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Este livro marca a entrada de uma nova geracao de pesquisa dores capaz de redirecionar a agenda dos estudos sobre 0 “agroalimentar”. Em didlogo com as principais referénclas analiticas, tanto brasileiras como mundiais, os autores cr|ary) uma sintese original de abordagens da teoria das convenghes, neoinstitucionalistas e da teoria das praticas, captadé (a nogao de “ordens sociais”. Num trabalho ambicioso e cory) eC ME ES rie OR CELE Leelee ole NLT (elects (Meal (elo Me (os-1e] (o.oo kl lee novo quadro analitico. Assim, este livro estabelece um Nove ponto de partida para pesquisas interdisciplinares no Bras|l @ faz uma contribuicao importante aos debates internacional Pe eee ect CMe ee sus ae) rach) 4 Pc bias Nola Rain sera OTe olee ee un cle) As novas ordens alimentares PURO a ana eae MGS OM Ura ey Para qualquer um interessado nas mudanigas e nas dinamicas da alimenta- Em Guichen Gla eee) Ree eae sara ears lum panorama instigante e original sobre © tema, relacionando de forma clara a GEsiactoee Panegvere ee Ina erer rr ieee Professora da PU [Winer Ieee erie Sistema Alimentar ‘dagem inovado Der itelattee cam um amplo painel da dinamica da producao e dos mercados alimentares leitura obrigatéria para os Epiistises etl tation te ahr rmuladores de politicas publicas. Walter Belik Professor da Unicamp leuieneraittole ey Ceiieects Ces tar) Policia cleric tea ciety luma revisio inovadora da evolucao do agroalimentar no Brasil. As suas conclu- Fle coe a es eel ee Bese ocr eun eer ISurtoce testes luma contribuicao para a sociologia da Pamir aoe ie important EC nae) State University As novas ordens alimentares GG] UNVERSIDADE FEDER DO RIO GRANDE DO SUL Sane FrogaTuthlan EDTORADA UES ‘AloxNlche Tose one El As novas ordens alimentares PAULO ANDRE NIEDERLE | VALDEMAR JOAO WESZJUNIOR G UFRGS EDITORA © dos autores Vedigéo: 2018, Direitos reservados desta edigdo: Universidade Federal do Rio Grande do Sul Cepa: Paulo Niederle Editorago eletrénica: Imagine Design Imagem de capa: Fazendo Past, de Flavio Scholles (heap: /wwewichollesnet) Revisio: Regina Vargas aSSU NGGén Niedesle, Paulo Andre “enorme Pl nde Nes el Vana We aioe Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2018. 3 7 492 pails 16223em (Série Estudos Rui) Inc figuras, quadros eeabels Inca referéncs 1, Agricultura. 2, Eeonoinia. 3. Desenvolvimento rural. 4, Sociologia rural. 5. Sistema agralimentar. 6. Mercados alimentares— Construgio social. 7. Agronegecio. 8. Agriculeura familiar. I. Wesz Junot, Valdemar Joso. I. Titulo IL. Série. ‘GiP- Brasil, Dados Tnternacionais de Cwalogagio na Publicagio. SPUR (squeline Tiombin ~ Bibliotecétia responsivel CRBIO/979) ISBN 978-85-386-0449-5 Agradecimentos Este livro foi planejado, discutido e escrito 2o longo dos tiltimos dois anos. No entanto, sua origem é mais antiga. Os dados e argumentos aqui apresentados foram coletados em aproximadamente uma década de pes- quisas, perfodo durante © qual convivemos com inimeros pesquisedores € estudantes, cujos conhecimentos compartilhados se tornaram fundamentais para chegarmos até aqui. No periodo mais recente, estas interagSes acadé- micas tém se dado, principalmente, no ambito do Grupo de Estudos e Pes- 4uisas em Agricultura Familiar ¢ Desenvolvimento Rural (Gepad-UFRGS), do Observatério de Politcas Publicas para a Agricultura (Oppa-CPDA), do Observatério das Agriculeuras Familiares Latino-Americanas (Afla-UFRGS- -UNILA), do Grupo de Estudos em Mudancas Sociais, Agronegicio ¢ Poli- ticas Pablicas (Gemap-CPDA), e da Rede Politicas Pablicas ¢ Desenvol mento Rural na América Latina e Caribe. Somos gratos a todos os amigos € colegas que encontramos nestes espacas, os quais, de diferentes formas, contribuiram a esta publicacio. ‘A publicacéo deste livro nao teria sido possivel sem 0 apoio que rece bemos de nossas insticuigées. Neste sentido, agradecemos especialmente aos Programas de Pés-Graduagéo em Desenvolvimento Rural (PGDR) ¢ em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bem como ao Programa de Pés-Graduagao em Politicas Piiblicas ¢ Desenvol- vimento (PPGPPD) a0 Curso de Graduacéo em Desenvolvimento Rural ¢ ‘Seguranga Alimentar (DRUSA) da Universidade Federal da Integracao Latino- -Americana (UNILA). Ao mesmo tempo, ¢ sobretudo nestes tempos diffceis para a ciéncia brasileira, atacada por cortes de recursos cada vez mais expressi- ‘vos, nos parece indispensével cestacar 0 apoio que nossas pesquisas receberam do'Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnolégico (CNPq) eda Coordenacao de Aperfcigoamento de Pessoal de Nivel Superior (Capes) Finalmente, gostarfamos de destacar nossa gratidéo com alguns cole- gas que contribuiram de maneira mais direta para este livro, isentando-os desde jd por nossos proviveis equivocos ¢ omiss6es, Aos colegas Sergio Sch- neider e Marcelo Conterato, editores da Série Estudos Rurais da UFRGS, agradecemos por acolherem nossa proposta e aportarem importantes con- ttibuigées 20 conteiido. John Wilkinson foi uma inspiracao particularmente importante pata este livro, sobretudo pelos conhecimentos compartilhados rnas pesquisas que conduzimos em conjunto nestes iiltimos anos, Agrade- ‘cemos igualmente aos colegas Fabiano Escher ¢ Maycon Schubert por seus comentitios e sugestbes a versbes prévias do livzo, Catia e Simone merecem uum agradecimento especial pela paciéncia e pelo apoio & nossa empreitada, ‘© que se estende para muito além deste livro e das pesquisas. Agradecemos ainda Regina Vargas pelo cuidadoso trabalho de revisio do manuscrito, € Flivio Scholles pela concessto do direito de uso da pintura que ilustra a capa do livro. Obrigado a todos! Sumario Introdueio / 11 Capitulo 1 - Ordens Alimentares 1.1 0 Sistema Agroalimentar como objeto de investigacio social / 25 1.2 A Sociologia da Agricultura e Alimentagio / 29 1.3 A uajetéria da agriculeur brasileira: introdugio a0 angumento / 41 1.4 0 patadoxo analitico: heterogeneidade somente no nivel micro? / 5 1.5 Integrando o consumo aos mundos alimentare / 59 16 Ordens alimentares / 65 Capitulo 2 - Modernizacao e consolidacao da Ordem Industrial 2.1 A emergencia de uma Ordem Industrial na agricultura/ 73, 2.2 Induswalizasio dirigida pelo Estado / 76 2.3 Complexo(s) agroindustral() e novas relagbes extra-setoriais / 84 2.4 Inovagbes tecnoldgicase produtividade / 90 2.5 Expansio da fronteia agropecustia / 98 2.6 Fus6es, aquisigdes e transnacionalizagio das empresas agroalimentares 103, 2.7 Mudangas nas priticas de consumo / 110 2.8 Metamorfoses e dilemas da Ordem Industrial | 120 Capitulo 3 A reinvengdo da Ordem Comercial 3.1 Um passo aers na histéria 225 3.2 quimo séeulo de latifindio / 127 43.3 Neoextrativismo / 132 3.4 Onde hi fumaga, hé ogo / 140 3.5 Confltos por terrae teiério 145 3.6 Trabalho precio ¢ esravidio contemporiinea / 153 3.7 Exauti,esgotar, destuir /159 3.8 O presente fax 0 futuro parecer 0 passido / 165 Capitulo 4— Crise e Resiliéncia da Ordem Doméstica 4.1 Da agriculeura de subssténcia &agriculeura familiar 171 4.2 A teemergéncia da producio para autoconsumo / 173 4.3 Da coninha para a Agroindistria Familiar Rural / 186 44. revalotizacio dos produtos artesanais / 194 4.5 A difspora dos produtos colonia /205 46 Produtos casero, caipras da ga / 242 4.7 Ordem Domésica: da ivisibilidade As tentativas de apropriagio / 214 Capitulo 5 ~ A critica ética e a construgao de uma Ordem 5.1 Democracia alimentar e defesa dos bens comuns /219 5.2 A luta dos agricultores familiares por redistribuigio e reconhecimento / 223 5.3 A construgio de mercados cvicos pelos movimentos agroccol 54 A cerlicacéo partciptiva como pric cvica/ 238 5.5 Dircco&alimentacio, seguranca alimentar e compeas piblicas 242 5.6 Dos alimentos saudéveis& ‘comida de verdade/ 251, 5:7 Novas lutas por reconhecimento / 255 5.8 Novas politcasalimentares / 260 Capitulo 6 - Ordem Estética: muito além do fetichismo 6.1 A critica esética do sistema agroindustrial moderno / 265 6.2A economia das singularidades / 272 63 Alimentando 0 corpo ¢ 0 mercado / 277 64 A escetizagéo do mundo rural / 282 6.5 O sabor da origem / 287 (646 Estetizagio e patrimonializagio: interfaces e conflcos / 293 6.7 Novas garrafss para velhos vinhos? / 298 68 Contra 0 argumento da ferichizagio J 303, Capitulo 7 — Da economia do agronegécio & nova Ordem Financeira 7.1 A financeitizagio econémica / 307 7.2 Financstizagio do sistema agroslimentar / 341 7.3, financetizagio das empresas agroalimentares/ 316 74 A financeitieagio das commodities agricola / 324 7.5 Terra ¢ natuteza como ativos financciros 329 7.6 Culkivos Bexiveis/ 339 7.7 Novas formas de gestéo na agriculeura / 345 7.8 A raposa cuidando do galinheiro 350 7.9 A Ordem Financeita e seus reflexos para o sistema agroalimentar / 354 Conclusées / 358 Referéncias / 379 | Introdugdo ‘Os mercados so uma incégnita para as ciéncias sociais. Mesmo situ- dos no centto das interpretagées clisicas sobre a organizacko das socieda- des modernas, cles ainda despertam as mais vividas controvérsias tedricas, ndo apenas junto aos economistas, mas também, e cada vez mais, dentre socidlogos, antropélogos e politélogos. Atualmente, contra a imagem de ‘um mecanismo impessoal pautado pela busca de um equilibrio irreal, estes cientistas sociais propdem a ideia de “construcéo social dos mercados”, os quais passam a ser concebidos como estruturas institucionais edificadas pelas maos visiveis de individuos, organizagdes, empresas ¢ movimentos sociais, Neste caso, o desafio torna-se compreender os alicerces desta estru- tura, suas distintas formas de organizagio, © modo como ela condiciona os comportamentos dos atores econdmicos e, ao mesmo tempo, modifica-se por meio da aco destes atores. Os mercados alimentares sio ainda mais desafiadores. Alguns estudio- sos os classificam como “mercados especiais’, na medida em que abarcam de légica cercada por valores, crencas e simbologias que, segundo cles, jamais permitiriam reduzir o alimento a uma mercadoria ‘pura’ (Ste nes, 2006). Nos termos de Karl Polanyi, os alimentos seriam apenas “mer- cadorias fcticias”, jé que nao foram processados pelo “moinho satinico” do italismo. No entanto, outros pesquisadores asseveram que esta nao é uma singularidade destes mercados, uma vex. que qualquer bem, incluindo até mesmo 0 dinheito, é objeco de significagées culturais muito mais complexas do que sugere a ideia de mercadoria (Zelizer, 1994). Sendo assim, se nas “sociedades de mercado” (Polanyi, 1980) o alimento ¢ uma mercadoria, 0 fato-€ que as mercadories sio algo muito mais complexo do que nossas teo- tias geralmente supdem (Appadurai, 2008). f por isso que, ao invés de uma referéncia genérica 2 “ldgica do mercado”, um termo que se tornou recor- rente na teoria social contemporiinea, preferimos considerar a existéncia de uma pluralidade de logicas mercantis, Mas existe algo de especial nos mercados alimentares. E 0 fato de que cles abarcam um tipo de bem associado a uma das necessidades mais vitais dos seres humanos. Contudo, talvez justamente por serem tio essenciais, os alimentos ¢ a alimentaco tiveram dificuldade para constituirem-se como ‘objetos sociolégicos. Poulain (2013) destaca esta “futilidade” da alimentagao © da comida para 0 pensamento cientifico ocidental. Segundo 0 autor, foi somente na segunda metade do Século XX que a naturalizagio ca invisibili- zagio da alimentagao na teoria social comecaram a ser superadas. As rapidas transformagées nas formas de produgio ¢ consumo com 0 advento do for- dismo e da sociedade urbanizada (Harvey, 1992), e as posteriores crises que clas desencadearam, tornaram factivel o “projeto de fazer sociologia séria & propésito da alimenta¢io” (Grignon, 1995, p. 63). E no apenas sociologia. O tema logo revelou-se multidisciplinar, interdisciplinar e indisciplinar. Tnicialmente, a alimentag4o tornou-se um “fato social” nas méos da sociologia francesa. Em seguida, disseminou-se por varias éreas e contextos sociais como um fenémeno biocultural ou um “fato biopsicossocial” (Con- treras; Gracia, 2011). Afinal, nenhum outro bem mobilizou tio amplamente as fungées fsiolégicas e socioculeurais de todas as sociedades 20 longo da histéria. Como argumenta Fischler (1990), os alimentos diferenciam-se dos demais bens, porque eles séo “incorporados”, tanto fisiolégica ~ alterando ‘0 corpos ~ quando psicologicamente — transformando as mentes. Ou seja, as pessoas nio se tornam 0 que comem somente por conta das vitaminas ¢ nuttientes que ingerem, mas também pelas qualidades simbélicas do ali- mento, Sendo assim, para Steiner (2006), os mercados alimentares sio espe- ciais, porque neles circulam mercadorias com um forte vinculo biopolitico a tudo que cerca as decisées sobre a vida. (Outro aspecto singular dos mercados alimentares ¢ 0 modo como eles sao tratados nas arenas piiblicas ¢ tornam-se objeto de vividas controvérsias cientificas¢ politicas. Isto, evidentemente, no é exclusivo destes mercados. ‘Também néo se pode afirmar que seja um fenémeno eminentemente con- temporineo. As discusses sobre as formas de acesso aos alimentos sempre pautaram a organizagio social dos agrupamentos humanos, seja nas peque- inas aldeias, seja nos grandes impérios (Mazoyer; Roudart, 2008). Os ali- mentos estiveram no centro de crises ¢ guerras que dizimaram civilizagées a0 Tongo da historia. A especificidade do contexto atual é, por um lado, a escala lobal do fenénemo e, por outro, a confluéncia de miiltiplos fatores de crise. ‘Ao pesadelo malthusiano da escassez eda forme, o qual voleou& cena politica, ‘somam-se agora 08 novos perigos alimentares, as epidemias de satide piblica, € 