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Para fundamentar sua tese, Arantes comparou duas citações, uma do livro de
Hardt e Negri (págs. 198-200) e outra de um pronunciamento recente de George
W. Bush. Os autores do livro afirmam que o "Império" inventado pelos
americanos atende a "demanda" do restante do mundo que veria os EUA como a
única potência global capaz de impor ordem e segurança. O presidente
americano, por sua vez, alega que esse "poder de polícia" internacional
seria missão indeclinável.
"Quando Bush diz: 'Os EUA aceitam de bom grado a sua responsabilidade de
liderar esta grande missão em prol da humanidade no combate de seus
adversários', ele está encarnando aquilo que há de mais profundo e que
poderíamos definir como -o que já seria um juízo de valor- 'mitologia
americana', 'ideologia americana' ou coisa que o valha. O presidente diz, e
os americanos entendem, sejam de esquerda ou de direita. É um automatismo de
linguagem."
Arantes terminou sua fala advertindo que é necessário cautela quando se fala
em incorporação, pois "o mundo está se desintegrando e todos querem se
integrar a este espaço de ordem, conforto, bem-estar e civilização que se
chama Império Americano". Para o filósofo, Negri e Hardt fazem a teoria
dessa incorporação e a apresentam de maneira revolucionária.
O professor Peter Pál Pelbart apresentou uma leitura diversa do livro. Para
ele, a obra é "a primeira grande cartografia do terceiro milênio", capaz de
pensar o presente com um recorte ao mesmo tempo histórico e filosófico,
cultural e econômico, político e antropológico. "Com clareza perturbadora
aparecem os processos de dominação e assujeitamento que se instalaram nos
últimos anos, bem como algumas indicações, ainda embrionárias, sobre
possibilidades de reversão", disse. Para Pelbart, o Império, tal como
definido no livro, "é uma nova estrutura de comando, em tudo pós-moderna,
descentralizada e desterritorializada". Sem fronteiras, engloba a totalidade
do espaço do mundo, apresenta-se como fim dos tempos, ordem a-histórica,
eterna, definitiva. "Penetra fundo na vida das populações, nos seus corpos,
mentes, inteligência, desejo, afetividade. Esse poder já não se exerce
verticalmente. Sua lógica, em parte, sim, inspirada no projeto
constitucional americano, é mais democrática, horizontal, fluida,
entrelaçada à heterogeneidade do tecido social, articulando em rede
singularidades étnicas, religiosas, minoritárias".
"No entanto, apesar de sua intensidade, e por mais que criem novos espaços e
novas formas de comunidade, e pensemos na linhagem que vai de Seattle a
Gênova, passando por Chiapas, ou mesmo a mobilização planetária contra a
guerra do Iraque, essas revoltas ainda parecem obsoletas", disse o
professor. "É que uma exigência maior se impõe a cada dia: a de ir além da
recusa, transpôr o Império para 'sair do outro lado'. Trata-se de construir,
no não-lugar que as desconstruções das últimas décadas deixaram e no vazio
que o Império produziu, um lugar novo, a partir da sinergia da multidão,
tecendo ontologicamente novas determinações do humano, de vida. A utopia que
se entrevê nesse tom a um só tempo cáustico e terno não configura um
contorno acabado com cores de um outro mundo, mas apenas prolonga as linhas
de força já presentes neste mundo, num telos coletivo e experimental da
multidão. Ao invés de utopia, seria mais conveniente falar em desutopia."
"Num conto conhecido, Kafka relata que o imperador da China manda construir
uma muralha para se proteger dos bárbaros, mas essa muralha é feita de
blocos esparsos, com lacunas quilométricas entre um bloco e outro, que não
protegem de nada nem de ninguém. Em todo caso, de nada adiantaria, visto que
os bárbaros já estão acampados a céu aberto no coração da capital, diante do
palácio do Imperador. O Império contemporâneo não é feito de trincheiras e
muralhas para se proteger dos nômades. O próprio império já é nômade, ou
melhor, ele é a resposta política e jurídica à nomadização generalizada, de
fluxos de toda ordem. Há algo no funcionamento do Império que é puro
disfuncionamento. Como diz Kafka num outro contexto: 'Não vivemos num mundo
destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no
equipamento de um veleiro destroçado.
Talvez seja esta rachadura, que um livro como Império pode nos ajudar a
pensar, com todas as reservas que se possa ter a várias das categorias por
ele propostas. Ele pode ser útil para pensar a lógica imanente do poder
contemporâneo, e nesse contexto concreto, biopolítico, para repensar a
relação entre capital e vida, controle e desejo, política e subjetividade, e
mais amplamente, a relação sempre problemática e explosiva entre o poder e a
potência, entre o constituído e o constituinte, entre a soberania e a
imanência.
Foi isso que nele me interessou, e por isso deixei de lado, aqui, todas as
possíveis divergências ou reticências, analíticas, doutrinárias ou
estilísticas, minhas ou de seus inúmeros críticos, bem como outras vias
interessantes nele presentes para pensar a guerra, o estado de excessão, a
polícia global, a militarização atual do psiquismo mundial.
Marcos Müller: Paulo Arantes, você fez uma gênese ideológica implacável das
raízes americanas da tese dos dois autores. Mas, do ponto de vista de um
aspecto mais positivo do livro, como é que você se posiciona em relação à
analise que eles fazem da diferença, que me parece muito importante para a
esquerda, entre este novo regime imperial e a noção clássica de
imperialismo?
Paulo Arantes: Claro que não sou um nostálgico da idéia de imperialismo, ela
teve seu tempo, hoje não cabe mais. Eu prefiro particularmente a noção de
hegemonia na acepção gramsciana que os italianos deram a este termo. Um foco
de poder mundial só é hegemônico na medida em que pode alegar, de modo
plausível, que com o atendimento de seus interesses nacionais atende o
conjunto da organização e da acumulação dos demais membros do sistema
mundial. Ele deve reivindicar o consentimento dos hegemonizados, mas tem que
haver coerção, um poder de polícia mundial. Toda vez que uma potência
hegemônica tenta englobar toda economia mundial num poder imperial único há
uma guerra mundial. A primeira que assistimos nesta acepção foi a da
potência que estava consolidando o seu poder organizativo e impedindo o
caos. A novidade que vemos agora é que os Estados Unidos está caotizando o
mundo e deste modo sua hegemonia passa a ser diferente, temos que examinar
isto.
Para responder ao Marcos, acho que é uma coisa positiva do livro e que não
tem mais a ver com imperialismo. Ele retoma o tema da hegemonia e repensa a
Nova Ordem Mundial como um estado de exceção generalizado, o que significa
uma crise terminal e, aí sim, faz sentido essa multidão para qual eles
apelam. Um outro filosofo italiano Giorgio Agamben tem muito a dizer neste
sentido.
Peter Pál Pelbart: Acho que há uma questão no livro e nestes autores
italianos Agamben, Lazaratto, Virno e outros sobre o estatuto do comum, ou
sobre uma certa crise do comum por razões complexas. Por um lado eles
reconhecem que houve e vivemos um seqüestro do comum, como se ele tivesse
sido transcendentalizado em formas midiáticas e outras mais. O comum é a
linguagem, o conhecimento, o intelecto geral -ou poderíamos pensá-lo
amplamente como esta vida a-orgânica, a virtualidade da multidão.
Afonso Luz
É critico de arte e estudante de filosofia na USP.