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Revista Trópico.

Paulo Arantes e Peter Pál Pelbart discutem "Império", de Negri e Hardt

O encontro "Trópico na Pinacoteca" do mês de abril tratou de uma das mais


polêmicas reflexões sócio-políticas da atualidade, o livro "Império", de
Michael Hardt e Antonio Negri, publicado em 2000 nos Estados Unidos e
traduzido para o português no ano seguinte pela Editora Record.

Em quase 500 páginas de uma prosa heterodoxa e contagiante este longo


ensaio, ou manifesto, incita-nos a refletir sobre as articulações entre
fenômenos contemporâneos diversos. As novas tecnologias de informação, o
esquadrinhamento genético da vida, a crise dos estados nacionais, a
organização social em redes, os erosivos fluxos financeiros, os conflitos
ecológicos, as formas avançadas de controle psicossociais são abordados no
livro como nexos de uma nova forma de poder conceituada como "Império". Mas
esse "Império" pode ser visto também como campo simbólico e material no
interior do qual se travam novas lutas sociais, ou "biopolíticas", por
emancipação e reconhecimento.

A mesa reuniu, na Pinacoteca do Estado, o filósofo Paulo Arantes, professor


da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), autor de "A
Ordem do Tempo em Hegel" (Hucitec) e "Sentimento da Dialética" (Paz e
Terra), e o professor Peter Pál Pelbart, do programa de Pós-Graduação de
Filosofia e Psicologia Clínica da PUC-SP e autor de "O Tempo
Não-reconciliado" (Perspectiva) e "Vida Capital: Ensaios de Biopolítica" (no
prelo). Pelbart coordena também a Cia. Teatral Ueinzz. O debate, promovido
pela Pinacoteca e por esta revista eletrônica, foi coordenado por Lisette
Lagnado, crítica de arte e co-editora de "Trópico".

Paulo Arantes: a tensão entre liberdade republicana e expansão imperial

Paulo Arantes iniciou sua intervenção sugerindo que os autores de "Império",


oriundos, um da esquerda acadêmica norte-americana e outro de movimento
libertário italiano, estranhamente concordam com o atual presidente
americano, George W. Bush.

Para fundamentar sua tese, Arantes comparou duas citações, uma do livro de
Hardt e Negri (págs. 198-200) e outra de um pronunciamento recente de George
W. Bush. Os autores do livro afirmam que o "Império" inventado pelos
americanos atende a "demanda" do restante do mundo que veria os EUA como a
única potência global capaz de impor ordem e segurança. O presidente
americano, por sua vez, alega que esse "poder de polícia" internacional
seria missão indeclinável.

As raízes dessa estranha coincidência estariam, para o filósofo, nas crenças


históricas e morais que constituem a nação americana. Para Arantes,
"Império" se destaca da média publicada sobre globalização -à esquerda ou à
direita- justamente por não ser antiamericano.

"Quando Bush diz: 'Os EUA aceitam de bom grado a sua responsabilidade de
liderar esta grande missão em prol da humanidade no combate de seus
adversários', ele está encarnando aquilo que há de mais profundo e que
poderíamos definir como -o que já seria um juízo de valor- 'mitologia
americana', 'ideologia americana' ou coisa que o valha. O presidente diz, e
os americanos entendem, sejam de esquerda ou de direita. É um automatismo de
linguagem."

Para Arantes essa "linguagem política tem a idade do país. Está lá no


testamento de George Washington, no de Jefferson, na doutrina Monroe". Na
sua opinião, "a idéia de que o povo americano é especialmente dotado e que
aceita, com relutância, a responsabilidade da guerra, existe desde os
puritanos. Por isso, quando Bush fala, os americanos compreendem."

Para o filósofo, o que causa estranhamento é que "dois autores gauchistas


tenham chegado à mesma conclusão". Caberia então indagar "como um
autonomismo italiano entronca na tradição que remonta aos formuladores da
Constituição americana, que de certa forma rege até hoje o imaginário
daquele país, que pode ser visto como exótico ou excêntrico".

Arantes seguiu enfatizando o paradoxo representado pela convergência entre


Bush e os autores do livro. " 'Nós', dizem os americanos desde que chegaram
lá, 'não somos iguais ao resto da humanidade. A colonização clássica
européia entendia que o direito canônico justificava a intervenção bélica
atribuindo caráter sagrado à guerra colonial. Os puritanos estenderam esse
caráter sacro à terra em que aportaram -uma noção que sobrevive no
reconhecimento da excepcionalidade do território norte-americano".