0s efeitos ambientais e climéticos do modelo de producio, distribuicéo consumo em massa (Guivant; Spaargaren; Rial, 2010). Nao é exagero afirmar que existe um entendimento generalizado de aque a “questo alimentar” voltou a ser um dos principais dilemas das socie- dades (pés)modernas, Para muitos, este é um fato inesperado, tendo em vista os avancos alcancados pelas politicas de modernizacio da agriculeura desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sobretudo o aumento da produ so de grios. Ainda ha quem acredite que o problema apenas voltou A toria em virtude da incapacidade de os governos aprofundarem ¢ disseminarem as mudangas tecnolégicas que estavam em curso. Ou seja, a solugéo envol- vyeria um novo esforco (desta vez, global) de modernizacao, mas agora sob 1a direcao do capital privado (Pereira et al., 2012). No extremo oposto, hé {quem considere 0 problema uma espécie de bomba relégio armada pelas préprias politicas da Revolucio Verde, Nesta perspectiva, sustenta-se que aestratégia modernizadora nao apenas falhou no propésito de acabar com a fome, como acentuou as desigualdades no acesso aos alimentos ¢ trouxe consigo um novo padréo de consumo — uma dieta baseada em carboi- dratos, proteinas animais e agticares — cujos efeitos matam mais do que a propria escassez, Neste grupo, encontram-se defensores de mudancas radi- ‘ais em ditecao a sistemas “alternativos" de producio e consumo alimentar (Altieri; Toledo, 2011; Ploeg, 2008). “Esse tipo de controvérsia tem pautado as discuss6es sobre a organizagio dos mercados agroalimentares nas duas iltimas décadas. Até agora, poucos entendimentos foram produzides com relagio as saidas para a ctise, que jé rio é apenas alimentar, mas energética, ambiental e financeira. Esta é outra cspecificidade importante do atual contexto: pela primeira vez na historia da ide, alimentos também séo matérias-primas, combustiy fnanceiros altamente vale daquilo que 2 literacura anglo-saxi chama de “4F. Crops” (Food, Feed, Fiber e Fue), a agriculeura tem, cada vez mais, debzado de ser uma atribuigio exclusiva dos agricultores. Corporacées transnacionais, fundos de pensio, bancos ¢ inves- tidores. todos estio invéressados em lucrar com a valorizagio e, mais do que 3 isso, com a volatilidade dos pregos dos ativos agricolas nas bolsas de valores. E quanto maior é 0 “sucesso” da nova “economia do agronegécio” (Delgado, 2012), mais perigosa torna-se a bomba relgio, ¢ menor é a margem de manobra para mitigar seus efeitos. Por isso, insticuicées multilaterais como a Organizacao das Nacdes Unidas para a Agricultura ¢ Alimentagio (FAO, 2009) jd comecaram a falar nos riscos de uma crise global de inseguranga ali mentar. O problema é que até mesmo a possibilidade de lucrar com a anteci- pagéo de uma crise civilizat6ria alimenta o capital financeiro (Harvey, 2004). Quanto mais intricada se torna a questo alimentar, mais complexas deveriam ser as ferramentas analiticas para interpretécla, bem como as solu- des para enfrentar suas miltiplas e articuladas crises. No encanto, algumas evidéncias apontam no sentido oposto. Enquarito, no campo politico, as posigdes parecem ctistalizar-se entre dualismos pouco producentes, que ‘opdem adeptos ¢ criticos de uma nova onda modernizadora, 0 meio aca- démico tem dificuldades em renovar seus modelos para interpretar as novas dindmicas dos mercados alimentares. Esta € principal razao que nos incitou a explorar 0 conjunto de temas que resultou neste livro. Seguindo os pas- sos de alguns pesquisadores que tém sido pioneiros na construgio de novas abordagens para o estudo dos mercados alimentares no Brasil (Wilkinson, 2008; Schneider, 2016; Marques; Conterato; Schneider, 2016; Escher, 2016; Schubert, 2017; Conterato et al., 2013; dentre outros), hi cerca de dois anos, em meados de 2016, colocamo-nos 0 desafio de contribuir a esse esforgo coletivo. Para tanto, assumimos os riscos de propor uma abordagem que, sem pretenséo de tornar-se uma narrativa que serve a todo e qualquer contexto, procura interpretar de maneira relativamente integrada ¢ coerente um pais heterogéneo, onde as préticas de produgio e consumo alimentar passaram por profundas transformagées ao longo do tiltimo século. Essa abordagem foi construida a partir de uma “sintese heterodoxa” entre aportes da Teoria das Convengées, um tipo de abordagem instituciona- lista que chama a atengio para a pluralidade de configueaces normativas do capitalismo (Luc Boltanski, Laurent Thévenot, Frangois Eymard-Duvernay); do Neoinstitucionalismo Histérico e Sociolégico, o qual discute os mecanismos institucionais de construgio & estabilizagso das organizacées e dos mercados (Richard Scott, Jens Beckert, Neil Fligstein, Kathleen Thelen); e da Teoria das Préticas, a qual diteciona o foco da anélise para a evolucéo contingencial de diferentes arranjos de priticas saciais (Theodore Schatzkd, Alan Ward, Karin Knorr- 2). No centro desta sintese estd a nogio de Ordem Social, a qual é definida como ‘um arvanjo de prévicas sociis integradas a instituigbes ¢ artefatos materiais. De acordo com Schatzki (2002, p. 22), um dos autores expoentes da Teoria das Priticas, “ordens sociais séo arranjos de pessoas, artefatos, orga- nismos e coisas por meio dos quais a vida social transpira, ¢ pelos quais estas centidades se relacionam, ocupam posigdes e possuem significados.” Nosso cconceito nao é muito diferente, haja vista que também destaca a participacio dos artefatos materiais na conformagio das ordens sociais. Nao obstante, sublinhamos mais fortemente os pilares normativos, regulatérios e cognit vs dos processos de ordenamento. Em outras palavras, interessa-nos saber como as instituicées orientam (constragem € potencializam) a conformagéo das priticas sociis, a0 mesmo tempo em que so recursivamente alteradas pelas mesmas. Esta questio nos encaminha para um conceito de ordem social que dialoga estreitamente com autores convencionalistas ¢ institucionalistas que analisam os mecanismos de coordenagio e estabilizagio dos mercados (Beckert, 2009; North; Wallis; Weingast, 2009; Thévenot, 2001b). ‘A definigio dos mezcados como ordens sociais assume como pres- suposto que, sobretudo frente a contextos de exacerbacio das incertezas (Beckert, 2017; 2009), os processos de cooperaco e competi¢io entre os agentes dependem da construgio universos seménticos relativamente esté- veis, dentro dos quais eles podem entrar em acordo sobre as classificagbes, hiierarquias,significados e identidades que organizam as erocas econémicas. Ou seja, uma ordem social define um espaco no interior do qual determi- nados comportamentos, atores, priticas, regras ¢ objetos séo considerados legitimos. Cada ordem é compreendida por uma Iégica institucional espe- cifica e nao redutivel. Isto implica que nao existe ur “principio tinico” que rege todo o sistema econémicorDe outro modo, seguindo a perspectiva de miltiplas “variedades de capitalismo” (Block, 2012), as sociedades modernas sio concebidas como um aglomerado de economias que nao se orientam por uma Idgica universal, quer seja a expropriacio de mais-valia entre classes, quer seja a racionalizacio da acio social. A estabilidade de uma ordem ¢, portanto, de um mercado, depende da formagio de nexos coerentes entre trés componentes: pitas, instituigdes € artefatos. As instituigées orientam a organizagio das priticas, seja favore- cendo determinados discursos e agées, seja constragendo-os. Por sua vez, de ‘maneira recursiva, as préticas sio responsiveis por definir padres de inte- ragio que, no curso do tempo, reconfiguram as instituigdes. Além disso, 48 priticas também ordenam 0 posicionamento dos diferences artefatos que intermedeiam as relagdes sociais. No entanto, pela sua prépria nature, estes artefatos também delimitam um universo de possibilidades ¢ limites para as praticas sociais. Eles também sio responsaveis por navuralizar padrées institucionais, tornando as instituiges mais resistentes as mudangas pelas priticas dos atores. Finalmente, as instituiges criam trajetérias récnicas que influenciam na selecio dos artefatos utilizados nos mercados (path depen- dence). A anilise proposta neste livro focaliza a conformacéo, estabilizacio, crisé'e mudanga dos mercados (ordens) como decorréncia de alteragdes nos 1nexos entre esses componentes ~ 0 que decorre da criagio de novas praticas, artefatos ou insticuigbes. Definir os metcados como ordens sociais implica uma ruptura signi- ficativa com as abordagens dominantes nas ciéncias sociais. A maioria das anélises ainda privilegia um olhar para a estrutura ¢ 0 funcionamento das “cadeias produtivas”. Nos anos 1990, essas abordagens evoluftam para ideia de “cadcia de valor”, quando o foco se moveu do produto para a produ- Gio e distribuicdo do “valor” ao longo dos diferentes elos setoriais (Gereffis Humphrey; Sturgeon, 2005). Resultados importantes foram alcancados a partir desses estudos, os quais passaram a orientar tanto 0 comportamento das empresas, quanto o desenho de politicas seroriais (Batalha, 20075 Farinas Zylbersztajn, 1994). O problema é que, em geral, este tipo de abordagem privilegia a conduta e o desempenho de um conjunto restrito de agentes, 0s quais atuam apenas em um setor produtivo. Outro limite é a capacidade de incegragio da estrutura setorial com o substrato espacial que ancora as diferentes atividades produtivas, 0 que resultou na articulacio do conceito de cadeias de valor com aqueles de clusters, trritérios ¢ attanjos produtivos Jocais (Paulillo, 2000; Pietrobelli; Rabellotti, 2010). Em didlogo com a literatura sobre cadeias de valor, inovagées impor- tantes foram produzidas a partir da incorporagéo da Nova Economia Ins- titucional pelos escudos agroindustriais (Zylbersctajn, 1995). A partir dai, a unidade de andlise deixou de ser 0 agente econémico para se tornar a “cransacéo” que articula diferentes agentes (Williamson, 1985). As pesqui- sas centraram-se, sobretudo, nos mecanismos institucionais de redugéo dos “custos de transagio”, em que se sobressairam os sistemas de integracio, os contratos ¢ as certificacées (Jank; Farina; Galan, 1999). Entretanto, além de exagerar a importancia destes mecanismos, o que se viu também, aqui, foi um enfoque eminentemente setoral. As eentativas de endogeneizacio 20 modelo dos atores que nfo compéem a cadeia geralmente ficaram por conta de nogées um tanto vagas de estrucura organizacional e ambiente institucio- nal, Nem sempre elas permitiram, todavia, explicar como o comportamento de agentes articula-se 20 aparato institucional, o qual é visto, quase exclusiva- mente, como constrangimento regulatério. Ademais, nota-se também certa dificuldade para compreender a agéo coletiva nos mercados, haja vista um 6 pressuposto ontoligico que define os agentes econdmicos como propensos ‘a0 oportunismo (Williamson, 1975; 1985). ‘A agenda de pesquisa sobre mercados, custos de transacio ¢ institui- ¢6es disseminou-se rapidamente no Brasil ¢ alhures. Ao longo do tempo, isto possibilitou ajustes e desenvolvimentos tedricos que levaram a compre- ens6es muito mais tefinadas dos mercados por parte da “nova” economia institucional (Lazzarini; Chaddad; Cook, 2001). Mesmo assim, desacordos com relagéo aos pressupostos ontolégicos ¢ te6ricos incitaram a sociologia a construir outros recursos para a andlise dos mercados. Os sociélogos foram em busca de motivages menos utilicaristas e individualistas para explicar 0 comportamento dos atores e suas relaces com os campos organizacionais ¢ o ambiente institucional (Scott, 2008). No entanto, varios deles cafram em uma leitura excessivamente estrutural dos mercados. Muitos modelos socio- légicos passaram a operar com um nivel de generalizacio tio elevado que os impede de explicar a heterogeneidade das préticas econdmicas. Assim, como destacou Granoverter (1985), enquanto o modelo “subsocializado” do homo oeconomicus destaca a forma como individuos racionais fazem escolhas; 0 modelo “sobresocializado” do homo sociologicus sublinha que os atores sociais rio tém escolhas para fazer, ou seja, que eles sio apenas guiados por dispost- 96es culeurais definidas pelas estrururas institucionais. No que tange especificamente & Sociologia da Agricultura e da Ali- mentagio, na tltima década, uma das abordagens que passou a oriencar os principais esforcos de interpretagio do sistema agroalimentar consticuiu-se em toro da nogio de “regimes alimemtares” (food regimes). A partir dela, delimicaram-se grandes perfodos de relativa estabilidade dos processos de acumulacdo-regulagéo capitalista no sctor agroalimentar (Friedmann, 2016; McMichael, 2016a, b). Este modelo se disseminou globalmente, porque € um dos poucos preocupades em caracterizar a hist6ria de longo prazo da agricultura, associando-a aos fatores de crise e ruptura do “sisterna-mundo” (Wallerstein, 1974). Ao mesmo tempo, ele ganhou adeptos porque conjuga ‘um conjunto de signos (cransnacionalizacfo, financeitizago, estrangeiriza- Gio, supermercadizacio etc.) que conferem sentido a interpretages acerca de importantes fendmenos sociais contemporaneos, ainda que estes sejam ‘muito mais complexos do que a narrativa geralmente consegue aprender (Borras Jr. et al, 2016; McMichael, 2014; Sauer; Borras Jr., 2016). ‘Ao mesmo tempo em que se generalizou nos estudos agrétios, a aborda- gem dos regimes alimentares tornou-se objeto de recorrentes questionamen- {05 ¢ aprimoramentos. As principais erfticas apontaram para as dificuldades em tratar a heterogencidade social, para a sobrevalorizacéo das rupturas em 7 decrimento das transig6es, a caréncia de evidéncias empiricas generalizéveis, 0 