloca como uma necessidade. Em um tempo no qual a ciência
e a produção do conhecimento acadêmico tem sido alvo de ataque, por parte de grupos fundamentalistas
e negacionistas, produzir e difundir o conhecimento cientifico se coloca como um compromisso social,
através do qual se pode contribuir para a formação de uma sociedade mais plural, inclusiva e aberta ao
dialogo, pautado pelo respeito e o reconhecimento do direito de ser e estar de cada um, considerando a
diversidade e a pluralidade como princípios básicos da condição humana. Que tenhamos uma boa leitura
dos capítulos que constituem a obra e que a diversidade dos temas abordados nos faça refletor sobre
nosso lugar na sociedade contemporânea.

Daniel Luciano Gevehr


SUMÁRIO
CAPÍTULO 
01
“FESTA DE NEGROS” DE TAQUARA: PATRIMÔNIO IMATERIAL A SER RECONHECIDO NA MEMÓRIA COLETIVA
Diogo da Silva Corrêa; Mônica Juliana Facio; Daniel Luciano Gevehr

DOI: 10.37885/210303611................................................................................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 
02
AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E O ENSINO DE CIÊNCIAS: ANÁLISE NA FORMAÇÃO DOCENTE

Alan dos Santos Souza; Lícia Maria de Lima Barbosa

DOI: 10.37885/210303643................................................................................................................................................................................. 29

CAPÍTULO 
03
O CORPO, A MULHER E OUTROS SIGNIFICADOS

Naranda Costa Borges

DOI: 10.37885/201102017...................................................................................................................................................................................43

CAPÍTULO 
04
ALADDIN E JASMINE: REPRESENTAÇÕES PARA QUEM?

Ana Carolina Rocha Lisita; Patrícia Quitero Rosenzweig; Rosa Maria Berardo

DOI: 10.37885/210304044................................................................................................................................................................................. 59

CAPÍTULO 
05
CORPO SEM ÓRGÃOS E DEVIR-MULHER EM CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

Wellerson Batista de Lima; Maria Edileuza da Costa; Larissa Cristina Viana Lopes

DOI: 10.37885/210303833.................................................................................................................................................................................. 72

CAPÍTULO 
06
COMPAIXÃO, PIEDADE E DEFICIÊNCIA FÍSICA: O VALOR DA DIFERENÇA NAS RELAÇÕES HETEROGÊNEAS

Reni Barsaglini; Emília Carvalho Leitão Biato

DOI: 10.37885/210303748.................................................................................................................................................................................. 85
SUMÁRIO
CAPÍTULO 
07
INFLUÊNCIA DE UM AMBIENTE AFETIVO POSITIVO, EM SALA DE AULA, SOBRE O ESTADO MOTIVACIONAL DE
ADOLESCENTES DO ENSINO MÉDIO

Rosane Antunes da Silva; Sílvia Leticia dos Anjos Ventura; Iara Kerch Soares; Adriana Barni Truccolo

DOI: 10.37885/210404102................................................................................................................................................................................ 105

CAPÍTULO 
08
EDUCAÇÃO ESTÉTICA E AÇÃO CULTURAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES: A CONSTRUÇÃO SENSÍVEL DO
CONHECIMENTO ATRAVÉS DA ARTE
Angelina Accetta Rojas; Simone Araujo Moreira

DOI: 10.37885/210304036................................................................................................................................................................................ 118

CAPÍTULO 
09
ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO: PERCEPÇÃO DO PROFESSOR DA SALA DE RECURSOS MULTIFUNCIONAIS
DE ESCOLAS PÚBLICAS MUNICIPAIS DE SALVADOR-BA
Cristiane Bacelar Lima da Cunha

DOI: 10.37885/210303999................................................................................................................................................................................ 127

CAPÍTULO 
10
EL DESAFIO DE LA ACTUACIÓN TRIÉTICA EN LA PRÁCTICA DOCENTE: UNA REVISIÓN NARRATIVA
Alvaro Adriazola Uribe; Georgina Durán Jiménez; José Damião de Melo; Valdenice de Jesus Melo; Marcelo Flores Troncoso

DOI: 10.37885/210303731.................................................................................................................................................................................154

CAPÍTULO 
11
EXPERIÊNCIA EM EDUCAÇÃO MIDIÁTICA E INFORMACIONAL PARA UMA COMUNICAÇÃO AMBIENTALMENTE ADEQUADA
Rosália Aparecida da Silva; Viviane Cristina Camelo; Dennis Weberton Gonçalves; Marcelo Ferreira Camargo; Marcos Daniel Silva de Gois

DOI: 10.37885/210203379................................................................................................................................................................................. 161

CAPÍTULO 
12
CURRÍCULO FORMAL: UMA ABORDAGEM NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL
Carla Aline de Araújo Nascimento; Marília Dantas da Silva; Udegardes Alves de Andrade; Gercina Dalva

DOI: 10.37885/210203366................................................................................................................................................................................ 173


SUMÁRIO
CAPÍTULO 
13
USO DIDÁTICO DO EXPERIMENTO DO MONOCÓRDIO DE PITÁGORAS
Oscar João Abdounur

DOI: 10.37885/210303596................................................................................................................................................................................ 181

CAPÍTULO 
14
A PERCEPÇÃO DE JOVENS EM CUMPRIMENTO DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS SOBRE A IMPORTÂNCIA DA FAMÍLIA
Adrian Bezerra Assunção; Vanessa Carneiro Bandeira de Carvalho

DOI: 10.37885/210303905............................................................................................................................................................................... 194

CAPÍTULO 
15
CARACTERIZAÇÃO DO PROGRAMA SAÚDE NA ESCOLA
Keila Andrade Haiashida; Ricardo Hélio Chaves Maia

DOI: 10.37885/210203232............................................................................................................................................................................... 210

CAPÍTULO 
16
RELATO DE EXPERIÊNCIA: VIVÊNCIAS DO PROJETO DE EXTENSÃO PALESTRAS DE FIM DE TARDE
Ester Oliveira Silva; Vitória Carolina Alves Pereira; Thayla Gabrielle Sampaio Pereira; Carliene Sodré Magno França; Stephanny Caroline
Mariano Teixeira; Mariana Lucatto; Rosane Maria Andrade Vasconcelos; Kelis Estatiane de Campos

DOI: 10.37885/210202990............................................................................................................................................................................... 219

CAPÍTULO 
17
EEF SÃO CRISTÓVÃO CONTRA A FOME E O DESPERDÍCIO: DESPERDÍCIO ALIMENTAR NA MERENDA ESCOLAR
Silvana Alvarenga Lima de Oliveira

DOI: 10.37885/201202472................................................................................................................................................................................ 230

CAPÍTULO 
18
A EPIDEMIA DE FEBRE AMARELA NO RIO DE JANEIRO EM 1850 – MEDO, MORTE E MORBIDADE NOS ESPAÇOS DA CIDADE
Fernando Lobo Lemes

DOI: 10.37885/201202644............................................................................................................................................................................... 237


SUMÁRIO
CAPÍTULO 
19
A VENALIDADE DE OFÍCIOS NOS IMPÉRIOS IBÉRICOS MODERNOS: BREVES CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Rafael Jose de Paula Braga

DOI: 10.37885/210203064............................................................................................................................................................................... 256

CAPÍTULO 
20
GISELLE OU LES WILLIS, UM CONGLOMERADO DE IMAGENS

Franciara Sharon Silva do Carmo

DOI: 10.37885/210203061.................................................................................................................................................................................274

CAPÍTULO 
21
TECNOLOGIA E CONTO DE FADAS... PRÍNCIPE OU LOBO MAU?

Ângela Barcellos Café

DOI: 10.37885/201202669............................................................................................................................................................................... 286

CAPÍTULO 
22
A ANGÚSTIA ENTRE HEIDEGGER E KIERKEGAARD: CONSONÂNCIAS

Leosir Santin Massarollo Junior

DOI: 10.37885/210102844................................................................................................................................................................................ 299

SOBRE O ORGANIZADOR..................................................................................................................................... 316

ÍNDICE REMISSIVO.............................................................................................................................................. 317


01
“Festa de negros” de taquara:
patrimônio imaterial a ser reconhecido
na memória coletiva

Diogo da Silva Corrêa


Faccat

Mônica Juliana Facio


Faccat

Daniel Luciano Gevehr


Faccat

10.37885/210303611
RESUMO

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa qualitativa que teve a finalidade dis-
cutir o patrimônio imaterial como construtor de memória e identidade como resultado de
analise de documentos referente a pesquisa sobre os clubes sócias de negros e o car-
naval no município de Taquara, Rio Grande do Sul. O objetivo a partir desta pesquisa é
comunicar e reconhecer a existência destes espaços no município e de como os mesmos
construíram ações socais e políticas vivenciadas até os dias atuais , bem como apontar
a necessidade implantação de políticas públicas afirmativas de preservação da memó-
ria e da identidade dos clubes de negros a partir do reconhecimento como patrimônio
imaterial local. Interessa também afirmar o carnaval de rua como espaço democrático
e de cidadania, tendo assim a necessidade do poder público de investir em sua manu-
tenção e ampliação.

Palavras-chave: Patrimônio Imaterial, Identidade, Memória Coletiva.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Várias histórias e memórias surgem quando falamos em festa, em momento de lazer


e descontração, sendo essas memórias em sua grande maioria de prazer e diversão. Esses
momentos se tornam fonte de amizades, de amores e de construções subjetivas diversas.
Essas construções são denominadas pela ciência de bens imateriais que vêm ganhando a
cada dia mais espaço de discussão. Tratam de temas complexos, como o reconhecimento
das culturas e identidades de minorias étnicas e econômicas, que foram desenhando seu
espaço social e cultural pela resistência, persistência e luta política. Pensando a respeito
destas lutas e resistências através da arte e das manifestações culturais, este artigo aborda
o processo de constituição dos espaços de festas: os salões dos ‘pretos’ e dos ‘brancos’ na
cidade de Taquara, Rio Grande do Sul, nas décadas de 50, 60, 70 e o processo de abertura
destes espaços através do carnaval.
Este estudo se caracteriza como uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório. A in-
vestigação se realizará através de pesquisa documental dos salões sociais de negros e do
carnaval no município de Taquara, Rio Grande do Sul. Também contará com uma análise
que considera o referencial teórico e de análise crítica dos documentos, que abordam as
políticas públicas ligadas ao patrimônio imaterial, memória e identidade.
O presente artigo está dividido em cinco seções, organizadas da seguinte forma: a
seção dois apresenta a caracterização do município de Taquara/RS, a seção três aborda
as temáticas do patrimônio imaterial e identidade, a seção quatro trata das festas como
memória viva descrevendo o cenário histórico do carnaval do município, e na seção 5 serão
expostas as conclusões do estudo.

CARACTERIZAÇÃO DO MUNICÍPIO

Taquara é um município do Vale do Paranhana, Região Metropolitana de Porto Alegre,


no estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Município de colonização predominantemente ale-
mã localizada na Encosta Inferior do Nordeste, região do COREDE Paranhana/Encosta da
Serra. Segundo estimativa do IBGE (2010), Taquara possui em torno de 54.656 habitantes,
sendo que a maioria reside na área urbana e apenas 9.380 destes moram na zona rural,
sendo 34.423 brancos e 6.530 pretos/pardos.
Encontra-se a menos de 100 km da capital Porto Alegre, das cidades de Gramado,
Canela e do Litoral Norte. Tem seus limites ao Norte com os municípios de Igrejinha, Três
Coroas e São Francisco de Paula; ao Sul, com Glorinha e Gravataí; ao Leste, com Rolante
e Santo Antônio da Patrulha; e no Oeste, com Parobé, Sapiranga e Novo Hamburgo.

16
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
O município abriga, em seu território, atividades que surgiram a partir dos empreendi-
mentos familiares dos imigrantes, em grande parte de origem germânica, ligados em sua maio-
ria aos setores agrícola, industrial e comercial, em grande parte com mão de obra escrava.
Segundo, Fernandes (2008) a colonização de Taquara começou no início século XVIII
até o século XIX, muito antes da chegada dos imigrantes alemães, sendo que sua ocupação
estava condicionada à política do governo central. O território correspondia aos espanhóis
(Tratado de Tordesilhas), mesmo se tratando de um governo português no restante do ter-
ritório do Império.

“O desejo “O desejo português de fazer parte dos lucros com as minas de


Potosí através do comércio, gerou guerras e disputas[...] Essa movimentação
de tropas, de exércitos dos dois lados, foi responsável pela movimentação de
pessoas para a ocupação do Vale dos Sinos e Paranhana. Havia por essas
terras tanto pessoas de origem lusa, como indígenas e espanhóis.” (Fernan-
des, 2008, p. 26)

A partir do Tratado de Santo Ildefonso instaura-se um período de paz o que possibi-


lita as atividades agropecuárias e madeireiras. A colonização alemã iniciou em 1846 com
a chegada de Tristão Joze Monteiro e a compra da fazenda do Mundo Novo. “Em 1845, a
2 de junho, Tristão Joze Monteiro e Jorge Eggers compraram da viúva Libania Corrêa de
Leans a Fazenda do Mundo Novo. [...] Em 1846 funda a Colônia do Mundo Novo, localizada
no lugarejo Pinhal.” (Fernandes, 2008, p.29)
A colônia foi dividida em lotes e abrigava 120 famílias, que exerciam atividades econô-
micas como: agricultores, tanoeiros, oleiros, ferreiros, marceneiros, construtores, extração
de pedras, farinha de mandioca, biju, polvilho, milho e trigo, carnes, ovos e leite. No que se
refere as indústrias eram presentes: atafonas de farinha de mandioca, engenhos de farinha,
azeite, cana, grão, serrar madeira, serraria, curtumes, ferrarias e fábrica de arreios.
Segundo Muller e Sobrinho (2008) a instalação da via-férrea em 1903, trecho Novo
Hamburgo/ Taquara/Canela foi um dos grandes agentes de desenvolvimento social e cultural,
crescimento populacional e influência na política que elevaram o status de Taquara como o
centro cultural e comércio regional, se tornando sede, por decreto, das localidades que da-
riam origem às cidades de Canela, Gramado, Três Coroas, Igrejinha e Parobé. Assim sendo
local de idas e vindas e de grande trânsito de muitas pessoas oriundas de diversos lugares.
Essa caracterização do território se faz pertinente para entender o que possibilitou a
esse território ter dois salões de bailes somente para negros, e qual seria o impacto deste
espaço na construção cultural deste município.

17
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
PATRIMÔNIO IMATERIAL E IDENTIDADE

A cultura imaterial, a memória, é entendida pela literatura como tudo aquilo que não
pode ser tocada, mas que pode ser sentida e assim sendo recebem valor por parte de uma
sociedade. Assim sendo eventos culturais ganham dimensões de patrimônio da mesma
forma que as obras de artes, os edifícios e os objetos (SANTOS, 2003).
A noção de patrimônio cultural imaterial visa dar uma resposta aos anseios de reco-
nhecimento de um amplo e multifacetado conjunto de processos culturais. É a criação de
espaço na política pública para agentes, suas criações, seus públicos, seus problemas e
necessidades peculiares. Trata, portanto, de incorporar a diversidade cultural de um território
e jogar luz sobre o relevante tema da inclusão cultural e dos efeitos sociais dessa inclusão
(CASTRO; FONSECA, 2008). Para Borges (2005) o interesse pelo reconhecimento dos
bens imateriais é difuso, ainda que o valor cultural faça sentido mais para uma comunidade
inserida numa coletividade mais ampla, ou seja, esses bens são considerados representa-
tivos da “memória coletiva”, oportunizando o reconhecimento de diversas identidades num
mesmo território.
Reis & Figueiredo (2015) compreendem o patrimônio imaterial a partir de uma comple-
xidade que ultrapassa sobremaneira o conceito pensado e exposto na Constituição Federal
de 19881. Tal constatação é justificável pela lista não taxativa de aspectos que podem in-
fluenciar e formar patrimônio, como percepções de herança, tradição, diversidade, etnia,
referencial, pertencimento, construção social, que são tão importantes quanto a identidade
e memória (GEVEHR; DILLY, 2017).
Nesse contexto, é preciso destacar que o conceito de identidade como processo de
transformação contínua de indivíduos nos aspectos culturais, sociais, políticos etc., foi se
amoldando ao longo da história e teve a descentralização do foco de análise como seu prin-
cipal elemento. Antes, a identidade iluminista se pautava pela centralidade no indivíduo que
era dotado de sua própria essência que o acompanharia ao longo de sua trajetória de vida,
racionalmente imutável. Segundo Hall (2006), essa concepção passa a incorporar aspectos
sociológicos que eram administrados internamente em cada indivíduo numa relação entre o
externo e o interno, que ainda era mantinha um núcleo de essência inalterável.
É na concepção pós-moderna que identidade toma contornos de transitoriedade, onde
as memórias e as dinâmicas culturais não deixam espaço para que se compreenda o homem
com um “eu real” inabalável e único. O todo é uma constante construção. A partir desses

1 CF, Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em con-
junto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais
se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as
obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos

18
e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


desdobramentos, a identidade passa a ser um tema delicado e muito influenciável. O sen-
timento de pertencimento, nesse caso, vincula os indivíduos aos discursos arraigados,
principalmente, à cultura nacional, produzindo sentidos não biológicos, mas históricos que
identificam o sujeito (HALL, 2006).
Os discursos, portanto, são os fios condutores das memórias que serão mais ou menos
elaborados, exaltados e registrados, movimentando sentimentos formadores de “identida-
des”, dependendo do interesse de seu emissor. Nesse sentido, o “processo da memória no
homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desse vestígio”
(LE GOFF, 1984, p. 12).
Apesar de todas as interrelações e metamorfoses a que se expõem a identidade a partir
dos processos de globalização, as origens nacionais pesam bastante na sua dinâmica de
representações e no fluxo constante de discursos. Uma nova representação (ou releitura de
um discurso) é “convocada” para compor o espaço vazio deixado por outro discurso. Essas
articulações acabam definindo uma hierarquização do que é ou não identidade merecedora
de patrimonialização, muitas vezes deliberadamente motivadas por interesses de quem
detém poder (HALL, 2011).
O reconhecimento do que é ou não patrimônio, do que precisa ser lembrado e o que
deve ser esquecido é um processo complexo. Conforme Ferreira (2006), as essas escolhas
têm sempre um caráter eletivo: definem o que vai representar um grupo, uma sociedade, ou
a própria humanidade no seu sentido mais amplo. Nas palavras de Hartog (2014, p.193),
funciona como uma forma de expressão do álter ego, ou seja, uma maneira de a sociedade
expressar. Vasconcelos (2018) lembra que essa eleição depende do contexto de formação
social dos grupos que estão no poder, de tal forma que a valoração dos objetos produzido
no passado explicam como os povos e sua elite se relacionavam com o passado distante e
o presente. É, de fato, um processo conflituoso e como tal é abordado por Chagas (2005):

Reconhecer a inseparabilidade entre memória e poder, entre preservação e


poder, implica a aceitação de que esse é um terreno de litígio e implica também
a consciência de que o poder não é apenas repressor e castrador, é também
semeador e promotor de memórias e esquecimentos, de preservações e des-
truições. (Chagas, 2005, p. 3)

Os trabalhos de Silva (2017) e Peres de Lima (2016) revelam exemplos de como al-
gumas expressões populares, notadamente as vinculadas às heranças africanas, tiveram a
trajetória histórica marcadas pela repressão e proibição, passando pela tolerância e aceitação
para, finalmente, ser reconhecida e incorporada à cultura de um território.
Ambos descrevem a verdadeira luta pelo reconhecimento e respeito à cultura de co-
munidades negras que só recentemente conseguiram o status de patrimônio cultural em
19
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
suas realidades. Os cenários são parecidos: no primeiro caso, os negros e negras que se
expressavam através do jongo, cultura difundida especialmente no Rio de Janeiro desde
a época da escravatura, eram taxados de “incivilizados” e “bárbaros” e faziam a “dança de
negros”. Já na cidade de Jaguarão, no Rio Grande do sul, o Clube social negro 24 de ou-
tubro era um dos locais, segundo “famílias brancas” e de classe média da cidade, a serem
deliberadamente evitados por ser um “clube mal frequentado”. Esses exemplos demonstram
o preconceito arraigado na memória social e a necessidade de reivindicação constante de
espaços, mesmo após o reconhecimento através da patrimonialização.
Essas realidades também são observadas nos tombamentos realizados pelo IPHAE/
RS (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado), mesmo ampliando o conceito de
patrimônio para acolher aspectos imateriais, nem todos os diferentes grupos étnicos têm suas
tradições representadas. O lugar das diferentes etnias indígenas e africanas nesses espaços,
embora estabelecidos no Rio Grande do Sul, é proporcional à participação dessas comuni-
dades nas posições de poder, sendo amplamente desfavorecidos. (GEVEHR; DILLY, 2017).
A fim de evitar (ou de reduzir a ocorrência desses fenômenos), mostra-se extremamente
necessário depurar memórias. Revisitar o passado e refazer a construção de suas narrativas,
observando espaços vazios do discurso e as possíveis motivações para os silenciamentos.
As comemorações, assim como os monumentos de memória, auxiliam, bem ou mal,
na formação de uma identidade individual no sentido coletivo de pertencimento. Debruçar-se
sobre registros desses acontecimentos pode ajudar nesse processo de rememoração discur-
siva. Ribeiro (2002, p.44) aponta que, no contexto das festividades, acontecem atividades e
rituais que unem os nós que organizam e dão sentido às memórias. A oportunidade desse
“conjunto festivo-ritual” possibilita a formação um feixe de relações capazes de converter
a experiência festiva em situação de aprendizagem com múltiplas dimensões: históricas,
estéticas ou religiosas, políticas, sociais ou simbólicas.
Nesse contexto, a memória patrimonial passa a ser concebida e relacionada como
composição de determinados valores, que passam a se tornar representação social e his-
tórica. Seu valor está em representar a identidade de determinado grupo, cidade, nação,
etnia, agrupamento cultural, de determinado evento, ou período histórico ao qual pertenceu.
(FONSECA, 2003).
Reconhecer como patrimônio imaterial manifestações cultuais reprimidas e que so-
freram (e sofrem) preconceitos diversos não significa resolver um problema. Certamente
abrem-se possibilidades de discussões de uma série de problemáticas, especialmente como
a do “não lugar” ocupado pela população negra nas políticas patrimoniais (PERES DE LIMA,
2016). As políticas públicas têm grande importância na luta social por reconhecimento,

20
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
auxiliam no desenvolvimento de territórios, no empoderamento dessas populações, pautando
a superação de desigualdades sociais.
Na seção que segue, são discutidas as manifestações culturais intangíveis oriundas
da cultura negra e a importância delas na dinâmica local e regional.

AS FESTAS COMO MEMÓRIA VIVA- DIMENSÕES IMATERIAIS

Ao discutir os significados da preservação da memória de um determinado grupo so-


cial, neste caso os negros, é necessário sempre se questionar quem elege o que se deve
ou não preservar, deve-se ou não constituir memória, deve-se ou não se tornar cultura. Por
que e o que se torna patrimônio? “[...]toda seleção e justificativa não são aleatórias e estão
ligadas a interesses de grupos que estão no poder.” (Tanno, 2018)
A luta dos negros para pelo seu direito de significação se faz necessário pelo fato de
toda história do Brasil, do Rio Grande do Sul e de Taquara ser branca, tendo a narrativa
de brancos como parte natural da organização social e individual, definindo assim os bens
patrimoniais a serem preservados de forma elitizada reproduzindo uma visão colonizadora,
monocultural e eurocêntrica. Sendo que essa luta se deu pela resistência do carnaval, com-
batendo com altivez e força o preconceito, o racismo e a violência social e moral.
O primeiro bem cultural reconhecido pela UNESCO no Brasil e que não fazia parte da
cultura daqueles que desde a colonização do Brasil até hoje ocupam os espaços de poder,
de narrativa e de memória, foi o Samba de Roda do Recôncavo Baiano, sendo nomeado
como bem cultural intangível ou imaterial. (SANTOS, 2003)
As manifestações culturais intangíveis oriundas da cultura negra têm grande contribui-
ção na organização social e política do município de Taquara, principalmente o Carnaval e
as festas de samba, influenciando modos de vida, organizando a forma que as pessoas se
veem, atuando como resistência ao preconceito e contribuem para a confrontação social e
o não esquecimento.
Taquara, por sua característica regional, sempre foi considerada um polo cultural, onde
aconteciam todos os eventos importantes, desde de reuniões até as grandes comemorações,
tudo isso em função de seus salões, clubes, sociedades e cinemas. A cidade sempre foi
movimentada culturalmente, mas também por essa vocação de articuladora das relações de
poder de forma regional, teve em sua história a função de separar e segregar tudo e todos
que não pertencessem ao status quo da época, logo suas festas, bailes e reuniões eram
somente para brancos pertencentes a uma elite, mesmo quando se tratava de uma cultura
não pertencente a essa mesma elite, como o carnaval.

“Taquara, antes da década de 60, vivenciou uma forte segregação racial em


21
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
seus clubes/sociedades sociais. Haviam clubes/sociedades para etnia negra e
para a etnia branca. Para a etnia negra, os eventos - que iam além do carna-
val - eram realizados nas sociedades recreativas Flor do Sul (Salão da Dona
Palmira) e União da Mocidade (Sociedade dos Morenos). Na época, brancos
não podiam frequentar esses salões. Dona Palmira, mulher empreendedora,
logo permitiu que brancos entrassem em seus eventos apenas para consumo,
sem poder dançar! Esses dois clubes não existem mais, mas fizeram histórias.”
(Fonte: Origens do Carnaval em Taquara- acesso em: 10/02/2020)

Festa dos negros. Salão Flor do Sul. Taquara-RS- Década de 60

Fonte: Origens do Carnaval de Taquara. Acesso 03/02/2020

Mesmo o Rio grande do Sul sendo a província do Brasil que menos recebeu escravos,
“apenas 2% do total de africanos no Brasil aportaram por aqui” (SOUZA, 1961), as mani-
festações culturais ligadas ao povo africano sempre foram muito presentes no município de
Taquara, tanto pela religiosidade, quanto pelas festas.
Os africanos que aqui chegaram são oriundos, em sua grande maioria, das Tribos
Nagôs que trazem consigo a religiosidade da Umbanda, Quimbanda e Batuque, Batuque
esse que dá origem as batidas reconhecidas hoje nas escolas de samba, grupos de samba
e pagode (Souza, 1961). Sendo esse contexto que possibilitou um carnaval expressivo e as
festas de samba no município, mas também um não aceite por parte da comunidade negra
que sua cultura fosse utilizada pelos brancos sem o seu protagonismo. Assim nascem clu-
bes e sociedades somente de negros em Taquara, como forma de manter a cultura e sua
representavidade viva.
Em 1908, mas especificamente em abril, funda-se a Sociedade 13 de Maio, na loca-
lidade onde hoje se encontra a cidade de Parobé, já em 1918, também em abril, funda-se
a segunda Sociedade 13 de Maio, essa mais ao centro da cidade, atuando assim como
co-irmãs, realizando agendas de festas e atividades de Negros para Negros até o ano de
1930. Em 1948, na Rua Rio Branco, foi fundada a Sociedade dos Morenos (Sociedade
22
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Recreativa união da Mocidade), tendo como presidente Acylino Pereira de Oliveira. Em 1956
funda-se a Sociedade Recreativa Flor do Sul, situado na Rua Pinheiro Machado, mais co-
nhecido como Salão da Dona Palmira. (Souza, 1961)
Esses salões e sociedade só admitiam em sua diretoria e em suas atividades sociais
negros, uma resposta a segregação realizada pelos salões e sociedades de Taquara, que
só permitiam negros como mão de obra para servirem aos brancos.

“Antes da década de 60, os clubes e sociedades em Taquara eram divididos


entre classes sociais e etnias.
Os clubes e sociedades da etnia branca não permitiam a entrada de negros,
a não ser quando estes eram prestadores de serviços.
Foi por volta da década de 60, após Dona Palmira e as Diretorias do Clube
Comercial e Sociedade 5 de Maio conversarem, que os blocos e/ou foliões
negros puderam entrar no Clube Comercial ou Sociedade 5 de Maio para
darem apenas uma (01) volta no salão, confraternizando com os foliões lá
presentes, e depois se retirarem.” (Origens do Carnaval de Taquara. Acesso
em 01/03/2020)

Fonte: Carnaval Clube Comercial. Década de 90. Origens do Carnaval de Taquara. Acesso em 02/03/2020

O primeiro Carnaval de rua em Taquara foi em 1969, se repetindo até 2009, porém
desde 1940 eram organizados blocos de rua para brincar o carnaval, sendo o único momento
que brancos e negros foliavam juntos.

“O Carnaval de Rua movimentava a economia, o turismo e a cultura de Taqua-


ra. Houve um ano em que a Escola de Samba Unidos da Pinheiro desfilou com
aproximadamente quinhentas (500) pessoas. As costureiras que entrevistamos
nesta pesquisa nos relataram que toda a família se envolvia na prestação de
serviço. As lojas de tecido, armarinhos/miudezas da cidade já avisavam, meses
antes, aos carnavalescos sobre os prazos para encomendas e/ou promoções.
No dia do desfile, a rua Júlio de Castilhos recebia milhares de pessoas que
chagavam cedo para garantir um bom lugar.” (Origens do Carnaval de Taquara.
Acesso em 02/03/2020)
23
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Fonte: Origens do Carnaval de Taquara. Acesso 03/03/2020

De 2009 até 2014, houve um hiato no que se refere a essa festividade de forma co-
letiva, retomando a mesma em 2014 com o nome Carnaval Legal, hoje Carnaval Cultural,
momento onde todos são bem-vindos e brincam juntos. (Fonte: Diretoria de Cultura de
Taquara- acesso em 11/02).
O carnaval em Taquara se mostra um movimento que resiste e aponta um caminho
a ser seguido pelo setor público, o de combate ao ideal de branqueamento e a dominação
cultural do patrimônio branco sob o negro.
Portanto, é necessário a criação de políticas públicas locais que reconheçam como
patrimônio imaterial o carnaval, clubes sociais de negros e as festas de samba, criando ações
de resgate e preservação patrimonial desta parcela da população que continua a lutar por
sua herança e protagonismo.

PATRIMÔNIO E RECONHECIMENTO: O VALOR DAS POLÍTICAS PÚBLI-


CAS

Nos últimos anos as políticas de patrimônio imaterial tornaram-se algo urgente e


emergente para o reconhecimento das alteridades silenciadas por narrativas hegemônicas
e excludentes. Contudo, infelizmente as políticas patrimoniais imateriais ainda não tem
24
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
o reconhecimento devido por parte dos municípios, devido aos poucos anos de sua im-
plantação no Brasil.

“[...] patrimonialização está voltada à preservação de bens materiais e imate-


riais das culturas existentes no Brasil e é resultado de regulações recentes.
Somente a partir de 2000, com a institucionalização da política nacional de
patrimônio imaterial, começa a inserção de novas demandas e atores em
busca do reconhecimento de seu repertorio cultural.” (Peres de Lima, p. 150)

A partir da etnografia do projeto “Origens do Carnaval em Taquara”, realizou-se uma


pesquisa sobre a história cultural, social e econômica das festividades do carnaval no muni-
cípio nos últimos oitenta anos. O trabalho evidencia a necessidade do reconhecimento pelo
setor público deste belo patrimônio como fomento, proteção e promoção da cultura negra
neste município. O tombamento serviria não só como um ato formal, mas poderia fomentar
a desconstrução do fenômeno do carnaval como algo negativo, buscando assim o autores-
peito por essa festa popular e democrática que foi a grande fomentadora e articuladora na
construção de espaços coletivos no município.
O referido estudo se deu através de entrevistas concedidas por pessoas que fizeram
e/ou fazem parte da história do carnaval taquarense e através de levantamentos escritos
e fotográficos. O objetivo principal é responder a seguinte questão: Como uma festividade
folclórica realizada na comunidade com apoteose durante tantas décadas está hoje quase
extinta? Concluindo:

“São diversos os motivos que causaram essa decadência. Para a equipe da


pesquisa, dois fatos que mais impactaram para decadência do carnaval taqua-
rense foram a partir dos governos populares em 2003. A população que fica na
faixa econômica conhecida como classe C, teve ganhos em sua rentabilidade
e passou a ter sobra no orçamento, com isso essa classe - que era o grande
público do carnaval de Taquara - passou a viajar mais, trazendo uma evasão
da plateia na avenida do carnaval de Taquara. Por outro lado, o preconceito e
a intolerância se transformaram em um discurso de ódio contra a festividade e
os organizadores e carnavalescos envolvidos, causando um enfraquecimento
do evento e um distanciamento do poder público no fomento do carnaval de
rua.” (Origens do Carnaval em Taquara. Acesso em 03/02/2020)

O preconceito e o processo de segregação social que deu origem ao povoado Taquara


do Mundo Novo, foi aos poucos, após o processo de abertura das comemorações coletivas
e democráticas, fazendo com que o carnaval perca seu espaço na cena cultural do muni-
cípio. Contudo, é importante destacar que se houvesse incentivo do poder público e uma
agenda propositiva no que se refere a essa manifestação cultural, possivelmente a mesma
teria salvaguardada.

“Existe hoje uma grande preocupação dos movimentos ligados à cultura popu-
25
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
lar quanto à continuidade do tradicional desfile carnavalesco de rua. Por este
motivo, faz-se necessário uma ação cultural que afirme junto à comunidade
taquarense o valor simbólico popular que essa festividade folclórica representa
na construção da identidade cultural e histórica do município, sua formação
social, cultural e econômica. Segundo a UNESCO, a afirmação da cultura de
um povo proporciona a compreensão da diversidade cultural que constitui o
folclore popular.” (Origens do Carnaval em Taquara. Acesso em 03/02/2020)

Nesta perspectiva, a marcante presença na historicidade de Taquara, fundamenta uma


mobilização coletiva afim de que tanto o carnaval como os clubes sociais negros tenham sua
parcela de construção histórica reconhecida e preservada, mas também se faz necessário
alcançar, através de equipamentos oriundos de políticas públicas, a possibilidade que essa
manifestação tenha possibilidade de ser (re)significada e conduzida por meio do calendário
oficial do município de Taquara ao seu verdadeiro lugar, o de transformação dos códigos
sociais através da arte e de reconhecimento de seu valor na construção deste espaço social.

CONCLUSÃO

No decorrer deste artigo foi possível constatar o quanto a representatividade importa e


o quanto devemos preserva-la para validar nossa história, mas também nos lançarmos na
construção de dias com equidade e justiça social.
No período de grande segregação no município de Taquara, entre as décadas de 50
e 70 , onde somente brancos podiam ocupar espaços sociais e festas, grupos de negros se
organizaram e construíam seus próprios espaços sociais, os chamados ‘Salões de Negros’.
Esses espaços foram de extrema importância para construir a identidade e também o au-
torespeito desta parcela da população, pois nestes salões podiam viver sua cultura sem
constrangimento.
Tal conquista possibilitou que pessoas negras tivessem destaque em uma sociedade
recortada pelo preconceito e discriminação, um exemplo é Dona Palmira Antônia de Souza,
proprietária, na década de 50, do Salão de Negros Flor do Sul. Palmira é retratada como
uma mulher empreendedora, a frente de seu tempo, com grande consciência política e social
de seu papel de mulher negra, possibilitando assim que essa grande manifestação cultural,
que o carnaval, pudesse também ser o grande momento de construção subjetiva para os
seus. Tal construção, teve o reconhecimento tardio, em 2019 através da Lei Ordinária 105,
que denomina Palmira Antônia de Souza uma rua do município de Taquara.
Logo, qualquer forma de preservação cultural é salutar. Entretanto, ações de preser-
vação da memória destes espaços de valorização de uma cultura silenciada se faz urgente
para que a história do município de Taquara seja realmente fidedigna, não é possível que o

26
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
patrimônio cultural associado à população afro-brasileira, tão representativo no município,
fique excluído e esquecido e não reconhecido com patrimônio do povo taquarense.
Desta forma, duas constatações são levantadas pelos autores: primeiro, a urgência
do reconhecimento como patrimônio cultural imaterial do município de Taquara os clubes
conhecidos como “salões de Negros”; segundo, a emergência na construção de políticas
públicas locais para a preservação e manutenção do carnaval de rua.
Por outro lado, é necessário que ações de pesquisa, registro e comunicação social sejam
realizados pela academia, aqui destacamos o curso de história das Faculdades Integradas
do Vale do Paranhana, localizada em Taquara, como a possuidora desta expertise, pois os
munícipes não conhecem essa parte de sua história e por isso não há reconhecimento e
sentimento de pertencimento na defesa do carnaval e outras manifestações culturais ligados
a cultura afro, combatendo assim as imagens distorcidas e as informações elitistas que são
difundidas a respeito desta manifestação.
Do que foi pesquisado, é possível concluir que a trajetória histórica dos clubes de
negros e do carnaval em Taquara, comportaram momentos de segregação, de rejeição, de
tolerância, de abertura e de incorporação. O momento atual é o de construção de sentido, de
resgate de significados, de avanço representativo, sendo possível afirmar que o carnaval faz
parte do imaginário e da construção subjetiva de grande parcela da população e necessita
ser reconhecido pelo poder público municipal, possibilitando, através de políticas públicas
sua realização de forma democrática.
Vê-se assim que, no cenário atual urge a experiência de volta ao que fez sentido, ao
que construiu cenários, ao que possibilitou reconhecimento, ao que fez história. Urge o relato
e a fala sobre esse período, seja nas escolas, nas praças ou na academia, pois o desapa-
recimento destes espaços não constrói a autenticidade e o protagonismo que a população
negra taquarense merece. Urge o debate persistente sobre o tema da cultura negra neste
cenário, contrariando prognósticos sombrios sobre seu desaparecimento, pois o Carnaval
é vida e é resistência.
Por fim, é importante afirmar que o carnaval, desde os tempos das festas em clubes, dos
salões de brancos e de negros, até os dias atuais, onde a festa acontece na rua, tem servido
para construir identidades políticas e afirmar direitos, pelo fato de que homens e mulheres
podem reconhecer e vivenciar sua herança, a luta dos seus pares por dignidade e celebrar
seus antepassados. Logo, a partir daqui a missão deste estudo é o de comunicar a respeito
desta manifestação local, possibilitando assim pensar em políticas públicas afirmativas que
possibilitem o reconhecimento e o empoderamento desta importante história de alteridade.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
REFERÊNCIAS
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28
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29
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
02
As relações étnico-raciais e o ensino
de ciências: Análise na formação
docente

Alan dos Santos Souza


UNEB

Lícia Maria de Lima Barbosa


UNEB

10.37885/210303643
RESUMO

O povo negro foi e é submetido a opressões e desigualdades e, nas escolas, as desi-


gualdades sociais se associam com as diferenças raciais. Ao experienciar a função de
supervisor do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência - PIBID percebi,
empiricamente, a ausência de planejamento e ações para as relações étnico-raciais.
Assim, se impôs a inquietação: os processos educativos para a formação docente do curso
de Licenciatura em Química, do campus Catu, contribuem para a educação das relações
étnico-raciais? O objetivo geral desse estudo foi analisar se os processos educativos para
a formação docente do curso licenciatura em Química e do PIBID contribuem para a edu-
cação das relações étnico-raciais. Um dos objetivoss específicos discute a compreensão
dos discentes sobre as relações étnico-raciais no curso de química do IF Baiano. A meto-
dologia da pesquisa foi de base qualitativa, de cunho teórico-empírico, elaborada a partir
de fontes e instrumentos expostos nas etapas: mapeamento das produções bibliográficas;
aplicação de entrevistas semiestruturadas, análise de documentos institucionais, Projeto
Político Pedagógico; e análise das entrevistas de sete licenciandos(as). A análise das
entrevistas mostrou que os(as) licenciandos(as) tinham pouco conhecimento sobre a
Lei n° 10.639/03 e as DCNERER; não acreditavam na existência de democracia racial;
acreditavam que estudar e debater sobre raça e racismo contribui para a formação do-
cente; possuíam dificuldades em associar os conhecimentos científicos com as relações
sociais. Essa pesquisa contribui para evidenciar que espaços de diálogos que abordam
as relações étnico-raciais contribuem para a formação docente.

Palavras- chave: Ensino de Ciências,, Relações Étnico-Raciais,, Formação de Pro-


fessores,, PIBID.

31
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Porque investigar relações étnico-raciais na formação docente? Mesmo assumindo os


papéis de professor, estudante, pai e cidadão demorei a perceber a marginalização social
a que o povo negro foi e é submetido em diversos aspectos. Na minha formação docente
continuada1, desenvolvi atividades de orientação na função de supervisor do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID, do IF Baiano e percebi como a po-
pulação negra está inserida em contextos de opressões e desigualdades sociais. Naquele
momento, surgiram percepções sobre as hierarquizações sociais que segregam por meio
da cor da pele ou por traços físicos.
Desvelei que em minha formação e atuação docente, havia precariedade para construir,
orientar e abordar a educação para as relações étnico-raciais. E ainda, que desconhecia
o racismo institucional que estruturam as relações na sociedade brasileira , que havia in-
consistência sobre minha identidade étinico-racial, e que no PIBID não abordávamos essas
discussões. Assim estabeleci que deveria aprofundar os estudos e o ingresso no Programa
da Pós-graduação em Crítica Cultural contribuiria para responder ao questionamento: o curso
de licenciatura em química, do IF Baiano, campus Catu, possui plano e práticas voltadas
para a educação das relações étnico-raciais? Se existem, são suficientes e necessários?
A escola pública tem a inclusão social entre suas diretrizes. A Base Nacional Curricular
Comum (BRASIL, 2016), explicita preocupação com o amparo aos menos privilegiados com
o intuito de minimizar as desigualdades. Apesar disto, o ensino de fenômenos, fatos e suas
interpretações desvinculados de seus aspectos históricos, políticos, econômicos e sociais
não permite que a proposta educacional do ensino de Ciências seja atingida. O ensino de
Ciências é parte essencial da educação e deve ser posicionado no eixo criativo da escola.
Como as desigualdades sociais estão atreladas às diferenças étnico-raciais e a escola é
a instituição difusora de conhecimento, então, vejo que esta é o espaço favorável para
discutir essas questões fundamentais. É nela que necessitamos explicitar sobre as formas
de discriminação e como estas se propagam. Na escola, compreender a ausência das dis-
cussões sobre as questões étnico-raciais passou a me interessar, inquietar e aborrecer em
alguns aspectos. Percebi que esses sentimentos e provocações advindos desses novos
conhecimentos não adormeceriam e uma postura ativa se tornou imperativa. Assim, busquei
possibilidades de implementar práticas político-pedagógicas favoráveis à minimização das
desigualdades na escola e passei a investigar e ampliar os fundamentos teóricos para as
relações étnico-raciais que devem ser vivenciados na formação docente.

1 Esse trabalho é é parte da pesquisa intitulada Ensino de ciências e as relações étnico-raciais: análise da formação de licencian-
dos(as) do PIBID e do curso de química no IF Baiano, dissertação do PPG em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia

32
– UNEB, campus Alagoinhas-Ba. A atuação como bolsista, supervisor do PIBID, aconteceu entre 2012 a 2018.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Os resultados desta pesquisa se situam no campo da formação docente, no âmbito
do ensino de ciências2, atuando como professor pesquisador, entre 2018 a 2020, quando
busquei conhecer aspectos da formação e parte das atividades pedagógicas desenvolvidas
nos ambientes do IF Baiano, campus Catu.
Meu envolvimento com os entrevistados precisa ser explicitado, ou seja, o meu lugar
de fala3 referente ao objetivo dessa pesquisa. Sou professor do ensino de Ciências, contu-
do, licenciado em Matemática, engajado na educação antirracista (por compreender que as
pessoas negras não possuem as mesmas oportunidades) e a pesquisa possui relação com
a formação docente no ensino de ciências e as histórias de exclusão do povo negro. Assim,
não restam dúvidas de que as análises das entrevistas e dos documentos mencionados
estão eivados por esses lugares de fala, digo os lugares de pesquisador e professor, que
se envolvem e possuem entre si, perspectivas de construção e reconstrução.
Para dialogar sobre formação docente e educação antirracista, e demonstrar como este
ensino pode reeducar as relações étnico-raciais positivas, mais humanas trouxe Nilma Lino
Gomes (2005), Rodrigo Jesus (2013), e Petronilha Silva (2007). A associação do conheci-
mento reproduzido no ensino de Ciências com as hierarquias raciais foi fundamentada em
Verrangia (2009) e Rachel Oliveira (2001). A seguir, apresento, o percurso metodológico da
pesquisa. Os resultados e análises possuem dois tópicos. No primeiro, exponho quem são
os(as) licenciandos(as) desta instituição, em perspectivas diversas, com base nos dados
coletados. No segundo trago a análise sobre a compreensão dos(das) estudantes acerca
da existência das relações étnico-raciais na instituição dirigida à formação docente. Além
disso, referencio o Projeto Político Pedagógico do Curso de Química do IF Baiano com foco
na educação das relações étnico-raciais. Nas considerações finais relaciono os principais
resultados na perspectiva da leis10.639/2003 e das DCNERER, e possibilidades de conti-
nuidade para essa pesquisa.

OBJETIVO

Analisar se os processos educativos para a formação docente do curso de licenciatura


em Química, instituição do IF Baiano, do campus Catu, contribuem para a educação das
relações étnico-raciais. O objetivo específico foi discutir a compreensão sobre as relações
étnico-raciais dos discentes do curso de química do IF Baiano.

2 Nesta investigação, “o ensino de Ciências” foi utilizado para relacionar os conhecimentos científicos produzidos, no ensino e apren-
dizagem, no campo das Ciências Naturais, organizados no sistema escolar nas disciplinas de Ciências Naturais, no Ensino Funda-
mental, e Biologia, Física e Química, no Ensino Médio.
3 Segundo Ribeiro (2017), a expressão “lugar de fala” traz referências aos discursos direcionados a quem pode falar. Contudo, não
existe uma definição precisa sobre a expressão assim como não existe precisão sobre a sua origem. Sendo que as reflexões e tra-
balhos no âmbito dos movimentos sociais, em especial no feminismo negro, demarcam-no como “forma de ferramenta política e com

33
o intuito de se colocar contra uma autorização discursiva.” (2017, p. 33).

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


MÉTODOS

A metodologia dessa pesquisa foi de base qualitativa, de cunho teórico-empírico4 ,


elaborada a partir de várias fontes e instrumentos expostos em três etapas: mapeamento
das produções bibliográficas5; levantamento dos dados empíricos por meio da aplicação de
entrevistas semiestruturadas e a obtenção das documentações, Projeto Político Pedagógico
(PPP) e Curriculum do curso de Licenciatura em Química. A terceira etapa deu-se com
as análises destes documentos institucionais e das entrevistas. O procedimento utilizado
na análise documental foi a análise de conteúdo6 que se intercalou com a exposição das
entrevistas, trouxe “rastros” ou “pistas” do que busquei evidenciar. A inspiração para esse
estilo de escrita foi baseado nos recursos presentes na obra de Conceição Evaristo (2018)7.

RESULTADOS

A análise das entrevistas mostrou que os(as) licenciandos(as) tinham pouco conhe-
cimento sobre a Lei n° 10.639/03 e as DCNERER; não acreditavam na existência de de-
mocracia racial; acreditavam que estudar e debater sobre raça e racismo contribui para a
formação docente; possuíam dificuldades em associar os conhecimentos científicos com
as relações sociais.

DISCUSSÃO

OS(AS) LICENCIANDOS(AS) EM QUÍMICA DO IF BAIANO DE CATU

O objetivo deste tópico é apresentar os(as) licenciandos(as) do curso de Química do


Instituto Federal Baiano, campus Catu. Os perfis pessoais, escolar, acadêmico e socioeco-
nômico dos(as) sete entrevistados(as) desta pesquisa, estão contemplados no quadro 1.
O pseudônimo utilizado na identificação dos entrevistados foi associado ao nome das
flores mais conhecidas. A faixa etária indica uma turma jovem: cinco dos sete estudantes

4 4 Segundo Chizzotti, a pesquisa se caracteriza na tipologia teórico-empírica quando descreve e interpreta a realidade de fenômenos
sociais com referência teórica e empírica, pois relaciona o conhecimento, a experiência, as sensações ou as percepções. “A ideia
resulta da universalidade das percepções externas do mundo empírico que repercutem os sentidos e, neles, ficam impressas.” (2011,
p. 39).
5 Adotei o primeiro nome junto do sobrenome das autoras, com o intuito de diferenciar homens e mulheres, visto que o padrão das
referências é a citação no masculino, para o nome dos homens mantive o padrão seguindo as normas da ABNT.
6 Segundo Krippendorff (1980 apud LUDKE; ANDRÉ, 2018), esse método de investigação é utilizado para fazer inferências válidas e
replicáveis dos dados para o seu contexto.
7 Conceição Evaristo diz que a base desse romance é uma vivência alcançada pela narração, o que denomina de escrevivência: “bus-
co a voz, a fala de quem conta, para se misturar à minha,” (2018, p. 16). Os recursos intercalados fornecidos pela autora soam como
um quebra-cabeça literário e biográfico que se associa na escrevivência. A narrativa das lutas por existência dos personagens negros

34
dá-se em condições desfavoráveis, em sua maioria.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


possuem até 28 anos. Todos são da mesma região (litoral norte e agreste de Alagoinhas/Ba)
sendo que quatro residem em Catu e três em Alagoinhas. Os dois estudantes de mais idade
já constituíram família e moram com os seus cônjuges e filhos. Os demais moram com os
seus familiares. Pluméria mora na casa dos seus avôs e tias, na cidade de Catu, e com os
seus pais, em Entre Rios, ambas no interior baiano. Um entrevistado é do sexo masculino
(14%) e seis do sexo feminino (86%).
Quanto ao pertencimento étnico-racial, quatro estudantes se autodeclararam negros
(57%) e três (43%) se autodeclararam pardos, o que totaliza a unanimidade de negros.
Apesar da quantidade reduzida de entrevistados, em relação ao total de pessoas no estado da
Bahia, é possível comparar os dados com a realidade étnico-racial mensurada pela Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IGBE, 2018) que apontam que, na Bahia, cerca de 23% da população
afirma ter cor preta e somando pretos e pardos(negros) chega-se a cerca de 81%.

Quadro 1. Perfil dos entrevistados no IF Baiano – campus Catu, em agosto de 2019


Pertencimento Étnico-
Identificação

Ensino Fund. e Médio

Período
Renda em SM
-racial
Idade

Sexo

Outras formações
Indiv./ Familiar
(Ocupação atual)

Esc. Pública
Orquídea 28 F Parda Técnico Mecânica 1/2 Variável 5º
(Estudante/Bolsista PIBID)

Estudante
Tulipa 21 F Parda Auxiliar Administrativo 1/2 Variável 5º
(Aux. Administrativo)

Esc. Pública
Dália 19 F Negra 1/2 1 1/2 7º
(Estudante/Bolsista IC )

Esc. Pública e particular


Tec. Anal. Labor.
Pedagoga
Lírios 42 F Negra 1 Variável 5º
(Professora Ens. Fund.)
(Est. de Pós-Grad.)
(Estudante/Bolsista PIBID)

Esc. Pública
Calla Lily 50 M Negro Téc. Química 4 4 7/8º
(Téc. Química)

Esc. Pública e particular


Pluméria 19 F Parda 1/2 2 3º
(Estudante/Bolsista PIBID)

Esc. Pública e particular


Crisântemo 20 F Negra Técnico em Meio ambiente 1/2 1½ 3º
(Estudante/Bolsista PIBID)

Fonte: Elaboração própria

35
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
No perfil escolar e acadêmico, identifiquei que todos os estudantes tiveram formação
no ensino fundamental e/ou médio na escola pública. Três estudantes (43%), no entanto,
estiveram, em algum momento da sua formação básica, em instituições particulares. Cinco
licenciandos(as) possuíam formação profissional técnica. Apenas dois estudantes estavam
no último ano de formação, dois no segundo e três no terceiro ano.
Quanto ao perfil profissional, todos os estudantes exerciam atividade remunera-
da. No período da pesquisa, cinco eram bolsistas da CAPES, quatro do PIBID e Dália era
bolsista de iniciação científica. Três estudantes possuíam trabalho formalizado, uma profes-
sora do ensino fundamental e dois técnicos.
O perfil econômico dos entrevistados, a renda familiar, variou de 1 a 4 salários míni-
mos, mas se concentrou entre 1 e 2 salários, sendo que dois entrevistados afirmaram que
a renda familiar oscilava pois os trabalhos não eram formalizados.
A rotina dos(das) entrevistados(as), de uma forma geral, se baseou em cumprir as ati-
vidades acadêmicas da licenciatura, do curso de química. Contudo, segundo Camila Silva e
Luiz Antônio Oliveira (2009), o perfil profissional esperado de um professor de química não é
atingido, o estudo evidenciou descasos na formação docente e atinge a situação em que os
novos profissionais chegam à sala de aula e encontram fatos ou situações desconhecidos
nas quais não foram preparados para atuar.

A FORMAÇÃO DOCENTE E AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO IF BAIANO DE CATU

Apresento a transcrição e a análise das entrevistas sobre a compreensão destes dis-


centes a respeito da existência das relações étnico-raciais no curso de licenciatura em quí-
mica do IF Baiano, no campus Catu para a formação docente. Neste intuito, para averiguar
se os estudantes tinham conhecimento sobre a legislação relacionada ao tema, questionei
se conheciam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – DCNERER, e a Lei n°
10.639/038. Na sequência, questionei: se os ambientes vivenciados no IF Baiano (reuniões,
viagens, encontros) promoviam atividades para a educação das relações étnico-raciais? E se
existiu orientação desta licenciatura no IF Baiano para desenvolver, na formação docente,
atividades para as relações étnico-raciais?

Já ouvi falar destas leis aqui no IF, porque tem né? Tem encontro todo ano e
temos palestra onde se discute. Lê esse documento eu nunca li, mas já ouvi
falar sobre os direitos, do que fala a respeito... da questão racial, mas lê de
fato tudo isso eu nunca li. Essa palestra acontece todo ano pelo Núcleo de

8 A Resolução CNE/CP 1/2004, estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – DCNERER que são parte de um conjunto de ações afirmativas instituídas

36
pelo governo Lula.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Estudos africanos daqui. Os estudantes mais professores que se reúnem e
todo ano chama, fazem mesa redonda...para discutir debater. Tanto que eu
estava acompanhando os meninos e fui participar do evento e nesse dia a
discussão girou em torno de como os alunos se viam, se identificavam e iam
dizendo: eu sou negro….e foi nesse dia que eu me identifiquei para moça
que eu sou parda, que não considerava justo me identificar como negra [...]
(ORQUÍDEA 1, agosto 2019)

O relato de Orquídea demonstrou preocupação quanto ao pertencimento étnico-racial.


Mesmo tendo respondido inicialmente ao que lhe foi questionado, a estudante direcionou seu
relato, em quase a sua totalidade, para a questão identitária. Essa implicação da identidade
como questão norteadora para a educação das relações étnico-raciais tem fundamento na
Resolução CNE/CP n.º 01/2004, que declara que as discussões no ambiente educacional
sobre o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana têm por meta o reconhecimento
e a valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros. Apesar disso Verrangia
(2009) apontou, na sua revisão bibliográfica sobre educação e relações étnico-raciais de
docentes9, que professores em formação se encontram despreparados/as para lidar com as
situações relacionadas ao pertencimento étnico-racial. O relato de Orquídea revelou que as
discussões voltadas para esse tema foram realizadas por intermédio do Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI)10. Quando questionada sobre a Lei n° 10.639/03, en-
fatizou novamente o núcleo:

Já ouvi falar inclusive se refere a data comemorativa que deve ter lá no prezi-
nho, desde o prezinho, mas eu acho que, o que é ruim é que se pega um único
momento para abordar sobre isso e a depender da instituição faz disso…. como
eu posso dizer... um momento festivo. Eu acho que eu posso estar errada, mas
ao invés de um momento festivo deveria ser abordado por exemplo como a
gente faz aqui, discussões relevantes de você chegar e se descobrir, do que
é e o que não é, perguntar e mudar o seu conceito sobre alguma coisa né?
[...] (ORQUÍDEA 3, agosto 2019)

A estudante mencionou a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira


no ensino infantil11 e a inclusão do dia 20 novembro como “dia da consciência Negra”. Criticou
a metodologia que algumas “instituições” (subentendi que Orquídea se referia às escolas)
utilizaram para desenvolver as atividades correlatas e deu como referência a forma como
estas são trabalhadas pelo NEABI, “como a gente faz aqui”. Os fatos indicaram que o núcleo

9 O autor enfatiza que não há pesquisas específicas para os docentes das Ciências, mas usa os subsídios fornecidos por Rachel de
Oliveira (2001), Irene Souza (2001) e Oliveira (2002) para chegar às conclusões.
10 O Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI), constitui-se em uma política institucional do IF Baiano direcionada a
estudos e ações relativas às questões étnico-raciais. Objetiva implementar as leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 que instituem as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Culturas Afro-brasileira
e Indígena. (BRASIL, 2017)
11 Não existe previsão para o ensino infantil, torna-se obrigatório o ensino sobre a história e cultura afro-brasileira e indígena nos esta-

37
belecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados. (BRASIL, 2008).

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


buscou a valorização da identidade e dos direitos de igualdade. Contudo, Orquídea não expli-
citou onde conheceu as referidas legislações. De acordo com os argumentos apresentados
pela estudante, considerei que a licenciada do 5º semestre teve contato superficial com as
DCNERER e/ou com a Lei n° 10.639/03.
Os demais relatos sobre o conhecimento das respectivas legislações apon-
taram semelhanças:

Já tive contato com esse documento, já ouvi falar dele aqui no IF e antes na
escola. (CRISÂNTEMO 1, agosto 2019).
Não tive contato, nem lembrança. (TULIPA, agosto 2019).
Não nunca ouvi falar sobre esse documento não. Já estudei em políticas edu-
cacionais algumas leis, mas essa aí não. (DÁLIA, agosto 2019).

Crisântemo mencionou os documentos, mas demonstrou domínio limitado sobre os


mesmos. Tulipa, estudante do 5º semestre, e Dália, do 7º semestre, afirmaram desconhe-
ce-los, porém, Dália mencionou a possibilidade de não ter cursado algumas disciplinas.
Sobre o conhecimento das referidas legislações, todos os relatos dos(as) estudantes,
demonstraram contato superficial, com domínio limitado do conteúdo que a Lei nº 10.639/2003
e as DCNERER apresentam ou o seu total desconhecimento12. Essas legislações e os seus
dispositivos visam às reparações, ao reconhecimento e à valorização da identidade, da cul-
tura e da história do povo negro e, para isto, depende de fatores como “condições físicas,
materiais, intelectuais e afetivas favoráveis para o ensino e para aprendizagens” (BRASIL,
2004, p. 13). Nesse sentido, compreendo que as instituições de ensino devem promover
o acesso e a compreensão do que estes documentos abordam, visando a promoção da
difusão das culturas que fazem parte da nossa sociedade e consequentes ações voltadas
à educação das relações étnico-raciais. Corrobora nesse sentido Nilma Gomes e Jesus
(2013), ao afirmarem que estas legislações e os seus dispositivos podem ser considerados
basilares para a introdução das políticas de ações afirmativas na educação nacional, em
todos os níveis educacionais. Dessa forma, ganha relevância questionar se existe tal orien-
tação do IF Baiano, no curso de licenciatura em química, campus Catu, para desenvolver/
promover, na formação docente, estas atividades?

Aqui no IF nas disciplinas pedagógicas sim. Práticas pedagógicas e teve outra


disciplina filosofia da educação e sociologia da Educação [...] (ORQUÍDEA 4,
agosto 2019)

12 Especificamente cinco estudantes mencionaram que já ouviram falar, mas não leram o documento, o que considerei como contato

38
superficial. Dois afirmaram que não conhecem ou nunca ouviram falar a respeito deste.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Orquídea esclareceu que, pelo menos, três disciplinas do curso abordaram a temática
da educação para as relações raciais, apesar de considerar que as discussões deveriam se
estender, ter uma carga horária maior nas disciplinas13 que acompanhou.

Aqui foi um dos lugares que eu encontrei mais essa questão, inclusive eles
tem o NEABI onde eles tratam muito sobre isso, muito, muito mesmo e foi
numa dessas discussões que eu passei a perceber que uma das coisas que
eu não considerava racismo e foi aí que eu comecei a perceber que a gente
faz racismo às vezes sem querer né? [...] (PLUMÉRIA 3, agosto 2019)
Não sei ao certo, não sei ao certo, mas todos os eventos que eles promovem
aqui incluem também o nível superior. Às vezes tem uma dificuldade por causa
do horário por que as discussões se dão na parte da manhã ou da tarde e o
pessoal do superior tem aula à noite na maioria, mas eles sempre avisam,
divulgam nos grupos e tal. Já participei de umas três, de uns três encontros.
(PLUMÉRIA 4, agosto 2019)

Pluméria reforçou que atividades práticas desenvolvidas pelo NEABI possibilitaram a


educação para as relações étnico-raciais e que o núcleo sempre participou a comunidade
acadêmica do campus. Enfatizou que foi no Instituto Federal Baiano que percebeu as diver-
sas formas como o racismo se apresenta e as formas da sua propagação sutil.

Na disciplina de políticas, no grupo do NEABI na semana da consciência ne-


gra. Em outras disciplinas ainda não, talvez mais para frente. (CRISÂNTEMO
2, agosto 2019)

Crisântemo reforçou a apresentação do NEABI quando questionada a respeito da


orientação do IF Baiano, campus Catu, para a educação das relações étnico-raciais14.
De uma forma geral, os dados permitiram inferir que os(as) licenciandos(as) não conhe-
ciam profundamente os documentos relacionados à área, em especial as leis n° 10.639/03
e 11.645/08, e aos dispositivos relacionados. Apesar disso, tiveram acesso a alguma infor-
mação correlata que possibilitou emitir as suas opiniões e apresentarem problematizações
envolvendo as relações étnico-raciais. Sobre a presença das discussões nas disciplinas do
curso de licenciatura em química do IF Baiano, três dos sete estudantes mencionaram a
presença das discussões em algumas disciplinas tais como políticas institucionais, gestão
escolar e práticas pedagógicas.
O projeto pedagógico do curso superior de licenciatura em química do IF Baiano,
campus Catu descreve diversos atributos relacionados aos conhecimentos da formação dos
licenciados em Química, dentre eles “a compreensão dos aspectos sociais envolvidos com
a realidade educacional, possibilitando que crie, planeje, realize, gerencie e avalie situações
13 Orquídea apresentou, posteriormente, o desenho curricular das disciplinas que havia cursado e apontou as disciplinas que havia
mencionado na pesquisa: Práticas Pedagógicas II, Práticas Pedagógicas III e Políticas Institucionais e Gestão Escolar.
14 As atividades do NEABI aconteceram no auditório do IF Baiano. Apesar de não estar incluído como instrumento de pesquisa, realizei

39
observação durante uma das suas apresentações.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


didático-pedagógicas de forma eficiente.” (BRASIL, 2017, p. 25). Destaquei os que estão
relacionados com a proposta da educação das relações étnico-raciais:

[...] VII − identificar questões e problemas socioculturais e educacionais, com


postura investigativa, integrativa e propositiva em face de realidades comple-
xas, a fim de contribuir para a superação de exclusões sociais, étnico-raciais,
econômicas, culturais, religiosas, políticas, de gênero, sexuais e outras;
VIII − demonstrar consciência da diversidade, respeitando as diferenças de
natureza ambiental-ecológica, étnico-racial, de gêneros, de faixas geracionais,
de classes sociais, religiosas, de necessidades especiais, de diversidade se-
xual, entre outras; [...] (BRASIL, 2017, p. 25)

As evidências indicaram que o curso de química do IF Baiano, campus Catu apresenta,


no seu currículo, disciplinas que abordam a educação para as relações étnico-raciais. Apesar
disto, as respostas dos(as) estudantes não apresentaram fundamentos teóricos suficientes
para concluir que a licenciatura em química desta instituição vem contemplando práticas
pedagógicas bem direcionadas para esta finalidade.

CONCLUSÃO / CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa, denominada As relações étnico-raciais e o ensino de ciências no curso de


química do IF Baiano, teve origem com o desvelamento de que o povo negro está imerso
na marginalização social provocada pelo racismo, e que as práticas racistas também são
evidenciadas nas escolas onde as desigualdades sociais se associam às diferenças raciais.
Imerso nessas reflexões, esta pesquisa teve como objetivo geral analisar se os processos
educativos para a formação docente do curso de licenciatura em Química, do IF Baiano, do
campus Catu, contribuem para a educação das relações étnico-raciais.
Para discutir sobre a compreensão dos professores em formação acerca das relações
étnico-raciais, foi imprescindível conhecer as identidades dos sete professores em formação.
Estes dados auxiliaram na compreensão do perfil dos futuros docentes, pois destacam a
trajetória escolar e a relação destes com a escola pública, abordou motivações e influências
na escolha da carreira docente, mostrou aspectos que influenciaram a formação docente,
evidenciou as identidades de gênero, faixa etária e pertencimento étnico-racial dos entrevista-
dos. Assim, estes dados tiveram efeito na análise sobre os relatos coletados nas entrevistas
e sobre as questões étnico-raciais expostas pelos docentes, pois representam as suas expe-
riências vivenciadas em diferentes fases e contextos que compõem as suas subjetividades.
Os dados apontaram que os(as) licenciandos(as) não conheciam razoavelmente bem
os documentos que abordam o tema. Contudo, houve demonstração do respeito pelo outro
e pela diferença, assim como constatei, nos relatos sobre as suas vivências, a percepção
das diversas formas de propagação e manutenção do racismo na sociedade, em especial,
40
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
na escola. A abordagem antirracista e os momentos formativos vivenciados na instituição
corroboraram para a educação das relações étnico-raciais e, consequentemente, para a
formação docente, em especial, as atividades propostas e desenvolvidas pelo NEABI.
Os relatos evidenciaram que houve momentos formativos contemplando a valorização
da identidade étnico-racial e que estes foram desenvolvidos pelo NEABI, o que me moti-
vou a observar um destes encontros. As ações do NEABI, em conjunto com as entrevistas
foram direcionadas à educação pluricultural e pluriétnica voltadas para a construção da
cidadania. Ficou evidente que o citado núcleo vem contemplando os objetivos instituídos
nas leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008. Contudo, é preciso ressalvar que o núcleo é
uma instituição que integra o IF Baiano, mas não é uma instituição exclusiva do curso de
Licenciatura em Química.
Estes aspectos me instigaram a questionar sobre o que a licenciatura em química desta
instituição idealizou, ou melhor, investigar quais são seus objetivos e metas para atingir a
educação de uma forma geral, o delineamento para a formação de cidadãos e, em espe-
cial, para a educação das relações étnico-raciais. Para isso, investiguei o Projeto Político
Pedagógico do Curso de Química do IF Baiano15, destaquei apenas duas disciplinas que
tratam da educação para as relações étnico-raciais, mas os participantes declararam que
existiram abordagens para a educação das relações étnico-raciais em outras disciplinas.
Nessa perspectiva, de análise documental, o referido curso busca por meio de ações educa-
tivas refletir os significados científicos contextualizados na historicidade. O acesso às fontes
documentais possibilitou contextualizar o curso de licenciatura em Química e a Instituição e,
com base nestas e nas entrevistas realizadas, concluí que o IF Baiano campus Catu, como
instituição de educação pública e gratuita, busca, em perspectivas diversificadas, atender
às demandas locais e ao desenvolvimento da região.
Essa pesquisa descreveu parte de minha vivência, minha formação continuada, com
intuito de estabelecer a construção do princípio da equidade, na escola e nos sistemas de
ensino. Abordei referenciais teóricos que apontam estratégias no desenvolvimento prático
em busca da equidade racial. Para tanto apresentei evidências de que o ensino de ciências
no curso de química do IF Baiano, campus Catu, em suas ações educativas buscou refletir
os significados científicos contextualizados na historicidade, o que possibilitou atribuir sig-
nificado a estes conhecimentos.
Contudo, os(as) licenciandos(as) dessa instituição, possuem um conhecimento super-
ficial sobre as leis n° 10.639/2003 e as DCNERER. E as atividades práticas dessa unidade
de ensino, voltadas para a educação das relações étnico-raciais foram realizadas exclusi-
vamente pelo NEABI. Além disso, os discentes apontaram que existem abordagens, nessa
15 Neste recorte apenas citei trechos da análise da investigação realizada no PPP da instituição, o teor integral encontra-se em Souza

41
(2020)

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


perspectiva, em outras disciplinas, mas observei esse fato apenas em um componente
curricular do IF Baiano, campus Catu. Nesse contexto far-se-ia necessário um estudo mais
aprofundado para responder se os planos e as práticas voltadas para a educação das rela-
ções étnico-raciais dessa instituição são suficientes e necessários. O que será possível com
a continuidade desse estudo, com a ampliação dos instrumentos de pesquisa, tal como a
observação sistematizada nos diversos componentes curriculares, em busca de construir
e monitorar índices de equidade. Conjunto de ações complementares que abririam possi-
bilidades de averiguar como se dão as práticas sistematizadas para a formação docente
com foco na educação das relações étnico-raciais no curso de licenciatura em química
do IF Baiano, campus Catu.

REFERÊNCIAS
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Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
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nologia, e dá outras providências. DOU, 30 dez. 2008.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
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Mestrado em Crítica Cultural. Orientadora: Prof.ª Drª. Lícia Maria de Lima Barbosa.

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20. VERRANGIA, Douglas. A educação das relações étnico-raciais no ensino de Ciências: diálo-
gos possíveis entre Brasil e Estados Unidos. 2009, 322f. Tese de doutorado. (Doutorado em
Educação) − Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos, 2009.

43
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
03
O corpo, a mulher e outros significados

Naranda Costa Borges


PPGAC/UFBA

10.37885/201102017
RESUMO

Este estudo apresenta uma reflexão sobre o corpo ocidental feminino na contemporaneida-
de, especialmente o da brasileira, contextualizando-o a propósito das mudanças históricas
ocorridas e de como estas o influenciaram. A abordagem se estende a um panorama que
perpassa o recato e a submissão aos interesses do sistema ocidental-cristão-patriarcal de
outrora e o contexto atual, onde o corpo feminino se reatualiza diante das transformações
socioculturais contemporâneas, sofrendo grande influência das mídias, sobretudo no que
se refere ao significado de uma manifesta dissociação do corpo e o confronto gerado por
um subsequente questionamento ético generalizado, através do qual se constrói uma
reflexão de como a vida se sobressignifica com/pelo o corpo, o que vem a ser o corpo no
sentido da consciência e para além desta, que figura como um termômetro essencial das
sociedades contemporâneas, uma subjetividade encarnada e única riqueza acessível.

Palavras-chave: Corpo, Contemporaneidade, Feminino.

45
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Reconhecemos ou desconhecemos o corpo, principalmente, a partir das abordagens


que se fizeram significativas em termos da humanidade. Ou seja, podemos compreen-
der como a história do mundo se conduziu a partir do lugar de poder (ou “despoder”) que
o corpo adquiriu.
Dos tabus e preconceitos atribuídos ao corpo na Idade Média, vigoravam conceitos
onde “Platão, por sua vez, considera o corpo humano como túmulo da alma, imperfeição
radical de uma humanidade cujas raízes não estão mais no Céu, mas na Terra. A alma caiu
dentro de um corpo que o aprisiona” (Le Breton, 2003, p.13).
Atravessando a modernidade, mas, sem poder olhar para trás, pois, ainda o temos
presente, o corpo da era moderna foi tratado como artefato e objeto da ciência: coisificado
de forma a desenvolver o máximo de rentabilidade, assim como uma máquina. A cisão entre
corpo e alma foi, portanto, um marco da modernidade que emergiu no século XVII atrelada a
uma nova forma de conhecimento que conformou a hegemonia da racionalidade. Esta, disse-
minada também em posturas, representações e sensibilidades no homem ocidental moderno.
O saber nesse século separou-se dos seres humanos, distanciando-se, dissociando-se
e fragmentando-se, viabilizando assim, o método analítico. A relação do pensamento com a
cultura, então, estruturou-se em oposições: subjetivo x objetivo; natureza x cultura; sociedade
x indivíduo; natural x sobrenatural, homem x mulher. É a partir destas considerações moder-
nas que o poder falologocentrista hegemônico dissemina a ideia do corpo ideal e toda uma
série de regras, comportamentos e valores éticos a serem atingidos. Houve, destarte, uma
clara distinção entre o corpo do homem e o da mulher, pois, ambos foram contextualizados
e qualificados a partir das crenças estabelecidas pelo poder patriarcal em voga, e, por isso,
diferenciados quanto ao valor, as suas funções, as atribuições e principalmente, quanto ao
significado encarnado ao longo da história do mundo.
Em se tratando do corpo feminino brasileiro, especificamente no período colonial, houve
toda uma metodologia engendrada para que a mulher se mantivesse submissa e controlada,
já que, a natureza feminina com seus ciclos e humores representavam um mistério temido
e ameaçador ao parco conhecimento científico da época e ao farto sistema de valores con-
taminados por uma visão eurocêntrica e, portanto, patriarcal.
Coube a Igreja, atuando em consonância com o Estado e através da catequese, in-
troduzir a ideologia do orbis cristianus que contribuiu eficazmente para criar em nossa
embrionária sociedade brasileira, uma mentalidade patriarcal com um forte caráter domes-
ticador. Na realidade não havia uma intenção de excluir a mulher, nem tampouco bani-la do
convívio social. Ao contrário, era fundamental que ela participasse da conquista ultramari-
na, defendendo o catolicismo e consolidando o projeto demográfico. Era preciso povoar as
46
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
extensões e ocupar territórios. Nesse sentido foi iniciado um longo processo de domesticação
da mulher para fazê-la responsável pela casa, pela família, pela procriação e educação dos
filhos de acordo com os rigores e as normas da Igreja, que, desta forma, foi um importante
instrumento na disseminação de um discurso normatizador no período colonial brasileiro,
obrigando a uma reorganização das funções do corpo e dos hábitos femininos através de
seus sermões e de uma vigília constante aos comportamentos, tanto no âmbito individual
quanto no coletivo. Isto contribuiu para a formação de uma mentalidade colonial que instituiu
uma marca no nosso processo civilizatório.
Além da forte influência religiosa na vida cotidiana, as mulheres ainda sofreram com as
prescrições e a vigilância da medicina que contribuíam para o controle e o funcionamento
ideal do corpo feminino, a partir das certezas científicas que afirmavam ser a procriação
a prioridade biológica e social da mulher. Na época, a ciência era inspirada por ideais do
pensamento ocidental tradicional, que compreendia a mulher fisicamente inferior, pois, de-
monstrava oscilações de humor e temperamento em seus diferentes ciclos e, portanto, era
frágil, melancólica e dada às enfermidades.
É importante compreender que,

A história da condição feminina, da maternidade e das mentalidades sobre


a mulher na Colônia passa pela história do corpo da mulher. [...] levando a
concluir que desde há muito, na sociedade brasileira, as mulheres não foram
e não são mais do que seus próprios corpos, corpos que são terras desco-
nhecidas, territórios impenetráveis e que foram durante séculos auscultados,
mapeados, interrogados e decodificados pela imaginação masculina. (DEL
PRIORE, 2009, p. 283)

Defendo que no corpo reencontramos as partes esquecidas, a essência, a herança


sociocultural, e mais especificamente as habilidades e potencialidades desconhecidas e/
ou reprimidas, pois, ele personifica o imaginário guardando os mistérios contidos em cada
sujeito, seus desejos da alma e seus sonhos passíveis de compreensão e de sentido no
mundo. O corpo que é portador de história, de cultura e singularidade está sendo reduzido
a um artefato para a espetacularização da indústria cultural e do consumo.

A CONSTRUÇÃO DO CORPO

O padrão de corpo e sua subjetividade são construídos num período histórico e cultural,
porquanto, cada sociedade tem concepções diferenciadas acerca da vida e da forma de
viver e estes aspectos se refletem em seus indivíduos abrangendo seu modo de expressão
e estilo de vida. A cultura de cada época perpassa os indivíduos criando a maneira de viver
de acordo com os valores e as crenças vigentes.
47
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Em todos os meus estudos observo que o corpo feminino historicamente esteve atre-
lado às imposições do regime colonial, que, ao longo dos anos, subjugou as identidades da
mulher, restringindo-as aos mais diversos contextos de repressão social agravados, ainda, na
atualidade, pelas múltiplas demandas da vida contemporânea. Atualmente, o corpo ainda é
visto a partir de sua dimensão de funcionalidade, de sua utilidade máxima e dos mecanismos
que favorecem a sua excelência na produtividade e no cumprimento de metas e objetivos
que lhe são, na maioria das vezes, alheios. Para compreender como as mudanças culturais
ulteriores estão imbricadas na atualidade, portanto, é necessário convocar a história para
que se reflita o discurso do corpo da mulher contemporânea e de como se estabeleceram
os valores que o permeiam.
Com o advento da revolução industrial e a necessidade de maior quantidade de mão
de obra, a mulher aos poucos foi desempenhando papéis profissionais além das atividades
domésticas costumeiras. Dessa forma, as transformações ao longo da história introduziram
experiências novas e concretas para a mulher na sociedade. Os padrões corporais seguiram
as transformações significativas da história e da cultura.
Embora a visão colonial e a contemporânea em relação ao corpo sejam opostas, visto
que, na primeira ele é negado e na segunda cultuado, podemos encontrar afinidades entre
estas, principalmente, no que se refere ao martírio da carne e ao domínio do homem sobre
o corpo feminino. Se no período colonial o corpo era supliciado para a alma ser salva, na
contemporaneidade ele é martirizado para ser aceito.
Porém, o corpo feminino outrora recatado e subjugado aos interesses do sistema oci-
dental-cristão-patriarcal, se reatualiza e se modifica diante das transformações socioculturais
contemporâneas sofrendo grande influência e domínio das mídias.

O modernismo conheceu a voz ainda tímida e isolada de mulheres com outras


formas de presença social e política, como foram os exemplos de Isadora
Duncan, Simone de Beauvoir, Tarsila do Amaral e tantas outras. Mas, só na
virada deste século aparece outra mulher, uma nova escritura que entra na
cena contemporânea como potencial de rastros, uma testemunha capaz de
desvelar dimensões ocultas. É o fim dos tempos da mulher invisível. (BOR-
GES, 2011, p. 24-25)

O corpo feminino da atualidade é idealizado: sexual, provocante, esbelto, extravagante,


cuja atitude traduz o sucesso estético do mercado na cena social. Este tipo ideal de mulher é
fabricado por uma ideologia de mídia que tem funções explicitamente mercadológicas. Esta
ideologia não está preocupada em respeitar e nem em considerar as diversidades culturais
nas quais as mulheres estão inseridas.
Os modelos da mulher ideal que são difundidos pela mídia no Brasil, são atrelados
a imagens de mulheres jovens, magras, ricas e em sua maioria, brancas. Diante disso, é
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
comum verificar a grande preocupação da mulher brasileira em permanecer jovem a qualquer
custo para ser admirada e gozar de um espaço social de sucesso.
O medo do envelhecimento aparece nas mais diversas formas como as dietas cons-
tantes, a prática de atividades físicas intensas, o uso de cosméticos variados, as cirurgias
plásticas rejuvenescedoras e até o aparecimento de doenças psicológicas como a bulimia
e a anorexia, provocadas por uma rejeição incontrolável à comida pelo medo de engordar
e ficar fora dos padrões impostos.
A mulher brasileira, apesar de estar se despedindo do padrão corporal da Santa
Mãezinha do período colonial, (Del Priore, 2009, p.16) não foge, no entanto, ainda à ne-
cessidade e desejo de se tornar bem-sucedida e valorizada pela ideologia dominante. Por
essa razão busca alcançar com seus corpos e comportamentos o que Mauss (2003, p. 405)
chama de “imitação prestigiosa”,

A noção de educação podia sobrepor-se à de imitação. [...] O que se passa é


uma imitação prestigiosa. A criança, como o adulto, imita atos bem-sucedidos
que ela viu ser efetuados por pessoas nas quais confia e que têm autoridade
sobre ela. O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente bio-
lógico, relativo ao corpo. O indivíduo assimila a série dos movimentos de que é
composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros. É precisamente
nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado, autorizado, pro-
vado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento social.

Ou seja, ressaltando alguns atributos e comportamentos em detrimento de outros,


vai construindo um corpo desejado para o outro e para a sociedade, obtido pelos meios do
processo de imitação prestigiosa. Isto porque que os hábitos, crenças, costumes e tradições
que caracterizam uma cultura também se referem ao corpo.
O desenvolvimento do individualismo e a intensificação das pressões sociais das nor-
mas do corpo caminham juntos. Se por um lado, o corpo da brasileira vem se emancipando
de suas antigas servidões-sexuais, dos estigmas da procriação e até dos padrões indumen-
tários, por outro, se encontra submetido a coerções estéticas também reguladoras, mais
imperativas e mais geradoras de ansiedade do que as anteriores.

