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MARXISMO E ESCOLHA RACIONAL Adam Przeworski Hoje em dia as ciéncias sociais esto sendo assediadas por uma ofensiva que no se via desde a década de 1890: um esforgo deliberado para impor 0 monopélio do método econdmico a todo o estudo da sociedade. De acordo com os economistas neoclissicos, tudo 0 que acontece enquadra-se em duas categorias: fendmenos econémicos e fendmenos aparentemente nfo econdmicos. O desafio do individualismo metodolégico nao ¢ dirigido ao marxismo_ especificamente; questiona da mesma forma tudo 0 que se costumava chamar ciéneia politica, sociologia, antropologia e psicologia social. Os conceitos de "relagdes de produgio", de Karl Marx, 0s "a priori sociais compartilhados", de Georg Simmel, a "consciéncia coletiva", de Emile Durkheim, e as "orientagdes de valor", de Talcott Parsons, sio todos submetidos ao mesmo desafio: 0 de fornecer microfundamentos para os fenémenos sociais e, especificamente, basear toda a teoria da sociedade nas ages dos individuos concebidas como orientadas para a realizagao de objetivos racionais'. Essa ofensiva foi bastante bem-sucedida. A influéncia intelectual da psicologia social ? a rainha das ciéncias sociais vinte anos atrés ?” desapareceu quase inteiramente. A escola funcionalista, tanto em seus aspectos psicoldgicos quanto estruturais, perdeu sua preponderdncia na sociologia. A abordagem da "escolha publica" (public choice) impera na ciéncia politica. Até o marxismo, que durante as décadas de 1950 € 1960 costumava esconder-se nos meios académicos norte- americanos sob 0 rétulo de "sociologia politica”, agora redescobriu suas raizes de economia politica. Varios autores abordaram recentemente problemas marxistas tradicionais dentro do quadro de referéncia da escolha racional ou até da teoria usual de equilibrio geral. Muitos outros empreendem contra-ataques demonstrando a fragilidade da perspectiva individualista. Mas, aparentemente, ja no basta fazer referencias ao "individualismo a-histérico da teoria econémica burguesa". Ao que parece, © marxismo j4 nfo é impermedvel ao desafio apresentado pelo individualismo metodolégico. HA nfo muito tempo era possivel estabelecer um claro e agudo contraste entre © marxismo e a "ciéncia social burguesa". O comportamento individual era considerado pelos marxistas como uma execugio das posigdes de classe, enquanto 0s economistas burgueses 0 consideravam como ago racional, guiada pelo interesse 1 Uma das dificuldades para rotular esse desafio é que ele se baseia em duas posigdes que nio vao necessariamente juntas: 1) a exigéncia de "individualismo metodol6gico" ? que todos os fendmenos sociais tém que ser compreensiveis como um produto da ago de individuos; e 0 2) o suposto substantivo de "eseolha racional" ? que o comportamento individual é racional no sentido instrumental desse termo. Poderiamos ter individualismo metodolégico bascado em outra tcoria que no a da escolha racional. Também poderiamos ter, fe temos, na perspectiva da escotha formal tal como ela se apresenta, outros atores que ndo individuos: empresas, sindicatos, comités, agéncias, e assim por diante. Na realidade, o desafio apresentado durante estes Ultimos anos para as sociologias colctivistas combina um individualismo metodolégico que admite outros atores estratégicos que nio os individuos com diversas verses, mais fortes e mais fracas, da perspectiva da escolha racional, "Perspectiva da ago estratégica" seria o rotulo que eu escolheria para esse amélgama, mas, ‘para manter-me afinado com o uso padrio, referir-me-ei a "individualismo metodologico” e a "abordagem da escolha racional" de modo praticamente intercambiivel. proprio. Os atores que moviam a histéria marxista eram classes, coletividades-em- luta; os atores da historia burguesa eram individuos-cidadios-consumidores que, no maximo, 4s vezes, reuniam-se em efémeros "grupos de interesse", Para os marxistas, a relagdo central que organiza a sociedade capitalista era o conflito inconcilidvel de interesses das duas classes antagénicas; para os cientistas sociais burgueses, era a harmonia basica dos interesses, que permite que os individuos efetuem trocas até atingir a melhor solugio possivel. Finalmente, os marxistas viam a sociedade capitalista como econémica e politicamente dominada, pelo capital, enquanto os pensadores burgueses viam-na como um mercado competitive, com 0 governo representando instituigdes neutras e universalistas. Nenhuma dessas diferengas pode ser claramente estabelecida hoje em di tanto a abordagem da escolha racional quanto o marxismo sio altamente heterogéneos e evoluem rapidamente. No que se segue, nfo darei atengo a diferengas no interior da abordagem da escolha racional a no ser que sejam diretamente relevantes para a discusso. Considero essa abordagem sob sua forma mais usual, e mesmo brutal, de énfase na maximizagao bem informada da utilidade guiada pelo interesse proprio, com ajustamento instanténeo ao equilibrio. Por essa razio, utilizo os termos "individualismo metodolégico", "abordagem da escolha racional" e "economia neocléssica" de modo intercambidvel?. Para que a discussio se torne inteligivel, uma concepgo comum de “marxismo" se faz também necesséria. Marxismo para mim é uma andlise das conseqiiéncias das formas de propriedade para os processos histéricos’. Qualquer marxismo, em minha opinio, é uma teoria da histéria, talvez ndo necessariamente da humanidade, d laG. A. Cohen, talvez nem sequer dos modos