O filósofo notou que, por oposição à soberania européia do Antigo Regime, a


sociedade americana seria organizada em torno da idéia do contrato entre
iguais, do autogoverno e da democracia direta. Só que, contraditoriamente, é
também uma sociedade violenta, xenófoba, destruidora e predadora.

Para Arantes essa contradição se expressa em um dilema original no


pensamento americano entre ser república ou ser império. Hardt e Negri não
teriam levado esse dilema em consideração. Ao desconhecer a tensão entre os
dois princípios, o livro embarcaria "no discurso oficial americano".

"O livro inteiro provoca e é alimentado pelo disparate monumental que


consiste em entender a história do mundo contemporâneo como um
prolongamento
da história constitucional americana," disse o filósofo.

Para Arantes, "os pensadores constitucionalistas americanos resolveram o


dilema combinando república e império. Para evitar a decadência e corrupção
advinda da expansão imperial, como mostra a experiência do Antigo Regime, os
americanos organizaram-se em pequenas repúblicas. Em cada uma haveria
homogeneidade racial, religiosa e política. Cada um dos estados aderiu à
União, na condição de quase autônomo".

Estaríamos assistindo a mais um episódio de compatibilização da tensão entre


império e república. Segundo Arantes, "na metade do século 19, esta
mitologia de base adquiriu uma outra expressão, quando os Estados Unidos
fizeram aquilo que os americanos nunca admitiram ter feito: a expansão
territorial imperial. Em meio século, atravessaram o continente até o
Pacífico, adquiriram terras, massacraram índios, se envolveram em guerras
com o México. Na virada para o século 20, através de uma guerra com a
Espanha, entraram na corrida imperialista da Europa, já enquanto país
continental".

"Os americanos não foram colonialistas ou imperialistas nos termos europeus.


Não os interessava ser porque a economia americana de então já era a mais
avançada do mundo, o que dispensava a ocupação e a subordinação colonial
clássica. Interessava, sim, implantar as enormes corporações americanas nas
economias européias avançadas, o que foi feito através daquilo que viria a
ser chamado de multinacional. A economia americana começava a se
desterritorializar."

Os Estados Unidos teriam negado o colonialismo clássico também por razões


racistas. "Eles não podiam incorporar populações racialmente inferiores aos
anglo-saxões eleitos e investidos de um destino bíblico."

O filósofo comentou que há em "Império" um capítulo sobre a Constituição


americana onde aparece uma nova forma de soberania, imanente, produzida de
baixo para cima. "É o pensamento de Jefferson sobre a pequena propriedade,
do governo barato, do presidente que voltava de bonde para casa e não
admitia que ninguém lhe pagasse a passagem. "É a tendência do governo
popular de pequenos proprietários, que se perdeu na passagem da declaração
de Independência para a Constituição, episódio que os autores
sintomaticamente caracterizam como um golpe dado pelos Federalistas", disse
Arantes.

E continuou: "Essa América representava um sonho europeu de liberdade. Para


Jefferson, a polícia deveria ser mínima, não haveria exército permanente, ou
fiscalidade. Os gastos da administração seriam restritos ao trivial. 'Nós
nos autogovernamos'. Trata-se de uma tradição de esquerda que não
conhecemos."

Arantes enfatizou a contradição nesse ideário: "Havia escravidão, pena de


morte e tudo mais, elementos que Negri e Hardt mencionam só de passagem. E
contra o ideário de Jefferson havia Hamilton. O primeiro secretário de
fazenda de Washington defendia a expansão do território, a intervenção na
política internacional, Banco Central e União fortes. Quando os americanos
se viram suficientemente fortalecidos, eles saíram a campo. A entrada na
Primeira Guerra significou assumir pela primeira vez o destino manifesto que
é a expansão moral e espacial da excepcionalidade da democracia americana".

O filósofo vê aí o surgimento do fundamentalismo contemporâneo: "Como quem


leva a salvação, a verdade, e prepara, a batalha final entre o Bem e o Mal,
o Armagedom. Desde os puritanos os americanos se preparam para esta 'batalha
'. Não foi uma invenção de Hollywood, isto já estava lá na cabeça deles."

Arantes apontou que os Estados Unidos projetaram planetariamente a expansão


territorial contínua, o imaginário do "espaço americano". "Não há europeu
que tenha visitado os Estados Unidos, desde o século 19 até o fim do 20, que
não tenha se referido a essa espacialidade extraordinária. Ela está
amplamente tratada em livros que falam da pintura de Pollock, ou no trabalho
de Baudrillard que descreve o deserto hiperreal dos Estados Unidos."