O CORPO E A IDENTIDADE FEMININA NA CONTEMPORANEIDADE

No mundo ocidental o culto ao corpo é disseminado e, muitas vezes, vem camuflado


pela preocupação com a saúde e com a qualidade de vida. Porém, mais que resultado das
imposições da cultura contemporânea que valoriza o consumo, a maior expectativa de vida
impõe uma ditadura estética ao corpo, principalmente às mulheres, que necessitam estar
sempre jovens para se sentirem valorizadas e aceitas. É preciso ter um corpo sarado, sau-
dável, com uma aparência de frescor, vestido com as marcas de prestígio mercadológico.
49
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Esta realidade sugere uma nova construção do corpo da mulher, com base nos modelos
impostos pela mídia.
Todavia, mesmo que a mulher de hoje ainda esteja submetida aos antigos e aos novos
padrões de controle, ela tem buscado e alcançado alguma realização de suas potenciali-
dades: assume cargos fundamentais para a vida pública como a exemplo da Presidência
da República Federativa do Brasil, da chefia da Secretaria de Segurança Pública do Rio de
Janeiro, da Presidência do Flamengo Futebol Clube dentre tantas outras funções antes de
domínio exclusivamente masculino. A mulher cresce em suas diferentes profissões, toma
cada vez mais assento nas universidades, sem abdicar de assumir também os papéis de
mãe e de dona-de-casa.
Contudo, o acúmulo de tantas e diversas funções tem gerado transtornos e sacrifícios
pessoais em consequência da sobrecarga dissonante à organicidade e ao desenvolvimento
feminino. Nesse sentido as mulheres são iniciadas num modelo que não lhes permite um
acesso as suas forças reprimidas e esquecidas, sempre ameaçadoras por serem conside-
radas magias e sortilégios. Assim, o culto à Santa Mãezinha é substituído pelo da Mulher
Maravilha, aquela das múltiplas funções, e este novo tempo lhe dá pouco ou nenhum mo-
mento para cuidar de si, sua corporeidade, seu prazer e seus propósitos.
Le Breton (2003, p. 221) diz que “o homem está enraizado em seu corpo para o melhor
e para o pior” e que abdicando da densidade do corpo perdemos o sabor das coisas. Sendo
termômetro essencial das sociedades contemporâneas é no com/pôr o corpo que a vida se
sobressignifica. Como último local de soberania pessoal, o corpo é fator de individuação, pois
é por ele que se pensa, vive o mundo e se estabelece o vínculo social. “Qualquer confusão
introduzida na configuração do corpo é uma confusão introduzida na coerência do mundo” 1.
Da falta de tempo para cuidar-se deriva o sentimento de dissociar-se do corpo que, por
sua vez, nos faz confrontar com um questionamento ético generalizado que, nos aproxima
cada vez mais da constatação da infinita fragilidade da condição humana. De fato, o corpo
é a única riqueza acessível.
A autoridade da encarnação é o corpo porque é este quem possibilita a efetivação de
tudo o que somos. É ao mesmo tempo a sabedoria presente do vivido e do esquecido e
toda a esperança que nos reatualiza no mundo. Não é uma fusão, nem uma mistura. É um
desencontro, onde os caminhos provocam encruzilhadas que respondem à tensão advinda
com o movimento da vida.
A mulher da contemporaneidade quando se reconhece feminina, para além da dis-
paridade de gêneros, se percebe em conflito porque se encontra na tentativa/desafio do

50
1 Ibid., p. 223.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


vir-a-ser. E é principalmente o seu corpo, a sua realidade encarnada, que possibilita re-
conhecer-se como centelha da transitoriedade e do caos, onde todos os sentidos estão/
são relativizados.
Em seu texto, As Máquinas Falantes, Maria Rita Kehl2 (In: NOVAES, 2003) propõe olhar
para o corpo como objeto social, uma espécie de corpo-alteridade, onde o corpo outrora
propriedade privada, é assumido segundo sua perspectiva, como o corpo do Outro. Segundo
a sua ótica, o corpo “... pertence ao universo simbólico que habitamos, pertence ao Outro;
o corpo é formatado pela linguagem e depende do lugar social que lhe é atribuído para se
constituir” (2003, p. 243). Para a autora, o corpo não existe fora da linguagem porque esta
é que determina a sua aparência, a sua expressividade e a sua saúde.
Parece-me que autora concebe como linguagem no texto citado, apenas a linguagem
falada e escrita, pois se refere ao discurso proferido como o responsável pelas mudanças
ocorridas nos corpos sociais, citando ainda, dois ensaios de Lévi-Strauss onde o mesmo
desenvolve uma relação entre o corpo e a palavra tanto nas culturas primitivas, enfatizando a
importância do mito nestas, como na cultura moderna, através da relação analista/paciente e
o poder de transformação que as palavras proferidas adquirem no contexto analítico. O corpo
na visão da autora ganha notoriedade a partir do valor que o Outro estabelece na relação,
portanto, existir é senão um processo contínuo de reconhecimento/estabelecimento.
Quero, entretanto, ampliar o ponto de vista da autora. Como citaram Maturana e Varela
em sua obra A Árvore do Conhecimento (2010), “... para se criar uma unidade é necessário
distingui-la, só então se pode instituir como devem ser as suas relações e, portanto, organi-
zá-la.” Assim sendo, para além deste constructo corpo-palavra, defendo o corpo como uma
noção de unidade profundamente referenciada/construída/estimulada por linguagens múl-
tiplas ressaltando-se aqui o poder de transformação das artes e especificamente a dança,
e, pelos afetos.
É de suma importância ter lúcido, o cuidado que os educadores precisam assumir na
orientação/formação das crianças, no que tange a estimular a ampliação do repertório infantil,
atuando especialmente como vetor aos caminhos de acesso ao seu imaginário, verdadeiro
museu latente, que ordenará possivelmente, os direcionamentos que cada ser escolherá se
orientar na vida, a partir da assimilação dos afetos. Refiro-me aos afetos como uma espécie
de pulsão que nos impulsiona à troca e à percepção mais sutil da vida. São eles que sob
minha ótica, nos estimulam a ampliar o nosso repertório e a sair de nosso restrito ponto de
vista a partir do desejo de partilha com o Outro, seja este um objeto, um sujeito, um pen-
samento, um sentimento. É quando realmente experimentamos. Mas, também, o corpo é
uma unidade autorreferencial. É ele quem estabelece o que lhe convém, na hora que lhe

51
2 Maria Rita Kehl nasceu em Campinas, São Paulo, em 1951. Ela é psicanalista, ensaísta, crítica literária, poetisa e cronista brasileira.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


convém. Esta percepção foi bastante influenciada pela teoria da autopoieses3 desenvolvida
por Maturana e Varela (2010).
Assim, somos uma dinâmica circular e transacional que em um contínuo movimento
de autoprodução produz os elementos que nos constituem ao mesmo tempo em que nos
diferencia do meio por uma dinâmica muito específica. O sujeito é o seu corpo, que é o res-
ponsável pela sua própria autonomia e é, portanto, quem dita as suas próprias leis.
O corpo é a nossa identidade. Por ser um conceito evasivo, a identidade nos é revelada
hoje como algo a ser inventado, e não descoberto como resultado de um esforço, pois é
eternamente inacabada. É por isso que a autocriação de si mesmo é a única saída possível
ao aparente caos reinante. É por isso que o corpo está sempre se reinventando.
Não podemos lidar conosco da mesma forma como com as máquinas, pois, se nossa
ontogenia assinala mudanças estruturais advindas das variações reprodutivas, devemos nos
considerar então, como organismos sempre passíveis de diversidade e transformações. Mas,
ao mesmo tempo, lembremos que nascemos em um dado local que também possui a sua
própria estrutura e dinâmica. Por isso, sempre estaremos passíveis de influências diversas
não só oriundas dos elementos estruturais que nos compõe, mas também das procedentes
das interações que estabelecemos e que sustentam a unidade autopoiética na vida.
Para Kehl é estreita a relação da palavra, do corpo e do Outro. O corpo é efeito dos
discursos. Observo, porém, que o corpo é o discurso, é o símbolo, é a causa e é o efeito,
pois, penso/sinto o corpo sem distância entre o que é e o que produz. O corpo-sujeito está
sempre se reinventando em infinitas criações.
O Outro, aqui tem relevância quanto ao estímulo constante fornecido em transmissões
de dados ocorridas nas relações, o que sempre ocasiona mudanças e transformações, mas,
é o corpo, enquanto unidade autopoiética, ou seja, capaz de autoproduzir a si mesmo, o
responsável por sua capacidade de existir e pulsar.
Sendo o mundo experiencial de cada ser a referência particular mais próxima do fazer/
conhecer, é importante a ponderação sobre os aspectos da vida pessoal e as relações a
esta imbricada para se sair tanto do ofuscamento habitual que tende a nos cercar, quanto
da propagação da herança ocidental separatista, onde a vida se centra mais na ação que
na reflexão sobre a sensação, dificultando desse modo o nosso processo de autonomia.
Atualmente, a mulher torna-se cada vez mais o seu feminino. Significa que, para além
das designações, atributos e funções corporais, o feminino na mulher, (entendendo-se o
termo mulher a partir das atualizações sobre as construções de gênero/sexualidade/identida-
de que atravessam as vicissitudes de uma espécie de autonomia da identidade psicológica

3 Autopoiese é um termo que deriva do grego auto, próprio e poiesis, criação, e que deu origem a um conceito cunhado na década de
70, pelos biólogos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana para designar a capacidade que seres vivos têm de produzirem a

52
si próprios. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Autopoiese>. Acesso em: 15 jul. 2011.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


em relação à anatomia fisiológica) é uma manifestação de sinergias, sonhos, prospecções,
afecções e vontade de ser/estar /realizar-se/desconstruir-se.
O corpo da mulher é somente então, símbolo da transitoriedade dos paradigmas con-
temporâneos onde às pulsões encerradas precisam ser compreendidas de forma criativa,
para que ao invés de uma atitude passiva e degenerativa, as mulheres possam escolher
uma atitude criativa e tomar posse de sua autonomia. Entre esses opostos é o afeto que
vai facilitar a convergência das memórias ocultas, por seu aspecto conciliatório essencial.
O corpo, portanto, como encarnação do que se É, não pode ser rascunho. Assim,
não adianta promovê-lo como rastro de uma ontologia em desuso, ao menos, não antes de
conseguirmos nos despedir do sabor da vida. Concordo com Le Breton: É o corpo que nos
permite saborear o mundo.
Diante destas reflexões, acredito que de fato na contemporaneidade, o corpo é a única
riqueza acessível!

O CORPO DE QUE TEMOS CONSCIÊNCIA

É importante que, primeiro, chame a atenção para as ideias e conceitos que temos em
geral sobre o corpo que está sob o domínio da consciência humana.
Em minha experiência profissional, venho constatando o quão distante as pessoas
estão de si mesmas enquanto não se dedicam a observar o que lhes acontece, e o quão
difícil se torna a compreender o significado dos acontecimentos da vida e, portanto, expres-
sá-los de forma singular, quando não se desenvolveu a consciência corporal necessária à
expressão pessoal.
Percebo que quanto mais o ser humano se observa e tem a percepção de suas ne-
cessidades e tendências, mais tem enriquecido o seu vocabulário corporal, intelectual e
também afetivo. Em minhas pesquisas para estudos do corpo, as pessoas que vi passando,
parando, falando, gesticulando parecem esconder de fato quem são, ou seja, os movimentos
de seus corpos pareciam carecer de ânimo, de verdade, de força vital, de sentido e, por-
tanto, de originalidade, como se de algum lugar em cada pessoa um “grande olho” vigiasse
constantemente os atos, as palavras e os pensamentos, ditando o que lhes parecesse ser
conveniente e seguro, impelindo-as a não arriscar algo que lhes faltasse à compreensão,
algo diferente do usual.
Diante desta constatação, então, quem ousaria ser/fazer diferente?! As pessoas se
mostraram iguais demais.... Qual a real consciência que temos do corpo? O que vem a ser
o corpo para os domínios da consciência? Parece que a ideia que temos de corpo está
diretamente ligada à sua funcionalidade, aos seus mecanismos e o quanto estes podem
ou não nos favorecer, no que concerne ao cumprimento dos objetivos que se lhe impõem
53
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
culturalmente. O corpo, esta “entidade silenciada”, é um hospedeiro cada dia mais sacri-
ficado e ignorado, mesmo em momentos de grande prazer, nos quais ainda assim o foco
costuma ser sua produção em detrimento de suas sensações. Ocorre que essa condição
induz a cada vez mais evidente dissociação humana, deixando escoar o direito de exercício
à plenitude da vida, pois o corpo não é um vetor de necessidades. O corpo que se percebe
é frequentemente o corpo que se usa, e só!
Os conflitos pessoais são bons indicativos de que há muito que se descobrir além da
forma corporal, além do significado do que a materia-corpo assumiu na existência. O sentido
real de cada expressão no mundo começa invariavelmente em sua forma, em seu corpo, em
sua encarnação. A partir dessa compreensão é possível que cada ser humano se aproxime
de seus próprios mistérios. Perdoamos com a mente, perdoamos com o coração, mas o corpo
é frequentemente o último que perdoa, pois, a sua memória abarca tudo o que somos, tudo
o que revelamos e o que não revelamos e desconhecemos: o nosso inconsciente. O corpo
é principalmente a expressão do nosso universo desconhecido. O corpo é um oráculo. Ele
sabe tudo. E nós precisamos saber dele.

O QUE ESTÁ PARA ALÉM DA CONSCIÊNCIA DO CORPO

Jean Yves Leloup (ARCURI, 2006, p. 23), sustenta que “a construção do corpo come-
ça com a concepção e com os fatos ocorridos em nossas vidas ou ao nosso redor”. Reich
afirmava que “o corpo é o inconsciente visível”, enquanto Jung (ARCURI, 2006, p. 22), que
“o inconsciente só pode ser experimentado no corpo”. Se a consciência norteia o corpo,
onde se encerra o que está além dela?
Para Arcuri (2006, p. 15), muitas vezes não percebemos os sinais que o corpo emana,
pois eles nos são inconscientes, mas “mesmo não sendo muito percebidas, essas marcas
do corpo são importantes, ” porque “continuam a influenciar o nosso comportamento, sendo
recorrentes. ” Muitas vezes as doenças podem ter o significado de mostrar aquilo que nos faz
falta, uma vez que por meio dos sintomas mostramos aquilo que nos era oculto: “a sombra”
que se manifesta com a doença.
Zweig e Jeremiah (1991, ps. 27, 28) esclarecem que o conceito de sombra deriva das
descobertas feitas por Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, a qual significa aquela parte da
psique inconsciente que está mais próxima da consciência, mesmo que não seja comple-
tamente aceita por ela. Se considerarmos a sombra como o lado obscuro da psique, o não
revelado, o não vivido, o reprimido, o desconhecido, e o corpo como expressão material
desta, poderemos compreender, então, que aprendendo a “ler” os sinais emitidos pelo corpo,
teremos acesso ao registro do que não ousamos revelar.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Para John Conger (ZWEIG, JEREMIAH, 1991), o corpo é a sombra na medida em que
ele contém “a história trágica das mil maneiras como estancamos e reprimimos o fluxo es-
pontâneo da energia vital até que o nosso corpo se transforma num objeto morto”. O corpo
que se oculta sob as roupas, muitas vezes, expressa de modo flagrante aquilo que cons-
cientemente negamos. A sombra se aloja nos músculos, tecidos, no fluxo do sangue, nos
ossos e se manifesta também nas funções corporais.
Para Reich (ZWEIG, JEREMIAH, 1991), o corpo como sombra representa o corpo como
couraça e expressa aquilo que é reprimido pelo ego. No estado encouraçado, portanto, o
ser humano se divide: a mente se separa do corpo, o corpo das emoções, as emoções do
espírito. Como a sombra não pode ser totalmente dissolvida, uma vez que é parte integrante
de nossa psique, torna-se necessário acolhê-la como a um amigo que nos diz o que nos falta.
Desse modo, desenvolvem-se as diferentes escutas do corpo humano e aprende-se a como
integrá-las, de forma que a consciência ampliada revele as novas qualidades e habilidades
assimiladas. Assim, abre-se espaço para que a energia vital flua sem obstáculos. O que
está além da consciência, o inconsciente desconhecido, portanto, também integra o corpo,
dando-lhe forma e voz, interagindo concomitantemente com o que abrange a consciência.
Como, então, proceder para que o corpo interaja com o desconhecido inconsciente?
Talvez o primeiro passo seja desacelerar o ritmo de vida, para que se possam escutar as men-
sagens do corpo. O segundo passo? Buscar ajuda por meio de um processo de autoconheci-
mento (por exemplo, os métodos terapêuticos), o qual oferece canais para renovação, onde
a sombra pode ser percebida, assimilada e minimizada quanto a seus potenciais destrutivos
e inibidores, liberando assim, a energia vital positiva que está aprisionada e desconhecida.
Pode-se buscá-la também por intermédio da Arte, cujas características básicas incluem
o desvelar da escuridão humana. Em relação à arte, Ernest Fischer (1987, p.12,13), define
com precisão que uma das funções da mesma é revelar para o homem que “anseia por uma
plenitude que sente e tenta alcançar, e que lhe é fraudada pela individualidade e todas as
suas limitações (...) uma plenitude na direção da qual se orienta quando busca um mundo
mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha significação (...)”. Nesse contexto,
“a arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo com o todo; reflete a infinita
capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e ideias”.
Todo processo de autoconhecimento amplia de forma significativa o entendimento de
como ocorre a relação do corpo com o inconsciente. Para tanto, é necessário ter em vista os
conceitos básicos do que seja inconsciente. A seguir, cito a visão de Carl Gustav Jung, que
desde o século XIX continua influente para o pensamento humano, sobretudo o moderno,
especialmente no que se refere aos estudos da psique (“a totalidade de todos os processos
psíquicos, conscientes como também inconscientes. ” CW 6, pr. 797),
55
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Para Jung, o inconsciente contém não apenas o material reprimido, mas todo o material
psíquico que subjaz no limiar da consciência. Jung afirma que o inconsciente jamais está
em repouso, e que sua ação é coordenada com a consciência numa relação compensado-
ra. O inconsciente é dirigido por tendências instintivas, representadas por formas de pensa-
mento correspondentes, os arquétipos. Estes são dotados de iniciativa própria e também de
uma energia específica. Sua opinião é de que o inconsciente é, primária ou potencialmente,
criativo, funcionando a serviço do indivíduo e da espécie.
Jung sustenta, ainda, que a arte é a expressão mais pura do inconsciente de cada
um. É a liberdade de expressão, a sensibilidade, a criatividade, é a vida. Na ocasião, ele
sugeriu à psiquiatria que estudasse os mitos (Segundo Jung são histórias de encontros
arquetípicos. São expressões simbólicas de dramas internos, inconscientes, que revelam a
natureza da psique), pois, estes apareciam com frequência nos desenhos de seus pacien-
tes. A explicação, segundo a psicologia junguiana, é o que se chama de inconsciente cole-
tivo, para Jung, um reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens
primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. Os arquétipos (a forma imaterial
à qual os fenômenos psíquicos tendem a se moldar) míticos são universais, envolvem a
realidade do homem, e é por onde fluem as imagens do mundo esquizofrênico quando o
ego se desmancha.
Essas noções básicas sobre inconsciente são importantes para que se entenda a re-
lação do corpo com o mesmo e como se estabelece a interação entre ambos. Para interagir
com o inconsciente, de um modo geral, é necessário adotar algum tipo de procedimento que
oriente e que estabeleça um sentido de ordem a uma série de etapas a serem seguidas e
que permita às pessoas superar os obstáculos, as confusões e as indecisões que algumas
vezes as impedem de começar ou seguir adiante.
Nesse contexto, ressalto a “Imaginação Ativa” (IA), uma técnica reinventada por Jung,
que a trouxe de volta dos alquimistas. Consiste em uma interação com os conteúdos do
inconsciente por meio de sua personificação. Diferencia-se de uma interpretação dos con-
teúdos do inconsciente na medida em que não envolve uma explanação de suas figuras,
mas de um relacionamento com elas. Dessa forma, não compreenderíamos o inconsciente
a partir de um ponto de vista intelectual, mas a partir do sentimento, de um embate, de um
confronto com os problemas que se nos deparam a partir de dentro.
Segundo Jung, a IA é a melhor maneira de se ativar a função transcendente, uma es-
pécie de colaboração entre fatores conscientes e inconscientes, um encontro e uma grande
interação com a totalidade da psique (Self ou Si-mesmo) e tudo o que ela representa.
Jung propõe a imaginação ativa como uma maneira dialética particular de lidar com
o inconsciente. Esta técnica consiste em quatro fases: libertar-se do fluxo de pensamento
56
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
do ego, ou seja, esvaziar a mente; deixar que uma imagem de fantasia do inconsciente flua
para o campo da percepção interior; conferir uma forma à imagem relatando-a por escrito,
pintando-a, esculpindo-a, escrevendo-a como uma música ou dançando-a; confrontar-se
moralmente com o material produzido/imaginado, ou seja, integrar a imaginação na vida
diária. (FRANZ, 1999).
Durante a imaginação ativa não existe uma meta que obrigatoriamente tenha que ser
atingida, nenhum modelo, nenhuma imagem ou texto a ser usado, nenhuma postura ou
controle da respiração são recomendados. A pessoa simplesmente começa com o que vem
de dentro dela, com uma situação de sonho relativamente inconclusiva ou uma momentâ-
nea modificação do estado de espírito. Se surge um obstáculo, a pessoa que medita é livre
para considerá-lo ou não como tal; é ela que resolve como deve ou não reagir diante dele
(FRANZ, 1999, p. 179).
Deve-se contrastar uma IA com o devaneio, que é mais ou menos parte da própria
intervenção do indivíduo e se mantém na superfície da experiência pessoal e cotidiana. A ima-
ginação ativa é o oposto de invenção consciente. Mas, para Jung, esse processo poderá
ser ineficaz caso a pessoa permaneça presa no círculo de seus próprios complexos ou fique
iludida com o aparecimento das fantasias e ignore o confronto com o material existente.
Vale ressaltar que qualquer que seja o método escolhido para representar a imaginação
ou registrá-la - tais como a dança, a pintura - ainda é bom que se escreva alguma coisa.
Escrever sempre ajuda a concentrar e tornar consciente.
A imaginação ativa é, certamente, um dos vários métodos ao qual se pode atingir com
eficiência a interação do corpo com os conteúdos do inconsciente, desde que sejam con-
templadas cuidadosamente suas quatro fases. O mais interessante é que para o artista, em
especial o cênico, a IA mostra-se fonte inesgotável de pesquisa e de instrumentalização no
que tange ao acesso ao mundo imaginário, este, sem dúvida, grande fomentador da arte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A arte deu muitos passos importantes dentro dos domínios da consciência. Muitas são
as fronteiras conquistadas e novas áreas do conhecimento abrem-se à nova visão decor-
rente, principalmente, do desenvolvimento de novas técnicas e ao entendimento de como
as ciências cognitivas podem de fato interagir com as artes. Porém, o conhecimento e as
informações advindas do universo simbólico e imaginário do ser humano, portanto, para
além dos domínios da consciência, podem contribuir com novas e positivas descobertas,
a partir da elaboração dos conteúdos internos e de um maior conhecimento de si mesmo.

57
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
É de interesse da arte, enquanto área de conhecimento, compreender a criação artística
advinda do território do inconsciente. Assim, estes novos e integrados caminhos também
apontarão para a evolução e o crescimento humano.
O método de improvisação, por exemplo, em quaisquer das linguagens artísticas se
beneficia muito com os processos criativos que permitam interação direta com o mundo
inconsciente, portanto, entendo a improvisação justamente como o momento de adquirir
experiências corporais, que facilitem o reconhecimento das potencialidades individuais e a
aquisição de vocabulário corporal, pois, é na improvisação que se pode constatar o que foi
apreendido e essencialmente incorporado ou enriquecido por novas explorações.
Fundamental, em meu ponto de vista que, quanto mais sensibilizado um corpo está
maior sua disponibilidade e potência para entrar em contato com a sua estrutura, seja ela
consciente ou não, e, portanto, maiores serão as possibilidades de criação artística. Acredito,
por fim, que uma das maneiras mais íntegras de compreender a si mesmo, seja entrar em
contato com o que dá forma ao conteúdo e ao não conteúdo, com o que dá forma ao cons-
ciente e ao inconsciente: o corpo!

REFERÊNCIAS
1. ARCURI, IRENE GAETA (2006) Arteterapia e o Corpo Secreto. São Paulo. Vetor.

2. BAUMAM, Z. Identidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2005.

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2011. Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança/ Escola de Teatro, Universidade Federal da
Bahia, Salvador, 2011.

5. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: Condição Feminina, Maternidades e Mentalidades no


Brasil Colônia. São Paulo: UNESP, 2009.

6. DETHLEFSEN, T. & DAHLKE R. (1983) A Doença como Caminho. São Paulo. Cultrix.

7. FISCHER, ERNEST. A Necessidade da Arte. Rio de janeiro: Guanabara, 1987.

8. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de
Janeiro: Vozes, 2009. Cap. 1, p. 09-33.

9. JUNG, C. G. (2006) O Eu e o Inconsciente. Petrópolis. Editora Vozes.

10. HARDING, Mary Esther. Os mistérios da mulher antiga e contemporânea: uma interpretação
psicológica do princípio feminino, tal como é retratado nos mitos, na história e nos sonhos.
Trad. Maria Elci Spaccaquerche Barbosa e Vilma Hissako Tanaka. São Paulo: Paulus, 1985.

11. GOLDENBERG, M.. O Corpo como Capital: para compreender a cultura Brasileira. Arq. Mov.,
v.2, n. 2, p. 1145-23, 2006.
58
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
12. KEHL, Maria Rita. As máquinas falantes. In: NOVAES, Adauto (Org.). O homem máquina: a
ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 243-259.

13. LE BRETON, David. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.

14. LELOUP, JEAN-YVES. O Corpo e Seus Símbolos: Uma Antropologia Essencial. Petrópolis,
Rio de Janeiro: Vozes. 1988.

15. MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A Árvore do Conhecimento: as bases


biológicas da compreensão humana. Trad. Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas
Athena, 2010.

16. MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

17. STEIN, M. (1998) Jung – O Mapa da Alma. São Paulo. Cultrix.

59
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
04
Aladdin e Jasmine: representações
para quem?

Ana Carolina Rocha Lisita


PPGA – IdA / Vis – UnB

Patrícia Quitero Rosenzweig


PPGACV-UFG

Rosa Maria Berardo


PPGACV-UFG

10.37885/210304044
RESUMO

O presente artigo, propõe analisar as visualidades, por meio da perspectiva da Cultura


Visual, do filme do Aladdin (1992), gerido pela franquia Princesas da Disney, da Walt
Disney Pictures. A marca, criada em 2000, é composta por uma series de filmes e pro-
dutos (bonecas, roupas, artigos escolares, fantasias, alimentos) voltados predominan-
temente ao público infantil, principalmente o feminino, que influenciam da perpetuação
das representações estereotipadas do feminino e até mesmo do masculino na sociedade
ocidental. Utiliza como metodologia, o conceito da interseccionalidade para traçar as
analises das representações dos personagens presentes no filme, além ressaltar como
a Disney, apesar de ter compreendido que os tempos mudaram, continuam com seus
princípios excludentes e com um olhar familiarista e colonizador sobre tudo aquilo que
foge do padrão euromericano.

P a l a v r a s - c h a v e : P r i n c e s a s D i s n e y, C u l t u r a V i s u a l , I n t e r s e c c i o n a l i d a d e ,
Representação de Gênero.

61
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
ENDEREÇADO A QUEM?

Segundo uma pesquisa realizada em 2016 por um grupo de psicólogas/psicólogos1 coor-


denados pela professora Sarah Coyne da Brigham Young University, dos Estados Unidos da
América do Norte, intitulada de “Bonita como uma princesa: efeitos longitudinais do envolvi-
mento com princesas da Disney em estereótipos de gênero, estima corporal”2 (tradução nos-
sa), buscaram desvendar os efeitos das Princesas da Disney na construção dos estereótipos
de gênero, através dos filmes e brinquedos, com crianças do jardim de infância. A pesquisa
foi realizada em três etapas com docentes, mães e pais das próprias crianças. Ao total foram
estudadas 198 crianças de ambos os sexos. Através desta pesquisa foi possível analisar o
quanto as produções das Princesas da Disney preservam em sua cultura os estereótipos
feminino e masculino, binário, machistas, heteronormativo. Segundo a autora e o grupo de
pesquisadoras/es, esses filmes podem “influenciar nos estereótipos de gênero e contribuir
para uma cultura de uma ‘menina feminina’ em que o comportamento de gênero é comum
e altamente valorizada”3 (COYNE, 2016, p.13 apud DINELLA 2013) tradução nossa.
Ao trabalharmos com filmes é importante pensarmos que esses (filmes) se dão como
uma grande ferramenta de condutas e os espectadores são como portadores de tal ferra-
menta, utilizando-as em seu cotidiano como um mecanismo para reproduzir determinadas
histórias e sua evolução ou para contribuir com o retrocesso de outras como a representação
da mulher dentro de seus enredos. Duarte (2006, p. 17), pontua que o ato de se “ver filmes
é uma prática social tão importante do ponto de vista da formação cultural e educacional
das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais”.
Lembrando que os filmes são produções não fixas a um tempo cronológico e perpassam
além de seu público especifico original e acabam alcançando várias gerações posteriores.
Com base no conceito de ‘modos de endereçamento’ proposto por Elizabeth Ellsworth (2001),
que enfatiza tanto os filmes como publicidades, jornais, telenovelas e etc., são produzidos por
“alguém”, para “alguém” que imaginam que gostaria dele. Ou seja os produtores da Disney,
criam novas narrativas de princesas relacionadas a um novo público infanto-juvenil, que es-
tão interessadas por histórias que não se fixam em um felizes para sempre com príncipes e
cavalos brancos, mas sim por aventuras, descobertas e autonomia destas princesas. Sendo
assim é possível analisar qual seria o poder de influência e controle que tem os enredos dos
filmes sobre suas espectadoras/es, relacionando-os com sua experiência de vida. O modo

1 Como ato politico, utilizo sempre que a palavra possuir os dois gêneros gramaticais, o gênero gramatical feminino em primeira ordem
e o masculino em segundo lugar.
2 Pretty as a princess: longitudinal effects of engagement with Disney princesses on gender stereotypes, body esteem.
3 It also supports research showing that engagement with the Disney Princess culture can influence gender stereotypes and may con-

62
tribute to a “girly girl” culture in which gendered behavior is common and highly valued.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


como o filme é vivenciado varia conforme quem o assiste, portanto, a relação dos filmes com
o público tem um forte elo tanto com as relações sociais, quanto com a pedagogia, em que
desaguam tanto no corpo, coração, cérebro do espectador, dando uma nova compreensão
do “eu” e do mundo do “outro”.
A teórica Ruth Sabat (2001) argumenta sobre o poder que os filmes, com enfoque nos de
animações, possuem, especificamente a maneira em que estabelecem uma verossimilhança
com as reproduções da realidade, conseguindo superar a literatura escrita e até mesmo a
história contada. Assim sendo, as animações dispõem de uma configuração de espaços de
construção de identidades de gênero. Elas reproduzem narrativas nas quais as diferenças
atribuídas ao gênero se apresentam baseadas em um discurso patriarcal: os homens são
naturalmente fortes, viris, poderosos e racionais; enquanto as mulheres aparecem como
calmas, gentis, fracas e submissas aos homens.
Trazendo essa compreensão dos modos de endereçamento aos filmes da marca
Princesa da Disney, esse artigo enfoca o filme Aladdin (1992), que, assim como os demais
filmes da marca, desempenham um papel fundamental na produção de cultura, servindo
como ‘máquinas de ensino’. Henry Giroux (1995, 2001) enfatiza que os filmes da Disney
parecem inspirar a autoridade e a legitimidade cultural para ensinar papeis, valores e ideias
específicos, tanto quanto o fazem os locais mais tradicionais de ensino, como nas escolas
públicas, nas instituições religiosas e dentro do seio familiar. Observando que estes filmes
desenvolvem uma função além da diversão e lazer, temos então que nós questionar o que
existe por de trás deles, pois tais filmes atraem a atenção e esculpem os valores das crian-
ças que os veem e os compram, portanto a Disney não ignora as histórias que conta e nem
apenas as conta a fim de proporcionar diversão e entretenimento, “ela reinventa como um
instrumento pedagógico e político para assegurar seus próprios interesses, sua autoridade
e poder”. (GIROUX, 1995, p.137).

ALADDIN É ÁRABE, SEGUNDO QUEM?

O filme ‘Aladdin’ (1992), foi inspirado e adaptado do conto árabe ‘Aladim e a Lâmpada
Maravilhosa’, do clássico da literatura, o livro ‘As mil e uma noites’. A visão geral do filme é
a vida de um jovem rapaz morador de rua chamado Aladdin, que tem como seu amigo e fiel
escudeiro o macaco Abu. Ele vai para prisão por roubar comida para se alimentar. No meio
do caminho ele conhece a Princesa Jasmine, que foge do castelo após ser intimada pelo
Sultão a se casar com o pretendente que ele escolhesse. Na prisão, ele conhece Jafar, seu
antagonista, que surge disfarçado com o propósito de incentivá-lo a ajudá-lo a encontrar uma
lâmpada mágica em uma caverna mágica, e como recompensa. Aladdin poderia ficar com
diversas joias que ali havia, entretanto, Jafar tenta deixá-lo à morte quando pega a lâmpada,
63
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
porém com a ajuda de Abu, Aladdin consegue ficar com a lâmpada mágica, transformando,
radicalmente, sua vida.
Nas cenas iniciais do longa-metragem a música de abertura Arabian Nights, Giroux
(2001) afirma que, inicialmente, continhas as cenas “onde cortam fora sua orelha/ se não
forem com a sua cara. É bárbaro, mas, ei! É o nosso lar”, após várias manifestações e
protestos, a Disney alterou o trecho para, “onde ele é plano e imenso/ e o calor é intenso”,
mas mantiveram “é bárbaro, mas ei! e o nosso lar”.

Nessa caracterização, uma política de identidade e lugar associada com a


cultura árabe acentua o estereótipo popular já preparado pela mídia por meio
da sua retratação da guerra do golfo. Tais representações racistas são além
disso reproduzidas num bando de personagens coadjuvantes que foram rela-
tados como grotescos, violentos e cruéis. (GIROUX, 2001, p.100)

Logo nas primeiras cenas que Aladdin surge em cena podemos entender quais são
os anseios e quem ele realmente é. Ele nos é apresentado como um morador de rua que
possui um enorme coração, mostrando-se um jovem altruísta, generoso e preocupado tam-
bém com os menos afortunados tanto ou menos que ele e Abu. Trazendo logo em seguida
seu contraponto, o Príncipe Ahmed, ressaltando ainda mais a generosidade e altruísmo
do protagonista. Ahmed é apresentado como um monarca, arrogante, prepotente, egoísta,
se mostra nada solidário com os demais, principalmente com aqueles que estão em uma
posição de subalternização à sua classe social. Ele surge como um dos pretendentes da
princesa Jasmine.
Aladdin, apesar de ser uma pessoa generosa, não é dotado do espírito Franciscano4.
Ele não deixa de lado sua grande ambição de mudar de vida, sem prejudicar o próximo como
seu antagonista Jafar. Da mesma forma, sonha em sair da condição de “rato de rua” - como
os guardas o chamam - e se tornar um homem rico que mora no palácio para se ver livre de
seus problemas. Ou seja, ele deseja se tornar um Príncipe. No final das contas Aladdin não
passa de um jovem ambicioso que utiliza Jasmine como seu “trampolim para a mobilidade
social” (GIROUX, 2001, p.101)
Jasmine é uma princesa que tenta romper com algumas normas exigidas às mulheres
na sociedade Árabe. O exemplo mais claro disso é a briga com seu pai sobre a obrigatorie-
dade de se casar precocemente e, ainda mais, com alguém que não ama. Na cena, em que
surge ela e o sultão, logo no começo do filme, quando estão conversando, ela deixa bem
claro para seu pai que vai continuar recusando os pretendentes até que encontre alguém
por quem se apaixone. O notável dessa cena ocorre quando ela confronta seu pai próximo

4 Espírito franciscano é uma expressão popular que remete ao santo São Francisco que abdicou tudo que tinha para ajudar os mais

64
necessitados.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


à casa dos passarinhos dizendo que ‘a lei está errada’. Ela abre a gaiola deixando-os livres,
passando ao espectador a mensagem de que ela também deseja ser livre. Jasmine não
quer se sentir obrigada a se casar com qualquer príncipe que aparecesse por conta de uma
lei – feita por homens para o interesse dos homens.
O Sultão discorda da postura de Jasmine e aponta a importância dela se casar, toman-
do de sua mão um dos passarinhos, colocando-o de volta na gaiola. Essa cena é bastante
simbólica, pois ele nega a ela a liberdade. Na fala “– não vou durar para sempre. Eu queria
alguém para cuidar de você”, novamente, ele insinua que ela não é capaz de se cuidar
sozinha e que precisa de um homem para que, então, ele sinta que ela estará segura e
resguardada, como os pássaros dentro da gaiola.
A Princesa é dotada de uma incrível sensualidade e inteligência. Prova disso, seu me-
lhor amigo, o Rajah, é um tigre imponente, e não um animal indefeso como um ‘veadinho ou
mesmo um passarinho’. Ela é uma princesa que representa uma mulher da alta sociedade
do mundo árabe. Entretanto é possível perceber, desde o começo na estereotipação do
mundo árabe no filme, que Jasmine sofre com o mal da cultura eurocêntrica de rotular tudo
aquilo que está fora de padrão euramericano como exótico e um exótico cheio de estereó-
tipos e preconceitos.
Assim, o filme de Aladdin é dotado de vários estereótipos da cultura árabe, ou seja,
na sua produção há a presença do olhar colonizador euromericano. Os personagens maus
possuem características diferentes, como por exemplo, barbas, turbantes e um sotaque árabe
forte. Já os protagonistas, Aladdin e Jasmine (Figura 1), além de falarem sem sotaque, pos-
suem visualmente, tons de pele mais embranquecidos e seus traços físicos se aproximam
da raça ariana, principalmente aos dos norte-americanas/americanos.

Figura 1. Fonte: Walt Disney Pictures. Editada pela autora, 2018

Somos posicionados e nos posicionamos de acordo com o campo social nos quais
estamos atuando. Compreendendo os papeis de representações das personagens do filme
Aladdin (1992) aproximando ao conceito de representação de Woodward (2012) percebe-
-se claramente os campos sociais e os diferenciados graus de autonomia e escolha. Afinal
65
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
em cada momento da vida há: um texto, um contexto material e um conjunto de sistemas
simbólicos a ser alçado por nós. Indo além a autora afirma que “os discursos e os sistemas
de representação constroem os lugares a partir dos quais podem falar” (Idem, 2012, p.17),
partindo da ideia de que “[só] podemos compreender os significados envolvidos nesses
sistemas se tivermos alguma ideia sobre quais posições-de-sujeito eles produzem e como
nós, como sujeitos, podemos nos posicionar em seu interior” (Idem, 2012, p.17).
Portanto, tanto para Giroux (1995,2001) como para Kevin Tavin e David Anderson
(2010), os filmes da Disney ajudam a propagar ideais estereotipadas, não apenas de gênero,
mas também culturais étnicas, religiosas, raciais e de classe. O personagem Aladdin sofre
um ‘branqueamento cultural’ que exacerba a questão do tom de sua pele. Está no modo de
agir, nos traços faciais, na ausência de barba (culturalmente essencial) e domina a língua
inglesa, diferente de outros personagens, como os soldados de Jafar, que possuem falas
carregadas com sotaque árabe. Nessa caracterização, uma política de identidade e lugar
associada com a cultura árabe acentua o estereótipo popular já preparado, midiaticamente,
por meio da retratação da Guerra do Golfo. Tais representações racistas são além disso
reproduzidas em vários personagens coadjuvantes (Figura 2), que foram relatados como
grotescos, violentos e cruéis. Outra coisa que em relação “a má pronuncia dos nomes ára-
bes, a condição racial dos sotaques e ouso de rabiscos sem sentido como substitutos para
uma efetiva escrita da língua árabe.” (GIROUX, 2001, p.100)

Figura 2. Fonte: Walt Disney Pictures. Editada pela autora, 2018.

Está previsto para 2019 o lançamento do filme Aladdin, no formato Live-action5, dentro
do grupo dos personagens principais do enredo de Aladdin, contamos com os seguintes ato-
res. Will Smith será o Gênio; Mena Massoud será Aladdin; Marwan Kenzari será Jafar; Navid
Negahban será Sultão, e a atriz Naomi Scott será Jasmine. É interessante notar que apesar
5  A expressão é usada para definir adaptações de desenhos e animações para filmes e seriados com atores reais. Disponível em:

66
<http://icbeusjc.com.br/site/2017/09/19/voce-sabe-o-que-e-live-action/ > Acesso em: 18 jun. 2018.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


de Mena Massound ter nascido no Egito, foi criado no Canadá, assim como ocorre com a
atriz Nasim Pedrad, que irá nesta versão ser Dalia a confidente da princesa Jasmine, os
produtores nesta versão criaram outra personagem feminina, uma coadjuvante, a atriz que
apesar de ter nascido em Teerã -Irã, se mudou para os Estados Unidos da América do Norte
aos 3 anos de idade. Naomi Scott é uma atriz britânica, Marwan Kenzari um ator da Holanda,
também europeu, temos Will Smith que é norte-americano, e Navid Negahban que é ator
iraniano do cast principal que começou a carreira realmente em seu país para depois chegar
aos holofotes de Hollywood. Apesar de todo cast principal, possuir traços que remetem a
uma população proveniente do oriente médio, eles comprem com a ideia de Giroux (2001)
de que a máquina de empresários que compõem a Disney, atribui as formas estereotipadas
e racistas, no caso de Aladdin, do povo Árabe, reforçando o olhar do colonizador sobre o
colonizado, e endereçando o filme para um publico ocidental.
O filme ‘Aladdin’ (1992) foi criado década de 1990, um período de grandes mudanças
estruturais, sociais e políticas, com relação aos direitos das mulheres no mundo. Nesse
período, ocorreram duas grandes conferências internacionais que foram cruciais para uma
série de desdobramentos acerca dos direitos das mulheres pelo mundo, que foram também
responsáveis pelo uso do conceito de gênero empregado em um documento intergover-
namental e consolidou o uso da terminologia “empoderamento feminino”6. A Conferência
Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) realizada em setembro de 1994,
na cidade do Cairo, que reuniu 179 países, foi um dos acontecimentos mais emblemáticos
na luta pelos direitos das mulheres e na consolidação do uso do termo/conceito de “gênero”
no viés social, sendo ele o primeiro encontro global que propunha debater de forma abran-
gente todos os aspectos da vida humano.
A IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, tendo como tema central ‘Ação
para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz’, reuniu 189 governos na cidade de Beijing
(Pequim), em setembro de 1995. Ela trouxe para o debate os obstáculos existentes a serem
superados das mulheres, em que possam realizar plenamente seus direitos, alcançando,
portanto, seu desenvolvimento integral como pessoa. Segundo Donna Haraway (1995), quem
introduziu o termo gênero, foi um psicanalista norte americano Robert Stroller, em 1963,
em um Congresso Psicanalítico Internacional que ocorreu em Estocolmo. Stroller elaborou
o conceito de identidade de gênero para diferenciar natureza de cultura, dessa forma, sexo
está relacionado a biologia (hormônios, genes, sistema nervoso e morfologia), já gênero é
voltado a cultura (psicologia, sociologia, aprendizado). Adriana Piscitelli (2009) argumenta
com base no conceito de Stroller, que

6 Segundo Sônia Corrêa (2009, p.181): “empoderamento representa uma maneira inovadora de enfrentar as desigualdades de gênero
existentes tanto na esfera pública quanto na privada e tem a ver não só́ com a ampliação das capacidades individuais, mas também

67
com acesso às fontes de poder.”

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Ao nascermos, somos classificados pelo nosso corpo, de acordo com os ór-
gãos genitais, como menina ou menino. Mas as madeiras de ser homem
ou ser mulher não deviam desses genitais, mas de aprendizados que são
culturais, que variam segundo o momento histórico, o lugar, a classe social.
(PISCITELLI, 2009, p.124)

Esses movimentos proporcionaram a multiplicação de um feminismo popular que par-


tia de várias modalidades de organizações e identidades feministas, tendo como principal
bandeira a luta contra violência praticada à mulher, tanto física ou psicológica, o que gerou
uma grande repercussão na dissolução das barreiras e resistências ideológicas feministas
entre as mulheres. Essa nova forma de se pensar o movimento feminista nasceu com o
intuito de sair da zona dos problemas envolvendo apenas as mulheres brancas de classe
média alta, e foca nas mulheres que ficaram à margem dessa luta.
E essa nova onda7 possibilitou trazer autonomia, o poder de fala, a representatividade
das mulheres de etnias, culturas, classes sociais, orientação sexual, que eram silenciadas
nos movimentos feministas passados. Diferentemente do que propunha as feministas da
segunda onda, que visavam os direitos para AS MULHERES voltados ao mercado de tra-
balho, sexualidade, desigualdades legais, família, que acabava homogeneizando o termo
Mulher e se esquecendo que já haviam mulheres que já estavam inseridas há muito tempo
no mercado de trabalho, possuindo então pautas excludentes às demais mulheres que não
faziam parte de um nicho específico sociocultural.
Pensando nisso, se uma pessoa se define como mulher, isso certamente não é tudo o
que essa pessoa é (…) o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas,
étnicas, sexuais e regionais de identidades, discursivamente constituídas (...) e se tornou
impossível separar as noções de gênero, das interseções políticas e culturais que invaria-
velmente ela é produzida e mantida (BUTLER, 2003, p.20). Indo além e compreendendo o
percurso que esses estudos, ativismos relacionados às questões de gênero, sexualidade
geraram nesses últimos 25 anos, Carla Abreu (2010, p.8) questiona:

7 Para muitas/os pesquisadoras/es, ativistas, o termo onda nos estudos feministas surge como uma a divisão feita meramente para fins
didáticos. A primeira onda se localizar temporalmente do fim do século XIX até meados do século XX, é caracterizada pelos movimen-
tos de mulheres que exigiam os direitos já conquistados pelos homens, como o voto dentre outros. A segunda onda se localiza entre
os anos 1950 e se estende até meados dos anos 90 do século XX, entretanto quando nos referimos ao feminismo de segunda onda,
costumamos querer dizer mais especificamente do feminismo radical, que teve seu início (e sua fase mais ativa) nas décadas de 60
e de 70. É caracterizada como a fase da luta pelos direitos reprodutivos e das discussões acerca da sexualidade. A terceira onda
teve inicio a partir da década de 1990 e se estende até hoje, seu foco é a ruptura dos padrões heteronormativo, patriarcais sobre os
corpos não só das mulheres, mas de todos, é nesse período que surge o uso do termo Gênero relacionado ao feminismo, LGBTQI.
Existem estudiosa/os que acreditam que estamos vivendo uma quarta onda do movimento, que está vinculada a principalmente pelo
uso maciço das redes sociais para organização, conscientização e propagação dos ideais feministas, entretanto ainda não existe uma

68
definição e teorização tão clara como as demais.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


De quê forma podemos pensar as representações de gênero e de diversidade
sexual de uma forma plural, ampliada e em constante movimento? São ques-
tões emergentes relacionadas com a contemporaneidade e que se aproximam
dos problemas relacionados com a identidade, a diferença, igualdade e alterida-
de. É necessário pensar maneiras de desfazer conceitos e práticas que fazem
parte do “sentido comum”, impregnado no imaginário social e cultural, nos
discursos institucionais e nos meios de comunicação, que foram gradualmente
incorporados e consumidos como legítimos e universais. (ABREU, 2010, p.8)

Portanto, a partir das reflexões e as teorizações sobre a “multiplicidade de diferencia-


ções, que, articulando-se a gênero, permeiam o social” (PISCITELLI, 2008, p 263), houve
uma emergência aos estudos das denominadas “Categorias de Articulação e/ou interseccio-
nalidade”. Estudo este que vem atraindo a atenção entre as mais diversas abordagens do
pensamento feminista, dos estudos de mulheres e das teorias de gênero contemporâneas
(HENNING, 2015). Longe de ser um conceito rígido e fixo, o conceito de interseccionali-
dade perpassa o entrelaçamento de diferenças e igualdades. Trata-se de um processo de
descoberta, que demonstra a complexidade e contradições do mundo atual e nos serve de
estímulo para novas visadas, por vezes não ortodoxas de se analisar o feminino. É impor-
tante destacar que o conceito de interseccionalidade não se refere a diferença sexual, nem
de relações entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença em sentido
amplo, para dar cabida as interações entre possíveis diferenças em contextos específicos.
(PISCITELLI, 2008, p.226).
Em 1989 a teórica feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw criou o termo “inter-
seccionalidade”. Mas desde 1973 há registros de suas contribuições teóricas da autora
relacionada ao movimento feminista. Esta não se restringe apenas da opressão sexual das
mulheres, mas a tantas outras formas de dominação e de desigualdades baseadas em
racismo, heterossexismo e exploração por classe. Para Crenshaw (2002), interseccionali-
dades são formas de capturar as conseqüências da interação entre duas ou mais formas de
subordinação: sexismo, racismo e patriarcalismo. Essa noção de ‘interação’ entre formas de
subordinação possibilitaria superar a noção de superposição de opressões.
Já Avtar Brah (2006) aponta para um processo mais antigo da preocupação feminista
com formas de entrelaçamento de diferenças na produção das desigualdades sociais ligadas
à condição de racialização de sua posição de classe e gênero, a partir de uma ao movimento
feminista abolicionista (da primeira onda). Segundo as formulações de Brah (2006) o foco
central do estudo fundamenta-se no detalhamento de algumas categorias conceituais para a
teorização da diferença não pelo nível macro ou micro, mas pela sua articulação discursiva,
práticas das relações sociais, posições de sujeito e subjetividade.
Para Henning (2015), a interseccionalidade pode, sim, construir diferenças e desi-
gualdades, porém tem um potencial “igualitarista” em termos de práticas sociais no campo
69
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
de distintas formas de agência interseccional. Assim, propõe, portanto uma noção de inter-
seccionalidade compreendida: como relativa a formas de entrelaçamento entre os marca-
dores sociais da diferença e potenciais decorrências em termos de desigualdades sociais,
defende táticas de resistência, questionamento e desconstrução das distintas formas de
agência interseccional e defende também que a interseccionalidade precisa, portanto, ser
concebida a partir de práticas sociais decorrentes da interação cultural desses marcadores
(gênero, classe, raça).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O filme Aladdin rompe com o que Nelson Goodman chama de ‘rightness of redering’ (In
WEINER, 2001), trata-se da capacidade pedagógica dos artefatos da indústria cultural, como
os filmes dos estúdios Disney, de “normalizar as representações de maneira que aparecem
como corretas e parecem consistentes com o senso comum.” (p. 435) Nesse sentido é rele-
vante observar o que está se rompendo e o que está se construindo no seu lugar. Os filmes
de Disney trazem, como um currículo cultural, a discussão sobre as mudanças nos papeis
de gênero, embora ainda mantenham diversos traços colonialistas.
Portando, ao percebermos as imagens cinematográficas como produtos culturais, rela-
cionadas à Cultura Visual, são possíveis reconhecer como as visualidades do filme Aladdin
possibilita focalizar “onde o sujeito é colocado e fixado pelo discurso do qual faz parte”
(Hernandez, 2011, p. 33) a partir do que ele vê. Sendo assim as imagens, segundo Tourinho
(2013), são mediadoras de significados e cada interpretação é uma forma de pensar de cada
pessoa, vinculado a uma porção de uma realidade, contexto e comunidade do individuo.
Dessa forma, a Cultura Visual possibilita uma deslocalização do olhar, revelando, como sa-
lienta Hernandez (2011, p. 47), “as identidades ‘pré-fixadas’” que podem ser questionadas.
Lembrando que a Cultura Visual é o meio e não o fim, consequentemente ela se abre como
um guarda-chuva para novos horizontes e “somos convidados a pensar de forma crítica o
momento histórico no qual vivemos e revisar os olhares como os quais viemos construindo
os relatos sobre outras épocas e suas representações visuais” (idem, 2011, p. 33).

70
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
REFERÊNCIAS
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neidade. In: Revista do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade
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<https://www.revistas.ufg.br/VISUAL/article/view/18226>. Acesso em: 20 jun. 2018.

2. ALADDIN. Direção: Ron Clements e John Musker. Produção: Ron Clements e John Musker.
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3. ANDERSON, David; TAVIN, Kevin. A cultura visual nas aulas de arte do Ensino Fundamental:
uma desconstrução da Disney. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Org.). Cultura
visual e Infância: quando as imagens invadem a escola. Santa Maria: Editora UFSM, 2010,
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4. BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, 2006,
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5. BUTLER, Judith.  Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de


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Princesses on Gender Stereotypes, Body Esteem, and Prosocial Behavior in Children. Child
Development, [s.l], v. 87, n. 6, 2016, p.1909-1925. Disponível em: <https://www.researchgate.
net/publication/304071159_Pretty_as_a_Princess_Longitudinal_Effects_of_Engagement_With_
Disney_Princesses_on_Gender_Stereotypes_Body_Esteem_and_Prosocial_Behavior_in_Chil-
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8. DUARTE, Rosália. Cinema & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

9. ELLSWORTH, Elizabeth. Modos de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de


educação também. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. Nunca fomos humanos–nos rastros do sujeito
(Org. e Trad.). Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

10. GIROUX, Henry. Memória e pedagogia no maravilhoso mundo da Disney. In: SILVA, Tomaz
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11. ______. Os filmes da Disney são bons para seus filhos? In: Cultura Infantil: a construção cor-
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12. HARAWAY, Donna.“Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra.
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13. HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As contribuições


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diferença. In: Mediações, V. 20 N. 2. Londrina: UEL, 2015, p. 97-128.

71
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
14. HERNANDÉZ, Fernando. A cultura visual como um convite à deslocalização do olhar e ao
reposicionamento do sujeito. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO Irene (Org.). Educação da
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15. SABAT, Ruth. Pedagogia cultural, gênero e sexualidade.  Revista Estudos Feministas, Santa
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16. PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de mi-


grantes brasileiras. In: Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008. p. 263-74.

17. _____. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, Heloisa. Buarque.; SZWAKO, José.
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18. WEINER, Eric. Making the Pedagogical (Re) Turn: Henry Giroux´s Insurgent Cultural Pedagogy.
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-attachments/74939/Making_the_Pedagogical_(re)turn_-_Weiner.pdf. Acesso em 12 jul. 2018.

19. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução conceitual. In: SILVA, Tomaz
Tadeu (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 4ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 2000.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
05
Corpo sem órgãos e Devir-mulher em
Crônica da casa assassinada

Wellerson Batista de Lima

Maria Edileuza da Costa

Larissa Cristina Viana Lopes

10.37885/210303833
RESUMO

Este artigo objetiva analisar os personagens Nina e Timóteo do romance Crônica da casa
assassinada, (CARDOSO, 2017) à luz da Filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para
este estudo nos pautamos das proposições de Deleuze e Guattari (1997, 1996) no que
se refere ao conceito de Corpo sem órgãos e Devir-mulher, assim como as proposições
Sales (s/d) quanto a construção do Corpo sem órgãos e a maneira como as instituições
tentam capturar os corpos, colocando-os em uma identidade fixada. Em Costa Junior
(2019) quanto a relação de proximidade entre o devir-mulher e o Cso, muito ligada ao
modo como o corpo feminino é precocemente educado. Com fundamentos nestas dis-
cussões, a análise dos personagens Nina e Timóteo nos indica um processo de entrada
no devir-mulher desta primeira, pela forma que foge dos padrões identitárias. Este último,
em construção de um CsO, devido a linha de fuga trançada pelo personagem, permitin-
do-se viver sua sexualidade em um contexto de forte presença da instituição religiosa.

Palavras-chave: Corpo, Nina, Estado.

74
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Nesse estudo, realizaremos uma leitura crítica do romance Crônica da casa assassinada
(2017) de Lúcio Cardoso, onde utilizamos das formulações filosóficas de Deleuze e Guattari
(1997, 1996), mais especificamente dos conceitos de Corpo sem órgãos e Devir-mulher.
Esse estudo se inicia com a discussão acerca das proposições filosóficas do processo
de construção de um CsO de Deleuze e Guattari (1997, 1996), a maneira como esse corpo
produz intensidades e desejos, em um processo de luta ante as muitas instituições do apa-
relho de estado, que agem contra o indivíduo humano na tentativa de eliminar os desejos
perpassados por aquele CsO. Também discutimos acerca do devir-mulher e a forma como
age molecularmente, produzindo afetos e perceptos, construindo alternativas de vidas e de
identidades onde o sujeito possa fugir da captura e fixações implementadas pelo estado.1
Essas discussões compõem a primeira parte deste artigo, na segunda parte, respec-
tivamente, faremos uma leitura crítica dos personagens Nina e Timóteo e os processos de
construção de um CsO e o devir-mulher adentrado em um contexto de tradição familiar que
não tolera a diferença.

A REGULAMENTAÇÃO DOS CORPOS

Na filosofia conjunta proposta pelos pensadores Deleuze e Guattari, é iminente as dis-


cussões acerca da identidade do sujeito, estruturas sociais e comportamento humano. Os fi-
lósofos em suas proposições — a maioria delas reunidas nos cinco volumes de Mil Platôs
– capitalismo e esquizofrenia — trazem para a sua filosofia termos advindos de outras áreas
do conhecimento, como é o caso do conceito de rizoma, originário das ciências biológicas.
É importante entender, e ressaltar, que as discussões formuladas por D&G se dife-
rem totalmente de termos e aplicações binárias, muito difundidas nos estudos literários
pelo estruturalismo, e que posteriormente foram fundidas a psicanálise pela a escola de
Frankfurt. A filosofia de D&G não somente deixar de comungar com termos binários, mas
busca desconstrui-los, antagonizando com seus sistemas hierárquicos, fechados em si a
execuções reducionistas.
D&G vão além, com sua escrita rizomatica, propõem a liberdade dos sujeitos, de seus
desejos, anteriormente estratificados em uma lógica extensiva, massificadas por regras e
ditames comportamentais que buscam “educar” seus corpos, enquadra-los em dada ordem

1 O aspecto Molar na filosofia de Deleuze e Guattari, faz referência a grandes poderes que regulamentam os corpos e os comporta-
mentos humanos, como o Estado, por exemplo. Já o molecular aponta para uma existência que ocorre em oposição a esfera Molar,
os grupos sociais minoritários são um exemplo, pois fogem de comportamentos padronizados ou impostos através do poder do Es-

75
tado.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


social, e inseridos em um sistema que recebe esses corpos educados, criando dessa ma-
neira, padrões comportamentais. 2
Para a nossa leitura neste estudo, é fundamental a discussão de duas das proposi-
ções dos filósofos, a ideia de Corpo sem Órgãos e Devir-Mulher. No capítulo intitulado ‘28
de novembro de 1947 - como criar para si um corpo sem órgãos’, do volume três do Mil
Platôs – capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guattari (1997) formulam o conceito de
CsO3, como sugerido no título do referido capítulo, não é propriamente um conceito, mas
convida o sujeito a uma ação, a uma postura, uma atitude, que seria a construção do CsO
para si, enquanto indivíduo.
O corpo, juntamente com seus órgãos e sistemas biológicos, está intimamente inter-
ligado, mas, principalmente organizado e hierarquizado. O cérebro é o ponto central de
comando, com acesso aos demais membros, controlando-os, ou seja, o corpo, enquanto
elemento biológico, obedece a certas cadeias de comando, a sistemas hierárquicos que
regulam o seu funcionamento. Fazendo alusão a essas estruturações de nosso corpo, os
filósofos franceses mostram como os nossos corpos obedecem, também aos sistemas de
poder das instituições.
Dessa maneira, para Deleuze e Guattari (1997) o conceito de CsO é uma espécie de
manifesto contra a organização, sistematização e a educação dos corpos — enquanto sujeito
— promovidas pelos aparelhos de Estado, que faz uso de sua força — seja ela a instituição
policial, a religiosa, dentre outras — para controlar aquele corpo, afim de que obedeça a
certos padrões, eliminando assim, a diferença.
Simultaneamente ao protestarem contra os órgãos e organismos, seus sistemas e
cadeias organizacionais, Deleuze e Guattari (1997) protestam contra o aparelho de estado,
que tenta capturar os indivíduos, para inseri-los em um sistema muito parecido com o bioló-
gico, “neste sentido, um organismo é o que classifica, delimita, ordena, hierarquiza, enfim,
se organiza em torno de um centro de normalidade. A sociedade e seus órgãos, seus apa-
relhos. ” (SALES, s/d, p. 2), tentando levar esse sujeito a obedecer e seguir ordens sociais,
fixando-o a uma identidade, “trata-se de um julgamento que é coextensivo a toda forma de
governo sobre o outro, que domestica o corpo tornando-o dócil e submisso” (SALES, s/d, p.
2). Dessa forma, os corpos estão em constante domesticação, os desejos e as intensidades
por ele perpassados, são eliminados por essa vigilância do estado e suas instituições.

2 O conceito de Rizoma na filosofia de Deleuze e Guattari, faz alusão a estrutura de raízes de plantas, cuja formação ocorre horizon-
talmente, sem um firmamento mais profundo e enraizado. No caso, o termo ‘escrita rizomática’ se refere a um dado padrão textual
que não obedece às estruturas formais de escrita. O corpo inserido em uma lógica extensiva obedece aos ditames do Estado e de
instituições de poder, quando um corpo adentrada a uma lógica intensiva, ele procurar escapar dessas imposições aos seus corpos.

76
3 A sigla CsO se refere ao termo Corpo sem Órgãos

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Para Castro e Silva (2018), a oposição proposta por D&G não é propriamente contra
os órgãos, mas contra o organismo, suas instituições e ciclos de poder, que “instrumentaliza
os órgãos em favor de seus ditames” (CASTRO E SILVA, 2018, p. 10).
Nesse sentindo, o estado regula os corpos e seus órgãos, define suas funções, formas
de organização, o que deve ou não ser feito. “... o organismo humano é de uma ineficácia gri-
tante; em vez de uma boca e de um ânus que correm o risco de se arruinar, por que não pos-
suir um único orifício polivalente para a alimentação e a defecação? (DELEUZE E GUATTARI,
1997, p.9). Para tanto, o questionamento de D&G pode se resumir a, por que obedecer às
hierarquias? Por que seguir as ordens? Por que limitar-se a sistema que tenta burlar o de-
sejo do indivíduo?
Então, para Costa Junior (2019) o ato de construir para si um corpo sem órgãos não
significa literalmente a retirada destes do corpo humano, mas partem desse pressuposto, a
saber, que os órgãos funcionam de acordo com uma ordem estabelecida. A retirada desses
órgãos, se estabeleceria por meio de uma série de práticas, uma experimentação, que pos-
sibilitariam ao indivíduo a fuga de uma lógica extensiva, para uma lógica intensiva. Sobre
isso, o autor ainda afirma:

Essa constituição começa a ser feita a partir da retirada dos referidos extratos,
quando o indivíduo tem a possibilidade de se libertar de uma lógica extensiva,
que age capturando-o e impedindo-o de desejar, e passa a atuar dentro de
uma lógica intensiva em que é capaz de produzir realidades diferentes, modos
de ser normalmente não autorizados, não legitimados por uma sociedade
conservadora que, quase sempre, não tolera a diferença. (COSTA JUNIOR,
2019, p. 4)

Os indivíduos estão comumente ligados a uma ordem extensiva, que para Deleuze e
Guattari (1997) é a lógica onde atua o aparelho de estado e suas instituições, tentando cap-
turar o indivíduo e o fixar em uma identidade. Diferentemente, a lógica intensiva é onde atua
o sujeito que busca a constituição para si de um CsO, um sujeito que vive agenciamentos4,
onde as intensidades do desejo não são reprimidas, e por fim, é uma lógica na qual o sujeito
busca escapar do controle de si.
Essa série de ações que visam a fuga dessa lógica extensiva está diretamente ligada a
experimentação, ao desejo de se permitir e viver as intensidades. Para Sales (s/d) a falta, o
vazio deixado pela ausência dos órgãos, não remete a uma fraqueza do ser, mas a uma força,
onde operam as linhas de fuga, constituindo, assim, um corpo como espaço de passagem,
onde nada é fixado em definitivo. Ainda segundo o autor, o desejo é muito vinculado a falta

4 Os agenciamentos na filosofia de Deleuze e Guattari, são uma espécie de fuga da regulamentação de seus corpos, quando um corpo

77
opera em agenciamentos, significa que está em contraponto com as práticas comumente estabelecidas pelas instituições de poder.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


na perspectiva psicanalítica, enquanto no CsO, não existe falta, mas somente um desejo de
viver as intensidades, de experimentação, da fuga de espaços estratificados.

Então, por que estes exemplos? Por que é necessário passar por eles? Corpos
esvaziados em lugar de plenos. Que aconteceu? Você agiu com a prudência
necessária? Não digo sabedoria, mas prudência como dose, como regra ima-
nente à experimentação: injeções de prudência. Muitos são derrotados nesta
batalha. Será tão triste e perigoso não mais suportar os olhos para ver, os
pulmões para respirar, a boca para engolir, a língua para falar, o cérebro para
pensar, o ânus e a laringe, a cabeça e as pernas? Por que não caminhar com
a cabeça, cantar com o sinus, ver com a pele, respirar com o ventre, Coisa
simples, Entidade, Corpo pleno, Viagem imóvel, Anorexia, Visão cutânea, Yoga,
Krishna, Love, Experimentação. Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o
seu eu, seria preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso
CsO, não desfizemos ainda suficientemente nosso eu. (DELEUZE E GUAT-
TARI, 1996, p.10)

A experimentação para a constituição de um CsO, pode ser difícil, para o corpo que
se propõe a esse processo, é preciso haver uma inversão do comum e do habitual, deixar
de enxergar com os olhos, e passar a fazê-lo com a pele. Passar a caminhar com a cabeça,
ao invés de usar as pernas. Deleuze e Guattari (1996) propõem uma inversão da ordem,
da hierarquia, da regra, da estratificação. Nesse movimento de experimentação, que é a
formação de um CsO para si, é preciso haver cautela, como os aparelhos de estado em
constante vigilância na tentativa de capturar os corpos.
É nesse sentido que Deleuze e Guattari (1996) ressaltam as linhas de fuga, os agen-
ciamentos, pois o corpo não suporta a força reguladora que age sobre si, as linhas de fuga
operam no sentido de constituir fissuras, permitindo a passagem do desejo, e a entrada em
outros processos formulados pelos filósofos, como é o caso do Devir.
Para Carneiro (2013), o devir não se opõe a uma forma fixada, mas também não é
um processo em transição de diferentes estados, o Devir está sempre em expansão, não é
fixado a um estado final, “se dizemos, mulher, homem, animal, falamos de formas; referimo-
-nos a alianças efetivas com as políticas de identidade e gênero para a constituição dessas
formas”. (CARNEIRO, 2013, p. 77). Todavia, homem, mulher e animal, são estados fixados
e identidades prontas e acabadas.
O processo de Devir está em constante movimento, adentrando em zonas de vizinhan-
ça, “se opõe a contextos fixos e majoritários” (CARNEIRO, 2013, p. 77), o devir é onde fluem
as intensidades o desejo de experimentar. Agora quando dizemos Devir-mulher, falamos
de ação que ocorre molecularmente, saindo de uma lógica extensiva — onde operam as
definições identitárias — para uma lógica intensiva, onde as instituições não conseguem
apreender o indivíduo em processo de devir.

78
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Pois, para D&G (1997), o devir surge, diferentemente, como uma espécie de
involução; sendo justamente um movimento de dissolução das formas criadas,
pois quando se inventa, deixa-se de viver o tradicional, cria-se outras possibili-
dades de vida, desta maneira, podemos afirmar que os devires se reinventam
constantemente, afinal, trata-se de relações entre partículas, e as combinações
são infinitas, quer sejam: devir-mulher – devir-criança – devir- animal – devir-
-revolucionário, devir-imperceptível, entre outros. (CARNEIRO, 2013, p. 81)

O devir, então, tem a capacidade de reinventar, de viver novos modos, a todo mo-
mento criando o novo, o incomum, deixando de viver o tradicional, abrindo possibilidades
de vivência. O processo de devir acontece nas multiplicidades, em ações rizomáticas, em
agenciamentos múltiplos, não pode, assim, ser apreendido em uma identidade ou gênero.
“O entre é o espaço da fronteira, um ponto onde não se é nem uma coisa nem outra, mas
se está entre os dois. ” (CARNEIRO, 2013, p. 78). Não é possível apreender ou classificar
o sujeito, pois o devir está em constante movimento, de um ponto ao outro, sem fixar-
-se. O Devir também está ligado as artes em geral, como meio de fuga do corpo e a busca
por algo transcendental, que traga alívio ao corpo.
Através da arte, nossos corpos e mentes, buscam uma ressignificação de tudo o que nos
cerca, nos leva a refletir acerca de outros modos/práticas de ver e viver a existência, noutras
palavras, nos transportam para o mundo das possibilidades, onde podemos existir segundo
nossas práticas e não sobre aquelas que nos são ditadas para a adestração dos desejos.
O Devir, nesse sentido, aponta para uma revisão de sentidos, de desejos e afetos,
que antes nos eram impostos, e agora, os corpos em processo de Devir rumam, segundo
a vontade dos seus desejos, e a sua conduta é regida por estes.
Segundo Costa Junior (2019), grande parte dos ditames sociais giram em torno da
dicotomia entre masculino e feminino, ou seja, os comportamentos sociais estão pautados
por gêneros, existem certas atitudes no convívio social que seriam, segundo essa ordem
estabelecida, mas adequadas ao sexo masculino e inadequadas para o sexo feminino. É nes-
se sentido, que para Deleuze e Guattari (1997) o CsO é inseparável do devir-mulher, pois:

Dessa maneira, o corpo da mulher é logo cedo organizado, automatizado,


por isso para Deleuze e Guattari o CsO é inseparável do devir-mulher, o qual
seria o primeiro responsável por abalar a forma imperante do sujeito homem
tradicionalmente associada a uma identificação dominante representada por
uma imagem do masculino adulto, branco, ocidental e heterossexual. (COSTA
JUNIOR, 2019, p. 5)

A construção do CsO está diretamente ligada ao Devir-mulher, pois o sujeito feminino,


ainda criança, é o primeiro a sofrer com a regulamentação dos aparelhos de estado e suas
instituições. Normalmente, o corpo feminino é o que mais sofre com as pressões exerci-
das sobre si, carregando marcas de identidade como a castidade, delicadeza, elegância,
79
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
educação etc. Os corpos femininos são levados a enquadrarem-se nesses aspectos, quais-
quer comportamentos que não estejam ligados a esse sistema são considerados desviantes
pelo aparelho de estado.
Carneiro (2013) aponta para um parêntese relevante, ao afirmar que na filosofia de D&G
não existe um devir-homem, pois o homem está para um lado molar da existência, assistido
por um sistema de poder patriarcal que, concomitantemente lhe oferece poder e o retira do
sujeito feminino. A mulher então atua no lado molecular da existência, é justamente nesse
espaço que ocorre os processos de devires.

Ao tratar do devir-mulher é preciso pressupor o entendimento de que ser mu-


lher não é somente ser esposa e mãe. É compreender que se trata de uma
conquista; é um lançar-se para fora do ambiente familiar, inserir-se socialmente
e lançar mão da caricatura também da mulher frágil. A mulher nunca foi vista
na história como agente, justamente porque suas ações são da ordem da
fuga por meio de micro agenciamentos, fendas insondáveis impossíveis de
serem percebidas por qualquer tipo de marcação identitária e de amarrá-las
conceitualmente por modelos pensados, em suma, a mulher é um devir em
experimentação. (CARNEIRO, 2013, p. 85)

A mulher então atua no espaço molecular, como todas as outras minorias, criando
novos afetos e perceptos, outras possibilidades de vida, de expandir seus desejos, de não
ser efetivo e fixado, continuamente um torna-se. O devir-mulher pode ocorrer quando esses
sujeitos femininos criam passagens para novas zonas, colocando-se em fuga do papel de
mãe, da delicadeza e de tantas outras marcas sociais atribuídas ao feminino que agora, em
processo de devir, pode criar para si multiplicidades, está em continuo agenciamento, não
somente sendo mulher, mas em um exercício eterno de tornar-se mulher.

O AGENCIAMENTO NA CASA ASSASSINADA

Considerada essa discussão, passamos assim a leitura crítica do romance Crônica


da casa assassinada (CARDOSO, 2017), a narrativa em questão é ambientada no interior
mineiro, onde vive a família Meneses. A trama narra a despeito do contexto familiar, seus
dramas e conflitos entre os personagens, vivendo em uma velha chácara interiorana. As re-
lações emocionais vividas por essa família trazem em seu âmago um senso de compro-
misso para com o nome da família, pois os Meneses são uma tradicional família mineira,
abastada e de grande destaque social. Seus membros — em maior intensidade, Demétrio
e Valdo — possuem esse senso de proposito, de preservar o nome da família, em meio a
ruína socioeconômica, e uma moral que já avizinhava os muros da chácara.
Portanto, o tradicionalismo, a religião católica, o falso moralismo são fatores que tem
grande impacto sobre a família, que tenta manter os costumes preservados. Demétrio e
80
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Valdo são figuras que representam esse esforço pela manutenção da tradição, são homens,
brancos e heterossexuais, ou seja, voltando para os apontamentos de Costa Junior (2019),
já abordados nesse estudo, são características de sujeitos que vivem em um plano molar
da existência, mantenedores do poder.
Assim, a base familiar dos Meneses é arraigada sob esses princípios, e tem nas figuras
de Demétrio e Valdo uma espécie de grandes representantes. Essa tradição começa a ser
ameaçada, de fato, com a chegada de Nina a família, através de seu casamento com Valdo,
que a conheceu no Rio de Janeiro e logo após o matrimônio a levou para viver junto a família
na chácara. Nesse ponto, a personagem Nina, começa a contrastar ante as demais pessoas
da família, advinda de um centro urbano mais plural, muito diferente daquele que imperava
no ambiente do interior mineiro. Assim Nina começa a aflorar um estado de Devir-mulher,
sufocada ante aquele ambiente que lhe era hostil:

Sem dúvida ela era sincera, pois nunca vivera no interior e aquela paisagem
baixa, de grandes descampados ressecados pelo estio, não lhe dizia coisa
alguma, e nem lhe despertava nada além de uma verídica angústia. Creio
mesmo que foi essa aversão, propalada inúmeras vezes, e em todos os tons de
vozes, que para sempre levantou os alicerces do desentendimento entre a
patroa e o Sr. Demétrio, de natureza tão arraigadamente mineira. Mais do
que isto: mais do que o seu estado natal, amava ele a chácara, que aos seus
olhos representava a tradição e a dignidade dos costumes mineiros – segundo
ele, os únicos realmente autênticos existentes no Brasil. “Pode falar de mim”
costumava dizer, “mas não ataquem esta casa. Vem ela do Império, e repre-
senta várias gerações de Meneses que aqui vieram com altaneira e dignidade”.
(CARDOSO, 2017, p. 65).

— Desculpe, Nina, mas é que todos aqueles chapéus e vestidos são inúteis
na roça. Você sabe que estamos na roça, não sabe? Aqui – ele apontou com
um gesto displicente – as mulheres se vestem como Ana.
[...] Dona Ana, sentada, sofria aquele exame de cabeça baixa: vestia-se com
um vestido de um preto desbotado, sem enfeites, e inteiramente fora de moda.
(op. cit., p. 68).

A posição de Nina em enfretamento antes os costumes familiares, se traduzem em um


comportamento que pode ser caracterizado com um processo de Devir-mulher. A persona-
gem ao desafiar esse poder familiar, compõe para si uma nova forma de vida, de sentir as
intensidades, os desejos e perceptos.
A paisagem, as normas e os padrões são fatores que a sufocam, e o seu processo de
tornar-se, de reconfiguração, e de criação, acaba ameaçando Demétrio. Este é um perso-
nagem que possuí um corpo educado pela atuação do estado e suas instituições, fala com
saudosismo sobre hierarquizações e estados de poder, mas não somente exerce poder ao
ditar o tipo de vestimenta que Nina deveria usar, mas concomitantemente não consegue
apreendê-la em seu estado de devir-mulher.
81
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Dessa maneira, Nina abre espaços, outros modos de vida, ressignificando, criando
linhas de fuga que permita um escape de uma identidade fixada, daquela comumente pro-
pagada, ou seja, uma mulher que é mãe, esposa, atenta aos afazeres domésticos. “Essas
velhas famílias sempre guardam um ranço no fundo delas. Creio que não suportam o que
eu represento: uma vida nova, uma paisagem diferente. ” (CARDOSO, 2017, p. 69). Esse
apontamento para o novo, é propriamente a criação de um outro modo de vida, uma pos-
sibilidade de afastar-se de um tradicionalismo exacerbado que enaltece o nobre nome da
família e seus costumes. Para Carneiro (2013) o devir-mulher possibilita a criação de no-
vos modos “ético-políticos de existir”. (CARNEIRO, 2013, p. 89), ainda segundo o autor, o
devir-mulher abre as portas para novas perspectivas de vida que desejem escapar de um
plano molar da existência.
Na narrativa, a personagem Nina em estado de devir-mulher, reinventa essas novas
alternativas e deseja escapar de um estrato molar, prefere atuar em uma zona molecular.
Demétrio por sua vez, atua como os aparelhos de estado, tentando educar o corpo de Nina,
tentando capturar e fixar sua identidade segundo seu padrão. “Eu não quero viver segundo o
sistema do Sr. Demétrio, disse”. (CARDOSO, 2017, p. 117). Portanto, Nina está em continua
reinvenção, abrindo alternativas singulares, e dizendo não para aquilo que lhe é apregoado.
O estado de devir-mulher em Nina acaba acarretando um agenciamento com outro
membro da família, trata-se de Timóteo, seu cunhado. Esse, por sua vez, também garantia
ameaça ao padrão molar enraizado na família Meneses. Como mencionado anteriormente
nesse estudo, Deleuze e Guattari (1997) veem uma relação muito próxima entre dois de
seus conceitos, a saber CsO e Devir-mulher, sendo a mulher uma figura precocemente
regulamentada pelo estado, mas também a primeira responsável por abalar a figura do
homem, comumente relacionada a um sujeito masculino branco, ocidental e heterossexual.
Essa relação próxima entre o Devir-mulher e o CsO também acontece na narrativa.
Timóteo é um sujeito em processo de construção de um CsO para si, permitindo-se fluir e
deixar que os desejos se intensifiquem e perpassem seu corpo. Essa elaboração inicia-se
pela sua sexualidade, Timóteo é homossexual, esse já é um fator que abala as estruturas
do tradicionalismo familiar.
A resposta dos Meneses é o confinamento e o completo banimento como membro
da família: “Antes de atendê-lo, imaginei que desculpas daria ao Sr. Demétrio caso ele
me encontrasse, pois já me proibira várias vezes de atender aos chamados do irmão. ”
(CARDOSO, 2017, p. 119). Demétrio localizado em um estrato molar da existência exerce
um poder de regulamentação sob Timóteo, proibindo o acesso ou qualquer tipo de relacio-
namento com o irmão:

Não sei direito o que colocara sobre a cabeça, assemelhava-se mais a um tur-
82
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
bante ou a um chapéu sem abas, de onde saíam vigorosas mechas de cabelos
alourados. Como era de costume seu também, trazia o rosto pintado – e para
isto, bem como para a suas vestimentas, apoderara-se de todo o guarda-roupa
deixado por sua mãe, também em sua época famosa pela extravagância com
que se vestia – o que também fazia sobressair-lhe o nariz enorme, tão carac-
terístico dos Meneses. [...] Ainda daquela vez pude constatar a bizarrice dos
costumes que constituíam as leis mais ou menos constantes do seu mundo: ao
me aproximar, verifiquei que o Sr. Timóteo, gordo e suado, trajava um vestido
de franjas e lantejoulas que pertenceram à sua mãe. (CARDOSO, 2017, p. 56).

Pela descrição do personagem, podemos perceber que Timóteo está construindo um


CsO, a imanência do desejo e as intensidades fluem em seu corpo, todos esses fatores vão
de encontro aos costumes correntes, e ainda mais intenso por trata-se dos Meneses uma
família regulamentada pelas instituições do estado, principalmente a religiosa, que enxerga
em Timóteo um comportamento transgressor.
Para Sales (s/d) a busca por um CsO é a busca de novos afetos e desejos, mas estando
o corpo com seus órgãos e suas funções já definidas, é impossível que algo novo aconteça e
consequentemente nenhum desejo surgirá. Timóteo ao elaborar seu CsO, abre linhas de fuga
que permitem uma saída de uma lógica extensiva, que age a todo custo tentando captura-lo.
Nina em seu Devir-mulher e Timóteo com seu CsO agem em conjunto contra essa lógica
extensiva, muito concentrada nas figuras de Demétrio e Valdo, que atuam em uma tentativa
de regulação, com o intuito de eliminar as multiplicidades, em consequência, a diferença.
Ocorre entre Nina e Timóteo um agenciamento, que para Zourabichvili (2004) ocorre quando
existe uma identificação de um acoplamento de certo signos correspondentes. “— Se o Sr.
Valdo perguntar por mim, pode dizer que estou neste quarto. Vim fazer uma visita ao meu
cunhado.” (CARDOSO, 2017, p. 119). Exatamente isso que ocorre com os personagens,
a própria atitude de Nina, agindo contra as ordens de não manter contato com Timóteo, é
resultado de seu processo de Devir, ambos passam a agir em uma zona molecular:

Assim pois era verdade. Os lados existiam. Aquelas palavras só confirmaram,


e plenamente, tudo o que eu suspeitava. Existia uma ação corrosiva, a família
cindia-se em partidos. De repente, em meio ao estupor que aquela constatação
me causava, lembrei-me do Sr. Timóteo – de que modo estaria ele envolvido
naquilo? Pois a verdade é que para mim já não havia dúvida: se existiam
partidos os lados se acham definitivamente delineados, o Sr. Timóteo jamais
poderia se encontrar ao lado dos irmãos, a quem sempre detestara, e sim
do outro, como um dos seus esteios mais fortes (CARDOSO, 2017, p. 255).

Nina e Timóteo. CsO e Devir-mulher constituindo agenciamentos, multiplicidades, agin-


do conjuntamente em zonas moleculares contra as instituições do aparelho de estado que
regulamenta a família Meneses, estratificando-os em um espaço territorializado. O CsO e o
devir-mulher permitem uma linha de fuga de uma lógica extensiva — totalmente regulamen-
tadas pelos órgãos e suas hierarquizações — para uma lógica intensiva, que possibilita as
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
intensidades do desejo, da criação de novos modos de vida aquém daqueles ditados. A “ação
corrosiva” corresponde aos processos pelos quais passavam os personagens, em uma
eterna luta da reinvenção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Intentamos neste estudo uma aproximação da filosofia de Deleuze e Guattari (1997,


1996) da leitura crítica dos personagens Nina e Timóteo do romance Crônica da casa as-
sassinada (2017), observamos que os personagens são perpassados pelos processos de
Devir- mulher e CsO, respectivamente.
Os personagens estão inseridos em contexto familiar tradicional com forte presença e
atuação do estado e suas instituições, portanto seus corpos são suscetíveis a regulamen-
tação desses aparelhos, mas Nina e Timóteo operam linhas fuga que possibilitem essa
saída de um ambiente territorializado, estratificado e fixo. Eles começam a operar em uma
zona molecular, fazendo múltiplos agenciamentos, criando para si alternativas de modos
de viver diferentes daqueles apregoados. Nina opera em uma linha de fuga, escapando de
uma identidade de mãe, de uma mulher sujeita a vontade do marido, etc. Já Timóteo, ao
viver seu desejo, sua sexualidade, seu CsO, abre espaço para uma alternativa de vida que
o possibilite a intensidade do desejo.
Também observamos na narrativa a aproximação do CsO e do Devir-mulher, como
já discutidos nas formulações de Deleuze e Guattari (1997, 1996) e ressaltada por Costa
Junior (2019), a ligação entre os dois processos. Nina e Timóteo estão a todo momento pro-
duzindo agenciamentos, agindo em conjunto em suas linhas de fuga, permitindo-se viver as
intensidades e as alternativas, atuando sobre eles de uma forma que possibilitem o escape
dessa lógica extensiva — altamente marcada pela atuação das instituições — para uma
lógica intensiva, onde possam multiplicar permanentemente seus desejos.

REFERÊNCIAS
1. CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. 15ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2017.

2. COSTA JUNIOR, José Veranildo Lopes da; SILVA, Roniê Rodrigues da. Dois homens que se
amam: a construção de um corpo sem órgãos no contexto da ditadura argentina. Miguilim –
Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 8, n. 1, p. 123-136, jan.-abr. 2019.

3. CASTRO, Netanias Mateus de Souza; SILVA, Roniê Rodrigues da. O conto rodrigueano e a
constituição do corpo sem órgãos: interfaces entre literatura e filosofia. Revista Letras Raras
— v. 7, n. 1 , 2018.
84
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
4. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Tradução de
Aurélio Guerra Neto et. alii. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.

5. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs — capitalismo E esquizofrenia, vol.4.Tradução de Suely


Rolnik. ed. 5. São Paulo: Editora 34, 1997.

6. SALES, M. Deleuze e Artaud: um passeio pelo corpo sem órgãos. Disponível em: [ https://
caosmofagia.files.wordpress.com/2011/12/deleuze-e-artaud-um-passeio-pelo-corpo- sem-
-c3b3rgc3a3os.pdf.] Acesso em: 14/11/2019.

7. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução André Telles. Rio de Janeiro:


Relume Dumará, 2004.

85
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
06
Compaixão, piedade e deficiência
física: o valor da diferença nas relações
heterogêneas

Reni Barsaglini
ISC-UFMT

Emília Carvalho Leitão Biato


UNB

Artigo original publicado em: 2015.


História, Ciências, Saúde-Manguinhos - ISSN 0104-5970.
Oferecimento de obra científica e/ou literária com autorização do(s) autor(es) conforme Art. 5, inc. I da Lei de Direitos Autorais - Lei 9610/98

10.37885/210303748
RESUMO

Analisam-se os sentimentos de compaixão e piedade diante da deficiência física, valen-


do-se da história do corpo anormal no Ocidente e das interpretações do sofrimento do
Outro. Este corpo será alvo do Estado frente às mutilações bélicas e industriais. No século
XIX, solicitam-se tolerância, compaixão e igualdade dos corpos em tensão com repre-
sentações e práticas hierarquizantes das perfeições corporais e submetendo desvios a
intervenções. Tais ambiguidades mobilizam sentimentos na confluência do individual/
coletivo, do natural/sociocultural; podendo transmutar-se em virtude ou tecnologia de
poder. A exegese do sofrimento pode implicar em generalizações e superficialidades
enquanto que valorizar o singular e o oculto da experiência favorece a universalização
da dignidade humana nas relações heterogêneas.

Palavras-chave: Pessoas com Deficiência, História, Compaixão, Piedade, Altruísmo.