excessivo ocidentalismo da periodizacio, 0 dualismo das relagdes de poder — ainda pteso ao modelo centro-periferia — ea tendéncia a um raciocinio prescri- tivo (Goodman; Watts, 1994; Marsden, 2016; Niedetle, 20172; Wilkinson; Godman, 2017). E claro que estes questionamentos no séo generalizéveis a todos os usos da abordagem, até mesmo porque diferentes interpretac foram produzidas pelos proprios autores que estiveram inicialmente engaja- dos na sua formulacio (Friedmann, 1987; Friedmann; McMichael, 1989). ‘Mesmo assim, as criticas trouxeram questées relevantes para o debate. De certo modo, parte das eriticas & abordagem dos regimes alimentares jd estava presente nos estudos que dialogam com as chamadas “perspectivas orientadas aos atores” (Long; Ploeg, 1994). Durante os anos 1990, intimeros autores marcados pela influéncia da “virada culturalista” nas ciéncias sociais afastaram-se do estruturalismo, para enfatizar a heterogeneidade de “estlos de agriculcura” existentes no mundo rural Ploeg, 1994). Os estudos dat deriva- dos foram uma clara tentativa de contrariar as metanarrativas, até ento pre- dominantes nas interpretagées do desenvolvimento agrério (Arces Long, 2000; Long, 2001). No entanto, a partir dos anos 2000, deste lado da ‘trincheira’ dessa “batalha do conhecimento” (Long; Long, 1992), também comegaram a aparecer explicagées mais generalizantes sobre as tendéncias globais do capi- talismo agrério, haja vista a nogio de “Impérios Alimentares” (Ploeg, 2008). Esta mudanga de foco foi coerente com a nova dinimica de globalizacao do setor agroalimentar,e foi eambém uma resposta as criticas que recairam sobre 0 «excessivo “localismo” das perspectivas orientadas aos atores (Goodman, 2004). No comeco dos anos 2000, a mediacao entre atores e estruturas, setor € territério,localismos e globalismos pareca ter encontrado uma solucéo defini- tivaina metéfora das “redes” (Goodman; Dupuis; Goodman, 2012; Murdoch, 2000; Renting; Marsden; Banks, 2003). A difusio do conceito de redes foi tao forte que, enquanto alguns autores passaram a utlizé-lo de mancira associada aos demais conceitos (Paulillo, 2000), outros produziram fusées conceituais pouco convencionais, como aquela de “netchain” (Lazzarini; Chaddads Cook, 2001). Scja como for, apesar das notéveis contribuicdes que ainda continuam vlidas, as andlises de redes sociais também encontraram seus limites. Como afirma Thévenot (2001a, p. 408), “a nogio de rede é muito persuasiva, em virtude do seu poder de abarcar, na sua descricéo, uma lista potencial de enti- dades, que é muito mais ampla do que aquela oferecida pelos modelos de aco € pritica, Mas esta nocéo tende a negligenciar a heterogeneidade de lacos em favor de uma descrigio unificada de entidades interconectadas”. Com efeito, para além do “tecido sem coscura ¢ sem fim” (Boltanskis Thévenot, 1991) 8 das redes, romou-se cada vez mais imperative compreender os mecanismos de sustentagao normativa da acéo social (Biggart; Beamish, 2003; Boltanskis Chiapello, 2009; Eymard-Duvernay et al, 2005). Diferentemente das anilises de cadetas produtivas, a ideia de mercados como ordens sociais ~ ot ordens alimentares, j& que estamos falando de mer- cados alimentares — nao se pauta pela dinamica de um produto espectfico (eg, cadeia do leite, cadeia da soja) e, para além da produgio, incorpora de ‘maneita mais evidente as I6gicas de consumo. Com efeito, um dos pressu- posts de nos andlie& 0 de que no hi aio para conceder prioridade jstemol6gica a qualquer prética social, seja a produgio, seja 0 consumo, cia ES existe entre cls. Além diso,diferenemence das abordagens transacionais (Nova Economia Institucional) e interacionistas (Abordagem de Redes Sociais), a ideia de “ordem” reclama certo nivel de engajamento ins- titucional da agéo social. Por conseguinte, a andlise focaliza os mecanismos ormasivos (valores), regulatérios (leis, regras) e cognitivos (ideias, representa- «gbes) que organizam e conferem uma estrutura de sentidos &s priticas sociais (Favereauy Biencourt; Eymard-Duvernay, 2002). ‘Ao associar as priticas com os dispositivos institucionais, nossa abor- dagem também procura escapar da impossibilidade de generalizagéo em que se encontram, por exemplo, as formulagées em termos de “estilos de agri- cultura”. De maneira muito similar aos “mundos” de Boltanski ¢ Théve- not (1991), © conceito de “ordem social” carrega consigo uma pretensio de generalizagio das interpretagbes sobre 2 realidade social. No entanto, esta pretensio néo chega ao nivel da grande narrativa unificadora que define um Linico regime alimentar global. Além disso, embora sejatéo plural quanto os ‘mundo de justificagdo da Teoria das Convengées, 0 conceito de ordem social no se ampara em nogbes de justiga que possuam pretens6es universlizan- tes. A abordagem das ordens sociais configura uma “teoria de médio alcance (Merton, 1970), a qual permite a agregacio das praticas ¢ institul um “nivel intermediério” entre os atores € as estruturas, bem como entre 05 localismos e os globalismos. Essa pretens4o tedrica do livro ass blematizar interpretacées relativamente petrificadas acerca das priticas de pro- duco e consumo alimentar. A principal delas tem a ver com a ideia de que ‘a trajet6ria dos mercados alimentares deveria ser descrita como um amplo e itrestrito proceso de homogeneizacio, algo que é vastamente repetido tanto pela “teoria da modernizacio", de cunho racional-utiltarista, quanto por sua critica estruturalista encontrada na “teoria da mercantilizacao”. De outro: modo, mais proximo a perspectiva de Long ¢ Ploeg (1994), este livro discute a se 20 seu objetivo central de pro- 9 producio de diversidades (¢ desigualdades). Nossa hipétese orientadora sugere que, a0 redirecionar o foco para as priicas alimentares, é possvel peroeber um cenirio mais heterogéneo do que nossas atuais lentes analiticas oferecem. __ Ascolha do Brasil como universo de anilise deve-se a dois fatores. O primeiro é de carder prético: tratase do inico pais sobre o qual acurnulamos, cm diferentes pesquisas ao longo da dilkima década, um vasto conjunto de informagées que poderiam subsidiar as andlises. Com vistas a exemplificar as praticas, artefatos dispositivos instiuucionais que compéem as ordens alimen- ‘ares, rraremos, em todas os capitulos, exemplos relacionados a estas pesquisas, as quais dizer respeito a diferentes mercados alimentares e regiGes brasileira. abe, desde ji, sublinhar que estes exemplos néo tém pretensio de sera expres- so mais caracterstica de cada ordem. Antes de tudo, eles sio a expressio dos nnossos temas universos de pesquisa. Mesmo assim, acteditamos que serio suficientes para subsidiar a ideia de uma pluralidade de ordens alimentares, O segundo fator de escolha esté associado & exemplaridade do caso brasileiro para a andlise proposta. A representacio dominante da agricul- tura brasileira é aquela que acentua uma imagem homogénea das dindmicas de producéo ¢ consumo alimentar: Embora, a pattir dos anos 1990, esta representagio tenha sido relativizada pela insuficiente contraposi¢éo entre agronegécio e agricultura familiar, tanto adeptos como criticos do processo de modernizagao da agriculrura brasileira convergem na interpretacio de que 2 diversidade nao foi complecamente eliminada apenas porque o processo de modernizagio foi interrompido. Atualmente, enquanto os adeptos procu- ram retomar as politicas de modernizagéo, os eriticos continuam fizendo de tudo para deté-las. Engajados neste conflito, os dois lados tém dificuldades para pensar a diversidade no como resquicio de um proceso incompleto, ‘mas como uma caracteristica estruturante das formas contemporineas de produgio ¢ consumo, algo que poderia contribuir para questionar a ideia de ‘caminho ‘inico’ ou ‘melhor’ para os processos de desenvolvimento (Hisch- ‘man, 1986), e, a0 mesmo tempo, orientar a formulagéo de politicas publicas que promovam a diversidade alimentar. Com 0 objetivo analitico de classificar esta diversidade para inter- preté-la, o livro distingue seis ordens alimentares: Industrial, Comercial, Doméstica, Estética, Civica e Financeira, Apés apresentar os principais aspec- tos te6rico-metodolégicos desta classficagso (Capfeulo 1), comegaremos a andlise pela conformagao da Ordem Industrial (Capitulo 2). Amparada por amplo conjunto de artefatos técnicos (tratores, agrotéxicos, sementes hibridas) e insticucionais (crédito rural, bancos, cooperativas extensio rural, pesquisa agropecuéria) construidos com forte protagonismo do Estado, no Brasil, esta ordem se rornou dominante na segunda metade do século XX desde entéo, otientou transformagées radicais nas priticas de producto e consumo alimentar. Por um lado, promoveu a mecanizagio das lavouras, a especializacio do trabalho, a intensificagio da produsio de gros e a revolu- Go quimica do processamento industrial. Por outto, acentuou a massifica- do, padronizacio e artifcializagéo do consumo alimencar, o que respondeu ao crescimento acelerado das taxas de urbanizagio e industrializacio. ‘A consolidagao deste modo de ordenamento industrial foi potenciali zada pela (e contribuiu para a) crise das Ordens Comercial e Doméstica. Até 1930, a Ordem Comercial, que é herdeira da plantation tradicional e do poder impetial-colonial, foi predominance no Brasil, pelo menos enquanto padrao institucional sustentado pelo Estado. A organizagéo dessa ordem remonta a priticas pré-industriis de organizacio do trabalho, o qual & apenas relativa- ‘mente especializado, mais em virtude da presenga do monocultivo extensiyo do que pela incorporacao de tecnologia. Ademais, ancorada no controle que © ‘latifiindio’ exerce sobre o Estado, essa ordem também conjuga préticas radicionais, autoritérias e violentas de dominagio dos trabalhadores ¢ de acesso a terra. Nas tiltimas décadas, apesar de ter suas priticas amplamente criticadas, tal ordem reemergiu juntamente com as novas formas de colonia- lismo, que se disseminaram por diferentes paises latino-americanos, as quais sio marcadas pelo aumento do ritmo de espoliagéo dos recursos nacurais, para atender is demandas das novas “metrdpoles” mundiais. O processo de industrializagao da agriculrura também aceleroua crise da Ordem Doméstica (Capitulo 4), a qual, antes disso, mantinha-se em uma situago subordinada 4 Ordem Comercial. A Ordem Doméstica € herdeira de priticas de producdo ¢ consumo que, historicamente, carac- terizaram as sociedades camponesas. Nela prevalecem priticas de “co-pro- ducio” entre sociedade e natureza, ancoradas na articulagso entre saberes tradicionais ¢ objetos artesanais. Considerada pelos teéricos da moderni- zacio como uma etapa anterior & entrada do capitalismo no campo, a qual seria inevitavelmente superada com o advento da industrializagio — assim como os camponeses seriam substituidos por empresitios agricolas -, a Ordem Doméstica também resistiu e se reinventou. Atualmente, isto é notério na importancia da producio para autoconsumo e das “agroindtis- ttias familiares rurais”. Néo obstante, estes exemplos também demonstram que a Ordem Doméstica jd nao se configura necessariamente como uma “economia de excedentes”. Trata-se de forma de ordenamento lastread por valores sociais, que distingue determinado tipo de enraizamento sociocul- tural dos alimentos, e que, hoje em dia, tem sido estimulada pelo cresci- a mento da demanda dos consumidores por produtos regionais, tradicionais, artesanais, coloniais e casciros. A partir dos anos 1980, a crise da Ordem Industrial néo apenas favoreceu a perpetuacéo das Ordens Doméstica e Comercial, mas tam- bbém abrit espaco para a emergéncia de novas ordens alimentares. Com feito, o recrudescimento das crticas aos efeitos da Revolusio Verde levou a articulacio entre movimentos sociais rurais e ecologistas, reforcando uma “critica ética” & industrializacéo da agricultura. Em grande medida, a constituicio de uma Ordem Civica (Capitulo 5) foi o resultado do modo como estes movimentos, orientados por um ideal de “democracia alimen- tar”, construfram préticas de redistribuicio econémica, reconhecimento das agriculturas familiares, valorizagio dos bens comuns da sociobiodi- versidade, promogio da soberania e seguranca alimentar e nutricional. Ao longo do tempo, a agroecologia cornou-se a principal expresséo deste conjunto de préticas, potencializando novas alternativas de produgio, con- sumo, comercializagdo, certificacao e intercooperacéo. A caitica ética esteve acompanhada por outta de ordem “esta” (Bol- tanski; Chiapello, 2009). Neste caso, os movimentos de contestacéo atacaramn a excessiva rigidez da méquina fordista de acumulacéo capitalista na agricul- tura. Ao invés de padronizacao, uniformidade e eficiéncia, a critica estética trouxe o elogio ’s singularidades, as diferenas e ao hedénico. Nesse sentido, 2 Ordem Estética acentua os processos de ‘culturalizacéo da economia alimen- tar’, os quais revelam novas bases normativas para a valoracao dos alimentos € das priticas alimentares. Estas bases esto associadas a representagbes estéticas sobre o corpo, a natureza e os préprios alimentos. Aqui, destacam-se algumas priticas de reconhecimento, certificacéo e patrimonializacio dos alimentos. ‘Nao obstante, o que talvez seja mais caracteristico desta ordem sio as priticas de gastronomizagio, gourmetizacio e, mais recentemente, ‘gamificacéo’. For- remente ancoradas em uma economia de signos ¢ significados, estas préticas estruturam relagdes mercantis relativamente singulares, as quais merecem ser analisadas em tetmos de uma ordem social especifica. Dentre as transformagbes institucionais que se seguiram 4 crise do padrio