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por uma espécie de opacidade crescente ¢ paradoxal do entendimento cientifico, contrariemente a0 en- tendimento cldssico, que se caracteriza pela trans- paréncia de si. Opacidade até mesmo no plano in- telectual: enquanto a representacdo era “clara e dis- tinta”, 2 positividade parece cada vez mais consti- tuir o antincio de uma imensa nuvem de sombre, na qual mergulha e termina por perder-se a luminosida~ de da inteligencia, Tal opacidade & mais nitida no nivel da prética cientifica, forcosamente fragmenta- da, esmigalhada, impotente para reestruturar-se co- ‘mo um todo, Paralelamente, o reino intelectual e @ sociedade humana do entendimento cientifico esto ‘em vies de tomar-se obscuros para si mesmos, im- penetréveis 20 olhar como um meio que, de transpa- Tente que era, tomnou-se opaco ¢ de modo cada vez mais espesso, difundindo caoticamente, a Iz vindo quebrar-se sobre inumerdveis pequenos obstéculos moleculares. A essa opacidade para a inteligéncia humana, vem contra- por-se o dinamismo da aco do entendimento manifestando-se, sobretudo, numa espécie de espontaneidade revoluciondria capaz de integrar, de modo incontrolével, seu prOprio élan. Essa mo- dalidade de crescimento do universo humano de ciéncia nfo d xa de ter inconvenientes, de apresentar sérios riscos e causas de preocupagtes, Donde a emergéncia,.n0 interior mesmo da cons- cigncia cientifica, de inimeros mal-estares e de movimentos de reagdo contestatétia da propria ciéncia e de seus atuais desen- volvimentos. A prépria natureza desse duplo fendémeno de opa- cidade a si e de sujeitamento impotente a0 seu prOprio cresci mento, que caracteriza o entendimento cientifico atual e seu uni- verso humano, obriga-nos a uma reflexio e a uma a¢fo com os quais o entendimento pode e deve colaborar, mas cuja liberdade no depende inteiramente dele. Portanto, na globalidade concre- ta do entendimento cientifico, hd algo que estabelece uma espé- cie de limite além do qual se iniciam o pensamento do ser 0 pensamento da agdo. Mas esta tarefa ja pertence a filosofia. 90 II Nascimento das Ciéncias Humanas Falar de ciéncias humanas jé & engajar-se num espago po- Lémico, posto que, sob essa denominacéo, apresentam-se traba- Ihos que, freqilentemente, pouco ou nada possuem em comum. No se trata, pois, de conciliar ou de reconciliar, mas de orde- nar e de justificar seu acesso & positividade. Porque um discurso sobre as ciéncias humanas constitui um discurso em que a teoria se converte facilmente em estratégia. ‘As cigncias humanas nasceram da deposic&o do sujeito pen- sante no século XIX, Nao poderdo constituir um anexo da fi- losofia. Tampouco so scus porte-vozes modernistas. E porque desapropriaram os fildsofos de seu objeto que Ihes interessam. Trata-se de um interesse interrogativo que instaura uma polé- miea que precisa ser levada adiante. 1 CAPITULO 1 Os Eixos Epistemoldgicos Por “eixos epistemolégicos” das ciéncias humanas, enten- demos esse solo ou horizonte epistemolégico sobre os quais elas se constituiram e nos quais pretendem instalar-se, explicando seus fenémenos a partir de um lugar nio-filoséfico € néo-ideo- W6gico, como se pudessem reivindicar, de modo peremptorio, a categoria de “corte epistemolégico” para expressar suas distin- cias relativamente a toda filosofia e a todo sistema de repre- sentacio ideolégica. Em outras palavras, entendemos esse “fun- do de saber” que tornou possivel sua passagem, do mundo da “representacio”, ao mundo da “cientificidade” ou da positivi- dade, Os eixos constituem essas bases sélidas sobre as quais as ciéncias humanas nasceram e nas quais se apoiaram, em seu rocesso lento e por vezes tempestuoso de libertacdo da tutela filos6fica. Ainda em outros termos, constituem os chamados ‘modelos de cientificidede que, nfo somente inspiraram seu nas- cimento, mas deram-Ihes garantias de objetividade em seu pro- cesso, de construcio ¢ de autodeterminacio epistemol6gicas. Ora, se 6 so admitidos como cientificos 08 resultados intelec- tuais suscetiveis, ndo somente de explicar satisfatoriamente os fendmenos até éntZo ininteligiveis, mas também os fendmenos que resistem a todas as tentativas de falsificacdo* (no sentido Popperiano do termo) que empreendemos rigorosa e sistemat camente em relaczo a eles (verificacdo no sentido de néo-fal- sificagfio), nfo vemos como as ciéncias humanas, mesmo em nossos dias, conseguem satistazer os critérios de cientificidade, conseqlientemente, de corte epistemolégico, das ciéncias pro- 95 priamente positivas. Creio que a fraqueza epistemolégica das cigncias humanas é diretamente proporcional 20 empenho com gue tentam denunciar as intromissées ou ingeréncias da filosofia e das ideologias. Se assim procedem, & porque sempre se inspi- raram ¢ se paulatam nos modelos de clentificidade das ciéncias aturais, cujos cinones metodolégicos propéem-se a chegar a uma explicagao do conhecimento, sem Ievarem em conta 08 métodos de cardter interpretative ‘ou compreensivo. Bum fato que as ciéncias humanas constituem, hoje, obje- to de consumo corrente, Miltiplas sfio suas aplicagBes téenicas: enquetes, sondagens de opinifo, testes psicolégicos, marketing ete, Até parece que foram reduzidas a um aglomerado de téc- nicas de manipulaco e de intervengo, verdadeiras receitas pretensamente cientificas, infiltradas nas mais contradit6rias ideologias, pretendendo tudo explicar com suas ret6ricas: mar~ xismos, freudismos, estruturalismos, antropologismos ete. No entanto, a tomada de consciéncia de uma exigéneia epistemol6- gica de autonomia dessas disciplinas s6 ocorreu no séeulo XTX. Antes, como vimos, a consciéneia cultural ge inscrevia no con- texto de um modelo epistemol6gico incompativel com o livre exercicio de um saber capaz de fazer do homem seu sujeito seu objeto, Até o século XVI, o discurso cientifico foi regido’ pelo esquema astrobiolégico: representagtio global que subme- te o dom{nio terrestre, considerado inferior em dignidade, & influéncia transcendente dos astros-deuses, cujo determinismo regia a totalidade dos fendmenos terrenos. As disciplinas fun- damentais de toda inteligibilidade sfo a astrologia ¢ a alquimia, Todo o domfnio humano e natural encontra-se submetido 0s Pressupostos astrolégicos. A cosmovisio grega € cosmolégica © cosmocéntrica, A medieval & cosmolégica ¢ teocéntrica, Foi com Galileu que a cosmovisio se tornow antropolégica e, com ‘0 tempo, antropocéntrica. O ponto capital € a naturalizacio da ‘natureza humana, © homem passa a ser o centro de um con- junto de_disciplinas utilizando um esquema de racionalidade positiva, Deus nfo intervém mais no universo do discurso cien- tifico, As novas disciplinas passam a desenvolver-se segundo trés linhas de forca divergentes, que Gusdorf chama de “eixos 96 epistemolbgicos” (Encyclopaedia universalis, verbete “Sciences humaines”): 0 eixo da ciéncia rigorosa, o eixo da biologia e 0 exo da historia. 11, O BIXO DA CIBNCIA RIGOROSA Segundo G. Gusdorf, em quem nos inspiramos amplamen- te neste capftulo, 0 primeiro impulso das ciéncias humanas procede diretamente da aplicagio do modelo mecanicista de Galileu ao dominio das realidades humanas. Esse modelo foi aperfeigoado por Newton. Constitui, ainda hoje, 0 protétipo de toda cientificidade. As disciplinas que néo fizerem uso dos mo- delos das ciéncias naturais nfo ingressam no santuério do saber objetivo. Trata-se de um modelo que, desde o infcio, reivindica © domfnio humano em sua totalidade, ¢ chega a impor-lhe seus esquemas tedricos fundamentais: a idéia de lei rigorosa e a de escrita matemdtica, Como vimos, desde 0 século XVII 0 me- canismo inspira 0 protétipo epistemol6gico do animal-maquina. E 0 ideal da ciéncia rigorosa mantém-se até nossos dias. Desde © inicio, as disciplinas humanas vém sonhando com o ideal de uma inteligibilidade cifrada segundo 0 modelo exemplar das cigncias naturais, as tinicas em condigées de darem seguranca epistemolégica a essas disciplinas que, uma vez separando-se da mie filosofia, nfo estavam habituadas a viver sem tutcla, E foi assim que o mundo da realidadé humana foi progressi- vamente sendo substituido por um universo do discurso forma- lizado. ‘Trata-se de promover uma inteligéncia redutora, preo- cupada em revelar relagdes constantes, em estabelecer escalo- nagens precisas e articulagGes operatorias. Sabemos que o pri- meio emblema do mecanicismo foi o rel6gio, cujo funciona- mento automético, aplicado & medida precisa da realidade ina- preensivel do tempo, autorizava todas as esperancas. Assim, desde o inicio, as ciéncias humanas adotaram a perspectiva axiomdtica como a garantia suprema de seu acesso 4 cientificidade. A passagem do reino da opinifo (doxa) ao do- minio do conhecimento cientitico (¢pisteme) exigia a adocio de ama inteligibilidade racional. E a formalizagio matemética estabelece o limite dessa ambicdo. As ciéncias humanas nas- centes passaram a adotar uma exigéncia de rigor ¢ de precisio, de busca das estruturas e das normas. Para tanto, adotaram, 97 em sulas investigecées, os métodos quantitativos e a lingua; cifrada. A anise estaistica passa a ser um dos meios funda mentais de aco dos cientistas humenos. A ciéncia se converte em uma Iingua bem feite. Por isso, submete todo o seu domi- nio & ordem matemétice, a lingua mais bem feita existente. A pericicio do saber parece ser atingida desde que se reduza os fen6menos a um esquema de tipo algébrico. Pouco a pouco, ® ordem dos comportamentos e des idéias humanas fica subme- {ida & inteligéncia matemética, Esta passa a constituirse ume jimensa rede que esboca a ossatura de um universo do discurso (QgiHo. Ctiase uma espécie de fentasma algébrico. 