87
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Quais forças impulsionam a inclinação à compaixão e à piedade diante da pessoa


com deficiência? De que modo essa condição é entendida para que mobilize sentimentos
e atitudes compassivas? Haveria correspondência entre os sentimentos do compassivo e
de quem é objeto da compaixão? Compaixão e piedade seriam sentimentos naturais? Tais
inquietações decorreram de pesquisa e produções científicas anteriores sobre a experiência
da deficiência física (Martins, 2009; Martins, Barsaglini, 2011) e motivaram o desenvolvimen-
to do presente artigo, que traz reflexões à compreensão do sentimento de compaixão e de
piedade mobilizados nas relações interpessoais heterogêneas envolvidas nessa condição.
Parte-se da ideia de que tais sentimentos despertados diante do corpo diferente na
deficiência física envolvem interpretação, e essa remete a uma ação do sujeito que mobiliza
o universo dos significados, construídos e com enraizamento social e histórico. Entendemos
que o substrato sociocultural para tais interpretações encontra-se em diferentes níveis da
realidade que se imbricam, interpenetram, com sentido nunca em mão única, representado
pelo (a) pensamento coletivo; (b) pensamento compartilhado localmente, na vida diária por
grupos específicos e contextualizados; (c) pensamento singular, biográfico que procede
atualizações, reinterpretações, transformações das suas prévias noções e valores mais
encarnados, em trajetória específica e nunca totalmente autônomo em relação aos demais
níveis (Barsaglini, 2011).
Analogamente, os sentimentos de compaixão e de piedade estão na confluência do
individual e do coletivo, do subjetivo e do objetivo, do natural e do sociocultural, o que é pró-
prio das tensões embutidas na experiência das emoções. Sentimentos relacionam-se com
emoções e, como já assinalava Mauss (1979), longe de ser fenômenos naturais e universais,
consistem em fenômenos sociais marcados por manifestações não espontâneas, puramente
psicológicas ou fisiológicas. Se socioculturalmente construídos, os sentimentos, portanto,
são aprendidos nas interações sociais e percebidos corporalmente num fluxo imbricado de
gestos e de sensações repletos de significados que fundamentam a emoção.
A emoção, por sua vez, consiste em um momento provisório que se origina de uma
causa precisa na qual o sentimento se cristaliza com uma intensidade particular: alegria, có-
lera, desejo, surpresa, medo, entre outros (Le Breton, 2009). Importa reter que o sentimento
e a emoção, que aparentemente decorreriam de uma ação individual, são na verdade, como
nos diz este último autor, emanações sociais que têm origem em normas coletivas implícitas,
mas que cada um exprime conforme a cultura e os valores circundantes. Elas são crivadas
pelas peculiaridades biográficas, podemos acrescentar. Envolvem, portanto, subjetividade
porque decorrem de interpretação singular, mas que não se faz alheia aos aspectos objeti-
vos e sociais colocados pelo contexto e, ainda, implica intersubjetividade, porque, de certa
88
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
maneira, a emoção é indicada pelo grupo de pertença, bem como o grau de importância
que se dá a alguns fatos, assinalando o que deve ser sentido, de qual maneira e em quais
condições precisas – o que o autor define por telepatia das emoções (Le Breton, 2009).
A compreensão da compaixão e da piedade, consideradas sentimentos decorrentes
da análise diante da situação da deficiência física, nos impeliu à busca de seu enraizamento
histórico e filosófico recuperando sensibilidades, valores, significados e o lugar da pessoa
e do corpo deficiente na sociedade. Com essa assertiva deparamo-nos com elementos do
pensamento social sobre a deficiência física, balizados pelo parâmetro de corpo “normal”
inscrito, por sua vez, numa dada ordem social, de modo que aqueles sentimentos são prenhes
de componentes morais. Assim, organizamos este texto em três partes em que, na primeira,
intitulada “Corpos, deficiências e deficientes”, apresentamos breve histórico do corpo diferen-
ciado, o qual, no contexto deste artigo, foi identificado por corpo com deficiência, anormal,
deformado, deficiente, com base nos escritos, especialmente, de Jean Jacques Courtine e
de Henri-Jacquer Stiker encontrados nos três volumes da coletânea História do corpo.
Na segunda parte, denominada “Diferença e interpretação”, valemo-nos especialmente
de algumas contribuições do pensamento da diferença para problematizar a interpretação
generalizante implícita na compaixão e piedade diante da deficiência e a singularidade des-
sas vivências. Por fim, na terceira parte, “Efeitos da compaixão”, assumimos a ambivalên-
cia de compaixão e piedade. Abordamos o que é determinante para caracterizá-los como
sentimentos genuínos, virtuosos e, também, como mecanismo assimétrico de manifestação
de poder – uma tecnologia de poder. Tais matrizes são ilustradas em situações concretas
apoiadas em dados empíricos e relatados em primeira pessoa, extraídos de pesquisa mais
ampla (Martins, 2009).

CORPOS, DEFICIÊNCIAS E DEFICIENTES

Compaixão e piedade são sentimentos que envolvem emoções e significados. Ao ci-


tá-los, adentra-se no plano simbólico em que uma situação ou imagem remete a elementos
materiais e imateriais como se eles, ou parte deles, estivessem presentes, sendo profícua a
utilização do recurso da história sobre o corpo deformado ou a anormalidade corporal. O in-
tuito é trazer, ainda que em dispersão de ideias, elementos mobilizados em torno dos senti-
mentos de compaixão e piedade. Entende-se que tais sentimentos decorrem de processos
de internalização de normas e valores sociais e as expressam porque permeiam a sociedade
mais ampla, não se manifestando, portanto, somente no plano da consciência dos sujeitos.
Assim, as mudanças nas sensibilidades a respeito do corpo deformado não se dão de
forma linear e em substituição total de uma pela outra, isto é, há permanências ainda que
residuais de ideias e sentimentos que são mobilizados em determinadas situações, como
89
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
no caso da relação heterogênea entre pessoas com e sem deficiência física, especialmen-
te aquelas visíveis, identificáveis porque corporificadas na aparência, forma, tamanho e
funcionalidade, denunciando a diferença. Não obstante, nos apoiamos especialmente nos
escritos de Courtine (2008a; 2008b) e Stiker (2008) para discorrer sobre aspectos históricos
que consideramos relevantes para a reflexão ora proposta.
A história da deformidade1 corporal no Ocidente, inicialmente, vincula-se aos monstros e
monstruosidades. Courtine (2008b) nos ensina que, até fins do século XV, as anormalidades
corporais assimilavam-se ao animal e encarnavam o fracasso da Criação, ficando assim sob
o território do sagrado. Será entre os séculos XVI e XVIII, sob os auspícios da ciência, que
as alterações corporais serão explicadas de forma secularizada e racional, dando origem ao
que o autor designou “desencantamento do estranho”, adentrando no campo da teratologia
e sendo, então, entendidas pelo prisma orgânico. Essa mudança trará consequências às
sensibilidades diante da anormalidade, e elas serão processuais. Tanto é que, no século XIX,
a exposição de monstros constituía divertimento popular (em locais conhecidos como “entra
e sai”) tornando-se indústria do espetáculo, do circo2, em que monstruosidades, anomalias e
enfermidades eram exibidas ao público. O poema de Jean Richepin, citado por Stiker (2008,
p.362), nos dá pistas sobre tal prática popular e os sentimentos gerados:

Dois lampiões fedorentos que o vento desfia,


tendo por orquestra um tambor que um sino acompanha
Dolorosa música e sinistro brilho,
dignos do que se vê atrás do quadro.
É o aborto cuja cabeça parece um odre,
o elefantiasíaco com sua perna de trave,
o centauro, cretino com focinho de jumento;
a criança que tem braços tenazes de lagosta,
monstro, enfim, verdadeiro, falso, são imitados.
Pois uma deformidade faz a panela ferver.
Entra-se. Sai-se. Daí o nome: um entra-e-sai.
E cada um por dois vinténs vem bendizer a sorte.
Pois o mais feio se vê de formas triunfais,
Diante desses estropiados e desses hidrocéfalos.

O desenvolvimento da teratologia científica, no início do século XIX, reorganizará o


modo de pensar o monstruoso em que as explicações de origem diabólica ou divina darão
lugar às leis regulares que regem os seres vivos: um organismo com desenvolvimento alte-
rado, mas que não deixa de ser um homem inacabado (Courtine, 2008).

1 Nos esforços de classificação das anomalias Stiker (2008) cita Isidore Geoffroy Sain-Hilaire, que faz referência ao termo “deformida-
de”, ressaltando a preocupação com alterações do esqueleto.
2 O mais famoso, citado pelo autor, é o Ringling Bros and Barnum & Bailey Circus ou, simplesmente, “Circo de Barnum” de propriedade
de Phineas Taylor Barnum no século XIX. Nele eram comuns os freaks shows, em referência à exibição de bizarrices. A esse respeito

90
é exemplar o filme Freaks, de 1932, dirigido e produzido por Tod Browning.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Ainda que não fosse consenso, no início do século XIX, a monstruosidade era, por
vezes, empregada como sinônimo de “anomalia”, ou seja, todo desvio ou particularidade
orgânica que um indivíduo apresenta em comparação com a maioria de sua espécie, de sua
idade, de seu sexo3 (Stiker, 2008). Outros preferiam considerar monstruosidades aquelas
anomalias complexas (coexistentes), mais graves e mais aparentes: onde faltava a dua-
lidade que deveria haver (um olho no lugar de dois) ou onde existia a dualidade que não
deveria haver (membros duplos), isto é, quando havia aumento ou diminuição numérica real,
a anomalia constituiria monstruosidade, mas nem sempre, adverte o autor4. Importa reter
que a distinção entre monstruosidade, anomalia e doença influenciará significativamente
o destino social e o tratamento ético da deformidade humana, permitindo medicalizar esta
última. A explicação pelo plano biológico (ainda que arbitrada pela natureza e por deus) in-
sere a deformidade no campo médico, autorizando a intervenção, o que, nesse caso, pode
se mostrar positivo por desculpabilizar o sujeito pela sua condição.
Assim, o corpo deformado pode apontar para a desordem radical, mas é um ser vivo,
ainda que de valor negativo, um contravalor, ou seja, aquilo que a sociedade não quer
(Courtine, 2008a), vislumbrando uma função pedagógica: o monstro servirá para ensinar a
norma, “mostrando” (esse seria o significado da palavra na sua origem do latim) as infinitas e
misteriosas possibilidades da natureza, a manifestação de algo fora do comum ou esperado,
que escapa à inteligibilidade cultural de determinado período (Leite Junior, 2012). Mostram o
que poderíamos ser, o “devir-inumano”, dirá Gil (2000), e, pela transgressão que comporta,
sugestivamente Cohen (2000) o designa “fora da lei”. Portanto, trata-se de um esforço em
classificar, ordenar aquilo que opera nos limites das categorias: humano, animal, vegetal,
mineral, anjo, demônio, homem, mulher, homo, hétero, bissexual, conhecido, desconheci-
do; pois a monstruosidade é a infinita e possível mixagem, união e/ou borramento entre as
categorias socioculturais, conclui Leite Junior (2012).
Da perspectiva de homem inacabado e malfadado, passa-se ao reconhecimento da
dimensão humana na monstruosidade, o que permitirá a esses seres a extensão dos direitos
comuns das pessoas, ainda que dependentes da perícia médica, mas que devem ser alvo
de reeducação (Stiker, 2008). Mas também, observa o autor, justamente, porque se refere
aos humanos, a monstruosidade visível pela imagem remete àqueles humanos monstruo-
sos, que assim foram transformados pelo poder, arrogância, perversidade, na contramão
da igualdade e da solidariedade – a monstruosidade moral5. A esse respeito, no sentido da
3 A definição de deficiente apontada por Lorena Silva (citada em Martins, 2009) mostra-se coerente com a noção de anomalia, quando
diz ser aquele que se apresenta como incomum, estranho e/ou inesperado, dentro de um grupo de pessoas inserido em determinadas
normas, concepções e valores sociais.
4 Há povos em que tais alterações estão presentes nas divindades, maravilhas ou prodígios do mundo e nas criaturas fabulosas. De
fato, há variações no tempo e espaço para essa classificação, bem como dos sentimentos e comportamentos que provocam, osci-
lando em terror, medo, simpatia, fascínio, encanto, dúvida, curiosidade e riso diante do assustador ou do ridículo (Leite Junior, 2012).
Para saber mais sobre essas transformações e a associação do monstro com o maligno, sugere-se consultar Kappler (1994).
5 De forma aproximada a essa ideia, Bavcar (2003), ao refletir sobre as conotações da deficiência, irá se referir a Adão e Eva como os

91
deficientes da existência eterna. Também nesse sentido, Soares e Fraga (2003) informam que a ideia de que o corpo em sua exterio-

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


dupla transgressão (da violação das leis da natureza e também da sociedade), é oportuna
a observação de Michel Foucault (2001, p.414) ao citar o monstro como aquele que “não é
tão só a exceção em relação à forma da espécie, mas o distúrbio que traz às regularidades
jurídicas”. Assim, é verdade que o humano pode comportar o monstruoso ou, também, que
“o monstro não se situa ‘fora’ do domínio humano: encontra-se no seu ‘limite’” (Gil, 2000,
p.170; destaques no original).
Nesse contexto, em que a humanidade dos monstros é “desvelada” pela ciência médica,
serão engendradas novas sensibilidades diante das bizarrices anatômicas, pois o pressu-
posto da existência de sofrimento despertará o sentimento de compaixão ao reconhecer-se
naquelas criaturas os semelhantes: eles têm alma e são horrivelmente humanos, dirá Courtine
(2008a; 2008b). Esse processo de ver-se no outro remete à noção de alteridade em que,
em meio a diversidade, compartilhamos elementos essenciais universais (igualmente hu-
manos), bem ilustrado no personagem John Merrick, do filme O homem elefante, produzido
na década de 1980 por David Lynch com base em livro homônimo de 1923, por exemplo.
Contudo, Courtine (2008a) apontará que o espetáculo da monstruosidade está assen-
tado numa base antropológica muito antiga e responde a uma necessidade psicológica muito
profunda para desaparecer assim, o que o deslocará para a literatura, para o cinema e tele-
visão (filmes de ficção6 como King Kong, Godzilla, Frankestein e os de terror, por exemplo,
o segundo e o terceiro ligados aos pavores coletivos das catástrofes do século XX como
guerras, epidemias, depressões econômicas e manipulações da ciência), passando, aliás,
para o que designou “domesticação dos monstros” nos desenhos animados (o autor cita
como marco a produção em 1938 de Branca de Neve e os sete anões, pelos estúdios
Disney). Tais formas de espetáculo são oportunas, porque expressam fantasias que são
inviáveis na realidade, fazendo-as de forma segura, temporária, em um espaço claramente
delimitado, mas permanentemente comportando limiaridade em que o prazer escapista dá
lugar ao horror apenas quando o monstruoso ameaça ultrapassar fronteiras, para destruir
ou desconstruir as frágeis paredes da categoria e da cultura (Cohen, 2000, p.49).
De acordo com Stiker (2008), nesse transcurso, o final do século XIX conhecerá os
acidentes de trabalho como subproduto da industrialização, cujos corpos mutilados gerados
se juntarão àqueles do início do século XX com as Guerras Mundiais (em especial a da
década de 1940) que, retornavam à sociedade civil compondo uma multidão que estimulou
ridade traduz uma posição moral interna vinha sendo largamente tratada no Ocidente desde o século XVIII e, mais acentuadamente,
a partir do século XIX, pelos discursos médico, jurídico, pedagógico e literário, sintonizados na retidão de posturas e comportamentos,
que visava à erradicação das anatomias disformes, bem como dos espíritos desconformes, de uma maneira bem mais “humana”
(destaque no original).
6 Nesse sentido, Fontes (2009) sugere que na cultura contemporânea o corpo dissonante, que é exemplarmente ilustrado pelo corpo
de deficientes físicos, só será atrativo e consumível quando apresentado sob a configuração de espetáculo ou denúncia porque, nes-
ses casos, sabemos que sua presença é temporária e logo estaremos livres deles. Não podemos deixar de observar também que, em
outro extremo, lutadores de Mixed Martial Arts (MMA) são exemplares de corpos eficientes e se oferecem ao olhar como espetáculo

92
(Nunes, Goellner, 2009).

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


o desenvolvimento do discurso reparador. Esse quadro de deficiências produzidas requer
assistência, reconhecendo-se a responsabilidade e solidariedade coletivas, nas quais cabe
a participação do Estado nas medidas de integração, reclassificação e reeducação desses
corpos, pressupondo um universo de culpa e de obrigações morais. Afinal, são corpos dete-
riorados por mecanismos sociais que fogem ao controle individual, justificando os esforços
para o retorno à normalidade social, conclui o autor. Nesses casos, a sociedade aprendeu
a reconhecer na deformidade humana uma deficiência que deve compensar e, algumas
vezes, até viu no monstro um semelhante a devir, finaliza Courtine (2008a).
Paralelamente, até os anos 1940, mas com influências para além deles, desenvolve-
-se o eugenismo fundamentado no medo da “degenerescência”7, em que a raça parece em
perigo, compondo os “avariados” a lista dos disgênicos que em campos de concentração
transformavam-se nos “coelhos” das experiências genéticas.
Será após a Segunda Guerra Mundial, revela Courtine (2008a), que as exibições das
deformidades humanas começam gradualmente (não linearmente e de uma vez por todas,
mas de forma obliterante) a desvanecer mediante a instauração de mecanismos psicológi-
cos, tecnológicos e sociais de distanciamento entre o espectador da deformidade humana
e o seu objeto como:

– distinção do público a partir de um julgamento social dos espectadores: antes, a


pequena burguesia, e agora atrela-se às pessoas sem qualificação, de mau gosto.
Dessa forma, o olhar denuncia a posição social, e o distanciamento do objeto refle-
tiria certa repressão social da “vulgaridade” em nome do “gosto” refinado;
– em fins dos anos 1940, o monstro é transposto às telas dispensando sua presença
física ou imagem, possível nas ficções que fabricam outras distâncias, inventando
monstruosidades sem monstro. Mostrados como humanos eles sofrem em alguns
casos, mas também porque humanos são cruéis, fazendo transitar pela compaixão
diante das deformidades humanas e pelo recalque das curiosidades anteriores.

Nesse contexto é que, se no início do século XIX “a ciência pode gerar monstros”, afir-
mava Mary Shelley (criadora de Frankestein), David Lynch (criador de O homem elefante)
dirá que ela também pode salvá-los, ao final do mesmo século. É o que ocorre por meio da
reativação dos dispositivos legais e administrativos em prol das pessoas com deficiência,
empreendida após a Segunda Guerra Mundial com intervenções crescentes do Estado no

7 Essa noção não se vincularia, a princípio, à monstruosidade, e sim à medicina alienista que se mostrou conveniente aos temas da
evolução das espécies e da hereditariedade, porém menos ligada ao dado biológico, já que a degeneração resultaria de circuns-
tâncias de vida, ambientes sociais (alcoolismo, por exemplo, e que passaria aos filhos), o que permitiu explicar a criminalidade ao
identificar estigmas físicos como seus indicativos, como foi exemplar a escola italiana de Lombroso e seus discípulos. O sucesso
dessa noção ligar-se-ia ao contexto ideológico e etnocêntrico, favorecendo a tese evolucionista de que os melhores e mais adaptados

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sobreviveriam e deveriam sobreviver, o que se coadunou ao que ficou conhecido por “darwinismo social” (Stiker, 2008, p.368-369).

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


decorrer dos anos 1990, acrescentando-se a punição da discriminação contra elas e inten-
sificando as medidas de apoio.
No entanto, observam-se uma ambivalência e tensões cotidianas em que um discurso
social afirma que o homem com uma deficiência é normal, membro da comunidade, cuja
dignidade e valor pessoal não são enfraquecidos pela sua forma física ou suas disposições
sensoriais, mas ao mesmo tempo ele é objetivamente marginalizado, assistido pela seguri-
dade social, mantido mais ou menos fora do mundo do trabalho e afastado da vida coletiva
devido às barreiras estruturais urbanas (Le Breton, 2006), sem contar com as barreiras
comportamentais, atitudinais.
O autor concluirá que “A deficiência, quando é visível, é um poderoso atrativo de olhares
e de comentários, um operador de discursos e de emoções ... que lembra unicamente pelo
poder da presença, o imaginário do corpo desmantelado ... porque ... cria uma desordem
ontológica que garante a ordem simbólica” (Le Breton, 2006, p.75).

DIFERENÇA E INTERPRETAÇÃO

Numa busca de estabelecer identidades, as sociedades de massa solicitaram a instau-


ração de uma norma corporal bruta, que encontrava na monstruosidade exposta o contra-
modelo que a legitimava. A deficiência passa a ser uma característica normal do curso da
vida humana, confunde-se com a própria condição humana. Há, assim, uma redistribuição
con-temporânea dos limites entre normal e anormal, que produz, com efeito, um esforço de
desatenção calculada, pelas formas de uma “não atenção polida”8 possibilitando o processo
de distanciamento dos corpos (Courtine, 2008b). Nesse contexto, as exibições submetem-se
a uma sanção legal em nome do respeito que se deve à dignidade da pessoa. Empreende-
se uma correção do olhar que deixaria a pessoa cega para os aspectos exteriores do outro,
e essa norma exige atualmente que o olhar renuncie a se demorar sobre a anomalia física:
onde quer que se pouse o olhar, a deformidade deve passar despercebida.
É o que Le Breton (1995) já assinalava sobre a “transparência do corpo” que se rompe
impondo sua presença em situações como a gravidez, a velhice e a deficiência física e, em
contrapartida, um esforço de opacidade que visa transformar o corpo anormal em corpo
ordinário. Para tanto, são impetrados mecanismos (discursos da readaptação, tecnologias
de restauração protética, regulamentos e leis, serviços especializados) que só conseguem
eliminar paradoxalmente o estigma corporal, simultaneamente percebido e apagado, lem-
brado e negado, reconhecido e recalcado. Assim é nas sociedades democráticas, afirmará

8 Ao se referir ao uso de termos “politicamente corretos”, Eco (2000) afirma tratar-se de uma “tolerância polida”, o que parece reger-se

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por essa mesma lógica.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Courtine (2008b, p.335), que a deformidade dissolve-se concomitantemente a uma multipli-
cação das “diferenças”, não sem causar confusão e ambiguidades.
E o mesmo autor continua, afirmando que essa é a tensão que atualmente perpassa,
no Ocidente, as percepções, as representações e a experiência vivida do corpo anormal,
que acaba preso a coerções paradoxais: reclama-se para ele tolerância e compaixão e
proclama-se a igualdade entre os corpos enquanto, ao mesmo tempo, exalta-se uma hie-
rarquia das perfeições corporais e submetem-se deformidades reais ou imaginárias a uma
estigmatização por defeito.
Expressam tal processo esforços corretivos como a genética, que pode detectar a
monstruosidade em germe; a sofisticação de exames de visualização in utero detectando-a
precocemente e permitindo eliminá-la; próteses; cirurgias. Estas últimas, muitas vezes, agem
nas monstruosidades/deformidades “pesadas” em geral provenientes de países pobres, cons-
tituem objeto de cerimônia reparadora ruidosamente anunciadas/divulgadas, que celebram
(com a onipotência médica) as formas tecnológicas da compaixão (seriam, de certa forma,
espetáculo?). Mas há as deformidades “leves” em que as cirurgias se expandem tornando-se
em algumas culturas algo como um rito de passagem de jovens à idade adulta – é a indús-
tria da renovação corporal que se universaliza. A cirurgia estética e sua clientela “inventam”
um sem-número de imperfeições à espera do bisturi, reescrevem a norma corporal, nela
injetando, sem cessar, novas “deformidades”, conclui o autor. A configuração biológica não
é fatal, e o corpo se confirma pelo inacabamento ou como rascunho, lembramos nós.
A plasticidade e imprecisão desses limites remetem à discussão crítica empreendida por
Canguilhem (2009) sobre os conceitos saúde, doença e cura sustentados na biomedicina,
pressupondo a neutralidade e a objetividade das ciências naturais. A patologia e a fisiolo-
gia, campos precisos em seus métodos e estudos, são trabalhadas pelo filósofo francês de
modo a expor seus vieses e se incluir num perspectivismo inevitável. Sua posição é de que
as decisões sobre o estado de um organismo nada mais são do que “avaliação”.
Como a filosofia, as ciências médicas se originam daquilo que afeta a sociedade e
deixa os indivíduos perplexos. Os estados adoecidos e as deficiências são agrupados e
catalogados de acordo com suas características, que são expressas em relação ao estado
normal estatisticamente predominante. A questão que se coloca é a valoração que permeia a
definição dos estados normal e patológico: por um lado, podemos considerar que a fisiologia
(o funcionamento normal do organismo) surge a partir da identificação dos desvios, do que
se chamou de patológico. Por outro lado, uma concepção dualística acaba por permear o
campo de saber médico, de seus tratados ao cotidiano dos indivíduos, estabelecendo o que
é bom e aceitável e o que é mau. Canguilhem parece propor outra perspectiva: o normal
e o patológico funcionam como forças em atuação simultânea num mesmo corpo, que se
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
coloca como diferente em relação aos outros corpos. Nesse sentido, anomalias e mutações
não podem ser consideradas necessariamente patológicas. Elas acabam por exprimir ou-
tras normas de vida possíveis, o que leva cada um, diante de cada situação, a criar normas
diferentes, modos de vida próprios.
Essa singularidade é bem expressa no trecho nietzschiano: “Aquilo de que sofremos de
modo mais profundo e individual é incompreensível para quase todos os demais” (Nietzsche,
2011, p.226). Por impulsionar a criação de modos originais de normatização e de vida, o
sofrimento é íntimo e único, marcando o percurso de constituição de si, numa tessitura
singular, mesmo que permeada pela cultura e pelas relações. Essa tessitura se caracteriza
especialmente pela diferença, encharcada da potência de dizer mais de alguém do que as
semelhanças e os pontos em comum com os outros. A constituição de si, entendida como
“arte do estilo” (Nietzsche, 1995, p.57), inclui tudo que se apresenta como forma de vida,
sem negar nada, nem estabelecer medidas “apesar” das condições. A deficiência funciona
como mais um elemento de constituição, provocador da criação de si.
Parece ser nesse sentido que Gilles Deleuze (2006) desconfia da repetição tomada
como generalidade. Para ele, a repetição é entendida como potência da singularidade, to-
mada como diferença. Nesse sentido, atribui menor valor aos particulares que podem ser
substituídos ou trocados ou mesmo agrupados por semelhança. Entende que as identifi-
cações são úteis nos processos de aproximação e, assim, de generalização; no entanto,
acabam por promover o apagamento da diferença, ou uma “desatenção polida”, conforme
citado anteriormente. Ao apontar a existência de uma potência própria da repetição em todos
os domínios, Deleuze ressalta o valor singular de algo, que não se enquadra em qualquer
identificação ou tentativa de generalização. Nesse sentido, o sofrimento ou os funciona-
mentos do corpo deficiente não acometem, de forma generalizável, diferentes pessoas:
provavelmente, o que a pessoa vivencia seja tão único e diferente, que se torna inacessível
aos outros. Os agrupamentos seriam impossíveis.
Para refletir sobre características marcadamente diferentes da experiência de cada
um, especialmente no que tange às tentativas de interpretar o sofrimento experimentado
pelo outro, retomamos a seção 338 de A gaia ciência: “é incompreensível e inacessível ao
próximo, ainda que ele coma do mesmo prato conosco” (Nietzsche, 2011, p.226). Sendo a
dor e o sofrimento experiências subjetivas, questiona-se se seriam comunicáveis ou indizí-
veis (Le Breton, 2007) já que “a verdade da dor reside naquele que a sofre” (Corbin, 2008,
p.330), pois cada um descreve usando elementos de que dispõe e em função de aspectos
históricos e culturais, já que a vida não é alheia às condições possíveis (Canguilhem, 2009).
A moderna ciência, por meio da biomedicina, permitiu a compreensão da deficiência
como um fenômeno no âmbito da patologia, da lesão ou da anormalidade, a qual ficou
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
conhecida como o “modelo médico da deficiência” (Diniz, 2007) e representou significativo
avanço ao “libertar” o corpo com algum impedimento das explicações religiosas, místicas.
Contudo, seu enfoque situou a deficiência no indivíduo portador de impedimento corporal
que o deixa em desvantagem e, por isso, deve se submeter às intervenções médicas para
melhorar as condições de sua vida e elevar-se à “normalidade”. Foi somente a partir da se-
gunda metade do século XX, que ativistas da deficiência e teóricos dos movimentos sociais
dos deficientes questionaram a soberania desse discurso biomédico, propondo o “modelo
social da deficiência” e advogando que a desigualdade pela deficiência não estaria apenas
nas lesões corporais, mas era constituída nas várias barreiras físicas, econômicas, políticas
e sociais da vida em sociedade para os deficientes (Diniz, 2013, 2007). Postula, assim, que
o enfrentamento da deficiência é uma questão pública (reportando-se à organização da
sociedade) e não privada, individual ou natural – posição que forneceu elementos analíti-
cos e políticos mais consistentes para o ativismo social em torno da deficiência do que os
biomédicos, conclui a autora.
Sem ser excludentes, tais modelos referem-se a identidades sociais que oscilam entre
natureza e cultura: como destino ou opressão social ao corpo com impedimentos, em que
pese, então, a mediação pelas barreiras sociais e pela crítica à cultura da normalidade em
cada sociedade (Diniz, 2007).
Diante de referentes culturais e sociais, entendemos que é possível ganhar familiari-
dade com as condições de vida em que o sofrimento se insere, o que permite aproximação
em relação à dor do outro. Porém, há um “campo oculto”, que permanece como território do
outro, impossível de ser desvelado, mesmo num sentimento de simpatia, até porque ele se
estabelece como um vir a ser, nunca finalizado. Torna-se importante esse reconhecimento
para encontrar uma via de fuga às tentativas de interpretação e, em consequência, de genera-
lização, agrupamento. Analogamente, a maneira como notamos o deficiente será superficial,
poderá evocar sentimento de compaixão, e esta, nem sempre se configura como virtude.
É nessa direção que Szasz (1994) problematiza a antecipação à ajuda aos desam-
parados, afirmando que como o belo e o feio geralmente estão nos olhos de quem vê, no
caso, também a ajuda e o dano estão nos olhos, em geral divergentemente dirigidos, do
benfeitor e de seu beneficiário.

EFEITOS DA COMPAIXÃO

Essa breve história da deformidade nos dá pistas para compreender parte dos elemen-
tos envolvidos nos sentimentos de compaixão e piedade comumente mobilizados diante das
deficiências, e em especial da deficiência física pela sua visibilidade, sendo muitas vezes
expressos por termos correspondentes como pena, dó, caridade, coitado, inválido, infeliz etc.
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
É oportuno lembrar a origem do termo em questão. “Paixão”, na sua etimologia do
latim passio, passi, significa “sofrimento, ato de suportar”, “sofrer, aguentar”, e do grego
pathe, pathos se refere a “sentir” (coisas boas/ruins), mostrando não carregar negatividade
absoluta9. A compaixão, entendida pelo sentido de “paixão-com”, permite uma interpretação
afirmativa dessa disposição ética e existencial, pois o “eu” e o “outro” partilham em uma
relação de alteridade as suas vivências particulares, visto que a palavra “paixão”, na sua
raiz grega de pathos, possui diversidade semântica que não se esgota somente na ideia
de dor ou sofrimento, mas também de afeto, de sentimento (Bittencourt, 2010). Embora a
palavra compaixão seja comumente empregada como sinônimo de piedade, o mesmo autor
distingue esta última pelo sentir-se triste com a tristeza dos outros, aumentando, portanto,
a tristeza, a infelicidade.
Não obstante, vimos nos fragmentos da história da deformidade que a compaixão
e a piedade foram viáveis quando se reconheceu a dimensão humana do ser do qual se
está diante, bem como que existia um sofrimento nessa condição/situação ou, de outra
forma, que essa condição significava sofrimento – interpretação, portanto. Tais sentimen-
tos, contudo, podem ser compreendidos a partir de duas matrizes de sentido10 que oscilam
convivendo, sobrepondo ou justapondo-se no tempo e espaço, e que estão envolvidas no
processo interpretativo: uma advoga aqueles sentimentos como virtude, a outra os vê como
tecnologia de poder.
Na primeira matriz, recorre-se a Jean-Jacques Rousseau (2000a, p.287-288) que afirma:
“conseguimos nos emocionar pela piedade transportando-nos para fora de nós mesmos e
identificando-nos com o sofredor. Só sofremos enquanto ele sofre, não é em nós, mas nele
que sofremos”. Ver-se no outro, porque também humano, e apiedar-se constituem, segundo
o autor, sentimento natural que vem moderar “em cada indivíduo a ação do amor de si mes-
mo, concorrendo para a conservação mútua de toda a espécie. Ela nos faz, sem reflexão,
socorrer aqueles que vemos sofrer; ela, no estado de natureza, ocupa o lugar das leis, dos
costumes e da virtude, com a vantagem de ninguém sentir-se tentado a desobedecer à sua
doce voz” (Rousseau, 2000b, p.78-79).
O homem seria bom por natureza, e, no encontro heterogêneo, na deficiência, o bem-es-
tar coletivo suplanta o individual, o que faz com que alguém se compadeça com o sofrimento
do outro, e a compaixão (deduz-se por essa matriz) denota o “interesse desinteressado” pelo
outro, bastando reconhecer o seu direito à felicidade, tal como o de todas as pessoas. No en-
tanto, como se explicaria o sofrimento, já que não ter deficiência não significa felicidade?

9 Essa oscilação de sentido é bem discutida por Fiorin (2007), para quem a paixão, juntamente com a emoção, a inclinação e o senti-
mento são todos manifestações de afeto, tendo essa mesma base, mas se distinguindo pelas respectivas valências tensivas.
10 Sentido se refere aqui a um senso de coerência e consciência de que existe uma relação entre as experiências e os fenômenos

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vivenciados e cujos parâmetros, aprendidos ao longo da existência, são histórico-sociais.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Schopenhauer (2001) afirma que a compaixão não apenas impede uma pessoa de
causar dano a outrem, mas também a impele a ajudá-lo, e esse estímulo para o auxílio ao
próximo se manifesta como ação caritativa na vida cotidiana. Essa ação, no entanto, se
distingue de uma postura de recompensas que comporta egoísmo e não altruísmo, ou seja,
visa em última instância a benefício próprio, seja nesta ou noutra dimensão.
A compaixão seria o sentimento de integração interpessoal e a experiência de unidade
ontológica que associa intimamente o “eu” e o “outro”, o homem sofredor com o homem que
se compadece pelo fato de ver concretamente a manifestação brutal da dor alheia. Isso se
dá porque a compaixão se caracteriza por levar o homem ético a vivenciar no seu íntimo a
realidade interior do outro, seja o mal que o aflige ou mesmo o bem que o satisfaz, o que
faz com que vejamos o não eu tornar-se em certa medida o eu (Bittencourt, 2010).
Fomos buscar elementos empíricos dessa matriz em um estudo sobre a experiência
de pessoas com deficiência física (Martins, 2009)11 e, embora a compaixão não tenha sido
especificamente abordada, foi possível identificar suas nuanças. O crédito aos olhares com-
passivos das pessoas parece dever-se ao fato de aqueles que agora são objeto desses
sentimentos terem tido experiências iguais antes de se tornar deficientes: estiveram lá, fato
que lhes refinou a sensibilidade viabilizando a compreensão do Outro (agora eu mesmo),
a reinterpretação e a ressignificação em situação, ainda que carregada de constrangimen-
tos. Vamos ouvi-los:

tenho vergonha porque todo mundo olha. Eu mesmo, antes de ser cadeirante,
olhava com dó das pessoas em cadeira de rodas. Depois é você mesmo que
está ali na cadeira, não é fácil aceitar isso (Ícaro, 19 anos, paraplegia, citado
em Martins, 2009, p.89).
todo mundo olha, mas isso também já acontecia comigo antes do acidente.
Quando eu passava por um cego, um cara de cadeira de rodas, de muleta,
eu também já olhava assim (Aquiles, 52 anos, amputação, citado em Martins,
2009, p.89).

Em outra matriz, recorremos a Caponi (1998-1999) para quem a compaixão piedosa


instaura uma modalidade peculiar de exercício do poder, estruturada a partir do binômio
servir-obedecer, multiplicando assim a existência de relações sempre dissimétricas entre
quem assiste e quem é assistido. O que acontece, afirma esta última autora, é que é im-
possível, ao compassivo, acessar em toda sua complexidade a dor de quem padece, e é ali
que radica uma característica que define o compassivo: “é da essência do afeto compassivo
despojar o sofrimento alheio do que ele é propriamente pessoal” (Nietzsche, 2011, p.226-
227), de individual, de único e irrepetível. Tratar-se-ia então, de uma coerção que as pessoas

11 Os dados selecionados para este artigo advieram de consulta a essa mesma obra de acesso público em 1 fev. 2013 e disponível
em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp095485.pdf, cuja pesquisa baseou-se em entrevistas semiestruturadas reali-
zadas com oito homens e cinco mulheres com deficiência física adquirida, pertencentes a segmentos populares e identificados por

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nomes fictícios.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


caridosas exercem sobre os infortunados – uma ditadura do bem-estar, desconsiderando
que “exista uma necessidade pessoal de infortúnio, que para mim e para você haja terrores,
empobrecimentos, privações, meias-noites, aventuras e erros...” (Nietzsche, 2011, p.227).
Nesse sentido, o compassivo, na tentativa de sentir o mesmo que o sofredor, acaba por
diminuir o valor de quem sofre e o valor de sua vontade. Não necessariamente o compassi-
vo supõe que o sofrimento seja mais brando do que o sentido pelo outro, pode até supô-lo
dez vezes mais intenso e doloroso, contudo, ainda assim, estará desvalorizando o outro a
partir do momento em que se julga capaz de dizer dele. O “benfeitor” diminui o sofredor mais
intensamente do que seu inimigo o faz.
A compaixão configura-se, assim, como princípio moral: se um infortúnio afeta o outro, é
socialmente esperado que alguém participe e se doe a ele, em gestos compassivos. A “con-
servação da vida” se coloca como princípio fundamental e orientador das atitudes e dos
sentimentos diante dos fenômenos. Moralmente aceita e desejada, a compaixão proporciona
“ar, luz e liberdade de movimentos”, queridos ao beneficiário, bem como ao benfeitor com-
passivo, que adquire um “gosto de superioridade” (Nietzsche, 2008, p.105).
Na seção 138 de Aurora, Nietzsche (2008) considera haver no sofrimento algo que
rebaixa, já que há uma perspectiva do campo da saúde que o caracteriza como dor e a
deficiência como falta, carência. É, portanto, alvo do compassivo, que a deseja suprir. Há,
então, “na compaixão, algo que eleva e proporciona superioridade” (Nietzsche, 2008, p.106),
já que o compassivo é alvo de reconhecimento e gratidão. “Nós comunicamos ao próximo
um sentimento que o faz considerar-se como uma vítima” (p.112), afirma o autor. Nesse
sentido, instaura-se um abismo entre os sentimentos de sofrimento e de compaixão.
Assim é que os olhares e as ações compassivas podem incomodar as pessoas que a
provocam, como é notável nos excertos a seguir. A expressão desse sentimento é interpre-
tada pela pessoa com deficiência física como uma atribuição de valor que remete à imper-
feição, à incapacidade e, sobretudo, à desvantagem, levando a um conceito socialmente
desvalorizado (Martins, 2009), mas que parece não ser condizente com a sua interpretação
da situação. Essa aparência física permanentemente modificada provoca sentimentos per-
turbadores, rejeitando suas formas de expressão, segundo palavras das pessoas:

não tem coisa pior que você estar na rua e ficar todo mundo olhando, sentindo
‘dó’. A coisa que mais odeio é chegar ao ponto de ônibus e ter que esperar
todos os ônibus passarem, pra esperar o ônibus adaptado pra que ninguém me
pegue no colo pra pôr dentro do ônibus, porque sei que ficam todos olhando
com ‘dó’ da gente (Ícaro, 19 anos, paraplegia, citado em Martins, 2009, p.87).
a maioria às vezes me discriminam por causa da cadeira de rodas, porque, se
eu tivesse um jeito de andar sem depender dela, acho que não me viam como
veem! Não me achariam um inválido porque essas pessoas que olham pra
gente são porque elas acham que somos pessoas inválidas (Zeus, 54 anos,
paraplegia, citado em Martins, 2009, p.87).
100
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Eu odeio, não gosto que ninguém tenha ‘dó’ de mim. Me sinto mal mesmo.
Nem sei o que mais eu sinto. Não gosto mesmo (Íris, 23 anos, amputação,
citado em Martins, 2009, p.87).

O corpo com uma deficiência parece guardar uma condição que inviabiliza a vida
da pessoa, tornando-a triste, limitada, lenta, improdutiva, incapaz de cuidar de si mesma,
sendo, por tudo isso, digna de pena, carente da ajuda e da piedade alheia (Pereira, 2006).
Compreende-se que essas manifestações incomodam por ser atitudes generalizantes diante
das pessoas com deficiência, identificando-as como sendo todas iguais, ou seja, todas com
as mesmas necessidades, igualmente vítimas de infortúnio e passíveis do mesmo sentimento
de piedade. Nesses casos ocorre um ofuscamento e indiferença da e à pessoa propriamente,
que fica, como lembra Szasz (1994), resumida a um membro de um grupo específico (os
inválidos, os tristes, os carentes etc.).
As atitudes piedosas também refletem uma faceta do estigma, já que comportam
julga-mentos tácitos e antecipados sobre o status moral e a identidade da pessoa com defi-
ciência, e, de acordo com Goffman (1988), apoiados em diferenças isoladas em detrimento
do restante de suas características. Situações desse tipo foram descritas com certa aversão
quando se materializavam no cotidiano, por exemplo, ao ser abordada em espaços públi-
cos por pessoas oferecendo algum tipo de auxílio, como se fosse mais fácil antecipar uma
ajuda do que acreditar na capacidade do outro. Essa atitude de ajudar sem ser solicitado
traz subentendida, também, a incapacidade na deficiência, coerente com o assistencialis-
mo, que tem raízes históricas no Brasil e influencia esse tipo de atitude (Martins, 2009).
Lembremos que se, classicamente, o estigma remete aos valores e às normas prevalentes
e, por vezes, são impostos; os sujeitos podem não se mostrar passivos diante deles, como
se percebe nas suas falas:

eu mesmo não gosto de ser ajudado por pessoas estranhas. E acho que
nenhum cadeirante deve gostar. As pessoas deviam esperar a gente pedir
ajuda. Quando vem uma pessoa me ajudar sem que eu peça, eu não gosto.
Essas pessoas ajudam pensando que a gente é coitado, entendeu? Não gos-
to mesmo... se precisar eu peço ajuda! Faço quase tudo, vou pra todo lugar,
mas às vezes já estou fazendo as coisas e vem alguém oferecendo ajuda.
Eu não gosto! Não sou coitado, inválido! Eu acho que tem que deixar a gente
se virar. A gente consegue fazer as coisas, é só esperar que a gente faz...
quando tenho que subir uma escada ou alguma outra barreira, fico no local,
o primeiro que passar eu peço e ele ajuda, não precisa se oferecer (Ícaro, 19
anos, paraplegia, citado em Martins, 2009, p.88).
Se a gente gastava meia hora pra fazer uma coisa, agora você gasta uma
hora ou mais, mas não há problema, desde que você faça devagar, sem ter
pressa. Foi a única coisa que mudou, porque do resto não mudou nada! Se eu
pegar pra fazer alguma coisa hoje eu faço, nem que eu demore mais, mas eu
faço! Não precisa ajudar, é só esperar. Só ficou mais difícil, mas não é dizer
que eu não faço – porque eu faço (Aquiles, 52 anos, amputação, citado em

101
Martins, 2009, p.88).

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


É interessante notar nesses fragmentos de relato a busca de uma nova constante, novo
reequilíbrio, a normalidade possível preservando graus de autonomia, enfim, a normalidade
reconstruída, singular que marcaria em parte a identidade à qual subjazem sentimentos
de pertença a um grupo (notemos se referirem como “a gente”) que reclama respeito por
sua diferença. Nesse sentido, é profícua a distinção entre “impedimento” que se refere às
variações corporais (físicas, intelectuais, sensoriais) e a “deficiência” que é a tradução da
discriminação e opressão dos impedimentos (Diniz, Barbosa, Santos, 2009). Considerar que
a deficiência não se resume ao impedimento é, ao mesmo tempo, entendê-la em termos
não naturais, porque decorrente de interações sociais (Diniz, 2007).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os sentimentos diante da deficiência física comportam, simultaneamente, dimensões


pessoal e coletiva remetendo à prévia interpretação e classificação do corpo “normal” e seu
contrário – o anormal ou desviante –, mobilizando parâmetros sociais e morais ideais de
habilidade, funcionalidade, beleza/perfeição para análise do corpo, parâmetros que variam
no tempo e no espaço, e cujos desvios podem gerar aversão, repulsa, vergonha, culpa, mas
também fascínio. E esse deslumbre se deve ao interstício da humanidade/não humanida-
de que representa.
A tensão que se coloca em situação é que haveria o pressuposto do sofrimento em-
butido na deficiência, o que é compreensível pelo seu lugar na história, mas que convive
com os ideais de igualdade preconizados às pessoas nessas condições. Tensão entre um
valor altruísta, caridoso e valores individualistas, mais egoístas. Assim, concordamos que
compaixão e piedade não expressam virtude absoluta, mas oscilam em situações denotando
ambivalência. Podem travestir-se de benevolência, cuja conveniência, exemplifica Caponi
(1999), é libertar-nos de um sentimento incômodo ou gerar uma dívida e, com ela, a eterna
gratidão e humildade.
A não gratuidade do gesto compassivo está pressuposta, o que não impede que seja
sincero, mas para tanto não admite a assimetria e a generalização, porque só é possível,
sugere Szasz (1994), quando os valores morais dos envolvidos não forem antagônicos ou,
como adverte Caponi (1999), entre sujeitos que se reconhecem semelhantes.
O sentimento e a atitude generalizados diante da deficiência física despersonalizam
a experiência singular de situações concretas, biográficas, a qual acaba sendo interpreta-
da como sofrimento que sempre deverá ser negado, esquecendo-se de que ele também
é parte da condição humana. Contudo, não se deve descurar e, com isso, obscurecer a
compreensão de que há condições fragilizantes geradoras de sofrimento social. Pode-se
sentir e viver como “normal” e com dignidade, mas com um corpo diferente, o que parece
102
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
requerer certa politização dessa identidade social que reconhece a plenitude de direitos
não pelo infortúnio, tragédia pessoal ou desvantagem social atribuídos ao impedimento
corporal que, assim, estaria destinado à exclusão social, mas, ao contrário, reconhecendo
a restrição de participação como resultante de valores, atitudes e práticas que discriminam
o corpo com impedimentos pela sua interação com o ambiente social (Diniz, 2013; Carter,
Markham, 2001; Diniz, Barbosa, Santos, 2009).
Mais pertinente ao deficiente físico do que o sentimento de compaixão piedosa pa-
rece ser a compreensão de quem ele é, em sua potência de originalidade. Essa atitude
inclui que se rechace o niilismo fraco – as tentativas de amenizar o que se apresenta como
deficiência, seja em gestos, seja em palavras politicamente corretas, que mascaram pre-
conceito e compaixão. Estar livre do ressentimento envolve o dizer sim à vida, à minha e à
do outro. A “afirmação” “um dizer Sim sem reservas ao sofrimento mesmo, à culpa mesmo,
a tudo o que é estranho e questionável na existência mesmo…” (Nietzsche, 1995, p.63) é
liberdade de não precisar fugir da realidade. Liberdade também para “com um excesso de
força”, ganhar coragem e inspiração para fazer a própria vida, conclui o autor. É a afirmação
do surgimento de uma primeira linguagem, única. Diante da situação nova, a provocação
de uma norma nova, criadora, potência de si no tecer da vida.

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105
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
07
Influência de um ambiente afetivo
positivo, em sala de aula, sobre o
estado motivacional de adolescentes
do ensino médio

Rosane Antunes da Silva


UERGS

Sílvia Leticia dos Anjos Ventura


UERGS

Iara Kerch Soares


UERGS

Adriana Barni Truccolo


UERGS

10.37885/210404102
RESUMO

A escola pode ser um local propício para a criação de um ambiente mais estimulante e
afetivo ao adolescente tendo o professor como um aliado, como aquele que impõe limites
e mostra possibilidades, aquele que media a construção de conhecimentos e preocu-
pa-se com a apropriação deles, compromete-se com a ação que realiza, percebendo o
aluno como único, dotado de ideias, sentimentos, emoções e expressões. A partir do
exposto objetivou-se investigar se um ambiente afetivo positivo em sala de aula exerce
influência à motivação em aprender por parte de adolescentes. Pesquisa de levantamento
com abordagem quantitativa e recorte transversal, realizada de março a dezembro de
2018 com 836 adolescentes estudantes do ensino médio de sete escolas públicas es-
taduais. O instrumento utilizado foi um questionário com perguntas abertas e fechadas.
Como resultados obtidos constatamos que os alunos são perceptivos e são influencia-
dos pelo estado de humor do professor e que ele afeta positiva ou negativamente na
motivação dos alunos em aprender. Um professor amigo, conselheiro, interessado, sério
em alguns momentos e brincalhão em outros momentos, com voz serena e chamativa
foram as características positivas levantadas pelos adolescentes do ensino médio para
que se sintam motivados a aprender. Conclui-se que todas as condições que se fazem
necessárias para transformar o espaço escolar num ambiente acolhedor, com princípios
pedagógicos eficazes estão relacionadas com a afetividade e o trabalho docente.

Palavras-chave: Afetividade, Motivação, Escola, Aluno, Professor.

107
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

De acordo com Bock (2007) foi Erikson, em 1976, que introduziu o termo adolescên-
cia, caracterizando-a como uma fase especial no processo do desenvolvimento, na qual a
confusão de papéis, as dificuldades para estabelecer uma identidade própria a marcavam
como “um modo de vida entre a infância e a vida adulta”.
A melhor contextualização acerca da adolescência é aquela que possibilita a combina-
ção de diferentes critérios. Como critério cronológico a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990
que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no seu artigo 2º conside-
ra-se adolescente aquele entre doze e dezoito anos de idade. Por outro lado, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) adota a faixa etária entre dez e dezenove anos de idade para a
adolescência. No presente projeto será adotada a faixa de idade estabelecida pelo ECA.
Como critério do desenvolvimento físico a adolescência é a etapa da vida compreendida
entre a puberdade e a idade viril. O desenvolvimento é bem marcante para o adolescente e
seu meio social. É neste período que se dá o estirão no crescimento, surgimento de pelos
pelo corpo, aumento de peso; os meninos ficam com ombros mais largos, desenvolvem mús-
culos mais fortes e ficam com a voz mais grave; as meninas ficam com os quadris maiores
e ganham seios. O desenvolvimento das características sexuais dos adolescentes também
é marcado nessa etapa. O desenvolvimento dos órgãos sexuais e o aumento da quantidade
de hormônios sexuais são exemplos disso. Todo esse desenvolvimento físico sexual objetivo
a maturidade biológica do adolescente, chegando à fase adulta (GALLAHUE, 2013).
Como critério sociológico a adolescência é o período da vida de uma pessoa durante
o qual a sociedade em que vive deixa de encará-la como criança e, ao mesmo tempo, não
lhe confere os status, papéis e funções adultos. Na esfera social percebe-se no adolescente
grande influência do grupo de amigos. Não há dúvidas de que “a importância do grupo de
amigos e da sensação de ser aceito é maior na adolescência do que em qualquer outra fase
da vida”. “A necessidade de se conectar a algum grupo de amigos faz com que o adolescente
procure satisfazê-la em vários tipos de vínculos sociais: escola, igreja, rua, música, esportes,
estilo de roupas, artes, literaturas diversas, jogos, informática, ídolos”. As semelhanças e
gostos que existem entre os adolescentes os afastam da sua dependência infantil dos pais
e da realidade adulta (SILVA et all., 2021).
E, como critério psicológico a adolescência é um período de extensa reorganização
da personalidade e de suas estruturas psíquicas previamente estabelecidas. Este é um dos
fatores mais complexos de avaliar, uma vez que trata de pontos tão delicados como o de-
senvolvimento emocional e intelectual do indivíduo. O desenvolvimento de um pensamento
mais abstrato, autocrítico e reflexivo é uma característica forte da adolescência.

108
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
A adolescência inicia-se com uma crise marcada por mudanças na estruturação da
personalidade, sendo um momento no qual o adolescente volta-se para questões que estão
mais diretamente ligadas ao seu lado pessoal, moral e existencial (OLIVEIRA, 2017).
Nesse sentido, a afetividade torna-se um dos fatores preponderantes no processo de re-
lacionamento do adolescente consigo mesmo e com os outros. Normalmente é uma fase
marcada por muitos questionamentos, fortes exigências, novas experiências e constantes
preocupações. Diante de tantas alterações físicas e emocionais, muitas vezes não conse-
guindo conter ou canalizar tanta energia, iniciam-se os confrontos com pais, professores e
até com colegas. Considera-se esse período o mais marcado pelas transformações, talvez
seja essa uma das razões pelas quais exista um enorme desejo de o adolescente romper
com os modelos pré-estabelecidos.
A escola pode ser um local propício para a criação de um ambiente mais estimulante
e afetivo ao adolescente, tendo o professor como aliado, como aquele que impõe limites e
possibilidades aos alunos, permitindo que o adolescente o perceba como alguém que, além
de lhe transmitir conhecimentos e preocupar-se com a apropriação deles, compromete-se
com a ação que realiza, percebendo o aluno como um ser importante, dotado de ideias,
sentimentos, emoções e expressões.
Destacamos que, no modelo atual, a escola é um ambiente limitado por horários, por
conteúdos e pela relação estabelecida entre os sujeitos, professor e aluno. As variáveis e as
características destas relações são regidas pelo professor, pois cabe a ele propor iniciativas e
assegurar o respeito mútuo. Rodrigues (2019, p.22) comenta que, “mesmo estando limitados
por um programa, um conteúdo, um tempo predeterminado, normas diversas da instituição
de ensino, o professor e o aluno, interagindo, formam o cerne do processo educativo”.
Piaget (2017) enfatiza que os aspectos cognitivos e afetivos são inseparáveis, sendo
ação e motivação codependentes, onde a ação depende de estruturas cognitivas e a moti-
vação depende de todas as ligações anteriores vindas de sentimentos positivos ou negati-
vos. Assim, por mais “evoluída” que seja a sociedade pode-se dizer que as emoções fazem
parte do ser humano. Todo aprendizado transita por inúmeros sentimentos, como medo,
ansiedade, curiosidade, insegurança, alegria, satisfação, realização. O autor ressalta que o
comportamento é formado pela dimensão afetiva e cognitiva, não havendo comportamento
afetivo puro, como comportamento cognitivo puro. A criança que “gosta” de português faz
rápidos progressos. A criança que “não gosta” não faz rápidos progressos. Em cada caso,
o comportamento é influenciado pela afetividade.
Os vínculos afetivos em sala de aula são decisivos para a construção de conhecimen-
tos significativos, estando diretamente ligados à condição de permanência ou evasão dos
alunos (MANFIO, 2021). O vínculo afetivo entre professor e aluno é condição fundamental
109
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
para o sucesso da aprendizagem no espaço escolar presencial ou à distância (SOUZA,
2020). As relações presentes no cotidiano escolar entre professor e aluno, os diferentes
fazeres pedagógicos do professor e a gama de emoções que perpassam todo processo de
ensino e aprendizagem fornecem pistas para entendermos a sua importância na aquisição
do conhecimento e apresentam-se como um diferencial no desenvolvimento cognitivo, emo-
cional e social do educando.
O professor (a) que acredita no potencial de seu aluno dispensa ao mesmo maior
atenção, demandando-lhe maior expectativa (REIS; PRATA; SOARES, 2017). Por outro
lado, o/a professor/a que tem comportamento contrário promoverá em seus alunos, baixa
expectativa, podendo influenciar negativamente no seu autoconceito e autoestima. O autor
menciona que por meio do afeto os alunos se sentem encorajados a se expressar em sala de
aula, uma vez que no ambiente escolar podem encontrar fortes relações de companheirismo.
Assim, observa-se que o/a professor/a autoritário/a desperta nos alunos sentimentos
negativos tais como ansiedade e medo, os quais fazem com que eles criem barreiras, não
conseguindo expor suas dúvidas, e impedindo, dessa forma, uma aprendizagem significativa.
Libâneo (2004, p. 87) enfatiza que a aprendizagem escolar é afetada tanto por fatores
afetivos quanto por fatores sociais, tais como os que provocam a motivação para o estudo, os
que afetam a relação professor- aluno, os que interferem na disposição emocional do aluno
para enfrentar as tarefas escolares, os que contribuem e dificultam a formação de atitudes
positivas por parte do aluno frente aos problemas e situações da realidade e do processo
de ensino e aprendizagem.
É importante salientar que a afetividade não modifica a estrutura do funcionamento da
inteligência, porém, poderá acelerar ou retardar o desenvolvimento dos indivíduos, interferindo
no funcionamento das estruturas da inteligência (REIS; PRATA; SOARES, 2017). A afetivi-
dade está ligada à autoestima e às formas de relacionamento entre aluno e aluno e aluno
e professor e aluno (PIAGET, 2017).
Sabe-se que o processo ensino-aprendizado é influenciado pela qualidade das rela-
ções afetivas desencadeadas na escola, pelo quanto o professor reconhece seu aluno como
indivíduo autônomo, com uma história de vida diferente da sua e, portanto, com percepções
distintas que devem ser respeitadas em todas as suas nuances.
Assim, perceber o adolescente como um ser intelectual e afetivo, que pensa e sente, e
reconhecer a afetividade como parte integrante do processo de construção do conhecimento,
implica outro olhar sobre a prática pedagógica, não restringindo o processo ensino-aprendiza-
gem apenas à dimensão cognitiva. No trabalho educativo é importante o professor considerar
que não existe uma aprendizagem meramente cognitiva ou racional, pois o adolescente não
deixa os aspectos afetivos que compõem sua personalidade do lado de fora da sala de aula,
110
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
ele traz consigo sentimentos, afetos, emoções, experiências, e assim a preocupação com
a forma de ensinar passa a ser tão importante quanto o conteúdo a ser ensinado (BELO;
OLIVEIRA; SILVA, 2021).
O afeto positivo demonstra o quanto uma pessoa se sente entusiasmada, ativa e aler-
ta. Em situações em que é experimentado em máxima intensidade é possível constatar alto
nível de energia, concentração e forte sentimento de prazer. Quando presente em intensidade
baixa, as pessoas apresentam tristeza e indiferença. Os afetos negativos são caracterizados
por angústia subjetiva, variações no estado de humor e sensações negativas como raiva,
desprezo, culpa, medo, nervosismo e ausência de prazer. Em situações de baixa intensidade,
é possível identificar sentimentos como calma, serenidade e sossego, mas também situações
de depressão e ansiedade (SIQUEIRA; PADOVAN, 2008). Pessoas que têm sentimentos
positivos possuem o desejo de autoconhecimento, motivação e acreditam em si mesmas
para a realização de trabalhos de grande valor. Aquelas que possuem negatividade elevada
podem sentir- se desanimadas e inúteis (NORONHA et al.,2014).
Também conforme Vygotsky (2003), os afetos se classificam em positivos e negati-
vos. Os afetos positivos estão relacionados a emoções positivas de alta energia, como o entu-
siasmo e a excitação, e emoções de baixa energia, como a calma e a tranquilidade. Os afetos
negativos, por sua vez, estão ligados às emoções negativas, como a ansiedade, a raiva, a
culpa e a tristeza. As emoções e os sentimentos dos alunos não se dissociam no processo
ensino-aprendizagem, já que podem favorecer ou não o desenvolvimento cognitivo. Para
Vygotsky só se pode compreender adequadamente o pensamento humano quando se com-
preende a sua base afetiva.
Assim, o desenvolvimento afetivo depende da qualidade dos estímulos do ambiente para
que satisfaçam as necessidades básicas de afeto, apego, desapego, segurança, disciplina e
comunicação, pois é nessas situações que a criança estabelece vínculos com outras pessoas,
ou seja, o ambiente tem papel fundamental no desenvolvimento do indivíduo juntamente com
a capacidade intelectual, e nesse meio surge a afetividade influenciando o desenvolvimento
cognitivo e tendo um papel fundamental no aprendizado da criança (TAVARES, 2019, p.61).
Tavares (2019) ainda aponta que a afetividade “além de envolver a emoção, apresenta
também um componente cognitivo, representacional, que são os sentimentos e a paixão”.
A partir do acima descrito formulou-se a seguinte questão norteadora: Qual a impor-
tância para o adolescente de um ambiente afetivo positivo em sala de aula?
A pesquisa teve como objetivo geral investigar se um ambiente afetivo positivo em sala
de aula exerce influência à motivação em aprender por parte de adolescentes.
Como objetivos específicos pretendeu-se identificar os Afetos Pessoais Positivos (pro-
fessor amigo, agradável, afetuoso, brincalhão, conselheiro, autêntico, sereno, respeitoso,
111
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
íntegro) percebidos pelos adolescentes com relação aos professores; identificar Afetos
Pessoais Negativos (professor ansioso, sério, desligado, frio, grosseiro, mal humorado,
irônico, intolerante, rígido, ríspido, gritos) percebidos pelos adolescentes com relação aos
professores; Identificar Afetos Profissionais Positivos (professor atualizado, dialógico, estu-
dioso, competente, interessado, organizado e responsável) percebidos pelos adolescentes
com relação aos professores.
Pretendemos amparar a afetividade como elemento crucial no processo de relacio-
namento do adolescente consigo mesmo, com os colegas e com o professor, e enfatizar o
quanto um ambiente acolhedor, e verdadeiramente afetivo é atraente para a permanência
e o aprendizado do adolescente na escola.
Assim, partimos do pressuposto de que alunos que admiram e possuem vínculo afetivo
positivo com o professor terão maior predisposição à permanência na escola e ao aprendi-
zado dos conteúdos do que os alunos que não admiram o professor.

MÉTODO

Com relação ao delineamento, a pesquisa foi de levantamento com abordagem quan-


titativa e recorte transversal, sendo descritiva com relação aos objetivos e de campo com
relação ao local de coleta dos dados.
O estudo foi realizado de março a dezembro de 2018, nos turnos da manhã e noite,
com 836 adolescentes estudantes do três anos do ensino médio das sete escolas públicas
estaduais do município de Alegrete, Rio Grande do Sul.
O instrumento utilizado foi um questionário com perguntas abertas e fechadas, elabo-
rado a partir da adaptação da escala de afetos positivos e negativos de adolescentes pro-
posta por Segabinazi et al (2012) e modificado após a realização de um estudo piloto com
adolescentes de uma turma de cada ano do ensino médio de uma escola pública estadual
do município. A partir da análise das respostas, acrescentou-se questões abertas e a opção
“outro” nas questões objetivas do questionário. As três turmas participantes do estudo piloto
foram excluídas posteriormente da coleta dos dados. A aplicação do questionário ocorreu
em sala de aula, após consentimento do professor. O tempo para apresentação às turmas
e preenchimento do questionário foi entre dez e O projeto foi submetido ao Comitê de Ética
em Pesquisa da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e o número do
parecer de aprovação foi 2.609.630. A direção das escolas assinou um termo de anuência,
e os adolescentes assinaram um Termo de Assentimento (TA). Uma das vias do TA, onde
constam as explicações quanto aos dados da pesquisa assegurando a privacidade dos
participantes ficou com os adolescentes e a outra com a pesquisadora.

112
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
RESULTADOS E DISCUSSÃO

O objetivo da pesquisa foi investigar se um ambiente afetivo positivo em sala de aula


exerce influência à motivação em aprender por parte de adolescentes.
Para isso 257 adolescentes com média de idade de 17,1 + 0,96 anos de idade, per-
tencentes ao terceiro ano do ensino médio, 304 adolescentes com média de idade de 16,4
+ 1,18 anos de idade, pertencentes ao segundo ano e 275 adolescentes com idade média
de 15,3 + 1,22 anos de idade, pertencentes ao terceiro ano responderam a um questionário
com questões pertinentes ao tema.
Conforme Vigotsky (2003), os afetos se classificam em positivos e negativos. Os afe-
tos positivos estão relacionados a emoções positivas de alta energia, como o entusiasmo
e a excitação, e emoções de baixa energia, como a calma e a tranquilidade. Os afetos
negativos, por sua vez, estão ligados às emoções negativas, como a ansiedade, a raiva, a
culpa e a tristeza. As emoções e os sentimentos dos alunos não se dissociam no processo
ensino-aprendizagem, já que podem favorecer ou não o desenvolvimento cognitivo. Para
Vigotsky (2003) só se pode compreender adequadamente o pensamento humano quando
se compreende a sua base afetiva.
Assim, o desenvolvimento afetivo depende da qualidade dos estímulos do ambiente para
que satisfaçam as necessidades básicas de afeto, apego, desapego, segurança, disciplina e
comunicação, pois é nessas situações que a criança estabelece vínculos com outras pessoas.
Dessa forma, com intuito de melhor organizar o conteúdo das respostas dos adoles-
centes escolares, foram construídas as seguintes categorias: Afetos Pessoais Positivos
(professor amigo, agradável, afetuoso, brincalhão, conselheiro, autêntico, sereno, respeito-
so, íntegro); Afetos Pessoais Negativos (professor ansioso, sério, desligado, frio, grosseiro,
mal humorado, irônico, intolerante, rígido, ríspido, gritos), Afetos Profissionais Positivos
(professor atualizado, dialógico, estudioso, competente, interessado, organizado e respon-
sável) apresentadas abaixo. Salienta-se que em cada pergunta o adolescente poderia citar
várias respostas e dessa forma o total de respostas poderá ser maior do que o número de
respondentes que participaram da pesquisa.
Quando perguntados sobre os aspectos pessoais mais importantes para que admirem
o/a professor/a (gráfico 1), identificamos que tanto os adolescentes do primeiro, quanto
do segundo ou do terceiro ano mencionaram ser amigo e conselheiro em detrimento de
ser autêntico ou crítico ou íntegro. Adolescentes, muito frequentemente, são vistos como
rebeldes, não ouvintes ou que não se importam com o que o professor ou pessoas mais
velhas têm a dizer. Na presente amostra, parece ser o contrário, os escolares desejam um
professor conselheiro e amigo. Pensamos que a relação entre professor e aluno depende,
fundamentalmente, do clima estabelecido pelo professor, da relação empática com seus
113
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
alunos, de sua capacidade de ouvir, refletir e discutir o nível de compreensão dos alunos e
da criação das pontes entre o seu conhecimento e o deles, indicando que o professor deve
buscar educar para a autonomia dos alunos.

Gráfico 1. Aspectos Pessoais Importantes para Admirar o Professor.

Fonte: Autora (2018)

Destacamos que, no modelo atual, a escola é um ambiente limitado por horários, por
conteúdos e pela relação estabelecida entre os sujeitos, professor e aluno. As variáveis e as
características destas relações são regidas pelo professor, cabendo a ele propor iniciativas e
assegurar o respeito mútuo. Rodrigues (2019, p.22) sustenta que, “mesmo estando limitadas
por um programa, um conteúdo, um tempo predeterminados, normas diversas da instituição
de ensino, o professor e o aluno, interagindo, formam o cerne do processo educativo”.
Interessado foi considerada a principal característica profissional para que o professor
seja admirado, seguido por atualizado e competente (gráfico 2), pelos escolares dos três anos.
Somente 4% (12), 10% (31) e 6% (17) dos adolescentes do primeiro, segundo e terceiro
anos, respectivamente, não se sentem à vontade em fazer perguntas ao professor o que
nos remete a pensar que a/o professor/a é uma pessoa aberta ao diálogo. As respostas até
aqui relatadas nos permitem acreditar que as escolas estudadas parecem criar um ambiente
mais estimulante e afetivo que possibilita aos adolescentes se enxergarem como indivíduos
participantes na elaboração do conhecimento. Por esse motivo, a relação professor aluno
baseada no afeto contribuirá para que o aluno adolescente do ensino médio se sinta prota-
gonista na construção do seu existir e do seu pensar. É importante ressaltar que, quando
mencionamos proporcionar uma relação professor-aluno baseada no afeto, de forma alguma,
confunde-se aqui afeto com permissividade.

114
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Interessante foi observar a repetição na fala dos estudantes quanto questionados
acerca do que menos gostavam no professor. Estupidez, gritaria, impaciência, grosseria e
mau humor, ou seja, aspectos pessoais foram as razões mais citadas pelos adolescentes,
independente do ano em que se encontravam.
Quando questionados sobre o clima das aulas (gráfico 3) observamos que a maior
parte dos escolares considera o clima das aulas agradável. A afetividade para Piaget (2017)
organiza todas as ações humanas, dando a elas impulsos ou energia para as ações físicas
e mentais sobre o meio em que vivem. A forma como o professor se dirige aos alunos ao
chegar em sala de aula, por exemplo, animado ou desanimado, poderá ou não os estimular,
interferindo desta maneira na aprendizagem.

Gráfico 2. Caracteristicas profissionais do Professor.

Fonte: Autora (2018)

Conforme visto no gráfico 4 abaixo observamos que grande parte dos adolescentes do
terceiro ano consideram o professor sério e brincalhão, com tom de voz sereno e chamativo
(gráfico 5), inferindo que os adolescentes não estão se referindo ao mesmo professor, visto
as características mencionadas serem opostas.

115
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Gráfico 3. Clima das Aulas.

Fonte: Autora (2018)

Gráfico 4. Características Pessoais do Professor.

Fonte: Autora (2018)

Um tratamento respeitoso e afetuoso é imprescindível para a motivação dos alunos


pelo conteúdo ministrado pelo professor. A motivação do aluno, vista como a disposição para
aprender, acontece muitas vezes como uma resposta a um comportamento do professor
que se mostra cortês nas relações e interessado pelo aluno. Quanto mais frequentes forem
esses comportamentos mais consistentes e profundos serão os relacionamentos, promo-
vendo uma aprendizagem significativa.

116
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Gráfico 5. Tom de Voz do Professor

Fonte: Autora (2018)

CONCLUSÃO

Concluímos que todas as condições que se fazem necessárias para transformar o


espaço escolar num ambiente acolhedor, com princípios pedagógicos eficazes estão rela-
cionadas com a afetividade e o trabalho docente.
Um professor amigo, conselheiro, interessado, sério, brincalhão, com voz sere-
na e chamativa foram as características levantadas pelos adolescentes do terceiro ano
do ensino médio.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
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118
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
08
Educação estética e ação cultural na
formação de professores: a construção
sensível do conhecimento através da
arte

Angelina Accetta Rojas


UNILASALLE

Simone Araujo Moreira


UFF

10.37885/210304036
RESUMO

Este artigo aborda questões relacionadas à educação estética na formação do professor.


Partiu-se da hipótese de que a formação estética interfere na sua performance em sala
de aula, bem como no relacionamento com os alunos, pois possibilita um olhar mais
sensível aos problemas educacionais. O objetivo geral foi analisar a relevância de um
currículo contextualizado a partir da arte na formação continuada de professores em
sua prática pedagógica. Percebeu-se que por meio das ações culturais as contribuições
tornam-se relevantes visto que a promoção humana acontece a partir da interrelações
pessoais, estéticas e emocionais.

Palavras-chave: Educação Estética, Arte, Cultura, Formação de Professor.

120
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Atualmente, o mundo que vemos fora de nós e o mundo que vemos dentro
de nós estão se convergindo. Essa convergência é, talvez, um dos eventos
culturais mais importantes da nossa era. Onde o mundo interior e o mundo
exterior se tocam, aí se encontra o centro da alma.” (PRIGOGINE, 1996, p. 26)

Este artigo aborda questões relacionadas à educação estética e à ação cultural nas
formações experienciais, iniciais e continuadas de professores da Educação Básica. Nesse
sentido, buscou-se pontos de convergência entre o mundo que vemos fora e o mundo que
vemos dentro de nós, pois, com base nesse princípio de Perigogine (1996), entende-se a
escola como espaço vivo, em constante movimento.
Inicialmente, partiu-se da hipótese de que a formação estética e a ação cultural interfe-
rem na performance do docente em sala de aula, bem como na qualidade do relacionamento
com os alunos, pois possibilitam um olhar mais sensível frente aos problemas inerentes ao
cotidiano escolar.
O olhar sensível educa a atenção e a observação, auxiliando-nos a interpretar o que
está à nossa volta com mais critério e profundidade, e a apreciar melhor a vida e resolver
problemas do cotidiano com mais facilidade (BROWN, 2000). A arte é um estímulo perma-
nente para que a nossa imaginação flutue e crie mundos possíveis, novas possibilidades
de ser, viver e sentir. Assim, é interessante que, nas Licenciaturas, haja atividades que
auxiliem a despertar e desenvolver o desejo de aprender e a alegria de pensar, conhecer,
criar, imaginar: são habilidades que acrescentam valor educativo e cultural à formação dos
professores e dos alunos que por eles serão formados.
Nessa direção, a trajetória de vida dos professores e as histórias das práticas so-
ciais e educativas foram consideradas como objetos de estudo para entender a formação
como processo de construção de sentido. Afinal, concordando com Tardif (2012, pp. 38 e
39), “os próprios professores, no exercício de suas funções e na prática de sua profissão,
desenvolvem saberes específicos baseados em seu trabalho cotidiano e no conhecimento
do seu meio”. Essa é uma forma de perceber a questão de maneira ampla, sob a perspec-
tiva de integralidade e inteireza, fundamentando-se numa visão comprometida com o que
compõe o humano.
Em seguida, o objetivo geral delineou-se com a finalidade de analisar a relevância da
arte curricularizada, tanto nas experiências de vida escolar dos sujeitos, quer seja na infân-
cia, quer seja na adolescência, quanto nas formações iniciais e continuadas de professo-
res. A proposta desdobrou-se, então, no objetivo específico que buscou entender o reflexo
da relação entre essas formações e as práticas pedagógicas que habitam o cotidiano escolar.

121
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Porém, no que tange à questão da arte ensinada/aprendida na escola, problematizou-
-se acerca da sua contribuição para a construção sensível do conhecimento em oposição
a conteúdos sistematizados que por vezes não têm siginifcados para os atores. Igualmente
buscou-se o sentido de cultura no contexto escolar, partindo da premissa de que também
a cultura precisa ser considerada na curricularização, valorizando dessa forma o diálogo
entre os saberes.
Ostrower (1998) sustenta que todos os seres nascem com potencialidades sensíveis,
e que o potencial de criação se articula, principalmente, através da sensibilidade. Assim,
nos convida a pensar que:

A capacidade de criar formas expressivas contém um forte componente afetivo.


Para criar, é preciso dar-se de corpo e alma, integrar a matéria em questão,
identificar-se com ela a fim de poder sondar as possibilidades de configurá-la
em desdobramentos formais (OSTROWER, 1998, p.224)

Incluímos em nossas reflexões sobre Arte, as contribuições de Vygotsky (2001) por


representar um fecundo interlocutor em questões sobre a arte e educação estética, em uma
concepção sócio- histórica. Nessa perspectiva, a atividade criadora é toda realização de algo
novo, tratando-se de reflexos de algum objeto do mundo exterior, de determinadas cons-
truções do cérebro ou dos sentimentos que vivem e se manifestam no próprio ser humano.
Este autor elabora uma pergunta sobre a necessidade da arte:

Em realidade para que necessitamos da arte? Não influi acaso em nosso


mundo interior, em nossas idéias e em nossos sentimentos do mesmo modo
que o instrumento técnico no mundo exterior, no mundo da natureza? (VY-
GOTSKY, 2003b, p.25).

Percebemos o sentido educativo da arte e a prática a ela relacionada como sugerido


pelo autor. Em seus estudos, sustenta que a arte é trabalho do pensamento, mas de um
pensamento emocional inteiramente específico, considerando que tal questão ainda não
foi elucidada devidamente. Argumenta, portanto, que nos limitamos somente à análise dos
processos que ocorrem na consciência, e, que desta forma, dificilmente encontraremos
respostas para as questões mais fundamentais da psicologia da arte.
Dessa forma, a argumentação é construída no sentido de enfatizar na arte e na ima-
ginação as possibilidades de aguçar as observações, que são potencializadas pelo olhar
com interesse, com motivação e emoção. Os elementos do ambiente natural e social, que
constituem objetos de aprendizagem e pesquisa, se descortinam mais ampla e profunda-
mente à luz da visão artística e das inspirações imagéticas.
O propósito de reunir concepções e argumentos sobre a educação estética, o potencial
criador da arte e da imaginação, e suas contribuições visa à ampliação do olhar sensível 122
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
sobre o mundo e o conhecimento. Constituindo-se, portanto, como perspectivas relevantes
da formação superior em todas as áreas e, de modo especial, nas de Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas e na formação para o magistério.
A partir de uma proposta diferenciada de educação estética e formação cultural no
Curso de Formação de Professores na Unilasalle, foi possível favorecer um novo caminho
para a tessitura sensível do conhecimento.

MÉTODO

A metodologia de construção de argumentos é recorrente ao ensaio, com um enca-


deamento de análises fundamentadas em aportes teóricos e conceituais (BURKE, 1997)
que sustentam a sequência de análises.
Como parte da proposta para formação de professores, concretizou-se um espaço
de vivências de Educação Estética, denominado Galeria La Salle, Corredor Cultural, na
UNILASALLE-RJ, onde os estudantes passaram a usufruir de oportunidades formadoras no
âmbito da Arte. Entende-se por “oportunidades formadoras” todas as atividades capazes de
despertar nos sujeitos novos olhares sobre um mesmo ponto, reflexões e questionamentos,
favorecendo novas construções e desconstruções acerca de um objeto de estudo.Desde
então, o trajeto até as salas de aula é sempre dinâmico e composto por estímulos que bus-
cam contribuir para o exercício permanente do olhar sensível.
Periodicamente, são instaladas exposições nos mais diversos formatos, quebrando o
paradigma do estático e do previsível. Cultura, currículo, vivências e saberes apresentam-se
em permanente diálogo com os sujeitos e as suas histórias de vida. As temáticas buscam ir
ao encontro tanto dos interesses dos estudantes quanto do inesperado. O interesse emerge
muitas vezes da curiosidade sobre determinado assunto ou mesmo do incômodo ao tratá-
-lo. É fruto de um já identificado, ainda que não sabido. Tem-se um ponto de partida sobre
ele. Porém, o inesperado não.

O inesperado surpreende-nos. É que nos instalamos de maneira segura em


nossas teorias e ideias, e estas não têm estrutura para acolher o novo. Entre-
tanto, o novo brota sem parar. Não podemos jamais prever como se apresen-
tará, mas deve-se esperar sua chegada, ou seja, o inesperado. E quando o
inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e ideias,
em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo
(MORIN, 2011, p. 29).

Cultura, currículo, vivências, saberes e não saberes apresentam-se em permanen-


te diálogo com os sujeitos e as suas histórias de vida. É como um cotejamento do novo

123
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
sobre o instalado, tensionando para que o conhecimento brote a partir da experiência da
(des)construção.

Corredor Cultural, Galeria de Arte, recebendo a visita dos alunos do Curso de Pedagogia,
por ocasião da exposição “O olhar precisoa de Darcy Ribeiro”, 2015.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

Transformar o mundo através de seu trabalho, dizer o mundo, expressá-lo e


expressar-se é próprio dos seres humanos. A educação, qualquer que seja
o nível em que se vê, se fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o
desenvolvimento desta necessidade radical dos seres humanos, a sua ex-
pressividade (FREIRE, 1982, p.24)

A percepção dos alunos sobre a experiência de conhecer, fruir e decodificar as obras


na Galeria de Arte, enquanto corredor cultural, ocorreu a partir das visitas realizadas du-
rante o trajeto para as salas de aula. Ao argumentarem sobre a relação arte-conhecimen-
to-sensibilidade e o seu significado para a formação humana e produção acadêmica, os
alunos expressaram:

“O impacto visual é atualmente o mais relevante sendo essencial uma Galeria


existir dentro da universidade onde as pessoas estão buscando conhecimento.
Nada melhor que a arte para inspirar o conhecimento” (H, 4º período)

“A arte deve se inserir como parte fundamental do conhecimento humano.


A Universidade ao sensibilizar para a arte, também produz história; logo,
conhecimento” (A, 5º período)

“A arte, enquanto expressão humana, precisa ser considerada com maior


importância na academia, tanto como fonte de pesquisa, quanto produção
científica” (B, 6º período)
124
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
“A arte se faz presente em todo momento em nossa vida Ela nunca vai deixar
de ser significante, pois seu papel fundamental é criar, fazer e admirar. Sem
a arte como ajudaríamos nossas crianças a construir pensamentos? Arte é
segurança e sonhos que um dia será realidade, arte e vida e realizações para
a humanidade”(F, 3º período)

“Tal como a ciência que dispõe de meios de pesquisa, a arte propicia através
do lúdico e por meio da educação do olhar, objetos de produção do saber
acadêmico”(M, 7º período)

As opiniões permitiram também consolidar o princípio de que, por intermédio da arte,


da imaginação e criatividade, pode-se reconstruir o real e, consequentemente, ideias e
percepções, com expressivos subsídios à construção do conhecimento. Dessa forma, a
relação entre arte, imaginação, sensibilidade e conhecimento implica um conceito de arte e
expressões imaginárias como vetores significativos de descobertas que aproximam sujeito
e objeto do conhecimento com experiências estéticas e sensíveis do “ir e vir” no caminho
do corredor cultural, Galeria de Arte. É o olhar em exercício de educação para a atuação
em sala de aula, na formação dos atores.
Nessa perspectiva, a relação entre arte, imaginação, sensibilidade e consciência im-
plica num conceito da arte e dos seus símbolos e expressões imaginárias como vetores
significativos de descobertas, que aproximam sujeito e objeto do conhecimento através de
experiências estéticas e sensíveis. A emergência do ser poético e da consciência sensível
não é, a priori, anterior à experiência estética; ambos – ser e consciência – fazem parte dessa
experiência, que associa estranhamento e indagações, percepções sensíveis e imaginação
criadora, realidade e transcendência.
A experiência singular propiciada pela sensibilidade artística absorve as vivências
humanas. Essa experiência está presente nas práticas cotidianas, nos ambientes sociais,
e em situações pedagógicas que propõem e incorporam os aportes da arte e da criação.
Portanto, ao envolver, perpassar e fazer acréscimos às práticas cotidianas de ensino, pes-
quisa e extensão, a arte se constitui como elemento articulador entre representações sociais,
educação e cultura (MEIRA, 2003).

CONCLUSÕES

A cultura passa a ser entendida como recurso valioso, comparado aos recursos
naturais, fundamental para o fortalecimento do tecido social, situando-se ainda
como capital social de uma nação, perpassando, de maneira transversal, os
segmentos políticos, econômicos e sociais (YÚDICE, 2004).

Na formação docente no ensino superior, essas considerações podem contribuir no


sentido de que a arte seja enfatizada na Universidade e nas escolas, estimulando processos
125
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
que favorecem o desenvolvimento humano, em seus aspectos cognitivos, emocionais, so-
cioculturais. Percebeu-se que, por meio das ações culturais, as contribuições tornam-se
relevantes, visto que a promoção humana é um movimento contínuo que acontece a partir
das interrelações pessoais, estéticas e emocionais ao longo de toda a vida. É essa arte que
precisa ser aprendidaensinada, pois emerge do vivido.
Além disso, ficou evidente que a formação do professor/educador deveria ser uma for-
mação humana em sua integralidade, superando, portanto, a formação do educador como
mera habilitação técnica, aquisição e domínio de informações e habilidades didáticas. Afinal,
a sala de aula abriga uma diversidade de histórias de vida, e as técnicas e as teorias por
si só, não dão conta de considerá-las como elementos essenciais à educação libertadora.
Educar o olhar estético nas licenciaturas, portanto, constitui pauta permanente de
formação humana, quando o que se pretendo é uma performance docente que valorize as
relações nas mais amplas dimensões do ato de aprender.

Corredor Cultural, Galeria de Arte, recebendo a visita dos alunos do Curso de Pedagogia, 2016.

126
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
REFERÊNCIAS
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6. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

7. PEIXOTO, Maria Cristina dos Santos. Um olhar no espaço de construção simbólica e amorosa
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8. PRIGOGINE, I. O fim das certezas. São Paulo: Editora Unesp, 1996.

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127
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
09
Atendimento educacional
especializado: percepção do professor
da sala de recursos multifuncionais
de escolas públicas municipais de
Salvador-BA

Cristiane Bacelar Lima da Cunha

10.37885/210303999
RESUMO

O artigo tem como objetivo geral analisar a percepção de professores da SRM de educa-
ção fundamental da rede regular pública municipal de Salvador-BA sobre o impacto do
AEE no desenvolvimento humano, inclusão social e qualidade de vida dos estudantes.
Tem como objetivos específicos: compreender a política do AEE e seu papel na educação
fundamental; identificar o papel do professor da SRM de AEE na formação integral de
alunos com deficiência; identificar recursos (materiais didáticos e pedagógicos, recursos
de acessibilidade e equipamentos específicos), técnicas e tecnologias assistivas que
facilitam o desenvolvimento humano, inclusão social e qualidade de vida de estudantes
com deficiência. O Estudo de Caso foi a opção metodológica, fundamentado em pesquisa
bibliográfica e documental. Como instrumento de coleta de dados utilizou-se questionários,
aplicados a 7 docentes em situação de formação continuada, de um universo de 30 que
atua em escolas regulares na cidade de Salvador-BA, em SRM. Constata-se que o AEE
é estratégia para inclusão social e promoção do desenvolvimento humano e que o papel
dos professores pode garantir o direito à educação e formação integral do estudante, com
auxílio de recursos pedagógicos. Conclui-se que a percepção dos docentes da SRM sobre
o impacto do AEE no desenvolvimento humano, inclusão social e qualidade de vida dos
estudantes, é de avanço, contudo, para um desenvolvimento integral é imprescindível
investimentos na estrutura física, nos recursos materiais e humanos, na organização
curricular, e na formação dos professores.

Palavras-chave: Educação Inclusiva, Atendimento Educacional Especializado.