fordista nos anos 1980, aquelas que mais chamaram a atencio da Sociologia da Agricultura escdo associadas 4 consolidaséo daquilo que def- nimos como Ordem Financeira. Cada vez mais dominance ¢ disseminada, esta forma de ordenamento social € caracterizada pelo modo especifico como novos artefatos ¢ dispositivos institucionais ~ dos sistemas de gestfo da infor- ‘magio aos ttulos privados de financiamento ~ organizam um vasto conjunto de praticas sociais que afetam diretamente as dinimicas de produgio e con- sumo alimentar: especulacéo financeira; formacio de fundos de investimento; desregulamentago dos mercados de capitaiss abertura de capital das empre- ‘as; flexibilizagzo das estruturas produtivas; governanca corporativa liberals concentragio de capitais ¢ formacéo de megaconglomerados transnacionais, dentre outras. No cerne desta ordem, estio padr6es institucionais que privile- slam uma racionalidade econdmica de curt prazo que responde & perspectiva de maximizagéo do valor aos acionistas. Em vietude disso, a “financeirizacio tem incitado, por exemplo, o crescimento dos investimentos especulativos no ‘mercado de terras¢ gros, bens que sequer si pensados como mercadorias ou ‘matérias-primas industriais, mas que so vistos como ativos cuja valorizagio financeira pode garantir ganhos répidos ¢ segutos aos investidores. Como veremos 20 longo deste livro, essas seis ordens coexistem em estado de tensio, umas tentando impor-se sobre as outras para fazet valet suas proprias légicas institucionais. Isto foi o que ocorreu no pés-guerra, quando a Ordem Industrial se tornou hegem6bnica, ¢ é isto que se dese- nha atualmente, em face da expansio ‘imperialist’ da Ordem Financeira. No entanto, em nenhum momento histérico essas ordens se estabeleceram ‘como a iinica forma de ordenamento das priticas de producéo ¢ consumo alimentar, nem mesmo durante o dominio da Ordem Comercial sobre 2 ‘Ordem Doméstica, no Século XIX. As reagées, criticas ¢ mudangas que caracterizaram a evolugio ¢ diversificacéo dessas ordens, no tiltimo século, também nos obtigam a ser reticentes com relacio & ideia de que a finan- ceitizagao possa ser a “iltima fronteira do capitalismo”. As reagoes a este processo podem levar néo apenas ao fortalecimento de outras ordens ja exis- tentes, mas também ao surgimento de novas priticas que nao se enquadram em nenhuma dessas ordens. Quando e como novas formas de ordenamento emergiréo nio é uma questio que temos condigdes de responder. ‘Ao longo dos capitulos, rambém destacaremos intimeras areas de sobre- posicdo entre as ordens, de modo que ser possivel perceber que certas praticas, artefatos e instituig6es sto funcionais a distintas logicas de producao ¢ con- sumo. Estas dreas de sobreposigao também revelam movimentos de “apropria- G20", pot meio dos quais uma dete:minada ordem tenta expandir seu domi- nio, apropriando-se de artefatos, regras, valores, discursos etc. que sero, neste 230, ajustados a outro arranjo de priticas sociais. Finalmente, também ficard cada vez mais evidente que a demarcacio dessas ordens é um exercicio heuris- tico e normativo. A realidade social é muito mais complexa e contradi No entanto, assim como os préprios atores sociais séo obrigados a classificar ‘o mundo para ter alguma seguranca ontolégica e dar sentido &s suas vidas, 0s ccientistas sociais séo forcados a criar modelos que lhes petmitam analisé-lo. 2 Capitulo 1 Ordens Alimentares 1.1 O Sistema Agroalimentar como objeto de investigacao social (O debate sobre as reconfiguragées do sistema agroalimentar tem sido marcado por not6rias controversias académicas e politicas. No Brasil, um dos temas cen- tuais da discussfo continua sendo a hist6rica dependéncia a um modelo agroin- duscrial pautado pela produgio de commodities de exportagio. Os desacordos com relagio a este tipo de estratégia compreendem posicées que véo daquelas que defendem uma verséo renovada da Teoria das Vantagens Comparativas, de David Ricardo, e que, recorrentemente, exaltam a suposta Vocagio agroexpor- tadora’ do Brasil (Alves; Souza, 2015; Contini, 2014), até as que reproduzem antiga critica cepalina relacionada & deterioracio dos termos de intercimbio, inclusive criticando © que definem como um processo de re-primarizacéo da economia brasileira (Cano, 2012; Oreiros Feij6, 2010). ‘Na segunda metade dos anos 1990, 2 desvalorizagio das commodities primarias nas cadeias globais incitou indimeros estudiosos a sugetir que este tipo de modelo néo poderia sustentar nem os agricultores nem as economias nacionais. Ao mesmo tempo, a volatilidade desses mercados, cada ver mais & mercé da légica de curto prazo do capital financeiro, levou analistas a suge- rir que, 20 invés do padrao produtivista ancorado nos ganhos de escala dos monocultivos de exportacio, a nova economia agroalimentar exigiria diversi- ficagao e produtos de qualidade especifica, respondendo a crescente demanda dos consumidores por alimentos orginicos, artesanais, locas, éticos e étnicos (Guivant; Spaargaren; Rial, 2010; Mior, 2005; Nicderle, 2017b; Wilkinson, 2008; Gazolla; Schneider, 2017) “Uma década depois, contudo, o mercado global de commodities reto- mou dinamismo. O seu "boom", nos anos 2000, incitou vérios pesquisado- res a analisar a reconfiguracéo do “regime alimentar internacional” e seus impactos na reorganizagao dos espagos rurais (McMichael, 2016). No Brasil, atengio especial foi dada 20 impulso da demanda chinesa para a formagio do “complexo soja-carnes’ (Escher, 2016; Sauer; Balestro; Schneider, 2018; ‘Wesz Jr., 2016). No entanto, as erticas a0 ‘commodity return’ logo ocupa- ram-se de demonstrar que este fenémeno é extremamente instivel, haja vista, por exemplo, a oscilagio dos precos internacionais (Figura 1.1), Além disso, destacaram como, novamente, est tipo de modelo de desenvolvimento agré- rio privilegia grandes produtores, acentua a légica de especializacio regres- siva, exaure recursos nacuras, ¢ desestrurura a socioeconomia dos territérios (Fernandes, 2014; Sauer, 2016). Para se contrapor a0 retorno das commodities e, sobtetudo, 20 “pro- cesso de sojicizagio” da agricultura brasileira (Conteraro; Gazolla; Schneider, 2007), muitos pesquisadores colocaram em marcha um esforgo para identi- ficar as alternativas localizadas criadas pelos agricultores em diferentes tetti- térios. Hles escrutinaram uma mirlade de cadeias curtas dle comercializagao (Cruz; Matee; Schneider, 2016; Gazolla; Schneider, 2017). Também aponta- ram para o papel das politicas piblicas, sobretudo daquelas que se amparam. [Figura 1.1. Indice de pros globus das commode presi. Fonte Pde Monti Itracone 2017) no referencial da seguranca alimentar ¢ nutricional, como indutoras dessas alternativas (Maluf er al,, 2015). Em suma, néo apenas demonstraram que os “novos mercados” se ampliaram, apesar da retomada das commodities (em alguma medida, em vircude disso), mas também que esse processo depende da acio de movimentos e governos engajados na sua construgéo (Niederle, 2016a; Schneider, 2016). Mesmo assim, alguns especialistas seguiram ques- tionando a expressividade ¢ a capacidade de resiiéncia desses pequenos “nichos” alternativos, sugerindo, inclusive, que sua defesa néo passaria de “neo-populismo” (Bernstein, 2011; Navarro, 2013). ‘A contraposi¢io entre essas diferentes leituras acerca da dindmica do sistema agroalimentar tem favorecido a reproducio de concepcdes dualis- tas que, em geral, opéem dinimicas globais e locais. Neste caso, 0 “local” € geralmente positivado por um conjunto de atributos éticos, ecoldgicos ¢ estéticos, a0 passo que o “global” é 0 espaco das desigualdades, dos poderes assimétricos, das relagées de dominagio e da degradagio dos recursos (Qua- dro 1.1). Nao ha margens, neste tipo de leitura, para consideras, por exem- plo, os problemas de um “localismo defensivo” (Hinrichs, 2003), cuja con- figuragao chauvinista pode implicar em desigualdades ainda mais marcantes do que aquelas que se encontram nos mercados ditos globais. Também nao hd espago para considerar dinémicas que nfo se expressam prioritariamente em nenhuma dessas duas escalas, ou seja, que sfo influenciadas por confi- _guragées econémicas nacionais e regionais (Wilkinson; Goodman, 2017). Quadro 1.1. Acibutos asociados 20 “global” ¢20 "local" Global Local Economia de mercado ee aS Uma sociologia econémica da oo ‘qualidade Dominio das CorporacSes Transnacionais ee Produtoresartesanais independences Bem-estar da comunidade Intensificagio y Modelos industai eee eee Conn eget decane = Reages ae Protegio e regeneracio de recursos eager de proximidade Commodities deslocalizadas Grandes estruturas Regras recnocriticat Homogencizagso dos alimentos Comunidades no local Azores voluncirios Participagio democritica Gostos regionals Fame Hines (2008) a A visio de que as alternativaslocalistas resistem as injustigas perpe- tradas pelo capitalismo tem sido amplamente difundida nos movimentos sociais ¢ também na literatura académica, Esta visio foi questionada por Hinrichs (2003), para quem as formas de “localismo nao-reflexivo” podem star associadas a mecanismos autortérios ¢ excludentes, por meio dos quais as elites locais criam uma narrativa de justia que confunde relagées sociais com relagées espaciais. Do mesmo modo, Goodman, Dupuis e Goodman (2012, p. 24) sugerem queo movimento de agriculturaalternativa seria mais cfetivo “se cle trabalhasse com uma nogio mais rflexiva de justiga”. Segundo estes autores, “a tepresentacao do local e seus constructos ~ cnraizamento, confianga, cuidado, qualidade — prvilegia certas categorias analiticas e tra- jet6rias cujo efeito € 2 naturalizagio ¢, assim, a ocultagéo das politicas do local.” (ibidem, p. 14). Nos “estudos agréris crticos", este dualismo repercute, por exemplo, nas abordagens construidas a partir dos conceitos de “regimes alimentares” e “estilos de agricultura’. A primeira é herdeira da economia politica marxista, resgatando ainda elementos da teoria do sistema-mundo e da escola francesa da regulacio (Araghi, 2009; Friedmann, 2005; McMichael, 2013). A segunda cexpressa a sintese construcionista que a sociologia pés-1980 construi em torno do “problema da agénciz", e ampara-se, principalmente, na Teoria da Estrutura¢ao de Anthony Giddens (Long, 2001; Long; Ploeg, 1994). A nosso ‘ver, em que pesem os diferentes quadros analiticos, ambas as abordagens com- partilham do mesmo tipo de dificuldade para escapar do dualismo entre ator « estrutura. Enquanto a abordagem dos regimes alimentares se mantém las- treada pelas metanarrativas sobre a transformacéo da agricultura no contexto da economia capitalista global, com difculdades para explicar as variagées espaciais, os estudos em termos de estlos de agriculeura privlegiam a hecero- gencidade das formas localizadas de agriculrura, mas sio incapazes de genera- lizar suas conclusdes sobre a organizacao do(s) sistema(s) agroalimentar(es). E verdade que, nos iltimos anos, houve um esforgo de ampliagéo do arcabougo analitico dessas abordagens. Este &0 c2s0, pot exemplo, do movi- ‘mento que ambas tém feito em ditecio & sociologia dos mercados, da ino- vagio e da alimentacio, amipliando as interfaces com as novas teorias de redes, a sociologia das organizacées ¢ instituicées, e os estudos de transigao sociotécnica (Friedman, 2016; Ploeg, 2017). No entanto, a dificuldade de " "Gritial agrarian studies” &wsva expesio qu tem sido amplamente empregada na Sociologia dda Agrculra para designar um conjunto de sbordagensheretodonas ql ialogam com a teotia ‘cca marisa e, mais amplament,crticam os prestupostos da economia ncoclissia que sus- ‘entam e Teoria da Mdernzacdo (Edelman; Wolord, 2017) 28 conciliar abordagens que ainda se movimentam com a camisa de forga da Tinguagem dual acor-estrutura com as novas teorias que operam com outras contologias ratifica as contradicées desta aproximacio. Em virtude disso, cembora as formulacées construidas em torno dos conceitos de Regimes Ali- ‘mentares e de Estilos de Agricultura nao sejam representativas da diversidade de perspectivas utilizadas para a andlise das préticas alimentares, sua relevin- cia no debate contemporineo da Sociologia da Agricultura e da Alimentagio (Buteel, 2001), associada aos esforgos que ambas tém feito para se aproxi- marem das “novas sociologias” (Corcuff, 2001), leva-nos a tomé-las como interlocutores privilegiados para o debate proposto neste livro Este capitulo inicia discutindo as contribuigées € 0s li abordagens. Em seguida, apresentamos algumas evidéncias histéricas sobre a dinimica do sistema agroalimentar no Brasil, as quais nos parecem rele- vvantes para questionar a pertinéncia de uma visio dual. Com base nisso, procuramos reequacionar a discusséo, a partir de um “modelo de mercados rmiltiplos” (Niederle; Schubert; Schneider, 2014). Para tanto, propomos tum quadto analitico que concilia aportes do neoinstitucionalismo sociol6- gico (Fligstein, 2001; Beckere, 2009; Scott, 2008), sobretudo a perspectiva convencionalista dos “mundos de justificacso” (Boltanski Thévenot, 1991), e elementos da Teoria das Préticas (Schatzki; Knorr-Cetina; Savigny, 2001). ‘Appartir deste referencial, propomos 0 conceito de Ordens Sociais como uma alrernativa pluralista e pragmatista para a andlise dos sistemas alimenvtares. ces dessas 1.2 A Sociologia da Agricultura e Alimentacao Até 0 final dos anos 1980, a Sociologia da Agriculeura foi amplamente domi- nada pela controvérsia entre aTTeoria da Modernizacéo, de cunho racional-uti- licarista, e sua rival marxista, a Teoria da Mercantilizacio (Long et al., 1986; Schneider, 1997). De modo geral, enquanto a primeira