28 imanas, desde seu nasci ive Soe ee es, fst seu nassimento, ficam privadas de seu Ora, sabemos que a linguagem cientifica no pode ser unfvoca. Ela no constitui um discurso unitério z totalitésio. Ha uma pluralidade de discursos cietificos. Cada um possui suas regras préprias. Um discurso néo pode ser traduzido em outro. Uma das grandes dificuldades que encontramos para do- Finis 0 estatuto das ciéncias humanas consiste no fato de que- rermos atribuirlhes um termo de aparéncia univoca, embora, na realidade, recubra uma pluralidade de discursos: 0 termo ¢iéncia. Por outro lado, também sabemos que a ciéncia se de~ fine por ser um discurso critico, pois exerce um controle vigi- Janie sobre seus procedimentos, uilizando eritérios precisos de validacio, ¢ utiliza métodos permitindo-lhe ampliar o campo de seu saber. Neste sentido, a démarche cientffica € a0 mesmo tempo rejlexiva ¢ prospectiva, Nao recebe de fora seus princi. los organizadores. E 2 ciéncia que elabora seus critérios de Validade € seus métodos de pesquisa. Seus “princfpios” no surgem instantaneamente, Sio extrafdos progressivamente. Seus ctitérios de construco e suas idéias inspiradoras precisam ser flucidados. Os preseupostos de uma cifncia séo justamente as idéias, 0s critérios ¢ os principios que ela emprega em sua efe- tuacdo. E 0 estudo desses pressupostos constitui o que se cha- tua de busca dos fundamentos. Essa busca possui um carter relativo, pois explicita os pressupostos relativamente a outros Pressupostos. Nao hd um fandamento tiltimo e absoluto para as ciéncics, capar de fornecer-Ihes uma justificagto vabal. eco, 12,50 libertarem da tutela filoséfica, as ciéncias, nem por isso, deixam de colocar-Ihe problemas fundamentals: como. o saber cientifico & possfvel? Como se explica o acordo entre as 98 operagdes do espitito e 0 funcionamento dos sistemas reais? Como se explica 0 progresso dos conhecimentos cientificos? Quais seus limites? Quais as relagdes da ciéncia com a acdo? Possui a cigncia uma teleologia? Competiria a filosofia das cién- cias responder a essas questdes, pois cabe-Ine responder ou re~ solver os problemas de ordem fundacional. O papel da episte- mologia, além de contribuir para a solucgo dos problemas fun- dacionais, consiste em analisar, nfo somente as condi¢des de possibilidade das ciéncias, mas suas condigses reais de efetua~ do, sua génese, sua formacdo, sua estruturagéo; numa pala- vyra, seu modo de producto de conhecimentos (conceitos ¢ 1e0- rias), procurando elucidar seus fundamentos I6gicos e antropo- légicos, hist6rico e social, bem como sua significagdo enquanto fenémeno global. Uma questo de ceréter fundacional bastante discutida é a da cientificidade da ciéncia, Essa questi depen- de, quer de uma busca dos fundamentos, quer de uma reflexdo filoséfica sobre as condicdes de possibilidade (¢ reais) em que se constroem os conhecimentos cientificos no interior de deter- minado contexto s6cio-hist6rico-cultural. © modelo por exceléncia de cientificidade, para as cién- cias humanas, foi fornecido pela fisica. A partir desse modelo, pretendeu-se elaborar uma concepcao do conhecimento suscep- fivel de ser proposta como uma espécie de ideal absolut. A inteligibilidade propria ao modelo fisico de explicacéo identifi- ca-se com a inteligibilidade das manipulacSes formais. O sen- tido das operacées formais € compreendido quando se com- preende as regras que as definem. Tais regras, para serem com- preendidas, exigem que se saiba utilizé-las. Assim, 0 problema metodolégico central das ciéncias humanas, desde a época de sua constitui¢do até nossos dias, consiste em saber se elas. po- dem ser construidas sobre o modelo das ciéncias naturais. Em outras palavras, consiste em saber se podemos invocar, a seu respeito, o mesmo tipo de inteligibilidade operatéria da fisica. 1.2. 0 EIXO DA BIOLOGIA © mecanicismo impés a0 dominio humano o mesmo c6dl- g0 de procedimentos que jd demonstrara sua eficécia no do- minio da fisica matemética. Fascinado pelo modelo galileano e newtoniano de uma inteligibilidade extensiva, o mecanicismo 99 Fr a8 viu por que nfo procurar impor a0 espago d cs lo denn Incamo tipo de ardem rezante no espe do fore Acc, @ dem humana da consciéncia, com suas intengoes dem humane " signif $0es e motivagdes, fea despojada de sua especificidade propri pecifickdade 6 dissolvida numa espécie de positivismo fe: nomenisi, Hume jé dizia que o eu € apenas uma ideia false, As cigncias humanas, ao pretenderem 0 rigor dos modelos ff: .f matemétices, convertem-se em cigncias sem o homem tice uadavia, contra essa espécie da alienagao tisico-matemé. tice surge uma nova forma de pensamento, eajo ponto de par. peeseiiste na afkanagio da irredutbilidade da vide enquanto suposto humana, O centro da nova problemati considerado como o tema da evolup volugeo vent ¢ ; ‘do. Ora, 2 evoluca instaurar uma filosofia da nat 2 cams uma tureza pondo em agio o dinami ‘mo da vide, imanente A'matéra, O'enio de Berwia tomess IP pscdloatt C& iterpretado aplcével santa 8 nistéia natura | quanto & moral & a religifo. Os conceitos-chave Ge nalurera, organismo © evolugio passa a sor aplicndos todos 8 aspectos da realidade humana. Com seus éxitos ine: veis, lucionismo tenta impor suas evidéncias a is evidéncias a tort fan auer Qs Povos nascem © morzem como os individuos. Lue {am pela vide. “As linguas evoluem. Também evoluem ay so. Giedaes, as instituigdes, as morals e as religides, Ao oporse a nicismo, © orgdnicismo impée 20 domf idéia de uma regulagao inten ma fialdade ire dive! or feBulaeao intern, ou sea, de ma fnalided ire mi superficie, A redugio axiomati em sua abstragio, perde o cont lidade humane, gp sue abstract ped mitato com a realidade humana, se compreender 0 homem, pois nega, a prion sulle gue const su especifcidad, existence no! pode © funcionamento de um e6di ebric ou de um automatismo ira do homenen Sei im ulomatismo mecanico, & maneira do homem-mé eae prepbe o modelo Biligco de inligbdade & que nan: ituada num nivel de emergénci 9s fendmenos vitais possam adquiti "Tobe oe deter fe s vitais adquitir o primado sobre os deter. ninismos Iles, fico ot guimicos, Todos os fatos Puomanos erta especificidade vital. A vida, ani ou humane, nfo é independente das condigdes fi Jenene t aparecimento. Mas ela exerce uum diteito de werom de seus condicionamentos, Porque realiza uma famideds met ue se sobrepde aos mecanismos da natureza inette, A 100 finalidade nfio exclui tais mecanismos. Mas os utiliza assegu- rando sua convergéncia para novos conjuntos. Todo fato hhuma- no possui um pano de fundo biolégico. B toda histéria con verte-se em hisiria natural. A consciéncia ¢ seus derivados cul- turais, 0 conhecimento e as atividades ctiadoras, possuem mil- tiplas’ significagdes primeiras © implicitas correspondendo ao exercicio de funcdes vitais. Neste sentido, tanto as esp quanto 03 individuos obedecem a um primeiro programa, onde se precisam as necessidades elementares ¢ 0s instintos consti tutivos da vida humana. E todas as aspirag6es ulteriores, bem como todos os valores que se propordo os homens, os gru- pos © as sociedades, enraizam-se nesse conjunto de exigencies Segundo 0 modelo biolégico, as idéias de vida, de morte, de crescimento, de deteriorizagio, de infincia, de juventude, de maturidade, de senescéncia, de amor, de agressividade, de sati- de, de alegria, de tristeza, de docnga, de normal etc, pertencem fa esse vocabulirio dos dados imediatos da consciéncia vital. E todas as ciéncias humanas empregam, de uma forma ou de outta, essas significagées da espontaneidade biolégica. Assim, ‘os psicélogos mostram a importincia decisiva dos recalques, sublimagées e compensagies que petmitem os mais inesperados depésitos de créditos no orcamento vital. Eles introduzem, pois, no dominio do irracional, a racionalidade. Donde a insuficién- cia da inteligéncia abstrata do matemético ou do fisieo. Para se explicar a ordem do humano, tomna-se indispensivel certo sentido da vida, de suas exigéncias irreduttveis e de suas im- Plicagdes. Nao se pode obedecer apenas aos rigores geométi cos. A inteligéncia s6 pode aplicar-se 2 vida reconhecendo a originalidade da vida, Fala-se num conflito entre 0 conkecimen- to e a vida, Mas tal conflito nfo se situa entre 0 pensamento € 0 homem, mas entre o homem e o mundo, na consciéncia humana da vida, O pensamento do ser vivo deve tirar dele a idéia do ser vivo. Todavia, a hermenéutica da vida nfo basta, embora seja necesstiria. Os totalitarismos biol6gicos, exegerando as exigén~ cias vitais, esforcam-se por interpretar a totalidade do dominio humano em fungio de suas indicagées primitivas. A teoria da evolugio extrapola as nocdes de luta pela vida e de sclecio natural, Também a psicandlise se apresenta, por vezes, como a explicagio tiltima de todos os fenémenos de civilizacéo: com- 101 less © confiten, tecalques ¢ sublimagdes, pulsdes sexuais per- pee itis ‘rar todos os desenvolvimentos da existéncia eet alee ‘a, como se as metamorfoses do inconsciente Belo a = ma 2 Feino de uma inteligibilidade universal. O a pein eat mplicar revela os limites da explicagio. Donde a= ae la observagao de Canguilhem: “suspeitamos que, Para fezer matoméscas, baste-nos set anjos; mes pare eet » mesmo com a ajuda da inteligencia, por vests temo necessidade de entir idiotas” 1975, 1 4gye 108 Sent idiotas” (La connaissance de la vie, 1.3 