129
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

As mudanças promovidas no campo da Educação Inclusiva no Brasil, nos últimos 20


anos são inegáveis. Novas formas de organizar o currículo, redefinição de papéis da escola
e da família, implantação de políticas públicas que assegurem o direito da pessoa com defi-
ciência à Educação destacam-se como algumas das ações recentes. (SEESP/MEC, 2008).
Destaca-se como um marco para a mudança no campo educacional a Política de
Educação Especial (PEE/BRASIL, 2009) ao estabelecer-se em uma perspectiva de inclu-
são total a partir de 2008. Posteriormente, surgiram, além de tantos outros documentos
sobre a matéria, o Plano Nacional de Educação (PNE), que determina diretrizes, metas e
estratégia para a política educacional de 2014 a 2024, e a Lei 13.146/2015, Lei Brasileira de
Inclusão (LBI), conhecido como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Isto significa assumir
a proposta de frequência dos alunos da educação especial em idade escolar obrigatória em
escolas regulares.
As novas políticas da educação inclusiva trazem como suporte para os alunos com
deficiência o Atendimento Educacional Especializado (AEE) em salas de recursos multifun-
cionais, dentro de escolas regulares, sendo intermediado por um professor da Rede Regular
de Ensino, além de fomentar a formação continuada destes profissionais.
Este professor do AEE apresenta muitas atribuições, as quais estão descritas na
Resolução nº 4 (BRASIL, 2009), em especial a de intermediador as políticas de inclusão nas
escolas, assegurando a efetividade dessas políticas na Rede Regular de Ensino, carecendo,
este profissional, de formação inicial e continuada, a fim de assegurar a concretização das
mudanças propostas para a escola com a educação inclusiva, no que lhes cabem.
No cotidiano das escolas, as mudanças propostas na legislação vigente ainda não
chegaram em muitas escolas deste país, caracterizado pela diversidade, e por muita desi-
gualdade social. Na sala de aula, os professores da Rede Pública Municipal de Ensino de
Salvador-Ba ainda se deparam com os desafios desta inclusão tão proclamada nos papéis,
conforme será demonstrado no decorrer deste trabalho, a partir das falas levantadas no
questionário aplicado aos professores pesquisados.
Eis que tal percurso sobre a emergente preocupação em educar o indivíduo para que
ele se torne um ser integrado faz-se refletir sobre como se concretiza a Política Pública
Inclusiva (AEE), desenvolvido na Rede Pública Municipal de Salvador-BA, para a formação
integral dos alunos com deficiência, após a promulgação do Plano Nacional de Educação
(PNE), 2014 a 2024, e da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) em 2015, o que provoca o seguin-
te questionamento: Qual a percepção de professores da sala de Recursos Multifuncionais
de Escolas da Rede Pública Municipal de Ensino de Salvador-BA., sobre o Atendimento

130
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Educacional Especializado (AEE) como estratégia para inclusão social e promoção do de-
senvolvimento humano das pessoas com deficiência?
Para responder tal problematização, tem-se como objetivo geral analisar a percepção
de professores da Sala de Recursos Multifuncionais (SRM) de educação fundamental da
rede regular Pública Municipal de Salvador-BA. sobre o impacto do Atendimento Educacional
Especializado (AEE) no desenvolvimento humano, inclusão social e qualidade de vida dos
estudantes com deficiência.
Tem-se como objetivos específicos: compreender a política de Atendimento Educacional
Especializado (AEE) e seu papel na educação fundamental; identificar o papel do professor
da Sala de Recursos Multifuncionais (SRM) de Atendimento Educacional Especializado na
formação integral de alunos com deficiência; identificar recursos (materiais didáticos e pe-
dagógicos, recursos de acessibilidade e equipamentos específicos), técnicas e tecnologias
assistivas que facilitam o desenvolvimento humano, inclusão social e qualidade de vida de
estudantes com deficiência de Escolas Públicas Municipais de Salvador-BA.
A coleta de informações em campo foi realizada a partir da aplicação de questionários
com 21 questões fechadas e abertos, subdividido em 03 (três) categorias: quanto a carac-
terização, a atuação e a percepção das dificuldades, desafios e avanços, realizado com
sete (7) professores da Sala de Recursos Multifuncionais, em situação de formação, de um
universo de 30 que atuam em escolas regulares na cidade de Salvador-BA. As informações
coletadas na pesquisa por meio de questionário foram tratadas e analisadas por meio da
análise de conteúdo, embasadas nos conceitos de Gil (2010).
Neste artigo será promovido um mergulho na política pública inclusiva – AEE, desen-
volvido na Rede Pública Municipal de Salvador-BA, para a formação integral dos alunos
com deficiência através de pesquisa caracterizada como um estudo de caso, com abor-
dagem qualitativa.
Apresenta-se o funcionamento do AEE no Município de Salvador-BA, suas interfaces,
o olhar dos docentes sobre sua atuação no AEE, suas percepções, dificuldades, desa-
fios e avanços, além de trazer, como são utilizados os recursos de tecnologias assistivas
para garantir o acesso, a participação e a permanência dos alunos com deficiência nas
salas regulares.

MÉTODO

Esta é uma pesquisa de campo, de natureza qualitativa, podendo também ser classifica-
da quanto à sua finalidade em aplicada e, quanto ao seu objetivo como exploratória. De acor-
do com o procedimento técnico, trata-se de uma pesquisa bibliográfica e estudo de caso.

131
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Conforme Yin (2010) o estudo de caso é uma estratégia de pesquisa que compreende um
método que abrange tudo em abordagens especificas de coletas e análise de dados.
Por ser uma investigação baseada no estudo de caso, registra Gil que: “Na maioria dos
estudos de caso bem conduzidos, a coleta de dados é feita mediante entrevistas, observação
e análise de documentos” (Gil, 2010, p. 120).

Sujeitos

A pesquisa (Apêndice A) foi realizada com 7 (sete) docentes, de um universo de 30


(trinta), que atuam na Sala de Recursos Multifuncionais – SRM, em diferentes escolas da
Rede Pública de Ensino do Município de Salvador-BA. Para manter o sigilo, os docentes
foram identificados como E1, E2, E3, E4, E5, E6 e E7.

Instrumentos de geração de informações

Como instrumentos de busca das informações foram utilizados a pesquisa bibliográ-


fica e questionário com 21 (vinte e uma) questões fechadas e abertas, subdividido em 3
(três) categorias: quanto a caracterização, a atuação e a percepção das dificuldades, de-
safios e avanços.

Procedimentos

A pesquisa foi realizada no segundo semestre de 2015. A seleção dos docentes pes-
quisados ocorreu a partir da participação em um curso de especialização para professores
que já atuam ou que ainda irão atuar no Atendimento Educacional Especializado – AEE,
na Rede Pública Municipal de Salvador-BA. A coleta de dados aconteceu entre agosto e
outubro de 2015, por meio de questionário presencial.

Análise das Informações

Para maior entendimento das informações, utilizou-se a análise de conteúdo, com base
em fundamentação teórica e legal.

ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO: BASES LEGAIS E


PRINCÍPIOS PARA FUNCIONAMENTO DE ESCOLAS PÚBLICAS MUNI-
CIPAIS EM SALVADOR-BA

A Constituição Federal (BRASIL, 1988) proclama como fundamento da República


Federativa do Brasil a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, incisos II e III),
132
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
e apresenta como objetivos fundamentais (art. 3º, inciso IV), a promoção do bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação.
Garante em seu arts. 205 e 208, a educação como direito de todos e dever do Estado e
do grupo familiar:

Art. 205. A educação é direito de todos e dever do Estado e da família, e será


promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a ga-
rantia de:
[...]
III– atendimento educacional especializado aos portadores de deficiên-
cia, preferencialmente na rede regular de ensino; (grifos nossos) (BRASIL,
1988, p. 68/69).

Destaca-se ainda no art. 206, um dos princípios para o ensino, qual seja: “a igualdade
de condições de acesso e permanência na escola”. Assim, é necessário não apenas asse-
gurar o acesso dos alunos na escola, mas também a sua permanência.
Como uma das formas de viabilizar condições de permanência e aprendizado de alunos
com deficiência em escolas comuns, a atual Política de Educação Inclusiva, do Ministério
da Educação, apresenta o conceito de Atendimento Educacional Especializado (AEE), pre-
visto no art. 208, pela Constituição Federal de 1988, como forma de efetivação do direito a
educação das pessoas com necessidades especiais.
O AEE é um serviço da Educação Especial, na perspectiva inclusiva, que visa garantir
os apoios necessários para a efetiva participação e aprendizagem dos alunos com deficiên-
cia, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, no contexto
das escolas regulares. (SEESP/MEC, 2010).
O atendimento educacional especializado tem como função identificar, elaborar e orga-
nizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena par-
ticipação dos alunos, considerando as suas necessidades específicas (SEESP/MEC, 2010).
As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se
daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse
atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia
e independência na escola e fora dela (BRASIL, 2008).
O Atendimento Educacional Especializado (AEE), enquanto política pública nacional
para a educação inclusiva foi implantado no Município de Salvador-BA, com 30 (trinta) sa-
las de recursos multifuncionais, localizadas dentro das escolas da educação básica sendo
constituída de mobiliários, materiais didáticos, recursos pedagógicos e de acessibilidade, de
equipamentos específicos e de professores com formação para realizar o AEE, nas quais
133
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
são atendidos, em média, entre 10 (dez) e 15 (quinze) alunos, segundo dados fornecidos
pelos 7 (sete) professores pesquisados. De antemão, registra-se que este número não é
suficiente para atender a demanda do Município, necessitando ainda de 65 (sessenta e cinco)
salas, a fim de perfazer um total de 95 (noventa e cinco) salas em funcionamento. (SMED/
CENAP/SALVDOR, 2013).1
A organização do AEE oferecido nas salas de recursos multifuncionais do município é
definida pelo Conselho Municipal de Educação de Salvador-BA. pela formação específica
para o AEE, e pela demanda de alunos.
Para compreender a política de Atendimento Educacional Especializado e seu pa-
pel na educação fundamental é preciso analisar a percepção de professores da Sala de
Recursos Multifuncionais (SRM) de educação fundamental da rede regular pública municipal
de Salvador- BA sobre o impacto do AEE no desenvolvimento humano, inclusão social e
qualidade de vida dos estudantes. Os resultados e discussões desta pesquisa serão de-
monstrados no decorrer deste artigo.
Conforme já relatado, anteriormente, no Município de Salvador-BA existem 30 (trinta)
salas de recursos multifuncionais, nas quais são atendidos, em média, entre 10 (dez) e 15
(quinze) alunos, segundo dados fornecidos pelos 7 (sete) professores pesquisados.
Com base nas informações fornecidas pelos docentes pesquisados (2015) a quantidade
de alunos com deficiência atendidos na SRM ultrapassa o número de 4 (quatro), tendo 2
(dois) dos 7 (sete) docentes pesquisados, (E1 e E4), informado o quantitativo de 10 (dez) e
15 (quinze) alunos atendidos respectivamente.
Segundo determinado na Política Pública Inclusiva deve-se definir a frequência semanal,
que utilizará nos atendimentos com o aluno, de acordo com o que propõe na elaboração de
plano de atendimento educacional especializado, elaborado pelo próprio docente de acordo
com a especificidade de cada aluno. (BRASIL, 2008).
A este respeito Gomes, Poulin e Figueiredo (2010b, p.73) discorrem que:

No contexto do atendimento educacional especializado, o professor pode or-


ganizar suas ações tendo como base a necessidade de suporte de seu aluno,
alguns alunos podem necessitar de apoio uma vez por semana, enquanto
outros podem necessitar desse serviço três ou mais vezes por semana.

Não há uma exigência legal sobre a quantidade de atendimentos que deve ser ofertado
na SRM. Isto é definido de acordo com a condição do aluno, a necessidade identificada pelo
professor do AEE durante o planejamento de estudo de caso de cada aluno.

1 Informações coletadas na Secretaria Municipal de Educação SMED, no setor da Coordenadoria de Ensino e Apoio Pedagógico CE-

134
NAP, em Salvador-BA.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


No que se refere ao tempo de atendimento para cada aluno, os docentes afirmam que
utilizam 60 minutos por encontro. Como são dois atendimentos semanais, constatou-se que
o tempo dedicado para cada criança são de 120 minutos semanais. Da mesma forma, não
há uma exigência legal sobre o tempo do atendimento por encontro do aluno atendido na
SRM. Isto deve ser definido de acordo com a condição do aluno, a necessidade identificada
pelo professor do AEE durante o estudo de caso.
Em relação ao tempo de atendimento disponibilizado para cada aluno nas sessões,
destaca Batista e Mantoan (2006, p. 23): “O tempo reservado para esse atendimento será
definido conforme a necessidade de cada aluno e as sessões acontecerão sempre no horário
oposto ao das aulas do ensino regular.”
Quanto a composição do atendimento a cada aluno, os docentes esclarecem que todos
fazem atendimento na Sala de Recursos Multifuncionais (SRM) aos alunos com deficiência
de forma individual e grupal. Apenas um professor afirma que também o faz na própria sala
com todos os alunos.
A definição quanto ao tempo, a periodicidade dos atendimentos e as possibilidades de
agrupamentos na SRM para o atendimento aos alunos público-alvo da Educação Especial
deve ser prevista no plano de atendimento educacional especializado, que ao ser elaborado
considera tanto as potencialidades, possibilidades, como as necessidades concretas dos
sujeitos envolvidos.
Registra-se a importância do estudo de caso ser bem elaborado em todas as suas
etapas. Constata-se que neste processo é importante o conhecimento da realidade familiar,
social, afetiva e escolar e do contexto que envolve o aluno, para facilitar ao professor do AEE
definir o tempo, a frequência, bem como os tipos de agrupamentos que melhor atenderia as
necessidades do aluno, se individualmente e/ou em grupos.
Deste modo, as definições a serem tomadas por este professor acerca da organização
do atendimento do aluno, não poderá ser aleatória. O professor do AEE deve ter como re-
ferência o ser humano com suas particularidades, que não cabem em fórmulas ou modelos
prontos. Ropoli e colaboradores (2010, p.22) enfatizam:

Há alunos que frequentarão o AEE mais vezes na semana e outros, menos.


Não existe um roteiro, um guia, uma fórmula de atendimento previamente
indicada e, assim sendo, cada aluno terá um tipo de recurso a ser utilizado,
uma duração de atendimento, um plano de ação que garanta sua participação
e aprendizagem nas atividades escolares.

A Resolução nº 4, (BRASIL, 2009, p.3), que institui as Diretrizes Operacionais para o


AEE na Educação Básica, modalidade Educação Especial, a única ressalva que faz esta é
que o atendimento na SRM deve ser no turno oposto ao da escolarização.
135
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Porém, acredita-se que o aluno que apresenta Transtorno do Espectro Autista deva
ser atendido no mesmo turno da aula regular, juntamente com os demais alunos, caso ele
apresente problemas de interação com seus pares (BELISÁRIO FILHO; CUNHA, 2010).
Assim, para a organização dos atendimentos na SRM o professor do AEE deverá ava-
liar os diversos contextos em que se inserem os alunos por meio dos estudos de caso de
cada aluno a ser atendido. Porém, considera-se que tal tarefa não seja simples, pois para
definir o tempo, a frequência e o tipo de agrupamento nos planos de atendimento educa-
cional especializado dos alunos, o professor do AEE deverá adequá-los às características
e necessidades de cada um dos estudantes.
Quanto à promoção da acessibilidade, os docentes acreditam que o AEE ajuda a pro-
movê-la, como também favorece a participação e a permanência dos alunos com necessi-
dades especiais nas classes regulares, 100% (cem por cento) acreditam que o AEE ajuda
a promover a acessibilidade, a participação e a permanência dos alunos com deficiência
nas classes regulares, ainda que sob diferentes justificativas. Para a docente E1: garantin-
do a compra de equipamentos e imobiliários incluindo instalações adequadas, reduzindo
as barreiras nas comunicações; E2: fomentando a inclusão; E4: através do estudo do caso
específico e elaboração do plano de atendimento do AEE; E5: trabalhando as dificuldades
e observando as possibilidades; E7: conscientizando a família, o professor da sala comum,
o coordenador pedagógico, e a gestão do seu papel no processo de inclusão.
Observa-se que conforme as respostas dos pesquisados o acesso, a participação e
a aprendizagem dos alunos com deficiência está sendo aos poucos atingidos. Cabe agora,
alçar novos vôos a fim de se atingir a formação integral destes sujeitos.

INTERFACES PREVISTAS PARA O FUNCIONAMENTO DO ATENDI-


MENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO

Para o funcionamento do AEE, segundo os professores pesquisados, é necessário que


ocorra parcerias com as áreas intersetoriais, e se promova a articulação com os serviços da
saúde, família do aluno e professores da sala de aula regular e com a equipe escolar do aluno.
Quando questionados sobre a parceria com profissionais de saúde, (psicólogo, fonoau-
diólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta, dentre outros), todos os docentes pesquisados
omitiram-se em responder este quesito, apenas um dos pesquisados relata que: diretamente
não trabalham com estes profissionais, eles atendem estas crianças nas suas Instituições.
A depender das dificuldades apresentadas pelo aluno com deficiência, o professor do
AEE formará parcerias com as áreas intersetoriais e promoverá a articulação com os serviços
da saúde, assistência social, etc., buscando na interdisciplinaridade do trabalho desenvolvido
o apoio necessário para pensar o trabalho educativo (BELISÁRIO FILHO; CUNHA, 2010).
136
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Contudo, ressalta Paulon (2007, p.30), que:

A observação do tipo de relação atualmente percebida entre especialidades


das áreas de saúde e educação, mais diretamente relacionadas ao processo
de inclusão educacional, parece apontar para um caminho bem diverso ao da
interdisciplinaridade. Escola e saúde aparecem como lugares que se excluem
entre si, tanto nas políticas de atendimento quanto na organização dos seus
saberes específicos. Os serviços de saúde não são lugares que se somam
à escola, mas para os quais se encaminha alunos, evidenciando o caráter
dissociativo que se imprimiu às práticas do encaminhamento e atestando a
desresponsabilização de uma área em relação à outra que, na maioria das
vezes, sequer inclui o acompanhamento da escola ao caso encaminhado.

Ou seja, questiona-se, o silêncio dos docentes pesquisados, caracteriza-se como a


inexistência de uma equipe interdisciplinar? Isto pode constituir num obstáculo para que se
possibilite o trabalho dos docentes tanto os da sala comum, quanto do AEE, com o processo
de inclusão de alunos com deficiência.
Quanto à participação da família do aluno com deficiência no AEE, os professores rela-
tam que a família participa do AEE, para troca de informações, orientações e apresentações
dos avanços e obstáculos que vem ocorrendo para que o aluno/filho possa se desenvolver
plenamente, bem como para que esta família apresente suas satisfações ou queixas. Relata
um dos docentes (E3) que: “a depender da posição da família do aluno atendido na SRM
pode ser um obstáculo ao processo de inclusão, pois eles podem não reconhecer as pos-
sibilidades da criança”.
O Decreto de nº 7.611 (BRASIL, 2011, p. 01), dispõe sobre a educação especial, o
atendimento educacional especializado, trazendo em seu bojo a participação da família:

Art. 2o A educação especial deve garantir os serviços de apoio especializado


voltado a eliminar as barreiras que possam obstruir o processo de escolariza-
ção de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e
altas habilidades ou superdotação.
[...]
§ 2o O atendimento educacional especializado deve integrar a proposta
pedagógica da escola, envolver a participação da família para garantir pleno
acesso e participação dos estudantes, atender às necessidades específicas
das pessoas público-alvo da educação especial, e ser realizado em articulação
com as demais políticas públicas. (grifos nossos).

Percebe-se que essa relação com os familiares, é primordial para o acompanhamento


do aluno atendido na SRM. A parceria com a família é fundamental já que esta é responsável
pela frequência do aluno nos atendimentos, pois estes geralmente ocorrem no turno contrário
que o aluno estuda. Além desse aspecto, observa-se que esta parceria é essencial para o
estabelecimento dos vínculos positivos entre ambos por trazer maiores aproximações deste
professor com a família e o próprio aluno. Isto poderá também possibilitar que as famílias
137
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
conheçam o trabalho realizado pelo professor do AEE e através de suas orientações pos-
sam acompanhar o aluno em uma perspectiva positiva e de superação de possíveis barrei-
ras, que acredita-se irá repercutir positivamente no desenvolvimento do aluno (BELISÁRIO
FILHO; CUNHA, 2010).
Os pesquisados afirmam que mantêm articulação com os professores da sala de aula
regular, visando à disponibilização dos serviços, dos recursos pedagógicos, de acessibilidade
e de estratégias que possam promover a participação dos alunos nas atividades escolares,
auxiliando- os na adaptação com as atividades, a utilizar lupas, régua leitora e tela de mesa;
além de fazerem reuniões pedagógicas quinzenalmente para organização de situações de
aprendizagem nos espaços das salas de aula comum, troca de informações, adequações
de currículo, e avaliação do desempenho do aluno público alvo do AEE. Um dos docentes
pesquisados (E2) esclarece que: “a constante articulação com o professor da sala de aula
comum é primordial para o desenvolvimento do aluno”.
Constata-se que é de extrema importância a articulação entre o professor do ensino
regular e do AEE, pois o trabalho desenvolvido na SRM dará o apoio necessário para o
aluno ser incluído na sala regular.
Alves (2006, p.17) relata que:

O professor da sala de recursos multifuncionais deve atuar de forma colabo-


rativa com o professor da classe comum para a definição de estratégias pe-
dagógicas que favoreçam o acesso do aluno com necessidades educacionais
especiais ao currículo e a sua interação com o grupo.

Traz a autora, a importância deste trabalho integrado tanto para a organização curricular
quanto para a interação com o grupo.
Quanto às orientações dos estudantes do AEE, os professores afirmam que estão cen-
tradas no professor de sala de aula comum, nas orientações aos familiares do aluno e orien-
tações aos funcionários da escola. Um professor (E1) ressalta que “essas orientações eram
feitas em momento esporádicos, devido a demanda de atendimento ao aluno ser grande”.
Para que ocorra efetivamente a inclusão na escola, de acordo com as políticas inclu-
sivas, faz-se necessário que o professor do AEE possa dar um suporte a toda comunidade
escolar, senão não se poderá falar em escola inclusiva. (BELISÁRIO, FILHO; CUNHA, 2010).
O processo de inclusão deve ser compartilhado com os vários segmentos da comunida-
de escolar, não ficando apenas ao encargo do professor da Sala de Recursos Multifuncionais,
tornando relevante a participação de todos na implantação dos direitos assegurados em
lei para que os benefícios estabelecidos nas políticas de inclusão educacional possam ser
efetivados (BATISTA, 2007).

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Trabalhar com educação inclusiva implica na implementação de políticas públicas,
na compreensão de que o processo de inclusão não se restringe à relação professor-alu-
no, mas sim que a inclusão seja um princípio perseguido por toda a comunidade escolar
(BATISTA, 2007).
Os docentes esclarecem ainda que quando a sala de aula regular e o atendimento do
AEE são em escolas diferentes, a articulação com a equipe escolar desta escola e do pro-
fessor do AEE se dá segundo os pesquisados nos encontros de Atividade Complementar
que ocorre quinzenal ou semanalmente, visitas à escola do aluno atendido sempre que a
instituição solicitar, visitas uma vez por mês, e por contato telefônico, sempre que necessário.
Alguns esclarecem que na SRM eles só atendem alunos da própria escola, pois a demanda
é grande e não tem como atender alunos das escolas vizinhas.
Conforme comentário anterior é imprescindível esta articulação para o processo de
inclusão e aprendizagem do aluno.

O OLHAR DOS DOCENTES SOBRE SUA ATUAÇÃO NO AEE: PERCEP-


ÇÃO DAS DIFICULDADES, DESAFIOS E AVANÇOS

Segundo os professores é imprescindível que o profissional que trabalha na sala de


recursos multifuncionais tenha curso de graduação, pós-graduação e ou formação continuada
que o habilite a atuar, com competência em áreas da educação inclusiva para atendimento
às necessidades especiais dos alunos que apresentam deficiência, transtornos do espectro
autista, altas habilidades ou superdotação (BRASIL, 2010). Consistindo em uma das metas
do Plano Nacional de Educação – (PNE) 2014 -2024 “(...)fomentar a formação continuada
de professores e professoras para o atendimento educacional especializado (...)”
Constata-se que no Município de Salvador-BA. os 7 (sete) docentes pesquisados, dos
30 (trinta) que trabalham no AEE, possuem os seguintes níveis de formação em relação
a educação inclusiva: 6 (seis) dos pesquisados possuem cursos de capacitação/formação
continuada em educação inclusiva, da mesma forma a especialização em educação inclusi-
va (latu-sensu), foi realizada por 6 (seis) dos docentes pesquisados. Ou seja, (E1) não tem
cursos de capacitação/formação continuada em educação inclusiva, mas tem especialização
em educação inclusiva (latu-sensu), já (E4), não tem especialização em educação inclusiva
(latu-sensu), mas tem cursos de capacitação/formação continuada em educação inclusiva.
Esta premissa exige destes profissionais uma formação adequada a fim de cumprir com
uma de suas atribuições prescrita nas Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional
Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial (2009), voltada para a

[...] identificação das habilidades e necessidades educacionais específicas dos


alunos; a definição e a organização das estratégias, serviços e recursos peda- 139
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
gógicos e de acessibilidade; o tipo de atendimento conforme as necessidades
educacionais específicas dos alunos (BRASIL, 2010, p. 05).

Neste sentido, a formação do professor para o AEE deve ocorrer em nível de aperfei-
çoamento e/ou especialização e deve ser fundamentada em metodologias ativas de apren-
dizagem que trazem novas formas de produzir e gerenciar o conhecimento, tornando-os
sujeitos ativos na busca de informações, identificação, análise e na solução dos problemas
que envolvem o aluno. (ROPOLI et al. 2010). Para que isso ocorra, é posto em xeque a
capacidade de investigação e dos conhecimentos do professor, além de uma abertura às
mudanças provocadas pelos diversos aspectos que permeiam a realidade do aluno.
A Resolução nº 4, (BRASIL, 2009, p. 04), que Institui Diretrizes Operacionais para
o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação
Especial, determina no art. 12: “para atuação no AEE, o professor deve ter formação inicial
que o habilite para o exercício da docência e formação específica para a Educação Especial.”
Do mais, não existe prática sem teoria, mas em se tratando de professor do AEE o
laboratório é fecundo, o que impulsiona cada vez mais a busca por explicações nos funda-
mentos científicos para os dilemas enfrentados cotidianamente na sala de recursos. Dessa
forma o aprimoramento profissional deve ser constante e dinâmico, pois na perspectiva
da escola inclusiva a formação do professor do AEE se dá em um enfoque organizativo e
voltado para a mudança.
Este profissional quando especializado realiza serviços de natureza pedagógica, que
suplementa (estudantes com altas habilidades ou superdotação) e complementa (estudantes
com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento), a formação dos alunos realizado
em classes comuns da rede regular de ensino, com vista a autonomia e independência
dentro e fora da escola. Este profissional do AEE realiza o atendimento pedagógico na sala
de recursos multifuncionais. (MEC/SEE/BRASIL, 2010).
Constata-se que ao atuar na sala de recursos multifuncionais, o professor do AEE,
tem várias funções, dentre delas fazer o estudo de caso e realizar o plano de atendimento
educacional especializado de cada aluno. Contudo, é através do estudo de caso que se
torna visível as peculiaridades impostas pela deficiência, bem como, as possibilidades do
aluno. É neste estudo de caso que o professor do AEE irá fazer um levantamento de todas
as informações necessárias para o conhecimento deste aluno, tendo como ponto de partida
a família, os centros de convivência deste aluno, além de coletar todas as informações junto
à instituição escolar. Com a obtenção destes dados o professor do AEE irá ratificar a defi-
ciência deste aluno, seja ela de ordem cognitiva, motora, física, afetiva, de interação social,
a fim de se traçar metas para reduzir ou erradicar os problemas educacionais apresentados
pelos alunos (SILVA, 2014).
140
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
A posteriori, do estudo de caso, o professor do AEE deve realizar o plano de atendimen-
to educacional especializado, com a finalidade de definir quais as intervenções necessárias,
os recursos, as ferramentas que possam auxiliar os processos de ensino e aprendizagem
dos alunos com deficiência. Do mais, este plano deverá ser utilizado pelo professor para
avaliar sua própria atuação, enquanto professor do AEE, bem como, os avanços do aluno
atendido na sala de recursos multifuncionais, podendo, assim, ser modificado no momento
que não estiver atendendo a especificidade do alunado em atendimento (SILVA, 2014).
O professor especializado deverá trabalhar em estreita parceria com a escola, sua
equipe gestora, professores de classes comuns e toda a comunidade escolar. O fato de
estar diariamente na escola, aproxima o professor especialista da realidade enfrentada pelo
aluno com deficiência no ambiente escolar e desta forma, o reconhecimento da demanda
real de apoio deste aluno poderá ser mais facilmente percebido para que os encaminha-
mentos para obtenção de soluções sejam providenciados pela intervenção deste profissio-
nal (SILVA, 2014).
Salienta-se que é imprescindível que o professor do AEE participe das reuniões peda-
gógicas, do planejamento escolar, do conselho de classe, especialmente da elaboração do
projeto pedagógico da instituição que atua, além de desenvolver ações conjuntas com toda
a comunidade escolar a fim de que se promova a inclusão escolar.
Além da abordagem pedagógica da educação inclusiva, o professor do AEE preci-
sa trabalhar com as ferramentas tecnológicas específicas às necessidades dos alunos
com deficiência.
Quanto à avaliação pedagógica do aluno na Sala de Recursos Multifuncionais (SRM)
o professor do AEE a realiza com objetivo de identificar e analisar seus conhecimentos em
relação aos conteúdos escolares para definir as intervenções necessárias. Esta avaliação
permite ao professor do AEE conhecer as especificidades do aluno em relação à autonomia,
as diversas linguagens, a capacidade motora, a interação com os colegas, e sobre os conhe-
cimentos dos conteúdos escolares, como a leitura, a escrita e a lógica matemática. A partir
daí definir a frequência, o tempo e o tipo de agrupamentos que utilizará nos atendimentos
com o aluno, de acordo com a avaliação realizada. (SILVA, 2014).
Com relação ao sentimento dos docentes em trabalharem com alunos com necessida-
des especiais, todos afirmam que se sentem desafiados. Apenas 2 (dois) além de desafiados,
sentem-se satisfeitos e preparados.
Os pesquisados apontam as principais dificuldades ao trabalhar com alunos com de-
ficiência. Para o professor pesquisado, (E1), centra a sua dificuldade “para trabalhar com
alunos autistas”, devendo ao fato destes alunos ainda não ter estabelecido uma rotina na
sala de aula comum; (E2) acredita que a dificuldade está centrada na “ausência dos alunos
141
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
na SRM, como também na sala de aula comum”; (E3) estabelece como dificuldade “a falta
de uma rede sistematizada de apoio com profissionais como psiquiatra, T.O, etc”; (E4) diz
que a dificuldade esta na “falta de formação mais intensiva do professor do AEE”; (E5) as-
socia a dificuldade “a falta de mobiliário e recursos adequados”; (E6) diz que a dificuldade
está “na rejeição aos alunos com deficiência, os quais ainda são vistos como um problema
para a escola”; (E7) centra a dificuldade “na falta de formação específica dos professores
para lidar com alunos necessidades especiais”.
Constata-se que não é uma tarefa fácil trabalhar com educação de um modo geral, prin-
cipalmente com a educação inclusiva. Contudo, afirmam os especialistas que para trabalhar
com a inclusão de Pessoas com deficiência é preciso rejeitar a ideia equivocada de que o
professor tem que se preparar para atender esta clientela (REVISTA ELETRÔNICA, 2005).
Segundo Matoan (2014) não existem métodos de ensino especiais para se ensinar os
conteúdos curriculares para esses alunos.

O professor não tem que aprender como ensinar matemática para alunos com
deficiência. Ele tem de se preparar para atender a todas as crianças. O ensino
escolar vai mal porque a escola continua repetindo no século XXI o que foi
a escola do século XVIII, aponta a psicóloga. Ainda segundo a psicóloga, as
escolas estão sendo preparadas para receber esses alunos, a partir da pre-
sença deles nas escolas. ‘Aprendemos a fazer, fazendo’, diz ela. ‘É óbvio que
se as crianças são segregadas em escolas especiais, não há necessidade de
as escolas comuns se prepararem para recebê-las. Como agora, elas estão
sendo encaminhadas às escolas comuns, tudo muda’, completa (KLEBIS;
MARIUZZO 2005, p.07).

Com relação aos principais desafios, os docentes do AEE apontam: o professor pes-
quisado (E1) relata que “o maior desafio que já passou como professor do AEE foi realizar
trabalho conjunto com a família e a comunidade escolar”; (E2) traz “a compreensão sobre
a inclusão de alunos com deficiência na escola”; (E3) diz que “foi a questão de atender um
aluno com deficiência intelectual grave que não consegue ficar na sala de recurso e que se
machuca quando contrariado”; (E4) “associa a falta de um espaço adequado para atender
os alunos”; (E5) diz que foi “garantir a frequência de um aluno com característica de DI no
AEE, sem laudo, pois a família não se interessava em buscar atendimento especializado”.
Para (E6) e (E7) o grande desafio para a inclusão escolar, está na estruturação da cultura
escolar, a dinâmica e a organização das práticas pedagógicas.
Seis (6) dos sete (7) pesquisados acreditam que a estruturação da cultura escolar
a dinâmica e a organização das práticas pedagógicas garantirão a inclusão efetiva dos
alunos com deficiência. Para (E1), isto se dará “através da cultura, porque esta constrói co-
letivamente e aos poucos”; (E3), “por intermédio de um planejamento escolar que valorize
as individualidades”; (E4) e (E2), “com recursos físicos adequados e pessoal preparados”;
142
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
(E5) e (E7) pela formação continuada para o corpo docente; (E6), diz que depende, porque
em se tratando de inclusão escolar é tudo muito relativo. Justificando que muitas vezes a
escola tem toda uma estrutura e adota práticas pedagógicas que favoreçam a inclusão e
ainda assim, a inclusão não acontece. Ressalta que, a estruturação da cultura escolar e a
mudança de prática pedagógica é necessário sim, mas o querer e o acreditar por parte de
toda a equipe é o mais fundamental.
Traz os pesquisados fatores que consideram imprescindíveis para garantir o acesso, a
participação e a permanência dos alunos com deficiência, ainda que sob diferentes justificati-
vas, segundo o docente: (E1) “garantindo a compra de equipamentos e imobiliários incluindo
instalações adequadas, reduzindo as barreiras nas comunicações; já o (E2) “Fomentando
a inclusão”; enquanto afirma o (E3) “Através do estudo do caso específico e elaborando o
plano de atendimento para cada aluno individualmente.”
Quanto aos avanços do trabalho desenvolvido no Atendimento Educacional
Especializado para a formação humana e qualidade de vida dos alunos com necessidades
especiais, os docentes afirmam que é perceptível o impacto na inclusão social dos alunos,
na perspectiva da formação humana e qualidade de vida destes sujeitos. (E2), registra que
“já houve avanço na interação e desempenho nos eventos promovidos pela escola”; (E4),
afirma que “já houve melhor aceitação do aluno pela comunidade escolar”; e (E6), relata que
“as famílias apresentam melhor aceitação de seus filhos com deficiência”.
Segundo os professores pesquisados, os avanços do trabalho desenvolvido no AEE
para a formação humana e qualidade de vida dos alunos com deficiência, estão centrados na
interação e aceitação destes alunos. Como o trabalho desenvolvido pelo AEE no Município
de Salvador-BA, ainda é recente, espera-se ver em datas próximas, avanços significativos na
formação humana destes sujeitos, seja sob o enfoque, pessoal, interpessoal, intrapessoal,
transpessoal, profissional e espiritual.
Quanto ao avanço da prática de uma educação inclusiva integral, subsidiada pelo
AEE, nas condições que se têm atualmente no Município de Salvador-BA, os pesquisados,
em linhas gerais, afirmam que as leis do Brasil trazem grandes avanços em direção à uma
prática inclusiva, conforme estabelecido no Plano Nacional de Educação 2014-2024, e na
Lei Brasileira de Inclusão, dentre outros. No entanto, a realidade encontrada na maioria das
escolas é adversa para uma inclusão de fato. Para uma educação integral que contemple
as dimensões físicas, cognitiva, afetiva, intelectual, espiritual e ética é imprescindível mui-
to mais investimentos na estrutura física, nos recursos materiais, na própria organização
curricular, e, sobretudo, em formação para os profissionais que atuam diretamente com o
aluno com deficiência.

143
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Nessa perspectiva infere a importância de investir-se na escola no aspecto material e
humano, para que possa ocorrer de forma eficaz o processo de inclusão, através do processo
ensino- aprendizagem e na inserção social desses alunos, promovendo a integralização com
o ambiente físico, social e familiar, despertando sua curiosidade e ampliando seus conhe-
cimentos e habilidades, nos aspectos físico, social, cultural, afetivo, emocional, espiritual e
cognitivo, só assim se poderá promover o seu desenvolvimento integral.

RECURSOS DE TECNOLOGIA ASSISTIVAS E INCLUSÃO

Para que ocorra a inclusão escolar é necessário possibilitar ao aluno com deficiência
meios para que ele se desenvolva de forma igual aos seus pares. Para tanto, é imprescin-
dível disponibilizar para estes alunos uma regular infraestrutura física da escola e técnicas
e serviços de tecnologia assistiva a fim de que sejam ultrapassadas as barreiras que certos
conhecimentos, linguagens, recursos, que os impedem de aprender nas salas de aula co-
muns do ensino regular, bem como, de incluir-se socialmente, e de ter autonomia. Desta
forma, a educação inclusiva deve desenvolver, a partir de uma adequada infraestrutura físi-
ca da escola, além de técnicas e recursos, para atender as diferenças individuais de cada
criança (MEC/SEE/2006).
Quanto à infraestrutura da escola e sua adequação para o trabalho com os conteúdos
e aprendizado de alunos com deficiência 6 (seis) dos 7 (sete) docentes pesquisados afir-
mam que esta é adequada para o trabalho com os conteúdos e aprendizados de alunos com
deficiência, por ter na escola, rampa e banheiros adequados. Apenas um (1) dos docentes
afirma que a escola não contemplou nenhuma adaptação para o aluno com deficiência, houve
poucas adaptações como a construção de uma rampa na entrada, a sala de informática e
biblioteca ficam no primeiro andar o acesso é através da escada.
É necessário garantir reformas que possibilitem o acesso, a circulação, utilização e a
locomoção das pessoas com deficiência nas escolas. A legislação impõe a eliminação de
todas as barreiras arquitetônicas capazes de inviabilizar ou restringir o acesso e a locomoção
de pessoas deficientes, inclusive nas escolas. Assim, faz-se necessário romper as barreiras
que impossibilitam o aluno ter acesso ao conhecimento (MEC/SEE/2006).
Os serviços de tecnologia assistiva se propõem a romper problemas funcionais que
impedem a atuação e participação das pessoas com deficiência em atividades e espaços
de seu interesse e necessidade. No campo da educação, ela se organiza em serviços e
recursos que atendem os alunos com deficiência e que têm por objetivo construir, com eles,
as condições necessárias ao aprendizado e a inclusão social. Visa ampliar a participação do
aluno nos processos de aprendizagem, estando, portanto, focada no alcance dos objetivos
educacionais, habilitando o aluno funcionalmente na realização das atividades pedagógicas.
144
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Vão desde recursos para alunos cegos, surdos, com déficit auditivo, com deficiência mental,
física, superdotados, ao material pedagógico adaptado, entre outros (BERSCH, 2013).
Assim, os serviços de tecnologia assistiva na escola busca resolver, com criatividade,
alternativas para que o aluno realize o que deseja ou precisa. É encontrar uma estratégia
para que ele possa “fazer” de outro jeito. É valorizar o seu jeito de fazer e aumentar suas
capacidades de ação e interação, a partir de suas habilidades. De acordo com Bersch (2013)
é preciso conhecer e criar novas alternativas para a comunicação, mobilidade, escrita, leitura,
brincadeiras, artes, utilização de materiais escolares e pedagógicos, exploração e produ-
ção de temas através do computador etc. É envolver o aluno ativamente, desafiando-o a
experimentar e conhecer, permitindo assim que construa individual e coletivamente novos
conhecimentos. É retirar do aluno o papel de espectador e atribuir-lhe a função de ator.
As escolas das redes públicas de educação no Brasil caminham para a organização
de uma prática pedagógica fundamentada no uso de tecnologia assistiva e, esta acontece
a partir do atendimento educacional especializado (AEE), através dos professores espe-
cializados que tiveram formação em tecnologia assistiva e já atuam nas salas de recursos
multifuncionais, buscando e/ou construindo recursos tecnológicos de tecnologia avançada
até recursos de baixa tecnologia, que são recursos confeccionados artesanalmente pelo
professor do AEE, a partir de materiais que fazem parte do cotidiano escolar, apropriados
às necessidades de seus alunos (MEC/SEE, 2006).
A utilização dos recursos de tecnologia assistiva de forma a ampliar habilidades fun-
cionais dos alunos, promovendo autonomia e participação, é percebida pelos 6 (seis) dos 7
(sete) professores pesquisados ao utilizarem recursos de tecnologia assistiva para ampliar
habilidades funcionais dos alunos com necessidades especiais, promovendo autonomia e
participação; tendo um 1 (um) dos pesquisados afirmado que ainda não atendeu alunos que
necessite destes recursos. Ressalta-se que, um dos pesquisados afirma que os utiliza, mas
que há recursos que necessitam de formação específica para serem empregados, que a
sua formação foi apenas introdutória.
Tecnologias Assistivas é uma aliada do AEE porque possibilita uma gama de serviços
e recursos que auxiliam os alunos na resolução de suas tarefas funcionais. As dificuldades
funcionais na realização de tarefas podem ser transformadas em possibilidades funcionais
e participação, se for devidamente provido o recurso necessário para o aluno. Contudo, um
dos grandes desafios para os profissionais do AEE é a utilização adequada destes recur-
sos, pois só tiveram formação básica, a fim de que venham a amparar de forma eficaz um
atendimento com resultados positivos, com o propósito de desenvolvimento integral destes
sujeitos (MEC/SEE 2006).

145
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Assim, as tecnologias permitem cada vez mais a integração de crianças com deficiên-
cia nas escolas, facilitando o seu processo educacional e visando o seu desenvolvimento
pessoal, interpessoal, intrapessoal, transpessoal, profissional e espiritual dos sujeitos.
Acredita-se que a tecnologia deve ser encarada como um elemento cognitivo capaz
de facilitar a estruturação de um trabalho, viabilizando a descoberta, garantindo condições
propícias para a construção do conhecimento. Na verdade, são inúmeras as vantagens que
advêm do uso das tecnologias no campo da aprendizagem no que diz respeito aos alunos
com deficiência, pois pode despertar um grande interesse e motivação pela descoberta do
conhecimento tendo como base as suas necessidades e interesses.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa que ora se encerra destinou-se a analisar a percepção do professor da


SRM, em relação ao Atendimento Educacional Especializado, como estratégia para inclusão
social e promoção do desenvolvimento humano das pessoas com deficiência.
Ao fim e ao cabo, acredita-se que os resultados obtidos com tal pesquisa permitiram
responder aos objetivos inicialmente propostos. Quer no âmbito da caracterização do AEE,
do papel do professor, caracterização dos recursos e, até mesmo, a percepção dos docentes,
conforme identificado nos textos já apresentados.
O Atendimento Educacional Especializado (AEE), proposto pela Política Nacional de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva de 2008, pelo Plano Nacional
de Educação 2014- 2024, na Meta 04, que propõe a universalização do AEE, e pela LBI,
se caracteriza por ser uma ação do sistema de ensino no sentido de acolher a diversidade
existente no processo educativo, constituindo-se num serviço disponibilizado pela escola
para oferecer o suporte necessário às necessidades especiais dos alunos, ora apoiando, ora
complementando e suplementando os serviços educacionais comuns, a fim de favorecer o
acesso do aluno ao conhecimento.
Após uma análise sobre o trabalho do professor do AEE, desenvolvido na SRM, no
Município de Salvador-Ba, constatou-se dificuldades (de recursos humanos e materiais),
desafios (participação da família e da comunidade escolar) e avanços (interação e aceita-
ção dos alunos), os quais demonstram a inclusão como um processo em construção, reco-
nhecendo os professores da SRM, as contribuições do AEE com estratégia para inclusão
social e promoção do desenvolvimento humano das pessoas com deficiência, em que pese
este desenvolvimento está centrado na inclusão e aceitação destes alunos, seja no meio
escolar ou familiar.
Este é um resultado que demonstra avanços nos princípios inclusivos contidos nas
Políticas de educação Inclusiva, em que pese as dificuldades e os desafios enfrentados pelos
146
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
professores pesquisados, o AEE, como proposta de política pública da Rede Municipal de
Ensino de Salvador- Ba, cumpre um papel de fundamental importância na garantia do direito
à educação das pessoas com deficiência.
Evidenciou-se, que a prática pedagógica do professor do AEE na SRM tem que ser
constantemente retroalimentada, através de cursos e capacitações, para que o professor
possa cumprir seu objetivo principal, além de assegurar o acesso, a permanência, garantir
o desenvolvimento humano destes alunos.
Contudo, sabe-se que não é apenas a universalização do AEE, proposto pelo Plano
Nacional de Educação 2014-2024, que irão tornar a escola inclusiva. Essa transformação
ocorrerá no coletivo, no envolvimento de todos os seus membros, com o reconhecimento
das diferenças pautado no princípio da cooperação e participação de todos os seus alunos,
e, especialmente, colocando a aprendizagem, e o desenvolvimento humano como foco da
escola integral.
Como pode-se perceber os desafios para educar numa perspectiva inclusiva são mui-
tos, vão desde o envolvimento de toda a comunidade escolar e da família, de profissionais
habilitados e de todo o arsenal de recursos e serviços que contribuam para proporcionar
ou ampliar as habilidades funcionais de pessoas com deficiência e, consequentemente,
promover vida independente, inclusão, sobretudo, desenvolvimento humano.
Nesse sentido, cabe a reflexão para que as políticas públicas na perspectiva da edu-
cação inclusiva sejam pautadas em pressupostos voltados para a educação integral, a qual
objetive não apenas o acesso, a permanência, e a aprendizagem na escola regular, mas,
que seja movida pelo desejo da formação integral dos alunos com deficiência.
Em suma, alfabetizar de forma integral é desencadear um processo de intensas ex-
periências em educação que coloque o sujeito que aprende em contato com um universo
externo de grandes potenciais de construções cognitivas, integrativas, volitivas, criativas,
socializantes, consciências lúdicas, bem como com um universo interno de potencialidades,
desenvolvendo uma identidade autônoma, criativa e integrativa do educando.

147
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
APÊNDICE A - QUESTIONÁRIO

PERCEPÇÃO DO PROFESSOR DO AEE

QUANTO A CARACTERIZAÇÃO
Data da realização da coleta:_______________________________________
Nome:_________________________________________________________
Escola:________________________________________________________
Atuação profissional: _____________________________________________
Formação acadêmica:

1. Qual o seu nível de formação em relação a educação inclusiva?

a. ( ) Graduação em educação inclusiva


b. ( ) Cursos de Capacitação/Formação continuada em educação inclusiva
c. ( ) Especialização em educação inclusiva
d. ( ) Mestrado em educação inclusiva
e. ( ) Doutorado em educação inclusiva
f. ( ) Nenhuma das alternativas anteriores

7. A infra-estrutura da escola é adequada para o trabalho com os conteúdos e apren-


dizado de alunos com deficiência?

a. ( ) Sim. Por quê?


b. ( ) Não. Por quê?

3. Quais das adequações físicas foram executadas na sua escola a fim de garantir
a acessibilidade, a participação e a permanência dos alunos com necessidades
especiais?

a. ( ) Construção ou adequação de rampas.


b. ( ) Adequação de banheiros.
c. ( ) Sinalização sonora.
d. ( ) Alargamento de portas.
e. ( ) Sinalização visual.
f. ( ) Sinalização tátil.
g. ( ) Nenhuma adequação.
h. ( ) Outros. Especifique:
148
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
QUANTO A ATUAÇÃO

9. Atualmente quantos alunos com necessidades especiais, (com laudo emitidos por
especialistas) são atendidos na sala de recursos multifuncionais da sua escola?

a. ( ) um.
b. ( ) dois
c. ( ) três
d. ( ) quatro
e. ( ) mais de quatro. Quantos?_______________________________________

6. Com que frequência semanal você atende cada aluno?

a. ( ) diariamente
b. ( ) 2 vezes por semana na sala de recursos multifuncionais
c. ( ) 3 vezes por semana na sala de recursos multifuncionais
d. ( ) outros. Especifique___________________________________________

5. Tempo de atendimento?

a. ( ) 30 minutos por atendimento


b. ( ) 40 minutos por atendimento
c. ( ) 60 minutos por atendimento
d. Outros. Especifique_____________________________________________

5. Composição do atendimento

a. ( ) atendimento individual
b. ( ) atendimento grupal
c. ( ) atendimento na própria sala de aula com todos os alunos
d. Outros. Especifique__________________________________________

5. Com quais profissionais da saúde você atua no AEE?

a. ( ) psicólogo.
b. ( ) fonoaudiólogo
c. ( ) terapeuta ocupacional
d. ( ) fisioterapeuta
e. ( ) outros. Especifique_______________________________________
149
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
6. A família participa do AEE da sua Unidade Escolar?

a. ( ) Sim. De que forma?_______________________________________


b. ( ) Não. Por quê?______________________________________________

3. Você sabe utilizar os recursos de tecnologia assistiva de forma a ampliar habilida-


des funcionais dos alunos, promovendo autonomia e participação?

a. ( ) Sim. Quais__________________________________________________
b. ( ) Não. por quê?________________________________________________

3. Você estabelece articulação com os professores da sala de aula comum, visando


à disponibilização dos serviços, dos recursos pedagógicos e de acessibilidade e
das estratégias que promovem a participação dos alunos nas atividades escolares?

a. ( ) Sim. De que forma?


b. ( ) Não. Por quê?______________________________________________

3. Quais destes sujeitos você realiza orientações sobre o seu aluno do AEE?

a. ( ) orientação ao professor de sala de aula


b. ( ) orientações ao professor de educação física
c. ( ) orientações aos colegas da turma
d. ( ) orientações ao diretor da escola
e. ( )orientações ao coordenador pedagógico
f. ( ) orientações aos familiares do aluno
g. ( ) orientações aos funcionários da escola
h. ( ) todas as alternativas anteriores
i. ( ) Nenhuma das alternativas anteriores
j. ( ) outras orientações.

Quais?__________________________________________________________

11. Você busca subsídios que venham a possibilitar o desempenho de suas funções
e garantir práticas que promovam o desenvolvimento de seus alunos com necessi-
dades especiais?

a. ( ) Sim. De que forma?___________________________________________


b. ( ) Não. Por quê?________________________________________________
150
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
3. É comum a sala de aula e o atendimento do AEE serem em escolas diferentes,
com professores de turnos diversos, quando é realizado a articulação com a equipe
escolar deste aluno?

a. ( ) Ac –semanal ou quinzenal
b. ( ) visitas a escola do aluno atendido sempre que a instituição solicitar
c. ( ) visitas a escola do aluno atendido uma vez por mês
d. ( ) contato telefônico, sempre que necessário.
e. ( ) outros.

QUANTO A PERCEPÇÃO DAS DIFICULDADES/ DESAFIOS E AVANÇOS.

6. Qual o seu sentimento em trabalhar com alunos com necessidades especiais?

( ) satisfeito
( ) desafiado
( ) preparado
( ) inseguro
( ) ansioso
( ) desmotivado
( ) outros. Especifique______________________________________________

7. Quais são suas maiores dificuldades ao lidar com os alunos com necessidades
especiais? De que forma essas dificuldades são manejadas?

________________________________________________________________

8. Qual foi o maior desafio que você já passou como professor do AEE? Caso positi-
vo, foi superado? Como?

________________________________________________________________

9. A estruturação da cultura escolar e a dinâmica e organização das práticas pedagó-


gicas garantirá a inclusão efetiva dos alunos com necessidades especiais?

a. ( ) sim. De que forma?__________________________________________


b. ( ) não. Por quê?______________________________________________

3. Na sua opinião o AEE ajuda a promover a acessibilidade, a participação e a perma-


nência dos alunos com necessidades especiais nas classes regulares?
151
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
a. ( ) sim. De que forma?______________________________________
b. ( ) não. Por quê?___________________________________________

3. Com o trabalho desenvolvido pelo AEE, juntamente com os demais recursos hu-
manos da Unidade Escolar já é perceptível o impacto na inclusão social dos alunos
com necessidades especiais, na perspectiva da formação humana e qualidade de
vida destes sujeitos?

a. ( ) sim. De que forma?_________________________________________


b. ( ) não. Por quê?_____________________________________________

3. É possível praticar uma educação inclusiva INTEGRAL, subsidiada pelo AEE, nas
condições que se tem atualmente? Se sim, de que modo

_______________________________________________________________

152
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
REFERÊNCIAS
1. ALVES, Denise de Oliveira. Sala de Recursos Multifuncionais: espaços para atendimento
educacional especializado. Elaboração Denise de Oliveira Alves, Marlene de Oliveira Gott,
Claudia Maffini Griboski, Claudia Pereira Dutra. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Especial, 2006.

2. BATISTA, C. A. M.; MANTOAN, M. T. E. Atendimento Educacional Especializado em Deficiên-


cia Mental. In: GOMES, A. L. L. et al. Atendimento Educacional Especializado: Deficiência
Mental. São Paulo: MEC/SEESP, 2007.

3. BELISÁRIO Filho, José Ferreira; CUNHA, Patrícia. A Educação Especial na Perspectiva da


Inclusão Escolar: transtornos globais do desenvolvimento. Brasília: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Especial; [Fortaleza]: Universidade Federal do Ceará, 2010.

4. BERSCH, R. Bookman, 2002. Introdução à Tecnologia Assistiva. Porto Alegre, RS 2013,


p.1-19. Disponível em: <http://www.assistiva.com.br/Introducao_Tecnologia_Assistiva.pdf.
pdf>. Acesso em: junho de 2014.

5. BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto nº
7.611, de 17 de3 novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento edu-
cacional especializado e dá outras providências. Brasília, DF. Legislação Federal. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7611.htm>. Acesso
em: 02/Set./2015.

6. BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada


em 5 de outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

7. ______. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa
com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 08. Set. 2015.

8. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Marcos Políticos-Legais


da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Secretaria de Educação
Especial. Brasília, DF: Secretaria de Educação Especial, 2010.

9. ______. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial numa


perspectiva inclusiva. Brasília, DF: MEC/SEESP, 2008.

10. ______. Secretaria de Educação Especial. Nota Técnica nº11 de 2010. Dispõe sobre Orien-
tações para a institucionalização da oferta do Atendimento Educacional Especializado – AEE
em Salas de Recursos Multifuncionais, implantadas em escolas regulares. Disponível em:
<www.mec.gov.br/seesp>. Acesso em: 29 agosto, 2011.

11. ______. Conselho Nacional de Educação. Câmara de educação básica. Resolução Nº 4,


de 2 de outubro de 2009. Institui Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional
Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial. Brasília, DF. Legislação
Federal. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/rceb004_09.pdf>. Acesso em:
02/10/2014.

12. GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

153
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
13. GOMES, A. L. L. V.; POULIN, J.; FIGUEIREDO, R. V. de. O atendimento Educacional Especia-
lizado para alunos com Deficiência Intelectual. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Especial: Universidade Federal do Ceará, (Coleção A Educação Especial na
Perspectiva da Inclusão Escolar v. 2). 2010. 28p.

14. MATOAN, Maria Tereza. Capacitação dos professores – sem preconceitos. Reportagens.
Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/2005/12/01.shtml/>. Acesso em: julho
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15. ______. Ministério da Educação. Planejando a Próxima Década. Conhecendo as 20 Metas


do Plano Nacional de Educação. Ministério da Educação/Secretaria de Articulação com os
Sistemas de Ensino (MEC/Sase): Brasília, DF., 2014.

16. PAULON, Simone Mainiere. Documento Subsidiário à política de inclusão. 2. ed. Simone
Mainiere Paulon, Lia Beatriz de Lucca Freitas, Gerson Smiech Pinho. Brasília, DF: Ministério
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17. ROPOLI, Edilene Aparecida et.al. A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Esco-
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18. SILVA, Sandra Francisca da,; ALMEIDA, Amélia Leite de. Atendimento educacional especia-
lizado para aluno com autismo: Desafios e possibilidades. Disponível em: <http://incubadora.
periodicos.ufsc.br/index.php/IJKEM/article/.../1923/2198%20de%20SF%20da%20S ilva%20
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19. YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2002.

20. YUS, Rafael. Educação integral: uma educação holística para o século XXI. Porto Alegre:
Artmed, 2002.

154
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
10
El desafio de la actuación triética
en la práctica docente: Una Revisión
Narrativa

Alvaro Adriazola Uribe

Georgina Durán Jiménez

José Damião de Melo

Valdenice de Jesus Melo

Marcelo Flores Troncoso

10.37885/210303731
RESUMEN

Se entiende que siempre la práctica docente presentará desafíos éticos para el docente
y su interacción en sala de clases con sus estudiantes, pero, a su vez, estos desafíos
tienen especificidades de acuerdo a la época en que se desarrolla el proceso educativo.
Por eso este capítulo tiene el objetivo de entregar un análisis teórico de los desafíos
éticos en la práctica docente en educación superior en la contemporaneidad. Con una
mirada desde el paradigma fenomenológico y con sustento teórico basado en la Triética
del filósofo Dante Galeffi. Además, se incluye las voces de un docente y una estudiante
de educación superior que participaron en una experiencia innovadora en sus procesos
de enseñanza-aprendizaje que enriquecen esta revisión narrativa.

Palabras-Clave: Ética, Docencia, Educación Superior.

156
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUCCIÓN

El ejercicio de reflexionar, entendido como un proceso consciente de “mirar para atrás”,


para hacer una reducción fenomenológica (SCHUTZ, 1979), que signifique hacer un es-
fuerzo para revivir lo que se experimentó previamente en una actitud natural (SCHUTZ,
1979), sirve para observar el camino recorrido, con la posibilidad de contemplar, analizar
y valorar la caminada hasta donde se encuentra el auto-observador. En ese observar, es
posible visualizar, y muchas veces des-cubrir, lo que en el estado presente quedó cubierto
o no observable. Si pensamos en los conocimientos y aprendizajes, ese “mirar para atrás”
permite, inclusive, percibir que en el caminar se conectaron, ampliaron, modificaron y también
des-construyeron/crearon estructuras de conocimiento-aprendizaje, que en este capítulo
tienen el foco en la ética, contextualizada en la práctica docente.
Considerando lo anterior, el objetivo de este capítulo del libro “Temas da Diversidade:
Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2” será el de realizar un análisis teórico de
los desafíos éticos en la práctica docente en educación superior en la contemporaneidad,
desde el paradigma fenomenológico y con sustento teórico basado en la Triética del filósofo
Dante Galeffi e incluyendo las voces de un docente y una estudiante de educación superior
que participaron en una experiencia innovadora en sus procesos de enseñanza-aprendizaje.

DESARROLLO

Con el proceso de construcción de este capítulo del libro, se construyeron y apropiaron


ciertas ideas en relación a la ética. Es así que, si la ética se entiende como un saber actuar,
por eso implica obligatoria y evidentemente una teoriacción, concepto traducido al español
que el filósofo brasileño Dante Galeffi (2020) desarrolla en conjunto con la Polilógica en su
“Teoriação Polilógica”, y que de forma aislada define que “se trata de la fusión de las pa-
labras “teoría” y “acción”, siendo una teoriacción y no una “teoría de la acción”, porque se
comprende y se admite la falacia de la teoría separada de la acción: un absurdo” (GALEFFI,
2020, p.736, en traducción libre). Entonces, una ética docente no puede quedar solamente
en una pre-ocupación, y sí, en una ocupación en su campo de acción, debido a que “no se
trata de decir lo que es ético y lo que no es ético, pero sí del reconocimiento de la acción
ética, del ser o no ser ético en su praxis humana cotidiana” (GALEFFI, 2018, ponencia en
congreso, en traducción libre).
Ese actuar se puede comprender como el que nosotros, Homo sapiens, tenemos que
ser curadores trivalentes, lo que quiere decir, encontrar sentido, que en este caso es dentro
de la práctica docente, en cuidar del mundo de la vida trivalentemente. La trivalencia del
curador humano implica un cuidado consigo (cuerpo/mente), con los otros (social - docentes
157
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
y estudiantes) y con el mundo (ambiental) donde se realiza la vivencia de la acción del edu-
car (GALEFFI, 2017).
En esa línea de comprensión de la ética como triética, es posible y necesario analizar
el mundo del Siglo XXI, donde se realiza la práctica docente, y que tiene algunas caracte-
rísticas que componen y permean las realidades donde conviven docentes-estudiantes, y
así, donde se experiencia el proceso educativo. En ese sentido, la docencia debe ser reali-
zada en la Era de la Globalización, en la que los medios masivos de comunicación imponen
modelos de vida y pensamiento, lo que es facilitado por un enorme avance tecnológico, en
que se promueve-fortalece-evidencia un aumento del individualismo (BOZU E HERRERA,
2009). Lo anterior es característica de esta época, denominada por el sociólogo polonés
Zygmunt Bauman (2001) como Modernidad Líquida, en la que se genera una Sociedad del
Rendimiento que lleva a una narcisificación del si-mismo, que absolutiza el yo y finalmente
evapora al otro (HAN, 2017). Este ambiente exige a los docentes una atención diferente a
la que era exigida en la Modernidad Sólida (BAUMAN, 2001) en relación al aprendizaje de
sus estudiantes, que en la contemporaneidad se recomienda sea focalizada en el desarrollo
de ciertas capacidades genéricas personales, instrumentales e interpersonales, así como
habilidades y destrezas que serán parte del buen hacer de la futura persona-profesional.
En cuanto se busca lograr lo anterior, en el proceso, los docentes tienen que enfren-
tar y cuidar de problemáticas como el estrés académico que conlleva para los estudiantes
formarse en la educación superior. Esto se sustenta en que, según Rull y colaboradores
(2011), el 73% de los estudiantes universitarios declaran que sufrieron de ansiedad intensa
en su etapa universitaria, lo que sumado a que el 85% percibe a los docentes como muy
exigentes, debe poner en alerta a los docentes para cultivar y promover el cuidado con los
otros (estudiantes) de la triética aquí planteada. En ese sentido, es preciso saber ponderar
en su justa medida, pero siempre considerar, el estrés o ansiedad que puede significar
cualquier mudanza en el modelo de enseñanza para estudiantes que llevan muchos años
de formación en el Modelo Tradicional, que además de ser un cambio radical en el cotidiano
educativo, es en un sistema universitario sobrecargado de contenidos y/o con estudiantes
que no consiguen organizarse para dar cuenta de las múltiples exigencias a la que se ven
expuestos. Entonces, ante cualquier mudanza, aunque se pretenda en beneficio directo para
su aprendizaje, puede ser percibida como una carga añadida a sus jornadas de estudio; lo
que queda evidente cuando una estudiante que participó en una experiencia de innovación
del proceso de enseñanza-aprendizaje con el Modelo Flipped Classroom1 declara que,

1 Modelo pedagógico creado por los profesores Jonathan Bergmann y Aaron Sams (2017) que consiste en la inversión del ciclo de

158
aprendizaje, en que la parte pasiva se realiza previamente mediante un video y la parte activa es posteriormente en la sala de clases.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Creo que ya estamos tan acostumbrados al modelo tradicional, que es bas-
tante difícil el estudiar antes para una clase y sobre todo considerando que
no es el único ramo que tenemos y que además a veces nos quitaba tiempo
para estudiar otras temáticas de otros ramos (ESTUDIANTE DE EDUCACIÓN
SUPERIOR, comunicación verbal, 2019).

Sin embargo, el estrés no es un problema que solo los estudiantes sufren. También es
alarmante saber que los docentes, y ahora pensando en la perspectiva del ser curador con-
sigo, tiene una prevalencia de estrés crónico del 83,6%, debido principalmente al “constante
escrutinio externo, la imposibilidad de conciliar la vida personal con la laboral y a la nece-
sidad de proporcionar constantemente resultados positivos” (BARNÉS, 2019, p.2). En este
aspecto, aunque sea manifestada una ansiedad por la incerteza de lo que puede acontecer
en las primeras clases con el Modelo Flipped Classroom, misma experiencia de la estudiante
anteriormente citada, y el necesario uso de las tecnologías digitales, según la experiencia de
un docente de educación superior que declara tener poco dominio tecnológico, así mismo el
docente innovador manifiesta que no es exigente en exceso el modelo, y que además declara
que: “yo considero que no es complejo, ¿no? Lo más complejo, para mí, fue el agobio mental
que tuve pensando en cómo iba a resolver la tecnología de grabar una clase, yo creo que
eso fue lo más complejo” (DOCENTE DE EDUCACIÓN SUPERIOR, comunicación verbal,
2019), pero que después de aprender rápidamente, ya en la primera temática de sus clases,
el uso de la herramienta de grabación que tiene la plataforma que disponibiliza la institución
de educación superior donde él es académico, consiguió eliminar esa “carga mental”, por lo
que concluye que “(...) lo que yo pensaba que era lo más complejo, que era hacer el video
(...), no es complejo (DOCENTE DE EDUCACIÓN SUPERIOR, comunicación verbal, 2019).
Han (2017, p.7, en traducción libre) afirma que “cada época posee sus propias en-
fermedades fundamentales” y en la perspectiva patológica, el Siglo XXI desde su inicio es
definido como neuronal. Es así que, enfermedades neuronales como depresión, Trastorno
del Déficit de Atención con Síndrome de Hiperactividad (TDHA) o Trastorno de Personalidad
Limítrofe (TPL), caracterizan este comienzo de siglo. Pero, existe una enfermedad o tras-
torno que consigue representar de forma trágicamente brillante la Sociedad del Cansancio,
donde docentes y estudiantes experimentan sus procesos de enseñanza-aprendizaje, que
es el Síndrome de Bournout (HAN, 2017). En esta sociedad en que el verbo que domina
las acciones de los Homo sapiens dejó de ser el “Deber” de la Modernidad Sólida y pasó
a protagonizar el “Poder” de la Modernidad Líquida; docentes y estudiantes corren el serio
riesgo de explotarse a sí mismos hasta consumirse completamente y llegar al estado de
agotamiento mental, físico y emocional incapacitante característico del Síndrome de Bournout
o “síndrome del trabajador quemado” (BAUMANN, 2001; HAN, 2017).

159
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Esto evidencia la necesidad del cuidado triético equilibrado. Lo que significa que, en
cuanto se trabaja en la construcción de conocimientos con los estudiantes, al mismo tiem-
po se tiene que cuidar del componente-ambiente de la triética, que es el contexto donde
acontece la práctica docente, para así favorecer el cuidado consigo que permita prevenir
el estrés agudo, que al menos estudiantes y docentes que experimentaron con el Modelo
Flipped Classroom, no declaran haber sentido, fuera de lo ya descrito anteriormente; y en el
mediano-largo plazo, controlar y disminuir el estrés crónico de estudiantes y docentes que
ya es reportado por Rull y colaboradores (2011) y Barnés (2019).
Por la complejidad que significa vivir en sociedad, se hace necesario cultivar algunas
virtudes fundamentales para convivir e intentar comprender al Otro. Empatía es una de esas
cualidades, que implica el proceso de entender lo que siente y, después con eso, piensa
el Otro, en relación a lo que tiene que vivenciar y sus reacciones. Es necesario movilizar
esto - empatía - a la práctica docente, para poder interactuar y acoger de mejor forma a
los estudiantes.
Ser consciente de sus individualidades, y con eso de sus diferencias; que no existe
homogeneidad en los sujetos-estudiantes, lo que exige el esfuerzo comprensivo por un actuar
con y en la diversidad. Ese esfuerzo en la diversidad tiene el desafío de ser en un contexto
complicado, en que los jóvenes declaran una bajísima confianza social (13%). A su vez, un
cuarto de ellos reconoce que se sintió triste, desanimado o deprimido y el 29% consumió
drogas ilícitas (INJUV, 2017). Esta realidad requiere un despertar y también aumentar la
concientización del desafío/acción que representa un actuar triético en la práctica docente.

CONSIDERACIONES FINALES

El objetivo del capítulo fue realizar un análisis teórico de los desafíos éticos en la
práctica docente en educación superior en la contemporaneidad, lo cual fue sustentado y
orientado por la Triética de Dante Galeffi. En ese sentido y desde la perspectiva del docente
encontramos que el desafío es complejo y radica en conjugar los cuidados con los otros
(sus estudiantes), ser curador consigo y con el componente-ambiente en que se rescata a
la empatía como cualidad protagonista para enfrentar y sobrellevar una educación superior
para y en el Siglo XXI.

160
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
REFERÊNCIAS
1. BARNÉS, Héctor. Trabajos tóxicos: Los 8 males del profesor universitario. 2019. Disponível
em: https://www.elconfidencial.com/alma-corazon-vida/2019-01-24/males-profesor-universita-
rio-trabajos-toxicos_156018/. Acesso: 1 de abril de 2021.

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3. BERGMANN, J; SAMS, A. Sala de aula invertida: uma metodologia ativa de aprendizagem.


Rio de Janeiro: LTC, 2017.

4. BOZU, Zoia; HERRERA, Pedro. El profesorado universitario en la sociedad del conocimiento:


competencias profesionales docentes. Revista de Formación e Innovación Educativa Uni-
versitaria, v. 2, n. 2, p. 87-97, 2009.

5. GALEFFI, Dante. Didática filosófica mínima. Salvador, Quarteto Editorial, 2017.

6. GALEFFI, Dante. Ética, privacidade, e confidencialidade de informação em saúde: investigan-


do a ética na sociedade do conhecimento, da informação, da aprendizagem, e do controle a
partir de uma teoriação polilógica. In: CONGRESSO DE PESQUISA, ENSINO E EXTENSÃO
UFBA, Salvador, 2018.

7. GALEFFI, Dante. Teoriação Polilógica. In: GALEFFI, Dante; MARQUES, Maria Inês; ROCHA-
-RAMOS, Marcílio. Transciclopédia em difusão do conhecimento. Salvador: Quarteto, 2020.
p. 736-770.

8. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2017.

9. INJUV. Octava encuesta nacional de juventud 2015. Instituto Nacional de La Juventud (IN-
JUV), Ministerio de Desarrollo Social de Chile. Disponível em: http://www.injuv.gob.cl/storage/
docs/Libro_Octava_Encuesta_Nacional_de_Juventud.pdf. Acesso: 1 de abril de 2021.

10. RULL, Marco e col. Estrés académico en estudiantes universitarios. Psicología y Salud, v.
21, n. 1, p. 31-37, 2011.

11. SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

161
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
11
Experiência em Educação Midiática e
Informacional para uma comunicação
ambientalmente adequada

Rosália Aparecida da Silva


IFRO

Viviane Cristina Camelo


IFRO

Dennis Weberton Gonçalves


IFRO

Marcelo Ferreira Camargo


IFRO

Marcos Daniel Silva de Gois


IFRO

10.37885/210203379
RESUMO

Este texto trabalha o tema de educação midiática a partir da proposta de observação e


análise do que os sites de notícias divulgam sobre crianças e adolescentes no estado de
Rondônia. Sua tessitura está sustentada na premissa de que um meio ambiente social
saudável (para crianças e adolescentes) requer um cuidado integral da sociedade que o
compõe. Nesse ponto, evidenciamos a imprensa, já que os espaços midiáticos na internet
podem ser considerados como um ambiente social que expõe estilos de vida, recorta
realidades sociais complexas e compõe a memória coletiva da população. Fruto de um
levantamento de dados para o Projeto Observatório de Mídia, o objetivo geral da pes-
quisa era identificar as informações divulgadas na mídia regional rondoniense a respeito
da infância e juventude (0-17 anos). Fazendo parte ainda do que se objetivou a coleta e
análise de informações veiculadas na mídia, classificação dessas informações coletadas
representativamente em dois sites e avaliação do teor geral dessas notícias. A metodolo-
gia foi composta inicialmente pela formação dos pesquisadores para compreensão sobre
jornalismo e seus veículos on-line e posterior coleta de dados, que foram organizadas
e tabuladas matematicamente. Como resultado, os dados demonstraram que mais de
50% das notícias veiculadas nos sites envolviam temas atrelados à violência. Conclui-se
que há tendência a manutenção de uma visão única, de um direcionamento negativo às
matérias veiculadas e ao público nelas representados. O estudo pode contribuir para o
aprimoramento do trabalho jornalístico, levando ao conhecimento, crítica e contribuição
social com vistas à valorização da ética midiática.

Palavras-chave: Educação Midiática e Informacional, Meio Ambiente Saudável, Observatório


de Mídia, Jornalismo, Rondônia.

163
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Desenvolvemos entre 2019 e 2020 o Projeto “Observatório de Mídia”, que foi submeti-
do a edital da Pró-Reitoria de Pesquisa, Inovação e Pós-Graduação do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia no segundo semestre de 2010. A proposta foi
institucionalizada pelo Edital PROPESP/IFRO 14/2019, a partir de iniciativa de pesquisadores
do Grupo de Pesquisa em Educação, Filosofia e Tecnologias (GET/IFRO).
Neste texto se apresenta um resumo de como foi a experiência de trabalhar a partir de
uma proposta de educação midiática junto ao público jovem de ensino médio, na perspectiva
de se capacitar agentes para uma leitura crítica de mídia. Formação que pode resultar em
um ambiente comunicacional adequado, especialmente quando se vive em uma socieda-
de de informação.
Para alguns teóricos essa capacitação é compreendida como um processo de alfabeti-
zação midiática, que oferece ao sujeito condições críticas para decodificar a linguagem usada
pelos canais midiáticos. Sobre isso, Garcia-Ruiz, Matos e Borges (2016, p. 83) afirmam que
a alfabetização mediática “é um fator fundamental para o desenvolvimento de uma cidadania
crítica e responsável em sua maneira de comunicar-se com o entorno,”1 (tradução livre) sen-
do direito dos cidadãos receber formação adequada que o capacite para bem compreender
como interpretar os conteúdos noticiosos divulgados.
Para a área de comunicação, a reunião teórica entre os temas educação midiática,
formação politécnica e fake news vem sendo uma necessidade da sociedade brasileira.
Portanto, neste recorte de pesquisa, o interesse é conhecer mais sobre uma possibilidade
de educação midiática como um tema atual e que deveria compor o currículo escolar de
forma mais direta. A iniciativa ocorreu na cidade de Porto Velho (RO), concluindo-se já no
período de distanciamento social, diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).
A sociedade atual gira em torno da comunicação. Essa centralidade inclusive já foi
chamada por Herbert Marshall McLuhan de uma aldeia global, em que o próprio meio é
uma mensagem (ARAÚJO; SOUZA, 2008). Justamente pensando nessa aproximação das
pessoas que estão afastadas fisicamente, porém, reunidas e em contato de alguma maneira
pelos meios de comunicação; e que agora existe uma geração de “hiperconectados2”, pas-
sando muito tempo diário conectado às mídias sociais3, é que entendemos a urgência em

1 No Original: “a alfabetización mediática es un fator fundamental para el desarrollo de uma ciudadanía crítica y responsable en su
manera de comunicarse con el entorno, y es un derecho de los ciudadanos el recibir la formación adecuada”.
2 O termo ainda não foi definido nos dicionários, porém são acessadas cotidianamente para estudo, trabalho, recreação e outros: “A
hiperconectividade se caracteriza pelo contato constante com esses recursos, o que gera a necessidade de estar sempre conectado”
(LYCEUM, 2020, s/p).
3 Optamos por mídias sociais, tendo em vista serem as redes sociais mais amplas, ocorrendo em ambiente virtual ou não, estabele-
cendo vínculos entre grupos diversos. Cf. Bortoni-Ricardo (2014, p. 130): “Uma rede social é concebida como o conjunto de vínculos

164
de qualquer tipo que se estabelecem entre as pessoas de um grupo”.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


levantar a temática de um processo de formação que nos dê instrumento para melhor nos
relacionarmos com a mídia.
Há, ainda, na atualidade, uma rapidez muito maior nesta comunicação, em que determi-
nado fato leva instantes para atravessar o mundo e deixar milhares de pessoas informadas,
fatos locais ganham repercussão planetária, pessoas se tornam famosas e/ou viram memes,
ocupando espaços em sites e redes de internet. Ações de comunicação desenvolvidas por
seres humanos e até por disparos tecnológicos de mensagens por “robôs”. Fatos que ultra-
passam os limites do que é dado para o direito à liberdade de expressão, que não é ilimitada,
uma vez que deve se dar dentro de um principio de respeito ao outro e à sociedade.
Para a educação formal, presencial, ou remota (esta vista na transferência das aulas
até então presenciais para o ambiente virtual4), ou ministradas a distância, há interesse em
acompanhar os conhecimentos das mídias, até mesmo por viver com ela uma disputa de
atenção. Nessa relação de conflitos de interesse pelo aprendizado, as mídias sociais são
muito atrativas, desejam obter likes e acessos a todo momento, daí utilizam de inovação,
criatividade e disponibilização de conteúdos que atraem a atenção do público. Igualmente
muitos serviços essenciais atualmente estão dentro desses aparelhos e universo de apli-
cativos móveis (internet banking, previsão do tempo, mapas de cidades, agendas telefô-
nicas e de atividades, contato com familiares e amigos, álbuns de fotografias, plataforma
de trabalho etc.).
Por outro lado, há uma novidade para todos, que é o emprego do termo vindo de língua
inglesa, fake news, e que ultimamente vem sendo muito usado no Brasil. O fenômeno das
notícias falsas ganhou grande visibilidade em todo o mundo após as eleições nos Estados
Unidos de 2016. Não sendo uma novidade, a criação e disseminação de informação falsas
e boatos, segundo Silva (2017) a diferença reside justamente na sua forma de propagação
nos meios digitais: “A velocidade, a simplicidade e o baixo custo para produzir e disseminar
falsidades com capacidade de proliferação muito rápida e abrangência geográfica imensa”
(SILVA, 2017, s/p).
Ao fazer a reflexão sobre como as diretrizes éticas profissionais do jornalismo, profis-
sionais ligados à área de comunicação ou docentes podem contribuir na formação integral
dos alunos, ação pretendida numa educação politécnica e integral. A pesquisa é de natureza
qualitativa, de cunho exploratório, realizando uma breve revisão documental e bibliográfica
em uma metodologia que intenta contribuir na construção do tema de forma a apresentar
resultados e análises a partir da Alfabetização Midiática e Informacional.

4 No IFRO as aulas presenciais estão suspensas desde 18 de março de 2020. Disponível em https://portal.ifro.edu.br/ultimas-noticias/
10719-ifro-prorroga-suspensao-preventiva-das-atividades-presenciais-de-ensino-pesquisa-extensao-e-administrativas. Acesso em

165
20 Fev. 2021.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Conforme a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(Unesco), a Alfabetização Midiática e Informacional (AMI) se propõe a contribuir nas aqui-
sições de competências que tornem os cidadãos mais habilitados ao raciocínio crítico, de
forma a exigir serviços de alta qualidade das mídias em que se encontram. Entre os principais
requisitos para alcançar a AMI estão a do internauta em considerar o todo e incluir “uma
combinação de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes)” (WILSON; ALTON;
TUAZON; AKYEMPONG; CHEUNG, 2013, p. 20). A AMI articula ainda uma educação cívica
e coloca os professores enquanto protagonistas de mudança:

O presente Currículo de Alfabetização Midiática e Informacional para Formação


de Professores é um importante recurso para os Estados-membros em seu
contínuo trabalho de realizar os objetivos da Declaração de Grünwald (1982),
da Declaração de Alexandria (2005) e da Agenda de Paris da UNESCO (2007)
– todas elas relacionadas à AMI. (WILSON et al., 2013, p. 11)

Observando a AMI/Unesco verifica-se o quanto é uma área que está alinhada aos
direitos universais humanos, pois defende liberdade de expressão e de informação e uma
pedagogia voltada ao desenvolvimento do aluno e professor-cidadão. Dentro de um con-
texto de educação midiática, seria a AMI uma das propostas para adoção por parte dos
professores para formação de suas turmas. Da mesma maneira, o Código de Ética dos
Jornalistas Brasileiros, aprovado em 2007 pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)
possui os direitos humanos enquanto tese fundamental para atuação profissional e pode
corroborar no debate.
Como expresso (BRASIL, 2017) no primeiro artigo do “Capítulo I - Do direito à informa-
ção” há um “direito fundamental do cidadão à informação”, incluindo “o direito de informar,
de ser informado e de ter acesso à informação”. E no artigo seguinte:

Art. 2º Como o acesso à informação de relevante interesse público é um di-


reito fundamental, os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por
nenhum tipo de interesse, razão por que:

I - a divulgação da informação precisa e correta é dever dos meios de comu-


nicação e deve ser cumprida independentemente de sua natureza jurídica
- se pública, estatal ou privada - e da linha política de seus proprietários e/ou
diretores.

II - a produção e a divulgação da informação devem se pautar pela veracidade


dos fatos e ter por finalidade o interesse público;

III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo,


implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão; […]
(BRASIL, 2007, p. 01).

166
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Se conforme Silva (2017, s/p), “O antídoto para a crise de credibilidade é seguir à risca
os códigos de conduta e de ética da profissão e ajudar a sociedade a separar o que é fato
do que não é”, também o essencial será para os cidadãos hiperconectados adotarem tal
postura. A defesa dos direitos a uma boa informação passa também pela qualificação de
quem acessa informações e as mídias sociais, pois é um momento em que a preservação
do direito fundamental de acessar uma informação verídica e correta também vai passar
pelo crivo de quem lê.
Independente de qual mídia se conecta (TV, rádio, jornal impresso e on-line ou mídias
sociais), há necessidade de todos trabalharem com informações reais e verdadeiras. As infor-
mações que circulam nestes meios são de interesse público. E até mesmo as de divulgação
individual, no aplicativo Whatsapp devem ter essa responsabilidade social, de enquadra-
mento no respeito e a não incorrer em crime de injúria, difamação ou calúnia. Da mesma
maneira que não atentar contra a saúde pública ou temas correlatos a direitos humanos.
Tendo por consequência a necessária preparação para recepção, conexão e participação
nas mídias sociais.
Também é previsto o direito dos brasileiros sob a guarda de um meio ambiente que
seja ecologicamente equilibrado e que garanta uma sadia qualidade de vida5. Como há uma
visão integral em relação ao ambiente em que o ser humano habita o mundo virtual não está
dissociado dele. Tal qual o que a mídia divulga. O recorte aqui estudado envolve o universo
de notícias a respeito da infância e juventude na mídia de um dos estados que compõem
a Amazônia Legal. Levantando-se a problemática de qual é a natureza das informações
repassadas ao público sobre esse período da vida.

OBJETIVO

A presente proposta tem como objetivo geral identificar informações divulgadas na


mídia regional rondoniense a respeito de crianças e adolescentes. Estando seus objetivos
específicos divididos entre coletar e analisar informações veiculadas na mídia para iden-
tificar o que se divulga a respeito da infância, adolescência e juventude, classificar essas
informações coletadas representativamente em dois sites sediados no Estado de Rondônia,
avaliar o teor geral dessas notícias divulgadas, além de criar espaço para contribuições,
valorização e crítica do trabalho da mídia para melhoria social e melhor visibilidade da faixa
etária (0-17 anos).

5 Este direito encontra-se no capítulo que trata do meio ambiente, conforme Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível

167
em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 20 Fev. 2021.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


MÉTODOS

O projeto iniciou pela seleção do tema entre os responsáveis pela pesquisa e poste-
riormente com a seleção de alunos participantes para compor a equipe. Feitos os primeiros
contatos e formalizada a participação, após aprovação institucional da proposta, iniciou-se
encontros para leitura, debate, apresentação e conhecimento e direcionamento dos trabalhos.
Em primeiro momento foi feito o estudo dos textos/documentos norteadores do tema
infância e adolescência e trabalho da mídia (Declaração Universal dos Direitos Humanos,
o Estatuto da Criança e Adolescência, o Código de Defesa do Consumidor e o Código de
Ética dos Jornalistas), com ênfase ao que era mais diretamente ligado à infância e adoles-
cência. Ao final deste período foi elaborado o questionário para observação de cada mídia e
preparação para o monitoramento das mídias. Para as coletas de dados para amostragem da
pesquisa, foi usado o drive de armazenamento do e-mail, procedendo-se captura das telas e
arquivo de links e de textos. No total, foram sete meses de notícias nos portais G1 Rondônia
“https://g1.globo.com/ro/rondonia” e Rondônia Ao Vivo “http://rondoniaovivo.com/”.
Os dados coletados referem-se, direta ou indiretamente, ao contexto infância e juventu-
de. Os textos foram organizados e classificados para análise. Sendo catalogadas conforme
tema principal e rol de perguntas que listadas, conforme sua natureza, legislação, políticas
públicas e diferentes fontes de informação.
Ressalta-se que o Projeto Observatório de Mídia foi apresentado ao Instituto Federal
de Rondônia em 2019, obtendo apoio financeiro por meio de bolsas modalidade PIBIC-
EM/CNPq6 a dois estudantes do ensino médio (Técnico Integrado - Informática - Campus
Porto Velho Calama). E, em 2020, foi institucionalizado no Campus Porto Velho Calama,
Homologação 05 – Edital nº 03/2020/DEPESP.
O trabalho de acompanhamento da mídia rondoniense ocorreu em relação à faixa etária
de 0 a 17 anos, num laboratório comunicacional que visou contribuir no desenvolvimento
de novos pesquisadores no âmbito regional, e em um trabalho de observação das mídias
noticiosas do estado. A seleção de dois veículos ocorreu em função de serem considerados
representativos do universo de possibilidade que a comunicação possui em Rondônia (redes
de TV, jornal impresso, emissoras de rádio e demais sites jornalísticos).

