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CAPITULO IV A Competéncia da Alma sob o Ponto de Vista Religioso Podemos agora demonstrar como é confirmado o que avancgamos no capitulo anterior. Se o principio da compe- téncia da alma em matéria religiosa 6 um fator com o qual os batistas contribuiram distintamente para o pensa- mento do mundo, se é um elemento vital na mensagem que os batistas dirigem 4 raga humana, deve isso tornar- se manifesto quando se faz a comparaciio entre éle e as opiniSes das varias outras coletividades cristas. Usando désse processo de comparagio, penso que o leitor sincero ha de reconhecer sem dificuldade que se trata de um sinal distintivo dos batista. Também ha de perceber a sua simplicidade e, mesmo, universalidade como uma assun- cio basica no cristianismo do Novo Testamento, enquanto que, ao mesmo tempo, ha de néle descobrir um critério 70 E. Y. MULLINS compreensivo para classificar os varios corpos eclesids- ticos da cristandade, OS ROMANISTAS E A COMPETENGIA DA ALMA SOB 0 PONTO DE VISTA RELIGIOSO Comparai, pois, primeiro o principio da competéncia da alma sob o ponto de vista religioso com o Catolicismo Romano. Pode-se mostrar histéricamente, sem a minima dificuldade, que o principio formativo do sistema caté- lico romano é a antitese direta da doutrina sébre a com- peténcia da alma. O romanismo, por outras palavras, sus- tenta em todos os pontos a incompeténcia da alma em matéria religiosa. Desde o principio até o fim o roma- nismo considera o espirito humano dependente, religiosa- mente falando, de outros espiritos humanos. Considera a alma como incompetente, por si s6, para manter relagdes com Deus. Isto nao é sdmente a expressdo exterior e o resultado pratico do sistema hierarquico romano; é tam- bém a teoria reconhecida pela igreja, proclamada sem hesitagio. Os leigos dependem dos sacerdotes. Cada or- dem na hierarquia esté dependente da que lhe é imediata- mente superior, e tédas elas esto sob a necessidade de adquirir instrugio para o intelecto, e regras para a vida religiosa e moral, do cabeca infalivel da igreja, que esta em Roma. Em todos os pormenores da vida eclesidstica e reli- giosa dos catélicos romanos transparece a idéia da in- competéncia da alma. Todos os sete sacramentos provam esta assercio de maneira notavel. A capacidade da alma para comunicar-se com Cristo e receber a revelacio das suas mios 6 negada no batismo. 86 mediante o batismo administrado por um sacerdote autorizado (salvo casos de férga maior) pode a regeneradora eficdcia do cristia- nismo atingir a alma. Fora da igreja no ha salvacio. S6 os dois, Cristo e a alma, nfo sao bastantes para a OS AXIOMAS DA RELIGIAO 71 operagio remidora. As tnicas m&os competentes so as humanas e sacerdotais. O mesmo principio se acha ligado a administragaéo da Ceia do Senhor. O seu poder é nulo enquanto os elementos néo sio transformados, pelo toque sacerdotal, no corpo e sangue de Cristo. A comunhao com Cristo é assim transportada do reino do espirito para o reino da matéria, e os elementos materiais necessarios para a comunhio constituem um monopdlio eclesidstico préso a um sacerdécio humano. A confissio auricular também da a entender que na oracéo o homem é incompe- tente para tratar diretamente com Deus. A absolvicéo tem de ser proferida por um sacerdote humano. A peni- téncia imposta pelo padre é, por seu turno, uma barreira que se levanta entre o coracio quebrantado e o compassi- vo Pai celestial, e proclama que o seu indulgente amor, em vez de rolar como uma onda sdbre a alma contrita, ex- pande-se e contrai-se em harmonia com a severidade ou brandura de um medianeiro humano, de um pecador. Ou- trossim, Cristo nio pode chamar um homem para o seu ministério, e nenhum homem pode responder a essa cha- mada, fora da linha da sucessfo apostdlica. O sacramento da ordenagio limita o ministério de Cristo a uma cadeia eclesidstica que em nenhum