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António José Saraiva explica a diferença entre veracidade e imparcialidade, entre ser-se
imparcial, e ser-se objectivo.
Para este autor «Fernão Lopes nunca poderia ser imparcial, no sentido de não ter uma
opinião acerca dos acontecimentos que relatou», mas faz notar que «o não ser imparcial não
significa que não se seja objectivo».
(... )
O falecido general Morais Sarmento pretendeu que Fernão Lopes tinha cientemente
prejudicado alguns dos seus biografados, como o rei D. Pedro, o rei D. Fernando e
a rainha D. Leonor Teles (1). Mas a sua argumentação e os seus exemplos
revelaram-se infelizes porque foi possível demonstrar que certos factos, segundo
Morais Sarmento falsos e até inverosímeis, tinham como fonte documentos
autênticos de chancelaria. Onde o crítico viu «grosseiras e odiosas patranhas»
descobriu-se que o cronista se limitara a extractar ou parafrasear textos oficiais (2). A
probidade profissional de Fernão Lopes saiu altamente prestigiada desta discussão;
e quase todos concluíram que ele é um historiador fiel e imparcial, em quem se
pode ter toda a confiança.
Esta conclusão, a nosso ver, vai muito além das premissas, e confunde duas
questões que devem ser consideradas em separado: a questão da probidade
profissional e a questão da imparcialidade na interpretação dos acontecimentos.
Com todos estes contrasta flagrantemente Fernão Lopes pela pesquisa e pela.
utilização do documento escrito. Esse documento pode ser uma memória anterior, e
nesse caso o cronista limita-se a transcrevê-la, sem meios para controlar a sua
veracidade. As crónicas dos reis de Portugal anteriores a D. Fernando são, como
notámos, uma justaposição de «histórias» preexistentes, acerca das quais
nenhuma garantia temos. Mas, já nesta parte, Fernão Lopes soube encontrar outras
fontes documentais: lápides sepulcrais, cartas, actas, etc.
«Quem cuidais que não, se enfade de revolver cártários de podres escrituras, cinja
velhice e desfazimento nega o que o homem queria saber? Quem achara, tantos
epitáfios antigos que os moimentos em:. que são escritos dêem testemunho de
quem jaz neles?» (8)
«... e nós posto que as não víssemos [as cousas que relata] de muito revolver com
grande trabalho e diligência ajuntamos as mais chegadas a razão em que os mais
autores pela maior parte consentem, e portanto condenamos e reprovamos e
havemos por nulas quaisquer crónicas, livros e tratados que com este volume não
concordam» (9)
Como quem diz: este é o escrito autêntico pelo qual se deve fazer fé e que anula:
todo e qualquer outro que com ele não concorde. Note-se de passagem a
autoridade de que neste texto se reveste o Cronista, como se atrás de si tivesse
uma autoridade pública a garantir a validade da sua pretensão.
Depois de se referir aos que, por afeição à sua terra e aos seus compatriotas, se
afastaram da verdade histórica, acrescenta:
«Nós certamente, levando outro modo, posta de parte toda a afeição que por aso
das ditas razões haver podíamos, nosso desejo foi em esta obra escrever verdade
sem outra mistura, deixando nos bons sucessos. todo o fingido louvor, e nuamente
mostrar ao povo quaisquer cousas desfavoráveis, da maneira que avieram. E se o
Senhor Deus a nós outorgasse o que a alguns escrevendo não negou convêm a
saber, em suas obras clara certidão da verdade – sem dúvida não somente mentir
do que sabemos, mas nem sequer errando, falso não queríamos dizer; como assim
seja que outra cousa não é errar salvo cuidar que é verdade aquilo que é falso. E
nós enganado por ignorância de velhas escrituras e desvairados autores bem
podíamos ditando errar, porque escrevendo homem do que não é certo ou contará
mais curto do que foi ou falará mais largo do que deve mas mentira neste
volume é muito afastada da nossa vontade. Ó com quanto cuidado e diligências
vimos volumes de livros de desvairadas linguagens e terras, e ainda públicas
escrituras de muitos cartários e outros lugares, nas quais depois de longas vigílias e
grandes trabalhos, mais certidão haver não pudemos que a contida nesta obra! E
sendo achado em alguns livros o contrário do que ela fala, cuidai que não
sabedoramente mas errando muito, disseram tais cousas.