RESULTADOS

Os sete meses de coletas de informações resultaram num total de 232 notícias cap-
turadas entre as divulgadas pelos veículos G1 Rondônia e Rondônia ao Vivo. Tabulados

6 Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica Júnior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

168
(CNPq) para estudantes do Ensino Médio.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


os dados, o levantamento mostrou que houve um destaque maior para temas de violência
como tipo de matéria principal veiculada. Foram 126 notícias relacionadas a temas violen-
tos. Uma porcentagem superior a metade das notícias selecionadas (54%). Sendo que das
relacionadas a questões de gênero em primeiro plano (13 notícias) também havia elementos
relacionados à violência. Os dados podem ser conferidos no gráfico 1:

Gráfico 1. Categorização principal

Desta forma, também enquanto categorização secundária se observou muitas notí-


cias veiculadas compondo relatos violentos. A exemplo das que falam de casos de abuso
infantil (6 notícias) ou de ocorrência em ambiente doméstico como os de violência familiar
(7 notícias). Essa visualização é possível de ser feita no Gráfico 2. A categorização neste
segundo plano ocorreu diante das multiplicidades de temas que uma mesma notícia pode
ter ao narrar fatos reais.

169
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Gráfico 2. Categorização secundária

DISCUSSÃO

Os dados demonstrados por meio de gráficos, no subtítulo anterior, podem ser ob-
servados sob duas óticas distintas, mas que estão intimamente interligadas: a urgência em
estimular dentro do currículo escolar, ações que auxiliem ao jovem no desenvolvimento do
pensamento crítico, fortalecendo sua identidade de cidadão comprometido como bem-estar
do outro, assim como na construção de ambientes saudáveis e seguros para a vivência de
crianças e adolescentes; a importância de uma busca constante e vigilante por comunica-
dores (jornalistas e publicitários) de uma postura ética e que num futuro se sobressaia aos
interesses escusos ou mercantilistas de poucos. Além disso, os dados tabulados revelaram-se
de grande relevância, já pode ser interpretado qualitativamente, ou seja, ser problematizado
a partir dessas duas óticas demonstradas.
Sob o primeiro enfoque, podemos destacar a forma como as crianças e adolescentes
são retratados nas notícias. Ao se obter o resultado de busca entre notícias veiculadas em
mídias de âmbito estadual, registrou-se que a ocorrência de notícias que narram fatos vio-
lentos é em sua totalidade mais da metade das notícias divulgadas pelos veículos analisados
durante o período de coleta de dados. Diante disso, podemos refletir a cerca do ambiente
em que vivem tais crianças e adolescentes, que em sua grande maioria são expostas como
vítimas (em especial as crianças) mas que também são algozes de outros menores, de
seus familiares.
Há de se observar que os conteúdos positivos, e que envolvem esse público, são
poucas e só ganham destaque dentro do ambiente da escola, como casos de sucesso que 170
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
devem ser seguidos e copiados. Nesse sentido, a criança e adolescente como membros re-
levantes do corpo social que fazemos parte é negligenciado, e só é visto e percebido quando
desmorona sobre eles as consequências de uma sociedade desigual, a criança passa a ser
mercadoria valiosa para a comercialização de narrativa mercantil e fria, que pouco faz para
que tais realidades desiguais se extinguem.
Ainda sob o fio condutor da primeira ótica levantada, o resultado do levantamento nos
ajuda a compreender o que fala Miranda (2008, p. 12):

Os receptores acabam por reproduzir padrões de interpretação da notícia. As-


sim, trata das comunidades interpretativas que surgem da adesão aos sistemas
de tradução midiática dos eventos. São padrões para decodificar a realidade,
erguidos sobre alicerces simbólicos moduláveis, num fenômeno que afeta a
interação social e parassocial.

Como na atualidade normalizamos o acesso a internet e ao conteúdo ali distribuídos por


grupos formais de comunicação, bem como, por pessoas desconectadas desse ambiente de
interesse mercadológicos, percebemos que as relações deixam em desvantagem diante dos
grupos organizados, cujos interesses influenciam na produção do conteúdo noticioso. Diante
disso, é salutar oferecer, dentro do currículo escolar, em especial na etapa que envolve o
ensino médio, instrumentos que os fortaleçam na leitura crítica de notícias. Nesse ponto é que
podemos, sob as duas óticas identificadas logo no primeiro parágrafo, ver que se imbricam.
Observando como as diretrizes éticas profissionais do jornalismo e da comunicação
podem contribuir na formação integral dos alunos que são os cidadãos que constroem o
futuro do país, ao levá-los a conhecer sobre o trabalho das mídias também pode levá-los a
buscar a construção de um universo informacional mais adequado.
Sendo os estudantes um público jovem, nota-se o quanto consomem avidamente novas
informações. E, se como explica a analista de discurso Maria do Rosário Gregolin (2000),
há no discurso e, portanto, na mídia, uma materialização do processo enunciativo que ar-
ticula língua e história, deve-se preparar as futuras gerações para a compreensão desse
poder que envolve a comunicação. Ainda mais a que ocorre em ambiente que é passível
de compartilhamento instantâneo. Para a autora, os consumidores de informação recebem
essa materialidade de ideologias, que são repassadas desde cedo aos falantes. A sociedade
absorve/repassa essa cultura e esses modos de vida, agora com viés tecnológico a encobrir
intencionalidades, propagandas e ditames de novas modas aliadas ao consumo de produtos
diversos (Gregolim, 2000).
Diante disso, é necessário articular para que o ideal ético jornalístico se imponha diante
de uma sociedade espetacularizada.Tal realidade se constituirá, quando socialmente elabo-
rarmos um imaginário crítico que auxilie o profissional, com instrumentos advindos de uma
cultura sedimentada em um apelo da sociedade, a refutar construções textuais irresponsáveis.
171
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das principais considerações finais é de que as notícias de violência são as


principais informações disseminadas pelos sites. Se o objetivo era o de identificar como
a criança e o adolescente estão sendo mostrados na mídia local, no interstício de coleta
de dados de sete meses demonstrou forte tendência a uma visão quase única de um dire-
cionamento negativo dada a natureza das matérias veiculadas. O estudo pode contribuir
para o aprimoramento do trabalho do jornalismo regional, levando ao conhecimento, crítica
e contribuição social com vistas à valorização da ética midiática, especialmente, a voltada
para as questões de infância, adolescência e juventude.
Alfabetização Midiática e Informacional é uma possibilidade na atuação docente e
poderia fazer parte do currículo escolar, de forma direta dentro de disciplinas específicas
ou trabalhadas de forma interdisciplinar. A conclusão é de que o tema necessita de mais
estudos futuros, de diferentes áreas, buscando olhares diversos para algo muito novo, como
é a proliferação de informações falsas nas mídias sociais em uma sociedade hiperconecta-
da. Uma verdadeira rede social deveria ser de apoio, dentro ou fora da internet, formando
grupos para defesa de direitos. Os temas refletem sobre a educação e currículos escolares,
uma vez que necessitam de formação constante para conhecimento e reflexão sobre o an-
tigo que se renova.
Fica evidenciado que a sociedade e a imprensa estão em atuação nos espaços midiá-
ticos e nos formatos de exposição na internet, no qual podem ser considerados como um
ambiente social de articulação de estilos de vida, recorte de realidades sociais complexas e
composição da memória coletiva da população. Precisam, dessa maneira, serem ambientes
saudáveis, seguros e que ofertem uma sadia qualidade de vida.
Diante da ainda nova necessidade que se impõe para uma Educação Midiática com-
preende-se que o estudo não teve a finalidade de abarcar todos os possíveis enquadramen-
tos que a realidade pede, portanto, é ainda um campo aberto frente à amplitude de fatos e
novidades que se apresentam cotidianamente.

172
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
REFERÊNCIAS
1. ARAÚJO, Ellis Regina; SOUZA, Elizete Cristina de. Obras jornalísticas: uma síntese. Brasília:
Vestcon, 2008.

2. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Manual de Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014.

3. BRASIL. Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros: aprovado em 04 ago. 2007, pelo Congres-
so Nacional dos Jornalistas Profissionais. Federação Nacional dos Jornalistas. Disponível em:
https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2014/06/04-codigo_de_etica_dos_jornalistas_brasileiros.
pdf. Acesso em: 07 Nov. 2020.

4. GARCIA-RUIZ, R. ; MATOS, A. ; BORGES, Gabriela. Media Literacy as a responsibility of


families and teachers. Journal Of Media Literacy, V. 63, N. 1 & 2, 2016, p. 82-91. Disponível
em: https://www.researchgate.net/publication/305442159. Acesso em: 12 Fev. 2021

5. GREGOLIN, Maria do Rosario V. Recitações de mitos: a história pela lente da mídia. In: Fili-
granas do discurso: as vozes da história. Araraquara: Unesp, 2000.

6. LYCEUM. O que é hiperconectividade e como lidar com esse desafio? São Paulo: Blog Ly-
ceum, maio 2020. Disponível em: https://blog.lyceum.com.br/hiperconectividade-2/. Acesso
em: 08 Nov. 2020.

7. MIRANDA, Danilo Santos de. Um olhar da psicologia sobre o fenômeno da mídia. In: Mininni,
Giuseppe. Psicologia Cultural da Mídia. São Paulo: A Girafa Editora, Edições SESC SP, 2008.

8. SILVA, Carlos Eduardo Lins da. Da pós-verdade ao risco da pós-imprensa – Morte e vida da
imprensa. Observatório de Imprensa, Campinas, Edição 954, agosto 2017. Disponível em:
http://www.observatoriodaimprensa.com.br/edicao-brasileira-da-columbia-journalism-review/
da-pos-verdade-ao-risco-da-pos-imprensa/. Acesso em: 07 Nov. 2020.

9. WILSON, Carolyn; ALTON, Grizzle; TUAZON, Ramon; AKYEMPONG, Kwame; CHEUNG,


Chi-Kim. Alfabetização midiática e informacional: currículo para formação de professo-
res. Brasília: UNESCO, UFTM, 2013. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/
pf0000220418. Acesso em: 07 Nov. 2020.

173
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
12
Currículo formal: uma abordagem nos
anos iniciais do Ensino Fundamental

Carla Aline de Araújo Nascimento


UERN

Marília Dantas da Silva


UERN

Udegardes Alves de Andrade


UERN

Gercina Dalva
UERN

10.37885/210203366
RESUMO

O presente artigo enfatiza o currículo formal e sua abordagem nos anos iniciais do ensino
fundamental da Escola Municipal Severina Leite de Menezes, município de Almino Afonso,
RN, além de sua inserção na realidade escolar. Discute a concepção de currículo e sua
abertura aos fatores sociais e culturais. Apresenta os níveis de currículo e sua incorpo-
ração pela escola, na busca por respostas diante das informações colhidas. Tem como
objetivo analisar a abordagem do currículo formal no âmbito escolar. Os instrumentos
utilizados na elaboração do artigo foram: pesquisa bibliográfica, qualitativa, descritiva e
de campo, usando-se como referência Berticelle (1999), Libâneo (2001), Lück (2006),
Marques (1995) e Veiga (1995), bem como a aplicação de questionário de opinião aos
profissionais da educação. O currículo formal dá as coordenadas para a maneira de
produzir a realidade no meio escolar. Ao conhecer este meio, pode-se determinar ma-
neiras de criar uma nova perspectiva, que melhore as necessidades dos envolvidos, em
busca de soluções para os problemas encontrados na educação. Acerca do currículo
formal, pode-se dizer que ele não é estático, pois comporta atos de criação e recriação,
de contestação e de transgressão, mostrando toda a dinâmica curricular, razão pela qual
assume grande relevância para a comunidade escolar e a sociedade em geral.

Palavras-chave: Currículo, Escola, Aluno.

175
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

A concepção que a sociedade faz do termo ‘currículo’ é a de um meio utilizado para


selecionar o que há melhor. A maioria das pessoas, em geral, costuma ligá-lo ao curriculum
vitae, que é utilizado pelas empresas, entre outras instituições, para selecionar seus empre-
gados. Isso ocorre devido à cultura vigente e à falta de informação. Talvez, se as escolas
divulgassem os seus currículos nas reuniões de pais e frisassem a importância que este
instrumento possui para a comunidade escolar e a sociedade em geral, o público se desse
conta de sua existência e presença em todos os níveis de escolaridade.
Este artigo discorre sobre o currículo formal no ensino fundamental I, fazendo uma
breve abordagem do conceito de currículo e de seus níveis, com o objetivo de analisar seu
processo no âmbito escolar, para assim esclarecer as dúvidas que pairam sobre esse assun-
to. Para tanto, foi necessário empreender pesquisa bibliográfica e de campo, na qual foram
entrevistados alguns profissionais da educação, com o intuito de saber sua visão a respeito
do currículo formal da escola em que atuam. Em vista disso, aplicou-se a eles um questio-
nário de opinião, visando-se abordar a realidade do currículo formal no ambiente escolar.

ORIGEM DO CURRÍCULO

Oriundo do latim currere (correr), durante os séculos XIV e XV, o currículo teve sua es-
crita para o português, o francês e o inglês, advindo das escolas religiosas. Entre a Revolução
Industrial e a Segunda Guerra, incorporou novos sentidos, chegando ao Brasil por volta de
1940. No Brasil, o currículo sofreu inicialmente a influência inglesa. A partir de 1960, deu-
-se início a discussões temáticas curriculares e, por influência das indústrias, criou-se uma
grade curricular fabril, em meio à qual as discussões ideológicas sucumbiram. Em 1980,
uma nova tendência curricular se estabeleceu para transformar o currículo estático em um
currículo multicultural, a fim de que pudesse contemplar as diversas camadas sociais que
formam a sociedade brasileira.

O CONCEITO DE CURRÍCULO

Numa sociedade moderna, que busca meios para resolver os problemas da educação,
muito embora se fale em implantar uma nova forma de conduzir as instituições escolares,
de maneira dinâmica e democrática, é certo que isso não acontecem na prática. As escolas
brasileiras ainda estão obrigadas a cumprir o que lhes é determinado pelos órgãos compe-
tentes, como o Ministério da Educação (MEC), através do currículo formal, no qual se esta-
belecem os meios e métodos para conduzir o ensino. Diante das orientações estabelecidas
176
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
neste nível de currículo, muitos gestores e professores se acomodam, acreditando que seu
trabalho é apenas cumprir os prazos e as diretrizes estabelecidos.

O que importa não é o ensino das disciplinas como se fossem pacotes bem
acabados e amarrados, mas cada período letivo, cada estágio do currículo,
entendido e encarado como unidade operacional básica em que uma turma
de alunos e uma equipe de professores atuam numa unidade de experiên-
cias próprias e de recorrências conceituais e temáticas a que concorram as
diversas disciplinas, ou melhor, as regionalidades do saber, não com base em
si mesmas, mas sim nas exigências daquele estágio e daquela determinada
situação de aprendizagem. (MARQUES, 1995, p. 153).

O currículo formal não é perfeito; portanto, frequentemente, acaba por ser objeto de
críticas. Mas será que somente ele causa problemas ao aprendizado do aluno ou falta algo
mais humano na prática educacional? Diante de tais indagações, pode-se dizer que, para
analisar o currículo formal, necessita-se saber primeiramente o que é currículo, os seus
níveis e a sua ligação com as esferas culturais e sociais.

Currículo é um lugar de representação simbólica, transgressão, jogo de poder


multicultural, lugar de escolhas, inclusões e exclusões, produto de uma lógica
explícita muitas vezes e, outras, resultado de uma “lógica clandestina”, que nem
sempre é a expressão da vontade de um sujeito, mas imposição do próprio
ato discursivo. (BERTICELLI, 1999 p. 160).

O currículo representa as ideias propostas pela sociedade no que diz respeito à forma-
ção do indivíduo almejado pela conjuntura social. O indivíduo deve desenvolver plenamente
suas habilidades cognitivas e físicas, a fim de se tornar apto a escolher o seu caminho
como ser social que decide e interage com o meio, sofrendo interferências impostas pelo
poder dominante, que muitas vezes o excluí, ao invés de inseri-lo como ser participante na
construção do saber.

CURRÍCULO NO CONTEXTO SOCIOCULTURAL

Ao longo dos anos, o currículo passou a se ligar ao contexto social e cultural. Antes,
era tido como fechado a estas questões, sendo amplamente ligado ao ensino tradicional ou
inflexível, criado para mecanizar o ensino e amordaçar o pensamento crítico das pessoas, por
meio do qual a escola excluía mais do que incluía. Mas, diante das mutações da sociedade,
o currículo teve de se adaptar a um novo cenário, no qual se viu diante da necessidade de
incorporar aspectos tanto do âmbito social quanto do cultural, além de considerar as teorias
existentes e suas evoluções. Portanto, já não se pode pensar em educar sem considerar a
diversidade e a pluralidade social e cultural.

177
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
O currículo tem sempre uma dimensão externa, ou seja, ele segue uma sequên-
cia, que começa sempre na esfera política e administrativa do sistema escolar,
passa pelas crenças, significados, valores e comportamentos existentes na
cultura, é trabalhado pelos professores, até chegar aos alunos. Isso significa
que ele está impregnado de influências sociais, econômicas, políticas, que
precisam ser detectadas pelos professores, inclusive para que compreendam
que essas influências limitam o poder de intervenção da escola. (LIBÂNIO,
2001, p. 100).

OS NÍVEIS DE CURRÍCULO

As questões de âmbito social interferem diretamente nas questões escolares; portanto,


o currículo escolar sofre influências, assim como o aprendizado dos alunos, já que aprender
depende de vários fatores, e não apenas das disciplinas estabelecidas pelo currículo formal.
Este possui uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que garante a unidade nacional
do ensino, para que todos os alunos tenham acesso aos mesmos conhecimentos básicos e
necessários para serem cidadãos. A BNCC, determinada pela União, é obrigatória a todos
os currículos nacionais. A outra base corresponde à parte diversificada do currículo, também
obrigatória, que é formada pelos conteúdos complementares, baseados na realidade regional
e local. Estes conteúdos são escolhidos pelos sistemas ou rede de ensino de cada escola,
que possui autonomia para incluir os temas que achar necessários. O currículo formal é
ligado ao currículo real e ao currículo oculto, de acordo com a classificação dos níveis de
currículo proposta por Libânio (2001, p. 99-100):

Currículo formal – refere-se ao currículo estabelecido pelos sistemas de en-


sino ou instituição educacional. É o currículo legal expresso em diretrizes
curriculares, objetivos e conteúdos das áreas ou disciplinas de estudo. O
currículo formal ou oficial é aquele conjunto de diretrizes normativas prescritas
institucionalmente, como, por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais
divulgados pelo Ministério da Educação, as propostas curriculares dos Estados
e Municípios. Currículo Real – é o currículo que, de fato, acontece na sala
de aula, em decorrência de um projeto pedagógico e dos planos de ensino.
É a execução de um plano, é a efetivação do que foi planejado, mesmo que
nesse caminho do planejar e do executar aconteçam mudanças, intervenções
da própria experiência dos professores, decorrentes de seus valores, crenças,
significados. É o currículo que sai da prática dos professores, da percepção e
do uso que os professores fazem do currículo formal, assim como o que fica
na percepção dos alunos. [...] frequentemente, o que é realmente aprendido,
compreendido e retido pelos alunos não corresponde ao que os professores
ensinam ou creem estar ensinando. Currículo Oculto – essa denominação
refere-se àquelas influências que afetam a aprendizagem dos alunos e o tra-
balho dos professores, provenientes da experiência cultural, dos valores e
significados trazidos pelas pessoas de seu meio social e vivenciados na própria
escola, ou seja, das práticas e experiências compartilhadas na escola e na sala
de aula. O currículo oculto representa tudo o que os alunos aprendem pela
convivência espontânea em meio às várias práticas, atitudes, comportamentos,
gestos, percepções, que vigoram no meio social e escolar. O currículo está
178
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
oculto porque ele não é prescrito, não aparece no planejamento, embora se
constitua como importante fator de aprendizagem.

Os três níveis de currículo existentes podem ser compreendidos mediante a observação,


pois, na realidade da escola, prestando-se atenção ao seu dia a dia, contata-se a ocorrência
desses níveis de currículo com facilidade. O currículo formal é ditado pelas diretrizes estabe-
lecidas, pelas disciplinas, pelos métodos e pelos meios utilizados por professores. Em meio
à aplicação destas prescrições, percebe-se a ocorrência do currículo real: os professores
seguem o roteiro estabelecido e objetivam cumpri-lo; é de fato o que acontece em sala de
aula, muito embora ocorram imprevistos e nem sempre o que se planeja acontece ao pé da
letra. Além do mais, o que é ensinado pode não ser aprendido pelos alunos.
Já o currículo oculto acontece sem que se perceba. Ele é proveniente da experiência
cultural, é tudo que os alunos aprendem fora da escola, mas acaba interferindo na apren-
dizagem dos alunos e no trabalho dos professores. Um exemplo de sua ocorrência são os
atrasos rotineiros por parte de certos de alunos e professores, que geralmente entram em
classe atrasados ou saem da classe antes do horário. Pode parecer algo sem importância,
mas é prejudicial ao desenvolvimento da aprendizagem, haja vista o pouco tempo de aula
disponibilizado.

UM OLHAR DA REALIDADE ESCOLAR

O currículo formal serve como uma espécie de roteiro ou manual para os professores
se orientarem diante da pratica pedagógica. Ele estabelece metas a serem cumpridas tendo
em vista um objetivo final. Mas como acontece realmente na prática educacional? O que os
professores pensam a respeito deste currículo imposto em âmbito nacional, que nem sem-
pre leva em consideração as particularidades de cada região? Para entender como se dá o
processo de implantação das diretrizes estabelecidas pelo currículo formal, foi necessário
colher informações com quem está diretamente envolvido nesse processo. Para contrastar
a teoria com a prática, foram entrevistadas duas pessoas envolvidas diretamente no desen-
volvimento da educação: um encarregado da gestão escolar e uma professora.
Diante das perguntas, o gestor respondeu:

O currículo formal é a base da educação nacional e norteia as práticas edu-


cativas efetuadas pelos docentes. Este currículo supre todas as necessidades
de aprendizagem dos alunos. Desde que seja executado de forma correta,
alcançará os objetivos desejados. Quanto a mudar algo no currículo formal,
penso que não é necessário; o mais importante é colocar em prática seus
conteúdos.

179
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
O roteiro sugerido pelo currículo formal é seguido pelo gestor, porém ele acredita que
há a necessidade de fazer pequenas modificações, para trabalhar melhor o contexto so-
cial dos alunos. As disciplinas estabelecidas, em sua opinião, são realmente necessárias;
o gestor não acrescentaria nenhuma matéria, mas trabalharia os temas transversais com
mais intensidade.
Já a docente respondeu: “Entendo o currículo formal como sendo o conjunto de dire-
trizes organizacionais com um objeto específico, ou seja, é a organização sistemática de
competências com um determinado fim”. Para ela, o currículo formal supre a real necessi-
dade de aprendizagem dos alunos, com destaque para sua flexibilidade. Quanto a mudar
algo no currículo formal, a professora afirmou que não há necessidade de mudanças, já
que o currículo foi elaborado de forma a atender e suprir as necessidades educacionais
dos alunos, em que pese a flexibilidade que lhe é característica. A professora entrevistada
segue rigorosamente o roteiro estabelecido e lembra que se trata da base referencial para
o ensino. Não acrescentaria nenhuma disciplina, pois as existentes, em sua opinião, con-
templam o essencial.
Os entrevistados atuam na Escola Municipal Severina Leite de Menezes, de Almino
Afonso, RN. Observam-se semelhanças nas respostas destes profissionais: ambos consi-
deram o currículo formal como satisfatório e acreditam que possui o necessário para que
ocorra uma educação de qualidade. Além disso, afirmam que as disciplinas estabelecidas são
suficientes e podem ser bem trabalhadas, portanto não veem a necessidade de incluir mais
disciplinas no currículo. Quando perguntados sobre o que mudariam no currículo formal, o
gestor ressaltou a necessidade de colocar em prática os conteúdos estabelecidos, e a docente
falou da flexibilidade existente no currículo, frisando o fato de que ele pode ser adequado
ao que se pretende praticar. O gestor afirmou que faria pequenas modificações no roteiro
estabelecido, para adequá-lo à realidade social dos alunos, enquanto a docente ressaltou que
segue fielmente o roteiro, pois é a sua base referencial e não vê necessidade em mudá-la.
Os profissionais entrevistados dão a entender que não é necessariamente o currículo
formal seguido pela escola o que traz problemas ao aprendizado dos alunos, mas sim o
desenvolvimento das práticas e a aplicação dos conteúdos, que talvez necessitem de mais
atenção. Acreditam que a parte diversificada deveria ser mais utilizada, pois permite que o
docente inove as suas aulas, relacionando-as com o contexto local – mas sem perder de
vista o programa das disciplinas, claro –, olhando atentamente para o que elas realmente
abordam e assim realizando várias atividades diversificadas e de interação com os alunos.

180
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
CONSIDERAÇÕES

Durante a realização desta pesquisa, percebeu-se que o currículo formal dá as coorde-


nadas para a maneira de produzir a realidade do meio escolar. Ao se conhecer este meio,
pode-se determinar maneiras de criar uma nova perspectiva, que melhore as necessidades
dos envolvidos, em busca de soluções para os problemas encontrados na educação. O cur-
rículo formal não pode ser visto como uma listagem de objetivos a serem alcançados, pois
ele está relacionado a todas as questões que envolvem as instituições de ensino. Ao se
analisá-lo, pode-se constatar que a escola não é só um ambiente libertador mas também
um cenário de socialização, de mudanças e, sendo um ambiente social e dinâmico, possui
um duplo currículo: o explícito, chamado currículo formal, com suas diretrizes estabelecidas
em âmbito nacional, que se entrelaça com o currículo oculto, informal e caracterizado pelo
ambiente diversificado. Pode-se dizer que o currículo formal não é estático, pois comporta
atos de criação e recriação, de contestação e de transgressão, mostrando toda a dinâmica
curricular, por isso se reveste de grande relevância para a comunidade escolar e a so-
ciedade em geral.

REFERÊNCIAS
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(org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: DP&A, 1999.

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trução possível. Campinas, SP: Papirus, 1995. (Coleção Magistério Formação e Trabalho
Pedagógico).

181
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
13
Uso didático do experimento do
monocórdio de Pitágoras

Oscar João Abdounur

10.37885/210303596
RESUMO

Realizada por volta o século 6 a.C. , a experiência de Pitágoras com o monocórdio con-
sistiu em fixar uma corda em dois pontos, variando os sons produzidos por meio de um
dispositivo móvel para pressioná-la em várias posições. Para os pitagóricos, as razões
matemáticas subjacentes aos intervalos musicais de oitava, quinta e quarta – conso-
nâncias perfeitas – eram respectivamente 1:2, 2:3 e 3:4 teriam sido reveladas neste
experimento. O experimento de Pitágoras com o monocórdio lança questões não apenas
na música, mas em arquitetura e em vários outros contextos, tendo como base razões
matemáticas. Ele ainda significa que às composições de intervalos musicais subjazem
composições de razões matemáticas. Este texto pretende explorar o potencial didático de
tal experimento sob a perspectiva cultural da Matemática, particularmente concernente
ao papel da música teórica no desenvolvimento de estruturas vinculadas ao conceito de
razão matemática. Este artigo propõe ainda oficinas com problemas envolvendo mono-
córdios que possibilitam caminhos matemáticos e musicais de solução, contexto este que
resgatando o sentido histórico original dos conceitos de razão e proporção, possibilita
uma abordagem conceitual histórica heurística de tais conceitos.

Palavras- chave: Monocórdio, Composição de Razões, Matemática/Música, Razões,


Experimento de Pitágoras.

183
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Neste trabalho, será considerado o potencial educacional de um operador matemático


semanticamente e estruturalmente próximo a procedimentos presentes na música teórica
ao longo da história. Trata-se da ideia de composição de razões, que a rigor não possui
historicamente o status de um conceito matemático, mas ocorre tacitamente em tratados de
matemática e de música teórica ao longo da história desde Os Elementos de Euclides, em
que as evidências apontam ser o primeiro momento que se tem registro desta ideia.
A ideia de composição de razões apresenta-se como uma operação peculiar presente
na estrutura dos conceitos matemáticos de razão e proporção desde o período clássico. Tal
operação possui semelhança estrutural com a operação multiplicação, transformando-se
ao longo de sua história de forma irregular até aproximar-se deste último conceito, o que
é representativo do papel do contexto teórico-musical na aritmetização de razões. O caso
considerado possui ainda potencial didático a serviço de evidenciar diferenças entre identi-
dade e proporção, na medida em que a abordagem matemático-musical neste caso distancia
semanticamente tais conceitos, tornando suas demarcações mais nítidas.
O contexto matemático-musical permite elucidar diferenças semânticas existentes entre
conceitos de composição e de multiplicação, assim como entre conceitos de proporção e
de identidade, que praticamente desaparecem quando consideradas sob uma perspectiva
puramente aritmética. Para tal, um pressuposto necessário é a correspondência entre razão
matemática e intervalo musical, cujo fundamento histórico é determinante para a compreen-
são da abordagem aqui considerada.
A prática grega clássica de lidar com razões, realizada predominantemente até o pe-
ríodo moderno, inseriu-se em uma importante tradição no tratamento de razões, passível de
estimular o estabelecimento de analogias estruturais subjacentes a tais conceitos perten-
centes a princípio, sob uma perspectiva de uma classificação atual da ciência, a diferentes
campos do conhecimento. Tal abordagem promove uma compreensão de estruturas segundo
as quais conceitos matemáticos foram tratados e, reciprocamente, uma compreensão da
maneira aparentemente sem sentido -- se desconsiderada tal abordagem -- em que tais
conceitos matemáticos foram manipulados por um longo período de tempo antes de atingir
a estrutura atual.
A consciência de tais práticas possibilita a aquisição de uma atitude flexível em rela-
ção às estruturas existentes anteriormente ao enfrentar problemas em geral, bem como de
uma ferramenta a serviço da resolução de problemas e de modo geral da heurística ma-
temática. A abordagem considerada também auxilia na revelação, por meio de conceitos
simples tais como razões matemáticas e proporções, processos epistemológicos envolvidos
na construção de novas teorias matemáticas, como, por exemplo, o de tomar emprestadas
184
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
estruturas de teorias análogas pré-existentes para então se desenvolverem de maneira au-
tônoma em seu novo contexto, adaptando-se aos problemas práticos os quais essas novas
teorias passam a enfrentar ao longo do seu desenvolvimento.
Para melhor compreender tais reflexões, considera-se primeiramente a introdução
de alguns aspectos históricos dos conceitos de razão e de proporção matemáticas, bem
como do operador que chamaremos de composição de razões matemáticas em contextos
matemático-musicais, assim como de estruturas correspondentes em que a composição faz
sentido, para então considerar exemplos da prática de composição no monocórdio, assim
como aspectos didático-epistemológicos subjacentes a tal prática.

METODOLOGIA

Matemática e Música possuem vínculos desde a Antiguidade. No conhecido experi-


mento de Pitágoras com o monocórdio, que estabelece correspondência entre intervalos
musicais e razões matemáticas de uma corda, relacionou-se, sob uma perspectiva aritmé-
tica, consonâncias musicais a razões matemáticas simples, de modo que aos intervalos
musicais de oitava, de quinta e de quarta, subjaziam razões matemáticas 1:2, 2:3 e 3:4,
respectivamente. A descoberta de Pitágoras com o experimento do monocórdio lança luz
sobre inúmeras discussões no âmbito da música teórica tendo por fundamento os conceitos
matemáticos de razão e de proporção.
É plausível que, por razões culturais, matemáticos gregos juntamente com seus con-
temporâneos e predecessores, tenham concebido razões matemática como generalização de
intervalos musicais e de maneira mais ampla, teorias das razões e proporções matemáticas
como generalização da música, na medida em que propriedades de cordas e comparações
entre tons, assim como cálculos relacionados a tais magnitudes através dos conceitos de
razão e proporção, consistiam em uma importante parte da matemática desde os pitagóricos
até Euclides (Abdounur, 2001, p. 8; Grattan-Guinness, 1996, p. 367).
O estabelecimento de tal vínculo levanta ainda questões referentes a teorias matemá-
ticas subjacentes às manipulações com razões matemáticas desde a Antiguidade até o final
da Idade Média, tanto em contextos matemáticos como em contextos teórico-musicais. A in-
fluência tanto de problemas teóricos quanto práticos confrontados pela música ao longo de
sua história possibilita à historiografia da matemática, bem como à educação matemática,
uma consciência epistemológica mais ampla do desenvolvimento dos conceitos de razão
e de proporção matemática.
Tal consciência dá subsídios, por exemplo, à criação de contextos que esclareçam
diferenças entre conceitos relacionados e/ou resultantes de razões e proporções, tais como
as que existem entre composição e multiplicação, identidade e proporção dentre outros
185
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
pares, diferenças estas mais difíceis à percepção, quando tais conceitos são abordados,
por exemplo, apenas em contextos aritméticos.
Há diversos temas acerca da relação entre matemática e música, e em particular,
entre razões matemáticas e intervalos musicais, passíveis de ser explorados em educação
matemática. Aqui se concentra nesta característica intrigante da estrutura originalmente as-
sociada a razões e proporções matemáticas, a saber, o conceito de composição de razão,
embora este nunca tenha tido o status de um termo técnico em matemática (Sylla, 1984, p.
19). Tal operador manifestou-se tacitamente em contextos envolvendo razões e proporções
matemáticas desde o período clássico até o século XVII, aproximando-se finalmente do
conceito aritmético de multiplicação.
A mudança estrutural ocorre de teorias envolvendo concepções de operações seman-
ticamente vinculadas a intervalos musicais contíguos para teorias admitindo a composição
de razões de forma irrestrita - multiplicação - com um caráter essencialmente aritmético,
que inclui, por exemplo, a aproximação semântica entre razão e número. Uma questão
desafiadora neste contexto seria como abordar, do ponto de vista didático, tal mudança
epistemológica no desenvolvimento histórico do conceito de razão matemática, de tal forma
a criar-se um domínio em que tal diferença se manifeste mais claramente do que em domí-
nios puramente aritméticos.
Quando se observa que tal estrutura transitória, com a qual razões matemáticas foram
parcial e irreversivelmente munidas durante um longo período, deriva de contextos musicais
e que a composição não faz sentido fora de tais contextos, é razoável considerar a música
como cenário para abordar tais diferenças, uma vez que em tal cenário se destaca a es-
trutura original vinculada ao conceito de razão. Antes de introduzir aspectos educacionais
de tal tema, consideram-se aqui alguns antecedentes históricos da composição de razões.
Indicadores de diferentes teorias ligadas ao conceito de razão são encontrados asso-
ciados a questões como a restrição de Euclides na operação de composição com razões
presentes nas definições 9 e 10 do Livro V, bem como na proposição 23 do Livro VI (Heath,
1956, p.248). Tais operações consistiam na composição de razões do tipo a: b com b: c
para produzir a: c, o que permite a repetição recursiva deste processo com c:d e assim por
diante (Abdounur, 2001, p.5). Com fortes afinidades musicais, esta operação exigia, em geral,
que, dada uma sequência de razões matemáticas a serem compostas, o segundo termo de
uma razão fosse igual ao primeiro termo da razão subsequente. Matematicamente falando,
não há razão para operar-se desta maneira e provavelmente isto não ocorreria desta forma
sem uma remissão ao seu significado musical, a saber, a composição (agrupamento) de
intervalos musicais contíguos.

186
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Por exemplo, (2:3)(3:4)::(1:2) é estruturalmente equivalente à composição musical do
intervalo musical de quinta com o de quarta para gerar um intervalo musical de oitava. Sob
tal perspectiva, o experimento de Pitágoras parece fornecer a princípio dois resultados im-
portantes, cujas implicações didático-epistemológicas tentaremos apontar em seguida. O pri-
meiro resultado e mais geral é que razões matemáticas subjazem a intervalos musicais.
Além disso, tal experimento também significa, mais especificamente, que a composição de
razões matemáticas explica a composição de intervalos musicais contíguos, e talvez, devido
a este vínculo, a composição de razões matemáticas em contexto euclidiano é tratada desta
maneira. Tal diferença possui potencial para despertar interesse merecendo ainda atenção
em contextos educacionais.
A partir de tais considerações, propõem-se explorar em contextos didático-pedagógicos
estes dois entendimentos diferentes e complementares do conceito de razão, um geomé-
trico-musical em que razão consiste em uma comparação entre grandezas homogêneas
(dois comprimentos, duas notas, etc) e não possui proximidade semântica com número e
outro, em que razão se identifica semanticamente com o conceito de número, passível de
ser multiplicado da mesma forma com que os números são multiplicados. Para tornar clara
tal mudança epistemológica presente no desenvolvimento histórico do conceito de razão,
faz-se uso de contextos musicais.

DESENVOLVIMENTO

Em seguida, são descritos alguns problemas envolvendo razões e proporções mate-


máticas no monocórdio, a partir dos quais se estabelece reflexões acerca das implicações
educacionais de atividades envolvendo matemática e música. De modo geral, ao reproduzir
uma situação histórica, tais atividades reproduzem direta ou indiretamente estruturas pre-
sentes simultaneamente em matemática e em música, criando circunstâncias que propiciem
experiências de similaridade entre esquemas por trás das situações originais e reconstruídas.
As situações apresentadas a seguir consistem basicamente de compor intervalos/ra-
zões por meio do monocórdio, onde a composição no sentido euclidiano não se coloca na
mesma categoria da multiplicação, embora o primeiro apresente semelhanças estruturais
com o segundo. Tanto diferenças quanto semelhanças entre composição e multiplicação
em contextos musical e aritmético, respectivamente, tornam-se evidentes e melhor com-
preendidas com auxílio de uma reconstrução enriquecida do experimento do monocórdio.
Tal reconstrução pode ocasionar o interesse pela matemática por meio da música
e vice-versa, capacidade esta que não apenas estimula a relação entre duas áreas e as
habilidades relacionadas, mas também exige habilidades matemáticas em contextos mu-
sicais e habilidades musicais em contextos matemáticos por meio de um arranjo simples
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
envolvendo conceitos elementares. Estas atividades exigem inicialmente, no caso de alunos
não familiarizados com música, a experiência com a percepção musical especialmente de
intervalos tais como oitava, quinta e quarta – as consonâncias perfeitas --, pressuposto para
as atividades com o monocórdio.
Após tal familiarização, é importante a reprodução do experimento de Pitágoras, identi-
ficando tais consonâncias perfeitas no monocórdio, cujas razões matemáticas corresponden-
tes são 1: 2, 2: 3 e 3: 4. Envolvendo conceitos matemáticos e musicais, pode-se considerar
alguns problemas no monocórdio, tais como:

– Seja L o comprimento que produz uma determinada nota no monocórdio. Qual é o


comprimento de corda necessário para produzir uma altura, que resulta da eleva-
ção do tom original por uma oitava e uma quinta, seguindo-se da descida de dois
intervalos de quarta? Ouça o tom resultante no monocordado e compare com o tom
obtido no piano. Comente.
– Seja do a nota correspondente ao comprimento L. Qual é a nota obtida pelo compri-
mento 32L/27? Indique, em termos de superposição de quartas, quintas e oitavas,
os sucessivos passos para obter esta nota. Ao subir uma quarta a partir de uma
nota dada, quais são a nota e o comprimento obtidos? Ouça a nota resultante no
monocórdio comparando-a com a nota obtida no piano.

Tais problemas em particular, talvez por exigirem simultaneamente aptidões musicais e


matemáticas, podem despertar a curiosidade de estudantes que, a princípio, se interessem
exclusivamente por matemática ou por música. Dependendo do potencial de cada aluno,
pode-se resolver esse tipo de problema encontrando o intervalo musical e verificando a
composição de razões que o produz ou encontrando a combinação de razões matemáticas
que, quando combinadas, fornecem tal intervalo, verificando-o em seguida.
Estes problemas oferecem ainda a oportunidade não apenas de vivenciar, talvez in-
conscientemente, a composição de razões matemáticas, mas também de simular operações
com razões em contextos musicais gregos e medievais, tendo como elementos operacionais
básicos as consonâncias perfeitas, cujas razões discretas subjacentes 1: 2, 2: 3 e 3: 4 não
possuem relação categórica com números, mas são meros instrumentos de comparação.
Para ilustrar esses pontos, comentam-se questões relacionadas à solução desses
problemas. Limita-se ainda a discussão a algumas abordagens do primeiro problema, bem
como questões levantadas como consequência. Neste caso, as soluções passaram basi-
camente de uma abordagem geométrica para uma aritmética.
Na abordagem de problemas desta natureza, familiariza-se o aluno inicialmente, com
intervalos e composição de intervalos musicais/razões matemáticas no monocórdio. Tal
188
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
experiência permite compor intervalos musicais contíguos/razões matemáticas, em que a
segunda magnitude da primeira razão matemática coincide com a primeira magnitude da
segunda razão - razões do tipo a:b com b:c - que é o que se observa no monocórdio durante
a familiarização. Pode-se neste caso trabalhar com grupos de diferentes tendências, a fim
de não somente obter diferentes tipos de interpretações dos problemas, mas também de
avaliar o potencial diversificado de cada grupo, uma vez que os problemas tratados exigem
pelo menos, habilidades matemáticas e musicais.
Pode-se solicitar inicialmente, que se resolva o problema utilizando uma régua com
apenas quatro divisões e um compasso. Depois de visualizar como as composições ocorrem
no monocórdio, há basicamente duas tendências na resolução do problema: uma tendên-
cia é fazer o cálculo transferindo sempre as razões matemáticas para a corda e dividindo
a corda em tantas partes quanto o denominador da razão em questão, levando-se depois
o número de partes presentes no numerador - no caso de 2: 3, duas partes da corda pre-
viamente dividida em 3 partes - que corresponde à composição no sentido clássico. Outra
tendência possível é encontrar a nota resultante - no caso a nota lá - tentando verificar tal
resultado ao compor as razões matemáticas 1: 2, 2: 3 e decompondo as razões 3: 4 duas
vezes, como no primeiro caso.
Em geral, pode-se ainda encontrar por percepção musical a parte da corda que, quando
tocada, resulta na nota lá sem saber precisamente a que razão matemática ou nota tal ponto
ou nota corresponda. Então, pode-se resolver o procedimento como na obtenção das con-
sonâncias, compondo-se adequadamente as razões correspondentes para obter a nota em
questão, utilizando-se no caso de régua e compasso para construir triângulos semelhantes,
a fim de dividir um segmento em 2, 3 e 4 partes, o que resultaria em diferentes soluções.
Aqui caberiam, por exemplo, perguntas relacionadas a alterações no resultado ao mudar
a ordem do procedimento, o que não é difícil descobrir do ponto de vista musical, uma vez
que a composição não é senão a „adição“ e a „subtração“ de intervalos musicais.
Tal interpretação torna a comutatividade dessa operação intuitiva, assim como mostra
também, até certo ponto, como o contexto musical pode elucidar o significado de tal pro-
priedade na estrutura da razão. Estes problemas também fornecem um contexto adequado
para refletir sobre como se podem compor intervalos musicais, quando se sabe apenas os
comprimentos das cordas, cuja razão fornece cada intervalo, ainda sem régua métrica. Neste
caso, cabe-se tentar adaptar por tentativa e erro o primeiro termo da segunda razão ao se-
gundo termo do primeiro, tomando razões equivalentes ao segundo termo expressas como
múltiplos de suas duas grandezas originais. Uma solução musical também caberia aqui, por
exemplo, tentando ouvir os intervalos definidos por cada par de cordas cantando suas com-
posições e, às vezes, mantendo o resultado parcial em um teclado para manter a afinação.
189
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
É possível neste caso, confirmar o resultado musicalmente, às vezes, passo a passo,
outras vezes no final da operação, com base na experiência musical inicial com intervalos e
consonâncias. Pode-se fazer isso quase automaticamente, verificando subsequentemente
o comprimento da corda que corresponde à altura descoberta. Para realizar tal operação, é
sempre possível encontrar a quarta proporção „musical“, na medida em que em cada passo
tem-se uma razão de referência e o primeiro termo de uma segunda razão que fornece a
nota mais grave sobre a qual o intervalo de referência deve ser transladado.
Tal situação também fornece um contexto adequado para questionar como se pode
compor intervalos musicais, quando se sabe apenas os comprimentos das cordas cuja razão
fornece cada intervalo. Novamente sem régua métrica. Aqui também caberiam soluções
mistas para encontrar por meio da audição a razão provável, a partir da qual se pode inferir
acerca do fator pelo qual é necessário multiplicar ambos os fatores da segunda razão. Em to-
dos os casos, pode-se fazer uso de um par proporcional de cordas, que não são iguais, mas
que possuem alguma propriedade que as torna similares de alguma forma ao primeiro par.
Esta percepção de similaridade realizável pela audição é um ponto que eventualmente
pode evidenciar a diferenciação entre proporcionalidade e igualdade, uma diferença que
desaparece quando se enfrenta o problema com uma abordagem puramente aritmética
fazendo uso, por exemplo, de uma régua métrica. A vantagem da abordagem musical em
comparação com a aritmética consiste no fato de que a primeira fornece a intuição, basea-
da em uma habilidade perceptiva, de que ambos os pares de magnitudes não são iguais,
mas que possuem um atributo comum, que é musicalmente o intervalo definido por eles,
percepções estas que desaparecem em uma abordagem puramente aritmética.
O contexto mencionado possibilita ainda comentários que evidenciam a sentido do
conceito de razão no sentido clássico, tais como o fato de que tais intervalos não são iguais,
mas de que um é como se fosse o outro, linguagem condizente com aquela presente nos
Elementos de Euclides. A racionalização de tal ideia pode ser refinada, quando não apenas
as versões harmônicas, mas também melódicas de uma mesma razão são fornecidas, na
medida em que a consciência logarítmica de intervalo musical pode ser traduzida por meio
do conceito de proporção entre razões no fato de que as notas caminham uma mesma dis-
tância, o que também endossa o conceito de razão no sentido euclidiano diferenciando-o
daquele de fração.
Outra questão decorrente consistiria em como proceder para compor a:b com c:d,
quando não há inteiro m tal que mc = a. Quando se lida apenas com grandezas geométri-
cas, tal questão não ocorre, já que se pode sempre adaptar diretamente uma magnitude a
outra, mas isso não ocorreria com números inteiros a serem adaptados um ao outro fazendo
uso de múltiplos inteiros. Neste caso, deve-se multiplicar o numerador e o denominador de
190
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
ambas as razões, resultando como fatores c e b, respectivamente, que ao fazer a composi-
ção original conforma ao sentido clássico pressuposto para a composição. Baseando-se, até
certo ponto, em tentativa e erro feito antes com grandezas geométricas, tenta-se agora fazer
algo análogo com o uso do Múltiplo Mínimo Comum entre b e c. Neste caso, a composição
das razões pode ser realizada com intervalos, isto é, a partir de um intervalo determinado
com uma nota mais grave, pode-se construir o intervalo correspondente equivalente - razão
proporcional – pelo ouvido e sentindo o mesmo ‚crescimento‘ de intervalo. Os comentários e
questões mencionados acima sobre a solução do primeiro problema refletem parcialmente
como se pode fornecer um ambiente adequado para vivenciar o sentido geométrico-musical
de razões, introduzindo essa abordagem antes de recorrer à régua métrica.
Tais problemas podem ser repetidos permitindo o uso da regra métrica e gradualmente
razões matemáticas e composições de razões equiparam-se a números decimais e multi-
plicação de números decimais respectivamente, diminuindo assim a ênfase na diferencia-
ção entre identidade e proporcionalidade. Assim, possíveis restrições aos problemas, por
exemplo, nos instrumentos fornecidos para suas soluções -- compasso, régua não métrica,
régua métrica, instrumentos -- tornam-se mais interessantes, na medida em que induzem a
reproduzir a maneira com que distintas tradições lidaram com razões ao longo da história.
Estas restrições proporcionam significados diferentes à razão e proporção, podendo-se
levar a operar por vezes com a composição e outras vezes com multiplicação. Tal arranjo
enriquecido prova ser útil não apenas para ilustrar a importância da razão como um meio
de comparação, mas também e mais importante para fornecer um contexto para praticar
a diferenciação entre composição e multiplicação, bem como entre proporcionalmente e
identidade dentro de uma situação prática significativa.
Além da diferença entre composição e multiplicação, há outras diferenças no contexto
da aritmetização de razões, que se tornam transparentes pelo uso do arranjo mencionado
anteriormente, como aquela entre identidade e proporção. Em Euclides, a ideia de igual-
dade de proporções não é natural quanto à dos números ou de grandezas. Tal maneira de
estabelecer relações entre razões ganha maior significado quando se considera, que no
monocórdio, por exemplo, do-sol e la-mi são os mesmos intervalos - neste caso, de quinta -
mas que eles não são iguais, na medida em que este último é uma sexta acima do primeiro,
ou até mesmo, que do - sol ‚é como‘ la - mi. Neste caso, a identidade pode ser abordada
na dinâmica de ensino/aprendizagem, enfatizando a distinção entre identidade e proporção
em contextos matemáticos/musicais, onde tais diferenças se tornam mais claras quando
visíveis e „audíveis“.
Os problemas e o contexto mencionado também encorajam a percepção de tal dife-
rença, na medida em que se pode ouvir os intervalos fornecidos por razões como 9:12 e
191
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
12:16 - ambos são intervalos de quarta, isto é, os mesmos intervalos, mas suas respectivas
razões não são iguais - que são proporcionais, mas que não são idênticos. Isso elucida, pelo
uso da matemática e da música, as diferenças e semelhanças entre os dois conceitos, o que
aborda o entendimento das identificações de razão e fração e de proporção e igualdade. Isto
abre ainda outras possibilidades para a exploração de tais conceitos em ambos os contextos.
Por exemplo, pode-se encontrar a quarta proporcional e deduzir qual é a nota associada
ou reciprocamente, dado um intervalo, pode-se descobrir a nota que produzirá o mesmo
intervalo dado uma determinado nota mais grave: ambas as situações lidam com magnitu-
des proporcionais em matemática e contextos musicais simultaneamente. A consciência do
procedimento epistemológico subjacente a essa dinâmica não é um pressuposto ou um fim,
o que é realmente importante é que se vivencie tal situação e, assim, se estabeleça uma
referência com a qual se possa vincular a compreensão de outras situações envolvendo tais
conceitos. Da mesma forma, a experiência permitirá desapegar-se de conceitos associados
em princípio a áreas fixas.
O contexto de ensino/aprendizagem mencionado acima, bem como a longa história
de razões e proporções mostra que, dentro do amplo campo semântico associado a tais
conceitos, o conceito de razão teve um papel importante como veículo para se comparar
diferentes contextos por meio de proporções, isto é, analogias. Neste sentido, a proposição
de que 3:2 corresponde a um intervalo de quinta, bem como a de que os intervalos de quartas
são proporcionais, significam que esses dois conceitos pertencentes a campos matemáticos
e/ou musicais podem ser comparados entre si por meios da razão de números e intervalo
entre notas por meio de proporções. Nesse sentido, é possível vivenciar que a proposição
geométrica/musical A: B :: C: D é semanticamente distinta, mas estruturalmente similar à
proposição aritmética A/B = C/D, assim como os casos correspondentes em que as razões
não são proporcionais e frações não são iguais.
Reciprocamente, fazendo uso do monocórdio, razões e proporções podem ser vistas
como instrumentos para avaliar o grau de similaridade entre diferentes contextos. Tal dispo-
sitivo também possibilita a compreensão da distinção categórica entre razão e proporção - às
vezes mal interpretada -, na medida em que a razão se torna claramente vista como uma
comparação envolvendo duas magnitudes do mesmo tipo, enquanto que a proporção ocorre
nas situações mencionadas como uma proposição lógica, a qual se pode atribuir um valor ou
como uma ferramenta para tornar uma proposição verdadeira. No caso, tal diferença pode ser
vivenciada por meio da questão acerca da plausibilidade da igualdade entre dois intervalos
ou da proporção entre duas razões. As diferenças entre estes dois conceitos matemáticos
tornam-se melhor demarcadas, quando entendidas no âmbito geométrico-musical, do que
quando vistas em contextos puramente aritméticos.
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
RESULTADOS E DISCUSSÃO: CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente abordagem musical amplia a compreensão de razões e proporções em


matemática, não apenas devido à sua contextualização histórico-cultural e sua característica
interdisciplinar, mas também pelo papel que o pensamento analógico desempenha neste
caso para a construção dos conceitos de razão e proporção matemáticas. Neste contexto, é
razoável considerar que o entendimento da ideia de razão matemática se amplia na medida
em que se vivenciam suas diversas interpretações.
Ao longo da história da Matemática e da Música teórica razões e proporções assumi-
ram diferentes significados com naturezas discretas ou contínuas com respeitio à geome-
tria, à música e/ou à aritmética. Dentre tais significados, a razão pode ser vista como uma
ferramenta de comparação por meio de proporções, um intervalo musical, uma fração, um
número, um invariante com relação à proporção, um fio comum entre contextos distintos
com respeito a proporções, ao passo que proporções podem ser vista como um veículo para
comparar razões, uma igualdade, uma relação, uma função, etc. Os contextos mencionados
acima não somente fornecem um terreno fértil para a compreensão das diferenças sutis e
semelhanças estruturais subjacentes à diversidade de interpretações associadas a razões
e proporções, como também contribuem para construir e vivenciar de maneira mais ampla
seus significados associados.
A percepção de esquemas comuns é uma maneira de construir conceitos que dizem
respeito, em princípio, a diferentes áreas. Uma analogia ou metáfora pode reconfigurar uma
situação de aprendizagem, possibilitando a compreensão de assuntos que escapam à intui-
ção imediata, ou que possam parecer muito abstratos, como as interpretações associadas a
razões e proporções, bem como a variedade de estruturas historicamente associadas a elas.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
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7. Sylla, E.D. “Compounding ratios. Bradwardine, Oresme, and the first edition of Newton‟s Prin-
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edited by E. Mendelsohn, 11-43. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

194
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
14
A percepção de jovens em cumprimento
de medidas socioeducativas sobre a
importância da família

Adrian Bezerra Assunção


FAVENI

Vanessa Carneiro Bandeira de Carvalho


UNIVS

10.37885/210303905
RESUMO

Objetivo: A pesquisa possui como objetivo compreender a percepção de jovens em


cumprimento de medidas socioeducativas acerca da importância da família no decurso
de cumprimento da medida. Método: Utilizou-se da técnica de entrevista semiestruturada
como método de coleta de dados e da análise de conteúdo temática na perspectiva da
autora Laurence Bardin para exploração do material coletado, cujos procedimentos ado-
tados são constituintes de metodologias com abordagem qualitativa, a fim de depreender
as significações atribuídas pelos partícipes acerca da temática estudada. Resultados e
Discussões: As informações oriundas das entrevistas possibilitaram a apresentação dos
resultados do estudo, bem como, discussão com referências bibliográficas que aborda-
vam o assunto, subdividindo-se em dois eixos temáticos: (I) perfil sociodemográfico dos
jovens e (II) laços familiares: intersecção entre família e semiliberdade. Conclusões:
Desse modo, é possível inferir que a participação da família é de suma importância para
os jovens no decorrer do cumprimento da diligência socioeducativa, contribuindo para a
construção identitária e social, bem como, fortalecendo os vínculos familiares e comunitá-
rios dos adolescentes para com a sociedade, prezando pela perspectiva da integralidade.

Palavras- chave: Adolescentes em Conflito com a lei, Família, Medidas Socioeducati-


vas, Reintegração.

196
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

A concepção de infância e adolescência nem sempre existiram, dando-se ênfase ao


sentimento de puerícia, bem como, a sua diferenciação da fase adulta a partir do século
XVIII (ARIÈS, 2011). Portanto, a delimitação da infância e adolescência é compreendida
enquanto uma construção social que assinala o prolongamento da fase de transição para
a maturidade, principalmente no que concerne à segunda fase, tornando-se imprescindível
para construção identitária do sujeito (DELLECAVE; BARBOZA; CALDERON, 2018).
Nessa perspectiva, são alvitrados princípios na Constituição Federal (CF) e Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) quanto à garantia de proteção integral ao público infanto-ju-
venil, sendo a família, corpo social e Estado incumbidos de assegurar-lhe os direitos básicos
enquanto cidadãos (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990) e a responsabilização destes quando
perpetram infrações, reformulando as estratégias adotadas no Sistema Penal Brasileiro,
considerando-os como sujeitos dotados de direitos e modificando a noção de periculosidade
anteriormente atribuída a essa população (FARIA, 2018; GOMES, 2017).
Destarte, a adolescência é depreendida enquanto etapa de desenvolvimento perpas-
sada por transformações e instabilidades relacionadas a fatores como negligência familiar,
vulnerabilidade social, recursos básicos não qualificados, debilidade educacional, além de
aspectos intrínsecos de cunho biológico, emocional e psicológicos, os quais contribuem
para vivência de transgressões (SCISLESKI et al., 2015; MORAIS; NASCIMENTO; MELO,
2019). Nesse sentido, condutas praticadas por crianças e adolescentes que se configurem
como crime ou contravenção penal recebem a nomenclatura de ato infracional, assim como
cuidados dispares aos destinados a adultos, sendo os jovens em conflitos com a lei subme-
tidos ao cumprimento de Medidas Socioeducativas (MSE) (BRASIL, 2017; FARIA, 2018).
Dito isto, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) é criado no
intuito de aprimorar os parâmetros estabelecidos no ECA, visando a socioeducação, profis-
sionalização, sociabilização e reintegração ao âmbito social (PADOVANI; RISTUM, 2016;
MORAIS; NASCIMENTO; MELO, 2019), com medidas empregadas a indivíduos com faixa
etária equivalente entre 12 e 18 anos de idade (GOMES, 2017) e diferentes diligências a
serem executadas quando a adolescência é envolta na criminalidade, dispondo de um agru-
pamento metodológico acerca das MSE (BRASIL, 2012).
As MSE são classificadas em 06 categorias, dentre elas: (I) advertência, (II) obrigatorie-
dade em reparar danos, (III) prestação de serviços à comunidade, (IV) liberdade assistida, (V)
semiliberdade e (VI) internação, todas visando o processo reintegrativo de adolescentes em
conflitos com a lei (BRASIL, 1990; BRASIL, 2012). Desse modo, compreende-se que jovens
transgressores necessitam de cuidados para além de estratégias punitivas e de segregação,

197
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
importando o desvelo e observação continuados, tanto por instituições públicas como pelo
núcleo familiar (LEMOS; SANTOS; FRANCO, 2015).
Ademais, considerando as desigualdades econômica, política e social existentes na
atual conjuntura brasileira, tais fatores prejudicam, majoritariamente, indivíduos em situação
de instabilidade financeira, os quais possuem características semelhantes quanto ao gênero,
raça, etnia, renda familiar, escolaridade e demais situações que os levam a qualidade de
vidas precárias (MORAIS; NASCIMENTO; MELO, 2019), abordando assim o perfil sociode-
mográfico do jovem infrator conforme o levantamento do SINASE datado de 2018.
Assim sendo, o estudo em questão objetiva compreender a percepção de jovens em
cumprimento de medidas socioeducativas acerca da importância da família no decurso de
execução da diligência. Portanto, apresenta-se o seguinte questionamento: qual a impor-
tância da família no cumprimento de sua medida socioeducativa?
Oportunamente, as informações oriundas das entrevistas possibilitaram a exposição
dos resultados e discussão destes com a bibliografia científica já existente, na qual a apre-
ciação do material coletado ocorreu mediante o método de análise de conteúdo temática
na perspectiva de Laurence Bardin, subdividindo-se em dois (02) eixos temáticos, sendo
eles: (I) perfil sociodemográfico dos jovens e (II) laços familiares: intersecção entre família
e semiliberdade.
Diante do exposto, considera-se a família como indispensável ao processo socioedu-
cativo, especialmente, no decorrer do cumprimento da diligência, uma vez que a mesma
contribui para construção de valores sociais e identitários dos jovens, atuando ainda como
fortalecedora de relações de vínculos familiares e comunitários, prezando pela concepção
de sujeito enquanto integral.

MÉTODO

O estudo em questão caracteriza-se como uma pesquisa de abordagem qualitativa,


tratando-se de um estudo exploratório e descritivo, com pesquisa de campo.

Lócus e Participantes da Pesquisa

A pesquisa efetivou-se no município de Iguatu, localizado na Região Centro-Sul do esta-


do do Ceará (CE). O lócus para realização do estudo transcorreu no Centro de Semiliberdade
de Iguatu, sob autorização judicial da 3° Vara da Infância e da Juventude da Comarca de
Iguatu – CE, localizada no Fórum Desembargador Boanerges de Queiroz Facó.
Os partícipes da pesquisa foram jovens autores de atos infracionais, conforme de-
finido no ECA, que se encontravam em cumprimento de medida socioeducativa em
198
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
regime de semiliberdade na cidade de Iguatu, com execução da diligência no Centro de
Semiliberdade. A amostragem teve em sua composição 10 sujeitos para obtenção da coleta
de informações necessárias ao estudo, tendo em vista que esse objetivou compreender as
múltiplas perspectivas do público-alvo frente à eficácia e o impacto dos procedimentos aos
quais foram submetidos.

Instrumento de coleta das informações

Como instrumento para alcance das informações necessárias à pesquisa utilizou-se


da elaboração e aplicabilidade de uma entrevista do tipo semiestruturada, composta por
oito (08) perguntas versadas entre temáticas: tipo e tempo de cumprimento da medida,
reincidência, sentença judicial e percurso percorrido até o cumprimento da MSE, eficácia
dos procedimentos adotados, impactos dos procedimentos frente à qualidade de vida dos
jovens, contribuições da MSE para construção enquanto seres humanos, importância da
família no decorrer do cumprimento da MSE, bem como, a importância da equipe e avaliação
das contribuições da mesma no decorrer da execução da MSE.

Análise das informações coletadas

No tocante à análise das informações, utilizou-se o método de análise de conteúdo


do tipo temática na perspectiva da autora Laurence Bardin, a qual ocorre mediante o agru-
pamento dos conteúdos apresentados pelos partícipes, sendo organizados conforme a
quantidade de aparições de temas ou significações cujos elementos foram precedentemente
deliberados pelo pesquisador, realizando assim a análise detalhada dos mesmos visando
compreender os princípios referenciados e modelos comportamentais apresentados no
discurso dos sujeitos da pesquisa. O material coletado após familiarização, foi decodificado
e por fim, realizaram-se inferências e interpretações.

Aspectos éticos da pesquisa

Os preceitos éticos que nortearam a pesquisa foram pautados conforme o disposto na


Resolução de n° 466 de 12 de dezembro de 2012 e na Resolução de n° 510 de 07 de abril
de 2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Desse modo, a coleta de informações para
o desenvolvimento do estudo sucedeu-se após apreciação e aprovação do Comitê de Ética
em Pesquisa do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio, com parecer consubstanciado
de número 3.549.536, emitido em 02 de setembro de 2019 e mediante assinatura dos termos
de consentimento livre e esclarecido e pós esclarecido por parte dos participantes.

199
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
RESULTADOS

O adolescente em conflito com a lei

A adolescência é definida enquanto uma construção social que não se encontra presen-
te em todas as culturas, considerando o cenário histórico e instrutivo, além das influências
mútuas de cada localidade (CID; SILVA, 2018). Assim, é depreendida como estágio de tran-
sição do mundo infantil para o adulto, ocorrendo mudanças físicas, sociais, psicológicas, de
descobertas, incertezas e escolhas que direcionam as vivências do sujeito, sendo de suma
importância na construção da identidade (AMARAL et al., 2017; DELLECAVE; BARBOZA;
CALDERON, 2018).
É uma fase de desenvolvimento dotada de transformações e instabilidades das mais
variadas formas. Por conseguinte, acredita-se que jovens estejam mais susceptíveis a ações
delituosas, presumindo que estas sejam decorrentes da negligência e carência familiar, os
quais são considerados fatores primordiais para a vulnerabilidade psíquica e, consequen-
temente, cometimento de infrações, recebendo a nomenclatura de jovens em conflitos com
a Lei, quando diante de circunstâncias delituosas (MORAIS; NASCIMENTO; MELO, 2019).
Segundo Resende e Assumpção Júnior (2008) jovens em conflitos com a lei não de-
vem ser compreendidos enquanto indivíduos perversos, mas como sujeitos emocionalmen-
te adoecidos e, devido a tal nomenclatura, comportamentos transgressivos encontram-se
integrados na Classificação Internacional das Doenças em seu décimo volume (CID-10) no
bloco de transtornos de conduta, acometendo o indivíduo como seguimento de situações
de negligência parental, abuso sexual, exposição ao meio dotado de instabilidade, além de
histórico familiar com psicopatologias.
Sem embargos, Winnicott (1987/2012) afirma que quando o convívio familiar não detém
controle ao jovem, este pode vir a praticar a criminalidade como estratégia para obtenção
de contenções advindas da sociedade, as quais não recebeu no decurso de seu desenvol-
vimento. Destarte, Gomide (2009) ressalta que em pesquisas objetivando averiguar o com-
portamento delituoso de adolescentes, observou-se a existência de uma correspondência
entre o desenvolvimento de conduta antissocial, estilos parentais e convivência com parceiros
autores de práticas desviantes.
Logo, consoante a Winnicott (1987/2012) o comportamento antissocial não imperiosa-
mente pode advir de uma patologia sendo, por vezes, uma rogatória de assistência aqueles
indivíduos que consideram amorosos, vigorosos e seguros, necessitando desenvolver o
sentimento de proteção que anteriormente não fora agregado às suas convicções. Contudo,
Scisleski e colaboradores (2015) enfatizam que adolescentes que se encontram inseridos na
criminalidade comumente têm suas vivências perpassadas em ambiente de vulnerabilidade,
200
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
não dispondo assim de bens necessários para a qualidade de vida como, por exemplo:
condições sanitárias, culturais e sociais satisfatórias.
Corroborando com os autores acima, Morais, Nascimento e Melo (2019) pontuam como
aspecto motivacional o status que ocupam frente ao meio social e os recursos básicos en-
quanto cidadãos – acesso à educação, trabalho e a serviços de saúde – não qualificados,
no qual o fator desemprego intensifica a debilidade educacional e coloca o indivíduo em
situação de ociosidade, podendo contribuir para que estes iniciem o uso de substâncias
psicoativas e adentrem na delinquência. É comum também o histórico familiar de ligação
com o sistema carcerário, assassinato e uso de drogas, nas quais as atitudes por eles ma-
nifestadas refletem aquilo que experienciam em âmbito doméstico.
Portanto, fatores intrínsecos como aspectos psicológicos, emocionais, genéticos e
biológicos, assim como fatores extrínsecos como desigualdade social, contexto familiar e
influência de amigos devem ser considerados, tendo em vista que esses elementos instigam
a transgressão juvenil (MORAIS; NASCIMENTO; MELO, 2019). No entanto, Lemos, Santos
e Franco (2015) afirmam que considerar o contexto social de pobreza, periferia e desajuste
familiar visando enquadrar o adolescente na categoria de futuro criminoso é tido como uma
atitude supressiva e preconceituosa direcionadas a tal parcela da população, pois, consoante
com Padovani e Ristum (2016), prejulgamentos podem influir na maneira como o sujeito
compreende a si e contribuir para a continuidade do comportamento infrator.

Socioeducação: das responsabilidades institucionais às pessoais

A socioeducação é concebida enquanto uma estratégia que visa, prioritariamente, a


aprendizagem social e a efetivação da cidadania do jovem, enfatizando ainda uma formação
para o desenvolvimento de habilidades sociais de convívio e relação com o mundo que o
cerca (MELO, 2016; CID; SILVA, 2018). Neste prisma, Morais, Nascimento e Melo (2019)
apresentam que o cumprimento de MSE obrigar-se-á estar sistematizado na responsabili-
zação do sujeito infrator, partindo do pressuposto da formulação de novas perspectivas e
reflexões intrínsecas, fundamentado em suas idiossincrasias, bem como, os direitos a eles
assegurados – educação, lazer, esporte, políticas públicas, saúde, entre outros – em legis-
lações como a CF e o ECA.
Conforme preconiza o SINASE os procedimentos adotados serão administrados com
base nos princípios da legalidade, considerando a diferenciação do implemento de penas
destinadas a adolescentes e adultos; prioridade de ações de cunho restaurativo equivalente
a transgressão cometida; brevidade e respeito as individualidades, idade e competências
de cada jovem; a intervenção se restringirá ao intento da diligência, livre de quaisquer atos

201
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
discriminativos, enfatizando a consolidação de vínculos sociais e familiares frente ao aspecto
reintegrativo do sistema socioeducativo (BRASIL, 2012).
Para tanto, a aplicabilidade da medida se executará por instituições públicas como
o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Conselho Tutelar,
Fundação de Atendimento Socioeducativo (FUNASE), dentre outros serviços que priorizem
o caráter pedagógico como estratégia de reintegração social, cujo planejamento é imprescin-
dível no que concerne à elaboração de cronograma de horários, cuidados com alimentação,
vestimentas e higiene pessoal, oficinas, atividades de lazer e ações profissionalizantes, de
modo a garantir cuidado integral e proteção ao indivíduo, tal como, o acompanhamento no
cumprimento da MSE (MORAIS; NASCIMENTO; MELO, 2019).
Desse modo, é responsabilidade das instâncias governamentais a implantação de po-
líticas públicas visando proporcionar melhorias na qualidade de vida dos sujeitos, incluindo
oportunidades de qualificação profissional, educação, projetos socais e assistência em âmbito
familiar (FONSECA, 2018). Portanto, o desenvolvimento de práticas especializadas viabiliza
a ressignificação da MSE na perspectiva do adolescente e de sua família – tendo em vista o
caráter reintegrativo e não punitivo – sendo realizadas mediante a atuação de uma equipe
multidisciplinar constituída por assistente social, pedagogos, psicólogos, educador físico,
entre outros, objetivando a efetivação de ações pautadas na saúde física, mental, convívio
social e familiar (GOMIDE, 2009; FERRÃO; SANTOS; DIAS, 2016).
Fonseca (2018) aborda que a responsabilidade de cuidado direcionado ao jovem não
compete somente a órgãos Estaduais e instituições públicas, tornando-se imprescindível a
participação familiar, à qual é considerada alicerce quanto ao pleno desenvolvimento huma-
no. Nessa perspectiva, Dellecave, Barboza e Calderon (2018) apontam a família enquanto
dispositivo basilar no processo socioeducativo e elemento primordial na consolidação de
vínculos sociais, afetivos e fatores protetivos, enfatizando a promoção da autonomia e in-
centivo quanto ao desenvolvimento de atividades propostas no decurso da execução de
diligência reintegrativa.
Segundo apontado por Gomide (2009) o Programa de Reinserção Social de Adolescente
Infrator atua no desempenho de ações que compreendam o indivíduo sob uma ótica integral,
proporcionando o desenvolvimento de habilidades comportamentais, emocionais e cogniti-
vas. Dentre as atividades empreendidas, destacam-se a escolarização, intervenções quanto
ao uso de drogas, ações voltadas a promoção e proteção da saúde, atividades de lazer e
laborais, programas de desenvolvimento moral e social, além do acompanhamento psicote-
rápico individual e familiar. Ademais, Padovani e Ristum (2016) ressaltam a importância do
contexto educacional e profissional enquanto construtores de novos caminhos, afastando-os
da vivência infracional pois, para Gomide (2009), quando o déficit educacional é atenuado
202
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
há, consequentemente, um acréscimo nas contingências para obtenção de emprego e a
vivência de relacionamentos com sujeitos não desviantes.
À vista disso, Gomide (2009) ainda ressalta que a prática do psicólogo é considerada
indispensável no acompanhamento do jovem em conflitos com a lei, a qual consoante ao
descrito por Maia, Silva e Oliveira (2018) ocorrerá após o início do cumprimento da MSE no
intuito de depreender os aspectos motivacionais que levaram ao cometimento da infração,
viabilizando a escuta desses e de seus familiares.
Isto posto, Ferreira (2017) pontua que o profissional de psicologia detém do uso de
práticas interventivas que proporcionam aos jovens a reflexão quanto à situação que viven-
cia, bem como, a elaboração de planejamentos futuros que contribuirão para estruturação
e consolidação identitária, objetivando, prioritariamente, a reintegração do sujeito ao âmbito
social e familiar. Quanto à família, o profissional de psicologia desempenhará sua prática
no intento de revigorar seu caráter protetivo, fortalecimento da autonomia e rompimento de
violações direcionadas ao adolescente, incluindo-os em programas de proteção social.
Do mesmo modo, Gomide (2009) argumenta que a psicoterapia poderá contribuir na
preservação de vínculos afetivos, trabalhando também quanto aos sentimentos de vergo-
nha, culpa e estratégias para lidar com as consequências da transgressão, podendo ocorrer
de maneira individual ou grupal. Corroborando com a autora acima, Maia, Silva e Oliveira
(2018) acrescentam que a conduta do psicólogo voltar-se-á para a esfera coletiva, pautadas
na construção da cidadania, prestação de assistência com atribuição de um papel ativo ao
sujeito e de responsabilização perante seus atos, pautando-se na ética profissional e com-
prometimento com o social no que concerne ao bem-estar biopsicossocial dos adolescentes,
bem como, na inserção destes em âmbitos coletivos.
Dessa maneira, para que haja a compreensão do jovem infrator é indispensável a
observância da sua relação com o meio em que vive (FONSECA, 2018), pois adolescentes
que se encontram em situação de conflitos com a lei necessitam, acima de tudo, de desvelo
e observação continuados, os quais se constituem como perigosos não apenas para o âm-
bito social, mas enquanto ameaças a si decorrentes da vivência de transgressões (LEMOS;
SANTOS; FRANCO, 2015).

DISCUSSÕES

Perfil sociodemográfico dos jovens

A aplicabilidade da entrevista como recurso de coleta de informações para a pesquisa


efetivou-se conforme disposto na metodologia. Para tanto, foram entrevistados 10 jovens1
1 Os nomes dos participantes da pesquisa receberam codinomes de super-heróis da Liga da Justiça, com a finalidade de manutenção

203
do sigilo e preservação de suas identidades.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


em cumprimento de MSE de semiliberdade no Centro de Semiliberdade de Iguatu – CE;
dentre tais características: idade, gênero, estado civil, escolaridade, tempo de cumprimento
da medida, reincidência na execução de MSE, mediante a apresentação a seguir:

PARTICIPANTES DA PESQUISA

Tempo de Cumpri-
Nome Idade Gênero Estado Civil Escolaridade Reincidente
mento da MSE

Aquaman 18 anos M Solteiro 8° ano (EF) 5 meses Sim

Arqueiro Verde 18 anos M Solteiro 1° ano (EM) 2 meses Sim

Batman 17 anos M Solteiro 7° ano (EF) 4 meses Não

Cyborg 17 anos M Solteiro 8° ano (EF) 4 meses Sim

Eléktron 17 anos M Solteiro 1° ano (EM) 6 meses Não

Flash 17 anos M Solteiro 1° ano (EM) 6 meses Não

J’onn J’onnz 17 anos M Solteiro 8° ano (EF) 1 mês Não

Lanterna Verde 17 anos M Solteiro 7° ano (EF) 4 meses Não

Mulher Maravilha 17 anos F Casada 1° ano (EM) 1 mês Sim

Superman 17 anos M Solteiro 1° ano (EM) 2 meses Não

Fonte: elaborada pelas autoras (2019), baseada nas informações oriundas das entrevistas.

Laços familiares: intersecção entre família e semiliberdade

A família é considerada imprescindível na constituição dos jovens aqui em análise, haja


vista o poder de influência, positiva ou não, que a mesma exerce, a qual poderá contribuir
para promoção de fatores pertinentes ao desenvolvimento dos indivíduos, resguardan-
do-os da exposição a condições de risco (DELLECAVE; BARBOZA; CALDERON, 2018).
Conquanto, o contexto familiar, por vezes, se configura como um fator de ameaça, em que
circunstâncias de violência e desestrutura corroboram para as reproduções comportamen-
tais semelhantes em outros espaços, tendo em vista que o adolescente, ainda, se encontra
em período de formação identitária e necessita de vivências que propiciem a aprendizagem
plena e saudável (ROSSO et al., 2019).
Portanto, segundo Yokomiso e Fernandes (2014) a família é encarada na qualidade
de seio transformador e de apoio fundamental ao jovem inserido no sistema socioeducati-
vo, possibilitando a estruturação de meios que transmitam o sentimento de segurança para
que assuma uma posição ativa frente ao cerne social. Nesse sentido, Rosso et al. (2019)
204
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
outorgam na família a atribuição de instância responsável pela desenvolução destes, a qual
tem como incumbência orientar o indivíduo no que concerne a valores morais, princípios
de cidadania e comportamentos condizentes com as normas sociais, bem como, respeito
e empatia para com outrem.
Ademais, consoante a Dellecave, Barboza e Calderon (2018) a família – depreendida
como fator protetivo – no cenário de cumprimento de MSE proporciona ao jovem o fortaleci-
mento de redes de apoio afetiva e social que coadjuvam com o processo reintegrativo, visto
que sua presença se torna essencial no transcurso de efetivação da diligência. Logo, nas
informações provenientes das entrevistas os participantes enfatizam a importância da família
no contexto socioeducativo, principalmente, enquanto sustentáculo e orientação, mencio-
nando os aprendizados que recebem mediante os conselhos da parentela, influência que
prestam e importância destes em suas vivências, conforme apresentado nos trechos abaixo:

Um bocado de coisa. O caba tem que ser... fica preocupado com a família do
caba. É importante... o caba fica preocupado com eles... a família do caba é
tudo na vida do caba (Aquaman, 18 anos).

[...] dar conselho, né, pro caba sair dessa vida. Ajuda de toda forma, de toda
forma que puder tão ajudando (Arqueiro Verde, 18 anos).

[...] contribui... ela é presente... oxente, em tudo (risos)! Em tudo minha família
é presente, não deixa faltar com nada... sempre tá aqui (Eléktron, 17 anos).
É importante vindo buscar a gente, ensinando, orientando... é importante
(Flash, 17 anos).

Ah, eles me dão conselho pra eu num... eu continuar cumprindo os seis me-
ses, pra poder eu num, num fugir daqui, continuar cumprindo... porque eles
só querem meu bem, né. A importância é muito grande... a minha família é
bem presente, dando conselho, faz tudo que eu quero, tudo, tudo que eu
quero minha mãe faz por mim, minha família é, faz tudo por mim (Mulher
Maravilha, 17 anos).

É importante. É essencial a família... o que fortalece a pessoa, pra vim cumprir


a medida... a minha mãe chega e dá uma ideia pra mim. Minha namorada
também dá uma ideia, aí o caba já fica meio assim... meus irmãos, meu irmão,
né. Aí dá uma motivação pra pessoa cumprir a medida, entendeu?... se mostra
muito, presente demais... tudo, a minha família é a base da minha vida. Me
influencia em muitas coisas, coisas boas... a ser honesto, né? E que nada,
nada fácil... a maioria das coisas fácil assim na vida, tem seu preço. E que
as coisas que é suada, assim, que é suada, é batalhada, assim, é, tem mais
gosto. Entendeu? (Superman, 17 anos).

Oportunamente, verifica-se que há, nos relatos dos partícipes, a expressão do quanto à
família – e demais relacionamentos interpessoais – tem se mostrado significativa para os en-
trevistados, os quais abordam sua principal contribuição referente ao apoio, cuidado e ensina-
mentos que recebem, considerando-a de suma importância em seu desenvolvimento humano.
205
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
À vista disso, Cid e Silva (2018) apontam que a potencialização e fortalecimento de
vínculos familiares se configuram como estratégias positivas para que os adolescentes pos-
sam ressignificar à experiência envolta na criminalidade juvenil e comprometer-se com trilhar
oportunidades de vida dissemelhantes às anteriormente vivenciadas. Ademais, para Gandini
Junior (2015) a participação de seus parentes na circunstância de MSE é vista como um
coeficiente deliberativo à garantia de direitos e reintegração de jovens em conflitos com a lei.
Desse modo, às assertivas, de ambas as referências, são observadas nas alocuções
exteriorizadas abaixo, quando questionados sobre “qual a importância da família no cum-
primento de sua medida socioeducativa?”:

Rapaz, é tudo, porque sem o apoio da família não dá, não tem como... rapaz,
desde a vinda, desde a responsabilidade de vim deixar, vim buscar, por que...
nenhum adolescente quer ficar aqui final de semana (Batman, 17 anos).

[...] de ela tá presente nos encontro de, pras família e... quando os povo chama
pra conversar... os povo pergunta como é que tá eu em casa também, né.
Tanto em casa como aqui eu tô sendo avaliado por minha mãe, como eu tô
aqui dentro (Eléktron, 17 anos).

É muito bom, né, a família acompanhar... que é bom também, né. Se a juíza
vê que tá abandonando é que deixa a pessoa mais tempo (Lanterna Verde,
17 anos).

Sem embargos, é notório que embora a família seja depreendida perante a ótica de
facilitadora do processo reintegrativo do jovem, sua inserção no campo de deliberações
de semiliberdade, até então, se mantém ligada a questões de obrigatoriedade e artifícios
avaliativos, precipuamente, atrelada as demandas do judiciário e formas de manutenção de
poder frente aos indivíduos no sistema penal.
Nesse sentido, Cid e Silva (2018) salientam que ao dar seguimento em moldes encara-
dos como punitivos, a socioeducação consuma a aplicabilidade de sentenças semelhantes
àquelas comumente utilizadas no sistema carcerário, em conformidade com o Código Penal
Brasileiro, não se revelando como pertinente e efetiva em enquadramentos reintegrativos.
Logo, segundo apontado por Gomide (2009), irá ensejar em ambos – família e jovem – a
atribuição de novos significados à sua realidade individual e coletiva, assim como o desen-
volvimento de atividades propostas.
O acompanhamento do seio familiar, teoricamente, deverá ser constituído por todos os
membros inseridos no contexto do jovem. Entretanto, a figura da mãe empreende maior com-
prometimento quanto à assistência. Igualmente, esse núcleo, majoritariamente, é composto
somente por sua genitora e, em detrimento dessa característica, a busca pelos filhos e/ou
realizações de visitas são realizadas pelas mesmas, bem como, percebe-se o fortalecimen-
to de vínculos dos adolescentes com a figura materna (GANDINI JUNIOR, 2015; NUNES,
206
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
2018); notando-se, na realidade estudada, que os discursos dos partícipes se encontram
em consonância com a literatura referente à contribuição da família a partir a figura parental:

[...] contribuição assim, que... que eu acho que minha mãe também, né, vê
assim meu lado também do jeito que eu tô e eu mostro pra ela que eu tô
desenvolvendo pra levar pra fora, pra sociedade [...] (Eléktron, 17 anos).

Ah, tando perto já é uma ajuda grande. Tando perto, já ajuda. Ah, sei lá... ajuda
a conformar mais... vindo visitar, trazendo notícia de como é que tá lá fora...
só vem pra cá quando é pra vim me buscar. Só minha mãe. Lá2 eu recebia
visita só uma vez no mês por que é distante, tinha mês que eu não recebia,
tinha telefonema (J’onn J’onnz, 17 anos).

Neste prisma, tem-se a mãe como ferramenta de suporte e sustentáculo motivacional,


conforme apontado, percebendo-se tal contribuição, também, nos discursos dos jovens
Mulher Maravilha e Superman ao verbalizarem acerca da figura materna e sua cooperação
com o processo de mudança envolto no cumprimento da MSE. No entanto, destaca-se o
trecho da entrevista do jovem J’onn J’onnz ao mencionar sobre a visita e distância entre a
instituição de execução da medida e sua cidade de origem, verificando-se a existência de
falhas no sistema quanto à periodicidade de saída aos finais de semana, uma vez que, o
mesmo só frequenta seu seio familiar quinzenalmente o que, consequentemente, dificulta o
revigoramento dos vínculos de afeto, em detrimento da distância e pouco contato mantido
com esse espaço, influindo, ainda, no processo reintegrativo, o qual preza pela manutenção
e fortalecimento das relações do sujeito com a família e sociedade perante a perspectiva
da integralidade.