ponto deve ser quebrada, e condena, por conseguinte, téddas as demais ordenagées, proclamando que a chamada para o ministério feita dire- tamente por Cristo nao passa de uma ilusao. O sacramento da extrema uncio, aplicado aos mo- ribundos, 6 uma outra forma da assercio romanista da incompeténcia da alma. A graca de Deus no coragio no pode preparar o homem para a passagem, mediante a morte, desta vida para a outra. Enquanto o padre nao ungir, com o éleo consagrado pelo bispo, os olhos, os ou- vidos, 0 nariz, a béca, as palmas das m&os e as solas dos pés do moribundo, nao esta éste aparelhado para a par- tida. S6 mediante a intervencio sacerdotal é que, portan- to, a alma se torna apta para a morte. Os grilhdes desta 72 E. Y. MULLINS escravidaéo a um sacerdécio mortal e humano nao sao des- pedacgados mesmo quando a morte tem separado o espirito do corpo; 6 que as portas do purgatério sé se abrem me- diante a intercessio sacerdotal na terra. E, finalmente, a doutrina da infalibilidade papal, com- binada com a de uma tradig&o autorizada, proibe que se fagam interpretag6es individuais das Escrituras ou que divirjam das interpretagdes da igreja. Descobrir e pro- clamar uma interpretagéo da Palavra de Deus que se afaste, em qualquer parte essencial, da que traz o sélo da aprovacio tradicional ou papal, é para o catédlico cha- mar sObre a sua cabeca o anatema da igreja. Assim, desde o principio até o fim, 0 romanismo tem a sua estrutura eclesiastica baseada sdébre a negativa da competéncia da alma em matéria de religiao. Nao ha uma fdlha nesta grande arvore que nao esteja modelada em rigida obediéncia a éste seu ideal construtivo, a in- capacidade da alma para se ocupar, por si s6, de assuntos religiosos. Pésto que nao desejemos de forma alguma di- minuir o valor e a importancia do bem que o Catolicismo Romano tem feito, na sua obra de beneficéncia e filan- tropia, somos compelidos a dizer que na sua teoria ecle- sidstica é, néo somente oposto ao desenvolvimento e pro- gresso da humanidade, como inconsistente com o cristia- nismo de Cristo. Se ha coisa que esteja claramente ex- posta no Novo Testamento, é a doutrina de Cristo acérca da capacidade, direito e privilégio da alma de se aproximar diretamente de Deus e tratar com Ele sdébre religiao. 0 PROTESTANTISMO & TAMBEM INCOERENTE Vamos agora ocupar-nos do principio batista, da com< peténcia da alma sob o ponto de vista religioso, na sua relacéo com o protestantismo em geral. As consideracées que temos a fazer sao, j4 se vé, muito diferentes das que apresentamos relativamente ao Catolicismo Romano. Mas OS AXIOMAS DA RELIGIAO 73 as igrejas que adotam o batismo infantil ou o episcopado sob qualquer forma nao est&o, em certos pontos impor- tantes, em conformidade com o principio do Novo Tes- tamento. Estas coletividades representam, de fato, um cristianismo dualista. Procuram conciliar o principio ro- mano da incompeténcia com o antitético principio da com- peténcia. Ao insistirem sébre as doutrinas da justificagaio pela £6, reconhecem o principio da competéncia; mas pelo fato de manterem o batismo infantil ou o episcopado admitem o principio oposto. O batismo infantil priva a crianca do seu privilégio de iniciativa individual, no que respeita 4 salvacao, e poe nas maos dos pais ou dos pa- drinhos a impossivel tarefa de cumprir por outro um ato de obediéncia religiosa. Semelhante modo de ver as coi- sas é como um machado posto a raiz da obediéncia, e destréi a sua natureza essencial. O protestantismo corrente procura, em conseqiiéncia, harmonizar dois principios diametralmente opostos. Ha, em outras palavras, dois modos de obter a salvacaio, e dois modos de entrar numa igreja episcopal ou presbite- riana. Um é mediante a obediéncia pessoal. O candidato a membro da igreja que nado foi batizado declara que cré nestes e naqueles pontos, que implicam, j& se vé, a justi- ficagio pela fé em Cristo. E’ recebido