O EIXO DA CULTURA E DA HISTORIA iat aM#Pologia do séeulo XVITT dé uma énfase toda es St Ags {agos culturais: linguagem, sociedade © insttugees Ars ledricos dessa époea, a condigdo animal parece imutsvel Pesgadisdo humans, 20 contrério, deve ser vista segundo uma pewspectiva hist6rica e cultural. A naturalizagio do homem sus Cit. @ alismacto de um devir temporal orientado. A teologie € ‘Substiuida por ume filosofia da historia. A homanidede, entim, sees ato, om vitude de uma Jei de progreso, Nao cons. to wi es |, mas uma idéia hist6rica, uma vocas Gina Pats a chilzapto, A einergtacia do vetorhistérico implica uma mobilizagdo de conscigncia humana, Os temas da cult fy citalsceaeg hate Os ea gundo as exigéncies da idéia de_progresso. O iment Hst6tico surge como uma historia da cultura, sem ‘nenhuma Eres ae Com oS pels explicativos das cincis natrae ‘de ideologia da nostalgia, - do oferece um refpio capar de propor a meditagde os ensaios FSh, Os, 8 experiéncia humana. O futuro nao € libertador {udo se passa como se as duas alienagdes, do arcaico e do fi. iobtal rasiem Pos se neutralizer. A ditcplina histrca se qual as eauillbrio, © passado deve ser conhecido e ama" Sabemos que 0 séeula XIX foi lo XIX foi dominado rentes de pensamento: e naturalism eo historceme: Gacce, Kfclzemos apenas, de modo sucinto, o historicismo. Ele se apie m uma dupla perspectiva: hé 0 historicismo filosdfice 102 ¢ © historicismo epistemolégico. © primeiro faz da histéria 0 fundamento de uma concepgéo geral do mundo, julgendo que todos 0s fenémenos socizis e humanos s6 sio inteligiveis sob o Anguio de visio da categoria “hist6rica”. Esse tipo de histori- cismo divide-se em duas tendénciss: uma. procura sistematizar dogmaticamente todo o devir humano a partir de um princfpio @ priori, como a Providéncia, o Progresso ou a luta de classes, e pretende mesmo explicar 0 futuro a partir desse sistematiza- {¢d0; @ outra pelo contrério, tende a tudo relativizar, sob 0 pre- fexto de que a histéria nfo fornece nenbuma certeza nem ver- dade: tal ceticismo leva com freqiiéncia ao niilismo filoséfico. De qualquer modo, a preocupagio bésica desse historicismo consiste em conferir um sentido & existéncia humana. Assim, dissimula uma posicio metafisica, na medida em que procura atualizar certos valores ou fins Gltimos: impe A explicago ou & interpretagtio um sistema de referéncias exterior & propria hist6ria. © historicismo epistemolégico, a0 contrério, recusa-se a ser uma concepeo do mundo. Define-se como uma das con- digbes de inteligibilidade do real. Contrariamente 20 naturalis- ‘mo, que nega a especificidade das ciéncias humanas, mostra 2 ielatividade dos conhecimento naturais e humanos. Em contras- te com os métodos explicativos das ciéncias naturais, opta pelos métodos compreensivos, cujo objetivo consiste em evidenciar que realmente se passou. Cada aspecto da realidade humana depende de uma investigacéo histérica, pois 6 o passado que explica o presente. Como j dizia Bacon, a verdade é filha do tempo. O odjetivo da inteligéncia histérica consiste em chegar a uma tomada de consciéncia da realidade humana em seu con- junto.’ A procura dessa explicagio total faz das ciéncias his- tricas as ciéncias humanas pot exceléncia. A inteligibilidade ‘matemética e a bioldgica nao explicam completamente a reali- dade humana. “O homem tem por natureza no possuir natu- reza”, dizia Merleau-Ponty. E Dilthey jé havia dito: “B a cul- tura que constitui nosso mundo”. O ser humano, orginico em sua estrutura, € cultural em seu desenvolvimento. O limiar da humanidade coincide com o advento da linguagem, que funda ‘uma nova relagio.do homem consigo mesmo e com o mundo. A Tinguagem suscita uma consciéncia da consciéncia. A hist6ria introduz, sobreposta & hereditariedade natural, uma heredita- 103 riedade cultural, 1 i cléneia mane, °F &ssom uma nova dimensio da cons- toialitarismo epistemolégica. Na form: -mol6gico, Nao ha uma lei catechave capa de fornecer @ esséacla de realdade na létioa de Hegel, revista e corrigida por , ia por Marx, i pretence impor uma perfeita transparéncia no domiio fumano, cepaz de tudo explicar. O genio de Mare a Tucidez, 9 de suas andlises nada ganham cor tis Cf storia, na : sta szaue bisa, ndo se antocpa a cle pee eeag Oe Cada um desses trés eixos epi evel 08 epistemolégi i se zeallag 0 exfoaue, do dominio ihumano pose re vations oak neont alidade. A enon joa dag cifnclas hamanas devese a feto de aepucear eee Kogicas om gasetvolvimento, uma triplice perspectiva metodo Hogica: ito lugar, ficam fascinadas a Giaeia rigorosa, donde a ‘tendéncia a se apresentmnge ee luebra, tiduzindo seus resultados nutha Hagin ee 104 malista (6 0 caso de Lévi-Strauss em antropologia); em segui~ da, muitas delas tomam de empréstimo os modelos biol6gicos de interpretago e explicacfo de seus respectivos dominios de investigacfo (o modelo biol6gico informa as perspectivas epis- temoldgicas de varias disciplinas, desde a psicanélise de Freud, até a psicologia dita experimental); enfim, outras disciplinas parecem reduzir suas perspectivas epistemolégicas sobre seus respectivos dominios de investigacio a wma simples andlise de ordem histérica (a economia politica de Marx & um exemplo). ‘Cada uma dessas epistemologias tem sua validade. O que nfo se admite € que uma reivindique a exclusividade, deixan- do na sombra tudo 0 que no entra em seu esquema préprio. A restriefio mental, por vezes inconsciente, leva a uma discussio sem safda, Ora, uma teoria das ciéncias humanas nfio pode escolher uma dessas perspectivas metodolégicas em detrimento das outras. Cada epistemologia traz uma decifragio do real. Cada uma fornece uma linguagem que nfo & exclusiva das ou- tras. O erro comega quando consideramos invélidos os proce- dimentos aos quais no recorremos. Os pretensos “positivis- mos”, quer empiristas quer formalistas, bem como os pretensos “antipositivismos” em matéria de ciéncias humans, camuflam verdadeiros fanatismos intelectuais. B impossfvel enquadrar as cigncias humanas dentro de uma metodologia unitétia, Cada uma realiza, segundo sua visio epistemolégica prépria, uma abordagem da realidade humana que deve ser compativel com os demais enfoques. Nenhuma delas pode vanglotiar-se de pos- suir 0 monopélio da verdade. Ao que tudo indica, o fim bus- cado, foco de convergéncia das pesquisas, situa-se além do ho- tizonte do conhecimento objetivo. Portanto, uma sintese das ciéncias humanas nfo nos dé a plena posse intelectual da rea- lidade do homem. 105 CAPITULO 2 Primeiras Tentativas de Teorizacdo 2.1, PERIODO DAS CLASSIFICAGOES ‘A idéia segundo a qual as ciéncias humanas poderiam constituir um dom{nio auténomo de conhecimento, quer dizer, afirmarem-se como disciplinas tendo um estatuto epistemolégi- co proprio ¢ independente, bem como uma metodologia espe~ cifica, surgiu progressivamente no século XVIII, para s6 se impor no decorrer do XIX. Como se explica essa tomada de conscitacia tardia da autodeterminagio epistemolégica dessas disciplinas? Uma das raz6es parece residir na imprecisio do conceito que se fazia, até essa époce, de “ciéncia”. O termo “ciéncia” designava ao mesmo tempo uma pesquisa metédica, um discurso coerente ¢ I6gico, bem como uma aco ordenade. De um lado, referia-se mais ou menos a classificacHo atistoté- lica, que distinguia trés tipos de ciéncias: as teéricas, tendo por objeto a anélise do que parecia necessério; as poéticas, visan~ do & producio ou atividade cujo fim era exterior ao agente; as prdticds, interessando-se exclusivamente pela propria atividade dos agentes. Por outro lado, excetuando-se 0 caso da matemé- tica, nenhuma ciéncia havia atingido um grau de desenvolvi- mento a ponto de poder servir de modelo exclusivo para as outras disciplinas, Assim, até o final da Renascenga, todas as ciéneins se encontravam no mesmo grau de desenvolvimento. Todas se caracterizavam por uma total auséncia de rigor de precisiio em suas démarches, Suas pesquisas eram todas tatean- tes, Seus resultados, muito incertos ¢ imprecisos. B todo o saber 109 estava envolto num clim oss lima abafado de superstics i SAS POR, as andes policas de ‘Maquievel ¢ sue ee ra a histéria eram mais clentifi . consagrados a fsica ou & biologia, | NN ANE 08 eatudos Semelhante situacd 2 von oem situacio comeca 2 mud: i profund ea, RPO no relao des cients, ume detanegenn a fisica ¢ as disciplinas humanay ey te ings emergentes. Foi paridade, no nf i! ‘ Gianelag Ao gtel 8 centfcdads, eotre os dol grapes a sobre a: saPattir de entéo, comegou'se também a ae niereg cosaram,eigtlardade és eitacies humanss, Alguny meee, usaram, io, a admitir qu opori a Gias naires, Pele tao ee commits os S2 OpOtam Bs cién- 50 des. discipi mia wee sciplins humanas poderia ser recuperstee ages, ipusessom a adotar as mesmes norma fg aa Sepcthaen, BRE Be dominio des citncies naturist emelhante concepeio epistemolSgi now 1 ment te 0 _epistemolégica domin Fhamalidede cientfica do século XVI Helvcin von gt day de tng, 86 #6 lfacas humana, nese doen chase » no teriam neahuma possibilidad - ilidade de progres. © novo Newton das eines nero Ne iéncias humanas. Para ti Gat patti Ratralicar og fenémenos da ordem | fanaa cae i em condicbes de explicé-tos. Donde os nume. sobre a religifo nat coal sobre a religifo natural, } @ histéria natural ete. Tudo preoae 110 Em oposicfio a essa corrente, que tentava decalear a me- todologia das ciéncias humanas ne metodologia das ciéncias naturais, surge outra corrente, tentando ser fiel a0 dualismo cartesiano da alma e do corpo, pelo