CONCLUSÕES

Consoante ao exposto no decurso do estudo, pode-se inferir que a maneira como os


jovens percebem a importância da família no cumprimento da diligência é enquanto fator de
suma relevância para seu desenvolvimento pessoal e social, para que este consiga lidar
com os impasses e impactos que o ambiente socioeducativo proporciona em sua qualidade
de vida. Ainda, se mostra pertinente por atuar na condição de fortalecedora de vínculos com
os membros de seu núcleo familiar e comunidade, sendo necessário que a visita ocorra
semanalmente, haja vista o revigoramento de afetos que a mesma proporciona.
Assim sendo, o estudo é pertinente por evidenciar uma temática cuja discussão ainda
é escassa, tendo em vista que muito é versado sobre medidas socioeducativas e sistema de
responsabilização dos jovens. Todavia, é incomum encontrar estudos que versem sobre a

2 Referência à instituição na qual cumpriu MSE por 6 meses antes de ser transferido à unidade de semiliberdade de realização da

207
pesquisa.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


maneira como tais jovens compreendem a importância da família nesse contexto, outorgando
o direito de alocução aqueles que, comumente, lidam com silenciamentos. Entrementes,
coadjuva para uma melhor compreensão acerca do papel da família para a reintegração de
jovens autores de infrações, carecendo que outros estudos sejam produzidos no intuito de
ampliação de arcabouço teórico em âmbito acadêmico.
E, igualmente, em âmbito sócio-político no intuito de proporcionar um maior entendi-
mento sobre a temática e reduzir estigmas apresentados frente a mesma, haja vista as difi-
culdades de adolescentes infratores em atuarem enquanto atores sociais em detrimento dos
preconceitos que lhe são direcionados e compreensão destes tão somente por intermédio
das condutas transgressivas empreendidas. Sem embargos, desconsideram os possíveis
fatores sociais, familiares, econômicos e individuais que cooperaram para que adentrassem
à criminalidade, culpabilizando os sujeitos por seus feitos, quando estes, por vezes, não
dispõem de estruturação para dar seguimento a práticas díspares àquelas alvitradas no
Código Penal Brasileiro como contraventoras.

REFERÊNCIAS
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e Saúde Coletiva, Belo Horizonte, v. 2, n. 4, p. 42-53, 2017.

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Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução de medidas socioeducativas destinadas a
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
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10. DELLECAVE, M. do R.; BARBOZA, C. S.; CALDERON, P. A. Fatores de risco e proteção


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humanizada. Orientadora: Fernanda Prates. 2018. 61 f. Monografia (Bacharelado em Direito)
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15. GANDINI JUNIOR, A. O adolecente infrator e os desafios da política de atendimento à


infância e a adolescência institucionalizada. Orientadora: Raquel Pereira Chainho Gandini.
2015. 173 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Metodista de Picacicaba, Facul-
dade de Ciências Humanas, Picacicaba, 2015.

16. GOMES, R. R. Continuidades e rupturas nas histórias de vida de jovens usuários de


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18. LEMOS, F. C. S.; SANTOS, A. E. S.; FRANCO, A. C. F. A produção do adolescente autor de


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209
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
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210
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
15
Caracterização do Programa Saúde
na Escola

Keila Andrade Haiashida


UECE

Ricardo Hélio Chaves Maia


SMS

10.37885/210203232
RESUMO

O Programa Saúde na Escola (PSE) integra à Política Nacional de Atenção Básica


(PNAB). Assim, o objetivo do estudo foi caracterizar o PSE e investigar se pode se
constituir em um espaço de debate sobre promoção da saúde. Para isso, realizamos
pesquisa bibliográfica e documental. O PSE tem a intenção de contribuir para formação
integral dos alunos através da promoção, prevenção e atenção à saúde. Dessa forma,
os beneficiados pelo programa são os estudantes da Educação Básica, gestores e pro-
fessores da educação e saúde, estudantes da Rede Federal de Educação Profissional
e Tecnológica e da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Para viabilizar os objetivos
do PSE, foram definidos cinco componentes: a) avaliação das condições de saúde das
crianças, adolescentes e jovens da rede pública; b) promoção da saúde e de atividades
de prevenção; c) educação permanente e capacitação dos profissionais da educação e
da saúde e de jovens; d) monitoramento e avaliação da saúde dos estudantes; e) moni-
toramento e avaliação do programa. Não há dúvidas que enquanto espaço formativo a
escola tem potencial para mudar os hábitos e comportamentos dos alunos, o que pode
favorecer uma geração com maior consciência sobre a importância dos cuidados básicos
com a saúde e derivar na redução de doenças.

Palavras-chave: Saúde, Educação, Atenção Básica.

212
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) resulta de experiências na área de saúde


e visa consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS). Uma das conquistas atribuídas ao
sistema de Atenção Básica (AB) no Brasil é seu alto grau de descentralização e capilaridade.
Assim, a PNAB teve como consequência a criação de vários programas e serviços.
Nesta pesquisa assumimos como objeto de estudo o Programa Saúde na Escola (PSE),
instituído pelo Decreto Presidencial nº 6.286, de 05 de dezembro de 2007 com a finalidade
de contribuir para formação integral dos estudantes da rede básica por meio de ações de
prevenção, promoção e atenção à saúde.
Baseado no relato acima passamos a questionar: quais as características do PSE? A saú-
de vem sendo concebida em sua articulação com o ambiente? O programa pode se constituir
em um espaço de promoção em saúde? Objetivando responder a estes questionamentos
propusemo-nos a identificar as ações do PSE que se constituem em um espaço de debate
sobre promoção da saúde.
Acredita-se que este estudo possa enriquecer e ampliar o conhecimento sobre as
ações e atividades do PSE.

OBJETIVO

O objetivo do estudo foi caracterizar o PSE que representa uma iniciativa de articulação
em Saúde e Educação.

METODOLOGIA

Para alcançar o objetivo proposto, procedemos à uma pesquisa bibliográfica na área


de saúde e educação em autores como: Dantas (et al, 2007); Mendonça (2009); Rezende,
Dantas (2009) e Rezende, Dantas e Pedrosa (2009) dentre outros, consulta de periódicos in-
dexados na base de dados da Biblioteca Virtual de Saúde (BVS): Literatura Latino- Americana
e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e pesquisa documental, tendo como principais
fontes a Política Nacional de Atenção Básica (2012), os Cadernos de Atenção Básica (2009)
e o Decreto Presidencial nº 6.286 (2007).

213
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
RESULTADOS

Interfaces entre saúde e educação

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) integra a Rede de Atenção à Saúde,


orientada pelos princípios da “universalização, acessibilidade, vínculo, continuidade do cui-
dado, integralidade da atenção, responsabilização, humanização, equidade e participação
social” (BRASIL, 2012, p. 11).
Vinculados à Rede de Atenção à Saúde temos diversas ações, programas e
estratégias como:

• Academia da Saúde;
• Amamenta e alimenta Brasil;
• Brasil sorridente;
• Consultórios na rua;
• Saúde da família;
• SAMU;
• Nutri SUS
• NASF;
• Farmácia Popular
• Programa Saúde na Escola.

Conforme explicitado no estudo, enfatizamos o PSE para Mendonça (2009) a integração


de práticas nas áreas de saúde e educação possibilita uma importante troca de saberes e
a ressignificação dessa relação. Saúde e educação tem vivenciado aproximações e distan-
ciamentos e destes tem surgido algumas experiências de encontros e desencontros. O PSE
pode ser considerada uma experiência de encontro entre saúde e educação.

A saúde tem sido associada historicamente ao surgimento de doenças, sua


prevenção e cura. Isso reflete a hegemonia do modelo biomédico que tem
permeado durante muito tempo o desenvolvimento das práticas de saúde no
Brasil e no mundo, desconsiderando a capacidade de as pessoas assumirem
o cuidado e o controle sobre o corpo e a vida, delegando-os aos profissionais
de saúde (REZENDE E DANTAS, 2009, p. 07).

O resultado dessa hegemonia do modelo biomédico foi o distanciamento com outros


setores e áreas do conhecimento, imprescindíveis para compreensão da saúde. Ao articu-
larmos saúde e educação saúde passa a ser concebida em uma perspectiva integral, como
processo, que incorpora aspectos das subjetividades e a noção de direito, de qualidade
de vida. Dessa forma, conceber o processo saúde e doença em uma perspectiva integral
214
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
pressupõe, também, a compreensão de seus determinantes. Saúde e doença, nesse enfoque,
não devem ser percebidos como conceitos opostos, já que ambos se referem à produção
da vida, estando inseridos em contextos históricos, sociais, econômicos, políticos, éticos,
ambientais e culturais (DANTAS, REZENDE e PEDROSA, 2009).

O Programa Saúde na Escola: possibilidades intersetoriais

Ao abordarmos o campo da saúde coletiva deparamo-nos com a inserção da saúde em


uma realidade social complexa, daí a necessidade de considerá-la como um campo inter-
disciplinar, articulado a uma totalidade social permeada de contradições. A constituição de
espaços dialógicos que possibilitem a interlocução de saberes e práticas parece configurar-se
como estratégia de superação dessas situações-limite (DANTAS et al., 2007).
A escola, enquanto instituição formativa, consegue atingir um contingente significativo
de indivíduos com possibilidade de favorecer uma mudança efetiva de comportamentos e
hábitos. Dessa forma, temas relacionados à promoção da saúde podem integrar o cotidia-
no escolar. Nos últimos anos tem se discutido a articulação entre saúde e meio ambiente
e entre saúde, ambiente e sustentabilidade, ou seja, os estudos que abordam as mudan-
ças ambientais derivadas dos modelos de desenvolvimento da sociedade humana em seu
percurso histórico e os impactos na saúde pública nos ecossistemas naturais. Esse novo
paradigma, implica pensar políticas públicas de forma integrada em uma visão de conjunto
e de atuação dinâmica e pró-ativa, dentro das necessidades de uma sociedade cada vez
mais urbana, globalizada e informatizada (PHILIPPI JÚNIOR, 2005).
Laurenti1 (In PHILIPPI JÚNIOR, 2005) explicita que essa discussão é bastante anti-
ga, Hipócrates (séc. V e VI a. C.) em seu texto “Ares, Àguas e Lugares” deixa claro que as
questões ambientais eram importantes para a saúde do indivíduo e, consequentemente,
para população. O debate, portanto, não é recente o que se tem renovado são as formas
de enfrentamento.
Os estudos indicam que as transformações ambientais induzidas pela ação antrópica,
alteram os ambientes naturais, poluem o meio ambiente, provocam mudanças climáticas,
comprometem a fauna e a flora, o que aumenta o risco de exposição a doenças, atuando
negativamente na saúde da população (PHILIPPI JÚNIOR, 2005).
A minimização dessa ação antrópica negativa pressupõe mudança de comportamentos
e hábitos que podem ser obtidos por intermédio da escola. É nessa contextura que inserimos
o PSE como uma alternativa viável de construção de noções de sustentabilidade que resul-
tem em uma população mais consciente ambientalmente e por essa razão mais saudável.

1 Ruy Laurenti, médico sanitarista e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) é o autor do Prefácio da obra de Arlindo

215
Philippi Júnior (2005)

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


As políticas de saúde no contexto brasileiro têm se desenvolvido no reconhe-
cimento da intersetorialidade. Em nenhum outro momento histórico, falou-se
tanto em saúde e promoção da saúde como no contexto atual, o que corrobora
a valorização do papel de promoção da saúde vinculada ao ambiente escolar
como elemento transformador da realidade. Assim, reconhece-se a necessi-
dade de atuação não somente do setor saúde, mas também como o resultado
de ações intersetoriais e multidisciplinares, tornando a intersetorialidade uma
condição para a prática da Promoção da Saúde (FARIAS et al., 2016, p. 262).

Dessa forma, o PSE constitui uma possibilidade de interface entre os setores de edu-
cação e saúde. Nossa intenção inicial foi compreender melhor a conexão entre saúde e
sustentabilidade e verificar como isso pode ser viabilizado. A experiência anterior com o PSE2
nos permitiu hipotetizar esse programa como uma opção viável de implementação dessa
aproximação e refletir sobre como o PSE pode se constituir em um espaço de debate sobre
promoção da saúde em articulação com um ambiente sustentável. Na etapa exploratória
tentamos identificar e selecionar experiências de abordagem da sustentabilidade no PSE.
Uma experiência relevante foi vivenciada no PSE de Guarapuava, no Paraná, através
de uma parceria entre as secretarias municipais de Saúde e de Educação e Cultura. Os ges-
tores escolares (diretoras, orientadoras e supervisoras) das escolas e Centros Municipais de
Educação Infantil (CMEIS) da rede municipal participaram de atividades de formação com o
tema “Saúde Ambiental e Sustentabilidade”, cerca de 50 educadoras visitaram, nesta quar-
ta-feira (20), a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), o Aterro Sanitário e o Parque das
Araucárias, onde acompanharam palestras sobre a prevenção contra a dengue e conhece-
ram programas desenvolvidos pelas secretarias de Meio Ambiente e de Agricultura. Dentre
as atividades, as professoras participaram de uma dinâmica com acadêmicos do curso de
Ciências Biológicas da Faculdade Guairacá, que mostraram várias formas de transformar
lixo reciclável em material didático (PREFEITURA DE GUARAPUAVA).
Essa experiência indica a importância da formação docente e do diálogo entre os pro-
fissionais da saúde e da educação.
Portugal (2006, p. 17) afirma que no contexto da promoção da saúde escolar, os pro-
jetos deverão ser dirigidos para:

conscientização da comunidade para a vulnerabilidade dos estudantes face


aos riscos ambientais que constituem as principais ameaças à sua saúde,
em geral, poluição atmosférica, saneamento inadequado, ruído, substâncias
químicas, radiações, entre outros, e as formas de reduzi-los; b) envolvimento
dos estudantes nos projetos de educação para o ambiente e saúde [...].

Essa premissa estabelecida pelo Ministério da Saúde de Portugal, ou seja, projetos de


educação para o ambiente e a saúde também impulsionaram uma proposta desenvolvida

216
2 Nos referimos ao trabalho apresentado no Fórum Internacional de Pedagogia (FIPED) em 2016.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


em Mamanguape-Paraíba. O “Projeto Saúde e Ecologia” implantado na Escola Municipal
Adailton Coelho objetivou a promoção de conhecimentos e práticas de saúde aliadas à es-
cola, na busca de transformação social. O projeto se fundamenta na iniciativa das Escolas
Promotoras de Saúde3. O grupo foi composto por 15 colaboradores: alunos de ecologia,
docentes da UFPB, farmacêutica e Enfermeira com a intenção de beneficiar 315 alunos com
a realização de seminários e oficinas de trabalho sobre higiene corporal e ambiental, para
permitir a aquisição de hábitos de proteção do planeta e que promovam a saúde e evitem
doenças (MELO, 2010).
No Ceará, tivemos em 2016, uma grande ação promovida pelo PSE que foi a campa-
nha “Comunidade Escolar Mobilizada contra o Aedes aegypt”. A ação teve a participação
de 1,2 milhão de estudantes. A ideia está alicerçada na compreensão de que o aluno tem
um grande potencial de influenciar as famílias, ou seja, conseguem promover a saúde junto
as famílias através da mudança de hábitos. O cuidado com o meio ambiente, impede a pro-
liferação do mosquito, reduzindo as doenças que o tem como transmissor como: dengue,
zika e chicungunya.

DISCUSSÃO

Conforme indicado o PSE resulta do trabalho integrado entre o Ministério da Saúde e o


Ministério da Educação, na perspectiva de ampliar as ações específicas de saúde aos alunos
da rede pública de ensino: Ensino Fundamental, Ensino Médio, Rede Federal de Educação
Profissional e Tecnológica, Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2007).
Os principais objetivos deste Programa são (BRASIL, 2009, p. 12 e 13):

I. Promover a saúde e a cultura de paz, reforçando a prevenção de agravos à saúde;


II. Articular as ações da rede pública de saúde com as ações da rede pública de Edu-
cação Básica, de forma a ampliar o alcance e o impacto de suas ações relativas
aos estudantes e suas famílias, otimizando a utilização dos espaços, equipamentos
e recursos disponíveis;
III. Contribuir para a constituição de condições para a formação integral de educandos;
IV. Contribuir para a construção de sistema de atenção social, com foco na promoção
da cidadania e nos direitos humanos;
V. Fortalecer o enfrentamento das vulnerabilidades, no campo da saúde, que possam
comprometer o pleno desenvolvimento escolar;
VI. Promover a comunicação entre escolas e unidades de saúde, assegurando a troca
3 “As Escolas Promotoras de Saúde constituem uma iniciativa de caráter mundial [...] articulada pela Organização Mundial de Saúde

217
(OMS) [...]”

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


de informações sobre as condições de saúde dos estudantes;
VII. Fortalecer a participação comunitária nas políticas de Educação Básica e saúde,
nos três níveis de governo.

O 3o artigo do Decreto 6.286 (2007) explicita que o PSE constitui estratégia para a
integração e a articulação permanente entre as políticas e ações de educação e de saúde,
com a participação da comunidade escolar, envolvendo as equipes de saúde da família e da
educação básica. No artigo 4 o do mesmo decreto vemos que as ações em saúde previs-
tas no âmbito do PSE considerar o a atenção, promoção, prevenção e assistência, e serão
desenvolvidas articuladamente com a rede de educação pública básica e em conformidade
com os princípios e diretrizes do SUS.
O planejamento das ações do PSE deverá considerar:

I. o contexto escolar e social;


II. o diagnóstico local em saúde do escolar; e
III. a capacidade operativa em saúde do escolar.

Consideramos que no devir a fragmentação do conhecimento tenderá a ser substituída


por modelos integrativos. O PSE é uma iniciativa que articula educação e saúde, visando
essencialmente a prevenção de doenças, entretanto permite muitos ganhos como o diálogo
intersetorial, as reflexões sobre os contextos humanos, dentre outros. Compete a todos os
profissionais o conhecimento cada vez mais refletido acerca dessas políticas e programas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante refletir sobre a caminhada e o processo de articulação entre saúde e


educação, o que nos remete a pensar as formas de integração entre dois campos que estão
próximos no cotidiano, mas distantes na compreensão de um em relação ao outro.
Ações, serviços, projetos e programas como o PSE permitem uma aproximação ne-
cessária entre saúde e educação e demandam atividades integradas, que podem e devem
levar a uma melhoria da qualidade de vida dos beneficiados, por intermédio de ações pe-
dagógicas preventivas.
Dessa forma, esperamos com o estudo caracterizar o PSE e dar visibilidade ao pro-
grama para os profissionais de saúde e educação que ainda não estão familiarizados com
a articulação entre essas duas áreas de conhecimento.

218
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
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e necessária. Brasília: Ministério da Educação (Salto para o Futuro), 2009.

219
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
16
Relato de experiência: vivências do
projeto de extensão palestras de fim
de tarde

Ester Oliveira Silva Stephanny Caroline Mariano Teixeira


UNEMAT UNEMAT

Vitória Carolina Alves Pereira Mariana Lucatto


UNEMAT UNEMAT

Thayla Gabrielle Sampaio Pereira Rosane Maria Andrade Vasconcelos


UNEMAT UNEMAT

Carliene Sodré Magno França Kelis Estatiane de Campos


UNEMAT UNEMAT

10.37885/210202990
RESUMO

Este, tem como objetivo apresentar os resultados do projeto de extensão universitária,


intitulado Palestras de Fim de Tarde, desenvolvido por docentes e discentes do curso
de Bacharelado em Enfermagem e em parceria com docentes do curso de Ciências
da Computação de uma universidade pública do interior de Mato Grosso. O projeto,
Palestras de Fim de Tarde, contribui para o intercâmbio de conhecimentos científicos
dos participantes por meio de palestras advindas das experiências de seus pares, com
temas diversos para a prática profissional e de ensino preparando-os para o aprendi-
zado na organização de eventos, cursos e palestras. Como metodologia de trabalho os
membros do projeto realizaram encontros periódicos para a organização dos temas de
acordo com a indicação e escolhas do público alvo. Os encontros ocorreram semanal-
mente, todas as terças feiras, no horário das 17:20 às 18:50 horas nas dependências do
campus universitário. As palestras e cursos aconteceram mensalmente. Estar inserido
na extensão universitária é um privilégio capaz de melhorar as habilidades profissionais,
o ensino e o estimulo a pesquisa dos acadêmicos, ao proporcionar o desenvolvimento
técnico-científico, crítico e participativo que a extensão proporciona.

Palavras-chave: Comunicação, Educação, Extensão Universitária, Saúde.

221
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

De acordo com o Plano Nacional de Extensão Universitária, criado pelo Fórum de Pró-
Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras (FORPROEX) e pela Secretaria
do Ensino Superior do Ministério da Educação e do Desporto, no processo de formação
profissional “é imprescindível ao aluno sua efetiva interação com a sociedade, seja para se
situar historicamente, para se identificar culturalmente e/ou para referenciar sua formação
técnica com os problemas que um dia terá de enfrentar” (BRASIL, 2000/2001).
A extensão universitária é o processo educativo, cultural e científico, que articula o
ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre a
Universidade e a sociedade (FORPROEXT, 2007). Ela conduz o aluno e o professor há
oportunidade de aprimoramento dos estudos com a aproximação na sociedade sob um
olhar científico, ao incorporar aspectos novos trazidos do dia a dia, da dúvida coletiva, da
conscientização e da mistura cultural.
Tal fato, possibilita o conhecimento da necessidade social e possibilita a ampliação
de conhecimentos para a área de trabalho que futuramente esse aluno e ou profissional, irá
se inserir, ou seja, produz no aluno novos saberes e experiências que podem contribuir na
formação de um cidadão ativo, crítico, participativo e proativo (CASTRO, 2004).
Segundo Nunes e Silva (2012), a extensão universitária é um meio de interação que
deve existir entre a universidade e a comunidade visando o processo educativo, cultural e
científico no sentido de viabilizar uma relação renovadora entre universidade e sociedade
(Plano Nacional de Extensão Universitária, 2000/2001).
O Projeto de Extensão Palestras de Fim de Tarde foi criado para oportunizar aos dife-
rentes acadêmicos a oportunidade de ampliar conhecimentos, a interação com a sociedade
e a qualificação de seus membros na criação de eventos científicos. Deste modo, o presente
estudo tem por objetivo relatar a experiência vivenciada por um grupo de acadêmicos do
curso de Bacharelado em Enfermagem de uma universidade pública de ensino superior ao
realizar um Projeto de Extensão Universitário.

MATERIAIS E MÉTODOS

Características do Estudo

Trata-se de uma pesquisa descritiva, do tipo relato de experiência, que objetiva rela-
tar as experiências vivenciadas pelos bolsistas do projeto de extensão “Palestras de Fim
de Tarde”, acerca do planejamento, organização, divulgação e documentação de eventos
realizados no projeto.
222
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Segundo Gil (2008), o relato de experiência pertence ao domínio social da memoriza-
ção e documentação das experiências humanas, situando-as no tempo. Permitem ainda, a
descrição das vivências e a contextualização com a literatura. Zamberlan e Siqueira (2005)
descrevem ainda, que o relato de experiência propõe tornar visível e compartilhar com outros
profissionais e estudantes uma vivência prática.
Neste caso, será relatado a implementação do Projeto de Extensão “Palestras de Fim
de Tarde” na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) do campus Carlos Alberto
Reys Maldonado, em Cáceres.

A trajetória percorrida e o contexto da experiência

A ideia inicial surgiu após a experiência vivenciada pela docente/coordenadora deste


projeto na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto,
onde, eram realizadas palestras no período de almoço dos acadêmicos, que, por disporem
de Restaurante Universitário (RU) permitia a realização das mesmas naquele horário.
Ao reproduzir a ideia na UNEMAT, foram necessários realizar alguns ajustes, haja
vista que a universidade não dispõe de RU e por essa razão, os alunos voltavam para suas
casas no horário de almoço. Foi necessário, ainda, alterar o horário das palestras, optou-se
pelo final da tarde, após o término das aulas do período diurno. Inspirou- se assim, o nome
do projeto de extensão, Palestras de Fim de Tarde.
Para a concretização do projeto foi necessário institucionalizar a proposta. Realizou-se
a escrita baseado em formulário próprio criado pela UNEMAT. Deu-se o trâmite em todas
as instâncias universitárias.
A Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC) avaliou, aprovou e autorizou à reitoria a
emissão da portaria nº 4510/2017 UNEMAT, que institucionalizou o projeto a ser desenvolvido
no período de 12/07/2017 a 10/07/2019. A composição inicial foi: uma docente coordenadora,
dois docentes membros de equipe e sete colaboradores, entre estes, docentes e discentes
dos cursos de Bacharelado em Enfermagem e Bacharelado em Ciências da Computação
(UNEMAT, 2017). Atualmente o projeto está em sua segunda edição e conta com um quadro
de catorze discentes colaboradores, destes, dois recebem bolsas de iniciação científica pela
Fundação de Amparo à Pesquisa de Mato Grosso, três docentes fazem parte da equipe e
mantém a coordenação do projeto com uma docente.
O projeto realiza reuniões com seus membros semanalmente, às terças-feiras no horário
das 17:20 às 18:50 horas. Este horário foi definido estrategicamente para oportunizar aos
acadêmicos, docentes e profissionais da saúde, que trabalham durante o dia, a participação
nos eventos do projeto.

223
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Das atividades

As atividades desenvolvidas pelos bolsistas compreendem: organizar e planejar os


temas das palestras a serem realizadas mensalmente, formalizar o convite aos possíveis
profissionais palestrantes, realizar a divulgação das palestras, discutir as atividades que
serão abordadas nas mesmas e nos encontros subsequentes, bem como, as atividades
propostas e pertinentes ao encontro agendado.
Foi estimada uma carga horária para dedicação das atividades do projeto de 10 horas
semanais para o professor coordenador e seus colaboradores e de 5 horas para os demais
membros. Os eventos do projeto ocorrem sempre nas terceiras terças-feiras de cada mês.
Para que a comunidade acadêmica e externa pudesse participar dos eventos do projeto,
as inscrições foram disponibilizadas por meio do site do Sistema de Inscrição de Eventos e
Cursos da UNEMAT (SIEC). Contudo, antes dessa disponibilização, ocorria a divulgação do
evento criado pelo projeto via meios virtuais, entre eles: Facebook, Instagram e WhatsApp
de grupos dos membros do projeto, optou-se de igual forma, pela afixação de cartazes no
interior da universidade, arte esta, criada pelos membros do projeto.
As reuniões e palestras ocorriam na sala do 1º semestre do curso de Licenciatura em
Matemática, e nesses encontros, os participantes trocavam informações sobre o andamento
do processo das palestras oferecidas. Cada membro do projeto de extensão tinha a opor-
tunidade de coordenar uma palestra, com esta dinâmica os mesmos obtinham experiência,
aprendiam a dinâmica de criação do evento e o funcionamento de cada processo, ou seja,
trabalhavam tanto com a parte burocrática necessárias para a institucionalização do even-
to na instituição como também, adquiriam experiência de oratória durante a condução do
evento, haja vista, que todo o cerimonial era conduzido por um membro discente do pro-
jeto de extensão.
Durante o semestre letivo, na terceira terça-feira do mês, realizavam a palestra com a
oferta de 50 vagas gratuitas para ouvintes com a abordagem voltada, principalmente, para
a área da saúde, dando ênfase a temas atuais e polêmicos com o intuito de trazer o aperfei-
çoamento e atualização para estes ouvintes a partir da abordagem dos temas apresentados,
e propostos pelos próprios integrantes do projeto e pelos ouvintes das palestras.
Os palestrantes dos eventos eram pesquisadores, docentes de duas instituições de
ensino superior e/ou profissionais dos serviços de saúde de Cáceres e municípios vizinhos.
Ao término de cada palestra era solicitado aos ouvintes que preenchessem o formulário
de avaliação do evento. O certificado digital via SIEC era enviado ao e-mail cadastrado pelo
ouvinte em um prazo de aproximadamente duas semanas após o evento. O projeto não tinha
recursos externos. Contava com o apoio de recursos matérias da UNEMAT.

224
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
RESULTADOS E DISCUSSÃO

O Projeto de Extensão Palestras de Fim de Tarde, após sua institucionalização, em


2017 até o ano de 2019 ofertou um total de dez palestras e um curso, com os temas:
Envio de Protocolos ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNEMAT; Exemplificação do
Uso da Estatística na Área da Saúde; O Poder da Tecnologia Aplicada à Saúde; Recursos
essenciais para recuperação de artigos científicos em bases de dados da Saúde; Dietas
Hospitalares; A luta das mulheres contra a misoginia e machismo nos espaços de trabalho;
Desenvolvimento da prática de leitura de artigos científicos no âmbito das ciências da saú-
de; Cuidados de enfermagem no manejo de feridas complexas; Aplicação do Excel para
pesquisa; Pré-Natal do Homem: Paternidade e cuidado com a saúde e Currículo Lattes,
venha fazer o seu!
Em dois anos de Projeto, 436 pessoas participaram de eventos, entre discentes, do-
centes e profissionais externos à Unemat. Houve participantes dos cursos de Enfermagem,
Ciências da Computação, Ciências Biológicas, Pedagogia, Assistência Social, entre outros,
além de docentes dos cursos de Ciências da Computação e Enfermagem, pertencentes à
UNEMAT, Faculdade do Pantanal (FAPAN) e UNOPAR.
Em relação às atividades desenvolvidas, verificou-se que as ações contemplavam
duas linhas de conhecimento: a evolução dos acadêmicos bolsistas em relação às ativida-
des desenvolvidas no planejamento dos eventos e à evolução dos acadêmicos ouvintes em
relação às palestras ministradas.

Evolução dos Acadêmicos em relação as atividades de planejamento do evento

Segundo Manchur et al., (2013) os Projetos de Extensão têm como objetivo facilitar
a interação entre comunidade e universidade, contribuindo dessa maneira para adquirirem
conhecimentos que serão utilizados durante e após a graduação. Em relação às ações
realizadas no projeto, observa-se que as mesmas proporcionam entre os participantes a
troca mútua de conhecimentos e o diálogo horizontal, de suma importância para a cons-
trução de competências, habilidades e atitudes, frente à organização e participação de
eventos científicos.
Ao analisar as diretrizes específicas que nortearam a elaboração do projeto, no que
tange a natureza acadêmica, houve aprendizado e progresso de todos os membros, quanto
à coordenação e organização de eventos científicos em diversos âmbitos: enriquecimento
científico e intelectual sobre os assuntos abordados pelos palestrantes; conhecimento do que
é e como fazer um currículo lattes atualizado; aprendizagem em plataformas específicas ao
se criar um evento e emitir certificados; aprendizagem em estudos qualitativos e quantitativos
225
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
para redigir relatórios específicos para o projeto de extensão; aprender a trabalhar em grupos
e em equipe; importância de ter um bom relacionamento interpessoal e realizar análises
avaliativas das opiniões dos participantes do evento. Aprendizado na escrita científica de
resumo simples ou expandido, relatos de experiência e artigos científicos.
Foi oportunizado aos membros do projeto de extensão a participação em eventos cien-
tíficos no decorrer destes dois anos, entre eles: I Mostra de Pesquisa e Extensão; II Mostra
de Trabalhos sobre Mulheres; XVI Semana de Enfermagem; 8º Encontro Cacerense de
Economia Solidária, todos promovidos pela Universidade do Estado de Mato Grosso –
Campus de Cáceres, com a apresentação de comunicação em forma de banner.
Externos à UNEMAT, foram apresentados trabalhos no evento Novembro Azul:
Promovendo a saúde do Homem, realizada pela turma 2017/1 do curso de Bacharelado
em Enfermagem da UNEMAT; 22° Congresso Brasileiro dos Conselhos de Enfermagem
(CBCENF), na cidade de Foz do Iguaçu – PR; 7° Congresso Internacional de Educação na
cidade de Cáceres - MT.
Durante a criação do Projeto havia a ideia de que houvesse o mesmo número de pro-
fessor e aluno, para que, dessa forma, cada docente fosse o orientador de um discente e
assim, permitisse uma maior qualidade no ensino de extensão, no entanto, no decorrer do
tempo constatou-se que não havia necessidade já que existia um déficit de participação dos
docentes por não terem horários flexíveis dentro das reuniões semanais.
Em contrapartida, foi notório o interesse dos acadêmicos nas atividades realizadas no
projeto. Percebeu-se participação ativa em todos os processos, desde a divisão de funções
até o momento de realização do evento.
Castilho et al., (2014) relata que a importância do projeto de extensão para os acadê-
micos é notada pela quantidade de tempo que o estudante participa das ações, mesmo sem
receber bolsas. Atualmente, o projeto conta com apenas duas docentes atuantes que são
responsáveis por orientar todas as ações do Projeto de Extensão Palestra de Fim de Tarde.
Duarte et al., (2017) comenta que o respeito é algo primordial quando se realiza um tra-
balho cooperativo e que aprender a ouvir e aceitar o posicionamento do outro é um processo
de aprendizado. Aprender a trabalhar em equipe é difícil já que existem opiniões diferentes,
mas os membros do projeto nesses quatro semestres demonstraram saber trabalhar com a
diversidade de cada indivíduo e aproveitar o melhor de cada.
Os membros do projeto tiveram a oportunidade de participar como coordenador de
evento. Exerciam o papel de líder responsável pela organização do evento e da distribuição
de funções para os bolsistas voluntários.
Para cada semestre de participação, o aluno pode flexibilizar os créditos, que sig-
nifica obtê-los pelas horas trabalhadas e que poderão ser incluídos no seu histórico, ou
226
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
então, receber uma declaração de participação no projeto para incluir no curriculum vitae.
(CASTILHO et al., 2014).

Evolução dos acadêmicos em relação as palestras ministradas

No quadro a seguir apresentamos a distribuição de participantes presentes conforme


as palestras ministradas desde 27 de setembro de 2017 até 30 de outubro de 2019.

Tabela 1.Distribuição dos participantes nos eventos do Projeto de Extensão Palestra de Fim de Tarde no período de
2017-2019, Cáceres – MT.
Participantes
Palestras
Presentes

Envio de Protocolos ao Comitê de Ética em Pesquisa da UNEMAT


37
Exemplificação do Uso da Estatística na Área da Saúde 32
O Poder da Tecnologia Aplicada à Saúde 39
Recursos essenciais para recuperação de artigos científicos em bases de dados
17
de da Saúde
Dietas Hospitalares 30
A luta das mulheres contra a misoginia e machismo nos espaços de trabalho 33
I Desenvolvimento da prática de leitura de artigos científicos no âmbito da
54
Ciências da Saúde
Cuidados de Enfermagem no Manejo de Feridas Complexas 59
Aplicação do Excel para Pesquisa 45
Pré-Natal do Homem: Paternidade e cuidado com a saúde 67
Currículos Lattes, venha fazer o seu! 23

A partir da evolução dos números de participantes nos eventos, podemos perceber


que, aos olhos do público alvo, as palestras vêm provocando interesse e procura para par-
ticipação nos eventos.
Nesses dois anos, o projeto conseguiu manter uma quantidade boa de ouvintes, sendo
que o menor número de participação foram 17 pessoas na quarta palestra “Recursos essen-
ciais para recuperação de artigos científicos em bases de dados de da Saúde” e a maior,
com 67 participantes, foi na décima palestra “Pré-Natal do Homem: Paternidade e cuidado
com a saúde”. A média de participação nas palestras teve um total de 34,85 ouvintes. Sendo
assim, os números mostram que o projeto mostrou- se atraente ao público. Em um universo
de 50 vagas ofertadas, foi possível ter mais da metade do número de vagas preenchidas,
algumas vezes este número foi excedido.
Em relação às palestras apresentadas podem-se dizer que as temáticas contribuíram
para o aperfeiçoamento, capacitação e aprendizado dos acadêmicos. Os temas ministrados
foram com base em pedidos realizados pelos ouvintes, e por se tratar de assuntos em que
a equipe do projeto percebeu serem pertinentes, quer por estarem na mídia, quer por ajudar
na formação universitária.

227
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
As palestras ministradas permitem que tanto os participantes como os membros do
projeto recebam um enriquecimento cientifico e intelectual, ao buscar temas atuais com
palestrantes de renome e com grande importância para a vida acadêmica de todos.
A prática de ensino interno aborda diversos temas fundamentais ao aluno e estimula a
prática da docência, bem como, a participação em cursos, capacitam o acadêmico a atuar
com segurança e embasamento teórico, tornando-o um importante disseminador de conhe-
cimento (OLIVEIRA et al., 2017).
O Projeto e as palestras permitem aos voluntários a capacidade de produzir resumos e
artigos científicos para apresentação e publicação. É uma ótima oportunidade para melhorar
o currículo Lattes, algo desconhecido para os acadêmicos voluntários.
A partir do relato de alguns discentes voluntários e bolsistas, foi possível compreender
o quanto o projeto de extensão, Palestras de Fim de Tarde, foi importante para vida pessoal
e profissional destes acadêmicos.
“Participar do Projeto Palestras para mim é ter objetivos a serem realizados em parceria,
colhendo resultados extraordinários que completam o complexo ser humano social que as
pessoas devem desenvolver”. (E1, F, 21 anos)
“Hoje vejo minha experiência no Projeto como uma oportunidade singular, em que
tive a autonomia de coordenador evento, interagir com o público, melhorar minha oratória,
desenvolver trabalhos, e ser reconhecida financeiramente”. (E2, F, 21 anos)
“Entrei no Projeto em um momento delicado na minha vida. Buscava me dedicar total-
mente a vida acadêmica, acabei criando um vínculo social melhor que o esperado, abrindo
novas oportunidades fora do projeto. Pude aprimorar meus conhecimentos e otimizar meu
currículo.” (E3, F, 22 anos)
“O Projeto faz minha trajetória acadêmica. Escrever, publicar, trabalhar em equipe, coor-
denar e ser coordenado, organização, essas são apenas alguns dos muitos ensinamentos
que tirei deste projeto. O Palestra de Fim de Tarde é transformar vidas por meio de ações
com os docentes, discentes e comunidade.” (E4, F, 21 anos)
“O projeto foi importante para que eu mudasse a concepção que universidade é apenas
vivenciada em sala de aulas com conteúdos teóricos. Aprendi que para experienciar a uni-
versidade como um todo é necessário o desenvolvimento de questões para a comunidade
externa, como educação em saúde. E que na enfermagem, ter uma carga de extensão é
muito importante não somente pelas horas curriculares, mas para aprender a trabalhar em
equipe e resolver conflitos, atividades que logo mais iremos desenvolver na nossa vida pro-
fissional. Aprendi principalmente com meus erros, e percebi que tenho uma peculiaridade
na minha personalidade que é ser controladora das situações. Para o mal ou para o bem,
eu entendi essa dinâmica e hoje tento mantê-la equilibrada”. (E5, F, 21 anos)
“Participar de um projeto de extensão me proporcionou experiências e aprendizados
incríveis, aprendi a escrever e fiz minha primeira publicação através do Projeto Palestras de
228
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Fim de Tarde, um desses trabalhos tive a oportunidade de apresentar no maior congresso
de enfermagem da América Latina o Congresso Brasileiro dos Conselhos de Enfermagem
(CBCENF), aprendi muito e continuo aprendendo cada vez mais com meus colegas e pro-
fessores atuantes nesses projetos”. (E6, F, 25 anos)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados desse relato comprovam a importância da existência de projetos de


extensão universitária e do envolvimento dos discentes nestas atividades. Ele exerce um
papel fundamental na vida acadêmica de diversos discentes que tiveram a oportunidade
de conhecer a extensão. Suas ações repercutiram no meio acadêmico, ao perceber a par-
ticipação assídua nos eventos realizados pelo projeto, reflexo visível no número de inscri-
tos a cada evento.
O fator limitante para a realização do projeto de extensão está na ausência de um
local apropriado dentro do campus universitário para a realização de eventos. São poucos
os espaços para palestras próximos às salas de aula, que comporte o número de inscritos,
e no horário que acontece o projeto..
A participação de discentes em projetos de extensão universitária oportuniza o con-
tato com a sociedade nos diversos contextos sociais e conhecimentos em inúmeras áreas
e situações que jamais pensaria vivenciar na graduação, quer seja no ensino, na pes-
quisa e extensão.

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230
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
17
EEF São Cristóvão contra a fome e o
desperdício: Desperdício alimentar na
merenda escolar

Silvana Alvarenga Lima de Oliveira


EJA/PROEJA

10.37885/201202472
RESUMO

A matemática está presente nos espaços sociais, fazendo parte da vida humana. Ela é
uma linguagem e como tal, tem que ser valorizada, começando pelo âmbito escolar que
é responsável pela educação formal. Com base nesses pressupostos, foi elaborado o
questionamento científico dessa pesquisa: Como o indicador da ONU (Organização das
Nações Unidas) Pobreza e Fome, poderia movimentar a comunidade escolar? Atrelado
ao questionamento, o objetivo central da pesquisa foi analisar a importância do desperdí-
cio alimentar. Para viabilizar tal propósito, procurou-se conceituar a educação alimentar,
descrever a história do desperdício alimentar no Brasil, identificar as diversas vertentes de
pesquisadores sobre esse tema. Para tanto, essa pesquisa teve um cunho bibliográfico e
prático, aproveitando as contribuições de todos os pesquisadores que ousaram discutir o
tema e sua real necessidade para o campo educacional e a vida social dos participantes.

Palavras-chave: Fome, Desperdício, Merenda Escolar.

232
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Foi proposto à turma do oitavo ano (802), composta por 24 alunos, da escola EEF São
Cristóvão, situada na Rua Cardeal Arco Verde, número 233, bairro São Cristóvão – Criciúma/
SC, um trabalho que envolvesse os indicadores da ONU “Fome e Pobreza”; “Desemprego/
Sustentabilidade Económica”; “Saúde”; “População sénior”; “Conviver com a diferença”;
“Sustentabilidade ambiental”; “Parceria global para o desenvolvimento humano”. O indicador
escolhido foi “Fome e Pobreza”. Constantes relatórios da ONU indicam que 25 milhões de
seres humanos entram anualmente para baixo do nível de pobreza estipulado pela organi-
zação e um (1) bilhão e 300 milhões de pessoas vivem com menos de um (1) dólar/dia. Uma
a cada oito pessoas passa fome no mundo. Um terço de todo alimento que é produzido no
mundo é desperdiçado. 58% compostos por comida. Cerca de 41 mil toneladas de alimen-
tos são desperdiçadas por ano (Dados da Embrapa). Tal dado coloca o Brasil entre os 10
países que mais desperdiçam alimentos no mundo. O planeta produz alimentos suficientes
para alimentar 12 bilhões de pessoas, sendo que, atualmente, somos 7 bilhões e em 2050
seremos 9 bilhões, caso não houvesse desperdício, haveria alimentos para todos os habi-
tantes do planeta (Dados do IBGE, Embrapa, FAO).
O problema é que quando falamos em desperdício, não estamos tratando apenas do
alimento em si, mas também das perdas durante todo o processo de produção (água, ferti-
lizantes, dinheiro, mão de obra, combustíveis, tempo).
Muito do que é desperdiçado, principalmente no comércio, não é necessariamente
impróprio para consumo, as frutas amassadas e os restos das feiras/restaurantes podem e
devem ser reaproveitados, isso não acontece devido às políticas públicas. O Brasil não tem
uma política nacional que regule o combate ao desperdício de alimentos, mas, na Câmara
dos Deputados, tramitam atualmente quase 30 projetos de lei com esse objetivo. No entanto,
divergências em torno do tema impedem o avanço das propostas, por exemplo, a punição
civil e criminal de doadores de alimentos.
A educação alimentar da sociedade em que vivemos merece mais atenção. Nossos
jovens têm vivido uma transformação global, e em meio a tantas vertentes oferecidas, ex-
perimentam uma aceleração histórica, onde o desenvolvimento dos pilares familiares estão
se perdendo. Portanto, há a importância de oferecer aos alunos uma forma de eles mesmos
buscarem os valores necessários para a nova sociedade multifaces. O tema tem como ob-
jetivo, comover a comunidade escolar com relação à fome no mundo, logo conseguir uma
movimentação positiva tocante ao desperdício na merenda escolar.
Fabrício Campos – da Global Footprint Network – apresentou o tema “Equilíbrio entre
produção e conservação”. Abordou a pegada ecológica brasileira e a necessidade de usar os
recursos renováveis disponíveis, agricultura, pastagens, estoques pesqueiros, infraestrutura
233
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
urbana e os serviços ecológicos. Fabrício Campos comparou os hábitos alimentares de
seis famílias em países de costumes distintos, mostrando como a educação alimentar pode
contribuir para diminuir o consumo do capital original do planeta. “Estamos danificando o
sistema na medida em que gastamos mais do que temos de reserva”, alertou. Para ele, o
problema não é tecnológico, mas, social e político.
Uma quantidade mensurada de alimentos é desperdiçada diariamente na merenda
escolar. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), conhecido como “merenda
escolar”, é promovido pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e visa à
transferência, e tem a propriedade adicional, de recursos financeiros aos estados, ao Distrito
Federal e aos municípios destinados a preencher, parcialmente, as deficiências alimentares
dos alunos. Está entre os maiores programas do mundo no que se refere à merenda escolar.
Durante a pesquisa científica para a construção do trabalho, observamos a sensibilidade
dos alunos de acordo com as descobertas dos dados, a preocupação com tamanho desca-
so ficava explícita nos momentos de debate, soluções extremas foram propostas e quando
pesquisavam a viabilidade de suas ideias, constatavam normas de vigilância sanitária, leis
estaduais e municipais que impediam suas soluções simples. Foi um momento único de
compreensão da vida em sociedade e seus princípios.
A consolidação dos dados da pesquisa científica aconteceu no momento do intervalo
orientado (recreio), a escola possui um projeto onde os alunos, em forma de patrulha, alter-
nam-se na orientação dos bons costumes. O simples fato de transitarem durante esse período
com o intuito de orientação e não intervenção, já inibe certas práticas de risco, contudo a
alimentação não era uma preocupação. Essa orientação ficava a cargo de alguns profes-
sores. Nesse momento, define-se a prática do trabalho com a enumeração do desperdício
na merenda escolar.
A maioria das pessoas lida com conceito aritmético de forma bastante familiar e intuitiva,
mesmo aquelas que nunca tiveram acesso à escola. Na escola, a média faz parte da vida
escolar dos alunos. Grande parte vive calculando-a para analisar as chances de passar de
ano sem recuperação, ou reprovação. Todavia, apesar do aparente bom conhecimento do
conceito médio aritmético, observa-se que tal refere-se, via de regra, ao domínio do algorit-
mo: “soma os valores e divide pelo número de dados envolvidos na soma”. Sua formulação
matemática (média simples) consiste em somar todos os valores da variável e dividir pelo
número de observações envolvido na soma. Nesse trabalho tivemos a chance de trabalhar
a média aritmética com um conjunto de dados específicos.
No dia 16/05/2018 os alunos iniciaram os trabalhos de coletas de dados, essa coleta
foi feita no refeitório da escola EEF São Cristóvão, situada na Rua Cardeal Arco Verde, nú-
mero 233, bairro São Cristóvão – Criciúma/SC. Durante o período de 30 dias alternados, o
234
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
grupo se revezou para adquirir os dados necessários para o cálculo da média aritmética por
amostra. O material utilizado foi duas balanças simples. O procedimento de quantificação
de o desperdício alimentar pelo método de pesagem foi efetuado para análise do desapro-
veitamento da alimentação na comunidade escolar. Todos os procedimentos de pesagem
foram realizados individualmente para cada três alunos aleatórios. Utilizando uma balança
mecânica. A proporção de desperdício alimentar foi calculada pela razão entre a quantidade
de alimentos desperdiçada e a quantidade de alimentos fornecida.
Tabelas de pesagem EEF São Cristóvão
DATA PRATO 1 PRATO 2 PRATO 3 Nº DE REF. DESPERDÍCIO
16/05 180g 170g 173g 121 4,5kg
18/05 200g 225g 175g 196 3,9kg
21/05 300g 375g 350g 127 4,5kg
23/05 400g 380g 200g 173 3,9kg
04/06 250g 249g 200g 146 4,0kg
06/06 360g 300g 200g 132 5,1kg
11/06 225g 230g 227g 112 5,7kg
13/06 200g 150g 100g 148 3,0kg
15/06 310g 340g 200g 159 4,5kg

Com os números, foi o momento de processar as informações. Os alunos usaram a


média aritmética, com intenção de quantificar uma média do peso de cada refeição. Observe
a tabela abaixo para verificar os resultados.
DATA MÉDIA ARITMÉTICA REF. SERVIDA DESPERDÍCIO
16/05 0,174kg 21,1kg 4,5kg
18/05 0,200kg 39,2kg 5,5kg
21/05 0,341kg 43,39kg 4,5kg
23/05 0,326kg 56,51kg 3,9kg
04/06 0,233kg 34,06kg 4,0kg
06/06 0,287kg 37,84kg 5,1kg
11/06 0,225kg 25,20kg 5,7kg
13/06 0,150kg 20,93kg 4,5kg
15/06 0,283kg 45,05kg 4,5kg

Retomando o mesmo procedimento com a utilização da média aritmética, originou-se


uma tabela final, com o intuito de realizar uma estimativa aproximada do desperdício na
escola. Com estes dados, foi estimado o desperdício obtido em um dia/aula, considerando
que cada aluno faça uma refeição na escola. Automaticamente, é possível visualizar quanto
pode ser economizado valorizando e investindo na educação alimentar dos alunos.

MÉDIA ARITMÉTICA Nº de Ref. COMIDA SERVIDA DESPERDÍCIO

0,250kg 146 unid. 35,14kg 4,68kg

A escola EEF São Cristóvão, situada na Rua Cardeal Arco Verde, número 233, bairro
São Cristóvão – Criciúma/SC possui atualmente 235 alunos com a média de 146 refeições

235
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
servidas diariamente no período do almoço, portanto 62,13% dos alunos estão presentes
nesse momento na escola, beneficiando-se das refeições servidas no refeitório.
A 20ª Gerencia de Educação do estado de Santa Catarina é composta por 29.217
alunos (Dados do censo escolar 2017), considerando que 62,13% desses alunos façam
uma refeição escolar diariamente, temos um total de 18.152 refeições servidas em algum
momento do dia. Com base nos valores encontrados na escola EEF São Cristóvão usando
o método de estimativa, originou-se a tabela de comparação abaixo:

REF. SERVIDAS MÉDIA P/REF. DESPERDÍCIO


EEF SÃO CRISTÓVÃO 146 unid. 0,250kg 4,68kg
GERED CRICIÚMA 18.152 unid. 0,250kg 547,1kg

Nesse momento, os resultados da pesquisa causam grande indignação nos alunos,


juntos a uma aula de discussão dos resultados, os mesmos começaram a traçar um plano
de intervenção. Tal processo envolveu palestra de conscientização para os membros da
comunidade escolar, cartazes lembrando os temas abordados nas palestras, conversas com
professores de outras áreas de conhecimento, doação de alimentos entregue na VI feira
regional de Matemática ao município de Cocal do Sul e outros eventos menores que acon-
teceram simultaneamente na comunidade escolar.
A premiação do projeto como destaque com indicação na XXXIV feria Catarinense de
Matemática, impulsiona os alunos a trabalharem mais dentro do projeto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa permitiu delinear uma linha de investigação no âmbito das refeições esco-
lares, envolvendo a quantificação do desperdício alimentar no almoço fornecido na escola
EEF São Cristóvão. Fica claro que 547,1kg de alimentos desperdiçados todos os dias na
GERED de Criciúma é uma quantidade bem expressiva, mas, o importante está nos dados
da primeira tabela, em que ficou claro que o desperdício não está em função do aumento do
número de refeição servida. No dia 18/05/2018 foram servidas 196 refeições com acumulo
de desperdício de 3,9kg, contudo no dia 11/06/2018 em que o total de refeições servidas foi
112 o acúmulo de desperdício se caracterizou em 5,7kg. O problema gerador do desperdício
está na Educação Alimentar, comprovando a teoria de Fabricio Campos, quando compa-
rou os hábitos alimentares de seis famílias em países de costumes distintos, mostrando
como a educação alimentar pode contribuir para diminuir o consumo do capital original do
planeta. Outro dado preocupante é que grande parte deste desperdício está relacionado à
merenda escolar, um grande motivo para reflexão. Observamos uma mudança significativa
na sociedade escolar, contudo entendemos que tais fatos consistem em persistência, pois
236
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
o ato de desperdiçar tornou-se impercebível na sociedade atual, nesse sentido, programas
que visem à sustentabilidade das famílias e o desenvolvimento do futuro do planeta são
importantes para a formação de cidadãos críticos e participativos em uma sociedade futura.
Com esse pensamento, levamos nosso projeto à comunidade escolar EEB Natálio Vassoler,
onde a professora de matemática Valdirene Fernandez recebeu o desafio de seguir outras
vertentes da pesquisa. O que pretendemos é que no ano seguinte outra escola trabalhe o
mesmo tema, utilizando as pesquisas anteriores para ampliar os conhecimentos dos alu-
nos, criando assim um efeito onda na sociedade escolar da nossa região com conceitos de
pesquisas dos próprios alunos.

AGRADECIMENTOS

Dirijo às pessoas е/оυ instituições qυе contribuíram pаrа а elaboração do trabalho, aos
alunos que receberam e abraçaram o projeto com seriedade e dedicação, a todo o corpo
docente da escola, em especial às professoras Ariela Borges, Andriele Geremias, Giuliana
de Bona, além da direção e administração pedagógica Claudinéia Nazário, Dilnéia Nazário e
Fernanda Spader que me proporcionaram as condições necessárias para que eu alcançasse
meus objetivos, à merendeira Peles Cristina Lopes, pelo carinho com os alunos durante a
coleta de dados e à professora Gislaine Marcolino pela correção do texto.

REFERÊNCIAS
1. www.agenciajovem.org/wp/tag/global-footprint-network/

2. www.escolassolidarias.pt/site/o-que-e/projeto

3. www.ibge.gov.br

4. www.onu.fao.br

5. www.portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/profunc/12_pol_aliment_escol.pd

237
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
18
a epidemia de febre amarela no Rio
de Janeiro em 1850 – medo, morte e
morbidade nos espaços da cidade

Fernando Lobo Lemes


UEG

10.37885/201202644
RESUMO

A partir do estudo sobre a epidemia de Febre Amarela ocorrida no Rio de Janeiro em


1850, procurou-se relacionar a temática da epidemia com aquela da família, perseguindo
basicamente dois objetivos: (1) inserir as atitudes dos habitantes da cidade num modelo
mais amplo, analisando-as por meio de uma tipologia dos comportamentos coletivos e (2)
encontrar os indícios de uma deterioração nas relações sociais da cidade, presente em
suas instâncias econômicas e políticas. De uma população total de 266.466 habitantes,
mais de 1/3 foram prostrados nos leitos de suas casas e nos hospitais. As mais de 4
mil mortes, ao longo dos oito meses da epidemia, foram responsáveis por quase 40 por
cento da mortalidade total computada para o ano de 1850. Neste caso, a degeneração
do ambiente familiar, detona a paralisação parcial das estruturas constituintes da socie-
dade. A pesquisa bibliográfica e a interpretação das fontes documentais que registraram
as representações e as sensibilidades dos atores, nortearam a metodologia da pesquisa.

Palavras-chave: Epidemia, Febre Amarela, Rio de Janeiro, História do Brasil.

239
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Os estudos que tratam das epidemias ocorridas ao longo da história da civilização oci-
dental têm avançado continuadamente, o espaço dedicado ao assunto pelos historiadores
tem sido bastante ampliado e tem crescido na medida em que a importância ocupada pelo
tema assume cada vez maior vulto na historiografia contemporânea.
Não se dá de outra forma com os estudos sobre história da família. Partindo de vários
enfoques, de diferentes perspectivas, a historiografia ocidental tem priorizado constantemente
pesquisas que envolvem a família, bem como outras variantes relacionadas de uma forma
ou outra com o assunto.
No Brasil, a preocupação com ambos os temas tem se revelado com certa assiduidade
nos trabalhos produzidos, embora ainda muito esteja por ser feito.
Neste ensaio procuramos relacionar a temática da epidemia com aquela da família,
perseguindo basicamente dois objetivos.
Em primeiro lugar, ao tratar da epidemia de Febre Amarela que surpreendeu os ha-
bitantes da cidade imperial do Rio de Janeiro em meados do século XIX, propomos a pos-
sibilidade de inserir as atitudes e comportamentos ali manifestos num modelo mais amplo
construído pelo historiador francês Jean Delumeau, analisando-o a partir de uma tipologia
dos comportamentos coletivos em tempo de peste.
A epidemia do Rio de 1850, devido às dimensões e formas que tomou em seu percurso,
parece não se diferenciar essencialmente de outras grandes pestes que, por seus conside-
ráveis estragos e amplas repercussões, assumiram relevância significativa para os historia-
dores, bem como para a historiografia das respectivas nações e/ou regiões onde ocorreram.
Acreditamos, portanto, podermos encontrar no flagelo que se abateu sobre a corte
do Império, em 1850, efeitos esmagadores na organização social da cidade, a exemplo de
outros grandes eventos epidêmicos conhecidos e já estudados.
Mesmo porque, o acesso às informações sobre a epidemia do Rio nos leva a perceber
a forte incidência da febre, que desferiu seu poder em todas as direções e sentidos possíveis,
chegando a atingir provavelmente a totalidade das famílias existentes à época na cidade.
A enormidade de seus estragos e o vulto das conseqüências que engendrou podem
ser facilmente imaginados: de uma população total de 266.466 habitantes, mais de 1/3, ou
seja, cerca de 94 mil pessoas foram prostradas nos leitos de suas casas e nos hospitais da
cidade. As mais de 4 mil mortes, ao longo dos oito meses em que persistiu a epidemia, foram
responsáveis por quase 40 por cento da mortalidade total computada para o ano de 1850.
Em segundo lugar, ao identificarmos uma certa desorganização dos grupos familiares
por força da epidemia, julgamos também poder encontrar os indícios de uma deterioração

240
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
momentânea nas relações sociais da cidade, alcançando inclusive suas instâncias econô-
micas e políticas.
Acreditamos, pois, que a degeneração das referências e dos laços mais ternos no âm-
bito do ambiente familiar, nos momentos mais agudos e mais intensos do ataque epidêmico,
é que parecem dar início e mesmo provocar a paralisação ao menos parcial das demais
estruturas constituintes da sociedade.
É, pois, neste núcleo essencial, na família, que poderemos detectar e sentir a intensi-
dade do flagelo. Pois, ao ataque cada vez mais intenso às famílias, pela força contagiante
e destruidora da epidemia, correspondia, proporcionalmente, o funcionamento precário e
decadente das instituições e dos serviços urbanos existentes na cidade.
Assim, tendo sempre como pano de fundo as estruturas familiares, insistentemente
citadas nas referências contemporâneas do flagelo, é que perseguiremos os rastros de horror
e morte deixados pela epidemia.
Desta forma, associando ao estudo da epidemia de 1850 as condições de existência das
famílias durante a propagação incontrolável da Febre Amarela, sugerimos a possibilidade do
estabelecimento de uma relação entre essas duas temáticas distintas, mas colocadas agora
num espaço comum, num mesmo plano e apreendidas num mesmo momento de análise.

METODOLOGIA

A metodologia empregada neste estudo está associada, em primeiro lugar, aos recur-
sos oferecidos pela pesquisa bibliográfica, utilizada para ampliar e dominar o conhecimento
disponível, visando compreender melhor o tema estudado, buscando obter familiaridade
sobre assunto e oferecer informações mais precisas para a investigação, fundamentando a
análise e discussão dos resultados da pesquisa. Em segundo lugar, a abordagem propos-
ta está também associada à historiografia do discurso que visa interpretar os vestígios e
traços dos acontecimentos, das decisões e das escolhas que indicam as representações e
as sensibilidades dos atores, registrados nas fontes e documentos textuais, com o objetivo
de compreender a sociedade nos quais foram produzidos. Procedimentos Metodológicos:
pesquisa bibliográfica e técnicas de leitura; mapeamento e classificação de textos e docu-
mentos; análise e interpretação de dados e revisão bibliográfica.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
RESULTADOS E DISCUSSÃO

As Epidemias na História

Desde épocas longínquas a fome, aliada às guerras e epidemias, tem se constituído


num mecanismo que impõe à vida um ritmo que regula sua expansão, tendo produzido
grandes mortandades nas populações do passado. A respeito dessa tríade devastadora,
acrescenta um historiador francês: “Se medirmos as crises demográficas pelas mortes que
provocaram, sabemos hoje que as guerras e as fomes têm, de forma geral, efeitos bem
menores do que as epidemias” (BIRABEN apud MARCÍLIO, 1984, p. 110). Examinando
melhor a história podemos constatar que desde tempos remotos temos notícias de pragas
e epidemias a causar danos às sociedades, como o demonstra, por exemplo, o Antigo
Testamento, cujos textos estão plenos destas narrativas, e mesmo na Antiguidade, tendo
sido atingido com certa freqüência as regiões próximas ao litoral do mar Mediterrâneo.
O elenco de doenças epidêmicas que por suas dimensões altamente comprometedo-
ras provocaram grandes alterações e profundas rupturas em momentos cruciais nas mais
diversas aglomerações humanas é reconhecidamente vasto e bastante extenso.
Contudo, ainda hoje, de forma mais genérica, a única grande epidemia tradicional-
mente considerada pelos historiadores com a devida importância é a já conhecida e larga-
mente estudada Peste Negra que invadiu e flagelou grande parte da população européia
na Idade Média, sendo invocada pelos estudiosos “[...] para explicar algumas das grandes
mudanças políticas, demográficas, econômicas ou sociais do passado” (BIRABEN apud
MARCÍLIO, 1984, p. 110).
Não obstante, algumas doenças de caráter epidêmico ou permanentemente endêmi-
cas assumem importante papel para o estudo mais recente da história das sociedades e
populações ocidentais, obtendo destacadas análises por parte de estudiosos do passado.
A varíola, por exemplo, mal antigo, fez consideráveis e importantes vítimas, como Luiz
XV, rei da França, quando, no século XVIII, encontrou dificuldades para desenvolver-se devi-
do aos avanços médico-terapêuticos nas formas e nos métodos de combatê-la. Prosseguiu,
entretanto, sua mórbida trajetória durante todo o século XIX para somente no início do sé-
culo XX ser completamente controlada nas nações ocidentais mais pobres.
Originário dos vales do Ganges e do Brahmaputra, seguindo por vias terrestres e ma-
rítimas, o colera-morbus alcançou a Europa na terceira década do século XIX. Nas palavras
de Alain Becchia, “La vague de ‘cholera-morbus’ qui atteingnait la France em 1832 fut la
première des sept pandémies cholériques qui frappèrent l’europe aux XIXe e XXe siècles”
(BECCHIA, 1990, p. 53). Da Europa o vibrião colérico estendeu-se ao outro lado do Atlântico,
ampliando sempre seu caminho e fazendo ao longo de suas trilhas incontáveis vítimas.
242
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Encontrada em regiões tropicais e subtropicais da África e América, a Febre-Amarela,
outra moléstia que tem ocupado espaço na produção científica e acadêmica relativa às
grandes epidemias, já incidiu de forma bastante significativa em áreas temperadas. Apesar
de reconhecido seu agente transmissor (o mosquito Aedes Aegypti), a teoria de sua origem
ainda hoje é causa de inúmeras controvérsias.
Não havendo indícios da existência dessa febre ou de sua manifestação na Antigüidade,
parece ter ocorrido entre os séculos XV e XVII nas áreas centrais da América, para reapare-
cer durante o século XIX com intensidade suficiente para provocar verdadeiras catástrofes.
Abateu-se também sobre a Filadélfia, Montevidéu, Buenos Aires e Lisboa (FRANCO, 1969).
No Brasil, as três doenças referidas não deixaram de fazer seus estragos. Rota da
morte que segue na esteira das epidemias devastadoras, aqui a varíola, mais conhecida
como “bexiga” ou “varicela”, projetou seus efeitos desde o século XVI, sendo reconhecida
sua presença endêmica no Rio de Janeiro, desde o começo do século XVII (MEIHR, 1990).
Durante o século XIX, manteve presença assídua até sua erradicação, já na aurora do século
XX, através das medidas saneadoras de Osvaldo Cruz.
Quanto ao “cólera-morbo”, provocou aqui uma das maiores epidemias do século XIX,
atingindo implacavelmente incontáveis regiões do país. Existem estudos pontuais sobre
sua incidência, particularmente na Bahia, levando em conta, inclusive, suas conseqüências
no âmbito do processo produtivo da província, cuja população foi profundamente afetada
(MATTOSO, 1973).
Com relação à Febre Amarela, análises específicas de seu aparecimento em forma de
epidemia na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil podem ser encontradas em alguns autores,
já que se constituiu, provavelmente, na mais importante epidemia registrada na história do
Brasil, devido, por um lado, às suas características bastante específicas e, por outro, por ter
incidido de forma absolutamente brutal em todo o reino durante o século XIX e, de maneira
particular, na cidade do Rio de Janeiro, a corte do Império.
Todas essas doenças, entre outras, que em determinadas épocas emergiram sob a
forma epidêmica, zombando e desafiando os povos, em momento algum se mostraram com-
placentes com os sofrimentos humanos ou com a ordem estabelecida de seus agrupamentos.
Quando não eliminaram parte considerável da população através da presença apavo-
rante da morte anunciada, premeditada, mas ao mesmo tempo repentina, deitaram sobre
leitos mórbidos, sem esperanças, famílias inteiras, vilas e cidades, com a promessa silenciosa
de um fim próximo, arrebatador e inevitável.
Dessa forma, as epidemias, a seu modo e durante o tempo de sua atuação, alteraram
comportamentos e atitudes, interferiram na ordem do poder, atingiram o processo produtivo e
passaram a representar, portanto, momentos de importância ímpar na história, revestindo-se
243
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
da necessidade de serem compreendidas nos contextos em que afloram, em toda a sua
complexidade e força, tornando-se objetos para a análise dos quais os pesquisadores do
passado não podem prescindir.

Epidemia e Família

Movendo-nos por entre estudos referentes a pestes e epidemias, desde aquelas relata-
das nos textos bíblicos, passando pela Peste Negra, até as mais recentes, que submeteram
os povos ocidentais, incluindo o Brasil, visitando as crônicas e testemunhos, as narrativas
emocionadas, mas realistas, das vítimas dos grandes flagelos de outrora, deparamo-nos
com referências constantes a um elemento cuja análise julgamos do mais alto valor para o
entendimento dos efeitos que as calamidades coletivas fazem recair sobre os povos. Este
elemento é a família, imaginada por nós como centro e unidade nuclear, coluna vertical da
sociedade organizada.
Na construção de uma tipologia dos comportamentos coletivos em tempos de peste,
Jean Delumeau (1989) indiretamente confirma nossa suspeita de que as grandes pestes
fazem incidir exatamente sobre o núcleo central das sociedades, a célula familiar, os efeitos
mais dramáticos de sua violenta propagação.
Imaginamos igualmente que quanto maior é a violência e o grau de destruição im-
posto pela peste, tanto maior será a violência e o grau de desestruturação do núcleo e dos
laços familiares.
A correspondência entre epidemia e família nos dá, portanto, a proporção exata da
intensidade do flagelo. Neste contexto, é preciso também considerar a correlação imediata
existente entre a família, centro do espaço social privado, e o restante das instituições, es-
paço público, dimensão social mais ampla. Com efeito, a desestruturação do espaço e dos
laços familiares teria como conseqüência a desorganização global da sociedade.
Para Delumeau, as atitudes comuns em tempo de peste caracterizam-se, entre ou-
tros indicadores, pela absolvição da morte personalizada, pelo desregramento e licença
desenfreada, pela demência e, enfim, por todos aqueles procedimentos ligados ao que ele
denominou “desestruturação do ambiente cotidiano” que abalaria, por sua vez, as bases do
psiquismo individual e coletivo (DELUMEAU, 1989, p. 125).
A esta situação de desgoverno individual e coletivo, Delumeau faz corresponder alguns
acontecimentos provocados pela condição epidêmica que atuariam como causas e pode-
riam explicar aquelas atitudes: entre outros ele enumera o desmoronamento das estruturas
familiares, ou seja, a “abolição dos quadros familiares” (DELUMEAU, 1989, p. 120).
Ao citar um religioso português que conviveu com a Peste Negra no século XVII, dá-nos
um exemplo inequívoco do abalo sofrido pelas famílias vítimas da epidemia: “A justiça não é
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
mais obedecida; os ofícios param; as famílias perdem sua coerência e a rua sua animação”
(DELUMEAU, 1989, p. 121).
A propósito da abolição dos laços familiares, o mesmo autor transcreve parte de uma
crônica italiana contemporânea da peste de 1630, onde, a certa altura dos ataques pestilentos,

Não se suspeitava apenas do vizinho, do amigo, do hóspede: esses doces


nomes, esses ternos laços de esposo, de pai, de filho, de irmão eram objetos
de terror; e, coisa indigna e horrível de dizer, a mesa doméstica, o leito nup-
cial, eram temidos como armadilhas, como locais onde se escondia o veneno
(DELUMEAU, 1989, p. 123).

As referências às famílias vítimas das pestes não cessam. Como esta passagem, ex-
traída do “Diário do ano da Peste” (a de Londres, em 1665) de D. Defoe: “[...] os mais ricos,
os nobres e a gentry do oeste apressavam-se em deixar a cidade com suas famílias e seus
criados [...], não se viam senão carros e carroças carregados de bagagens, de mulheres,
de crianças, de criados” (DELUMEAU, 1989, p. 119).
Ou esta outra, ainda transcrita das citações de Delumeau, do mesmo religioso português
já citado: “[...] as crianças são subitamente separadas dos pais, as mulheres dos maridos,
os irmãos ou os amigos uns dos outros [...]” (DELUMEAU, 1989, p. 122).
Essa recorrência permanente em épocas de epidemias, detectada igualmente nas
crônicas brasileiras do século XIX, como veremos adiante, nos leva a avaliar o grau de
preponderância dos grupos familiares e sua importância significativa na própria constituição
e conformação das instituições sociais, bem como no imaginário coletivo dos atores que
participavam das sociedades no passado.
Sabemos da posição relevante ocupada pela família hoje e nas sociedades tradicio-
nais. Muita dedicação e enormes esforços vêm sendo dispendidos no sentido de iluminar
esse objeto de estudo e muita água vem sendo jogada nesse moinho de conhecimentos
sobre a família.
Segundo Maria Luiza Marcílio, tanto a historiografia europeia e norte-americana quanto
a brasileira, “especialmente nas últimas três décadas, têm priorizado o estudo da família,
[...] partindo do enfoque demográfico até o das mentalidades e comportamentos, passando
pelo cotidiano, o material, o sócio-antropológico, o psicológico” (MARCÍLIO, 1993, p. 7).
Estes estudos têm nos instrumentalizado melhor a fim de que possamos compreender
da forma mais aproximada possível a realidade passada.
Saber, por exemplo, que tipo de família predominava nas sociedades tradicionais é
fundamental para esclarecer vários aspectos relativos ao estudo das epidemias.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Para perguntas do tipo: “que forma e/ou modelo de família a Peste Negra surpreendeu
e atacou durante tão longos séculos da história européia?”, alguns estudos recentes nos
apontam respostas e caminhos.
Mais especificamente, para o período que antecede o processo de industrialização,
coexistiam na família tradicional o grupo familiar e o grupo de trabalho. De acordo com Peter
Laslett, o grupo doméstico-residente da europa pré-industrial foi, de forma geral, adaptado
para atender às finalidades de produção e de procriação, características comuns de todas
as sociedades não industriais, tanto no presente, como no passado (LASLETT, 1984).
Do nosso ponto de vista, tudo indica que é este o modelo de família que as pestes en-
contraram nas sociedades tradicionais européias, evidentemente com as devidas nuanças e
variações. E o peso e importância desta célula e unidade no contexto da comunidade mais
ampla não podem, de forma alguma, ser ignorados nas análises das sociedades passadas.
Menos ainda em tempos de epidemia.
Philippe Ariès corrobora ainda mais os argumentos em defesa da importância da família
tradicional no meio social, ao especificar suas funções. De acordo com ele, “[...] tinha por
missão - sentida por todos - a conservação dos bens, a prática comum de um ofício, a ajuda
mútua cotidiana num mundo em que um homem, e mais ainda uma mulher, isolados não
podiam sobreviver, e ainda, nos casos de crise, a proteção da honra e das vidas” (ARIÈS,
1981, p. 10-11).
Imaginemos, apenas por instantes, esta estrutura desfeita, desarticulada, desorganizada
e, por alguns momentos, recriemos o quadro dos efeitos possíveis no âmbito mais amplo
desta comunidade e veremos o caos.

Rio de janeiro no século 19: medo, morte e morbidade

O Brasil do século XIX conviveu cotidianamente com a morte, que atingia índices extre-
mamente elevados. Antes do ano de 1900 a mortalidade brasileira situou-se sempre acima
das 40 ou 45 mortes anuais para cada mil habitantes. Hoje estes níveis giram em torno de
dez falecimentos por mil habitantes (MARCÍLIO, 1983).
Visitando a cidade do Rio de Janeiro em meados do século 19, o maior e mais impor-
tante reduto urbano do Império, encontramos uma população cuja taxa de mortalidade supe-
rava sempre os índices de natalidade. Nas palavras de Marcílio, “systematiquement, chaque
anné de 1830 au début de ce siècle, le nombre de décès l’emporta sur celui de naissances”
(MARCÍLIO, 1993, p. 381). Dados coligidos pela mesma autora apontam para 1850, no Rio,
um quadro absolutamente aterrorizante: 11.192 mortes para apenas 5.817 nascimentos.
Apesar disso, a cidade não parava de crescer e sua população aumentava a cada
ano graças à entrada massiva de escravos provenientes da África e de outras províncias
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
do país, ao incremento contínuo da imigração europeia e dos habitantes de outras partes
do Brasil (MARCÍLIO, 1983).
Este crescimento constante, entrecortado pelo aumento populacional ininterrupto,
apenas contribuía para agravar ainda mais a situação da cidade, cujas condições sanitá-
rias eram simplesmente deploráveis e onde as medidas tomadas pelo governo imperial se
mostravam sempre insuficientes, dando até mesmo a impressão de haver um descaso por
parte das autoridades quanto aos preceitos higiênicos, notadamente públicos.
Não é por acaso que José Pereira Rego (1873, p. 222-221), Barão do Lavradio, médico
proeminente da Corte, denunciava, já em 1873, “A pouca importância que tem merecido da
administração pública o auxílio valioso que com referência a este ponto [...] podem fornecer
os preceitos hygienicos em suas aplicações praticas”. Criticando as medidas adotadas, posto
visarem apenas resultados imediatos, dizia ele serem “improfícuas”, chegando mesmo a se
reportar ao “[...] estado actual de nossa organização social, quando tão atrasado se acha
entre nós tudo quanto respeita a hygiene municipal propriamente dita”.
Diante dessas condições, marcada pela morte, pela morbidade cotidiana, fábrica do
medo, por assim dizer, a cidade do Rio de Janeiro inspirava o horror.
A mortalidade infantil nos dá, ela própria, a medida exata do terror: em 1859, a propor-
ção de recém-nascidos mortos antes do primeiro aniversário era de 359 por 1.000; a taxa
dos que faleciam antes dos cinco anos atingia 604 por 1.000. Em 1871, a mortalidade de
crianças menores de cinco anos atingiu a 578 por 1.000; em 1875 a 645, e em 1877 a 604.
“Un veritable genocide de petits enfants!”, exclama Marcílio. (MARCÍLIO, 1993, p. 315).
Vale lembrar, além disso, que os dados acima apresentados nem sempre coincidem
com períodos de epidemias, quando tanto as taxas de mortalidade quanto as de morbida-
de atingem índices consideravelmente elevados (MARCÍLIO, 1983, p. 390). Como, então,
compreender o impacto provocado nos homens do Oitocentos, no Império do Brasil, pela
presença marcante da morte?

O AVANÇO DA EPIDEMIA E AS MEDIDAS DE HIGIENE PÚBLICA

A epidemia de Febre Amarela de 1850 que se abateu sobre a cidade do Rio de Janeiro,
ao intensificar a presença da morte, elevando ainda mais os índices de mortalidade, pode,
sem dúvida alguma, constituir-se numa chave de leitura, tornando-se uma porta de entrada
no tempo que nos permite entrever os comportamentos e as atitudes dos homens da época.
Mesmo porque, a importância da qual se revestiu a epidemia não se limita apenas ao
simples fato de permitir trazer à luz do presente, através dos rastros documentais que pro-
duziu, fatos contundentes de nosso passado: reverberou também no seu tempo, incitando

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
os homens a novas atitudes, alterando costumes e hábitos, promovendo e impulsionando
iniciativas inéditas, como sempre provocam os grandes acontecimentos históricos.
Por outro lado, as peculiaridades dos efeitos da Febre Amarela, cuja forma de propa-
gação e características diferem basicamente de outras moléstias que reinavam à época,
surpreenderam não apenas os homens, mas também com eles as instituições, criações
suas que lhes norteiam a ação.
Seu caráter pouco seletivo, não fazendo acepção de classes sociais, cor, sexo ou
idades, atacando igualmente a todos, no espaço que talvez por ironia escolheu (justamente
a Corte do Império), movimentou como nunca a imaginação e o medo, multiplicando idéias
e ações conjuntas que pudessem deter ou ao menos amenizar o avanço da peste e o sofri-
mento sobre humano a que submetia os homens.
A peste, então, desencadeou o que poderíamos considerar a primeira campanha sa-
nitária oficial no Brasil, norteada pelas novas perspectivas de atuação das instituições de
saúde pública e organizada pelos mais proeminentes médicos do Império.
De forma pragmática, este fato parece ter imprimido uma nova orientação à organização
da saúde pública no país, demonstrando a partir de então haver uma preocupação perma-
nente com o planejamento de ações e práticas de higienização que dariam à medicina um
caráter de atuação profilático e não mais apenas curativo (MACHADO, 1978).
Os médicos de 1850, envoltos na agonia de um verdadeiro flagelo causado pela epi-
demia, propunham medidas até então inusitadas (MARCÍLIO, 1983, p. 383): 1. A criação de
uma Comissão Central de Saúde Pública, para coordenar os combates contra a epidemia;
2. A criação em cada paróquia ou distrito da cidade de sub-comissões paroquiais de saú-
de pública, compostas por sub-delegados de polícia, de fiscais e médicos; 3. A criação de
um serviço de assistência aos pobres, com médicos, medicamentos, etc.; 4. Intervenção
das Comissões Sanitárias, no porto, nas ruas, nas prisões, nos hospitais, nos conventos,
nas escolas, nos teatros, nas igrejas, etc., para controlar o respeito às regras de higiene;
5. O registro dos médicos.
A partir dessas primeiras iniciativas, e ainda sob o furor da febre epidêmica que rei-
nava, foi criada a “Junta Central de Higiene Pública” que esteve atuante até o fim do sécu-
lo. Em 1886, a “Junta” transformou-se na “Inspeção Geral de Higiene”, quando foi também
criada uma outra “Inspeção Geral da Saúde dos Portos”. Estas duas instituições, vale lembrar,
constituíam-se em organismos essencialmente médicos (MARCÍLIO, 1983, p. 384).
Como, apesar das medidas implementadas, a epidemia proliferava-se indiferente sobre
a população da cidade, ainda outras providências marcariam as transformações das práti-
cas sanitárias e das políticas públicas do Império, como se o flagelo requisitasse, pela sua
ousadia, ações que lhe impusessem limites.
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Assim, a situação deprimente da população reclamava decisões e medidas de higiene
pública que saneassem o meio ambiente urbano, eliminando as causas imputadas ao mal
e, por conseguinte, amenizando a irrefreável epidemia.
As autoridades, pressionadas, tomavam providências: promoveram o aterramento de
pântanos, a expansão dos limites da cidade, a abertura de novas ruas, a construção de ha-
bitações em lugares mais elevados e menos insalubres, a instalação de redes de esgoto, a
melhoria na distribuição de água, a proibição definitiva dos enterros nas igrejas (providência
a muito reclamada) e, por consequência, a abertura de cemitérios públicos, e, ainda, o esta-
belecimento de hospitais de isolamentos fora do centro da cidade (MARCÍLIO, 1983, p. 385).
Mesmo diante do extenso elenco de mecanismos adotados e da manutenção perma-
nente de medidas que visavam barrar o avanço do flagelo, prevaleciam os efeitos incontidos
da doença sobre a população.
Apesar do esquadrinhamento do espaço urbano pelo saber médico, suas estratégias e
métodos inovadores não foram suficientes para estancar a infecção que afetava os corpos.
Nem a terapêutica, nem a engenharia sanitária foram suficientemente eficazes na
luta contra um mal talvez maior que a própria epidemia: o desconhecimento das causas
reais da doença.
Mesmo assim, forçoso é reconhecer e impossível seria negar o momento revolucioná-
rio para a saúde pública do Império em que se constituiu a epidemia de Febre Amarela de
1850. Contudo, como afirmou o próprio ministro dos negócios do Império, a peste zombou
com seu veneno “[...] de todos os esforços e invadiu com incrível rapidez a cidade inteira”
(RELATÓRIO, 1850).

A desorganização do ambiente cotidiano

Mesmo diante da inexistência de trabalhos comparativos entre epidemias ocorridas no


Brasil e outras ocorridas noutros países, as reações durante estes momentos difíceis, as
atitudes coletivas aqui detectadas parecem, mais genericamente, não se diferenciar daquelas
produzidas e encontradas durante outras grandes manifestações epidêmicas.
Por outro lado, ao detectarmos um certo grau de desestruturação do ambiente cotidiano,
perceptível durante a epidemia de 1850 por meio da observação das alterações ocorridas
no funcionamento das atividades comerciais, da invasão que fez a epidemia nos espaços e
nas instâncias do poder político e na perda das referências comuns por parte da população
da cidade do Rio de Janeiro, acreditamos, ao mesmo tempo, poder encontrar na desorga-
nização parcial dos laços familiares indícios que apontam e revelam a intensidade e o grau
de incidência e destruição imposto pela peste.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Deste modo, a correspondência entre epidemia e família nos pode dar, também no Rio
de meados do século XIX, a proporção direta da intensidade do flagelo. Vale lembrar que
ali, tanto quanto noutras epidemias que deixaram suas marcas na história, a recorrência à
família nas referências e fontes existentes é uma constante.
Família predominantemente nuclear, que não se difere, contudo, daquele modelo pro-
posto por Peter Lasllet para as sociedades tradicionais pré-industriais, mas conservando
certas especificidades e peculiaridades próprias do Brasil do século 19: eis o tipo de família
acometida pela Febre Amarela na cidade imperial do Rio de Janeiro em 1850.
Introduzida por via marítima ainda no decorrer do mês de dezembro de 1849, trazida
por marinheiros provenientes da Bahia, onde já reinava epidemicamente, a Febre Amarela
aportou na cidade e do porto estendeu-se a outros pontos e localidades através das ruas que
lhe serviam de canais de propagação. “A princípio”, relata Avé-Lallemant, médico da enfer-
maria dos estrangeiros da Santa Casa de Misericórdia, “caminhava muito devagar, porém
caminhava com passo certo quasi de uma casa para outra, de uma travessa para outra, e
nas casas e na s travessas atacando uma após a outra [...]” (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 9).
Essa entrada magistral e quase instantânea da Febre Amarela também seduziu outros
expectadores. José Pereira Rego, mapeando os caminhos do flagelo na cidade, esclarece
e indica o percurso da doença: do litoral, de “[...] três pontos marchou para o interior della e
seus subúrbios por tres direções ou raios mais ou menos distintos e bem marcados”. O pri-
meiro, da rua da Misericórdia, encaminhou-se para o lado sul da cidade; do segundo ponto,
da Prainha e suas imediações, seguiu em direção ao norte; do terceiro ponto ou do central,
da praia dos Mineiros ou do Peixe, subiu pelas ruas centrais. Nestes sentidos e direções,
prossegue Pereira Rego, a Febre Amarela impôs seu ritmo, “de modo que para fins de março
a cidade estava sob a influência epidêmica em todos os seus pontos” (REGO, 1851, p. 17).
Uma vez no interior da Corte do Império, apenas cessaria seus efeitos sete ou oito
meses mais tarde. Enquanto isso, de rua em rua, de casa em casa, a epidemia fazia das
famílias do Rio objeto de desprezo e alvo de lágrimas e medo. Nada podia detê-la, nada
cessava seus movimentos ininterruptos, nada impedia seus passos que, por várias vezes,
carregavam o peso inexorável da morte.
Sitiados pela epidemia, tomados pelos doentes, os hospitais e serviços de saúde da
cidade estavam sobrecarregados daqueles que, por um caminho ou outro, chegavam às
casas públicas e clínicas particulares de tratamento em busca de socorro médico, pois a
Febre reinava soberana. Nas palavras de Avé-Lalleman (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 9),
“Sem cerimonia ataca tudo, prostra tudo sobre o leito dos sofrimentos; ha casas em que
nenhum indivíduo fica intacto; nenhuma idade, nenhum estado, nenhum sexo dá um privi-
légio, uma isenção”.
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Em meio aos ataques incontroláveis da epidemia, às mortes em quantidade visivelmente
mais elevadas que em dias normais, outro fator parecia agravar a situação: o controle da
informação. “O que, sem dúvida alguma, mais assustava era a absoluta prohibição de publi-
car diariamente o número de mortos”, disparava Lallemant (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 12).
Certamente, o pessimismo exacerbado, levado ao ápice pela dúvida e incerteza, exa-
gerava a imaginação, fazendo ampliar as proporções da epidemia nos cálculos errôneos
elaborados pelos amedrontados habitantes da cidade. E ao aumento imaginado do flagelo
correspondia a ampliação do medo. “Este silencio misterioso”, afirmava Lallemant,

[...] fazia que tudo causasse medo. Atras de cada porta fechada via-se um
morto, quando o sol batia sobre uma casa, e se fechavão as janellas, julga-
va-se que algum cadáver estava na sala; quando um homem corria pela rua,
julgava-se que corria em busca de um médico ou sacerdote para algum doente
ou moribundo (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 12).