Os americanos transformam isto numa espécie de grande matriz capaz de


abarcar a humanidade porque vai se expandindo, agregando Estados
democratizados, racialmente homogêneos e partilhando as mesmas crenças
constitucionais, políticas e religiosas, segundo Arantes. "Hoje eles estão
de boa fé acreditando que incorporam a este espaço imaginário da sua
República imperial outros países por justaposição de territórios
descontínuos, como protetorados militares, alargando fronteiras
inteligentes, imaginárias, jurídicas ou culturais."

Negri e Hardt, para Arantes, imaginam estar escrevendo um novo Manifesto


Comunista. "Eles dizem: 'Companheirinhos, nós temos que tomar ao pé da letra
este imaginário americano, enraizado em processos sociais reais que, trazem
em si mesmos os germes de sua superação. Este nosso discurso é um discurso
de fim da história, como o de Fukuyama, só que com os sinais trocados. Ele
termina numa paz da pós-história, para nós 'Império', que na acepção
americana é Pax, termina numa espécie de pacificação pura. Daí a função
policial das guerras americanas, daí a verdade deles, que a nós parece uma
abominação, o fato de que os Estados Unidos relutam, mas aceitam desempenhar
este papel."

Arantes terminou sua fala advertindo que é necessário cautela quando se fala
em incorporação, pois "o mundo está se desintegrando e todos querem se
integrar a este espaço de ordem, conforto, bem-estar e civilização que se
chama Império Americano". Para o filósofo, Negri e Hardt fazem a teoria
dessa incorporação e a apresentam de maneira revolucionária.

Peter Pál Pelbart: A "multidão" como princípio de resistência ao "Império"

O professor Peter Pál Pelbart apresentou uma leitura diversa do livro. Para
ele, a obra é "a primeira grande cartografia do terceiro milênio", capaz de
pensar o presente com um recorte ao mesmo tempo histórico e filosófico,
cultural e econômico, político e antropológico. "Com clareza perturbadora
aparecem os processos de dominação e assujeitamento que se instalaram nos
últimos anos, bem como algumas indicações, ainda embrionárias, sobre
possibilidades de reversão", disse. Para Pelbart, o Império, tal como
definido no livro, "é uma nova estrutura de comando, em tudo pós-moderna,
descentralizada e desterritorializada". Sem fronteiras, engloba a totalidade
do espaço do mundo, apresenta-se como fim dos tempos, ordem a-histórica,
eterna, definitiva. "Penetra fundo na vida das populações, nos seus corpos,
mentes, inteligência, desejo, afetividade. Esse poder já não se exerce
verticalmente. Sua lógica, em parte, sim, inspirada no projeto
constitucional americano, é mais democrática, horizontal, fluida,
entrelaçada à heterogeneidade do tecido social, articulando em rede
singularidades étnicas, religiosas, minoritárias".

Em substituição aos dispositivos disciplinares que antes formatavam a


subjetividade, surgem, conforme o livro, novas modalidades de controle que
atuam por meio de mecanismos de monitoramento mais difusos, "imanentes",
incidindo diretamente sobre os corpos e as mentes, prescindindo das
mediações institucionais antes necessárias, que, de qualquer forma entraram
aos poucos em colapso. "O novo regime de controle em espaço liso e aberto se
exerce através de sistemas de comunicação, redes de informação, atividades
de enquadramento, e é como que interiorizado e reativado pelos próprios
sujeitos, no que os autores chamam de um estado de alienação autônoma." O
professor afirmou que nessa nova configuração, "biopolítica designa a
entrada do corpo e da vida no domínio dos cálculos explícitos do poder. Vida
agora inclui a sinergia coletiva, a cooperação social e subjetiva no
contexto de produção material e imaterial contemporânea -o intelecto geral-
e significa inteligência, afeto, cooperação, desejo". Ao descolar-se de sua
acepção predominantemente biológica, "a vida ganha uma amplitude inesperada"
. É o que explica, segundo Pelbart, a inversão do sentido do termo cunhado
por Foucault: "Biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a
potência da vida". Definir o Império como regime biopolítico implica em duas
coisas: "Reconhecer que nele o poder sobre a vida atinge uma dimensão nunca
vista, mas por isso mesmo nele a potência da vida se revela de maneira
inédita." Pelbart desenvolveu essa noção de "vida" tomando o "exemplo do
trabalho contemporâneo, pós-fordista. Baseado na informação, na ciência, na
comunicação, nos serviços, o trabalho contemporâneo, dito "imaterial", já
não produz só sapatos, mas principalmente informação, conhecimento e
imagens. Ele confunde tempo de produção e de reprodução, depende da
criatividade coletiva, tende a funcionar em rede e se realizar por meio da
cooperação intelectual.