enaltecia o mercado, a segunda o demonizava. Ambas, no entanto, coincidiam em concebé-lo como uma estrucura impessoal, ficticia, pautada “de modo especificamente obje- tivo, pelo interesse nos bens de troca ¢ por nada mais” (Weber, 2000, p. 429). Desde entdo, as iniimeras “viradas” (cultural, pragmética, praxiolégica, ontolégica, de-colonial) que renovaram as ciéncias humanas também contri- buiram para produzir novas abordagens para a andlise dos mercados, as quais gradativamente se afastaram das metanarrativas estruturais, para aproximar-se dos atores socais, em incorter, no entanto, no mesmo tipo de individualismo metodolégico da tradigéo utilitarista (Dosse, 2003). Com relagio aos mercados alimentares, uma das abordagens que mais ganhou espago nesse periodo ficou conhecida como “perspectiva orientada 20s atores” (Long, 2001). Construida em dilogo critico com as teorias neomarxis- tas sobre “producio simples de mercadorias”, esta abordagem orientou a clabo- rio de novas explicacées acerca da manutengio de “formas sociais néo essen- cialmente capitalstas” (0 campesinato) nas sociedades de capitalismo avangado. Ao invés de focalizar as contradigées estruturais do sistema, as atencées foram teditecionadas para @ organizagio das unidades de produgio agricola (Ploeg, 2008). De modo geral, procurou-se conciliar uma visio chayanoviana das mudangas agrdrias, que prioriza as légicas socioprodutivas dos agricultores (Chayanov, 1974), com as inevacées tebricas produzidas pela virada culeuralista ce subjtivista das ciéncias sociais (Buttel, 2001). Nese sentido, em didlogo com as formulagées de Giddens (1989), um dos focos da abordagem passou a ser o debate sobre a capacidade de “agéncia” dos agricultores. Apesar das presses institucionais, estes atores encontram espacos de manobra para criar estratégias relativamente auténomas de producio € trabalho. Com efeito, dentre os principais méritos desta proposigéo — sustentada por Norman Long ¢ colaboradores da Escola de Wageningen, Holanda ~ estava a atencio conferida & heterogencidade social, a qual derivaria da capacidade dos atores sociais de resistr as pressbes cestruturais exercidas pelo Mercado e pelo Estado (Long; Ploeg, 1994). Nesta perspectiva, Ploeg (2008) foi quem mais avangou em evidéncias empiricas, demonstrando como, em diferentes regiées do mundo, da Frisia holandesa as montanhas peruanas, os agricultores resistem ¢ criam alternativas a mercantilizagio da agriculura (a agio do Mercado) e a incorporacéo institucional (a acao do Estado). De acordo com Buttel (2001, p. 172), {..] 0 postulado central da Escola de Wageningen ~ de que os agriculrores sio atores ativos, portadores de conhecimentos, e que, de acordo com estes conhecimentos, tendem a desenvolver diversos “folk concepn”e “estilos de agriculeuta” que thes permitem reproduzir suas empresas em face das ten déncias homogeneizadoras do capitalismo avangado ~ emergiu para con- testar 2 economia politica agréria com relasio & sua base excessivamente estrutural e dererminist, Uma das principais derivagées da Perspectiva Orientada aos Atores foi 0 conceito de “estilos de agricultura”. Originariamente empregado por Hofitee (1946) em “As Causas da Diversidade na. Agricultura Holandesa”, 0 conceito foi retomado para a andlise da producéo da diversidade na agricul- ‘ura contemporinea, Segundo Ploeg (1994, p. 17), 0 conceito de Hofstee x cestava,articulado as dimens6es de cultura e localidade, representando “um complexo e integrado conjunto de nogdes, normas, conhecimentos, experi- éncias ete., portados por um grupo de agricultores, em uma regido espect- fica, que descreve o modo com que a prixis agricola é levada adiante.” Com efeito, a definicio original faz referéncia as diferencas inter-regionais da agriculcura europeia. De outro modo, para Ploeg (1993, p. 243), 4 medida ‘que se tornava evidente a heterogeneidade no seio de uma mesma comu- nidade, “estilos de agriculeura tornaram-se principalmente um fendmeno intra-regional.” Neste caso, de maneira coerente com o referencial chaya- noviano, 0 conceito remete mais diretamente is légicas produtivas e sociais dos agricultores.? Consolida-se, assim, uma perspectiva mais diretamente corientada aos atores, seus projetos e suas estratégias, na qual o objetivo fun- damental é perceber suas capacidades de agéncia para “fazer diferenca” sob condig6es estruturais similares. Ploeg (1993, p. 241) associou o conceito de estilo de agriculeura'a “um repertério cultural, uma composi¢do de ideias normativas e estratégicas sobre como a agricultura serd feta.” Por conseguinte, um estilo envolve um modo especifico de organizacio, por meio do qual a pritica agricola defi- rida pelo repertério culcural que, por sua vez, étestado, afirmada ¢, se neces- sirio, ajustado pela prética. Operacionalmente, contudo, o uso do conceit variou entre dois eixos (Howden; Vanclay, 2000; Niedetle; Escher Conte- rato, 2014). Por um lado, uma perspectiva eminentemente “hermentutica” ‘que focaliza os discursos representacionais dos agricultores acerca das suas identidades sociais. Por outro, uma perspectiva “realist” que confere atenci0 a estruturaggo das préticas produtivas, bem como & articulacio destas com ‘ambiente matetial, criando arranjos sociotécnicos que definem diferentes modos de “fazer agricultura’ (Whatmore, 1994). Entre o primeiro ¢ o segundo uso do conceito, nota-se um afastamento da teoria culturalista em direcdo as novas sociologias relacionais, sobrecudo Aquelas construidas a partir da Teoria do Ator-Rede de Michel Callon Bruno Latour (Callon; Latour, 1981), e, 2 partir disso, a um conjunto mais amplo de abordagens sobre transigdes sociotécnicas (Marques, 2011; Nie- detle; Escher; Conterato, 2014). Duas consequéncias s4o particularmente importantes com relagéo a este movimento teérico. Primeiro, a incorporacio da teoria de redes sociotécnicas exige 0 rompimento definitivo com 0 dua- lismo ator-estrutura. Nao faz mais sentido falar em estrurura, se esta éa pré- * No Bra, uma importante excerdo €tese de Conterato (2008) qu, utlizando exaistica fo Hal eandlise de cuter, concila uma andise focada nas unidades de produgio com as dinimicas ‘egonsis de desenvolvimento da agriculrura gaichs. a pia rede conformada pelos “actantes” (acores e objetos). Segundo, e como decorténcia disso, nogdes estruturantes como aquela de “mercado” sio subs- tituidas por arranjos hecerogéneos de atores € artefatos (Callon, 1986; 1993). ‘Ao mesmo tempo em que reorientou sua rota teérica, um importante “desafio impés-se & Perspectiva Orientada aos Atores. Por mais interessantes que tenham sido os estudos sobre estilos de agriculeura, desvelando a plura- lidade das préticas produtivas conectadas a diferentes repertérios culturais e arranjos sociotécnicos, eles demonstram dificuldades em termos de generali- ‘agio, Ou seja,ndo conseguem extrapolar o conhecimento acumulado sobre os estilos localmente situados em prol de uma explicaco mais ampla sobre a ‘organizacio dos sistemas agroalimentares. Com efeito, Goodman (2004) cti- ticou o excessive “localismo” da abordagem, problema que se tornou ainda ‘mais instigante, considerando-se as novas dindmicas de transnacionalizagio dos mercados alimentares, as quais, sobretudo para os autores neomarxistas, demandam um novo olhar para os processos mais estruturantes do capita- lismo agrério (Edelman; Borras Jr, 2016; Bernstein, 2016). Foi justamente em virtude dessa compreensio que, nos iiltimos anos, as narrativas socio-histéricas recuperaram espago nos estudos agrérios. Den- tre elas, a abordagem dos Regimes Alimentares, inicialmente proposta por Harriet Friedmann Philip McMichael (1989), tornou-se uma das mais disseminadas.? Retomando formulagées sobre o sistema-mundo (Wallers- tein, 1974), conciliadas com teorias neomarxistas e regulacionistas (A. 1995; Harvey, 2004), a abordagem foi inicialmente construida para pensar “o papel da agticultura no desenvolvimento da economia mundial capica- lista, € a trajetéria do State system”. (Friedmann; McMichael, 1989, p. 93). No entanto, com o passar do tempo, a abordagem tornou-se uma ampla ¢ hheterogénea plaraforma global para a renovacio dos estudos agrérios, conju- gando esforgos de pesquisa sobre as foreas estruturantes do sistema agroali- mentar globalizado. Apesar das difetencas em termos de enfoques analiticos que a abor- dagem dos regimes alimentares compreende (McMichael, 2016; Niederle, 2017), uma unidade pode ser encontrada na identificacio de trés grandes perfodos histéricos de establidade dos mecanismos de acumulacéo-regula- fo capitalista na agricultura (Quadro 1.2). O primeiro (1870-1920) é defi- nido como Imperial-Colonial e caracteriza-se pela transformagso dos paises 2 Vide edges reentes de revises come Journal of Patan Suir eJournal af Agparian Change, No Bras inorporago dese reerencial pode ser visa, por exemplo, nos lives de Henry Bernstein (2011) Philip MeMichae (20164) taduzids e publicadosa partie de uma parceria entre a Sie "Estudos Camponeses e Mudanga Arivia’ da Unesp ea “Série Estudos Rural da UFRGS. periféricos em exportadores de matérias-primas (borracha, algodéo, linho) ¢ ‘alimentos (aciicar, café) para sustentar a emergente classe industrial europeia. (Organizado sob 2 hegemonia do Império briténico, este regime estabeleceu suas bases institucionais no padrio-ouro e seus fundamentos morais na ret6- rica do livre-mercado (McMichael, 2009). O segundo regime consolidou-se nos anos 1940, com a reestabilizagio dos mercados globais no pés-guctra, € é4definido pela formacio de um novo padrio mercantil-industrial de acumu- lagio-regulagZo sob controle dos Estados Nacionais. Fundado na construgéo do moderno complexo agroindustrial de gros, ele foi formado sob a insfgnia da Revolugio Verde ¢ das priticas agricolas e alimentares que ela disseminou. No plano institucional, o império britanico cedeu lugar & hegemonia ame- ricana, o “padrio-ouro” ao ‘padrio-délar” (regime de Bretton Woods) ¢ 0 liberalismo ao desenvolvimentismo (McMichael, 2013). terceiro regime € objeto de interpretacoes distintas no que tange sua existéncia, periodizagéo, nomenclatura e configuragio. Por um lado, Friedman (2005) sugere que ele define apenas uma configuragio emergente, Quadro 1.2, Principals caratertsticas dos Regimes Alimentaes TRegime Ti Regime TIT Regime IMPERIAL. | MERCANTIL. | NEOLIBERAL- covontaL | INDUSTRIAL | —FINANCEIRO (1870-1920) _| _ (4940-1970) 980. Centro de a ssados Unidos | Estos Unidos Poder ee : China Estados colonizdores| Empress Ser nanciro Lideranga | associados cle | —agroindustisis |e corporactes agréria associadasao Estado | _tansnacionss Modo de Impérios Exados Corporagies Regulagio | __Colonias__|__Nacionais__|_destrritorializadas Tdeotogias | Liberalismo.e Nacional ‘Neoliberalismo dominantes Colonialismo Desenvolvimentismo Global Sistema Pedrio-Ouro Padrio-Délar Délar Flexivel monetirio is Paradis icions Industrial Biotecnolégico ‘Tecnolégico aaeee Bi ; Planztion de | Matérias-primas | Alimencago, Fibs, Agricultura | exportacio induswiais Energia ae labora a partir de Sener, Shubere eBcer (2016), Friday eMMihsel (1989) MeMicael (2016) Frieden (2016. 2 ainda sem contornos totalmente definidos. Isto se explicaria em virtude da capacidade de resiliéncia do segundo regime (Fordista) em contornar suas crises e readaptar-se (Niederle, 2017). A propria emergéncia de um “regime alimentar corporativo-ambiental” demonstratia a capacidade do “capitalismo verde” de apropriar-se das criticas socioambientais. Por outro lado, McMichael (2005) sustenta que os processos de transnacionalizacéo, supermercadizagio e financeirizacio jé teriam se tornado a ténica de um nove espirito do capitalismo, levando A emergéncia de um “regime alimentar corporativo-neoliberal”. (Os regimes alimentares séo representados por uma sucesso de estrucuras regulat6rias que organizam as relacées de produgio e circulagio de alimentos « matérias-primas. Embora carregue legados dos regimes anteriores, o regime alimentar corporativo express “um novo momento da histéria politica do capital, que pode ser conceituado como o ‘projeto da globalizacio neoliberal” (McMichael, 2016b, p. 71). Assim, segundo o autor, 20 invés do projero desenvolvimentista do pés-guerra, segundo o qual os Estados regiam 105 metcados, agora os “Estados servem a mercados” (ibidem, p. 72). Isto se deve & crescente centralizac4o do poder pelas corporagées transnacionais e pelo capital financeiro, bem como a légica normativa da liberalizagio impulsionada pela agenda de reformas imposta pela Organizacio Mundial do Comércio (Bonanno, 2017; Weiss, 2007). Por sua vez, as reagGes a esta indica seriam basicamente capitaneadas pela artculagio de movimentos sociais agritios agindo, também eles, em escala transnacional, como é 0 caso da Via Campesina, considerada por McMichael (2016b) a principal expressio de resisténcia ao avanco das corporagées alimentares. ‘Autores como Otero (2012) ¢ Torrado (2016) associam este novo regime & emergéncia de uma narrativa pés-neoliberal, a qual no deve, de ‘modo algum, ser associada a uma ruptura com o neoliberalismo. Ao contré- rio, 0 pés-neoliberalismo reflete o entendimento de que o Estado ¢ a acio politica afetam os processos econdmicos de maneira decisiva, mas Ihes atri- bui uma condicio subjugada aos interesses das conporagées e suas ldgicas financeiras ¢ industriais (Bonanno; Wolf, 2017). Sendo assim, ao invés de falat-se em “desregulacio”, 0 correto seria apontar os processos de neoregu- lagao, por meio dos quais o Estado promove politicas e regras que facilitam. ©.controle corporativo, o dominio das