e batizado em virtude desta sua profissio de fé, e, portanto, obedece por si proprio. Outro, que foi batizado na sua infancia, também solicita a admisséo na igreja, e é recebido em virtude désse batismo. No primeiro caso 0 candidato obe- deceu pessoalmente; no segundo os seus padrinhos obe- deceram por éle. Os dois principios sio fundamentalmen- te opostos. Nao 6 de admirar, portanto, que as igrejas pedobatistas tenham grande dificuldade em explicar a po- siglo que ocupam na igreja as criancas patizadas. Sao membros da igreja, ou nao séo? Os congregacionalistas da Nova Inglaterra discutiram o assunto durante muito tempo, no periodo da colonizag&éo, e nunca chegaram a 74 E. Y. MULLINS uma solucio satisfatéria do problema, como veremos mais adiante. As mesmas dificuldades existem hoje em tédas as denominagées pedobatistas. A posig&o, na igreja, das cri- angas batizadas, por qualquer forma que seja encarada, é uma contradicio 4 doutrina da justificagao pela fé e da obediéncia pessoal, que as mesmas igrejas sustentam. EH’ que no primeiro caso afirma-se a competéncia da alma sob o ponto de vista religioso — isto é, que é justificada pela fé e obedece pessoalmente; e no segundo nega-se essa competéncia, pois que se batiza a crianga e os pais ou os padrinhos é que ficam com a responsabilidade da obedi- éncia. O principio do Novo Testamento, da competéncia da alma é também violado em tédas as organizacées eclesi- Asticag que adotam o episcopado e qualquer outra forma de oligarquia eclesidstica. Como, porém, o principio da democracia no govérno da igreja vai ser tratado noutros capitulos, no iremos agora mais além na discussdo do caso. Terminando as nossas observacdes sobre a revela- cao da doutrina batista da competéncia da alma sob o ponto de vista religioso com as idéias das igrejas pedoba- tistas, é-nos apenas necessério notar que estas adotam num ponto e contradizem noutro um principio que atinge a sua plenitude na constituigio batista. Os batistas tém- se conduzido numa perfeita coeréncia com ésse princi- pio. O seu fim é conseguir que & humanidade seja res- tituido o cristianismo primitivo em téda a sua integridade. A COMPETENCIA DA ALMA E 0 PROGRESSO MODERNO Ocupemo-nos agora da relag&éo da doutrina da com- peténcia com a vida e progresso modernos. Este ponto sera também discutido mais adiante. No entretanto, dire- mos algumas palavras, que servirdio como que de eshdco OS AXIOMAS DA RELIGIAO 75 geral. No seu sentido proprio, a doutrina da competéncia da alma sob o ponto de vista religioso é a stimula da nossa vida progressiva e da nossa civilizacio. O prin- cipio religioso é sempre a férca dominante que imprime os seus principais caracteristicos a qualquer civilizacao. A competéncia do homem para assuntos de religido é a competéncia do homem em todo o lugar. Todos os movi- mentos importantes da atualidade sfo uma ou outra forma daquele elevado propésito do homem de retroceder até Deus. A arte é simplesmente a assercao da capacidade ine- rente do homem para a beleza, a proclamacao de que éle é competente para tracar as linhas sutis de um conjunto gracioso, os matizes variados e formas de um complicado e maravilhoso universo. A arte é simplesmente a mar- cha do amante do belo pelas estradas de uma criag&o va- riegada, encontrando-se por fim face a face com Aquéle que é infinitamente Belo. A ciéncia é a inquiricéio correspondente da verdade, a assercio de que a alma foi feita para a verdade, a sua competéncia para descobrir a verdade, a sua luta imortal pela verdade até se encontrar na presenca d’Aquéle que é a Verdade. © AGNOSTICISMO & UMA FILOSOFIA RETARDADA A filosofia assevera também simplesmente a compe- téncia da alma no reino do pensamento especulativo. O teismo cristo é a tnica filosofia possivel para o homem que aceita o nosso principio fundamental da competéncia da alma. E’ que éle afirma o poder de Deus para fazer uma revelagéo ao homem