"Mais e mais o trabalho contemporâneo aparece como atividade produtiva da


multidão (e não do capital), de sua vitalidade. Nem por isso o trabalho
deixa de ser explorado. Pelo contrário, o capital encontra nessa
força-invenção disseminada, na potência de vida da multidão, a fonte
primordial de riqueza do próprio capitalismo. É a Multidão, e não o Império,
em última instância, que cria, gera e produz novas fontes de energia e de
valor que o Império tenta modular, controlar, capitalizar. O poder do
Império é apenas organizativo, não constituinte, ele parasita e vampiriza a
riqueza virtual da multidão. 'O próprio Império não é uma realidade positiva
', dizem os autores, numa inversão que abre uma poderosa linha de escape
para pensar a resistência constituinte."

Pelbart observou que tradicionalmente o termo "multidão" é usado de maneira


pejorativa, indicando um agregado disforme que cabe ao governante domar e
dominar. "Povo", por outro lado, é concebido como um corpo público animado
por uma vontade única. Segundo ele, Negri e Hardt, contudo, tomam outra
perspectiva. "Numa tradição que, por um lado remonta a Espinosa, por outro
se baseia na mutação do trabalho contemporâneo, a multidão, por definição, é
pura multiplicidade, é plural, heterogênea, centrífuga. Por conseguinte, ela
é refratária à unidade política, não assina pactos com o soberano e não
delega a ele direitos, seja ele um mulá ou um caubói. Ela inclina-se a
formas de democracia não-representativa. A multidão, na sua configuração
acentrada e acéfala, é o oposto da massa. Como bem o lembra Elias Canetti, a
massa é homogênea, compacta, contínua, unidirecional, todo o contrário da
multidão, heterogênea, dispersa, complexa, multidirecional."

Para Pelbart, "ao recensear as formas de resistência atuais, desde certos


modos de deserção e defecção, de evacuação dos lugares de poder, até a
explosão de revoltas virulentas, ora incomunicáveis entre si, ora
'globalizadas', os autores de 'Império' insistem em que se trata de lutas a
um só tempo econômicas, políticas, culturais, 'biopolíticas' -pois são lutas
que têm por objeto a forma de vida, já que o Império é acima de tudo
controle de forma de vida".

"No entanto, apesar de sua intensidade, e por mais que criem novos espaços e
novas formas de comunidade, e pensemos na linhagem que vai de Seattle a
Gênova, passando por Chiapas, ou mesmo a mobilização planetária contra a
guerra do Iraque, essas revoltas ainda parecem obsoletas", disse o
professor. "É que uma exigência maior se impõe a cada dia: a de ir além da
recusa, transpôr o Império para 'sair do outro lado'. Trata-se de construir,
no não-lugar que as desconstruções das últimas décadas deixaram e no vazio
que o Império produziu, um lugar novo, a partir da sinergia da multidão,
tecendo ontologicamente novas determinações do humano, de vida. A utopia que
se entrevê nesse tom a um só tempo cáustico e terno não configura um
contorno acabado com cores de um outro mundo, mas apenas prolonga as linhas
de força já presentes neste mundo, num telos coletivo e experimental da
multidão. Ao invés de utopia, seria mais conveniente falar em desutopia."

Pelbart vê no livro um variada inspiração conceitual que vai de Maquiavel a


Guy Debord, Foucault, Deleuze-Guattari passando por Espinosa e Marx e pela
experiência da autonomia italiana. Os autores conjugam desconstrução e
afirmação num novo estatuto para filosofia, que deixaria "de ser a coruja
que levanta vôo depois do fim da história, afim de celebrar seu final feliz,
para tornar-se proposição subjetiva e desejo, praxis".

"Muitas perguntas ficam em aberto ao final da leitura desse livro, e algumas


delas são irrespondíveis teoricamente, como se a resposta só pudesse vir
precisamente da multidão, na sua heterogeneidade, no seu hibridismo, no seu
nomadismo forçado ou voluntário, no sofrimento e miséria que as novas
segmentações do Império produzem a cada dia, naquele ponto em que o poder
sobre a vida se revela tão total que faz aparecer, afinal, o seu avesso, um
meio de pluralidade poderoso em que o Império soa apenas como um espectro,
como a organização do medo, como superstição."