qual a operaco do espirito nada tem a ver, em sua esséncia, com o objeto a qual ela se refere. Essa corrente se caracteriza pela tentativa de transpor essa difcrenciagao ontolégica da alma e do cozpo para o plano propriamente metodol6gico. E foi assim que comecou a ser ela- borada a teoria metodolégica segundo a qual devia-se mostrar fa irredutibilidade do Espirito e da Matéria, da Natureza ¢ do Pensamento c, mais tarde, da Natureza e da Historia. Essa cor- rente nega decididamente a possibilidade de uma redugdo dos fenémenos “morais” ou humanos aos fendmenos fisicos. Além do mais, defende com intransigéncia a posicio segundo 2 qual i das acdes humanas nfo pode sacrificar-se 20 modelo mecanicista de conhecimento, pois tais agdes se racterizam por uma finalidade que transcende a ordem das coi- sas apreendidas e explicadas segundo os métodos das ciéncias ditas rigorosas. Ficam, assim, lancadas as bases ou os fundamentos filo- séficos da autonomia das ciéncias humanas (ainda chamadas de “morais”). Essa autonomia € uma actitagio do dualismo. Tal dualismo esteve na base da filosofia critica desenvolvida por Kant. Mas nao se deve assimilar essa corrente critica a0 naturalismo, pois s6 foi critica negativamente: por oposico 20 dogmatismo espiritualista, propés um dogmatismo materie~ lista. No entanto, apesar da auséncia de elementos conceituais satisfat6rios, o fato é que jé estavam langadas as bases, no sé- culo XVII, de uma teoria geral do que seria chamado mais tarde de ciéncias humanas. O importante a ressaltar é que essa teoria geral teve suas primeiras manifestagdes nas tentativas de classificagdo das ciéncias. Entre as numerosas classificagies, cada uma dando origem a determinada teorizagdo sobre 0s Pro- Dlenias metodolégicos das ciéncias humanas, iremos nos deter em duas: na de Comte, por ter sido a mais importante © @ que maior significagao teve para os problemas epistemolégicos posteriores que tiveram que enfrentar as ciéncias humanas; ¢ na de Dilthey, porque sua classificacao foi a primeira a intro- duzir uma verdadeira reviravolta no remo epistemol6gico dessas disciplinas. ui Hoje em dia, 0 problema da classificagto das ciéncias, ou- trora um problema epistemolégico-chave, jé esta bastante su. Perado, Se o consideramos aqui, 6 simplesmente porque, do Ponto de vista histérico, toda classificagio implicov, © continua i impllear uma teoria. Em contrapartida, quer queitamos que nao, toda teoria geral das ciéncias conduz nectssariaments a trai da epistemologia dessas disciplinas. Ademais, seca on prniettat # classiticagio como um procedimento’ elementar, Hlosotige a, nceativo da epistemologia. Qualquer que seja 4 Elosofis, ‘mesmo que nfo tenha por objetivo central clara luna \classificagéo dos conhecimentos, inclui sempre, em an © cae Coutrinas ou de teorias, uma ou varias classiticacGes, O ate significa, por exemplo, a distingdo introducida por Kat fea. sendmenos ¢ niimeros, entre razto teorélica e rezko pri, tica, sendo uma classificagdo? No plano da economic politica, Marx introduziu uma divisio entfe classe. burguess: ¢ elesey Fr atéria, entre superestrutura e infcaesirutura. Freud seoen, fin as instancias do psiquismo em Id, Ego e Superego. Postanto, ou a reflexio parte de uma classificagSo implt- sits @ nGo-consciente, ou inventa uma no decorrer de vende, genvolvimento, Em qualquer hip6tese, toda teoria leva s, una Glassificagao. Trata-se de um procedimento inevitdvel, if mre Fe ee ganerente A andlise. Querer proscrevé-lo, alegando-se que if se encontra inteiramente superado, equivateria a iwtedce sificatério’ a um perfodo pretensamente. néo-clasdficnticie "5 arjeenitica, por exemplo, o fndice de uma obra, sendo que se grdenou e classificou os temas ou os problemas por ela wate Gos? Por conseguinte, se falamos de um perfodo das classifier, Goes das cléncias humanas, € num seniido bastante: sclativo, gressivamente consciéncia de uma ficidade desse grupo de disciplinas, Palas nasceram tentando situarsse, encontrar seu lugar, no cece Pog atber cientifica, Nasceram tentando ser clasficadas, noc Rpetigto no saber flosstico, na érea de conhecimentos especn flea das citncias jé existentes. E essa tomada de consceneh oy ‘ua autodeterminacio epistemolégica constituiu a condigto pit, 112 i stiram, es- i ira elaboragdestebreas que consistiram, ‘codelmente numa useage perigcte gusto oss! visio das ciéncias, Evidentemente, ha : Scr fie te ce Oana suas importante, cade ume elas implicando um modo de pea sara cfocin, uma manera de teria, pode 365 enone. cogique et connaissance scientifique, $ viget CCallinard, nsyelopéaie de fa Pliage, 1967, PD. 151-1172). 2.2. AS TEORIAS POSITIVISTAS n ia do positivismo com- fio vamos aqui elaborar uma teor - tiano, aaa apenas tear descabrit elo os elementos suscet veis de constituir os primeiros esbogos de uma teoria geral das citcias humanas. Sabemos que os prineios trabalos do por stvim visa 2 wide o/b expecldade ds iecias bo- . © primelro autor a conesber essas in © Glancar pontivar fl. Scat Simon (1790-1825), Ben ma, Mes ire ence de Vhomme (cl. Oeuvres, vol. V, 1966), Aten a necesidade, paras enc do homem, 6e consttuinse am displine postive, por oposio & eitaia merameate con jaar a indéstria Cinv Jeera, Alles de pore agar «inden (ayecton 0 te. mo “industrial”), de considerar a Bro. iach ibalho e de propor um corp dugto ¢ da orgmirasio do trabalho © corpo de i 10 do Estado, pi stbios para esseguar 0 funcionamento do Estado pretndeu bém organizar uma teoria geral das cléncias. ects atu esculenta miedo, comida como ° Iei a que Deus submeteu o universo goal sot 2 ndo~ sntanto,-foi Augusto Comte ( m sisoned, ds tao, ata tora pra rato Ge sua eoncepgio fi los6fica da histéria, de sua classificagéo des ciéncias © de concepeio da sociologia como ciéncia englobante. 2.2.1. A LEL DOS TRES ESTADOS i r é contido em encial da epistemologia de Comte esté contid sua i" dos {288 Estados o om sua classifieagio das citacias. A 113 lei dos t€s Estados encontra-se exposta no Curso de filosofia positiva nesses termos (§§ 9 e 10 14 “Estudando o desenvolvimento total da inteligénci Primeiro véo mais simples até nossos dias, creio ter des- coberio uma grande lei fundamental, a que se sujeita por uma necessidade invaridvel, e que me parece poder ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racio- nais, fornecidas pelo conhecimento de nossa organizagao, quer na base de verificagées hist6ricas resultantes de um exame atento do passado. Essa lei consiste em que cada uma de nossas concepcdes psiquicas, cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por trés estados his. toricos distintos: 0 estado teoldgico ow ficticio, 0 estado metafisico ou abstrato, © estado cientifico ou positivo. Em outros termos, 0 espfrito humano, por sta natureza, emprega sucessivamente, em cada uma de suas investiga. Ses, tres métodos de filesofar, cujo cardter é essencial- mente diferente e, mesmo, radicalmente oposto: em pri- meiro lugar, 0 método teol6gico; em seguida, 0 método imetafisico; enfim, o métado positive. Daf teés tipos de filosofias ou de sistemas gerais de concepgdes sobre 0 conjunto dos fendmenos que se excluem mutuamente: o primeiro € © porito de partida necessério da inteligéncia humana; 0 terceiro, seu termo fizo e definitive; © segun- do, unicamente destinado a servir de transicdo, No estado teoléeico, 0 espfrito humano, dirigindo essencialmente suas investigagées para a natureza intima dos seres, para as causas primeiras e finais de todos os efeitos que Ihe dizem respeito, numa palavra, para 0s Co” hecimentos obsoletos, apresenta os fendmenos como pro- duzidos pela aco direta e continua de agentes sobrena. turais mais ou menos numerosos, cuja intervengao arbi- trdria explica todas as anomalias aparentes do universo, No estado metafisico, os agentes sobrenaturais sao Substituldos por forgas abstratas, verdadeiras entidades (abstracdes personificadas) inerentes 20s diversos seres do mundo, ¢ concebidas como capazes de engendsar por Glas _mesmas os fendmenos observados, caja explicarlo consiste em determinar par um uma enti _ somite ext para cada um uma entidade cor Enfim, no estado positivo, o espirito humano, reco- nhecendo a impossibilidade de obter nogées absolutas, renuncia a procurar a origem e 0 destino do universo, a conhecer as causas dltimas dos fendmenos, ara preo- cupar-se unicamente em descobrir, gragas 20 uso bem combinado do raciocinio © da observacao, suas leis efe- tivas, a saber, suas relacdes invaridveis de sucessio © si- militude. A explicacdo dos fatos, reduzida, entdo, 2 seus termos reais, resume-se coravante na ligagdo estabelecida entre os diversos fenémenos particulates e alguns fatos gerais, cujo nfimero 0 progresso da cincia tende cada vez mais a diminuic”, O estado teolégico possui trés fases: 0 fetichismo, 0 po- litefsmo e 0 monotefsmo, Nele se constata, além da procura Ga unidade, a “desanimacio” progressiva do mundo. Por sua vez, no estado metafisico ha idéntica evolucéo. Mas as dife- renies abstracdes so substitufdas por uma tinica: a natureza, considerada como fonte exclusiva dos fenémenos. No estado positivo, o estado perfeito, todos os fendmenos so represen- tados como casos particulares de um fato nico, como a gra~ vitagao (talvez impossivel de ser alcancado). Os dois primeiros estados séo produtos da imaginacSo. Sé 0 tiltimo é produto da razéo. A regra geral e fundamental & que toda proposicéo que no seja estritamente redutfvel ao simples enunciado de um fato particular ou geral nfo pode oferecer