Este prefácio que hoje nos parece banal é todavia um documento singular para a
época em que foi escrito. Depois de ter indicado as razões que levam a maior parte
dos historiadores a faltar à verdade (a conformidade natural com a terra natal e a
afeição pelos homens do mesmo sangue), o seu autor discorre aí sobre o problema
da verdade histórica, estabelece a diferença: entre erro e mentira, indica e põe em
evidência os seus próprios esforços para superar as condições que naturalmente
falseiam o juízo do historiador; e enuncia brevemente algumas das fontes a que
recorreu - tudo problemas que andavam muito longe das preocupações dos
cronistas Medievais. E é de notar sobretudo a autoridade de que se reveste, a
maneira digna e grave, a consciência de uma importante função pública que
acompanham a sua peremptória declaração de que «mais certidão haver não
pudemos que a contida nesta obra», e de que se em outros livros for achado
contrário do que ela fala é porque esses livros estão errados. Não é um simples
particular quem fala, mas um magistrado como sentimento de uma
responsabilidade pública e oficial.
decisivo falta, o cronista inclina-se normalmente para a versão que julga mais verosímil, «mais
chegada a razão». Quando, enfim não encontra qualquer critério decisório Fernão Lopes apresenta
as duas ou mais versões contraditórias, deixando a escolha ao leitor. «Desde o começo desta obra -
escreve ele - seguimos pôr desvairadas opiniões para cada um reter qual mais lhe aprouver» (11).
Convém entretanto não exagerar o rigor crítico de Fernão Lopes. Nem sempre as
razões da sua escolha são explicadas ao leitor; como que utilizando um voto de
confiança, ele declara por vezes que tal ou tal versão é inexacta, e que a verdadeira
é a que ele passa a expor. Outras vezes as suas razões não são inteiramente
convincentes. Tendo encontrado escrito que perto de Santarém Nun'Alvares foi
abandonado pelos seus homens, amedrontados pela proximidade dos Castelhanos,
Fernão Lopes rejeita tal versão com o fundamento de que «o conde não trazia tais
gentes que sem porquê o deixassem, nem por que passasse tão vergonhosa
míngua, antes eram tão leais, e de tal modo. Provados por bons e ardidos ( ) homens 12
de armas que ainda que viesse todo o poderio de Castela antes se deixariam todos morrer ante seu
senhor que desampará-lo de qualquer modo que fosse» (13).
Mas incluindo mesmo os casos numerosos em que Fernão Lopes não nos dá as
razões em que estriba a sua versão, é incontestável que pelo sentido da
autenticidade documental, pela crítica das versões contraditórias, e pela noção de
que há uma verdade histórica para além dos critérios pessoais, ele singulariza-se
entre os historiadores medievais. É incontestável também, tanto quanto se tem
podido averiguar, a sua probidade profissional. Convém não perder de vista que
essas qualidades andam ligadas a certa mentalidades profissional e a certa função
responsável e pública - a de cronista oficial.
Parece-nos a priori que Fernão Lopes nunca poderia ser imparcial, no sentido de
não ter uma opinião acerca dos acontecimentos que relatou, e de não ser parte
interessada na actualidade cujos antecedentes imediatos constituíam o assunto das
suas crónicas. Bastava a sua envergadura intelectual tornar inevitável que tivesse
uma opinião sobre os factos; e bastava a sua qualidade de burguês letrado, oriundo
de mesteirais, ao serviço do rei, numa época de intensos conflitos sociais, para o
tornar parte interessada num processo em curso.
Seja dita de passagem que o não ser imparcial não significa que não se seja
objectivo. Pelo contrário, suposto um dado conflito de grupos sociais, há sempre
uma posição donde se alcança uma perspectiva mais ampla e mais justa da
realidade, e outra donde essa realidade aparece deformada ou amputada.
Fonte:
António José Saraiva,
História da Cultura em Portugal,
Lisboa, Jornal do Foro, 1950,
páginas 463 a 470.