Pelbart finalizou assim sua análise:

"Num conto conhecido, Kafka relata que o imperador da China manda construir
uma muralha para se proteger dos bárbaros, mas essa muralha é feita de
blocos esparsos, com lacunas quilométricas entre um bloco e outro, que não
protegem de nada nem de ninguém. Em todo caso, de nada adiantaria, visto que
os bárbaros já estão acampados a céu aberto no coração da capital, diante do
palácio do Imperador. O Império contemporâneo não é feito de trincheiras e
muralhas para se proteger dos nômades. O próprio império já é nômade, ou
melhor, ele é a resposta política e jurídica à nomadização generalizada, de
fluxos de toda ordem. Há algo no funcionamento do Império que é puro
disfuncionamento. Como diz Kafka num outro contexto: 'Não vivemos num mundo
destruído, vivemos num mundo transtornado. Tudo racha e estala como no
equipamento de um veleiro destroçado.

Talvez seja esta rachadura, que um livro como Império pode nos ajudar a
pensar, com todas as reservas que se possa ter a várias das categorias por
ele propostas. Ele pode ser útil para pensar a lógica imanente do poder
contemporâneo, e nesse contexto concreto, biopolítico, para repensar a
relação entre capital e vida, controle e desejo, política e subjetividade, e
mais amplamente, a relação sempre problemática e explosiva entre o poder e a
potência, entre o constituído e o constituinte, entre a soberania e a
imanência.

Foi isso que nele me interessou, e por isso deixei de lado, aqui, todas as
possíveis divergências ou reticências, analíticas, doutrinárias ou
estilísticas, minhas ou de seus inúmeros críticos, bem como outras vias
interessantes nele presentes para pensar a guerra, o estado de excessão, a
polícia global, a militarização atual do psiquismo mundial.

Parafraseando Benjamin, é como se a partir de uma redescrição de nosso


presente pós-moderno, esse livro tentasse escová-lo a contrapelo, e
examinasse as novas possibilidades de reversão vital que se anunciam. Pois
no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade e de terror a que
se chama Império, o livro prospecta a positividade constituinte e antagônica
da multidão, que anuncia novas modalidades, talvez pós-humanas, de se
agregar, de combater, de trabalhar, de criar sentido, de inventar
dispositivos de valorização e de autovalorização capazes de nos fazer 'sair
do outro lado' do Império. Negri e Hardt flertam com o demônio, mas para
transpô-lo".

Leia trechos do debate:

Marcos Müller: Paulo Arantes, você fez uma gênese ideológica implacável das
raízes americanas da tese dos dois autores. Mas, do ponto de vista de um
aspecto mais positivo do livro, como é que você se posiciona em relação à
analise que eles fazem da diferença, que me parece muito importante para a
esquerda, entre este novo regime imperial e a noção clássica de
imperialismo?

Por outro lado, gostaria que Pelbart comentasse a posição extremamente


otimista dos autores no que diz respeito à superação do conceito de
propriedade privada. Em certo momento eles dizem que este conceito hoje não
tem mais sentido, embora ressalvem que há regimes políticos e jurídicos nos
quais a propriedade privada está presente, acentuam a dimensão comunitarista
e coletiva da produção.

Paulo Arantes: Claro que não sou um nostálgico da idéia de imperialismo, ela
teve seu tempo, hoje não cabe mais. Eu prefiro particularmente a noção de
hegemonia na acepção gramsciana que os italianos deram a este termo. Um foco
de poder mundial só é hegemônico na medida em que pode alegar, de modo
plausível, que com o atendimento de seus interesses nacionais atende o
conjunto da organização e da acumulação dos demais membros do sistema
mundial. Ele deve reivindicar o consentimento dos hegemonizados, mas tem que
haver coerção, um poder de polícia mundial. Toda vez que uma potência
hegemônica tenta englobar toda economia mundial num poder imperial único há
uma guerra mundial. A primeira que assistimos nesta acepção foi a da
potência que estava consolidando o seu poder organizativo e impedindo o
caos. A novidade que vemos agora é que os Estados Unidos está caotizando o
mundo e deste modo sua hegemonia passa a ser diferente, temos que examinar
isto.

Há contribuições no livro que os autores não exploram por estarem


obnubilados por uma fraseologia de segunda mão sobre globalização, estado
nacional, transnacionalização produtiva. Tanto que eles não tem nada a dizer
sobre o que está acontecendo agora no mundo.