Quem viveria tal situação, sem se impressionar com as imagens deprimentes, com o
silêncio aterrador e com a dura incerteza da real proporção da peste? Quantos pesadelos
não expulsaram dos leitos homens e mulheres sadios e plenos de esperanças? Quanta
ansiedade não invadiu os corações aflitos de pais preocupados com o futuro de seus filhos
e de jovens casais que ainda não os haviam tido, mas que planejavam tê-los?
A insegurança com o futuro era uma constante. Mas a brutal realidade da doença imi-
nente amarrava e detinha os homens no presente, aterrizava-os no solo incômodo de suas
casas, de suas ruas, de sua cidade.
Justificável insegurança, pois, como nos diz uma vez mais Avé-Lallemant, houve casas
“[...] em que famílias inteiras desaparecerão; e [..] ficarão muitas mulheres viúvas, e muitas
crianças orphãs” (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 10).
A gravidade momentânea da vida parecia, naqueles dias, encontrar motivos e razões
que a tornava cada vez mais aguda, dolorida: a instantaneidade da doença também apavo-
rava os homens. Alguns casos são narrados em que indivíduos sãos, em pleno desempenho
de suas funções, não mais que de repente, prostravam-se doentes. É o caso do Sr. E. A. da
V., citado pelo médico José Pereira Rego: “[...] não tinha pessoa alguma de sua família com
a moléstia; porém, mandando uma sua criada à cidade, voltou esta doente e succumbiu em
poucos dias. Logo após adoeceu sua filha e succumbiu igualmente” (REGO, 1851, p. 53).
Por volta de meados do mês de março, quando a epidemia alcançou seu mais ele-
vado grau de intensidade, encontrando-se toda a cidade submetida aos seus caprichos, já
“Não havia [...] uma só família, para assim dizer, que não tivesse dores e lágrimas, uma rua
que não fosse um hospital” (REGO, 1851, p. 57). A indiferença, marca indelével da Febre

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Amarela, parecia mesmo nortear seus avanços e, como por ironia, não poupou sequer a
própria família do médico. E é o próprio José Pereira Rego quem narra:

[...] em nossa família deu-se o fato seguinte: que retirando-se ella para a Lagoa
Rodrigo de Freitas muito além do Jardim Botânico adoeceu gravemente no
mesmo dia meu filho mais moço, e o trouxe immediatamente comigo para a
cidade. Apesar disso a molestia continuou a aparecer no resto da família [...]
(REGO, 1851, p. 56).

Ao produzir seus estragos incontáveis, induzida por suas preferências, à época incom-
preendidas, a epidemia repercutiu também no exterior.
A morte de representantes estrangeiros como a de Morgan e de Serra, diplomatas,
respectivamente, norte-americano e francês (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 11), emprestou
à epidemia ares de catástrofe, triste e assustador, e ainda profundamente prejudicial à
imagem que se formava do Rio de Janeiro no exterior. A partir de 1850, a Febre Amarela
ficou conhecida noutros países como a “Febre Amarela do Rio de janeiro” e como o “Mal do
Brasil” (FRANCO, 1969, p. 44).
Tudo isso criava uma expectativa cada vez mais negativa nos protagonistas insubsti-
tuíveis do horror epidêmico que reinava. Naquele momento, as tintas do quadro pintado para
a época não podiam ser mais negras: praticamente todas as famílias tinham já sofrido os
incômodos sintomas da Febre, em todas as casas havia pelo menos um doente, em todas
as ruas da cidade contavam-se numerosas vítimas fatais.
Vemos então que a esperança dos homens tem seus limites, e o sofrimento, de seu
lado, também impõe suas condições.
Por isso, a partir de determinados momentos, em meio ao palpitar irregular de mentes
e corações, o medo que perseguia os homens tomava novo vulto, assumia novas formas,
e a angústia sobrevinha ainda mais intensamente debilitando-os e tornando-os ainda mais
frágeis e suscetíveis aos acontecimentos.
A certa altura da epidemia, diante da persistência a toda prova da doença, os laços
familiares pareciam ter perdido suas funções e um sentimento de impotência invadia os
homens, impedindo e alterando a convivência entre eles, modificando o funcionamento
cotidiano e o movimento normal da cidade, como se as forças que os impulsionavam para
a vida tivessem perdido sua dimensão costumeira.
É neste momento, instante em que as estruturas básicas constituintes do meio ambien-
te cotidiano são pouco visíveis, confusas, de textura frágil, de contornos quase invisíveis,
que o olhar vazio de nosso narrador por entre as ruas quase mortas da cidade reclamava a
presença de outras pessoas:

[...] havia bem tempo em que se não via nenhum vendedor de estátuas de
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
gêsso na rua, nenhum concertador de bacias e caldeiras, nenhum negociante
de chapéus de chuva. A ópera italiana calou-se, alguns membros della para
nunca mais serem ouvidos (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 10).

Mais adiante, a tinta da mesma pena nos permite recriar as imagens daqueles
dias assoladores:

[...] havia casas de commercio, que por pouco ou mais tempo ficavão inteira-
mente fechadas. ‘Sou o único que neste instante não está doente em casa’.
Assim escreveu um dia um guarda-livros de uma casa allemã para a europa,
e pouco tempo depois elle também morria (AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 11).

Temos aqui a sensação de que o comércio da cidade se encontrava ao menos parcial-


mente interrompido, de portas fechadas: comerciantes e artesãos ausentes, desaparecidos,
resguardavam-se do perigo mortal representado pela Febre.
E as instâncias do poder político teriam, por algum capricho especial da epidemia,
permanecidas intocadas ou restado ilesas às garras do flagelo? Teriam sofrido menos os
estadistas brasileiros? Não é o que afirmava, então, Avé-Lallemant. Segundo ele, “[...] a
morte entrava para a câmara dos deputados, introduzindo-se nas veneráveis fileiras do
Senado e, ousada, tomou acento até no meio do Conselho de sua Majestade Imperial”
(AVÉ-LALLEMANT, 1851, p. 9),
Seria exagero entrever o pânico entre as mais eminentes autoridades do Império,
considerando a elasticidade da epidemia que estendeu a morte a todas as instâncias da
sociedade e imaginarmos um corre-corre, uma desorganização, ainda que menos parcial,
das atividades políticas imperiais? Acreditamos que não.
Mas prossigamos na descrição que faz Lallemant das condições dos homens nos
momentos mais cruéis da epidemia. Delineia em seu relato que

As casas em que havia um morto já não se cobriam mais de luto; os fúnebres


sinos já não acompanhavam o enterramento do christão; ate a campainha que
acompanhava o Santíssimo Sacramento pelas ruas [...] calou-se! Prohibião-se
enfim as encomendações nas igrejas; tudo se prohibia só a morte não era
prohibida!!! [...] Ja nas igrejas não cabião mais cadaveres” (AVÉ-LALLEMANT,
1851, p. 11-12).

Estas descrições, imagens de um cotidiano adulterado, parecem traduzir os sentimentos


e as atitudes dos habitantes do Rio de Janeiro, durante os meses de março, abril e maio de
1850, período de atuação mais intensa da epidemia.
Já não se ouviam mais os ruídos corriqueiros, as relações pessoais perderam sua
coerência, o medo que, por vezes, aproxima pessoas parecia exercer seu efeito contrário,
afastando-as e isolando-as.
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Os movimentos estavam alterados, a ausência parcial de comunicação estabelecida,
a interrupção do comércio e do artesanato esvaziava os espaços da cidade, as instâncias
políticas do poder foram afetadas.
Podemos então perceber pelos enunciados acima uma evidente desorganização da
vida econômica, política e social da cidade ou aquilo que Delumeau preferiu chamar de
desestruturação do ambiente cotidiano.
Mas neste caso específico, no Rio de 1850, como em outros regidos pelo mesmo agente
(uma epidemia), a família, célula mãe e ponto de apoio central da sociedade, também pagou
seu tributo ao flagelo.
E foi no momento em que mais se abatia sob a crueldade de seu algoz, que as rela-
ções comerciais, políticas e sociais da cidade sitiada se prostraram ante a impotência de
homens e mulheres, jovens e crianças, vítimas aterrorizadas por uma doença brutal e pela
morte insaciável promovida pela epidemia.
Diante da crise que se instalara, frente às limitações da arte médica – que desconhe-
cia as causas – e do resultado praticamente nulo da terapêutica utilizada, ante a extensão
assustadora do flagelo e da ausência total de uma perspectiva otimista que pudesse ao
menos indicar o fim próximo da epidemia, quantas preces, promessas e penitências não
foram elevadas aos céus? Quantas famílias inteiras não se ajoelharam implorando talvez o
restabelecimento daqueles laços essenciais que lhe dão coerência e harmonia?
Com efeito, “era na maior força da epidemia”, lembra Lallemant, “que as procissões
noturnas iam pelas ruas implorando a misericórdia de Deus!” (AVÉ-LALLEMANT, 1851,
p. 152). Assim, movidos pelo medo e pela visível degradação das condições do ambiente
cotidiano, aflitos, os homens buscavam por todos os meios um remédio. Se não humano,
divino; se não imediato, ao menos de acordo com o tempo e a vontade absoluta de Deus.

CONCLUSÃO

Epidemia e família: seria possível uma apreensão, uma análise conjunta de temas
aparentemente tão diferenciados? Cabe ao leitor a reflexão e a resposta para a questão.
Contudo, nesta mórbida e mortal trajetória da epidemia, quem mais diretamente eram as
vítimas diletas da doença? Não foram, por acaso, os indivíduos que em última instância,
encontravam-se organizados em núcleos familiares?
As famílias, constituídas em células capitais da comunidade, ao serem destituídas de
sua vitalidade, da força cotidiana que lhes emprestava coerência, não afetaram muito mais
o funcionamento das instituições, organismos mais amplos da sociedade?
Por outro lado, quem eram os verdadeiros alvos das medidas sanitárias e das políticas
públicas de saúde promovidas pelo governo do Império? Não eram exatamente as famílias
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
que davam forma e movimento à vida pública e privada da cidade? E os terrores proporcio-
nados pela doença incontida, não brotavam eles do interior dos lares cujos membros caíam
acamados ou mesmo faleciam sem remédio?
De onde provinham o artesão e o comerciante que promoviam o comércio, responsá-
vel pelo colorido e pelo frenesi incessante das ruas da cidade? E os membros do Senado
e da Câmara, bem como os deputados da Assembleia? Não seriam eles acaso redutíveis
a simples membros de famílias, onde a morte tinha passagem certa? Não seriam eles tam-
bém os pais ou mães, os filhos ou filhas, os parentes ou vizinhos que, não raro, sofriam no
desespero do leito ou da morte?
E os artistas que desapareceram, atores que abandonaram seus papéis nos palcos,
picadeiros e teatros fechados do Rio de Janeiro de 1850, acaso não conformavam famílias?
Mais amplamente ainda, a morte de um filho, de um irmão, de um pai ou mãe, de um
parente próximo, não teria ausentado os homens das atividades cotidianas em tempos nor-
mais? E em tempos de epidemia, época da morte coletiva, estas ausências não teriam se
multiplicado na proporção direta da intensidade do flagelo?
O desconhecimento das causas também engendrava suas consequências: a idéia
do contágio da Febre Amarela estava disseminada e o medo de contrair a doença mortal
não se mostrava apenas nas ruas ou logradouros, espaços públicos que serviam de canais
para a propagação do mal, mas adentravam também as portas das residências onde havia
alguma vítima e criavam, por sua vez, barreiras às vezes intransponíveis entre os próprios
membros de uma mesma família.
Diante de tudo isso, como negar a relação entre epidemia e família numa cidade con-
taminada pelo medo, pelo desespero e por uma infecção generalizada promovida pela febre
que nada podia estancar e por um agente transmissor completamente desconhecido à época?
Duas faces de um mesmo fenômeno, as categorias epidemia e família nos concedem
uma perspectiva possível para percorrermos os acontecimentos que tiveram lugar na cidade
do Rio de Janeiro em 1850. Ao recuo paulatino da epidemia, ao abrandamento dos ataques
da doença, correspondeu o retorno à normalidade e, ao desarmamento incondicional pro-
vocado pelo afastamento do medo, correspondeu a volta dos relacionamentos que fazem
das cidades espaços especiais para a morada dos homens.

REFERÊNCIAS
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2. AVÉ-LALLEMANT, Roberto C. B. Observações acerca da epidemia de Febre Amarella no


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9. MARCÍLIO, Maria Luiza. A morte de nossos ancestrais. In: José de Souza Martins (org.) A
morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo: Hucitec, 1983.

10. MARCÍLIO, Maria Luiza. Santé et mort dans la ville imperiale de Rio de Janeiro, 1930-1889.
In: Mesurer et comprendre. Melanges offerts à Jacques Dupâquier. Paris: PUF, 1993.

11. MARCÍLIO, Maria Luiza (org.). Família, mulher, sexualidade e igreja na história do Brasil.


São Paulo: Loyola, 1993.

12. MATTOSO, Kátia M. de Queiróz e ATHAIDE, Johildo Lopes de. Epidemias e flutuações de
preços na Bahia no século XIX. In: L’Histoire quantitative du Brésil de 1800 a 1930. Paris:
CNRS, 1973.

13. MEIHR, José C. Sebe e BERTOLLI FILHO, Claúdio. Opinião pública versus poder: a cam-
panha da vacina de 1904. São Paulo: Estudos CEDHAL, n. 5, 1990.

14. REGO, José Pereira. História e descrição da Febre Amarella epidemica que grassou no


Rio de Janeiro em 1850. Rio de Janeiro: Typographia de F. de Paula Brito, 1851.

15. REGO, José Pereira. Memória histórica das epidemias de Febre Amarella e Cholera Morbo
que tem reinado no Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1873.

16. Relatório. Relatório do Ministro dos Negócios do Império apresentado à Assembléia


Geral Legislativa na Segunda Sessão da Oitava Legislatura em 14 de maio de 1850. Rio
de Janeiro: Typographia Nacional, 1850.

256
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
19
A venalidade de ofícios nos
Impérios Ibéricos modernos: breves
considerações teóricas

Rafael Jose de Paula Braga


UFJF

10.37885/210203064
RESUMO

Este estudo procura, como o título aponta, apresentar as principais discussões concei-
tuais acerca da prática da compra e venda de cargos na estrutura administrativa dos
Impérios Ibéricos modernos. A venalidade, nos territórios sob domínio espanhol, já foi e
ainda é amplamente estudada e analisada, com o reconhecimento de sua existência e
difusão no Império hispânico. Já nas regiões controladas por Portugal, apenas recente-
mente o debate tem se voltado para a recuperação da prática venal, uma vez que por
muito tempo se acreditou de forma errônea que ela não havia acontecido ou sido rele-
vante naquelas paragens. Assim, se torna extremamente importante, em um momento
inicial, recuperar algumas questões teóricas a respeito da venalidade realizadas pela já
solidificada historiografia hispânica sobre o tema, de maneira a auxiliar a pesquisa no
que se refere aos territórios lusos, e subsequentemente ao Brasil. Portanto, ideias como
o próprio conceito de venalidade, que não é unânime; e a subjacente possibilidade de
se falar em corrupção para essas sociedades, com seus respectivos problemas, serão
tratadas brevemente aqui.

Palavras-chave: Venalidade, Administração, Sociedade, Moderno.

258
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

O presente texto busca apresentar uma série de debates teóricos que a historiografia
hispânica realizou a respeito da prática da venalidade de ofícios. Para a monarquia espanho-
la, a compra e venda de ofícios administrativos já foi e continua sendo muito bem estudada,
uma vez que no que se refere à essa Coroa ibérica, a venalidade aconteceu de forma muito
mais numerosa e difundida do que em Portugal, ainda que no caso da Espanha também se
buscassem apagar os traços deixados pelo dinheiro das nomeações para os postos. Dessa
forma, a sobredita historiografia deu ao tema um tratamento muito mais amplo e profundo
do que a luso-brasileira, inclusive no aspecto conceitual, o qual pode ajudar a entender
muito melhor tudo que estava envolvido em uma compra de ofício, tais quais os poderes,
agentes e instituições que participavam dessa transação. Dessa forma, trazer todas essas
informações sobre o que estava envolvido em uma venda de posto administrativo, bem
como as principais discussões que o tema suscitou em uma historiografia consolidada na
temática, pode e deve servir como base de estudo para todos que queiram se aprofundar
na análise da prática em Portugal e suas colônias americanas, os quais ainda necessitam
de mais estudos.

DESENVOLVIMENTO

Foi no final da década de 1960 e princípio de 1970 que o tema da venalidade começou
a se tornar relevante para a historiografia espanhola, com os estudos clássicos de Antonio
Domínguez Ortiz e Francisco Tómas y Valiente colocando luz sobre a importante questão.1
Desde então, foram numerosos os trabalhos desenvolvidos por essa historiografia a res-
peito dos vários elementos os quais a prática suscitava, sendo um dos mais importantes
a busca pelo conceito de venalidade. Existia (e ainda existe), a necessidade de se definir
e unificar exatamente o que foi a venalidade no Antigo Regime, e quais ações podem ser
consideradas venais.2 Roberta Stumpf, por exemplo, chamou a atenção para a importância
de se atribuir um sentido ao conceito de forma a que a questão pudesse ser corretamente
analisada.3 Enquanto as historiografias brasileira e portuguesa foram costumeiramente muito
mais restritivas na hora do emprego do termo venalidade (só o utilizando quando o dinheiro,
e apenas ele, foi fundamental na obtenção da mercê), a historiografia espanhola, de maneira
contrária, foi muito mais além, considerando venalidade qualquer situação em que havia um
serviço pecuniário envolvido, independentemente de outros fatores ou méritos possuídos

1 FELICES DE LA FUENTE, Maria del Mar. Venta y beneficio de cargos en la España Moderna: consideraciones en torno al concepto
de venalidad. In: CHATURVEDULA, Nandini; STUMPF, Roberta (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas: provimento, con-
trolo e venalidade (séculos XVII-XVIII). 1ª ed., Lisboa: CHAM, 2012, p. 199-200.
2 Ibidem, p. 200.

259
3 Idem.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


pelo requerente.4 Essa dificuldade de unificação do conceito pode trazer uma explicação
da razão pela qual foi tão difícil até o momento a realização de estudos comparativos entre
Portugal e Espanha.
Em relação a isso, Jean Pierre Dedieu traz algumas interessantes reflexões. O autor
estabeleceu um critério, baseado no uso, para definir quando o serviço pecuniário foi con-
siderado mérito ou venda, distinguindo entre dois tipos de intercâmbios monetários que
estavam em planos distintos e possuíam uma consideração social diferente.5 O primeiro,
o Intercâmbio Aristocrático, era aquele em que o dinheiro era concedido em forma de doa-
ção, se entendendo como um serviço (um signo de relação pessoal entre quem dá e quem
recebe). Assim, esse intercâmbio seria feito sem ânimo de lucro nem de devolução, sem
esperar nada em troca de forma imediata e em sinal de amizade. O Intercâmbio Mercantil,
por sua vez, seria aquele em que o dinheiro era desembolsado para receber algo em troca,
de forma mais imediata.6 Assim, seria exatamente essa relação de imediatez entre o que se
dava e o que se recebia que, para o autor francês, seria a chave para diferenciar o que foi
mérito e o que foi venda. Por conseguinte, a venda seria a entrega de dinheiro em troca da
imediata concessão do cargo ou da honra por obrigação contratual, o que implicava a devo-
lução do dinheiro em caso de não cumprimento. Enquanto o mérito seria a doação que se
fazia à Coroa, sem prazo fixo de devolução e idealmente sem interesses, cuja contrapartida
implicava a obtenção de toda a sorte de recompensas, sendo essas outorgadas passado
um tempo e sem obrigação explícita por parte do soberano, que as concedia como graça
por sua própria vontade.7
Questões como essa passam uma ideia geral da dificuldade que se existe em concei-
tuar a venalidade, buscando delimitar exatamente no que essa prática consistia. A definição
de Dedieu, por exemplo, tem tanto méritos quanto problemas quando aplicada nos casos
espanhol e português. Um dos pontos chave de sua posição se refere ao tipo de doação
pecuniária que, para o autor, seria totalmente desinteressada, não buscando recompensas
e que portanto não deveria ser entendida como a compra de um ofício. Porém, a lógica das
mercês que permeia essas sociedades indica que não existe algo como uma “doação desin-
teressada”, com os indivíduos sempre buscando juntar seus méritos e serviços com vistas
a recompensas que os elevassem a um estatuto social superior. A ideia do “bom serviço”
faz parte da mentalidade dessas pessoas, sendo muitas vezes ativamente buscada, ainda
que a contrapartida não venha de forma imediata. O que traz à tona também a questão da
imediatez como mais um problema dessa teoria. Na Espanha, como será mais explicado
a frente, se tornou comum a venda de ofícios em regime de futuras, ou seja, o pagamento
4 Ibidem, p. 200-201.
5 Ibidem, p. 201.
6 Idem.

260
7 Ibidem, p. 201-202.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


para o exercício de um posto na próxima vez que ele vagasse. A Coroa espanhola che-
gava a vender o cargo para três pessoas simultaneamente, com o último na fila entrando
somente em dez anos. Que isso era uma venda, existe pouca dúvida, mas nesse caso não
havia nenhuma imediatez no recebimento da coisa pretendida, em uma modalidade da
prática venal que se tornou comum na Espanha. Um caminho melhor a seguir parece ser
a delimitação de um ofício como contrapartida de uma contribuição ou serviço monetário
específico e pontual, tivesse ou não o indivíduo reunido méritos ou honras de outras nature-
zas e independentemente da distância temporal que separava essa contribuição ou serviço
monetário da concessão do cargo, desde que a nomeação para o ofício tivesse como uma
de suas justificações o aspecto pecuniário. Em Portugal e seus territórios, por exemplo, era
muito mais comum que o aspecto financeiro não fosse levado em consideração sozinho,
exigindo que o pleiteante ao posto possuísse também os tipos mais tradicionais de serviços
à monarquia. Isso não tornava a prática menos venal, uma vez que ela levantava discussões
entre os próprios contemporâneos sobre o que era ou não aceitável em um contexto em que
o dinheiro ganhava uma importância cada vez maior, dentro do que era certo ou errado no
universo moral desses indivíduos. O fato de esses homens, tanto na Espanha quanto em
Portugal, buscarem sempre que possível esconder os traços do dinheiro de suas nomea-
ções a um ofício, reforçando as qualidades tradicionais inerentes que os levaram a chegar
àquela posição, parece ser o melhor indicador para determinar o que eles consideravam
como venalidade nessas sociedades.
Uma outra discussão conceitual importante acerca da venalidade se refere à distin-
ção, feita por uma parte da historiografia hispânica sobre o tema, entre venda e benefício.
Explicando de maneira sintética, para alguns pesquisadores seriam considerados ofícios
vendidos apenas aqueles em que fosse concedida a propriedade do cargo a um indivíduo,
de maneira vitalícia e com capacidade de transmissão hereditária. Ou seja, aqueles postos
que fossem completa e perpetuamente alienados pela Coroa. Os ofícios beneficiados, por
sua vez, seriam aqueles em que a transação econômica se daria em troca somente do
exercício do cargo, em um número limitado de anos, após o qual o posto voltaria a ficar à
disposição da monarquia.
Essa diferenciação apareceu inicialmente nos anos 1970, trazida ao debate por um setor
de historiadores americanistas, tais quais Alberto Yali Róman e Fernando Muro Romero.8
Esses autores entenderam que o benefício de cargos supunha que a Coroa recebia um pro-
veito ou benefício adicional, de caráter monetário, pelo desempenho de suas funções normais
de nomear indivíduos para determinados ofícios, o que não implicaria a venda propriamente
dita porque o comprador não adquiria a propriedade do mesmo.9 Dessa forma, os postos
8 Ibidem, p. 205.

261
9 Idem.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


beneficiados estariam fora do que se consideraria habitualmente como venalidade, não
sendo considerados cargos venais ainda que tivessem sido obtidos por preço econômico.10
Outra historiadora a sustentar essa distinção é a espanhola Tamar Herzog. Para a
autora, o termo “benefício” era empregado para separar os ofícios beneficiados daqueles
vendíveis e renunciáveis, já que o benefício de um cargo só garantia o seu exercício por um
tempo determinado, sem a concessão ao indivíduo de qualquer direito patrimonial. A venda,
por seu turno, deveria supor uma transação entre a Coroa e o comprador que concedesse a
este último a perpetuidade do ofício, com faculdade inclusive de transmiti-lo em herança ou
até mesmo vendê-lo para um terceiro.11 Assim, os cargos beneficiados não dariam direitos
patrimoniais aos compradores, enquanto os vendidos determinariam de fato o posto como
bem privado do indivíduo.12 Segundo Francisco Andújar, para o caso das colônias hispano-
-americanas essa vinculação entre venda e propriedade foi sustentada nos chamados ofícios
vendíveis e renunciáveis, os quais nesse território se venderam em sua grande maioria de
forma perpétua. Em oposição, estariam os cargos beneficiados, que implicavam no desem-
penho temporal de um posto por espaço de três ou oito anos, ou até mesmo durante uma
vida, retornando depois para as mãos da Coroa.13
Em períodos mais recentes, o grande defensor dessa distinção tem sido o historiador
Ángel Sanz Tapia, com uma vasta gama de estudos sobre o benefício de cargos na América
Espanhola. Para este autor, não parece correto identificar benefício com venda, uma vez
que os ofícios beneficiados tinham caráter temporal, além de reunir condições diferentes
daqueles alienados em propriedade.14 Além disso, o dito pesquisador definiu benefício como
a entrega de dinheiro, doado ou emprestado à Real Fazenda, com o objetivo de obter a no-
meação de um cargo com capacidades judiciais, de maneira que a transação se delimitaria
assim como um serviço econômico feito ao Rei. Dessa forma, para Sanz Tapia o conceito
de benefício se aplicaria somente a ofícios exercidos de maneira temporal, e que possuíam
como prerrogativa a administração da justiça.15
Como foi possível perceber pela apresentação feita até o momento, para o grupo de
historiadores que afirmam a divisão entre venda e benefício, essa distinção estaria centrada
essencialmente no fato de que os dois são conceitos jurídicos diferentes, além da diversa
duração do exercício do cargo (perpetuidade x temporalidade).16 Por outro lado, existe na
historiografia hispânica sobre o tema um outro grupo que refuta essa distinção, ou ao menos
sua relevância para a compreensão da prática venal. Francisco Andújar, um dos principais
10 Idem.
11 Ibidem, p. 205-206.
12 Ibidem, p.206.
13 Idem.
14 Idem.
15 Idem.

262
16 Ibidem, p. 206-207.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


expoentes dessa vertente, argumenta que ainda que a separação jurídica de fato exista, a
diferenciação entre venda e benefício é artificial. Para o autor, ambos os termos definem
uma mesma realidade, qual seja, a obtenção de um cargo por dinheiro ou serviço pecuniário,
como utilizado na linguagem da época.17 Além disso, a designação da palavra “donativo“ ou
dinheiro doado, a que o benefício costuma fazer referência, se trataria simplesmente de uma
estratégia de encobrimento da venda.18 Da mesma maneira, a caracterização do benefício
como dinheiro emprestado seria apenas concernente ao modo em que a transação normal-
mente acontecia, pois enquanto uma parte do dinheiro se pagava como serviço pecuniário,
a outra era entregue como empréstimo, devendo esta última ser ressarcida pela Coroa no
prazo estipulado pelos envolvidos.19 Andújar também afirma que é errado vincular benefício
aos postos judiciais, uma vez que isso não acontecia em todos casos; e, por fim, no que
tange ao elemento da temporalidade, o historiador aponta que os termos venda e benefício
foram empregados na época de maneira indistinta para determinar a provisão de ofícios por
dinheiro, independentemente do tempo de exercício.20
Maria Felices sintetiza a polêmica distinção entre venda e benefício da seguinte forma:

En resumen, la esencia de la distinción entre “beneficio” y “venta” estaría


marcada tan sólo por una separación jurídica en cuanto a la propiedad del
cargo, pues es cierto que en la época, a menudo se solía distinguir entre oficios
“beneficiados” y “vendidos”, porque entre estos últimos se consideraban los
enajenados a perpetuidad, en los cuales, mediante la operación de venta, la
Corona perdía la propriedad sobre ellos para transferirla a un particular que,
desde ese momento podía disponer libremente del cargo y transmitirlo por
herencia o por nueva venta. Por el contrario, en los cargos “beneficiados” por
un determinado período de tiempo o de forma vitalicia, la Corona conservaba
la propiedad, dejando el “usufructo” - es decir, el goce y la percepción del
salario – a quienes le hubieran hecho el correspondiente servicio pecuniario.21

A sobredita historiadora é outra que concorda com a posição de Francisco Andújar.


Para a autora, venda e benefício são claramente duas faces da mesma moeda, independen-
temente do tempo de disfrute do cargo. Isso ficaria explícito no desejo demonstrado pelos
compradores de ocultar a mancha do dinheiro, uma vez que houve uma intenção generalizada
nos processos de negociação em silenciar o elemento monetário da obtenção dos ofícios,
mesmo nos casos em que os cargos foram adquiridos como simples benefícios.22 Para Maria
Felices, essa distinção se tornaria ainda mais insustentável quando se transporta os ditos
conceitos para o universo da alienação de títulos nobiliárquicos. Nesse caso, todos aqueles
negociados em troca de compensações financeiras o foram em regime de perpetuidade,
17 Ibidem, p. 207.
18 Idem.
19 Idem.
20 Idem.
21 Ibidem, p. 207-208.

263
22 Ibidem, p. 208.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


ou seja, seriam títulos vendidos. Porém, a documentação da época os trata exclusivamente
como títulos beneficiados, não fazendo referência alguma a venda.23
O emprego do termo “benefício” aqui não significa que os contemporâneos consideras-
sem esse conceito como diferente do termo “venda”, como a própria Maria Felices demonstra
ao trazer o verbete do Dicionário das Autoridades, de 1726:

Beneficio: lo que se adelanta y da voluntariamente o condicionalmente para


obtener algún empleo, dignidad, o cargo honorífico o lucroso: como tanta can-
tidad de dinero, tal o tal alhaja de valor o estimación, aunque por lo general
siempre se entiende porción competente de dinero.
Beneficiar: conseguir y obtener algún empleo, ministerio y cargo, mediante la
anticipación y desembolso de alguna cantidad de dinero o cosa de estimación
y precio; y porque esto redunda en beneficio de quien le da y confiere, se dice
Beneficiar.24

Como é possível perceber pela citação acima, as palavras benefício e beneficiar se


empregavam usualmente no sentido de quem vendia, fosse particular, uma instituição ou
a própria Coroa. O vendedor era quem se “beneficiava”, através do valor recebido por um
cargo ou uma honra.25 Dessa forma, venda e benefício definiriam uma mesma realidade: a
obtenção de um título nobiliárquico ou ofício por dinheiro ou serviço pecuniário (o que nesse
caso significa a mesma coisa).26
Segundo Maria Felices, a historiografia hispânica mais tradicional manteve por muito
tempo essa distinção por acreditar que os postos beneficiados não correspondiam a uma
prática venal, embora em ambos os casos o dinheiro tenha sido o mérito principal.27 Porém,
para a corrente historiográfica oposta essa diferenciação não teria servido a outra coisa
além de ocultar o desembolso econômico, uma vez que o uso do termo benefício deixaria
a compra mais dissimulada, com a honra não sendo manchada pela presença do dinhei-
ro.28 O fato é que autores mais tradicionais abordaram essa temática adotando diversas
interpretações para justificar a separação entre os conceitos, como José de Vilana y Petit e
Ramón Maruri Villanueva.29 O primeiro, por exemplo, definiu o benefício como um donativo
pecuniário, enquanto o segundo argumentou que ele era algo que escapava, ao menos
formalmente, à política governamental de vendas de ofícios públicos.30 Isso porque, de
acordo com Villanueva, o benefício não tinha como objetivo incrementar de maneira direta a
arrecadação da Fazenda Real, mas sim gastos de diversas naturezas que gravitavam sobre

23 Idem.
24 Idem.
25 Idem.
26 Idem.
27 Idem.
28 Idem.
29 Ibidem, p. 209.

264
30 Idem.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


ela. Dessa forma, dentro dessa linha interpretativa, não seria considerado venda os ofícios
ou títulos que se houvessem beneficiado com o intuito de quitar determinados pagamentos
que poderiam repercutir nas finanças reais.31
Um exemplo concreto do descrito acima, segundo a visão de Villanueva, seria a prática,
até certo ponto comum na Espanha, de conceder títulos nobiliárquicos em branco a cidades
ou instituições religiosas, as quais deveriam vendê-los. A intenção dessa alienação era fazer
com que o produto da venda desses títulos pudesse cobrir os gastos dessas instituições e
poderes, evitando assim que a Coroa tivesse que arcar com esses custos. Porém, como
bem rebate Maria Felices, havia os casos em que os títulos e ofícios eram alienados desde
a própria Corte, ou por Vice Reis e Governadores coloniais. Nessas situações, o propósito
das transações não seria livrar a monarquia de gastos, mas obter arrecadação para a guerra
e outras necessidades.32
Ainda segundo Maria Felices, mesmo quando se olha para os bens alienados através
de instituições religiosas, a distinção também cai por terra.33 Apesar da denominação oficial
como benefício, para a historiadora essas transações se trataram claramente de vendas,
inclusive com um contrato firmado em que a instituição vendedora se comprometia a devol-
ver o dinheiro caso a mercê não fosse aprovada pelo Rei. Em alguns casos, havia até uma
cláusula que autorizava o comprador a revender o ofício ou título a quem quisesse.34 Portanto,
em conclusão, a autora defende sua posição afirmando que são débeis e contraditórios
os argumentos que defendem a distinção entre venda e benefício, se tratando de fato de
uma mesma realidade designada de duas maneiras diferentes. Quando a Coroa vendia ou
beneficiava, o que fazia era conceder um cargo ou honra a alguém que apresentava como
mérito o desembolso de dinheiro, independentemente de outros fatores. Assim, apesar de
um extenso debate teórico, na prática essa diferenciação não teria acontecido.35
Em relação às duas visões conceituais contrárias, a que parece fazer mais sentido é
de fato a que nega a distinção entre venda e benefício. O fato de uma operação conceder
a propriedade e a outra apenas o exercício temporalmente localizado não altera o ponto
principal: se trata de uma transação financeira fora dos padrões tradicionais de provimen-
to. Algo está sendo vendido e algo está sendo comprado, ainda que a maneira se altere
conforme o tipo de negociação. Mais uma vez aqui os contemporâneos dão uma excelente
indicação da situação, ao tentarem encobrir o rastro do dinheiro de sua posse no ofício,
31 Idem.
32 Idem.
33 Ibidem, p. 209-210.
34 Os pormenores sobre os aspectos presentes na prática e as maneiras em que ela acontecia serão apresentados mais à frente no
capítulo.
35 FELICES DE LA FUENTE, Maria del Mar. Venta y beneficio de cargos en la España Moderna: consideraciones en torno al concepto
de venalidad. In: CHATURVEDULA, Nandini; STUMPF, Roberta (orgs.). Cargos e ofícios nas Monarquias Ibéricas: provimento, con-

265
trolo e venalidade (séculos XVII-XVIII). 1ª ed., Lisboa: CHAM, 2012, p. 210-211.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


fosse venda ou benefício. O fato de ambos os termos trazerem igualmente no bojo uma
apreciação social menor parece ser resposta suficiente. Dizer isso não significa negar que,
em determinados estudos, de maneira pontual e dependendo da abordagem a ser tomada
pelo pesquisador, fazer a distinção não possa ser útil. Por exemplo, para um trabalho que
se proponha a analisar o nível de controle e alienação que a Coroa teve de seus bens, em
certos períodos de tempo, obviamente realizar a separação entre venda e benefício se
mostra fundamental, na medida em que apenas na venda a monarquia abria mão de seus
bens definitivamente. Porém, para aqueles que pretendem entender a prática venal como
um todo, realizar tal diferenciação pode até mesmo trazer distorções na compreensão da
realidade. Isso porque, para além de separar venda de benefício, o problema dessa visão
se localiza no seu ponto mais extremo, que é a negação mesma de que o benefício con-
siste em uma prática venal, o que parece ir contra a dita realidade da época. A impressão
que os historiadores que defendem a distinção passam é de que houve uma confusão na
análise, gerada pela aparência que os contemporâneos queriam passar dessas situações,
ou seja, de que não houve venalidade, mas sim uma provisão pelos méritos tradicionais.
Visões como a de Vilana y Petit indicam isso na defesa que o autor faz do donativo pecu-
niário, quando na verdade esse termo busca apenas esconder o peso da prática venal da
nomeação (tanto em Espanha quanto em Portugal, inclusive). Já a abordagem de Villanueva
erra ao diferenciar o benefício da venda pelo objetivo do dinheiro obtido, de cobrir gastos
pontuais ao invés de arrecadar recursos para a Fazenda Real, o que parece apenas uma
questão semântica. A partir do momento em que surgem custos que a dita Fazenda deverá
cobrir com seus recursos próprios, a receita direcionada para esses custos é obviamente
uma arrecadação da Coroa. Dessa forma, como a própria Maria Felices afirma, ao fim e ao
cabo tudo consiste em venalidade.
Um outro debate conceitual importante que perpassa a temática da venalidade na his-
toriografia hispânica é aquele referente à possibilidade de se falar em corrupção para esse
tipo de sociedade, ao menos nos moldes atuais. As práticas venais podem ser consideradas
corruptas? Eram vistas dessa maneira pelos contemporâneos? Michel Bertrand é um autor
que se dedicou a analisar a questão, identificando o que poderia ser considerado como cor-
rupção nessa lógica de Antigo Regime. O autor alerta para os riscos óbvios de anacronismos,
expressando o perigo de se pensar a temática sob os pontos de vista de hoje.36 Francisco
Andújar Castillo, por seu turno, ao observar a venalidade durante a Guerra de Sucessão,
resultado das necessidades impostas pela crise econômica espanhola, interpreta a moda-
lidade de venda levada à cabo pela monarquia nesse período como corrupta. Isso porque,
segundo o historiador, nesse momento de urgência a Coroa não teria respeitado os canais

266
36 Ibidem, p. 202.

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habituais estabelecidos para a prática venal nos anos anteriores.37 Ou seja, corrupção para
esse autor está ligada ao comportamento desviante da norma geral. Em sua maior parte,
a historiografia hispânica parece concordar com semelhante posição, utilizando a ideia de
corrupção de forma até certo ponto indiscriminada e com alguns pesquisadores chegando
mesmo a argumentar a existência de uma corrupção sistêmica envolvendo todo o sistema
político moderno espanhol.
Aprofundando mais na questão, Francisco Andújar Castilho apresenta a discussão
conceitual como um dos grandes pontos de análise da historiografia hispânica, buscando
pensar a possibilidade de se utilizar o termo corrupção para essas sociedades em um mo-
mento em que esse termo não estava claramente delimitado. Primeiramente, o autor traz
o significado da palavra nos dicionários da época, sempre um bom indicativo da forma de
pensar dos contemporâneos. Segundo o historiador, no século XVII, tanto no espanhol quan-
to no francês, a corrupção possuía um sentido ligado à prática política, definida como “mal
governo”.38 Especificamente no que se refere à língua espanhola, no “Tesoro de la Lengua
Castellana o Española“39, de 1611, corrupção não aparece ligado a questões político-admi-
nistrativas, mas sim o verbo corromper. Além de outros significados voltados ao desvio dos
costumes e da moral, existe para o sobredito verbo um sentido de ”corromper os juízes,
suborná-los“.40 Ainda de acordo com Andújar, é apenas no Dicionário das Autoridades um
século mais tarde que ”corrupção e corromper“ serão fixados de forma mais clara, sendo
definidos como “Todo home que corrumpiere a otro por ruego, o por algúno que dé, o que
prometa por algún engaño le ficiere decir falso testimonio, el que lo corrumpió, y el que dixo
la falsedad, hayan la pena de los falsos“.41 Porém, como é perceptível por esse verbete, o
significado dos termos está mais relacionado a falsidade em geral, ou seja, a uma questão
de moral e costumes. Não existe nesse momento, de maneira categórica, uma relação direta
entre corrupção e governo.
A título de comparação, também na língua portuguesa os dicionários da época pare-
cem seguir uma linha parecida, sem associar venalidade e corrupção especificamente ao
espectro político-administrativo, mas sim a desvios de uma tradição que regia a maneira de
ver e compreender o mundo daquela sociedade. O dicionário de Raphael Bluteau (1712-
1728), traz os seguintes significados para esses termos:

37 Idem.
38 CASTILLO, Francisco Andújar; FEROS, Antonio; LEIVA, Pilar Ponce. Corrupción y mecanismos de control en la Monarquía Hispáni-
ca: una revisión crítica. Tiempos Modernos: Revista Electrónica de Historia Moderna, vol. 8, nº 35, 2017, p. 288.
39 OROZCO, Sebastián de Covarrubias. Tesoro de la lengua castellana o española (1611-1613). In: CASTILLO, Francisco Andújar;
FEROS, Antonio; LEIVA, Pilar Ponce. Corrupción y mecanismos de control en la Monarquía Hispánica: una revisión crítica. Tiempos
Modernos: Revista Electrónica de Historia Moderna, vol. 8, nº 35, 2017, p. 288.
40 Idem.
41 REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de Autoridades. In: CASTILLO, Francisco Andújar; FEROS, Antonio; LEIVA, Pilar Ponce.
Corrupción y mecanismos de control en la Monarquía Hispánica: una revisión crítica. Tiempos Modernos: Revista Electrónica de

267
Historia Moderna, vol. 8, nº 35, 2017, p. 288.

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Venal: adj. Que se vende. Que se deixa peitar para obrar mal, que se faz
por peita, e dádivas corruptoras. V. g. , Magistrado venal, justiça venal, venal
escudo de nobreza, eloquência venal, a que se emprega mal, por mau preço.
Venalidade: A qualidade de ser venal. O abuso de vender o que se deve à
justiça, ou ao merecimento, de torcer a justiça por peitas. V. g. , a venalidade
dos cargos, e ofícios.42
Corrupção: O estado da coisa corrupta, ou corrompida v. g. , a corrupção da
carne morta, das águas encharcadas. Alteração do que é reto, e bom, em
mau, e depravado v. g. , a corrupção do gosto, dos costumes, do século.
Prevaricação.43

Como se pode ver pelo excerto acima, a ideia de venalidade para esses indivíduos
está muito ligada ao rompimento dos princípios da sua justiça distributiva, os princípios da
dádiva que davam sentido e se constituíam em chave de entendimento para a sua visão de
mundo. Incorrer na prática venal era alienar por dinheiro algo que jamais poderia ser alie-
nado (o dom), e por isso realizar uma má obra, corromper a dádiva por entregá-la a alguém
que não a mereceu. Sendo a venalidade praticada nos termos descritos no dicionário, ela
de fato significava um desvio, a quebra da lógica de funcionamento dessa sociedade, uma
coisa fora do que esses homens entendiam como “correto e bom”.
O verbete corrupção, por seu turno, segue um caminho parecido para os setecentistas
lusitanos. Existe ainda nesse momento uma ligação muito forte com uma corrupção natural,
do corpo e das coisas da natureza, e também da moral e dos costumes, muito ligados a uma
escatologia cristã. A coisa corrupta, em uma oposição muito simplista e abrangente, é uma
coisa má, contrária ao bem. Nesse momento, da mesma maneira que o verificado no caso
espanhol, a questão em voga parece ser menos uma corrupção política como entendida
atualmente, a qual certamente nem era pensada ainda da mesma forma, mas uma corrupção
do mundo, da forma como ele era visto e considerado como um fato por essas pessoas.
Até porque, como se verá mais a frente, a própria política era compreendida e realizada por
essas sociedades de maneira diferente, partindo de regras e pressupostos completamente
distintos. As “regras do jogo” eram outras, o que obviamente altera percepções e significados.
Mas voltando à Espanha, Francisco Andújar Castillo traz exatamente uma reflexão
sobre a dificuldade de precisar o termo corrupção justificada pelas estruturas políticas do
período. O Estado que existia nesse momento, como se sabe, era baseado em uma plu-
ralidade de corpos políticos que coexistiam dentro desse mesmo Estado, cada qual com
suas pretensões de autoridade e poder.44 O governo central possuía uma capacidade de
42 BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, reformado,
e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, Tomo
Segundo L=Z, p. 514-515.
43 BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, reformado,
e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, Tomo
Primeiro A=K, p. 336.
44 CASTILLO, Francisco Andújar; FEROS, Antonio; LEIVA, Pilar Ponce. Corrupción y mecanismos de control en la Monarquía Hispáni-

268
ca: una revisión crítica. Tiempos Modernos: Revista Electrónica de Historia Moderna, vol. 8, nº 35, 2017, p. 289.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


atuação limitada por esses organismos, reconhecendo as suas prerrogativas e formas de
organização política particularizadas.45 Dessa forma, para o autor o que pode ser denomi-
nado como práticas corruptas nesse momento era resultado da

‘permeabilidad programática’ del estado moderno ‘a poderes y propósitos (que


podríamos denominar ‘privados’… tan íntimamente ligados entre sí que for-
maban un nudo que difícilmente podría ser desenredado. Esta constitución
colectiva puede no haber sido reconocida por una teoría política que tendía a
insistir más bien en una nueva noción de soberanía, pero se legitimó como una
práctica generalizada de gobernanza. Un intento de clasificar los elementos
que podrían llamarse ‘privados’ o ‘públicos’ en un sentido moderno correría
el riesgo de generar anacronismos, ya que la línea de demarcación entre los
dos conceptos no estaba todavía bien trazada en la geometría política del
absolutismo’46

O ponto importante a ser compreendido aqui é exatamente esse: a grande dificuldade


de se definir o significado de corrupção para esse período está no fato de nesse tipo de
sociedade o público e o privado não se encontrarem totalmente separados, como acontece
de forma mais clara atualmente (ao menos em tese). Por isso o termo “corrupção” pensado
no sentido de hoje, ou seja, como o abuso dos bens públicos, se torna tão impossibilitado
de ser transplantado acriticamente para o Estado moderno. Segundo Andújar Castillo, isso
explicaria, por exemplo, a tendência dos acusados de comportamentos corruptos naquele
tempo de distinguir entre suas duas “personas”, a privada e a pública, como era usual se
fazer inclusive com o monarca e o Estado.47 Longe de ser apenas uma justificação de atos
ilícitos, esse argumento era amplamente aceito pelas autoridades e pelo público em geral
porque transmitia legitimidade, permitindo, sem nenhum tipo de conflito, distinguir quais ações
estavam permitidas ou proibidas a cada uma das ditas “personas“.48 Dessa forma, se um
ocupante de um ofício régio fosse acusado de receber suborno, poderia alegar que fora o
indivíduo particular o único presenteado, como um gesto de amizade e solidariedade típicos
daquele tecido social baseado no dar e receber, na economia do dom. A “persona“ pública,
por seu turno, a quem estavam ligadas restrições e proibições, passaria assim incólume ao
processo, não tendo recebido dádiva alguma e portanto não incorrendo em nenhuma ilega-
lidade. Era essa separação, a qual dificulta a delimitação de corrupção para os estudiosos
e historiadores do período, que tornava esse tipo de situação aceita naquela sociedade.
Tendo todas essas dificuldades inerentes à definição em vista, Francisco Andújar
Castillo defende que apesar do termo corrupção não estar ainda clarificado, inegavel-
mente ao menos o sentido de práticas corruptas ou ilegais estava já presente no período

45 Idem.
46 Idem.
47 Ibidem, p. 289-290.

269
48 Idem.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


moderno.49 De maneira geral, o autor afirma que poucos textos utilizam a palavra “corrupção“
para se referir aos delitos cometidos por oficiais, ministros e instituições, mas que por seu
turno existiam inúmeras outras referências a práticas como essas expressas através de ou-
tros termos, tais quais mal governo, apropriação de direitos e propriedades do Rei e mesmo
delitos contra o bem público.50 Ainda segundo o historiador, desde o século XIII, quando as
monarquias europeias teriam criado os fundamentos essenciais do Estado centralizado, a
função principal de suas instituições era ajudar a proteger e administrar os interesses do Rei.
Dessa forma, todos os indivíduos que assumiram posições no corpo burocrático o fizeram
como prerrogativa do monarca, como concessão de seus direitos. Todos eram servidores
do Rei, independentemente de sua posição, e sua obrigação era ser leal à Coroa. Por isso,
os funcionários que cometessem delitos não eram então acusados de corrupção, mas sim
de usurpação do poder monárquico, apropriação e privatização do patrocínio do Rei e per-
versão da justiça régia.51
Porém, de acordo com Andújar, o período moderno também seria testemunha do
nascimento de um novo conceito de Estado, recuperando ideias clássicas de bem público
e serviço público.52 Assim, na segunda metade do século XVI, para o caso espanhol, co-
meçariam a aparecer definições do Estado não apenas como domínio do Rei, mas também
algumas referências que iriam definir o poder estatal como instituições de governo separadas
e distintas do elemento régio. Junte-se a isso o renascimento de teorias clássicas sobre a
importância do bem comum, e a obrigatoriedade a que todos, desde o monarca até o mais
baixo escalão de oficiais, deveriam se submeter de servir a esse bem comum, fosse pelo
poder da lei ou mesmo pela filosofia moral e ética.53 Isso marcaria, para Francisco Andújar,
o surgimento a partir daquele momento de claros indicadores, entre sociedade em geral e
tratadistas, de uma nova concepção que passaria a exigir comportamentos diferentes entre
quem exercia um cargo administrativo e o restante das pessoas. Seria então o início do
momento da separação entre as esferas pública e privada, com esse processo alcançando
até mesmo a figura do Rei.54 Portanto, como apresentado até aqui, para o autor se torna
possível a inserção do conceito de corrupção para a análise desse tipo de sociedade.
Sobre a validade da aplicação de uma ideia de corrupção dentro da lógica de funcio-
namento de tecidos sociais como esse, Josep Lluís Mateo Dieste traz importantes e inte-
ressantes questionamentos:

[...] la noción de corrupción parte de la noción de desvío, de incumplimiento de


49 Ibidem, p. 290.
50 Idem.
51 Ibidem, p. 290-291.
52 Ibidem, p. 291.
53 Idem.

270
54 Ibidem, p.291-292.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


unas reglas que rigen una institución, que indica que una persona ha utilizado
ese vicio en su propio beneficio. Pero la definición presupone, por tanto, la
existencia de una organización socio-política con unas normas que prescriben
la distinción entre lo privado y lo vinculado a la institución; y parte de una sepa-
ración estricta entre la espera de la política, del parentesco y de la economía.
De ahí que nos podamos plantear la siguiente pregunta: ¿qué sucede cuando
en una organización política la religión, la economía o la política convergen, o
cuando la remuneración de los puestos no está asegurada por una redistribu-
ción centralizada, sino por un sistema de comisiones repleto de intermediarios,
o cuando una organización política se fundamenta en criterios de genealogía,
de alianzas matrimoniales o de reciprocidad?55

Como é possível ver pelo excerto acima, Dieste traz um excelente contraponto a alguns
dos elementos trazidos por Francisco Andújar, especificamente no que se refere à lógica de
funcionamento inerente a essas sociedades de Antigo Regime. Como já dito antes, e também
afirmado pelo autor catalão, é muito complicado aplicar a ideia de corrupção - que por defi-
nição é um conceito extremamente vago e amplo, podendo abarcar um grande número de
práticas diferentes - para um tipo de organização social e política em que as esferas pública
e privada ainda não estão completamente separadas. Mesmo se, como afirma Andújar, na
Espanha esses dois âmbitos já estavam começando a se separar em determinado ponto
da modernidade (para Portugal a história é outra), essa ruptura não é fácil, uma vez que é
uma abstração que pressupõe uma mudança de mentalidade e visão de mundo. A maneira
como entendemos e enxergamos o todo social que nos cerca, ainda que individual, é cons-
truída por séculos e sofre influências e condicionantes de gerações de pessoas que fazem
parte do nosso convívio e das nossas relações. Dessa forma, pode-se questionar até que
ponto, naquele momento inicial, essa mudança pendente para a distinção do público-privado
encontrou penetração geral no meio social a ponto de ser possível já falar em corrupção
política. Aliás, indo um pouco além, é possível até mesmo questionar se essa separação
se completou nos dias atuais.
Por sua vez, Dieste vai mais a fundo na análise trazendo Karl Polanyi e Marcel Mauss
para mostrar como nessa sociedade em específico não era só o público e o privado que se
encontravam unidos, mas também a política, a economia, a religiosidade e o parentesco.56
Esse tecido social, baseado no dom e em relações de reciprocidade, pressupunha como base
de seu funcionamento e forma de ascensão e manutenção social a formação de alianças
e redes clientelares, com indivíduos colocados nas posições certas que permitissem uma
busca ativa e estratégica de mercês. As relações de amizade e parentesco eram de extrema
importância e faziam parte do sistema, da visão de mundo dessas pessoas. A nomeação

55 DIESTE, Josep Lluís Mateo. <<Una Antigua Costumbre...>>. Corrupción entre colonizadores y colonizados en Alcázarquivir (1925),
Protectorado español de Marruecos. Illes I Imperis: Estudios de historia de las sociedades en el mundo colonial y post-colonial, nº 16,
2014, p. 165-166.

271
56 Idem.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


para ofícios, por exemplo, não estava ligada a mérito para exercer a função ou eficiência
nas atividades, da maneira como essas nomeações são pensadas hoje; não havia razão
de Estado, ou melhor, a razão de Estado daquele momento era diferente, porque o próprio
Estado era pensado de um jeito diferente. Naquele momento, as nomeações para a ocupação
de cargos administrativos levavam em conta a natureza do indivíduo, ou seja, sua posição
aparente na escala social (parecer é ser), o complexo de relações bem posicionadas que
pudessem ajudá-lo a defender seu caso e também o histórico de lealdade e bons serviços
à Coroa. Essas práticas podem ser consideradas corruptas? Pensando com a cabeça do
século XXI, diríamos que clientelismo e favoritismo são praticamente a definição de corrup-
ção. Porém, em uma sociedade de Antigo Regime isso era a normalidade, estava ligado à
maneira através da qual eles enxergavam o mundo a sua volta.
E mesmo algumas práticas cometidas por esses homens e que foram alvo de denún-
cias, por serem consideradas abusivas e exploratórias no desempenho de suas atividades
(especialmente no que se refere a aspectos financeiros), precisam ser relativizadas, por
estarem mais uma vez ligadas à sociedade em que eles estavam inseridos. É importante
lembrar que muitos desses cargos não possuíam salário fixo, estando seu faturamento ligado
ao quanto pudessem tirar do exercício de suas funções. Além disso, para se manterem em
um estatuto social superior condizente com sua posição, eram necessários gastos maiores,
uma vez que o custo de vida de um estrato acima na sociedade era mais elevado. Ao fim e
ao cabo, arrecadar o máximo possível de um ofício era muitas vezes uma exigência social, e
os meios utilizados por esses homens para tal, desde que não lesassem a Coroa, boa parte
das vezes não eram sequer investigados, quanto mais punidos com severidade.
O que leva aliás a um último ponto sobre a dificuldade de se pensar o conceito de cor-
rupção na história, em sociedades mais recuadas no tempo. E nos casos em que existiram
denúncias de abusos, é possível falar em corrupção? Isso é um sinal de que a sociedade
via aquela prática como corrupta? Mais uma vez é preciso relativizar. A corrupção, desde
sempre e exatamente por ser uma ideia tão vaga, foi utilizada como meio de criminalizar o
debate político. Em conjunturas específicas e pontuais de grande tensão entre grupos e opo-
sitores políticos, muitas vezes acontece de práticas que até aquele momento foram aceitas
ou ao menos toleradas, acontecendo mais ou menos frequentemente pelos mais diferentes
personagens e de maneira pouco controversa, passarem a ser utilizadas como arma para
criminalizar o opositor e alijá-lo do campo de disputa político. No período moderno isso não
era diferente, com muitas dessas denúncias sendo dessa forma mais politicamente (e so-
cialmente) motivadas do que ligadas a uma crença genuína na imoralidade e na ilegalidade
dos atos cometidos. Por isso é preciso sempre analisar o contexto, e buscar compreender

272
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
o discurso dos atores envolvidos e suas posições e objetivos. Às vezes é necessário des-
confiar do que está sendo falado, e buscar as ações que estão sendo colocadas em prática.

CONCLUSÃO

Em síntese, o tema da venalidade se apresenta com um campo de estudos extrema-


mente frutífero e relevante, que ainda necessita ser aberto no que se refere à prática no
Império português. Ainda que não tenha acontecido de maneira tão ampla e difundida nesses
territórios quando em comparação com a vizinha Espanha, o alcance da prática em Portugal
não pode ser desprezado, tendo importantes desdobramentos e se ligando ao mesmo tempo
em que ia moldando a sociedade em que estava inserida. Dessa forma, os aportes teóricos
já realizados pela historiografia hispânica servem de guia, permitindo àqueles que se interes-
sam pela temática a percorrer os caminhos já desbravados. Simultaneamente, discussões
como a que se refere a validade do uso da ideia de corrupção para o meio social moderno
vão muito além da questão da venalidade, sendo relevantes para os mais diversos temas e
de certa forma projetando seus ecos até o próprio tempo presente.

FINANCIAMENTO

Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.


Universidade Federal de Juiz de Fora.
Laboratório de História Econômica e Social (LAHES) da Universidade Federal
de Juiz de Fora.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

REFERÊNCIAS
1. BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza composto
pelo Padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural
do Rio de Janeiro. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, Tomo Primeiro A=K.

2. BLUTEAU, Rafael; SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza composto


pelo Padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural
do Rio de Janeiro. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, Tomo Segundo L=Z.

3. CASTILLO, Francisco Andújar. Los contratos de venta de empleos en la España del Antiguo
Régimen. In: CASTILLO, Francisco Andújar (Org.); FELICES DE LA FUENTE, Maria del Mar
(Org.). El poder del dinero. Ventas de cargos y honores en la España del Antiguo Régimen.
Madrid, Biblioteca Nueva, 2011.
273
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
4. CASTILLO, Francisco Andújar; FEROS, Antonio; LEIVA, Pilar Ponce. Corrupción y mecanis-
mos de control en la Monarquía Hispánica: una revisión crítica. Tiempos Modernos: Revista
Electrónica de Historia Moderna, vol. 8, nº 35, 2017.

5. DEDIEU, Jean Pierre; RENEDO, Andoni Artola. Venalidad en contexto. Venalidad y conven-
ciones políticas en la España Moderna. In: CASTILLO, Francisco Andújar (Org.); FELICES
DE LA FUENTE, Maria del Mar (Org.). El poder del dinero. Ventas de cargos y honores en la
España del Antiguo Régimen. Madrid, Biblioteca Nueva, 2011.

6. DIESTE, Josep Lluís Mateo. <<Una Antigua Costumbre...>>. Corrupción entre colonizadores
y colonizados en Alcázarquivir (1925), Protectorado español de Marruecos. Illes I Imperis:
Estudios de historia de las sociedades en el mundo colonial y post-colonial, nº 16, 2014.

7. FELICES DE LA FUENTE, Maria del Mar. Venta y beneficio de cargos en la España Moderna:
consideraciones en torno al concepto de venalidad. In: STUMPF, Roberta (Org.); CHATUR-
VEDULA, Nandini (Org.). Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e
venalidade (séculos XVII-XVIII). 1ª. ed. Lisboa: CHAM, 2012.

8. HERZOG, Tamar. La administración como un fenómeno social: la justicia penal de la ciudad


de Quito (1650-1750). Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1995.

9. REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de Autoridades. Madrid, Tomo I, 1726.

10. STUMPF, Roberta. Venalidad de ofícios en la monarquía portuguesa: un balance preliminar.


In: CASTILLO, Francisco Andújar (Org.); FELICES DE LA FUENTE, Maria del Mar (Org.). El
poder del dinero. Ventas de cargos y honores en la España del Antiguo Régimen. Madrid,
Biblioteca Nueva, 2011.

11. TAPIA, Ángel Sanz. Canarios en cargos políticos americanos (1670-1700). In: PADRÓN, Fran-
cisco Morales (Org.). XIII Coloquio de Historia Canario-Americana. VIII Congreso Internacional
de Historia de América (AEA), Las Palmas de Gran Canaria, Cabildo de Gran Canaria, 2000.

12. TAPIA, Ángel Sanz. Corrupción o necesidad? La venta de cargos de gobierno americanos bajo
Carlos II (1674-1700). Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2009.

13. VILANA Y PETIT, José de. Títulos de Indias. Estudio de los beneficiados. Cartela Heráldica,
nº 9, 1973.

14. VILLANUEVA, Ramón Maruri. Poder con poder se paga: títulos nobiliarios beneficiados en
Indias (1681-1821). Revista de Indias, vol. 69, nº 246, 2009.

274
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
20
Giselle ou Les Willis, um conglomerado
de imagens

Franciara Sharon Silva do Carmo


UFJF

10.37885/210203061
RESUMO

Este trabalho tem como principal objetivo, abordar as imagens produzidas no entorno
do balé romântico francês, Giselle. Este balé que é considerado a obra prima do balé
romântico do século XIX, foi inspirado em um texto do escritor alemão Henri Heinrich,
que contava a lenda das Willis. Foi transformado em balé pelo poeta e crítico Théophile
Gautier em 1841, e foi apresentada pela primeira vez nos palcos da Académie Royale
de la Musique et de la Danse, atual Ópera Garnier. Para este trabalho, foram recolhidas
cerca de dezenove imagens dispostas online, via arquivo da Biblioteca Nacional Francesa,
Gallica. Estas imagens remetem ao período de estreia do balé, o ano de 1841. O período
romântico foi extremamente frutífero para o balé, inúmeras obras foram criadas e apre-
sentadas para o público, todavia dentre todas, Giselle conseguiu se elevar ao patamar
de um clássico, ocupando um importante lugar na História do balé.

Palavras-chave: História da Dança, História do Ballet, Giselle, História da Arte, França XIX.

276
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

O termo balé designa um estilo de dança que se originou nas cortes italianas do século
XV, neste momento denominado Balé de Corte. Chegou à França com a influência da rainha
Catarina de Médici, que neste momento foi sua maior incentivadora. Neste país foi onde o
balé rapidamente se desenvolveu e foi estruturada, o motivo principal é o interesse de Luís
XIV pelas artes e pela dança, este rei fundou uma academia, Académie Royale de la Danse
(1661) e posteriormente renomeada de Académie Royale de Musique (1672) exclusiva para
a prática e para o ensino da mesma. Se atualmente o balé é um tipo de dança influente
a nível mundial que possui uma forma altamente técnica e um vocabulário próprio, o qual
ainda utiliza o francês como língua oficial, é devido à forte organização que ele obteve ao
longo da História.
Em meados do século XIX surge em concordância com o espírito da época o movimento
romântico, que foi de grande valia para o balé, pois sob sua influência são criados grandes
repertórios que ainda hoje possuem graça e excelência. A Ópera foi entregue aos gnomos,
as odinas, as salamandras, aos elfos, aos espíritos e as ninfas das águas, aos peris e toda
população estranha e misteriosa que se presta tão bem ás fantasias do balé.1 O período
romântico talvez seja um dos mais conhecidos pelas pessoas não especializadas em dança,
através das numerosas litografias da época que imortalizaram balés e bailarinas.2

OBJETIVO

Identificar a produção imagética acerca de um balé de repertório durante o período de


sua estreia. Este trabalho também tem como principal objetivo fazer um breve levantamento
sobre as imagens produzidas a partir do balé romântico francês Giselle. É importante desta-
car que as imagens que serão trabalhadas constam no acervo online da Biblioteca Nacional
Francesa, o website Gallica. Estas imagens foram produzidas no ano de estreia do balé
1841, sendo produzidas em Paris. A escolha de trabalhar este período da confecção das
imagens remete a ideia de um mapeamento do que estava sendo produzido em um primeiro
momento sobre este balé.

MÉTODOS

Mapeamento de produção imagética dentro do acervo disponibilizado pela Biblioteca


Nacional Francesa, via website Gallica.

1 BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. 2°Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p.204.

277
2 FARO, Antonio José. Pequena História da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. p.58.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Identificação e organização em categorias das imagens encontradas.
Leitura das Imagens e identificação de detalhes e padrões remetentes ao Balé.
Identificação de conteúdo e compreensão do objeto em sua contemporaneidade.

RESULTADOS

Identificação do padrão de intensão das dezenove imagens, sua circulação social e


sua contextualização dentro do universo do Balé.

DISCUSSÃO

Há 180 anos, em 28 de junho de 1841, ocorria a estreia da obra clássica do balé ro-
mântico francês, Giselle. Ao falar da dança no século XIX, temos uma série de questões que
nos é relevante. O balé adere ao movimento romântico em 1831, ao fazer isto consegue se
desvincular da ópera e criar um estilo próprio. Apesar da entrada tardia no movimento, o balé
romântico consegue grande êxito em suas apresentações. Os enredos levados aos palcos
tratavam questões sobre os amores impossíveis, a dualidade entre o mortal e o imortal e
as dificuldades dos amores entre estes seres. Entre comédias e tragédias desenvolve-se o
romantismo no balé. “O balé transformou-se em poderosa fonte de inspiração e ilusão, e o
desenvolvimento simultâneo de todos os seus componentes – conteúdo dramático, música,
cenários, figurinos, novas formas ou estilos de dança e coreografia – fez dele uma expressão
real do ideal romântico.”3
Esta inspiração pode ser encontrada em diferentes âmbitos das artes, e alguns des-
tes reflexos podem ser encontrados no arquivo online Gallica, onde encontramos o total
de dezenove imagens produzidas no que remete ao primeiro ano de Giselle no palco da
Ópera, estas imagens estão divididas no site em: dois cadernos de imagens somando o
total de dez imagens, cinco sendo capa de arquivos de texto e as demais estão arquivadas
de forma individualizada. Estas imagens podem ser divididas em dois grandes grupos:
Litografias e Croquis de figurinos. O primeiro grupo que será abordado é o de Croquis, este
é constituído por sete imagens, todas desenhadas pelo figurinista da Ópera, Paul Lormier.
Estas imagens foram confeccionadas em papel, e o desenho foi feito em lápis e aquarela,
algumas folhas possuem inscrições em caneta. Um dos principais nomes no que se refe-
ria a costumes, Lormier buscava trazer em seus figurinos, algo autêntico a história que se
passava o enredo apresentado e roupas em que os bailarinos pudessem elaborar passos
virtuosos com facilidade.

278
3 FARO, Antonio José. Pequena História da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. p.65.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


As modificações as quais o balé passa ao adentrar no movimento romântico vão desde
os mais simples detalhes, como a busca pela fluidez do movimento e a expressão gestual,
que neste momento será de grande valia, quanto a num aspecto geral a qual a dança pode
se apresentar. Desta forma temos mudanças no estilo de figurino usado. As bailarinas do
século XVIII usavam trajes que assemelhavam aqueles usados nas ruas, vestidos longos e
pesados, perucas e algumas vezes trajavam máscaras. Ao buscar a fluidez do movimento
é necessário repensar as vestimentas, as saias são encurtadas até a meia canela e o teci-
do usado passa a ser o tule ou musseline para que pudesse apresentar este propósito de
leveza. E para que os movimentos possam ser executados com maior afinco e o público
pudesse ver esta execução, começam a serem usadas as malhas e as meias-calças, para
maior comodidade dos bailarinos. As perucas e máscaras são aposentadas. O item mais
conhecido no balé, as sapatilhas de ponta também têm seu uso iniciado neste período, como
um elemento de dramatização e elevação, estas tinham como objetivo caracterizar as bai-
larinas que representavam os seres místicos, dando um ar sublime, elevado e inalcançável.
As imagens de Lormier apesar de serem catalogadas no ano de 1841 no geral, po-
demos remeter sua produção entre os meses de abril, data de anúncio do balé, e junho,
data de estreia, por serem imagens de figurinos a serem usados e que precisavam ser
desenhados, confeccionados e por vezes modificados antes da estreia, sendo assim as
primeiras imagens produzidas para este balé. As quatro primeiras imagens do caderno são
croquis prontos e intitulados, estão em aquarela, e possuem quatro carimbos e anotações
a caneta sobre possíveis modificações no figurino e a assinatura do autor, seu tamanho
é de 150x230mm. As imagens são intituladas pelo próprio autor em: Senhor em traje de
caça (Seigneur en habit de chasse), Giselle e uma camponesa (Giselle et une vendangeu-
se4), O Duke Albert, primeiro figurino (Le duc Albert, 1er costume) e O Duke Albert, segundo
figurino (Le duc Albert, 2e costume).
Ao tomarmos de análise a imagem Giselle e uma camponesa, sabemos pelo seu título
em original a profissão da mulher que irá compor o balé, a vindimeira está com seu uniforme
de trabalho, logo, está com um pequeno chapéu, um avental branco e porta um pequeno
cantil. Sua roupa possui mangas ¾ propícias para seu trabalho, está de meia calça branca,
tão dignas do balé, e sapatilhas modestas, as vindimeiras participam do primeiro ato do
balé, o ato terreno, logo estas não sobem em ponta ao fazerem suas danças em comemo-
ração ao último dia da colheita, o dia mais feliz daquela aldeia, para estas são reservadas
a meia ponta alta. Podemos ver serem retratadas também com cuidado a face de uma das
bailarinas que irá interpretar estes personagens que compõem o corpo de balé do primeiro
ato, enriquecendo-o.
4 Vendangeuse é um termo especifico para designar a pessoa responsável pela colheita das uvas utilizadas para fazer vinho, todavia

279
fora traduzida para camponesa para não prejudicar a fluidez do texto.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


No que diz respeito a anotações, Lormier não o fez em forma de observação ou possível
mudança, este é um figurino finalizado. As anotações que contamos são as de cataloga-
ção. No canto superior esquerdo temos um dos títulos do balé Les Willis, ao centro o número
da imagem, n°2, e o seu título consta no canto superior direito Giselle et une vendangeuse.
Logo abaixo do desenho temos a assinatura do artista, em forma de rúbrica PL, e o ano de
confecção. Dos carimbos, a obra possui quatro, todas a registrando como propriedade da
Ópera. O primeiro mais próximo das sapatilhas consta “Bibl de L’Opera”, o segundo ao lado
da assinatura consta “Bibliothèque Musée Opera” e uma pequena estrela. O terceiro é uma
pequena coroa e o quarto uma junção de letras iniciais, que nos traz referência ao nome
da Ópera de Paris no momento de criação deste balé, Académie Royale de la Musique et
de la Danse, sendo estes dois provavelmente os primeiros carimbos da obra e os últimos
sendo posteriores a mudanças de nomenclatura e acervo. Todas as obras deste caderno
possuem os mesmos carimbos, em cor e lugar semelhante.
A segunda parte deste caderno é constituída por três imagens, todas em forma de
esboço, pode-se ver em lápis uma leve sombra, a qual determina um primeiro esboço do
desenho, e por cima deste as modificações feitas com o desenho final em caneta. Estas
estão de forma mais rústica de um desenho mais rápido, todavia exprimem uma beleza sutil.
Estão denominadas pelo autor como: Giselle, Camponesa. Senhorita Grisi (Giselle, paysan-
ne5. Mlle Grisi), Berthe, a mãe de Giselle. Senhorita Roland (Berthe, mère de Giselle. Mlle
Roland) e Giselle. Estas possuem a proporção de 075x150mm, as duas primeiras sendo
em lápis e caneta e a última apenas em lápis, apesar de ser colorida.
Se fizermos uma pequena análise de um dos desenhos, podemos ter uma ideia de
como foi o processo de criação dos figurinos do balé, tomaremos Giselle, Camponesa.
Senhorita Grisi, para esta pequena análise. O desenho ocupa o centro e a parte inferior do
papel, sendo um esboço da roupa de Giselle no primeiro ato do balé, o desenho é da parte
superior do corpo da bailarina, frente e costas, sendo que na frente o autor teve o cuidado
de desenhar a face de Carlotta Grisi. Apesar de Giselle se restringir a afazeres domésticos,
sua roupa é bem similar ao das demais camponesas, sendo pequenos detalhes como as
mangas mais curtas, uma gola mais fechada e um corpete de botões que a modifica das
demais, fazendo-a destacar entre as demais. Este desenho conta com anotações do figu-
rinista. Estas anotações remetem a detalhes do figurino tais como, segundo a indicação
do desenhista o enfeite de cabeça de Giselle deveria ser de “veludo azul céu”, seu corpete
deveria ser de “veludo carmelite”, “bordo, botões de ouro” e apesar de não desenhar a saia
por completo, ele aponta “grandes saias” e “Borda de cetim azul céu” “forrado em prata”,
5 Giselle na história possui um problema de coração, o que a impossibilita de fazer atividades que possam exigir muito esforço, desta
forma ela não trabalha como as outras mulheres da aldeia nas vindimas, ela fica em casa apenas ajudando sua mãe nos afazeres
domésticos. Desta forma é compreensível a mudança na denominação dos desenhos, sendo Giselle apenas uma camponesa (pay-

280
sanne) e suas amigas serem camponesa vindimeiras (vendangeuse).

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


essas cores e tecidos de padrão mais luxuosos são o que fazem a diferença para que a
bailarina de destaque e chame o olhar do público para si. Além destas anotações, estão na
parte superior do papel, no canto esquerdo, Les Willis, no centro o número 3 em lápis e o
número 5 em caneta e no canto direito o nome da obra Paysanne. Mlle Grisi. Próximo ao
desenho consta a anotação 5 et 2bis, não possui a assinatura do autor, apenas os quatro
carimbos aqui já mencionados.
Sendo estas as primeiras imagens que foram produzidas para o balé, podemos ver
detalhes da história sendo contada, através destas imagens, reconhecemos personagens
e, além disto, podemos ver que o artista se debruçou com afinco para criar figurinos que
pudessem contribuir com a obra em seu contexto geral. Para a apresentação o balé come-
ça a ser dividido em dois atos, o primeiro geralmente sendo passado no contexto terrestre
dos humanos e o segundo ato sendo trabalhadas as habitações dos seres sobrenaturais.
Sendo assim para as mudanças de cenário e figurinos que a história pedia, pela primeira
vez no balé, as cortinas se fecham entre os atos. O segundo ato começa a ser conhecido
como Ato Branco, referenciando a cor das túnicas que as bailarinas interpretando seres
sobrenaturais usavam. Lormier devia traçar os diferentes contextos e a participação de
cada bailarino para que pudesse criar principalmente para as estrelas um figurino que era
condizente com o personagem, e ao mesmo tempo se diferenciasse das demais. Apesar
de terem restado apenas sete destes croquis, sabemos que Lormier organizou o figurino
de todos os personagens, o que nos denota sua riqueza criativa. Desta forma assim como
o libretista, o coreógrafo, o músico e o cenógrafo cada qual contribuíam para construir uma
parte da ilusão desta obra, o figurinista contribuía com a autenticidade das roupas usadas,
possuindo cada qual sua riqueza de detalhes.
Os figurinos de Paul Lormier conseguiram se eternizar, sendo constantemente repro-
duzidos por outras companhias de balé e influenciando outros balés do mesmo estilo. O fi-
gurinista conseguiu sucesso em sua carreira, sendo ele juntamente com Eugène Larmi, os
figurinistas da Ópera que buscavam a autenticidade de figurinos e os adaptava para que
o bailarino pudesse dançar com a liberdade de movimento. É interessante destacar que
o enredo de Giselle foi baseado em uma lenda alemã, desta forma Lormier buscou trazer
ao palco um figurino que condiz com a época da história, local, personagens e a lenda em
si. A diferença de figurinos de nobres e camponeses da pequena aldeia no primeiro ato
conseguiu exprimir com êxito as diferenças históricas temporais e das localizações, Lormier
fazia inúmeras pesquisas para conseguir êxito nas apresentações.
Além disto, é interessante destacar que Heine em seu texto faz uma pequena descrição
do que as Wilis trajavam: “Vestidas com seus trajes de casamento, coroa de flores, anéis

281
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
ofuscantes nos dedos, as Wilis dançam ao luar como elfos.”6 , texto este que fora publicado
na França e serviu de inspiração para Gautier, sendo o ápice da história, era importante
adaptar com a maior verossimilhança possível. A descrição das Willis que é habitualmente
apresentada nos libretos das apresentações, Lormier teve que adaptar estes trajes e criar
algo condizente com a história e com os palcos, criando um modelo que posteriormente foi
amplamente reproduzido em diversas companhias de balé. Este pequeno caderno de de-
senhos desempenha uma importante função, além de trazer consigo os primeiros figurinos
criados para este balé, podemos conferir a genialidade do artista ao criar cada traje.
Giselle estreou nos palcos da Ópera em 28 de junho de 1841, levando ao palco uma
história assinada por Theóphile Gautier, poeta e crítico de arte, e Jules-Henri Vernoy de
Saint Georges, um dos mais prolíferos libretistas do século XIX. Com coreografias de Jean
Coralli, coreógrafo da casa, e hoje se tem conhecimento que Jules Perrot também partici-
pou da criação da coreografia, sobretudo das partes que foram interpretadas pela estrela
recém-contratada da Ópera, Carlota Grissi, então sua esposa. A inspiração para o enredo
adveio de um texto do livro De l’Allemagne (1835), de Heinrich Heine, o qual o autor conta a
história das Willis. Todavia a morte da personagem principal adveio do poema Les Fantômes
de Victor Hugo da obra Les Orientales (1829). E assim “as lendas de Heinrich Heine ganha-
ram vida através de Giselle”.7 Eis que este trabalho conjunto de um importante poeta e um
grande libretista gerou o seguinte enredo:

“Primeiro Ato – Pequena Aldeia nos arredores de uma vindima. Ao Longe as


torres de um castelo. Giselle, jovem e ingênua camponesa, está apaixonada
pelo Conde Albrecht, que julga ser um humilde camponês, pois é com este
disfarce que ele se apresenta a ela. Berthe, sua mãe, deseja ver a filha casada
com Hilarion, um jovem da aldeia loucamente apaixonado por Giselle. Este,
cheio de ciúmes, descobre a verdadeira identidade de Albrecht e resolve des-
mascará-lo na presença de Giselle e de seus amigos, bem como à vista de
Bathilde – noiva do nobre Albrecht. A revelação da verdade deixa a jovem pro-
fundamente abalada. Não suportando tamanha mágoa, enlouquece e morre.8

O primeiro ato terreno se encerra de forma drástica, dando espaço para o segundo
ato, etéreo e mágico, que nos traz a lenda alemã.

Segundo Ato – Hilarion está de vigília na tumba de Giselle quando soa meia-
-noite. Esta é a hora da materialização das Wilis, espíritos de jovens que foram
enganadas e morreram antes do dia do casamento. Elas se vigam fazendo
dançar até a morte qualquer homem que encontrem nos arredores do cemi-
tério. Myrtha, sua rainha, aparece e chama as demais Wilis. Neste momento
elas tiram Giselle da sepultura para iniciá-la nos seus ritos. Quando Albrecht
aparece trazendo flores, Giselle surge para ele. Logos as Wilis retornam,

6 Programa do balé Giselle, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 2008. p.5.


7 FARO, Antonio José. Pequena História da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. p. 66.

282
8 Programa do balé Giselle. Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 2008. p.10.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


perseguindo Hilarion, a quem levam à morte depois de fazêlo dançar até a
exaustão. Sob as ordens de Myrtha, as Wilis preparam destino semelhante
para Albrecht. Giselle, porém, coloca-o sob a proteção da cruz do seu próprio
túmulo. Myrtha usa seu poder sobre Giselle para forçá-lo a dançar. Ao longo
da noite, Giselle luta para sustentá-lo e ajudá-lo. Mas ele dança e desmaia,
exausto. Quando parece estar quase à morte, surge a aurora com o primeiro
raio de sol, quebrando o poder das Wilis. Giselle também desaparece. Albrecht
teve sua vida preservada.9

Todavia uma vez que o balé teve sua estreia, temos outras produções artísticas que
o usaram como base. Temos então a produção de litografias, estas que podemos mapear
sua produção entre os meses de julho e dezembro do ano de 1841. No site Gallica as ima-
gens, não possuem data constando apenas o seu ano de sua produção, mas sabemos que
para a produção litográfica era preciso o contato com a obra em si, logo o balé já estava
nos palcos no período de confecção das imagens, sendo assim, imagens que o público
já conhecia. Através delas o público poderia reconhecer e recontar passagens do enredo
do balé e situar os personagens. Destas litografias encontradas, soma-se o total de treze
imagens, as quais podemos dividir em dois grupos, Apresentação de personagens (cinco
imagens) e Representação de Cenas do Balé (sete imagens, sendo cinco capas de caderno
de imagens ou texto).
Sabemos que a sociedade de meados do século XIX adquiria estas litografias para o
consumo, que se pode dividir em duas formas, a de colecionismo, ou, para decoração de
ambientes, sendo que uma opção não anula a outra. “O período romântico talvez seja um
dos mais conhecidos pelas pessoas não especializadas em dança, através das numerosas
litografias da época que imortalizaram balés e bailarinas.”10 Apesar de ter chegado até nós
apenas estas treze litografias do ano de 1841, podemos entender o seu lugar social e a
importância desta arte. A produção litográfica de balé após sua desvinculação das apresen-
tações de ópera é bem mais simbólica, apenas como uma arte independente e reconhecida
pelo público e por seus pares o balé poderia se tornar uma fonte de inspiração dos litógrafos
e interesse social. “Mas o apogeu dessa tendência se dá com o endeusamento de bailarinas
como Taglioni, Cerrito, Elssler, Grisi ou Graham. Suas litografias, reproduzidas às centenas,
transformaram-se em objetos de decoração nas casas particulares e de negócios da épo-
ca.”11 Cada uma destas bailarinas possuía grande talento, neste momento em que o balé é
escrito para a bailarina, estas conseguiram ser fonte de inspiração de inúmeros balés, logo,
inúmeras litografias suas foram produzidas e circularam em ambientes públicos e privados
da sociedade europeia. “As bailarinas são mostradas quase sempre como seres alados ou
extraterrenos, figuras de lendas e de imaginação, bem de acordo com a época, quando

9 Programa do balé Giselle. Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 1999. p.9.


10 FARO, Antonio José. Pequena História da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. p.58.

283
11 Ibidem, p.58.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


as mulheres eram colocadas em pedestal e por seu amor qualquer luta era considerada
válida.”12 O balé apesar de ser uma nova arte conseguiu levar ao palco a representação
do movimento romântico, em um aglomerado artístico, músicos, escritores, desenhistas se
prestavam a essa arte. Todavia as bailarinas elevadas em pontas eram as que melhor re-
presentavam as mulheres intocáveis do romantismo. “Suas litografias enchiam as salas da
burguesia de então, os estudantes digladiavam-se nos bares e nas ruas, cada grupo defen-
dendo ou promovendo os valores de sua favorita. Os poetas lhes dedicavam versos, muitas
vezes seus nomes aparecem como personagens das novelas e romances da época.”13
Desta forma podemos ver um público e um mercado consumidor de balé e das litogra-
fias que se basearam neste. Ao olharmos para o primeiro grupo de litografias, que iremos
denominar de Apresentação de personagens, temos uma ideia de como foi a relação social
das litografias de balé. Este grupo é formado por um caderno de imagens que possui como
capa e última folha uma cena do balé, e seu miolo é um conglomerado de quatro imagens de
representação de personagem, sendo duas em preto e branco e duas coloridas, nas quais
são representados Mme Roland (mãe de Giselle) e Quériau (príncipe de Curlane). Ao vol-
tarmos nosso olhar para as demais litografias pertencentes a este grupo temos quatro ima-
gens coloridas, produzidas em papel, tamanho 23x15cm, intituladas: Traje da Sra Carlotta
Grisi, papel de Giselle (Costume de Mme Carlotta Grisi, rôle de Giselle), Traje de Madame
Roland, papel de Bertha (Costume de Mme Rolan, rôle de Bertha), Traje de Quériau, papel
de príncipe de Curlane (Costume de Quériau, rôle du Prince de Curlane) e Traje de Petipa,
papel de Loys (Costume de Petipa, rôle de Loys).
Em todas constam as mesmas informações, podemos assim considerar que as ima-
gens fizeram parte de uma coleção de litografias que a casa Editorial litográfica Hautecoeur
– Martinet lançou. Para trazer as informações contidas nas litografias, usaremos a imagem
Traje de Petipa, papel de Loys (Costume de Petipa, rôle de Loys) como chave de leitu-
ra. O canto superior esquerdo acima da margem possui a inscrição Academie Royale de
Musique, indicando o local em que a obra estava sendo exibida. No centro superior consta
o nome da imagem Costume de Petipa, rôle de Loys, abaixo do nome consta a inscrição
dans Giselle, indicando a obra a qual personagem pertence, e logo abaixo Ballet, situando
a arte de palco do mesmo. O canto superior esquerdo possui o número de catalogação da
imagem na casa litográfica, “n°1473”, podemos indicar que não é o número do exemplar,
pois os demais desenhos seguem a ordem cardinal posterior. No centro do papel, dentro de
uma margem encontra-se o bailarino Petipa, caracterizado, em meio a um pas (passo sim-
ples). No fim da página na parte central, encontra-se o nome e endereço da Casa Martinet
- Editeur, rue du Coq N°15, à Paris. A imagem não possui nenhuma assinatura. No canto
12 Ibidem, p.58.