nenhum sentido real ¢ inteligivel. Eis 0 critério neopositivista de todo saber cienti- fico, ja antecipado por Comte, que prossegue: “A revolucio fundamental, que caracteriza 2 virilidade de nossa inteligéncia, consiste essencialmente em substituir em toda parte a inacessi- vel determinac4o das causas propriamente ditas pela simples busca das leis, vale dizer, pelas relacdes constantes que existem entre os fendmenos observados” (Discours sur Vesprit positif, 1898). Por conseguinte, as caracteristicas do estado positivo si realidade, utilidade, certeza, precisfo, aptiddo orgénica e rela- tividade. Para Comte, a ciéncia é 0 conhecimento que procura descobrir as leis dos fendmenos. O verdadeiro conhecimento cientifico, longe de ser formado por simples obscrvacdo, tende sempre a dispensar a exploragio direta, substituindo-a pela previsto racional, que constitui 0 trago fundamental do “espy- rito positivo”. Nao se deve confundir a citncia real com a va is - consiste em acumular maquinalmente fatos. O gue importa & dedueir os fatos uns dos outros. O verdadeiro spirit positivo consiste em ver para prever, em estudar © que é para se chegar ao que scré, segundo 0 dog it tiabilidade das leis naturais, . Cees 2.2.2. A CLASSIFICACAO DA‘ Gisnctas ACRO DAS A originalidade da classificagtio comtiana reside istdrica, Ao apresenté-la, Comte praticamente inventou a epis- temologia contemporanea, pois deu um sentido ao mesmo tem PO concreto unitério a0 trabalho que tealiza o espitito na constituigio das ciéncias. E isto sem perder de vista a partic caleridede de cada dissplina. Qual a extratura dessa classi cacHo? Equal 0 seu alcance? 0 que tentaremos mostrar de ‘Antes de abordar a classificag#o das ciéncias tedricas, qu § seu objetivo fundamental, Comte sente a necessidade de ‘le. belecer certas distingdes. Em primeiro lugar, estabelece a dis- tingdo entre ciéncias tedricas ¢ conhecimentos priticos, a fim de aprender a relagio que une nossos conhecimentos as suas aplicagSes. A. significagio dessa distingio é muito grande, pois vem negar que o positivismo comtiano seja, como pretenderam seus adversérios, uma espécie de pragmatismo premeditado. Ha uma frase sua que € muito citada: “cigncia, logo previsio; pre- yisfo, logo ago”. No entanto, o fundador do positivisme con- fere 40 ponto de vista tebrico um primado sobre 0 ponto do vista pritico. Senfio, vejamos: “Quaisquer que sejam os imensos servigos prestados A indéstria pelas teorias. cieniificas (...), no devemos nos esquecer de que as ciéncias possuem, antes de tudo, uma destinagdo mais direta © mais elevada: a de sax tisfazer & necessidade fundamental, que experimenta nossa in- teligencia, de conhecer ax leis dos fendmenos” (Cours, t. P. 51), Por conseguinte, é a teoria que fecunda a experiéncia. prdtica e que Ihe confere todo sentido, Toda teoria é penetrada de razto: & a expressio de uma ordem orgnnizada que © expt rito apreende, Quanto a experiéneia pratica, 6 puremente en. pirica, ¢ no contém nenhuma necessidade. Dat ser preciso dis- tingui-las, muito embora seja a partir da experiéneia que a 116 razio deva avangar em seu processo de constituigfo de um saber tedrico, concebido independentemente de toda aplicagio pratica. Assim, a relagdo entre razio ¢ experiéncia € claramen- te concebida por Comte como uma elaboracio tedrica, pela raaflo, dos dados da experiéncia objetiva, e nfo nas eplicagées possiveis do saber assim elaborado. Comte estabelece uma segunda distingflo nas cincias: de um lado, temos as ciéncias abstratas ov getais, cujo objeto é a descoberta de leis; do outro, as ciéncias concretas ou particula- res, tendo por objeto o estuco da ago dessas leis sobre os seres concretos que encontramos na natureza, Essa distingfo reyela o ponto central da epistemologia comtiana: o modo como é concebida a relacfo da razio com a experiéncia no interior do desenvolvimento das ciéncias, Relativamente & ex- periéncia, a azo goza do prestigio do geral e do abstrato. B relativamente A razfio, a experiéncia goza do privilégio do con~ tato com 0 particular ¢ com 0 conereto. O real cienttfi constrdi a partir de ambas: a partir da experiéneia, mas pilo~ fada pela rez izio, mas fecundada pela expe- i josofia_epistemol Quanto A classificaglio das citncias, encontra-se fundada sobre um movimento continuo que nos leva do geral eo parti- cular, do simples 20 complexo, segundo # ordem desse famoso principio hierérquico introduzido por Comte: o da generalida~ de decrescente ¢ 0 da complexidade crescente. Tal principio ex- prime ao mesmo tempo uma ordem racional e uma ordem his- térica. As diferentes ciéncias se entrelagam umas nas outras, ‘as mais gerais se introduzindo nas mais particuleres, para que © todo encontre seu acabamento na ciéncia mais complexa e menos geral de todas, que € 2 sociologia. Ao mesmo tempo, elas se aclaram reciprocamente, como que de dentro, pois a matemitica fornece o protétipo da ordem racional ¢ a biologia, © protétipo da articulagfo orginica. Estamos em presenca de ‘um todo indissociével e unitério que abarea todos os dominios do saber, O que Comte busca, em primeiro lugar, em sua clas~ Sificagdo, 6 uma ordem de dependéncia real entre as ciéncias, suscetivel de corresponder a uma ordem racional, ¥ dessa de~ pendéacia que decorre seu principio fundamental de classifica~ Gio: passagem do geral ao particular ¢ do simples ao complexo. 47 Comte formula sua classificecio partindo da distings duns classes de fendmenos: 2) a c.> sempreende os tantrones dos corps brutos; b) a que conioreende os fendmenos dos corpos organizados. £ assim que ¢'. :iega as einco cigacias fun damentais: de um lado, a astroncmia, a fisica e a quimica; do Outro, a fisiologia e a fisica social. O importante 6 que tal escar lonamento seja ao mesmo tempo histdrico © racional. Porque io fomnece apenas um método capaz de introduzir una ordm ‘no conhecimento, fazendo cada ciéncia depender da precedent ie também um dtd ractonal pra se ena sion ncia, Quer dizer: 0 principio de classiticaga de fo condor para consti interna ae cade dancin ‘or conseguinte, além de um principio de classficagi Gigocia. B através desse principio que Comte passa a operar numa dupla diregao: organizar a cigucia, a fim de descobrir. lhe um método unitério; permanecer o mais préximo posstvel do real, seguindo a marcha do espftito humano, isto & reto- mando a ordem que seguiu para constituir esses sistemas de imerpretagdo do real que slo as diferentes ciéncias. O pro- jeto essencial consiste em empregar um aparelho construtivo 8 im de reconstituir o real de um modo racional, muito embore seja preservado um estreito contato com a experiéncia. A lei dos trés Estados ¢ a classificaco das ciéncias colocam-nos em Presenga de um aparelho de pesquisa e de sistematizagio que Comte empregou para nos dar ao mesmo tempo uma visio tni- ‘dria ¢ multiforme do movimento cientitico. Ao integrar esse movimento na dintmica geral da sociedade, ele faz mais que renovar as bases da epistemologia: abre porspectivas imensas Para o homem, ligando 0 destino das cigncias a0 destino da Sociedade, ¢ mostrando a artculagfo interna que une o hst6rieo 2.2.3. A SOCIOLOGIA COMO. CIEN( ESPECIFICA E ENGLOBANTE ‘Uma vez conhecida a articulacd i 3 iso essencial da filosofi Comte (Iei dos tnés Estados) © as bases fundamentals desea epistemologia (a classificagéo das ciéacias), vejamos agora as 118 idéias-forca de sua teorla das ciéncias humanas, caja importin- cia reside, repito, na repercussio posterior sobre os problemas metodolégicos que tiveram que enfrentar as cigncias em geral, ¢ as cigneias humanas em particular. Na perspectiva comtiana, € a sociologia que, ao tomarse positiva, quer dizer, ao ter acesso A cientificidade, realiza a filosofia positiva. Hela que permite ao espitito ultrapassar as explicacdes teol6gicas e meta- fisicas na andlise dos fendmenos sociais, econémicos e politicos. Em outras palavras: gracas & constituigao da sociologia, a cién- cia se tora 20 mesmo tempo filosofia positiva e sistema geral do saber humano. E esse acabamento sociolégico que permite a Comte elaborar uma teoria geral e uma classificacdo das ciéncias. Portanto, a sociologia é ao mesmo tempo uma ciéncia particular (fisica social, cujo objeto de estudo 6 a anélise dos fendmenos sociais), e uma ciéncia geral (englobando todas as disciplinas que hoje denominamos de humanes) e uma ciéncia filosdfica (cujo objetivo € explicar a evolucdo geral do espfrito humano sob a forma de uma sistematizacdo do conjunto das ciéncias € das instituigées, do saber € da aco). Portanto, a sociologia se define por ser uma ciéncia ao mesmo tempo especifica ¢ englo- Bante, Melhor ainda, apresenta-se como a ciéncia especifica cujo papel consiste em ser englobante. £ por isso que se propSe com a filtima cigncia na escala gradativa de complexidade crescente € de generalidade decrescente dos saberes jé constituldos. A ele nenhum outro saber poderia ser acrescentado. Assim, © teoria da sociologia proposta por Comte equivele, mutatis mutandis, ‘ao que hoje pode ser chamada de teoria geral das ciéncias bu- manas. Considerada do ponto de vista da classificagio das cién- cies, a sociologia € a0 mesmo tempo uma ciéncia autOnoma, enquanto constitui uma das seis ciéncias fundamentais, e uma cigncia relativa, pois s6 se constitul historicamente depois das outras. Tal solidariedade entre as ciéncias passa a explicar que, do somente os fenémenos sociais também sfo solidérios entre si, mas solidérios aos fendmenos organicos e inorginicos, de tal forma que 0 