multinacionais do agronegécio e uma nova dindmica que virios autores tm denominado “agro-extacvista! ou “neoextrativista’ (Acosta, 2016a; Harvey, 2004; loris, 2017). A abordagem dos regimes alimentares tornou-se atraente porque per mite caracterizar um conjunto de signos que, sobretudo a partit dos anos 2 2000, passou a definir os ‘grandes’ fendmenos sociais no campo da agricul- tura ¢ da alimentagéo, tais como: transnacionalizagio, supermercadizacio, financeirizacio, apropriagao da terra e recursos natutais. A relevancia destes fendmenos ajudou a fortalecer a critica que a economia politica, antes numa posigio de defensiva tedrica, passou a desferir contra os pensadores “pés- smodernos € neoempiricistas” que, descartando a andlise dos regimes ali- mentares, retrocederam & anilise de estudos de caso “andmalos” e “locais”, 0 aque representaria, segundo McMichael (2016b, p. 27), uma espécie de “par- ticularismo agrério que, ao se livrar do supérfluo, dispensava o essencial”. De acordo com 0 autor, “enquanto o pés-modernismo promove o localism abstrato, 0 conceito de regime alimentar concretiza as relagbes histéricas” (idem, p. 27). No entanto, ao mesmo tempo em que se generalizou, essa abordagem também comegou a ser objeto de recorrentes questionamentos (Quadro 1.3). As principais criticas apontam para a sobrevalorizacao das rupturas insticucionais em decrimento das transig6es, a caréncia de evidéncias empl- ricas, 0 excessivo ocidentalismo da periodizacdo dos regimes, o dualismo das relagdes de poder, a tendéncia a um raciocinio prescritivo ¢ a confianca exagerada na capacidade de reagio dos movimentos sociais agritios (Nic- derle, 2017a; Wilkinson; Goodman, 2017). Em suma, ao se reaproximar do esteuturalismo, a abordagem dos regimes alimentares teria resolvido 0 “problema da generalizagio” que, de fato, néo tem resposta satisfatsria nos cestudos sobre estilos de agricultura, mas a0 custo de, novamente, perder de vista a heterogeneidade. Isto se expressaria na construgéo de uma imagem cexcessivamente unitdria do sistema agroalimentar ¢, por consequéncia, dos mercados, os quais, nesta abordagem, configuram-se como a estructura fun- damental de acumulacio-regulacio (¢, portanto, de dominagio) nas socie- dades capitalistas. De acordo com Wilkinson e Goodman (2017, p. 278), “o quadro homogeneizante dos ‘regimes’ e das ‘estratégias hegembnicxs fracassa em reconhecer a diversidade das trajetérias agrérias ea variedade da paisagem institucional existentes desde a segunda metade do século XIX.” No entanto, como nocamos anteriormente, nese momento, o mesmo tipo de problema também jé transparecia em alguns autores que, outrora cestavam mais preocupados em compreender a fragmentacao do mundo rural (Long; Long, 1992). Exemplo disso é 0 modo como Ploeg (2008) foi buscar ‘em Hardt e Negri (2001) a nocéo de Império para explicar as tendéncias mais abrangentes do capitalismo agrério. A mudanga de foco deste autor, cujos escudos destacam prioritariamente 2 diversidade das dindmicas locais da agricultura, foi coerente com as reinterpretag6es sobre os efeitos da globa- Quadro 1.3. Cras digas genealogia dos Regimes Alimentares, TRegime TRegime TIT Regime IMPERIAL- ‘MERCANTIL NEOLIBERAL- COLONIAL INDUSTRIAL FINANCEIRO ~|- (1870-1920) (1940 ~ 1970) (1980-) Privilegia uma visio Revolugio Verde ocidental do Sisema- | se isseminow com area dinimicas do Norte Global Mando cspecificidades regionals Desconsidera que as | Exagerinflncia dos | Desconsiders selagoes Sule telages Cento-Petifria| EUA e da ajuda alimentar | S#!©aseensio dos BRICS foram diferentes de um americana Ascensio da China contexto parao outro | URSSeChina(ardia- | Solos problemas para a ‘Auibuiimporeincia | men) aplcacam suas pré- petiodizagio cxagerada i hegemonia | _prias RevolugSes Verdes | Desconsiera dinsimicas ee f i regionals (sobrerudo do brit Minimiza imporedncia das Desconsidera | esraégas protecioniaas, | _CO”*EXTO asidtico) diversidade internat | dos governs nacionais Pouco espago para os Europe e seus sistemas | Desconsidea o fato de |, Sistemas Alimentares de producto ‘que 2 ampla maioria dos | “Utermativos ou Localizados Desconsidera | agriultors no aderiu ao | Supetestima formas eadi- diversidade inteena nas | modelo, ou 0 fez apenas | _ Rais de resisténcia via calbnias Feralas rmovimentos scisis agricios Fant: labore pride Node (2017) Wilt Godan 2017), lizacéo, bem como uma réplica as criticas que recafram sobre o “localismo” de suas andlises (Goodman; Dupuis; Goodman, 2012). Ademais, ela tam- bém revelow um esforgo para evitara mecanarrativa dos regimes, na medida em que a nogio de Império define uma configuragéo mais fluida e contin- gente de relagées de controle em escala global. Para Hardt e Negri (2001), em contraste com o imperialismo —e, por- tanto, com as discussbes contemporineas sobre neoimperilismo (Harvey, 2004) que prevalecem nos debates sobre regimes alimentares — 0 Império indo estabelece um centro territorial de poder, nem se baseia em fronteiras ou barreiras fas. Trata-se de “um aparelho de descenttalizacéo e desterti- torializacio” que “administa entidades hibridas, hierarquias flexiveis e per- mutas plurais por meio de estruturas de comando reguladoras. As distintas cores nacionais do mapa imperialista do mundo se uniram ¢ mesclaram, num arco-iis imperial global” (Hards; Negri, 2001, p. 12). Uma das con- sequéncias desta compreensio — e que ratifica o afastamento em relacio as roposicdes em termos de imperialismo e regimes alimentares —, € 0 menor Peso que estes autores conferem ao Estado e aos movimentos sociais orga- nizados como atores centrais de sustentagio ou contestagio do capitalismo contemporineo. Hardt e Negri preferem destacar 0 poder das corporagdes transnacionais ¢ as reag6es da “multidio”, esta dtima considerada como 0 principal foco da resistencia a0 processo de privatizagéo dos bens comuns censejado pela dindmica imperial. didlogo que Ploeg (2008) estabeleceu com estes fldsofos marxistas pos-modernos sobre a dindmica contemporinea do capitalismo global permi- tiu-lhe apresentar o Império como “uma mistura impressionante e confuse de novos elementos” (Plocg; 2008, p. 256). Como afirma o autor, esta estrutura “nio diz respeito primeiramente a produtos, pessoas, servicos, recursos, luga- tes, e assim por diante, nem € composto por esses elementos.” (ibidem, 279). “Trata-se de “um conjunto complexo, multifacetado e em expansio cada vez ais monopolist de ligagées (isto é, uma rede coercitiva) que coloca proces- s0s, lugares, pessoas e produtos em contato de uma forma espectfica.”(ibidem 279). Note-se, todavia, que, apesar da incrivel maleabilidade do conceito, ainda prevalece a imagem de uma estrutura “monopolista” de controle, a nova “Superestrutura dos mercados globalizances”, contra a qual supostamente se exguem os movimentos de “resisténcia camponesa’, cujas priticas sio simila- res aquelas que imaginam os aurores de Mulridéo (Hardt; Negri, 2004). ‘Como destacam Schneider e Niederle (2010), segundo esta abordagem, para além das grandes mobilizacbes de massa, as estratégias de resisténcia 20 Império se desenvolvem no terreno da organizacio dos processos de produ- fo e das inovagées tecnoldgicas e institucionais, um terreno que, 20 longo do tempo, foi subestimado enquanto espaco de “resisténcia camponesa”. De acordo com Ploeg (2008), as discussées sobre a resiliéncia do campesinato sempre estiveram pautadas pelas “lutas abertas” empreendidas por suas orga- nizagdes coletivas ou, em menor grau, pelas formas de resisténcia cotidiana tais quais descritas por James Scott (1985). No entanto, segundo 0 autor, a reprodugio desta forma social depende significativamente da constitui- io de “novidades” técnicas ¢ organizacionais que permitam aos agricultores conquistar o nivel de autonomia que necessitam para sua reproduco social (Ploeg, 2017). Estes mecanismos de “resisténcia de terceiro tipo” fundamen- tam o que autor chama de “recampesinizagio”, um proceso qualitativo de ‘materializacio de um “modo camponés de fazer agriculeura’.! ‘Tor meio de prdtcas inovadoras consteu-se um processo de veconexdo ene agrcalera, socie- dade e nanurera (co-pradusio) de modo diferente daquele projecdo pelo moddo dominant. ‘Acaracerica unificadora dessa pritica & 0 modo como se dé a construgso da auconomia em ‘ontextos de erescente mercantizasio e vulnerabilidade. A lua por autonomia rorns-se, por- tanto, odenominsdor comum da “condigio camponess”contemporinea (Ploeg, 2017). a Nos iiltimos anos, ambas as compreensées do sistema agroalimentar, Iocalistas ¢ globalistas, buscaram afastar-se do dualismo que opée, de um Jado, um regime coeso, unitério, atuando globalmente como um verdadeiro *Sistema-Mundo” ou um “Impétio”, e, de outro, varias alrernativas locali ~ das, estilo diferenciados de agricultura que configurariam miitiplos e erré ticos nichos que resistem & pressio do sistema. Uma das vias mais proficuas que este debate seguiu foi a aproximagio que ambas as vertentes buscaram, com a Perspectiva Multintvel (PMN) dos estudos sobre transicio sociotge- nica (Marques; Ploeg; Dal Soglio, 2012). Isto é evidente no modo como Friedmann (2016), uma das primeiras formuladoras da abordagem dos regi- ‘mes alimentares, descaca a contribuicéo metodolégica dos modelos de tran- sicio sociotécnica para a abordagem dos regimes alimentates: Por cerca de cinquenta anos, Geels (2002) tem sido um analisa lider das “wansigBes sociotécnicas", Ele questiona como sistemas estiveis ("regimes") do afetados, desde dentro, por “nichos” «, desde fora, pela instabilidade na “paisagem”. Nichos emergem como novas coisas para fazer out novas mancitas de fazer coisas antigas. Quando a paisagem (usada metaforicamente para def- airo “contexto”, o sistema msior ou a “toralidade”)é relativamenteestivel, os nichos so uma fonte de reforma do regime; eles sio absorvidos ou mortem, Uma transigio pode acontecer quando a paisagem se torna instdvel, compro metendo o antigo regime e permieindo que alguns nichos se transformem em tum novo regime. Essa perspectiva recuse a teleologia. Em ver disso, cria uma ‘mancira sistemdtica de observar miltiplos resultados posstveis & medida que ‘um regime falha, mas também mobiliza suas defeses. Isso concretiza 0 método de comparacao incorporada, (Friedmann, 2016, p. 686). Formulada por pesquisadores vinculados ao setor industrial, a PMN explora interfaces entre a teoria evoluciondtia e os estudos sobre tecnologia (Geels, 2002; Marques, 2009). Uma das suas principais contribuigdes foi a ctiagio de um modelo com trés niveis heuristicos, que compreendem os conceitos de paisagem, regime e nicho (Figura 1.2). Embora o conceito de regime sociotécnico incorpore uma referéncia explicita a normas ¢ regras que estruturam padrées dominantes de relagées, cle também diz respeito 2s estruturas materiais € téchicas que organizam os processos de produgio, as bases de conhecimento tecnolégico, as priticas de engenharia ¢ as infraestru- turas tecnol6gicas. Nesse sentido, guarda certa singularidade em relagéo a0 conceito regulacionista de regime alimentar. O “regime” é o nivel dos padroes dominantes e estiveis de relacbes de producéo, no qual acontecem inovagées apenas incrementais, que néo alteram substancialmente as configuragées de poder e dominacio estabele- - sng: Alrerag6es substanciais dependem, por um lado, da capacidade que as outs produzidas nos “aichos” postuem pare desesablizar a esrurura tere enien institucional do regime. Nichos sio dominios espectcos de ‘fio em que se produzem inovaes raicais. Definidas por muitos auto- a pmo “novidades” (Brunori er al, 2009; Gazolla, 2012; Ploeg, 2008) wa diferenci-las daquelas inovagSes que ocorrem em consondincia com @ Figs do regime, ii inovaées podem hospedar as sementer da rans (sherk; Ploeg, 2004). Para tanco, elas precsam ser cpazes de, primeir- cee iar uma especie de escudo que Thes permit sobreviver is prssbes regime ea partir da, alavancar processos de sealing up que lhes pemitam oe ecsiramente a configuracio do regime (o papel das politica piblicas serena em ambos 05 c4808). Por outra lad, tanto o regime quanto 0 nicho podem sr profindamente impacts por transformarées na palsgem, veel que represen a.ariculagéo mais ampla entre as estrucuras de acumu- taelo regulagio em um determinado momento histrico (Marques, 2009). No enanco, este didlogo com a PMN nos encaminha para trés ques- sionamentos principais, O primeizo esté associado ao aspecto diacrénico da ineerpretagio construida pela ideia de regime alimencar. Os e6ricosregu- haconists privlegiam 0s momentos de ruptura histrica (crises), of quais ‘do geralmente marcados por eventos externos 20 sistema agroalimentar (ou fea. esriam associados a0 nivel da “paisagem macroinsticucional”) Ito & perceptivel nos Faores que marcam a passagem de um regime pars outro fecincidindo com as crises do capitalismo). No entanto, esa interpreracéo dos “choques externos” tem sido questionada por autores que discutem os procesos de transigio nas formas de ordenamento social, e que privilegiam tim olhar para os Fatoresinternos de mudanga, asociados & habilidade dos arores para dinamizarem alteracbes no regime, sem que isso derive de rup- turas institucionais exégenas (Scott, 2008; Thelen, 2005;). Isto implica uma Ieiura menos untdria do regime. Como destaca Marsden (2016), remos que reconhecer que o ‘regime sociotécnico’ neoliberal dominante é em si mesmo muito mais vulnerévele potencialmente ‘descentrado’” (© segundo questionamento relaciona-se com o aspecto sincrOnico das smudangas socais. Conferindo pouca atengao aos sistemas