284
13 Ibidem, p.81-82.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


inferior esquerdo temos o carimbo de catalogação do acervo, Biblioteca Nacional da França,
Biblioteca departamento museu da Ópera.
É interessante destacar que apesar de encontrarmos apenas quatro imagens de apre-
sentação de personagens, no que diz respeito a Giselle e Loys, que participam do primei-
ro e do segundo ato, não foram encontradas neste momento os personagens com seus
figurinos do ato etéreo, nestas imagens, apenas com seus trajes do primeiro ato, terreno.
Sobretudo temos uma mudança no que diz respeito às litografias que pertencem a categoria
de Cenas representadas, que são: duas do primeiro ato e cinco do segundo ato. No que diz
respeito aos cadernos de texto duas imagens estão formando um conjunto com imagens de
apresentação de personagens, o que pode nos dizer que pertenceu a algum colecionador,
ou admirador. Uma imagem é capa de um libreto. Duas imagens são capas de diferentes
livros de melodia, o que nos mostra uma outra vertente comercial que o balé gerou, venda
de partituras. Temos também uma imagem, Valse Favorite de Giselle, que provavelmente
participou de uma coleção de litografias para colecionador. E uma última imagem de cena
denominada simplesmente de Giselle.
Valse Favorite de Giselle é uma litografia feita em papel, tamanho 42x18,5 cm, em
preto e branco e representa um pas de deux14, do primeiro ato do balé, podemos reconhecer
esta questão devido ao figurino que os bailarinos portam, apesar de não ser tão detalhada
esta parte. O nome da litografia está em negrito no centro da parte superior, a imagem de
Petipa e Grisi se encontra dentro de uma margem no centro da folha. Perto da sapatilha de
ponta de Grisi, vemos a imagem espelhada dos números 41-55 e próximo ao fim da mar-
gem encontra-se o nome da casa litográfica que produziu a imagem, Lith. Formentin & C.ie.
Apesar de não constar nenhuma assinatura na imagem, esta casa litográfica pertenceu a
Josephine Clemence. Nas margens inferiores encontramos três carimbos que se referem ao
arquivo, no centro Biblioteca Nacional da França, Biblioteca departamento museu da Ópera
e a direita, Archiv. Intern. de la Danse. No fim da página encontra-se ao centro o nome dos
bailarinos ali representados, “Dansée par Mme. Carlotta Grisi et Mr. Petipa”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir deste levantamento podemos gerar inúmeros pontos de análises, sobretudo


uma leitura detalhada destas imagens. Ao que diz a produção litográfica sobre balé, temos
uma vasta coleção disposta online pelo website Gallica, o qual pode contribuir com estu-
dos de Arte, sociedade, e balé do século XIX, inclusive sobre colecionismo deste tipo de
material. Ao que diz respeito as imagens aqui apresentadas, os Croquis nos dão ideia de

285
14 Parte da coreografia designada para o casal principal, têm sua forma preestabelecida.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


como foi uma das partes do processo de criação deste balé enquanto parte de um conjun-
to artístico. No que diz respeito às litografias, estes artistas poderiam escolher com base
em um balé repleto de cenas e personagens. Foram representados aqueles que mais lhes
chamaram atenção e também os que mais chamariam a atenção do público, ou seja, os
favoritos do público surgem em diversos tipos de representação, sendo assim é interessante
olhar o que estes artistas resolveram representar e como. Em um período de seis meses,
foram produzidas doze imagens litográficas de balé, o que pode ser um número significativo
para uma arte nova no cenário. Entretanto ao que diz respeito a este trabalho que buscava
apresentar representações imagéticas do balé Giselle, conseguiu-se concluir seu propósito,
inclusive apontando outras vertentes para estudo.

FINANCIAMENTO

Universidade Federal de Juiz de Fora.


Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Laboratório de História da Arte da Universidade Federal de Juiz de Fora.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

REFERÊNCIAS

FONTES
1. Programa Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Giselle, 1999.

2. Programa Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Giselle, 2008.


BIBLIOGRAFIA
3. BALANCHINE, George. 101 stories of the great ballets. New York: Anchor Books, 1989.

4. BORGÉA, Inês. Contos do Ballet. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

5. BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente. 2°Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

6. FARO, Antonio José. Pequena História da dança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

7. GUINSBURG, Jacob. O Romantismo. São Paulo: Editora Perspectiva. 1978.

8. LUKÁCS, G. Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2000.

9. PEREIRA, Roberto. Giselle: O Voo Traduzido - da lenda ao balé. Rio de Janeiro: UniverCidade,
2003

10. RENGEL, Lenira e LANGENDONCK, Rosana. Pequena viagem pelo mundo da dança. São
Paulo: Moderna, 2006.

286
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
21
Tecnologia e conto de fadas... Príncipe
ou lobo mau?

Ângela Barcellos Café


UNB

10.37885/201202669
RESUMO

O presente artigo reflete sobre a influência do aparato tecnológico nas sociedades atuais,
mais especificamente na educação e na arte de contar histórias, com suas conseqüências
ambíguas de aprisionar e/ou libertar, tanto o ouvinte quanto o próprio contador. Diante
das possibilidades dessas consequências o profissional que escolhe fazer uso da tecno-
logia deve estar atento às suas ações, com base em seus objetivos. Fundamentado na
teoria do sociólogo e filósofo Herbert Marcuse (da escola de Frankfurt) e outros teóricos,
procura-se contextualizar a ferramenta computacional em seu aparecimento, revelan-
do como as pessoas são reféns de uma racionalidade que elas mesmas construíram.
Aponta necessidades de estudos e aprofundamentos para que a atividade de contar
histórias possa ser inserida no computador, levando em conta o interesse e a facilidade
das crianças ao manipularem o suporte digital. Ao mesmo tempo assinala a importância
da consciência no uso da ferramenta computacional (de quem aplica e de quem usa in-
dependentemente), para que a mesma não sirva a interesses individualistas, atendendo
aos dominantes, que mais tendem a aprisionar do que libertar os seres humanos. Não
se trata de negar o uso da tecnologia, mas de direcionar suas ações para atitudes que
considerem: contextos, espaços, estéticas, objetivos, enfim que analisem as possíveis
consequências tanto para o indivíduo, quanto para a sociedade na qual este está inserido.

Palavras-chave: Tecnologia, Contadores de Histórias, Educação, Arte.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

A técnica por si só pode promover tanto o autoritarismo quanto a liberdade,


tanto a escassez quanto a abundância, tanto o aumento quanto a abolição
do trabalho árduo.

Marcuse

Diante dessa epígrafe para negar ou supervalorizar a tecnologia nos tempos atuais
é imprescindível verificar como essa tecnologia, associada à arte, ou a qualquer atividade
humana, pode ser utilizada para contribuir com as sociedades contemporâneas. Ou seja, o
que proponho é pensar em algumas possibilidades e consequências da utilização do aparato
tecnológico, para que, tanto na arte como na educação sua utilização possa contribuir na
formação de pessoas autônomas, críticas e superadoras do ‘status quo’ vigente.
Considerando que a pandemia trouxe a realidade de um ensino híbrido, ou seja com e
sem usos do aparato tecnológico das Tecnologias de Informação e Comunicação – TICs a
presente análise torna-se importante para planejamentos e considerações futuras, pensan-
do em uma educação que leve em conta as necessidades de humanização, ou seja, que
envolva capacidades de empatia, alteridade e vontade de um mundo mais justo.
Nos escritos de Aristóteles um dia a humanidade não precisaria mais ter escravos,
pois, a máquina substituiria o trabalho humano. Se pensarmos em termos de possibilida-
des, podemos facilmente concordar, mas ao mesmo tempo, fica claro que esta, não é nem
de longe a nossa realidade. Surge um paradoxo: o atual desenvolvimento tecnológico po-
deria sim, permitir ao homem maior tempo de fruição e liberdade, já que suas obrigações
poderiam ser minimizadas (ou divididas) em tempo real, pelas possibilidades de atribuir à
tecnologia, muitas ações humanas. Como exemplos concretos dessa realidade temos todo
esse período de Pandemia (ano de 2020), nos obrigando ao isolamento social, onde cada
um realizou suas próprias tarefas e operações, por meios digitais, fazendo grande parte da
vida urbanizada continuar. Sem levar em conta nenhum detalhe, a grasso modo podemos
dizer que foi possível por exemplo na área da educação. Porém, de forma alguma isso pode
equivaler a dizer que os meios digitais podem substituir um ensino presencial. Pensar que
uma simples TV ou rádio permitem acompanhar em tempo real um acontecimento do outro
lado do planeta, são ações que alteram tempo e espaço nas atividades humanas e poderiam
estar a serviço do bem da humanidade.
Entretanto, não é somente isso que ocorre, sendo este apenas um dos aspectos ve-
rificados. O que observo no mundo real é o aumento da riqueza e da tecnologia no mundo
(cada vez mais sofisticada), mas, ao mesmo tempo a fome, a miséria, a violência, a solidão,
a alienação, o preconceito, a exclusão... Lembro-me de ter aprendido a Lei de Malthus na
289
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
escola: em que a população cresceria em proporção geométrica, enquanto o alimento em
cresceria em proporção aritmética, assim em pouco tempo, nós humanos, não teríamos mais
como nos alimentarmos. Há muito isso não é mais verdade, pois, a tecnologia encontrou
caminhos para superação desse fato. O que ocorre é uma distribuição injusta, pois, mesmo
podendo alimentar todo o planeta encontramos morte por subnutrição e desperdícios incal-
culáveis em razão de uma necessidade de acúmulo de riqueza, por parte de alguns.
A pessoa humana não consegue colocar o progresso para o bem de todos, ao fazer
deste a fonte do poder para a dominação da maioria, que fica impedida de usufruir de suas
conquistas. Sem dúvida o progresso tecnológico tem contribuído ainda mais para este “caos”,
aumentando significativamente as diferenças sociais e a exclusão. A Pandemia só escanca-
rou essa realidade, mesmo com os esforços de inclusão por meio de distribuição de sinais
e equipamentos nas redes educacionais, no Brasil.
Feemberg, em seu texto: Teoria Crítica da Tecnologia, com base nos estudos de
Marcuse, também relaciona a revelação tecnológica com as conseqüências da persistência das

divisões entre classes, dirigentes e dirigidos nas instituições tecnicamente


mediada de todos os tipos. A tecnologia pode ser - e é - configurada de modo a
produzir o domínio de poucos sobre muitos. Essa é uma possibilidade inscrita
na própria estruturação da ação técnica que estabelece uma direção única de
causa e efeito (2006, p. 5).

Ainda que o domínio de poucos seja inerente à complexidade de fatores que envolve,
digo do acesso mínimo, à uma tecnologia que garanta participação social, uma vez que o
próprio poder público atribui ao “cidadão” responsabilidades, sem lhes prover seus direitos
constitucionais mínimos. A contradição mais uma vez se afirma, em conjunto com uma con-
fusão de papeis e ações, pois, a utilização da ferramenta tecnológica pressupõe uma ação
técnica do domínio de poucos, cujo feedback, só pode ser a alienação de muitos.

Os seres humanos só podem agir num sistema a que eles mesmos pertençam.
Consequentemente cada uma de suas intervenções retorna a eles de certa
maneira como feedback de seus objetos. Isso é obvio na comunicação coti-
diana onde a cólera geralmente desperta a cólera, bondade estimula bondade,
e assim por diante (IBIDEM, p. 5).

São comuns hoje os comentários da influência dos programas violentos nas reações
das crianças, que chegam a cometer “assassinatos em massa” em escolas americanas e
também, brasileiras. Em aulas de arte/teatro, nas escolas regulares, quando é dada a opor-
tunidade para que os próprios alunos criem suas cenas observamos que a maioria maciça
apresenta temática e ações violentas em suas ações dramáticas. Esta realidade não é só
goiana, as experiências de outros Estados revelam os mesmos resultados. As pessoas
290
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
parecem estar reféns de uma racionalidade que elas mesmas construiram. Neste sentido a
tecnologia deve ser vista e entendida como continuidade de uma construção humana, nas
duas perspectivas, como nos revela Marcuse na epígrafe deste texto.
Os estudos deste mesmo autor: “Algumas implicações sociais da tecnologia moder-
na”1 analisam a história, na busca da compreensão da racionalidade individualista e sua
transformação em racionalidade técnica. A ideia de racionalidade individualista nasce com
a Idade Moderna, por volta dos séculos XVI e XVII onde os valores de verdade provém da
razão humana e esta razão é o valor máximo do indivíduo. Somente a inteligência, ou seja,
a razão poderia libertar o homem (dito e entendido assim). Como teoria social, nessa época,
surge o Liberalismo também com o individualismo como princípio fundamental, associado à
liberdade, propriedade, igualdade e democracia. “O princípio do individualismo, a busca do
interesse próprio, era condicionado pela afirmação de que o interesse próprio era racional,
quer dizer, que resultava de e era constantemente controlado pelo pensamento autônomo”
(MARCUSE, 1999, p. 75).
Com o surgimento da revolução industrial o ser humano foi submetendo esta razão
que se transformou em uma racionalidade tecnológica, que ao invés de libertar, escravizou
a humanidade. “O poder tecnológico tende à concentração do poder econômico (...) E a
tecnologia “paulatinamente” expande o poder à disposição das empresas gigantes criando
novas ferramentas, novos processos e produtos” (IBIDEM, p. 77). É preciso compreender
que a produção está nas mãos de poucos, que detém o controle e trabalham exclusivamente
para e pelo lucro. Desta forma, “o poder tecnológico do aparato afeta toda a racionalidade
daqueles que a servem (...) Sob o impacto deste aparato a racionalidade individualista se
viu transformada em racionalidade tecnológica” (IBIDEM, p. 77).
É importante perceber que as duas racionalidades, individualista e tecnológica, ou seja,
os dois conjuntos de verdade, de valores, não podem ser considerados opostos, pois os
mesmos possuem pontos em comum. Assim, a crítica não será válida se for apenas contra
a técnica, ou na direção da substituição do individualismo pelo coletivismo, a solução não
pode vir pela oposição. O indivíduo deve recuperar sua capacidade de criação, liberdade e,
sobretudo de controle da tecnologia na conquista de sua autonomia, e não, de submissão
como tem acontecido.

Em virtude de sua subordinação a padrões externos, a verdade tecnológica,


entra em constante contradição com a forma pela qual a sociedade individua-
lista estabeleceu seus valores supremos. A busca do interesse próprio agora
parece estar condicionada pela heteronomia: a autonomia aparece como um
obstáculo, em vez de estímulo à ação racional (IBIDEM, p. 84).

291
1 No livro: Tecnologia, Guerra e Facismo organizado por Douglas Kellner.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Em busca de respostas, para a autonomia que o ser humano está perdendo, passo a
analisar como a ferramenta tecnológica interfere na educação, por enquanto, entendida em
seu sentido mais amplo, ou seja, na construção dialética da sociedade e do indivíduo. Esta
relação de causa e efeito está presente na elaboração de programas para que as pessoas
dominadas ‘engulam’ sem questionamentos ou outros estímulos, o que querem os domi-
nantes. Portanto, alimenta o que se quer manter: pessoas alienadas para que continuem
dominadas. Isto não é fácil de perceber, pois ao mesmo tempo os objetos e as coisas vêm
revestidos de significados múltiplos e inovadores, que chamam atenção e fazem pensar que
estamos participando, construindo, escolhendo...

No mundo do “tudo pronto”, texto imagem e sentimento impõem ao homem


uma rápida ingestão de idéias e mercadorias, limitando a possibilidade de
escolha e seleção, segundo seus próprios critérios. Por todos os lados e ao
mesmo tempo, veiculam-se informações pelo rádio, TV, vídeo-cassete, in-
ternet, outdoors, cartazes, panfletos... uma variedade e uma quantidade tão
estonteante que chegam a provocar uma “congestão” de imagens, como já
se habituou a dizer. A sociedade, voltada inteiramente pelas imagens, as-
simila ícones numa velocidade tal que parece impedir seu metabolismo, o
que provoca alguns distúrbios. Ao apelar para visão e audição mais fáceis e
rápidas, comparativamente à leitura para além da decodificação de signos,
o resultado é o simulacro do pensar. Por comodismo ou pela “lei do menor
esforço”, o homem abdica da capacidade que lhe é inerente e passa a pensar
por meio de quem, na imaginação está agindo. A grande conseqüência é uma
progressiva inanição da cultura, em razão do pouco conhecimento, reduzido
à informação fragmentada, e da perda da sensibilidade e criatividade desse
homem (CAFÉ, 2005, p.15).

Nesse sentido, devemos estar atentos para o uso do meio eletrônico como ferramenta
que pode propiciar uma interatividade crítica e criativa, mas, por outro lado como nos mostra
a teoria de Marcuse, pode aprisionar as pessoas em significados prontos que não permitem
as transformações necessárias dos seres humanos e consequentemente das sociedades.
Novamente o paradoxo se estabelece: de que adianta tanta informação se não sabemos
o que fazer com elas? De que adianta o acesso ao meio eletrônico em um país com mais
de 67% de analfabetos práticos? Como solucionar o problema da crítica emancipatória em
leitores que não são capazes de construir um sentido próprio em suas interpretações e lei-
turas? Como falar de inclusão digital onde a fome é a primeira necessidade? Será possível
utilizar a tecnologia como ferramenta no auxílio da formação do professor e do aluno, sem
colocá-la como condição única? E o acesso do professor ao aparato tecnológico, conside-
rando que as dificuldades na aquisição de materiais básicos para seu trabalho? Foi oferecido
e solucionado em tempos de Pandemia? Como vencer a dominação do meio eletrônico sem
o tempo e a vivência necessária com esse meio para superar suas contradições? Em que
contextos ou momentos a ferramenta - computador seria útil na aprendizagem escolar?
292
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Como lidar com a diversidade de informações e conceitos que essa ferramenta disponibili-
za? Como lidar com a diversidade e simultaneidade de linguagens oferecidas pelo aparato
tecnológico? E na arte, o aparato tecnológico impede a criatividade e o imaginário? Ou é
possível a contribuição do diálogo e/ou interação da arte com a tecnologia? Até que ponto
as experiências que conseguimos realizar no ensino remoto faria sentido sem a condição
do isolamento social?
Essas questões não serão respondidas integralmente, até porque a maioria delas não
tem respostas prontas, mas, trazem elementos que podem orientar pensamentos, investi-
gações e ações que auxiliem na transformação dessa realidade.
Mesmo me colocando em risco ouso dizer que um dos grandes problemas da socie-
dade contemporânea, ou pós-modernidade como querem denominar alguns autores, é da
substituição dos fins pelos meios. Ao não conseguir assumir que o “fim” das pessoas é
“ser feliz2 vivendo em uma sociedade justa”, como já afirmava Aristóteles este “fim” do ser
humano se perde em meio a valores, tempos e espaços diversos e imediatos. Atualmente
o que se coloca são os meios no lugar do “fim”, esses meios trazem a imediatez, nas res-
postas instantâneas, produzidas pelos meios tecnológicos. Os meios têm sido interpretados
como objetivos imediatos de fácil verificação e assim estão substituindo a conquista maior
da humanidade, ou seja, o sentido da vida.

De acordo com Adorno e Horkheimer (1985), fundadores da escola de Frankfurt


(Teoria Crítica), a mídia, como técnica, está inserida na lógica da racionalidade
como dominação. Para eles, é difícil escapar dessa racionalidade instrumental,
técnica, onde os meios estão acima dos fins (MORAES E SANTOS, 2003,
p.22).

Continuam os mesmos autores, analisando o pensamento neomarxista: “O átomo, o


computador, os satélites, “servem antes de tudo para fazer a guerra”. Tal faculdade, porém,
está reservada ao clube dos ricos.” (IBIDEM, p. 23) Que não por acaso são os dominantes
a quem me refiro em outros momentos. Para Marcuse “Os homens, seguindo sua própria
razão, seguem aqueles que fazem uso lucrativo da razão” (1999, p.86).
À medida que as sociedades se tornaram complexas e o modo de produção capitalista
dividiu a sociedade em classes sociais, a cultura compartimentou-se. Hoje, nas socieda-
des modernas, os campos culturais tornaram-se isolados. No campo científico, houve uma
fragmentação das ciências e, no interior de cada área científica, várias especializações
exigem profissionais competentes para cada saber. Ao mesmo tempo, a vida compartimen-
tou-se exigindo hora e momento próprio para cada atividade humana. Os centros urbanos,

2 Cada um tem sua própria maneira de ser feliz, que pode ser diferente ou igual a de outras pessoas. Mas, no fundo todos queremos

293
a felicidade, cada um a seu modo.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


com o advento dos meios de comunicação social, apresentam certa uniformidade das ati-
vidades culturais, todas elas segundo padrão estabelecido de produtos prontos que impe-
dem a criatividade.
O aparato tecnológico do mundo atual aprisiona o ser humano ao significado imediato
que a tecnologia proporciona e esse é dos perigos que o meio tecnológico oferece, sobretudo
na área da educação e da arte. Ao se maravilhar com um novo e infinito volume de informa-
ções sem preparo para digeri-las o ser humano se submete ao que a máquina “informa”, sem
a consciência da dominação que existe por traz desse aparato. Assim, estamos perdendo
a capacidade de identificar a importância das próprias capacidades humanas, de ser livre e
criar um mundo feliz e justo, e simplesmente, obedecemos cegamente a tudo que vemos,
ouvimos, lemos...
Estamos também nos tornando anônimos, pois um dos problemas da Internet hoje, do
meu ponto de vista de quem lida com a especificidade desta área, são os textos veiculados
sem autoria, sem a menor preocupação ou reconhecimento de quem os utiliza. É comum,
alunos em oficinas de contadores de histórias escolherem textos por vezes conhecidos, di-
zendo ser de autoria popular, ou o inverso, mostrando o quanto eles confiam cegamente nas
informações da “internet”, sem questioná-las. Isso se confirma na expressão “Mundialização”
utilizada por Renato Ortiz, para referências a traços culturais que se espalham, se fundem
e se confundem universalmente. O risco de não saber como a cultura foi socialmente cons-
truída está na aceitação passiva de informações e bens de consumo, sem questionamentos
ou reflexões contextualizadas.
Meu desejo como educadora é investigar possibilidades que consigam contribuir para
a transformação dessa realidade. Neste contexto, passo a analisar o Contador de Histórias
(meu objeto de estudo e prática desde 19933), em relação ao uso da tecnologia, mais es-
pecificamente da ferramenta computacional, em suas atitudes e consequências sociais,
culturais e individuais.
O ser humano é constituído por três aspectos: universalidade, regionalidade e individua-
lidade. Segundo Régis de Moraes este é o “mistério da singularidade humana”, pois, “Cada
homem é, em certos aspectos, como todos os outros homens; como alguns outros homens;
como nenhum outro homem” (KLUCKHOHN e MURRAY, apud BRUNER, 1963, p.220).
Além da busca de preencher um vazio na conquista universal de felicidade, os conta-
dores de histórias, na ação do contar, apresentam com clareza os três níveis da realidade
humana. Em um mesmo conto de fadas, por exemplo, podemos perceber todas essas ca-
racterísticas, pois ele é primeiramente universal, conhecido por todos, e recontado durante
séculos ou milênios (como alguns mitos); divulgados e recontados em vários locais, sofrem,

3 Em meus estudos de mestrado relato parte desta experiência que está puplicada no livro: Dos contadores de histórias e das histórias

294
dos contadores. Editora Cegraf/UFG, 2005.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


entretanto, interferências culturais de cada região; pode e é interpretado individualmente, de
acordo com as experiências pessoais e socioculturais do ouvinte e do narrador.
Um dos principais objetivos de contadores de histórias no mundo contemporâneo é
suscitar as emoções e as imagens da história que está sendo narrada, permitindo que o
ouvinte se entregue, com liberdade, às possibilidades variadas de significação do conto.
A princípio rejeitei a ideia de um contador de histórias em um espaço eletrônico, pela
ausência do narrador em seus princípios básicos de mediação da voz e do gesto que le-
vam ao entendimento da narrativa; da necessidade do olho no olho para a completude
dos possíveis significados. Mas, no decorrer dos estudos fiquei pensando que antes de
qualquer preconceito a ordem é investigar. Quando fui sistematizar alguns estudos me re-
cordei de uma entrevista na Rádio Universitária da UFG, em que o entrevistador me pediu
ao vivo para contar uma história. Era minha estreia em um meio eletrônico e muito tempo
depois me dou conta disso. O difícil naquele momento era não ter os olhos do público como
feedback que orientasse a comunicação e consequentemente a compreensão da história
narrada. A experiência foi tranqüila quando o locutor me explicou que o ouvinte veria meus
olhos por meio da minha voz.
É interessante esclarecer rapidamente ao leitor quem é esse contador de histórias, do
qual me refiro, por perceber sua existência presente desde a nossa mais remota ancestrali-
dade até os dias atuais, ainda que de formas diferentes. Podemos dizer que a humanidade
se desenvolveu por meio das histórias que contavam, preservando sua cultura e se educando
por meio de uma comunicação oral, em milhões de anos.
A arte de contar histórias pode ser entendida como uma atividade cultural ainda viva em
nossos dias, embora de forma díspar em razão da complexidade das sociedades atuais. A re-
-significação da própria atividade a mantém viva, eliminando a possibilidade de estabelecer
ou identificar regras definidas.
No decorrer dos tempos, a história mostra diferentes formas de cultura na organização
da vida social, no estabelecimento do poder, nos modos de produzir e de apropriar-se dos
bens por meio do lazer, da educação, da arte, das diferentes maneiras de pensar e de agir
das pessoas, que se fazem nas condições concretas e determinadas da existência da hu-
manidade. Dessa forma, os contadores de histórias no mundo de hoje se apresentam com
perspectivas diferenciadas.

É nesse caos de começo de milênio que a imaginação criadora pode operar


como a possibilidade humana de conceber o desenho de um mundo melhor.
Por isso, talvez a arte de contar histórias esteja ressurgindo por toda parte
(MACHADO, 2004, p.15).

295
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
Em vários países contar histórias é uma profissão, com espaço assegurado em livrarias,
bibliotecas, escolas e centros de cultura. Na Inglaterra A arte de contar histórias é disciplina
curricular obrigatória, em todas as licenciaturas e cursos de pedagogia, por entenderem que
um educador é antes de tudo, alguém que comunica e troca experiência nas significações
das recepções das narrativas. No Brasil multiplicam-se grupos de todas as idades e por toda
parte, indo e vindo em todas as direções:

Vêm vestidas de vermelho, azul e amarelas; fitas coloridas penduradas pelo


corpo; vêm com jeito de palhaço ou de princesa; outros vestidos de si próprio.
Alguns trazem consigo instrumentos sonoros, músicos e cantores; outros são
eles próprios músicos e cantores; alguns portam malas, bonecos, fantoches,
panos, chapéus, tapetes bonés, caixa de fósforos, mímica, humor; outros nada
trazem, apenas vão chegando, contando, cantando, deixando leitura, múltiplas
leituras aos seus ouvintes hipnotizados (BUSATTO, 2006, p. 26).

Todo ano são realizados dezenas de Eventos acadêmicos e alternativos no Brasil, na


América Latina e nos outros continentes. Um exemplo são os Simpósios internacionais de
Contadores de Histórias promovido pelo Sesc, anualmente, do qual já tive oportunidade de
participar e me apresentar, numa maratona com 24 horas de contos e histórias, para todas
as idades e gostos, sem intervalos e em todos os anos o anfiteatro esteve lotado, inclusive
durante a madrugada. O evento Boca do Céu4, realizado em São Paulo de dois em dois
anos, promove encontro de narradores de todos os cantos do mundo, mostrando o quanto
a atividade vem se desenvolvendo e ocupando espaços múltiplos.
O repertório das narrativas é extremamente variado, podendo ter origem escrita ou
oral. Os espaços para esses contadores cada vez se ampliam mais: escolas, praças pú-
blicas, hospitais, congressos de todas as áreas, exposições, parques, festas, rádios, TVs,
Dvds, e ciberespaço.
O livro: A Arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço, da autora, Cléo
Busatto, aborda algumas possibilidades e experiências de contar histórias no ambiente virtual.
Aceitar o desafio de traçar orientações para o desenvolvimento deste tema, nas ferramentas
digitais, sem ferir os princípios educacionais em que acredito, foi o que me moveu no início
desse artigo. Dito de outra forma, orientações que colocam a tecnologia como ferramenta a
ser utilizada para a formação crítica e a emancipação do ser humano.
O problema é que determinadas direções podem interferir de forma negativa no pro-
cesso da contação de histórias, pois, acredito que a primeira regra para se contar uma
história é: não obedecer a regras fixas. O contador deve se conhecer, em seus limites e
potencialidades, para saber escolher que tipo de histórias combina com seu jeito de ser. Para
isso, conhecer, ou ser bom leitor e ouvinte, apreciar autores e gêneros variados, a fim de

296
4 O evento Boca do Céu tem a curadoria da profª Drª Regina Machado, da ECA/USP.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


ampliar suas possibilidades de eleger seu repertório. Essas necessidades revelam cuidado
nas indicações colocadas em rede, como se fossemos todos iguais, diferindo apenas em
idade e gostos pessoais. Conhecer a si mesmo exige experiência prática, que às vezes só
é possível em um grupo de pessoas. Como vencer essa dificuldade no meio tecnológico,
que pressupõe uma recepção individual? Como superar a presença ao vivo que envolvem
receptor e emissor numa atmosfera de cumplicidade?
Ainda com referência ao problema da formação do contador de histórias existe a di-
ficuldade da autoria. Além dos textos estarem sendo veiculados na internet sem revelar o
nome de autorias, como se isso fosse de menos importância, há uma mistura indiscriminada
de recortes e colas de partes de textos diferentes, sem explicações que contextualizem as
modificações e apropriações. A importância de conhecer o nome de quem escreveu deter-
minado conto é fundamental na formação do leitor crítico. Conhecer quem é o autor, de onde
ele fala, quais são as características de sua escrita, ou fala, é fundamental para saber que
entonação utilizar para passar aquela mensagem, que não é pronta e sim interpretada pelo
ouvinte com liberdade. Sobretudo quando o público é infantil, ou pensando na formação de
futuros docentes que precisariam estudar esse tipo de conteúdo, que infelizmente anda bem
distante ds currículos atuais. Falo de literatura infantil e juvenil e de contadores de histórias,
dois temas que mereceriam ser disciplinas obrigatórias na formação docente.
Busatto realiza um estudo sobre os narradores tradicionais e contemporâneos; a atua-
ção do imaginário nesta atividade; e, uma experiência de contadores de histórias mediadas
pelo suporte digital. É essa última que nos interessa neste momento.

No século XXI, a narração oral ganha outra dimensão ao ocupar o espaço te-
lemático. Abordar a performance do contador de histórias na era digital, como
é o caso de Cabra Cabriola5, implica uma mudança de foco, de entendimento
e aceitação de outras perspectivas e paradigmas do aprendizado e da fruição
dessa arte (BUSATTO, 2006, p. 97).

A autora, para ser fiel à ação do imaginário propiciada na narração de um conto faz
um estudo aprofundado da personagem para que ela não perca as características básicas
oferecidas pela contação de histórias ao vivo. Em seus cuidados estudou a oralidade desde
suas raízes e como foram se re-significando através dos tempos, até hoje, onde ela não
perde sua força, mas, ganha outras possibilidades na utilização do aparato tecnológico.
A facilidade com que as crianças de hoje manipulam o suporte digital sugere que se
pense e se considere essa linguagem não como presença efêmera desse cotidiano, mas
como um segmento a ser pensado. Se as crianças vão mesmo utilizar essa ferramenta
então devemos estar atentos para a possibilidade de liberdade em relação à máquina, e
não de submissão.

297
5 Produção no formato CD-ROM Contos e encantos dos 4 cantos do mundo. Curitiba, 2001.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


Os contadores de histórias, ao desenvolver suas atividades em qualquer espaço pos-
sível, deverá ter o cuidado de direcionar suas ações para a recuperação do lúdico, como
aspecto cultural a ser vivido, seja em uma escola, em um hospital ou em uma praça pública,
ou na ferramenta computacional, no tempo de trabalho ou fora dele. Isso nem sempre se
torna possível uma vez que, em certos momentos, corre-se o risco de uma atuação que
pode desviar a atenção, como atividade imposta, moralizante e exigente de uma única
interpretação, tolhendo a liberdade criadora do ouvinte das histórias. A força e a fraque-
za6 da educação analisadas nessa atividade imbricam-se, podendo furtar ou recuperar a
manifestação lúdica e a capacidade crítica, dependendo da forma e do conteúdo com que
as atividades são desenvolvidas, o que exige, portanto, uma atitude permanente de refle-
xão. A essa comparação associamos os dizeres da epígrafe, onde Marcuse (1999) nos
alerta dos perigos da tecnologia colocados pela própria contradição humana, na construção
e desenvolvimento das sociedades.
A professora Dr. Raquel Moraes7 (2003), aponta alguns fatores imprescindíveis na in-
tenção de que a sociedade recupere o controle de si própria: “ser maior que ter; eliminação
da divisão social do trabalho; democracia e cidadãos participativos; formação politécnica
(formação geral humanista, científica e tecnológica); sociedade economicamente sustentá-
vel”(MORAES e SANTOS, 2003, p.53). Cada um em suas condições e limitações necessita
se preparar para essa construção, pois, é urgente a transformação das relações sociais,
onde o poder deve ser compartilhado, e não domínio de poucos como tem acontecido.
Hoje, nós contadores de histórias, sentimos uma necessidade de reviver essa forma
artística de comunicação, no contexto da atualidade, para: abrir novos horizontes possibi-
litando a memória dos velhos tempos; motivar fantasias, vividas por meio das imagens e
emoções suscitadas pelo conto; ampliar a vivência do lúdico em espaços variados; conhe-
cer as tradições de sua própria cultura e de outras culturas; incentivar a leitura, quando a
referência for o livro impresso ou quando houver necessidade de registro escrito para que
a história não se perca no esquecimento de quem não conta, nem ouve mais histórias, que
também incentivemos esse registro.
Diante disso, podemos ainda perceber que o computador tem chegado a lugares onde
não existem sequer bibliotecas. Se por um lado é fantástica a possibilidade do acesso, por
outro, há que se ter cuidado com a formação dos leitores, para que sejam críticos e não
alienados, aceitando tudo que aparece. É preciso conhecer para formular seus próprios
critérios de escolha.

6 As ideias de força e fraqueza na educação estão no livro: O que é Educação. Col. 1º passos, 1995. O autor mostra que toda ação
educativa envolve ao mesmo tempo uma força, que é a transformação, e, uma fraqueza, que se revela na manutensão da nova or-
dem; Prof.º Dr. Carlos Rodrigues Bandão, Antropólogo na Unicamp.

298
7 Professora da Faculdade de Educação da UnB, com quem tive o prazer de iniciar esse artigo, em 2003.

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


A arte não pode ser desvinculada da realidade humana. Ela é criada pelo ser huma-
no, para outro ser humano, afinal qualquer obra de arte só se complementa na presença
de um observador (assistente, plateia, ouvinte, espectador, ou qualquer nomenclatura a
ser considerada). Por isso a responsabilidade do artista com o que ele suscita no outro.
Assim, mesmo os artistas devem estar atentos a qualquer utilização do aparato tecnológico
em sua obra, pois que a mesma, poderá servir tanto para alienação ou submissão quanto
para a dominação ou por outro lado, para ampliar perspectivas, conhecimentos, possibili-
dades.... O que você quer?
Comecemos pela educação das crianças! TODAS!!

REFERÊNCIAS
1. BENJAMIN, W. In O Narrador. São Paulo, Abril Cultural, 1975 (coleção Os Pensadores).

2. BRANDÃO, Carlos R. O que é educação. São Paulo, Brasiliense, 1995.

3. BRUNER, E. M. Panorama da antropologia. São Paulo, Fundo de Cultura, 1963.

4. BUSSATO, Cleo. A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. Santa
Catarina, Vozes, 2006.

5. CAFÉ, Ângela Barcellos. Dos contadores de histórias e das histórias dos contadores.
Goiânia, Cegraf/UFG, 2005.

6. FEEMBERG, Andrew. A Teoria crítica da tecnologia. Trad. Unimep, Ufscar e Unesp. http://
www.sfu.ca/%7Eandrewf/critport.pdf. acesso em 2006.

7. MACHADO, Regina. Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias. São


Paulo, DCL, 2004.

8. MARCUSE, H. Algumas implicações sociais da tecnologia moderna. In:Tecnologia, Guerra


e Fascismo. São Paulo, Editora Unesp, 1999.

9. MORAES, Rachel e SANTOS, Gilberto Lacerda. Tecnologias na educação e formação de


professores. Brasília, Plano Editora, 2003.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
22
A angústia entre Heidegger e
Kierkegaard: consonâncias

Leosir Santin Massarollo Junior

10.37885/210102844
RESUMO

O tema do presente projeto de pesquisa é o conceito de angústia no duplo âmbito de


pensamento de Søren Aabye Kierkegaard e de Martin Heidegger. Tal tema deverá per-
fazer-se por meio de uma análise comparativa do referido conceito na obra dos dois
filósofos. Em nossa investigação, assumimos o problema: como o conceito de angústia
é compreendido por Kierkegaard e por Heidegger? E, como subproblemas: quais as
implicações filosóficas da tematização do conceito de angústia para a filosofia con-
temporânea (especialmente a de Heidegger)? Pode-se interpretar a angústia nos dois
pensadores a partir de um ponto característico e comum ao ensinamento sobre o tema
proposto nesses autores? A resposta a tais questões nos exigiria uma reconstrução
detalhada do conceito em pauta nos dois pensadores, buscando mapear pontos de
convergência e divergência, além da influência de Kierkegaard sobre Heidegger. Atentos
a esse objetivo geral, podemos antecipar que Kierkegaard, em sua obra O Conceito de
angústia (1844), compreende a angústia como “índice” da interioridade; ao passo que,
Heidegger, em Ser e tempo (1927), compreende a angústia como uma tonalidade afetiva
fundamental do ser-aí (Dasein), uma disposição que permite que se desvele o processo
de constituição ontológico-existencial desse ente. Uma hipótese de pesquisa pode ser
aqui entrevista: entre Kierkegaard e Heidegger vemos uma abordagem diferenciada do
fenômeno, o primeiro ainda o compreende psicologicamente e o segundo se apropria
fenomenologicamente do mesmo de modo a incrementar sua analítica existencial.

Palavras-chave: Angústia, Ser-aí, Eu, Existência, Interioridade.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
INTRODUÇÃO

Søren A. Kierkegaard e Martin Heidegger são enfáticos em “fixar” a angústia no mais


profundo, originário e estrutural “recanto” do eu/Dasein. A tarefa aqui proposta é “percorrer”
e analisar os pontos culminantes de tal conceito, a saber, a angústia, de modo a conquistar
um possível denominador comum que nos forneça um território favorável para que a presente
investigação avance. O que está propriamente em jogo é a “atuação” deste fenômeno/dis-
posição privilegiada, o processo existencial/ existenciário “posto em marcha” pela existência
e a problemática que envolve concepções em que a angústia “determina” o estrato onde o
eu/Dasein deve crescer e medrar.
A segunda parte desta pesquisa parte das seguintes conjecturas reguladoras, a serem
corroboradas no decurso do texto: de que maneira a angústia põe o eu/Dasein num processo
de auto-descoberta progressiva? Como a angústia, quando tonalidade afetiva predominante,
retira o Dasein do fenômeno essencial da inautenticidade, conduzindo-o por caminhos que
só ele conhece, a saber, a autenticidade? Como a angústia, como índice da interioridade
do eu, coincide com vertigem da liberdade e, no final, converte-se em serva fiel? Em seu
conjunto, as questões agora levantadas, e as que serão levantadas durante a investigação,
deverão contemplar os desdobramentos constitutivos das filosofias de Kierkegaard e de
Heidegger no tocante ao fenômeno da angústia. Cabe indagar acerca do elenco temático e
da dinâmica problematizadora.
O homem toma consciência de si em estado de angústia; esta tonalidade afetiva fun-
damental expressa sua existência mais originária. A angústia está sempre em nós, participa
da nossa condição de homem. Quando encarada em sua essência, nota-se que a angústia
está ligada ao nada. “A angústia não é uma apreensão do nada. Entretanto, o nada se torna
manifesto por ela e nela (...)” (QUE É METAFÍSICA, 1969, p. 33). Esta assertiva nos remete
a outra: a ausência de objeto deste fenômeno. A posição de ambos os filósofos abordados
volta a se equivaler: nada de externo afeta ou motiva a angústia; trata-se de uma desarmonia,
um descompasso onde o horizonte da cotidianidade “fecha-se” para que, num movimento
sem deslocação, o Dasein seja “remetido” a individualidade, ao nada constitutivo, onde
acontece o essencial ultrapassar o ente. A possibilidade e a liberdade passam a assediar
o Dasein, aprofundando a angústia e, concomitantemente, o contato com os recantos mais
recônditos da individualidade. Dispositivo ou armadilha, o essencial da angústia desvela-se
neste mencionado recolhimento.
Na vertente heideggeriana, quando fixada como angústia a disposição predominante,
“vem-à-tona” um processo de abertura-do-ser. O Dasein, em seu modo-de-ser originário
ôntico-existencial (ser-em), é lançado (jogado) no mundo, sendo a existência sua essência,
o existir sua responsabilidade suprema e a preocupação o seu ser. Seu sentido ontológico
302
Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
a priori já é sempre em cada situação. O significado filosófico (ontológico-existenciário) da
preocupação fundamenta todos os modos-de-ser que serão abordados. Trata-se de um
conceito pré-ontológico, formador dos “processos” do encontrar-se, do entender-se e do
discurso; segundo Heidegger, o Dasein “pertence” à preocupação, ela é em cada compor-
tamento factual; não retida em cada factualidade, onticamente falando, mas na interpreta-
ção dos estruturais já-ser-em e ser-junto-a, no expansivo ser-livre-para, característico do
adiantamento em relação a si.
A analítica existencial abarca a preocupação em seu caráter ontológico-existenciário,
a saber, na constituição fundamental do projeto dejectado/lançado. O encaminhamento sa-
tisfatório desta problemática remete-nos a uma articulação originária que não se inicia num
encasular-se, num exilar-se numa atmosfera “egóica”, porém, exatamente no seu contrário,
num “abrir-se” ao ente e como ente; o Dasein é ele mesmo claridade e clareira. O projetar-se
entendedor do Dasein para o seu poder-ser, determinado a partir de um em-vista-de-quê a
coloca, a saber, a preocupação, também à base do querer e do desejar: ela é na factualida-
de como elemento irredutível. A partir da interpretação pré-ontológica da preocupação, que
fornece o “impulso puro”, o “impulso de viver”, abrange-se todos os existenciários funda-
mentais. O ser-no-mundo, em seu vir-a-ser, é realização da preocupação; o ser-livre-para
é sua concreção. Com base em tais diretivas colocamo-nos no caminho da afetividade. “No
ser do estado-de-ânimo, o Dasein, conforme o ser-do-estado-de-ânimo, já está sempre
aberto como o ente ao qual o Dasein foi entregue em seu ser como o ser que ele tem de
ser existindo” (SER E TEMPO, 2014, p. 385).
Sujeito ao logro e ao malogro, suas estruturas fundamentais “começam” a articular-se.
Como imerso na cotidianidade, o Dasein vê-se “moldado” e “tolhido” pela profusão cotidia-
na. Seus caracteres fundamentais passam a ter um caráter coletivo. Um nocivo, insano e
furioso “ajuntamento”, a saber, a-gente, assume, com direitos de cidadania, um papel le-
gislador. A angústia, “espaço vazio” e estrutural diante ao qual o Dasein é remetido quando
recolhido, foi “soterrado” pela cotidianidade.
O Dasein por natureza compreende a si mesmo a partir da sua existência. O derivado
ontológico-existenciário ser-no-mundo “conjunta” a universalidade “coesa” com o Dasein
na forma de preocupação e ocupação. A primeira rege o cuidado-de-si e a preocupação-
-com-o-outro; a segunda rege o trato com o ente-não-privilegiado, o ser-junto, vir-de-encon-
tro. O mundo-circundante, devido ao caráter fundamental de abertura do Dasein, conectado
com um prévio encontrar-se e entender-se, constituirá a “base” do conhecer. Este conhecer
possibilita o discurso. Por trás deste “conflito” o Dasein “transcende” o ente, o que lhe per-
mite, exatamente, apreender o ente como ente.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
O mundo é um processo criador alicerçado no Dasein; uma potência estrutural. Não
falamos aqui do conceito cosmológico de mundo, tampouco deste como totalidade dos entes.
Ser-no-mundo será a perspectiva ontológico-existenciária deste fenômeno, um modo-de-ser
fundamental e unitário, envolvido pela mundidade, seu conceito constitutivo; um encontrar-
-se junto ao ente em sua totalidade. Tal concepção demonstra uma conexão de fundamen-
tação. “E está fora de dúvida que subsiste uma diferença essencial entre o compreender
a totalidade do ente em si e o encontrar-se em meio ao ente em sua totalidade. Aquilo é
fundamentalmente impossível. Isto, no entanto, acontece constantemente na existência”
(QUE É METAFÍSICA, 1969, p. 29). No cerne desta dinâmica repousa uma interpretação
prévia, uma vinculação primordial.

E somente porque os ‘sentidos’ pertencem ontologicamente a um ente que


tem o modo-de-ser do encontrar-se em estado-de-ânimo no ser-no-mundo,
é que os sentidos podem ser ‘afetados’ e ‘ter sentido para’ o afetante que se
mostra na afecção. Algo como a afecção não ocorreria nem que fosse sob a
maior pressão e resistência, pois a resistência permaneceria essencialmente
não descoberta, se o ser-no-mundo no encontrar-se já não estivese remetido
à afetabilidade pelo ente-do-interior-do-mundo, prefigurada nos estados-de-
-ânimo. No encontra-se reside existenciariamente um abridor ser-referido ao
mundo, a partir do qual o afetante pode vir de encontro. Com efeito, do ponto
de vista ontológico devemos deixar fundamentalmente a descoberta primária
do mundo ao ‘mero estado-de-ânimo’. Uma pura intuição, mesmo penetrando
nas veias mais íntimas do ser de um subsistente, nunca poderia descobrir algo
como ameaçador (SER E TEMPO, 2014, p. 393).

No encontrar-se (isto é, num estado-de-ânimo afetivo) o Dasein é o seu aí. Esse aí com-
plexo, entregue a sua própria responsabilidade, “encontra-se” em sua dejecção. “Encontrar-
se e entender caracterizam a abertura originária de ser-no-mundo” (SER E TEMPO, 2014,
p. 419). No entender reside existenciariamente o modo-de-ser do Dasein como poder-ser.
Ele é e compreende-se a partir de suas possibilidades. A idéia de projeto participa do
“avanço” do poder-ser para o poder-ser-mais-próprio. A totalidade da conjuntação, as co-
nexões possíveis entre os entes e a significatividade e utilizabilidade são derivados do a
priori entender-se. Desprovido desses modi, a saber, encontrar-se e entender-se, o Dasein
perderia sua característica de abertura, também não seria mais afetado pela mundidade;
o ontológico-existenciário discurso não chegaria a existir. O mundo circundante não mais
“atingiria” seu querer e agir, o “assenhoramento factual” não seria possível, o poder-ser não
participaria da realidade estrutural do Dasein; extinção consolidada, a dejecção e a conjun-
tação, os estados-de-ânimo e o caráter-de-projeto, se perderiam por completo, o Dasein
seria uma ilusão e a fenomenologia uma quimera.
Outro tópico (para concluirmos a presente análise), é o a priori discurso. “Como cons-
tituição existenciária da abertura do Dasein, o discurso é constitutivo para sua existência”
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
(SER E TEMPO, 2014, p. 455). O discurso é a articulação da significatividade, algo como a
significação do ser. Na tessitura da significação ontológica, possui a mesma originalidade
do entender e do encontrar-se, e está em estreita conexão com estes, sendo assim como
estes fundamento do Dasein. O discurso é constitutivo a priori do Dasein, o ouvir e o calar
articulam a entendibilidade do ente privilegiado. A contínua emergência da interpretação e
da enunciação caracterizam o homem como o ente que discorre; “o Dasein tem linguagem”.
A consciência-de-si segue-se um conhecimento de si. Na “atmosfera” dos modos-
-de-ser originários ser-em, ser-com e ser-no-mundo fica claro o caráter ôntico-ontológico
do ente privilegiado. O ser-no-mundo vê-se lançado de modo que o que está em jogo é
a sua possibilidade mais própria. Nesta possibilidade remanesce uma apropriação-de-si;
apropriação esta que possui uma natureza dicotômica: os modos-de-ser da propriedade e
da impropriedade. Um novo existenciário desvela-se: o decair/a decadência. Decorre daí
que a-gente “imperante” “retenha” o Dasein, afastando-o de sua individualidade. Quando
imerso na condição cotidiana, os modi citados, a saber, o encontrar-se, o entender-se e o
discurso, acompanham esse afastamento-de-si e passam a ser no modo da ambiguidade,
da curiosidade e do falatório, porém, conservam sua natureza estrutural.
Não que o Dasein, na cotidianidade, no existenciário decadência/decair, se encontre
em estado de “fechamento total”, porém, encontra-se em estado de impropriedade/ inauten-
ticidade; podemos compreender, por enquanto, a inautenticidade como um escapismo, um
abandono de si, um deixar-se nivelar pela cotidianidade. O desejar, o temer e o querer perdem
sua autenticidade, tornam-se impróprios, mas ainda “pertencem” a um modo-se-ser; este
nivelamento é apanágio do Dasein e repousa no chamado modo-de-ser originário (ôntico)
ser-no-mundo. O Dasein não pode ser absorvido pelo mundo, mas pode ser nivelado por
ele. Também não falamos do mundo em sentido físico, mas do mundo que nos “toca” com
seus fenômenos. Como será possível uma correção de rumo após esta funesta interferência
da cotidianidade? Como sublimar o decair e converter a inautenticidade em autenticidade,
recolocando o Dasein em seu seguro caminho rumo a sua “terra natal”? Como reencontrar
o caminho de volta, qual será a noção norteadora deste bem aventurado retorno? A angús-
tia, naturalmente...
Para cumprir o “papel” de disposição privilegiada, a angústia deve estar presente
mesmo no mais arraigado antípoda do Dasein; “no coração do próprio coração”. Assim
iluminada, ficam claros o como e o quando a que nos referimos: o encontrar-se, o enten-
der-se, o discurso, e o nada; eis os fios com os quais é engendrada uma trilha rumo a “terra
natal”. Em cada um deles a angústia irradia “um pouco” de sua natureza ontológica: no
encontrar-se será na forma do estranhamento, no entender-se será na forma da suspensão
do ente, da caducidade da mundidade, um retroceder diante da totalidade dos entes; no
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
discurso será na forma da não-dicção, não-enunciação; mudez no sentido de ter o acesso
a dicção e a enunciação obstaculizado devido a suspensão da valoração da totalidade dos
entes pelos dois a priori citados, a saber, o encontrar-se e o entender-se. A relação com o
nada é ainda anterior, representa o “impulso inicial”, é o “marco-zero” do Dasein.
Tal questão, a saber, acerca do nada, continua a desafiar a argúcia dos que sobre ela
se debruçam. O próprio questionar pelo nada o transforma no é, uma vez que a resposta a
uma questão baseia-se na predicação de um objeto. Porém, ao objetivá-lo, o convertería-
mos em um ente pois o pensamento, se agisse como “pensamento do nada” agiria contra
sua própria essência. Sob qual regime semântico podemos questionar o nada? Na rotina
do Dasein, o entendimento, o pensamento e a Lógica estão presos ao ente. Logo, o nada
é a negação da totalidade do ente; o definimos, assim, como o não-ente.
Porque o Dasein precisa do nada para alcançar o ente? Esta base originária é de onde
procede o Dasein. A precedência do nada demonstra que este sustenta o estar-lançado/
jogado; nesta sustentação encontra-se a abertura e ocorre a transcendência, a saber, a
possibilidade de apreensão do ente pelo Dasein: o aí. O caráter interpretativo privilegiado
do nada, diante do ente em sua totalidade, mantém-se oculto. Na profusão dos entes, no
seu vir-de-encontro, “submerge” o nada, neutralizado pela suave brisa da cotidianidade.
Onde procurá-lo? Em uma vacuidade fecundante? Em um vazio criador? A resposta já a
fornecemos acima, naturalmente.
Vinculo essencial expresso, cabe-nos agora o “desmonte” da relação do nada com
o Dasein e com a angústia. A angústia não empreende uma destruição do ente em sua
totalidade, tão pouco sua negação. Sem sair dos “limites do Dasein”, a angústia subtrai da
totalidade dos entes seu valor, deixando em relevo apenas o nada fulcral, “onde” as pos-
sibilidades e a liberdade agem, antes da realidade se formar. Anterior a liberdade como
possibilidade de escolha, é o “estar suspenso” do Dasein no nada. Concomitantemente
ocorre a transcendência. A partir deste momento, inicia-se a relação do Dasein com o ente.
Procedendo como pelo nada revelado, tal relação se desenvolverá segundo as vicissitu-
des e idiossincrasias de cada ser-no-mundo particular. A liberdade resgata continuamente
a possibilidade de escolha e converte-a ao Dasein; a particular referência ao mundo e a
constante irrupção do ente permitem ao Dasein escolher livremente.
A essência deste nada estrutural é a nadificação, a condução do Dasein diante do ente
enquanto tal. “O nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence originariamente à
essência mesma (do ser). No ser do ente acontece o nadificar do nada” (QUE É METAFÍSICA,
1969, p. 35). Isso implica em que a angústia originária “conduz” o Dasein ao nada estrutural.
Este nada estrutural que perpassa toda a totalidade do ente, muitas vezes não resulta na
citada nadificação, nem o homem imerso na angústia encontra, invariavelmente, esta abertura
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
originária chamada clareira, porque? Porque ambos, tanto o nada como a angústia, tiveram
suas “funções” estropiadas pela cotidianidade. Através de uma caprichosa dialética, tudo
foi corrompido até a medula. Um matiz coletivo mutilou as funções fundamentais de tais a
priori originários. Eles não mais conduzem o homem ao abissal da existência; filtrados pela
abordagem cotidiana, tornaram-se inconsistentes e devem ser abandonados.
O essencial do empreendimento condensou-se nos conceitos de angústia, Dasein e
nada. O perfil caracterizador que melhor problematiza estes “elementos” é o ontológico-
-existenciário ser-para-a-morte. “A angústia diante da morte é a angústia ‘diante’ do mais
próprio, irremetente e insuperável poder-ser. O diante de que dessa angústia é pura e
simplesmente o poder-ser do Dasein” (SER E TEMPO, 2014, p. 693). Constituído pela
abertura, “um entender que se encontra”, afirma-se que essa possibilidade final pertence a
dejecção, logo, está sujeita a interpretações orientadas pela cotidianidade. A-gente nunca é
“tocada” pela morte porque a-gente nunca morre, quem morre, cessa-de-viver, é o Dasein.
A-gente, no máximo, consegue “soterrar” a noção da morte através de uma “esquivança
encobridora”, “moldando-a”, de modo que o consequente cessar-de-viver transforme-se em
uma calamidade. O moribundo é mantido longe do alcance dos olhos dos demais, evita-se
falar dele e, quando se fala, trata-se de uma recordação; sendo assim a angústia diante
da morte “não chega a ser”, vem à tona como “medo da morte”. Ela torna-se um fenômeno
impessoal, distante, quase sem vínculo conosco, já que na esfera a-gente nunca nos refe-
rimos a individualidade, somente a coletividade. A morte é um fenômeno da vida, faz parte
da constituição originária do Dasein.
A aplicação dos conceitos acima nos conduziu desde o ontológico-existencial ser-em
até o ontológico-existenciário ser-para-a-morte, caracterizando também o nada estrutural.
Envolver-se na exploração da angústia nos conduziu a meandros desconhecidos até então.
Sob a “vigilância” da preocupação, a angústia originária de que nos fala Heidegger conduz
o homem a uma determinada ataraxia, onde o Dasein está só consigo mesmo. Neste “en-
capsular-se”, o único “objeto” é o próprio Dasein, velado pela preocupação, e pelo nada
formador, que envolve esta atmosfera originária.
Tais perspectivas heideggerianas só foram possíveis, segundo o próprio Heidegger,
devido a um “ensimesmado” antecessor. Muito cedo o jovem Søren foi colocado “diante” da
angústia e do desespero. Sua cerebração incisiva e sua natureza lúgubre (unidas a uma
miríade de traumas que se abateram sobre ele) o voltaram para o estudo do indivíduo que,
segundo ele, é a categoria por excelência. Assim sendo, é na investigação do indivíduo que
seus esforços se concentraram. Na esteira das diferenças entre os dois pensadores, iniciamos
pela própria noção de indivíduo, que muito difere da noção de Dasein. O dinamarquês fala de
uma síntese criada por Deus. Também fala que esta não se harmoniza por si só, pois seus
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
fatores formadores são de natureza antípoda, contudo, “alocados” num frágil e complexo ser,
a saber, o homem: uma dicotomia estrutural, um vínculo sobrenatural. O conceito desespero
caracterizará as variações desta desarmonia. A conduta faltosa e a torpeza de espírito serão
caracterizadas como pecado, sendo a fé o elo entre o homem e Deus. A inocência é o pri-
meiro momento perceptível da angústia e primeira noção do nada (não no sentido nadificante
e sim no sentido de imperturbabilidade), onde uma simples palavra ambígua pode por em
marcha o “processo” da angústia. Por toda a existência, excetuando o estado de inocência,
o homem será presa do desespero, sendo a própria ignorância desta enfermidade uma de
suas variações mais comuns. No fim da vivência, a alma retorna à Divindade. Neste retorno
a angústia terá um papel fundamental. Apesar das diferenças apontadas, a esfera do eu
não foi ultrapassada. Nesta atmosfera, apesar das dessemelhanças citadas, encontram-se
similaridades entre os dois pensadores: a determinação existência (leia-se existencial) alheia
a uma dialética objetivante e a determinação multidão (leia-se cotidianidade) como hostil e
maléfica ao eu. Mas como se formam tais caracteres?
Provisoriamente, admitiremos o eu apenas como uma síntese, sem mencionar seus
termos. A esta síntese Kierkegaard dá o nome de espírito. O dinamarquês nos fala de um
momento inicial da síntese, que representaria um estádio anterior ao estabelecimento do eu.
Não se trata de uma desnaturação do indivíduo, também não de uma ignorância animalesca,
incomunicável com a racionalidade, pois se o fosse por um só instante, nunca chegaria a ser
homem. Os termos existem e já “relacionam-se” entre si, constituem uma unidade, porém de
uma maneira imediata, num elo fortuito. A inocência caracteriza o espírito numa atmosfera
quase onírica. Este elo ainda não é sólido o suficiente para propiciar o surgimento do eu,
mas como síntese estabelece a unidade entre os termos. Neste relacionar-se encontra-se
o primeiro vestígio da angústia: a “língua comum” resultante desta relação primitiva entre
os termos. A síntese é acossada pela liberdade e pela possibilidade; ainda não é culpada,
pois se o fosse, já teria perdido a inocência, mas é presa da angústia.
“O homem é uma síntese de finito e de infinito, de temporal e de eterno, de liberdade e
de necessidade, é, em suma, uma síntese” (A DOENÇA MORTAL, 2010, p. 25). A presença
imediata de tais elementos por si só, como foi dito, não constitui o eu. A relação “instituidora”
do espírito por si só já está presente na inocência, porém, não tem “consciência de si”, não
está voltada sobre si, e esse relacionar-se ainda é uma mera “acomodação” inicial. O eu
ainda “não está presente” por que este não representa apenas a relação por si só, porém, o
voltar-se sobre si desta relação. Esta constituição primeira, como afirmou-se anteriormente,
é alheia ao desespero por repousar em uma ataraxia, numa imperturbabilidade, onde o de-
sespero não encontra seu “objeto”, porém, “a angústia já andava de roda no meio das flores

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
e dos legumes; não conseguia pousar em nenhuma parte”. O desespero, como veremos
adiante, pressupõe o eu já “estabelecido”.
A humanidade possui um plenipotenciário: Adão. É dele que Kierkegaard vale-se para
ilustrar a inocência. Logo, ele é o primeiro “alvo” da angústia. Seguindo as Escrituras, vemos
que Adão habitava o Éden. O que havia neste lugar sagrado capaz de perturbar Adão? Nada.
Exatamente este nada entranha-lhe a angústia no ser. A proibição divina à degustação do
fruto “encontra” em Adão a possibilidade e a liberdade para saborear o fruto ou não.
Não convém permitir que a simples proibição condicione a queda. Se nos determos
neste momento, a concupiscentia virá à tona, e não a angústia. “Uma concupiscentia é uma
determinação de culpa e de pecado antes da culpa e do pecado e que, no entanto, não é
nem culpa nem pecado, ou seja, é posta por este” (O CONCEITO DE ANGÚSTIA, 2010, p.
44). No homem posterior a Adão , no tocante as valorações, a concupiscentia é um “segundo
momento” no pecado, onde “lentamente” a culpa insinua-se, e neste simples insinuar-se,
após a instauração do pecado pelo salto qualitativo, o nada da angústia deu lugar ao angus-
tiante ser-capaz-de; o mostrar-se da liberdade para si mesma na possibilidade. Podemos
compreendê-la como corrupção. A Igreja Protestante associa ao homem a presença do
pecado hereditário devido a sua natureza corrompida. Após o primeiro pecado de Adão, a
concupiscentia avançou no seu eu, corrompendo sua natureza. Como Adão “representava”
a si mesmo e ao gênero humano, um “espectro” desta concupiscentia passou a participar
da natureza do homem. O remanescente do pecado hereditário é a pecaminosidade, o
avançar constante do pecado.
Com o salto qualitativo a diferença de gênero é “posta em contato” com a síntese, e
a sexualidade torna-se pecaminosidade. Na inocência, o espírito é insciente em relação a
diferença genérica. Tal diferença encontra-se velada pelo pudor. Neste caso, a diferença
entre o anímico e o corpóreo não existe, e a angústia do pudor é a consequencia desta igno-
rância. No ápice da síntese, o pudor “suspende” a sexualidade. Devido a essa “suspensão”,
o instinto sexual ainda não está presente. Ele é derivado do salto qualitativo, e introduziu-se
concomitantemente a diferença entre bem e mal. Porém, uma vez manifesto, deve ser deter-
minado como o extremo da síntese; assim determinado, de acordo com Kierkegaard, surgem
os problemas morais do erótico e sua batalha com o amor romântico. “A sensualidade não
é pecaminosidade. A sensualidade, na inocência, não é pecaminosidade e, no entanto, a
sensualidade está presente. (...) Só a partir do momento em que é posto o pecado, também
a diferença de gênero será posta como instinto” (O CONCEITO DE ANGÚSTIA, 2010, p. 88).

Com o primeiro pecado, entrou o pecado no mundo. Exatamente do mesmo


modo vale isso a respeito do primeiro pecado de qualquer homem posterior, que
com este o pecado entra no mundo. (...) Todo seu conteúdo está concentrado

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propriamente nesta proprosição: o pecado entrou no mundo por meio de um

Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2


pecado. Se não fosse assim, o pecado teria entrado como algo casual, que
seria melhor não tentar explicar. (...) O pecado entra, portanto, como o súbito,
isto é, pelo salto; mas este salto põe ao mesmo tempo a qualidade; mas quan-
do a qualidade é posta, no mesmo instante o salto está voltado para dentro
da qualidade e é pressuposto pela qualidade, e a qualidade pelo salto. Isto
é um escândalo para o intelecto, ergo isso é um mito. Em compensação, ele
mesmo inventa um mito que nega o salto e explana o círculo como uma linha
reta, e aí tudo se passa naturalmente. (...) Mas se a pecaminosidade adentrou
no mundo com o pecado, então é que este a antecedeu. Esta contradição é
a única dialeticamente consequente, que dá conta tanto do salto quanto da
imanência (O CONCEITO DE ANGÚSTIA, 2010, p.33-34).

Assim, confirma-se que a síntese não precisa estar estabelecida para o surgimento
da angústia e que esta não necessita de um “alvo” específico, a natureza humana é o seu
nicho. Não que a inocência tenha se extinguido junto com Adão, ou permanecido idêntica,
pois, no avanço quantitativo da humanidade, “mesclou-se” à inocência um “complexo de
pressentimentos”, mas ela continua inocência, pois um “mais” não pode gerar uma mudan-
ça qualitativa. E, como tal, só há uma maneira de perdê-la: pela culpa. Deste modo Adão
perdeu a inocência e é assim que todos os homens posteriores a perdem. A perda da ino-
cência em Adão caracteriza o fenômeno da queda. Esta não gera um avanço quantitativo,
porém, uma mudança qualitativa. Uma mudança na “qualidade” da realidade vivida, causada
pelo chamado salto qualitativo: “com o primeiro pecado, entrou o pecado no mundo” (O
CONCEITO DE ANGÚSTIA, 2010, p. 33). Segundo Kierkegaard, a instauração do primeiro
pecado representa a entrada da pecaminosidade no mundo; o outro primeiro pecado, a
saber, nos indivíduos posteriores, tem esta pecaminosidade como condição. Assim como
com Adão, perde-se a inocência pelo primeiro pecado cometido.

De onde vem então o desespero? Da relação que síntese estabelece consigo


própria, pois Deus, fazendo que o homem fosse essa relação, como que o
deixa escapar de Sua mão, de modo que a relação depende de si própria.
Esta relação é o espírito, o eu, e nela jaz a responsabilidade da qual depen-
de todo o desespero, desde que existe; da qual ele depende a despeito dos
discursos e do engenho dos desesperados em enganarem-se e enganar os
outros, considerando-o como uma infelicidade - como no caso da vertigem
que o desespero, a despeito da diferença, evoca, de mais de um ponto de
vista e com a qual abundam analogias, a vertigem estando para a alma como
o desespero para o espírito (A DOENÇA MORTAL, 2010, p. 29).

O fenômeno do desespero inicia num momento posterior ao salto qualitativo. Sua


dialética é mais ampla e sua manifestação mais “visível”. Diferentemente da angústia, o
desespero será caracterizado por Kierkegaard como “enfermidade do espírito, do eu”. Esta
enfermidade está diretamente relacionada a desarmonia entre os fatores da síntese. A ca-
rência de um dos termos faz com que este perca “terreno de manobra” diante do outro. O ex-
cesso faz com que o eu seja “tragado” por este abuso; o elemento excedente “sufoca” o eu.
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Deste modo, a síntese é abalada; seu caráter antitético foi comprometido. O eu não vive, por
exemplo, na pura finitude ou na pura infinitude. Assim sendo, cito as seguintes variações:
o desespero sob a dupla categoria do finito e do infinito; sob as categorias da possibilidade
e da necessidade e sob as categorias do temporal e do eterno. Ainda relacionado a este
descompasso, o desespero resulta na perda do eu, num extravio que sob a categoria da
consciência mostra-se das seguintes formas: (1) a ignorância desesperada por ter um eu
eterno; (2) o desespero no qual não se quer ser si próprio (desespero-fraqueza) e (3) o
desespero no qual queremos ser nós próprios (desespero-desafio). A doença mortal é o
desespero. A desestabilidade da síntese afasta o eu do poder criador; distante de Deus, o
homem está mortalmente doente. Por isso Kierkegaard insiste que só o cristão conhece a
doença mortal. Assim, a morte não é a doença mortal, pois, segundo ele, esta deve “atacar”
o eu, não o corpo. Além do mais, o cristão não se atormenta diante da morte, apenas pede
a Deus para que o proteja neste momento de solidão e desmesurado perigo. Diverso da
morte física, seu tormento supremo está exatamente em não ser um mal do qual se morre,
pois o morrer se torna uma constante. Não há confiança na vida nem na morte, pois a vida
tornou-se um fardo, e a morte uma realidade inalcançável. “Salvar-nos” desta enfermidade
nem a morte pode, só aumentaria o tormento. No Livro de João está a passagem bíblica que
Kierkegaard (cristão fervoroso!) usou para ilustrar a doença mortal: “Esta enfermidade não
causará a morte, mas tem por finalidade a glória de Deus. Por ela será glorificado o Filho
de Deus” (Jo 11; 4). Lázaro estava morto, apesar de não estar “mortalmente doente”. Como
é possível? Lázaro tinha fé. Seu “elo” com Deus era sólido. Apenas um “movimento” (sem
deslocação) pode extirpar o desespero do eu: “orientando-se para si próprio, querendo ser
ele próprio, o eu mergulha, através da sua própria transparência, até o poder que o criou”
(A DOENÇA MORTAL, 2010, p. 27).
Mais relevante para a análise é explorar o teor da angústia. A identificamos no início,
ainda antes da queda e agora cabe-nos avançar no empreendimento. Veio a culpa e a ino-
cência foi perdida. Já admitimos a angústia na qual o indivíduo “põe” o pecado, por meio do
salto qualitativo. Resta-nos esclarecer a angústia em relação ao que foi posto e ao futuro.
Este projeto é mais ambicioso. A “realidade do pecado”, surgida do salto qualitativo, irradiou
sobre toda criação, humana e não-humana. Angústia objetiva é como Kierkegaard deno-
mina o frêmito, o abalo causado na natureza pela entrada da pecaminosidade no mundo.
Tal avanço não deixou quaisquer recantos imaculados; em todas as atmosferas o pecado
estabeleceu uma realidade indevida. Afirma-se, deste modo, que o pecado interferiu na
“relação” da angústia com o tempo, com a culpa e com o espírito.

O instante é aquela ambiguidade em que o tempo e a eternidade se tocam


mutuamente, e com isto está posto o conceito de temporalidade, em que o
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tempo incessantemente corta a eternidade e a eternidade incessantemente
impregna o tempo. Só agora adquire seu significado a mencionada divisão:
o tempo presente, o tempo passado, o tempo futuro (O CONCEITO DE AN-
GÚSTIA, 2010, 96).

Retornemos um momento ao conceito de síntese, mais especificamente sob a dupla


categoria temporal e eterno. Não se trata de outra síntese, e sim de um momento distinto da
mesma síntese. Um desses elementos caracteriza a finitude e o outro a infinitude. A finitude
necessita de um “ponto-de-apoio”, uma espécie de intermezzo no tempo, do qual possa
abstrair suas categorias, visto que a finitude “pura” é indeterminável. A essas chamamos
passado, presente e futuro. O eterno, por não possuir lapsos de tempo em sua natureza será
definido por Kierkegaard como o presente em sua plenitude, ininterrupto. Quando o temporal
e o eterno “tocam-se”, origina-se o instante. Relembramos que o espírito já foi instituído como
unidade imediata, e a angústia é assediada pela liberdade e pela possibilidade. Quando o
salto qualitativo é estabelecido, a temporalidade passa a significar pecaminosidade. Neste
caso, a angústia se relacionará com o futuro. Ao “nada” da angústia “mescla-se” a possibi-
lidade da eternidade na individualidade, a saber, redenção ou perdição. Para a liberdade,
a possibilidade do porvir é angustiante.
Vigora aí um contínuo e rico “intercâmbio” de influências: angústia - pecado - cul-
pa. Dissemos anteriormente que à angústia no homem posterior a Adão soma-se algo.
Nomeamos este algo, naquele momento, de “complexo de pressentimentos”. Este complexo
manifesta-se quando a diferença entre bem e mal é posta in concreto. O nada da angústia
confunde-se com a culpa. “A culpa é uma potência que se alastra por toda parte e que, con-
tudo, ninguém pode entender num sentido mais profundo, enquanto ela incuba, aninhada
na existência” (O CONCEITO DE ANGÚSTIA, 2010, p. 113). Esta confusão ocorre por que
a angústia “descobre” a culpa antes mesmo do pecado concretizar-se. As possibilidades da
liberdade eram o nada ao qual a angústia “inclinava-se”. Sobreveio o salto qualitativo e o
pecado “entrou” no mundo. Agora, as possibilidades da liberdade fundem-se com a possibili-
dade da culpa, e a angústia avançou ainda mais em ambiguidade. Ao “tornar-se” culpada, a
liberdade tem ainda um novo momento: o arrependimento. Trata-se de um momento posterior
ao pecado, quando a culpa procura anular a si e a realidade indevida. Kierkegaard fala sobre
uma potenciação do arrependimento pela angústia. O problema é que o arrependimento
não pode libertá-lo; ele se condensará e se tornará índice de sua ira, da mesma maneira
que a angústia foi índice de sua interioridade. Tal como outrora a fé “salvou” o homem do
desespero, apenas ela poderá salvá-lo do arrependimento, através da redenção. Ou o que
lhe aguarda é a perdição, onde a consequencia do pecado é elevada a um expoente infinito
e a danação é dada como certa.

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A angústia continua a incidir, metamorfoseando-se de inquietação em inquietação.
Como afirmou-se, a diferença entre bem e mal foi posta in concreto. Também a angústia
“tomou assento” diante dessa nova realidade. A compreensão integral da questão exige
que esmiucemos a problemática. O “percurso” do pecado já o percorremos. O mal, como o
compreenderemos aqui, está nele radicado. Logo, angústia diante do mal é angústia diante
do pecado. Além desse papel de “realidade indevida”, o pecado corresponderá ao acima
nomeado “complexo de pressentimentos”; os indícios que se podem “vislumbrar” remontam
a permanência do indivíduo no pecado e ao “deter-se” da angústia diante do pecado, ope-
rosidade do eu diante da realidade indevida, a saber, culpa. Em contato com tais “agentes”,
a liberdade dispõem o homem. Na angústia diante do mal, a possibilidade da liberdade é
a possibilidade da redenção.
No demoníaco a liberdade está determinada como não-liberdade. Este fenômeno deve
ser encarado sob um olhar filosófico. A angústia diante do bem é o “fechamento” da liberdade.
Tal fechamento caracteriza-se pelo seu caráter hermético onde o contato com o bem acen-
tua o velamento das possibilidades, já que com a perda da liberdade, perdeu-se também o
querer; é o súbito, não-contínuo, não-comunicante e não-expansivo: um estado negativo da
individualidade. É em contato com o bem que a não-liberdade revela-se. “(...) Ao entrar em
comunicação com a liberdade que há lá fora, revolta-se, e então assim a não liberdade trai
que é o próprio indivíduo que trai a si mesmo na angústia” (O CONCEITO DE ANGÚSTIA,
2010, p. 134). Tais assertivas concordam com as palavras do evangelista Marcos, que relata
o tormento do demônio ao ver de longe o Cristo: “Que queres de mim Jesus, Filho do Deus
Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes” (Mc 5: 7).

A certeza, a interioridade, que só se alcança pela e só existe na ação, determina


se o indivíduo é ou não demoníaco. É só manter firme a categoria que tudo
se resolverá, e se tornará claro, por exemplo, que arbitrariedade, descrença,
escárnio à religião, etc. não carecem, como se acredita de conteúdo, mas care-
cem de certeza, bem no mesmo sentido com crendice subserviência, beatice.
Os fenômenos negativos carecem justamente da certeza, porque eles residem
na angústia diante do conteúdo (O CONCEITO DE ANGÚSTIA, 2010, p. 151).

Concomitante a liberdade é a verdade e a interioridade. Com a perda da primeira,


necessariamente, as outras duas perecem. “O conteúdo da liberdade, numa perspectiva
intelectual, é verdade, e a verdade torna o ser humano livre” (O CONCEITO DE ANGÚSTIA,
2010, p. 150). A não-liberdade “petrifica” a subjetividade e, desta maneira, não permite à
interioridade a certeza oriunda da autoconsciência. Este fenômeno pode alterna-se em ati-
vidade ou passividade, mas sempre será não-liberdade. Kierkegaard nos cita a descrença
e a crendice; a hipocrisia e o escândalo; o orgulho e a covardia. Todos, respectivamente,
exemplos de atividade e passividade na não-liberdade. “A subjetividade é a verdade” e “a
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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
interioridade, a certeza, é a seriedade”, já afirmou o dinamarquês mais de uma vez, em
mais de uma de suas obras, contrapondo-as a objetividade que “mata e disseca” seu obje-
to. O indivíduo, como categoria por excelência, tem na subjetividade o “primeiro esforço” de
sua existência. Tal fato é posto em relevo quando a especulação “investe” sobre um objeto
não-manifesto em caracteres objetivos, como o Cristianismo. No “atrofiamento” da subje-
tividade nega-se o eterno no homem. Exatamente nessa negação e em suas variações a
angústia enredará o homem.
A angústia imposta pelo demoníaco não é o fim; seu metamorfosear-se ainda possui um
último “termo”. No início afirmamos que a angústia é a possibilidade da liberdade antes da
realidade formar-se. A tônica, a partir de agora, repousará no “elemento” possibilidade. Na ex-
posição das variações do desespero, o citamos sob a dupla categoria da necessidade e da
possibilidade; esta será a concepção vigente: possibilidade no sentido de infinitude. Se a
angústia forma-se na finitude, possui uma “natureza” tacanha, superficial. Não avança em
direção à salvação; detém-se num chafurdar infame na finitude. Da salvação nada conhe-
ce, apenas fantasia, abstrai e, até mesmo, nega-a. Se a angústia forma-se na infinitude, o
homem é elevado a um expoente infinito. Desta maneira, ela “subtrai” do indivíduo todas as
ilusões do mundo finito e antecipa como leviano cada terror que a finitude nos apresenta:
a angústia “infinita” é o remédio para a angústia “finita”. Porém, esta formação possui uma
exigência irremediável: a fé. Mediante ela, a finitude como formadora de valores e ideais
“deixa de ser”. Assim, tal indivíduo passa a “exercitar” a vigilância que a infinitude lhe exige
na sua própria existência. Porém, se formado na infinitude e não acatar suas “exigências”,
o homem é exposto ao casual oposto da fé: o suicídio. “Sendo o indivíduo formado pela
angústia para a fé, a angústia então há de erradicar justamente o que ela mesma produz”
(O CONCEITO DE ANGÚSTIA, 2010, p. 174).
Nosso objetivo baseou-se na trajetória fundante da angústia. Decretar seu caráter
ontológico-existencial significa mais que valorar o homem através da sua capacidade de
“recolher-se”, “encasular-se”; significa indicar o privilégio interpretativo do indivíduo/Dasein
a partir deste “encasulamento”, vislumbrando o caráter oniabrangente da subjetividade/ ich
bin. As relações, consolidadas em perspectivas, são instauradas a partir de estruturais a
priori. Estes, plenamente imersos na angústia, forjam o processo existencial. Mobilizada
a vertente subjetiva, concordam Kierkegaard e Heidegger, põe-se em marcha o processo
existencial. Ao interpretar e ao valorar, ao estimar e ao desprezar, a angústia, como apanágio
da natureza antitética do indivíduo e a priori pré-ontológico, nega a “unidirecionalidade” e a
impessoalidade, conduzindo a decisão à subjetividade/ ich bin. A “decisão” deve ser pessoal.
Esta capacidade de condução da angústia extrapola a esfera do escolher, e conduz a própria

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
subjetividade ao nada fulcral. Tarefa: apropriação da finitude e ultrapassagem-do-ente; visão
de mundo a partir da singularidade.
O avanço da investigação procurou acompanhar a temática da angústia desde o seu
“despertar” até seus “momentos finais”. Como arraigada no espírito, só há uma possibili-
dade do homem nunca ter sido acossado pela angústia: ser desprovido de espírito. Como
abertura-do-ser, só há uma maneira dela não manifestar-se: não-ser. A crise causada pela
angústia acentua a individualidade e põe em marcha o “encaminhamento” do eu/Dasein.
Devido a densas manifestações, por vezes a angústia conduz a uma taciturnidade exacer-
bada, e pensamos do angustiado que este acabara de retornar do antro de Trofônio. Este
desalento não é o nosso objeto. O porvir do homem depende de um conflito originado na e
pela angústia; neste conflito encontra-se subsumido o abissal da existência.

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
SOBRE O ORGANIZADOR
Prof. Dr. Daniel Luciano Gevehr
Daniel Luciano Gevehr realiza pós-doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (PUCRS). Possui pós-doutorado em História pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (UNISINOS). É doutor em história pela mesma Universidade, onde também realizou
sua graduação em história e mestrado em história. É Professor Titular do Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR - FACCAT), onde também atua como Líder
do Grupo de Pesquisa (CNPq) Instituições, Ordenamento Territorial e Políticas Públicas para o
Desenvolvimento Regional. Participa como pesquisador dos grupos Estratégias Regionais
(Universidade UNILASALLE), Núcleo de Estudos de História da Imigração (Universidade de
Passo Fundo - UPF), História das mulheres e estudos de gênero (Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul - PUCRS). É coordenador do NIEMI - Núcleo Interdisciplinar de Estudos
Migratórios e Identidades, em parceria com universidades do Brasil e do exterior. Coordena os
projetos da área de patrimônio cultural, educaçāo patrimonial e gestāo do museu municipal junto
à Secretaria de Turismo, Cultura e Desporto da Prefeitura Municipal de Sapiranga (RS). Seu campo
de investigação privilegia, atualmente, as questões que envolvem a problemática do patrimônio
cultural, da educação patrimonial, da memória,,das sensibilidades, da produção dos espaços urbanos,
educação e formação docente. Pesquisa, ainda sobre as representações de raça, etnia e gênero.
Tem experiência na área de história, educação e desenvolvimento regional, atuando principalmente
nos seguintes temas: história do Brasil e do Rio Grande do Sul, história dos municípios, movimentos
migratórios históricos e contemporâneos, movimento Mucker, patrimônio cultural, espaços
urbanos, memória, representações e relações de gênero, raça e etnia e processos identitários.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0120499154280445

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Temas da Diversidade: Experiências e Práticas de Pesquisa - Volume 2
ÍNDICE REMISSIVO

Sala de Aula Invertida: 161


A
Sociedade: 22, 23, 72, 161, 210, 230, 256, 258
Aprendizagem: 117
T
C
Tecnologia: 42, 153, 164, 225, 227, 287, 290,
Ciência: 42, 164, 166, 209 291, 299

Criatividade: 127 Teoria: 286, 290, 293, 299

Currículo: 166, 174, 175, 177, 178, 181, 225

E
Educação: 5, 6, 7, 36, 37, 38, 42, 43, 71, 72,
118, 119, 120, 121, 123, 127, 129, 130, 133, 134,
135, 139, 140, 143, 146, 147, 153, 154, 162, 163,
164, 166, 172, 176, 178, 209, 210, 212, 213, 216,
217, 218, 219, 221, 222, 226, 229, 234, 236, 298

Ensino: 7, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 42, 43, 71, 117,
130, 132, 134, 147, 154, 168, 174, 209, 217, 222

Ensino de Ciências: 31, 32, 43

Escola: 23, 58, 107, 137, 148, 175, 180, 181,


211, 212, 213, 214, 215, 217, 219, 223

F
Filosofia: 74, 127, 164, 316

Formação: 31, 43, 120, 123, 148, 164, 166, 181,


210

I
Influência: 106

P
Professor: 107, 114, 115, 116, 117, 120

Professores: 123, 166

R
Recursos: 130, 131, 132, 134, 135, 138, 141,
153, 225, 227, 230

S
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editora científica

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