estudo do meio social ndo pode prescindir do co- nhecimento prévio do meio fisico e organico. Neste sentido, 2 sociedade constitui uma ordem natural (a ordem Individual esté subordinada & ordem social, 2 ordem social & ordem vital, e esta & ordem material) devendo estruturar-se na obediéncia a leis invaridveis: “Doravante, em filosofia politica, nfio haver4 119 ordem ¢ acordo posstveis sendo sujeftand: ia orden posses itando 0s fendmenos sociais ¢ todos os demaly a leis natures invariévis” (Cours, t 1¥, © papel da sociologia consiste j oe is justamente em descobrir as leis dessa ordem de seu desenvolvimento a partic do modelo de Tsien © da biologia. Por conseguinte, as Tels sociolégieas So do mesmo tipo que as das outras ciénces. Contudo, hi uma excegfo:, ao invés de se aplicarem a ordem fisica e ordem tal, aplicam-se & ordem social. Por outro lado, a solidariedade as tiéncias, no plano do objeto e no plano do estatuo, afirma: S¢ jgualmente no plano meiodotdgiee. Os procedimentos vil zados por determinada cigneia convém inevitavelmente as outas, Se sot gue podem emregtlos inditerente, muito embora cada ivilegio um método particular, em razo do ti ue estada mals especialmente, A socoigin pests de cleat ledugio matemética quanto a experimentaga das ciéncias fisicas) S método eomparstive, i » pode também usar o método compar Prsprio {its cléncas da vida, mito embora posta rivegiar 6 : , que se revela mais adequado & anélise do d senvolvimento da sociedade. Comte salva im, @ unin ; vaguarda, asi i dade da ciéncia, embora respeite a diversidede ee alesdnde date ga cence, embora respeite a diveridade e a aieidade 2.2.4. O PSICOLOGISMO DE W. WUNDT Como a maioria dos posi ; positivistas, Wilhelm Wundt (1832- 1920) foi 20 mesmo tempo wn fl6sofo um teéreo as én Gias, muito embora seja apenas conhecido como vm dos fun- adores da psicologia cleniiea, Ele foi o primeira pensador a derembaraare das preocupates metafiles no estado dos e gos. smente organicista e dete te afm que “nada se passa em nossa consiéncta que nfo ncontre seu fundamento sensorial em processos {isi mpadov e que o estudo do fancionamento do cerebro cosa ia psicologia com pretensées a cientificided: entanto, & associagio das id ius segundo. Wondt um puro automatismo, ele acreseents 6 que chasse ae gee fo, exprnindo uma atividade livre do pensimenta © fundano vt lo “eu”, sentimento da unidade que constitul verdadero substrato daquilo que histosieamente'se Chones oo 120 “alma”, Todavia, nfo nos vai interessar aqui a contribuigto de Waundt 20 nascimento da psicologia cientifica, estudada por ele nos Elementos de psicologia fisioldgica (1874), mas sua contri- buigdo para a formulagfo de uma teoria das ciéncias humanes. ‘Podemos encontrar, em toda a sua obra, elementos precio- sos para a claboragéo de uma teoria geval das ciéncias humanas. Todavia, foi somente em sua Légica das ciéncias do espivito (Logik der Geisteswissenschaften, 4° edigio.de 1921)-que-ele elaborou uma exposicfo sistemética de_seu-pensamento, Wundt parte -d fato: as ciéncias humanas existem. Contrariamente ao que se pensava, néo vé nenhuma necessidade de consiitul-las. J4 se encontram uidas. O problema que permanece ainda ido € 0 do fundamento do eonjunto dessas_cienei »» apresentam particuleridades rele- tivamente as ciéncias naturais. Todavia, os objetos dus ciéncies do espirito so sempre e, no mesmo tempo, objetos da natureza, ‘A questo esta om se descobrir uma disciplina suficientemente ‘auténoma suscetivel de utilizar os mesmos procedimentos das ciéncias naturais e que seja, ao mesmo tempo, proxima das ciéneias do espirito, Wundt pensa ter encontrado essa discipline na psicologia. A. psicologia pode e deve desempenhar, para as ciéncias do espirito, o mesmo papel de furdamento que a me- ‘cdnica havia desempenhado para as ciéncias natursis, Portanto, 2 distingao entre os dois tipos de cigncias, naturais ¢ do espirito, ndo pode ser uma diferenga de objeto, pois os fendmenos do espirito sempre se encontram mais ou menos ligados a0 corpo. ‘Trata-se unicamente de uma diferenga no modo de se aprender ‘0 mesmo real, Portanto, 36 metodotogicamente as ciéncies do espirito podem dlistinguir-se das naturais. Contudo, enquanto os objetos da natureza dio lugar a uma experimentaciio direta, os das cigncias do espirito so apreendidos mediante uma experién- ‘cia vivida, em razio de sua relagio com os valores que resultam de uma atividade voluntéria orientada para uma finalidade, Ora, no entender de Wundt, a psicologia desempenha um duplo papel: de um lado, possui’o privilégio de dar margem a experiéncias de laboratério (ele fundou o primeiro laboratério de psicologia experimental em Leipzig, em 1879) ¢ de elaborar leis quantitativas (lei de Weber-Fechner); do outro, ¢ diferen- temente das ciéncias naturals, a psicologia considera a realidade em sua fotalidade concreta, pois estuda seu objeto relativamen- te a um sujeito pensante © sentinte, Assim, a psicologia desem- 121 penha o papel de intermedidria entce as ciéncias naturals € as cigncias humenas. Wundt fala de uma psicologia toral, formada da psicologia individual e da psicologia coletiva. A’ primeira studa ser humano em sua individualidade, mas ndo\em sua singularidade (objeto da caracterologia). Todavia, 0 individuo € concebido como um ser genérico, Donde a psicologia indivi dual também ser, ao mesmo tempo, uma Psicologia geral, cujo objeto € 0 estudo do desenvolvimento das diversas fungdes pst quicas. A psicologia coletiva estuda as relagdes comunitétias entre os homens. Seus principais objetos sfo a lingua, @ arte, 05 mitos e os costumes. _ Bmbora 0 procedimento essencial da psicologia individual seja a experimentagao e o da psicologia coletiva, 0 método com- Parativo, os dois tipos de psicologia so-complementares € con- dicionam-se reciprocamente, porque néo hé coletividade sem individuos, nem tampouco individuos sem coletividade. Assim entendida, a psicologia wundtiana deve ser concebida como © ramo do saber que estuda o homem 20 mesmo tempo em sua totalidade individual e em suas relagdes comunitérias. E € por isso que ela constitui a mais geral das ciéncias do espitito, po- dendo ser tomada como o fundamento de todas as outres na medida em que condiciona também as normas da l6gica torna-se indiretamente o fundamento das ciénciss naturals. foi tomando por base essa sua panpsicologia que W. Wundt elaborou uma classificacao das ciéncias do espirto, implicando, como toda classificagio, uma teoria de tais disciplinas. Estas se repartem em duas familias epistemol6gicas: as ciéncias his- tGricas (Geschichteswissenchaften) e as ciéncias sociais (Ge- sellschafteswissenchaften).. As primeiras estudam as formas tem porais ¢ desvanescentes da criatividade humana; as segundas, 2s formas durdveis e institucionalizadas da sociedade: sociolo- sia, etnologia, demografia, economia politica e ciéncia jusidica, 2.2.5. A POSITIVIDADE DAS CIENCIAS HUMANAS EM DILTHEY Podemos dizer com seguranga que Withelm Dilthe smos dizer com segurunga qu iIthey (1833- 1911) foi o primeiro tedrico propriamente dito das ciéncias humanas, Sua obra introduziu uma verdadeira reviravolta no rumo epistemolégico dessas disciplinas, inaugurando um campo 122 de investigaco para a filosofia que, nessa époce, vivia num es- pléndido isolamento quanto as pesquisas que se fazia sobre a realidade humana e social. Essa obra suscitou um debate de- cisivo que, a partir de entdo, nenbum filésofo ou metodélogo poderia ignorar. Dilthey foi o primeiro a conceber uma episte- mologia auténoma das ciéncias humanas, muito embora possa ser contestado 0 modo como coloca os problemas dessas disci- plinas. Talvez um de seus raros méritos tenba sido o de ter compreendido que nfo se deve coloca: 0 vinho novo em odres velhos. Porque as ciéncias humanas, en: pleno perfodo de expan- séio, comecam a esbocar os contornos de um novo mundo inte- lectual, vale dizer, de um novo espaco epistemolégico passando a exigit, doravante, uma reflexio segundo novas estruiuras de ensamento. Desse ponto de vista, a obra de Dilthey se apre- senta como uma tomada de consciéncia determinante do con- junto da questdo das disciplinas humanas, com suas implicagSes filoséficas, légicas ¢ epistemolégicas. Para ser bem compreen- dida, precisamos saber que Dilthey operou a confluéncia das diversas correntes de pensamento atuante no século XIX: 0 historicismo, a hermenéutica ¢ 0 positivismo. Néo vamos estu- dar agui cada uma dessas tendéncias. Pretendemos apenas indi- car sua influéncia marcante no processo de autodeterminagéo epistemol6gica das disciplinas humanas. Em primeiro lugar, Dilthey se situa na continuidade da chamada escola histérica. Esta escola queria colocar o problema das cigncias humanas em termos novos. Queria proclamar a in- dependéncia dessas disciplinas. Essa luta pela autonomia gerou varios conflitos metodolégicos, sobretudo com as ciéncias natu- rais, com seus métodos jé seguros e respeitdveis, impondo-se conto 0 modelo ou o protétipo de todo conkecimento com pre- tensdes & cientificidade. Nao é verdade que as ciéncias naturais tenham pretendido exercer uma regéncia ou tutela sobre as cigncias humanas. Estavam preocupadas com seus problemas especificos, e chegavam mesmo a ignorar a existéncia das dis- ciplinas ditas humanas (na época, chamadas de “ciéncias do espicito”). Foram os fil6sofos que tentaram impor a essas dis- ciplinas 2 metodologia das ciéncias naturais. Em matéria de método, nao deve haver ortodoxia. Se um procedimento das cigncias naturais revela-se