e a capacidade do homem para a receber e para comunicar-se com Deus. O agnosticismo, que nega a competéncia da intelectualidade humana, é o catolicismo romano da filosofia, e constitui uma opiniao retardada acérca da aptidao do homem na esfera inte- 76 E. Y. MULLINS lectual. Aquéles que na sua atitude teolégica se inclinam para o agnosticismo deveriam reexaminar os seus funda- mentos e procurar descobrir as suas verdadeiras afinida- des intelectuais e espirituais. A politica, a governagao publica, as instituigdes so- ciais, atestam igualmente a competéncia moral do homem, a sua capacidade para o progresso moral numa sociedade bem organizaza e sob a dependéncia de Deus. A socieda- de é a asserc&o ousada de que, sob o govérno de Deus, se ha de atingir, na esfera humana, a justica eterna. Se vir- Mos no ouro e nas pérolas as mais elevadas virtudes mo- rais, nos muros de jaspe e nos seus doze fundamentos o rei- nado da lei moral, nos céus resplandecentes a luz e gloria da verdade triunfando na alma humana, nas aleluias da multidaéo em regosijo e triunfante vestida de branco, uma ordem social purificada, teremos na incomparavel gloria e beleza da nova Jerusalém, que o profeta viu descer do céu 4 terra, o simbolo adequado do que se esta passando no mundo em volta de nds — o homem, sob a dependéncia de Deus, promovendo uma ordem social ideal. A auséncia do templo na cidade aperfeigoada significa que a vida se transformara num templo e que tédas as suas manifes- tagdes serdo outros tantos atos de culto. A auséncia do sol significa que téda a luz e téda a verdade s&o agora nossas, mediante o Deus que reside conoseo. A auséncia de trabalho significa que tudo surge espontaneamente. Cultura, religido, moralidade, tudo se reune para consti- tuir um conjunto perfeito, uma humanidade que progride e alcanca grandes resultados. A FONTE DO DESCONTENTAMENTO E’ a convicgéo imortal do homem sébre sua compe- téncia para conseguir éste fim que abre no seu peito a fonte do descontentamento. Um simbolo do modo como éle se vai aproximando do seu alvo pode ser representado OS AXIOMAS DA RELIGIAO 7 por um escultor que cinzela no marmore a sua imagem, fica durante um certo tempo satisfeito com a sua obra, destrdi-a depois, ou pée-na de lado, principia a trabalhar noutro bloco e executa uma estétua mais perfeita; o homem esta constantemente produzindo e constantemente repudiando o que produziu, até o momento em que conse- gue produzir a imagem de Deus em si préprio, mediante a gracga de Deus. Tudo isto, e ainda mais, se acha impli- cito no nosso principio da competéncia da alma em maté- ria de religiio. A América é a arena que Deus proveu para a livre e plena representacaio déste principio, e é daqui que éle tem de irradiar até cobrir téda a terra. Convém notar que a competéncia do homem que acabamos de esbogar é uma competéncia subordinada a Deus. Em religiao a parte correspondente a esta verdade é a revelagéo de Deus em Cristo, a divina competéncia, por assim dizer, para se aproximar do homem, sdbre o fundamento da sua natureza humana constituida divina- mente e de se acomodar ds suas faculdades intelectuais e morais. Téda a histéria da religiaéo mostra que sem a iniciativa divina, sem a revelacéo, sem a graca, jamais foi possivel ao homem achar a Deus. A sua competéncia, portanto, nio é independente da aproximagio de Deus, existindo apenas mediante essa aproximacio. As Escri- turas sdéo uma narrativa de como Deus, em Cristo, se apro- ximou do homem. §&, por conseguinte, por intermédio delas que a verdade vem ao nosso encontro, e sem elas Cristo passaria, inevitavelmente, despercebido, e os ho- mens vagueariam ao abandono como um navio sem go- vérno, levado pela corrente e pelo temporal. Repetir-se- iam entio os tristes malogros do passado, supersticdes, cerimoniais e ensaios especulativos para a descoberta de Deus.

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