agroslimencares localizados, 2 abordagem dos regimes alimentares revela dificuldade para explicar como esas experiéncias operam e se expandem em face das presses globais. © problema é que, 20 construir uma representagio excessivamente Fomogénea tanto do regime quanto dos contramovimentos que 0 contestam, a abordagem reforca a divisfo dualista critcada acima (Morgans Marsden; Murdoch, 2009; Sonino; Marsden, 2006). Tudo 0 que escapa & 2 representagio do regime é tratado imprecisamente como “nicho”. E, neste caso, restam somente trés opcées para as formas alternativas de produgao € consumo: (a) desafiar o regime e alteré-lo (conversio); (b) set apropriada pelo regime (convencionalizacéo); ou (€) manter-se eternamente como nicho (iiarginalizacéo) (Niederle, 2017), ‘Como diversos autores jé destacaram, a PMN apresenta intimeros limites, quando se trata de analisar as complexas interagées entre os niveis (Smith, 2007). De acordo com Marques, Ploeg ¢ Dal Soglio (2012, p. 42), “as dificuldades em estabelecer conexoes entre um nicho de inovagéo © 0 regime sociotécnico representam nao somente uma barreita & transigo, mas também uma érea teérica obscura e desconhecida”. Para tentar solucionar ste problema, Elzen, Leeuwis e van Mierlo (2008) rompem com a ideia de niveis hierérquicos, ¢ apresentam uma caética interpretagéo de nichos, regimes ¢ paisagens arranjados de maneiras sobrepostas, No entanto, isso torna dificil compreender 0 que define cada um deles: 0 que é um nicho dentro de um regime, se nao 0 préprio regime? Na verdade, as mudangas propostas por estes autores slo tio radicais que é dificil identificar o que resta da abordagem original, a ndo ser uma confusa sobreposigio de espacos insticucionais onde os atores circulam. Finalmente, cabe norar que, em geral, os estudos que langam mio da PMN conferem pouca ou nenhuma atenco para a “paisagem”. Exemplo disso 6a definigéo apresentada por Rip e Kemp (1998), para quem. paisagem % alguma coisa ao redor de nés, algo através do que podemos viajar e do qual, metaforicamente, nés somos parte e que nos sustenta’. De forma um pouco mais precisa, mas, mesmo assim, bastante abrangente, Geels (2002, p. 1260) define a paisagem como “conjunco de fatores heverogéneos, tais como o prego do dleo, crescimento econdmico, guerras, emigrasio, politica externa, coalizdes, valores culturais € normativos, problemas ambientais. Nesse caso, seria necessério estabelecer de maneira mais precisa as fronteiras entre paisagem e regime, evitando que eles se confundam ou que se criem gencralizagbes abusivas que nfo permitam definir como, exaramente, estes niveis se interconectam dinamicamente. 1.3 A trajetéria da agricultura brasileira: introdugao ao argumento ‘A situagao da agriculcura brasileira durante primeito regime alimentar parece congregar a maioria dos elementos para legitimar a abordagem proposta por McMichael (20162). Afina, ali se constituiu um modelo de (plantation exportadora estreitamente vinculado aos interesses britinicos, ‘cujas empresas controlavam estradas de ferro, portos, bancos, companhias acucareiras © cafeciras, ftigorificos e largas extensées de terra (Linhares; Silva, 1979). Uma das principais evidencias disso & que foi contra os cartéis britinicos e a politica do daisez-ftire do governo da Repiblica Velha (1989- 1930) que se ditigiram as ceticas da emergente burguesia industrial nacional. No entanto, jé no inicio do século XX, 0 domfnio britinico era com- partilhado com empresas francesas e americanas, bem como com 2 oligarquid nacional. Ademais, intimeras concrovérsias marcam a historiografia brasileira com relagio & tese “imperial-colonialista”. Sustentada por economiscas mar- xistas como Caio Prado Junior (1942), a imagem predominante do sistema colonial, e do sentido da colonizacéo como parte da expansio do capia- lismo comercial, foi colocada em questio por Fragoso ¢ Florentino (2001). Privilegiando os processos endégenos de acurnulacio capitalista, os autores ‘apontam para um mosaico de formas néo capitalistas de produgao como fandamento da formacéo social braslei De todo modo, foi a imagem da plantation colonial que se institu- cionalizou na historiografia, 2 qual contribuiu decisivamente para organi- zar 0 tempo € 0 espaco com base na sucessio dos ciclos das commodities de exportagio (minério, cana-de-aciicar, algodo, borracha, café). Nao falta cevidéncias para sustentar esta narrativa. No final do primeiro regime, entre 1921 € 1930, o café era responsivel por 70 % do valor total das exportag6es brasileira (49 9 destinadas & Europa, 26 % aos Estados Unidos). Portanto, adependéncia da balanca comercial a um tinico cultivo é um fato inconteste como veremos & frente, nio apenas neste primeiro regime, mas em toda trajetéria da inserco brasileira na economia mundial. Contudo, a conformacio da balanca comercial no permite generali- zagbes sobre a dindmica interna da agriculrura e do meio rural. O Recensea- mento Agricola de 1920, 0 primeiro realizado no pai, ratificou a importincia do café, na medida em que este representava um tergo da érea cultivada ¢ um quarto do valor da producio. Entresanto, sua presenga limitava-sea 20% dos estabelecimentos rurais, pois estava territorialmente concentrado na regio sudeste, que abrigava mais de 90 % dos cafezais brasileiros. Por sua vez, 08 a produtos indispenséveis para o consumo alimencar doméstico apresentavamn uma incidéncia superior entre os estabelecimentos. Destacavam-se 0 milho (presente em 76 % deles), seguido pelo feijéo (63 %), 0 arroz (37 %) ¢aman- inca (26 %). A producio de milho, inclusive, supcrava a de café em termos ~ de drea e praticamente se igualava no valor da produgao (IBGE, 1924). Como destaca Belik (2015, p. 12), com relacio ao inicio do século XX, [..J no que sc refere aos géneros bisicos consumidos pela populacio,além das chécaras prdximas dos grandes centros que forneciam alimentos para serem, vendidos nas feiras, armazéns de secos e molhados nas quitandas, havia uma produeio comercial (além dos limites do latifindio) de géneros como o milho, fo, ar «charge, Tio io er produido em propre iar? que se diferenciavam em muito do setor exportadot a que os pesqusadores geralmentecereferem como? agictuabraiiéra Nos anos 1980, intimeros estudiosos rurais brasileiros deflagraram um, esforco sistemético para demonstrar que a plantation nunca deixou de estar cstreitamence articulada a uma variedade de estilos de agricultura doméstica, (8 quais se desenvolveram tanto no interior das fazendas, quanto nas suas adjacéncias (Garcia Jr., 1983). Como descreve Maria Yeda Linhares, uma das mais renomadas historiadoras do Brasil rural, para contornar 0 equivoco de uma representagZo excessivamente homogénca, um esforco de pesquisa foi colocado em marcha com o objetivo de “caminhar am da plantation, em busca da heterogencidade” (Linhares, 1995, p. 83). Essas pesquisas retomaram elementos que, em alguma medida, jé esta- vam presentes nas anilises de Celso Furtado. Em Formagéo Econémica do Brasil este economista, expoente da Teoria da Dependéncia, analisou as ati- culagées entre 2 grande propriedade e a “economia de subsisténcia’, esta tlkima escrururada de maneira subserviente primeira, mas ampliando-se a cada ctise que prenunciava a faléncia do primeito regime (Furtado, 1970). Assim, 0 reconhecimento da diversidade dos sistemas agtiios locais, dos grupos indigenas, das comunidades negras libertas, ¢ das intimeras colénias de imigrantes europeus de diferentes nacionalidades permitiu “rever a rela ao entre lavoura de alimentos e lavoura comercial de exportacéo, 0 que implicava reavaliar 0 cardtet monocultor e exclusivo da colénia como um destino ou uma imposigéo da classe dominante metropolitana” (Linhares, 1995, p. 84). O fim do primeiro regime coincide com uma mudanga radical no capi- talismo mundial. A crise de 1929 foi faror fundamental para se compreender este momento histérico, corroborando a articulagéo entre a produgio cafe- «ira brasileira € a economia-mundo. Mas ha outros elementos politico-insti- tucionais igualmente relevantes, mas menos considerados na literatura sobre (0s regimes alimentares. No Brasil, a Revolugio de 1930 permitiu a ascenséo go poder de Gettilio Vargas (que permaneceria até 1945), © que contrapés parcialmente 0s interesses da oligarquia cafeeira. A partir dal, o pais langou-se fem um esforgo, coordenado pelo Estado, de urbanizagZo, industrializagso emodernizagio. A produgio de commodities primérias para exportacio néo deixou de ser privilegiada, mas foi, por um lado, articulada a uma estratégia nacional-desenvolvimentista e, por outro, contraposta pelas crises domésti- cas de abastecimento e pelo agucamento da fome (Castro, 1984) (Os debates sobre abastecimento interno revelam um aspecto pouco reflesdo na discussio sobre a configuragio do primeiro regime, qual seja, a importincia da colénia como importadora de alimentos da metr6pole (baca- ihau, trigo, feijéo, bacata). Em alguns anos, 0 montante monetirio impor- tado pelo Brasil chegou inclusive 2 superar as exportagées (MDIC, 2016). ‘Ademais, o controle que as empresas estrangeiras exerciam sobre a distribui- éo alimentar ia muito além da dinamica do comércio global. Ele também se associava & dinamica doméstica da economia brasileira. Com efeito, as disputas politicas mais importantes & 6poca focalizavam os efeitos da reten- cao dos estoques por empresas estrangeiras que lucravam com a inflagio € 2 carestia alimentar (Linhares; Silva, 1979). Nao hé como mensurar, mas ces tipo de pritica pode ter produzido efeitos to ou mais importantes para a desestruturagao dos sistemas agroalimentares localizados do que a ajuda alimentar norte-americana produziria a partir dos anos 1950 (um faror que prepondera no debate dos regimes alimentares). (O segundo regime foi marcado, no Brasil, por esforcos de governos na- cional-desenvolvimentistas em promover a industrializacio via ‘substicuicio de importagées’. Em um primeiro momento, a prioridade que os EUA con- cederam ao Plano Marshal na Europa abriu espaco para a América Latina experimentar teotias e politicas industrializantes, capitaneadas pela Co- missio Econémica para a América Latina (Cepal). No entamto, isso nio sig- nificou um rompimento com o novo centro do poder global e, jé.em meados dos anos 1950, a cooperacao com os BUA intensificou-se. A ajuda alimentar para combater o problema ainda insoltivel do abastecimento foi apenas um dos aspectos de uma plataforma mais ampla para “afastar o risco de contigio das ideologias estranhas & América Latina’ (Lessa, 2008) 5 Oc acordosenvolveram diferentes programas de cooperacio: Comissio Bralelro-Americana de Enudos Econdmicos ~ Missfo Abbink (1948); Comissio Mista Brasil ~ Estados Unidos (1951- 1953}; Operago Pan-Americana (1958-1961) e Alianga para o Progreso (1961-1969). Juntamente com alimentos industrializados, veio o capital estrangeiro. Entre 1955 ¢ 1963, o valor dos investimentos estrangeios diretos (FDI) no Brasil cotalizou US$ 497,7 milhoes, sendo que 73 96 deste valor concentrou- se entre 1957 ¢ 1960. A maioria dos recursos proveio dos EUA (43,5 %), ~"seguido de Alemanha (18,7 %), Suica (7,3 %), Inglaterra (4,8 96), Japéo (3,3 %) ¢ Franga (3,1 %). A quase totalidade do FDI foi para a industria de transformacio (97,7 %), sobretudo para o setor automobilistico, 0 qual foi a principal aposta do Estado desenvolvimentista (Caputo; Melo, 2009). A inverséo direta na agricultura foi menos expressiva. A producio nacional de tratores, por exemplo, durante algum rempo permaneceu capitancada pela inckistria nacional com suporte do Estado, Na agriculeura, a aproximagao com o modelo americano iniciou com 2 formalizacio, em 1948, de um acordo de cooperagio entre o governo bra- sileiro e a Fundacéo Rockefeller para o desenvolvimento de tecnologias agr- colas, o que ¢ refetido como a origem do modelo de extensio rural do pais, depois institucionalizado na Associagio Brasileira de Crédito ¢ Assisténcia Rural (ABCAR), criada em 1956. Mas foi no perfodo ditacorial (1964-1985) que o processo de modernizacdo da agricultura brasileira acelerou. O motor deste processo foi o Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), criado em 1965, sob o lascro de vultosos empréstimos dos bancos americans. Junto com isso, veio a criagio do sistema de pesquisa agropecudria (Embrapa), em 1973, com considerdvel ntimero de doutores brasileira egressos de univer- sidades americanas. Um ano depois, também foi criada a Emptesa Brasileira de Assisténcia Técnica e Extensio Rural (Embrater), a qual consolidou 0 modelo difusionista norteamericano. A ctise do segundo regime, que novamente coincide com um momento de reestruturagio da economia capitalista global, revelou-se no final dos anos 1970. Os “choques do petrélec” (1973 ¢ 1979) e a crise da divida tornaram insustentavel 0 padrio de intervengio do Estado, No Brasil, a “década perdida” (anos 1980) foi acompanhada do desmantelamento das politica agricolas, de ‘entativa fruscradas de restabilizacio macroeconémica paraenfientar@ inflagio (Planos Cruzado Ie II, Bresser, Veréo), eda reemergéncia dos movimentos sociais + esindicais, com particular importincia para aqueles de origem agritia, Estes ‘movimentos néo apenas potencializaram a queda do regime militar, em 1985, ea construgio da nova Constituicio Federal, em 1988, como, posteriormente, tornaram-sc fundamentais & criagéo de uma nova geracéo de polticas pibicas espectfcas para a agricultura familiar (Grisas Schneider, 2015). ‘As lutas sociais pelo reconhecimento da agriculrura familiar trouxeram 4 rona evidéncias sobre 0 quio desigual