fecundo, pode muito bem ser em- pregado pelas disciplinas humanas. No entanto, tais conflitos no foram de todo estéreis. Pelo contrério, contribuiram sobre- 123 maneira para precisar ¢ determinar 0 estatuto epistemolégico as novas disciplinas. Ademais, 0s problemas metodolégicos contribuem para a construgio ¢ para a elaboracio I6gica dos Conceitos cientificos. Contudo, a forca catalisadora, em favor da autodeterminagio epistemoldgica das ciéacias humanas, fol 8 tomada de consciéncia da dimensiio histérica das atividades humanas. Tal forga surgiu a partir da reflexéo sobre os pro- gressos do espfrito humano no decorrer dos tempos e sobre a Significacko da Revolugéo Francesa, Todavia, diferentemente do racionalismo do Muminismo, o novo: sentido histérico recusava a abstraco das construgdes intelectuais ¢ afiemava-se como um sentido do real pela intuigéo da vida concreta e pela busca da autenticidade e do vivido, sob a forma do desenvolvimento do Eu, da Nagao e da descoberta do “espicito do povo” (Volks. gheist), Deu-se, nessa época, muita énfase A interpretagio de expressdes como “a alma do povo”, “‘o espitito do povo, “a hhist6ria natural do Estado”, “as formas naturais da vida huma- na”. Tais nogGes possuiam’ um dinamismo cultural, pois eram concebidas na dimensio histrica de uma aco quase mistica, Os problemas que constituem o objeto das ciéacias humanas: a politica, o Estado, a sociedade, o direito, a religigo, as linguas, a arte, deram margem a debates sem fim, Foi nessa época que a filosofia se abriu as questdes das ciéncias humanas, negligen- ciadas pela filosofia clissica, Dilthey tomou parte ativa nesses debates metodolégicos, Sua preocupacdo basica, no entanto, era colocar a questfo trans cendental daquilo que chamou de “eritiea da razdo histérica”. Foi essa “critica” que the permitiu colocar ao mesmo tempo o problema da histéria ¢ da filosofia, embora de um modo dis- into da maneira como 0 colocava ‘a filosofia da histéria, bas- tante em moda na época, Dilthey tomou consciéncia de que o verdadeiro problema das ciéncias humanas nio podia residir na consciéncia histérica da relatividade de todo sistema filosofico ou de todo sistema de pensamento, mas na necessidade impe- tiosa de se tomar essa relatividade como objeto de estudo ¢ de reflexdo, Voltaremos a esse assunto propésito dos problemas metodolégicos das ciéncias humanas, no préximo capitulo, Em segundo lugar, Dilthey so insereve na corrente hermen néutica que j vinha sendo aplicada no campo da teologia por Scheleiermacher, no campo da filosofia por A. Boeckh (1785- 1867) no dominio da histéira por J.G. Droysen (1808-1884). 124 1ermenéutica, enquanto interpretactio ou arte de compreender ce nunifestagees 6a vida, surg como. um método capaz de conferir unidede as ciéncias humanas. Enquanto interpretagio € compreensio, € nfio enquanto explicagio, constitai um método desprovido do rigor necessério a um verdadeiro procedimento cientifico. Néo pode apresentar-se como explicago, quer dizer, como busca das causas ¢ dos efeitos. Dilthey toma a hermenéu- tica como 0 método comum das cigncias humanas © como 0 fundamento de wma teoria geral dessas disciplinas. Diferente- mente do método das ciéncias naturais, eminentemente explica~ tivo, 0 método das ciéncias humanas deve ser compreensivo. Dilthey retoma a distingdo de Droysen entre explicacio e com- reensfio para estabelecer o critério metodol6gico mais adequ do para se distinguir logicamente as ciéncias naturais das cién~ cias humanas. sae oe Enfim, Dilthey sofreu bastante a influéncia do positivismo, muito embora faga sérias restricGes a essa corrente de pensa- mento, Sua obra fundamental para a histéria das ciéncias hu- manas, Introdugdo ao estudo das ciéncias do esptrito (1883), tem um subtitulo bastante sugestivo: Ensaio sobre o fundamenio ‘que se poderia dar ao estudo da sociedade e da historia, Nessa obra, ele ataca a concepefo positivista que se converte numa explicagio, numa preocupaeio explicativa, Acha que € preciso renunciar @ esse pensamento causal ¢ racionalista que conduz a uma realidade abstratamente reconstrufda, para se tentar com~ preender a realidade humana, que € essencialmente social ¢ his- torica, Ora, essas duas ciéncias humanas, desse ponto de vista, apdiam-se na psicologia, ciéncia de base, estudo do individuo como, consciéncia e como unidade psicofisica. Compreender nao € explicar, mas conhecer intuitivamente por uma partici acto vivida. Portanto, temos necessidade de uma psicologia compreensiva, ao mesmo tempo descritiva e anelitica, eapaz de reconhecer a unidade estrutural do individuo ¢ sua mancira de ser no mundo, : Por outro lado, Dilthey critica 0 positivismo na medida em ‘que no reconhece na sociologia o estatuto epistemol6gico que the conferira Comte. Deu a prioridade 2 psicologia, mas co batendo vigorosamente 0° naturalismo que infestava essa disc plina, sem, no entanto, recair nas armadilhas da introspecedo. Evidentemente, esse primado conferido a psicologia nfo cons- titui a originalidade de Dilthey. Significa apenas que seu pensa- 125 mento esté vinculado as circunstincias hist6ricas. Aliés, um de seus méritos consistiu justamente em ter evidenciado esse condicionamento s6cio-cultural. Por isso, mesmo valorizando a raziio e os sistemas racionais que sfo as ciéncias, estava cons- ciente da importéncia da explicacéo cientifica em dominar in- teiramente as forcas racionais. No entanto, acreditava que o vivido é algo incomensurével 20 puro racional. Uma explicagio pelas causas nao tem condigdes de explicar a incoeréncia dos sentimentos ¢ das paix6es, nem tampouco a multiplicidade dos fins buscados pelo homem mediante ages por vezes contradi- t6rias, Haveria na “rezo” uma boa parte de “irracionalidade gue no compete & razo explicer. E por isso que a critica dil theyniana da “razdo histérica” também deve ser uma critica his- ‘rica da razdo. O devit da razo nunca é inteiramente aut6n0- mo. Encontra-se sempre as voltas e em choque com os obsté- culos da experiéncia vivida. Todo 0 empenho metodolégico de Dilthey consistiu em mostrar que as cigncias humanas so positivas. Nao no sentido em que devam subordinar-se aos métodos das ciéncias naturais, mas na medida em devem postular ou reivindicar uma meto- dologia que seja ‘adequada ao seu domfnio de investigacio. B justamente em nome do positivismo cientifico que cle cré na heterogeneidade entre os métodos das ciéncias naturais e das ciéncias bumanas. Tal heterogeneidade ou diferenga nao 6 fruto de uma deciséo arbitréria, mas a conseqiléacia de um dualismo epistemoldgico que vai encontrar sua forte na particularidade da hist6ria. “A “critica da razio histérica” tem por objetivo romper com o naturalismo, cuje utilidade filos6fica foi inegaével, pois contribuiu para a ctiacdo do direito natural, da religigo natural, da moral natural ¢ de outras disciplinas “naturais”. E isto, por oposigéo & metafisica classica. No entanto, Dil acredita que o naturalismo precisa ser superado, Alids, 0 pré- Prio desenvolvimento das ciéncias vem mostrar sua infecundi dade hist6rica. Sem divida, néo se trata de negar ou de excluir sistematicamente das ciéncias humanas certos procedimentos das ciéncias naturais, sobretudo quando eles se revelam fecun- dos. Contudo, a reducéo das ciéncias humanas aos modelos explicativos das ciéncias naturais, longe de favorecer sua eclo~ so, entrava seu desenvolvimento e cria obsticulos & sua auto- determinacio epistemolégica, pois elas precisam fundar-se sobre outro tipo de inteligibilidade. E € por isso que devem ser con- 126 sideradas como cigncias auténomas. A mentalidade naturalista tem a pretensio de constituir as ciéncias humanas, como se elas no existissem de fato, Ora, se quer constituf-las, € porque se faz uma idéia a priori e dogmética do que vem a ser ciéncia, para recusar arbitrariamente esse titulo as diversas ¢'sciplinas: 56 sio cientificas as que se poem em conformidade com certos artis pris iniciai Pen oatvralismo do século XIX sempre esteve preoeupado com problemas metodol6gicos. Nao vamos aqui estudé-lo em todas as suas conseqiiéncias. Mas precisamos pelo menos ca- racterizé-lo sucintamente, pois foi responséivel pelo cientificismo do século pasado e constitui, ainda hoje, o pano de fundo his~ t6rico do cientificismo contemporaneo. Em “Os fopdamenioe epistemotégicns do cientticsmo” (O mito da neutralidade clen- thica, Imago, 2* edigfo, 1977), estado mais detalhadamente esse assunto. Retomemos, aqui, apenas alguns pardgrafos rela tivos ao naturalismo. Su2s notas distintivas sio: . considera que as ciéncias da natureza constituem a * Gase s6lide e insuspeita de todo ¢ qualquer conhe- cimento objetivo, quer dizer, somente elas detém o modelo dos conkecimentos verdadeiros, pois sfo as finicas a poder estabelecer as normas ¢ 0s cfnones de toda cientificidades b. identifica todos os objetos de conhecimento numa indiferenga axiol6gica total, sem levar em conta as particularidades individuais; conseqientemente, ow as criagoes e os produtos da atividade humana se reduzem as determinacées materiais ou técnicas, ov nao terdo nenhum valor cognitivo; jidera que as ciéncias bumanas permaneceriio soni tro te mete ete mol6gica, enquanto nao se curvarem decididamente a0s critétios de cientificidade propostos Peles cién- cias naturais; d. encara o pensamento filosfico como a etapa ultra~ passada de uma cléncia imaturs, porque, dentre to- das as atividades humanas, devemos ver na ativida- de cientifica 0 critério tinico de verdade. 