Para responder ao Marcos, acho que é uma coisa positiva do livro e que não
tem mais a ver com imperialismo. Ele retoma o tema da hegemonia e repensa a
Nova Ordem Mundial como um estado de exceção generalizado, o que significa
uma crise terminal e, aí sim, faz sentido essa multidão para qual eles
apelam. Um outro filosofo italiano Giorgio Agamben tem muito a dizer neste
sentido.

Peter Pál Pelbart: Acho que há uma questão no livro e nestes autores
italianos Agamben, Lazaratto, Virno e outros sobre o estatuto do comum, ou
sobre uma certa crise do comum por razões complexas. Por um lado eles
reconhecem que houve e vivemos um seqüestro do comum, como se ele tivesse
sido transcendentalizado em formas midiáticas e outras mais. O comum é a
linguagem, o conhecimento, o intelecto geral -ou poderíamos pensá-lo
amplamente como esta vida a-orgânica, a virtualidade da multidão.

Haveria uma crescente expropriação do comum, sob formas mais ou menos


espetacularizadas, então esta sensação de que nos roubaram o comum e que ele
pretende representar-nos. Me parece que nesta reflexão há uma constatação de
que esta crise vai de par com outra coisa que tem a ver com a mutação
pós-fordista, ou seja, que o trabalho depende absolutamente de um comum que
é a inteligência coletiva, a imaginação, a cooperação num campo que se
tornou o miolo da produção contemporânea sem o qual ela seria impensável
desta maneira e que é um campo de batalha, pois a todo tempo se tenta
privatizar este comum.

A internet é um bom exemplo, uma espécie de comum rizomático que não


pertence a ninguém, todos estão ao mesmo tempo nele, mas que cotidianamente
se tenta privatizar e canalizar sua direção e controlá-lo. No livro aparece
esta tensão e ao mesmo tempo uma reivindicação que é a de pôr para circular
em comum o comum e de inventar mecanismos mais concretos, jurídicos e
políticos, de mobilização social para se reapropriar do comum.

Os movimentos de contestação italianos são bom exemplo disto, através de um


outro modo de produção de mídia, de circulação de informação e reapropriação
da linguagem, e que é uma idéia forte em Negri e se encontra
embrionariamente aqui no livro. Logo depois de sua publicação foi, por ele e
por outras pessoas, organizado na Itália um seminário para pensar o que
seria nos dias de hoje uma linguagem comum, num esforço político de
reacessar o comum. Luiz Renato Martins: Fiquei perplexo com a descrição que
Paulo fez do ponto de vista de Negri. Nos anos 70 na Itália o debate
político era muito vivo e quando estive lá cheguei a acompanhar as
intervenções de Negri e participar de reuniões da Autonomia Operária. Sua
grande questão naquele momento era, a partir de uma leitura marxista da
sociedade, extravasar os quadros institucionais em que o PCI tentava
conduzir os movimentos sociais, recorrendo a elementos do anarquismo e
outras formas de luta.

Propunha formas novas de mobilização que no fundo, como diz você, se


aproximavam do liberalismo americano, neste sentido constitucionalista,
jeffersoniano ou neo-kantiano. Não acompanhei a história toda de Negri, mas
me parece que ele virou o fio. Não entendo como incorporou este discurso.
Esse outro Negri que Pelbart descreveu me parece estar mais próximo de um
certo tipo de visionarismo cristão. Também não vejo aí possíveis passagens.
Queria que Paulo fizesse uma síntese da trajetória intelectual de Negri dos
70 para cá, que talvez tenha algo a ver com a trajetória da esquerda
mundial.

Arantes: Negri, num certo sentido, continua a ser um "autonomista" italiano,


só que ele expandiu o horizonte deste autonomismo, que está também nos
filmes do Godard dos anos 70. Ele continua nesta tradição quando diz que a
soberania do Império deriva exclusivamente do poder constituinte da
multidão. Ele escreveu um enorme livro sobre este conceito fundamental de
poder constituinte, em que opõe dois tipos de Constituição em toda a
história da filosofia política moderna. Começa lá na Renascença e vai até o
ponto culminante que é a novidade da Constituição americana. Ele encontra aí
o mesmo poder da massa proletária. De modo que não há nenhuma ruptura nesta
trajetória, ele só reformula esta questão. Nos lembremos que ele era
professor de filosofia do direito e foi um dos primeiros marxistas a
escrever uma teoria da Constituição.

Afonso Luz
É critico de arte e estudante de filosofia na USP.

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