foi o processo de modernizacéo, 0 qual prvilegiou a producto de commoditiese 0s grandes produtores situados, sobretudo na regio centro-sul do pais (Leite, 1998). Apesar disso, as formas domésicas de agricultura mantiveram-se amplamente predominance, haja vista, por exemplo, o semifrido nordestino, onde se encontra 1,7 milhéo de estabelecimentos agropecusrios (um tergo do total de estabelecimentos brasileiros), a maioria deles reproduzindo praticas tradicionais de produgio de subsisténcia, O mesmo pode ser identificado em parcela expressiva da regiéo amazinica e, ainda que com menor expressio, nas regiGes mais afetadas pelas politicas de modernizacao. Com relagio & emergéncia do terceiro regime, 0 contexto brasileiro pode, novamente, ser tomado como exemplar. Um dos processos que ganhou ainda mais amplitude foi o avango do capital financeiro e das corporagées transnacionais (Escher, 2016; Sauer; Balestro; Schneider, 2018; Wilkinson; “Wesz Jr; Lopanne, 2016). Enquanto, em 1990, seis das dez maiores empre- «as de alimentos que atuavam no Brasil eram controladas por capital nacional Flexor, 2006), atualmente, essa proporsao se inverteu. Em 2016, eram seis as firmas estrangeiras entre as dez primeiras. Mesmo assim, paralelamente, houve um processo de expanséo de empresas brasileiras (como JBS, Marfrig, BRE, Camil e Amaggi) tanto nacionalmente como para outros paises, com destaque para a América Latina (Mackey, 2015). ; ‘A presenca de firmas transnacionais também atingiu o setor de varejo, com um répido e intenso processo de concentracio, 0 que levou a litera- tura a falar na “revolucio dos supermercados” (Reardon; Berdegué, 2002; Reardon; Timmer; Berdegué, 2005;). Este movimento nao foi diferente no Brasil. Enquanto, em 1994, as erés maiores firmas controlavam 18,3 % do facuramento bruto nacional, vinte anos depois, este percentual saltou para 47,4 %, com destaque para as duas primeiras posigdes, ocupadas pelas empresas CBD (Companhia Brasileira de Distribuicio) e Carrefour. Atual- menie controladas por capital francés, em 2014, elas respondiam juntas por 37,4 % do mercado (Abras, 2016). Entretanto, mesmo com este censtio, diferentes autores (Gaspar; Borgato; Lima, 2013; Flexor, 2014) tém identifi- cado a manutengio e, em alguns casos, o crescimento dos pequenos estabe- lecimentos varejistas (mercados, padarias, agougues, fruteiras, etc.). Outrora considerados incapazes de concorrer com os grandes supermercados, estes ‘empreendimentos tém apresentado vantagens locacionais (situados em bair- tos residenciais, periferia, pequenos municfpios) e/ou conseguem oferecer produtos diferenciados que atraem segmentos especificos de consumidores. ‘A segmentagio e diferenciacéo dos mercados agroalimentares também ganhou espago nas ilkimas décadas & luz da preocupacio com os temas da 4s satide, sustentabilidade, qualidade, tradigao e procedéncia. Isso criou, res- gatou ¢ fortaleceu priticas de producéo e consumo ligadas & agroecologia, circuitos curtos, produgio artesanal, indicagbes geogréficas, comércio justo € mercados institucionais (Gazolla; Schneider, 2017). “Em vez da comida de sénbum lugar, cultivada por produtores desconhecidos, embalada ¢ trans- portada através de longas distincias por grandes corporagdes, ganham visi- bilidade outras priticas ~ antigas, novas ou renovadas ~ sinalizadoras de um jeito diferente de producit, distribuir, escolher, valorizar e consumit” (Sch- mitt, 2011, p. 4). Cabe destacar igualmente que, embora estes processos sejam considerados 2 tOnica das redes alimencares aleernativas que abrem «espago para os pequenos agriculrores familiares, eles também adentraram 0 mundo das commodities (Busch, 2011). Um dos fenémenos mais emblemd- ticos nesse sentido refere-se ao “esverdeamento do agronegécio” (Bernstein, 2013; Guivant; Spaargaren; Rial, 2010). Foi nesse contexto que a sociologia da agricultura ¢ da alimentagio reorientou seus interesses para a qualidade (Goodman, 2003), revelando a légica emergente de “acumnulacio flexivel” no setor agroalimentar ~ faro que ajudou a consolidar a critica & abordagem dos regimes alimentares. No entanto, uma década depois, este fendmeno j4 parecia evidenciar seus limites. A retomada das commodities colocou em xeque a capacidade das estratégias particularistas (¢ localistas) em contrapor os novos processos de transnacionalizagao, financieirizacio, estrangeitizacio ¢ espoliacio, ¢ a lite- ratura sobre regimes alimentares globais recuperou espaco (Daviron; Vag- neron, 2011). Mesmo assim, a trajetéria brasileira 20 longo deste periodo revela 0 equivoco de contrapor diametralmente as duas narrativas. Nem 0 “quality turn” foi a logica predominante, a partir dos anos 1990, nem o “commodity return” representa realmente um ‘retorno’ a légica agroindustrial que prevaleceu no segundo regime (haja vista o modo como os préprios mer cados de commodities vém se apropriando dos processos de diferenciacio). Além de criticar tal dualismo, o argumento principal apresentado neste livro, ¢ aprofundado nos préximos capiculos, contraria a narrativa dominante {que sugere um processo de homogeneizacio do sistema agroalimentar. No Bra- sil, desde os anos 1990, essa nartativa assumiu sua expressio maxima na insti- tuigéo imagindria de uma “sociedade do agronegécio”. O primeito problema desta representacio é que ela é “Vircual” (Ploeg, 2003), embora isto no a torne ‘menos real ou verdadeira (James, 1978), haja vista, por exemplo, sua capacidade de estruturar representagbes que orientam a construcio das politicas agricola € « propria viséo positivada que grande parte da sociedade brasileira tem sobre 0 agronegécio (favorecida por grandes campanhas publicitarias). 6 sta discussio tem sido basicamente pautada pela dinamica da agricul- tura e da ocupacio do espaco rural. Com relagio a isto, pode-se notar que, embora 0 niimero de estabelecimentos rurais tenha se reduzido na virada dos anos 1980 para os anos 1990 (de 5,8 para 4,9 milhées), em um con- texto de forte crise econdmica e social, na década seguinte houve uma reto- mada (impactada pelas politicas de reforma agréria e assentamentos rurais), de maneira que, em 2006, o niimero de estabelecimentos (5,2. milhes) era superiot aquele existente nos anos 1970 (4,9 milhées). E, por mais expressiva que posse ser 2 reducio na iilima década em algumas regidest, sobretudo em virtude da concentracio fundiéria e pela nova dinémica do mercado de terras (Gauer; Leite, 2012), a questio é que a heterogencidade nfo transparece neste tipo de informacio. Nosso argumento somente pode ser discutido se redire- cionarmos o foco para as milciplas formas de fazer “agriculcura” que se estabe- lecem a partir das préticas sociais e dos significados atribuidos a elas. Ou sej2 é necessério distinguir 0 fendmeno da concentragao do sistema agroalimentar a, relativamente paradoxal, produgio de heterogeneidades (Niederle, 20172). Nos iltimas anos, esteve em curso no Brasil uma disputa interpretativa (¢ politica) sobre esces fenémenos. Por um lado, a partir de dados sobre a concentragéo da terra, da producéo e da renda, reproduziu-se a antiga tese da desintegracio da economia camponesa, em virtude do avanco do agrone- gécio. De acordo com as tabulagdes das informagdes do Censo Agropecudtio de 2006 apresentadas por Alves e Rocha (2010), 85 9% do valor bruto de ptoducao esti concentrado em 8,2 % dos estabelecimentos rurais brasle ros, sendo que apenas 22 mil estabelecimentos geram 51 % da prod agricola nacional. No outro extremo, para 3,8 milhdes de estabelecimentos, cujo valor médio de producéo é de RS 128,00 por més, “na agriculeura, sim- plesmente nao ha solugo para o problema de pobreza deles.” (Alves; Rocha, 2010, p. 288). Para estes autores, esta seria uma evidéncia incontestivel da nova dinamica agricola brasileira, a partir do que, sugerem uma nova onda de modemizagio, com vistas 2 enquadrar os “agricultores produtivos” 20 © Aevalmente, exe imenso debate académico epoltic sobre as hipSteses da "desagrarizario™ edo “esatiamento do meio rural” (Maia, 2014; Favareo, 2014). Enquanto os dados dos Censos Demo sgfcosrevelam uma redugio de 35,7 para 29,6 milhdes de pessoas ence 1991 € 2010, 0 niimero de domicios aumentou de 7,6 pars 8,1 ilhdes. Por sua ve, os dados mais recentes das pesqusas montis (PNAD, 2016) esimam um incremento da popula sural residente entre 2001 (7.8 milhoes) © 2014 (30,6 milhées). A partir disso, Favaretwo (2014) sugere que o proceso de dest- ‘gariacio pode nio ser acompanhado do esvaiamento do meio ru, em vist da emergincia de lum espag socal mais hereogéneo e multfuncional. Dados preliminars do Censo Agropecuixio de 2017, dvulgadosapds «conclusfo dese live, apontaram para ceta stabildade no nimero de ‘ezabelecimentos em Ambito nacional. No enrant, também se destacam dindmicasregionais hee rgeneas, ja vie 2 queda acennuada no cotal de exabeleicmentos em algumasregiées como 0 Sul a padrio da moderna agricultura capitalista (ver também Buainain, Silveiras ‘Navarro, 2013s Vieira Filho; Fishlovy, 2017) Por outro lado, contrapondo esta tese, iniimeras pesquisas adentraram © universo das priticas e dos significados que os agricultores atibuem s suas ~formas de fazer agricultura. Estas pesquisas revelaram a pluralidade de estilos de agricultura familiar, que se expressam em miltiplas identidades sociais: camponeses, colonos, parceiros, quilombolas, indigenas, meeiros, lavradores, lenses, riberinhos etc. (Schneider; Niederle, 2008), Elas destacaram as habildades sociais desses atores para estrucurar praticas que lhes permitam. no apenas resistir 4s presses institucionais mas também criar novos meca- nismos de intera¢éo com os mercados eo Estado, bem como pata contrariar ‘idea de que existe apenas um modelo vidvel de agriculeuta nas sociedades capitalistas (Costa, 2013; Marques; Conterato; Schneider, 2016; Niederle; Escher; Conterato, 2014; Schneider; Niederle, 2010). Enquanto a heterogeneidade de estilos de agriculcura familiar se cor- nou objeto de crescente reconhecimento, a representaco do agronegécio manteve-se como uma caixa-preta quase indecifrdvel. So mais recentes as pesquisas sobre a diferentes ldgicas socioprodutivas do agronegécio (Biihler; Guibert; Oliveira, 2016; Desconsi, 2017; Herédia; Palmeira; Leite, 2010; Piccin, 2015). Porém, também essas jd demonstraram que a heterogenei- dade nao ¢ uma caracteristica exclusiva dos grupos subalternos, o que Ihe atcibuiria, de certo modo, o sentido de resquicio. Nao apenas os atores, mas também as ldgicas de acumulagio do agronegécio brasileiro tornaram-se mais complexas e diversas do que outrora. Corroboram este entendimento as andlises mais recentes dos processos de apropriagéo da terra (land grab- bing), 25 quaisapontam para a existéncia de diferentes tipos de investidores ¢ interesses (Sauer; Leite, 2012; Wilkinson; Reydon; Di Sabbato, 2012), nem todos aruando sob a ldgica de um capitalismo de rapina “dedicado & apro- ptiagio e desvalorizacio de ativos, 20 invés da construcio de investimentos produtivos.” (Harvey, 2004, p. 72). Principal commodity agricola, desde os anos 1970, a produgio de soja adentra esta discussio como exemplo paradigmético da insercio do agro- negécio brasileio em um regime neoliberal-corporativo (West Jt 2016). Dentre os principais cultivos agricolas anuais, trata-se do tnico que teve importante incremento de drea plantada nas tltimas décadas: de 9,7 milhoes de hectares em 1990 para 33,9 milhées de hectares em 2016 (Fi igura 1.2).” 7 Bre 1965 2005, o aumento da dren de soja foi de 5.000 % (de 431 mil para 23 milhoes de fa}. Aco comparativo, neste mesmo perodo, a ea de fej cresceu 16,5 % (de 3,3 pars 3,8 smiles des) easea dearrozreuaiu-s em 15 % (de 4,6 paza 3,9 milhdcs de ha) (FAO, 2006), a ‘iguea 1.2, Area (ail ha) e Produsio (milton) de sos no Brasil (1975/77-2016017. Fines Coneh 2017) Em 2015, a soja respondeu por 34 % (RS 98,7 bilhées) do valor bruto da produgao agricola nacional (R$ 288 bilhées) e por 38 9, ou seja, RS 28 bilhes, das exportacées agropecudrias brasileiras. Em 1997, este percentual era de 33 %, o que representava um valor de apenas R$ 5,5 bilhdes. ‘Atualmente, a maior parte da producio brasileira de soja ¢ exportada para a China, Em 2015, as compras deste pais responderam por 57 9% do valor total exportado pelo Brasil (RS 16 bilhées). Em 1997, este percentual cera de apenas 11 % (R$ 0,61 bilho). A formagio do “complexo soja-carne” centre 0s dois paises talvea seja a principal expressio de um novo regime ali- mentar global (Escher, 2016; Oliveira; Hecht, 2017). Mas, ao mesmo tempo, poe em questio conceitos como “regime corporativo-neoliberal” (MeMi- chael, 2016b) ou “regime corporativo-ambiental” (Friedmann, 2016). Por um lado, nada sugere que este complexo caminhe na diregso de uma espé- cie de “capitalismo verde”, haja vista a lenta incorporagao de certficagées socioambientais. Por outro, ele questiona a tese da perda de importancia dos Estados e govemnos em beneficio de corporacées transnacionais desterrtoria- lizadas, vide, por exemplo, a ascensio da estatal chinesa COFCO no Cone Sul (Wilkinson; Wesz Jr; Lopane, 2016). Certamente, a produgio de soja nao ¢ o melhor exemplo para reve- lar a heterogeneidade do sistema agroalimentar. Mas, se for posstvel fazé-Lo neste segmento, tido como expressio maxima da comoditizacio, seri mais plaustvel aceitar a generalidade de nosso argumento. Séo inegaveis as trans- formagées que ocorreram nas tltimas duas décadas no mercado da soja, as quais apontam para uma agriculrura ainda mais globalizada, financeirizada e ” °

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