127 Evidentemente, os naturalistas nfo se alinham necessaria- mente no interior de um pensamento unitério, Distribuem-se ‘em Vérias categorias: «) hé os que se do um fundamento filo- s6fico, quase sempre 0 materialismo, concebido de modo me= canicista, dialético, oxganicista ou simplesmente utilitarista; b) é 08 que se dio por modelo as ciéncias naturais em seu con~ junto ou, entéo, uma disciplina particular, dentre as ciéncias naturals: fisica, biologia, fisiologia ete., ou a psicologia, conce- bida como ciéneia natural; c) ha os que tomam por ponto de partida uma teoria ou um’conceito das ciéncias naturais: prin- cipio do determinismo, conceito de lei natural, conceito de meio, teoria energética etc.; d) hé os que se contentam em aplicar de modo mais ou menos pragmético os métodos das ciéncias natu- rais, especialmente os métodos experimentais, sem se preocu- parem com nenhuma justificagao epistemoldgica ou filoséfica. Ora, segundo 05 naturalistas, uma tinica epistemologia de- verd presidir constituico das ciéncias humanas: mais com- plexas que as ciéncias naturais, devem tomar-lhes de emprésti mo os métodos para poderem ter assegurados seus resultados. Ademais, uma ciéneia digna dese nome ou sera experimental, ou nao serd cientifica. E é esse 0 estado de espfrito mais di fundido entre os cientistas do fim do século XIX, E esse estado de espirito, mesmo informulado, & muito mais tirinico do que as préprias doutrinas. Coneebida como “‘mestra” de toda ver- dade, 0 ciéncia é a benfeitora ntimero um da humanidade, re- clamando para si as diregdes material, espiritual e moral’ das sociedades, Somente ela pode fornecer as bases de doutrinas li- vyremente consentidas pelos cidadiios do futuro. Ela domina tu- do, e nenhum homem, nenhuma instituigo, poderfio ter uma autoridade duradoura, 'se nfo se conformarem a seus ensina~ mentos. Nessas condlig6es, 0 naturalismo leva fatalmente a uma six tuagio paradoxal: nao somente tende a govemar as cincias humanas, tenta substituir tanto para explicar quan~ to para di idades humanas. No dizer de G, Gusdorf, “parece que as cigncias da natureza se tornaram, de direito, ciéncias sociais ou, pelo menos, fazem autoridade no dominio social: esse deve, tanto quanto possvel, i fruturas © a conformagao’das disciplinas na ‘ordem fisico-qui- mica e biolégica, Em outras palavras, a certeza cientilica se basta a si mesma; ela estende mesmo sua jurisdic a dominios 128 que ainda nfo Ihe pertencem; mas ¢ feito um grande esforgo para que sejam reduzidos, dentro em pouco, A obediéncia as normas que prevallecem nas ciéncias exatas (...). A idéia de cigncia do homem cede, pois, o lugar a esperanga de uma cién- cia sem o homem, de uma ciéncia que nfo tem mais necessidade do homem e que o perde no meio do caminho, afogado na massa do real, néo podendo mais ser distinguido por ninguém” (introduction aux sciences humaines, 1974). Ora, diferentemente dos partidérios do naturalismo, Dil they se interessa pouco pelo problema dos métodos, pois 0 con- sidera por demais escolar. O que ele tenta descobrir so as con~ digdes de inteligibilidade proprias As ciéncias humanes. Sua me~ ta primordial € conhecer a contribuigdo positiva dessas disci- plinas, imprescindivel para o conhecimento mais adequado e aprofundado dos homens ¢ das coisas. Considera véo ¢ sem in- teresse o problema de discatir sobre seu cardter cientffico, so- bretudo quando tal debate é feito em nome de uma teoria ‘pre~ concebida e, por conseguinte, preconceituosa da ciéncia. O epis- temélogo no € o arquiteto das ciéncias humanas, mas seu his- toriador. 1 baseando-se na hist6ria das disciplinas cientificas que se chege A formulacto de suas teorias. E 0 que a hist6ria nos ensina € que as ciéncias nasceram ¢ cresceram no meio da pré- tica da vida, Ensina-nos ainda que seu objeto nfo é uma na- tureza idéntica a si mesma, mas um conjunto de obras ¢ de convencées criadas pelo homem, antes de elaborar uma cincia sobre elas. © homem néo criow a natureza, mas 0 mundo social: 0s planetas existem independentemente de sua vontade, mas nfo 0 direito, a economia ou a politica, Donde a criginalidade das ciéncias humanas: todas sio obras do homem e, por conse~ guinte, so ciéncias histéricas. Enquanto tais, nfo analisam ape- nas um objeto exterior ao homem, mas € a propria razdo do cientista que se torna historica, vale dizer, € 0 homem criador das obras humanas que constitui o objeto das ciéncias do es- pirito, ‘Nio devemos voncluir, como o fez a metatisica cléssica, que hé dvas realidades ontologicamente heterogéneas: a do esptrito ea da matéria. A realidade € una, mas néo se deixa apreender de modo tinico, como pretende o naturalismo. De um lado, € acessivel & experiéncia externa, do outro, & experiéncia interna: a natureza se submete ds condigdes da consciéncia, € esta, as condicdes da natureza, O mundo do espirito € ao mes- 129 mo tempo objeto de representacdo, de experimentagio e da ex- periéncia vivida. Os fenémenos sociais ¢ psiquicos nfo séo in- teiramente inteligtveis pelos procedimentos das ciéncias da na- tureza. O objeto das ciéncias humanas consiste em aprender @ realidade hist6rica e social naquilo que ela tem de singular ¢ de individual, bem como em estabelecer as regras e os fins de seu desenvolvimento. Desse modo, poderio integrar-se no do- minio das ciéncias do espirito, nfo somente as ciéncias de ca- réter empitico (sociologia, economia, politica), mas também as disciplinas normativas (moral, estética e poética). ‘Mas como Dilthey entende 2 historicidade? De dois mo- dos: de um lado, como relatividade dos fenémenos ao passado © como conhecimento desse passado; do outro, como “presenca” do futuro em toda aco humana. A historicidade nfo € apenas 2 busca daquilo que jé se realizou, mas o tecido da vida que se perpetua. Donde a conclusio: todo objeto das cigncias humanas € hist6rico, pois encontra-se em devir. Mas também essas disci- Plinas so hist6ricas, porque se desenvolvem ao mesmo tempo que a aco e o espirito humanos. E 6 neste sentido que 0 co- ahecimento histérico também & humano. Dai também ser his- t6rica a razdo, pois nunca & constitulda, posto que se forma indefinidamente como razio na hist6ria, Diferentemente des ciéncias da natureza, que nos orientam para uma concepeio determinista do mundo, as ciéncias humanas nos revelam um mundo poético, um mundo feito pelo homem. + Todavia, a histéria ndo é inteligivel por si mesma, porque seu fundamento nao € hist6rico, mas psicoldgico. A hist6ria nada mais’ é que uma psicologia em devir. Mas nfo é a psicologia experimental que constitui o fundamento da histéria, pois ne- gligencia a singularidade © 0 vivido, bem como seu sentido no conjunto dos fenémenos da vida. O fandamento deve ser pro- curado no dominio da psicologia descritiva, pois & cla que res Peita o conjunto da vida psiquica tal como ele € dado o mente, torando-se eapaz de preservar a singulatidade de cada elemento como algo’ integrado na totalidade. Se tal psicologia desempenba o papel de fundamento das cigncias humanas, nfo € somente porque reconhece a originalidade do imediatamente vivido, mas porque também constitui a condiedlo do conheci- ‘mento, de uma vez que a teoria do conhecimento outra coisa 130 néo € senZo uma psicologia em movimento. Para determinar 0 estatuto cientifico das ciéncias do espfrito, nfo se deve inventar uma légica nova ou reformer a antiga, mas desenvolver outra teoria do conhecimento adequada & apreensdo do individual. A natureza deve ser explicada, mas a vida psfquica precisa set compreendida, O “vivido” € um dado primitive ¢ fundamental. Compreendé-o, nao significa introspeccioné-Io, pois a compre- ensfo se aplica também ao conhecimento de outrem e 20s con- juntos sociais e culturais. Ela € um procedimento racional e discursivo que obedece as Ieis ordinérias da I6gica, mas que nfo € puramente racional como um raciocinio, pois se funda sobre a simpatia indispens4vel & inteligéncia do singular. # a todo esse processo compreensivo que Dilthey chama de 0 método hermenéutico: processo pelo qual conhecemos a vida psiquica com a ajuda de sineis sensiveis que nfo so sua manifesiacao, vale dizer, processo de descoberta das signijica- Ges, tendo por tarefa interpretar as palavras, os gestos, 0s es- critos, em suma, todo ato ou toda obra enquanto singularmente integrada mum conjunto do qual faz parte. A hermenéutica per- mite conciliar a explicagdo e a compreensio. Nao é uma filo- sofia da hist6ria, pois a ciéncia ndlo nos diz qual seré o futuro do homem, mas uma filosofia da compreensio teérica do ho- mem enguanto cle é natureza num devir hist6rico. A influgncia de Dilthey, embora pouco visivel em nossos dias, foi muito grande, no século passado e principio do século XX’ sobre os problemas metodolégicos das cigncias humanas. Com efeito, exercerd forte influéacia no desenvolvimento do historicismo em sociologia, que seré defendido por seu discipulo Mannheim (1893-1947). Também exerceu forte influéncia no antipositivismo de Max Scheler e, em seguida, na corrente exis- tencialista em psicologia e em psiquiatria, com Karl Jaspers, autor, entre outras obras, da Psicopatologia geral (1913) © da Psicologia das concepcdes do mundo (1919). Tais obras inspi- raram bastante a anélise existencial de Biswenger (Daseins- Anulyse, relomada de Heidegger) €, naturalmente, o movimen- to fenomenolégico em todas as suas formas, Pode-se dizer que 2 viséo de Dilthey a propésito das ciéncias humanas prolonga-se numa pedagogia e numa estética, 131

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