de produgio, @ la Louis Althusser, mas da reprodug3o e transformagao das relagdes sociais de acordo com leis (Cohen, 1978; Althusser, 1970). As teorias da histéria fomecem explicagdes de sucessio inter-telacionadas de acontecimentos. Explicam no sd como surgem instituigdes especificas, mas também como continuam a funcionar; nao sé como conflitos especificos chegam ao fim, mas como seu término afeta os conflitos futuros. Comparagdes estaticas de equilibrios nfo constituem teorias da histéria a ndo ser que especifiquem por que e como ocorrem as transigdes entre esses equilibrios. Isso acaba sendo uma exigéncia ndo tio minimalista: Raymond Boudon afirma que uma tal teoria néo & possivel em principio; Jon Elster satisfaz-se com analisar acontecimentos isolados e precisos utilizando a teoria dos jogos; e até o tratado de John Roemer apéia-se exclusivamente em comparagées de equilibrios estaticos (Boudon, 1984; Elster, 1982, p 453-83; Roemer, 1982). Uma explicagao marxista, da historia, de qualquer maneira, origina-se em pressupostos que dizem respeito a estrutura de propriedade dos recursos produtivos aliendveis: os "meios de produgao", Abaixo discorrerei mais longamente sobre esses pressupostos. A discusso que se segue esta organizada em tomno de quatro tépicos: a teoria da ago individual; a ontologia dos atores coletivos; a estrutura do conflito de classes; e a teoria dos jogos enquanto instrumento técnico. Segue-se uma breve conclusio, orientada para o futuro, Relativamente a cada t6pico, identifico 0 desafio especifico apresentado ao marxismo pela abordagem da escolha racional; quando apropriado, fago um resumo dos contra-argumentos marxistas; e, finalmente, tento 2 0 melhor tatamento das dstingSes entre esses termos & feito por Jon Elster (1984) 3 Chamaram-me a atengdo para o fato de que essa definigao inelui o livro de Robert North (1981). ver quem pode aprender o que de quem. Boa parte da discussio ¢ inconclusiva, mas uma questio geral emerge: a critica do marxismo feita pelo individualismo metodolégico ¢ irrefutavel e salutar, mas os pressupostos ontolégicos da abordagem da escolha racional, especificamente 0 pressuposto de "“individuos" nio diferenciados, imutiveis ¢ dissociados, so insustentiveis, Assim, ao passo que qualquer teoria da historia precisa ter microfundamentos, a teoria da agdo individual tem que conter mais informagdo contextual do que admite o atual paradigma da escolha racional. A tarefa de compreender a histéria como um produto de agdes individuais ainda esté por ser realizada. Teoria da agio © desafio especifico apresentado ao marxismo relativamente 4 teoria da ago 6 fornecer uma explicagaio dos atos individuais sob condigdes particulares, ou seja, fornecer microfundamentos para a teoria da histéria, Historicamente, considerivamos as agGes individuais alternativamente como preestabelecidas, biologicamente provocadas, determinadas por normas ou orientadas para objetivos. O debate atual & entre as visdes psicossociolégicas do comportamento enquanto execugo de normas intemnalizadas e a visio do comportamento como agio intencional e estratégica*. ‘Nao se trata de um desafio novo: Jean Paul Sartre colocou-o em 1946, quando observou que o marxismo pode explicar o fato de Paul Valéry ser um intelectual pequeno-burgués, mas nao por que ele é um intelectual pequeno-burgués (Sartre, 1946). Esse desafio dirige-se no apenas ao marxismo, mas a qualquer teoria que tome como ponto de partida 0 nivel coletivo de organizagao ou de consciéncia. O marxismo, porém, sempre esteve num dilema peculiar, ¢ 0 atual desafio é muito mais exigem (do que a insatisfagao tradicional com a auséncia de "humanismo". © dilema peculiar € que os marxistas nunca, estiveram dispostos a abragar qualquer das altemativas ao individualismo metodolégico ? nem a explicagdo psicossocial adotada pela sociologia funcionalista nem as explicagdes apoiadas nas teorias freudianas da personalidade. Os funcionalistas explicavam que as pessoas se comportam de acordo com valores partilhados porque os individuos aprendem regras e valores que primeiro "internalizam” ¢ posteriormente executam. Eles consideravam todo comportamento individual como um ato de execugo da sociedade internalizada, com a implicag&o de que todas as pessoas expostas as mesmas normas e valores deveriam agir da mesma maneira’. Os marxistas, acredito, adotaram esse modo de explicagio na pritica, explicando 0 comportamento individual pela posigao de classe, mas, talvez devido aos aspectos utilitérios remanescentes do legado de Marx, nunca aceitaram os principios psicossociais em que se baseia essa visio especifica do comportamento 4 Nessa linha, a polémica mais extensa diz respeito ao camponés moral versus 0 camponés racional. Ver ames Scott (1976); Samuel L. Popkin (1979); ¢ um apanhado de autoria de Bruce Cummings (1981, p. 467- 95). Artigos similares apareceram em estudos @ respeito de decisdes sindicais de fazer greve (para um apanhado, ver Michael Shalev (1980, p. 133-173) e pela organizagio (Adam Przeworski, 1984), bem como a respeito da mictoeconomia da produgdo (Michael Reich e Paul Devine, 1981) € discussdo que se segue), 5 Para criticas da teoria da ago subjacente & explicagdo funcionalista, ver George Homans (1973); « Pierre Bourdieu (1976). individual’, Althusser tentou purificar esse mecanismo de conotagdes mentalisticas, mas 0 resultado foi uma caixa preta "behaviorista" de appelation (Althusser, 1971). Herbert Marcuse e Gilles Deleuze apoiaram-se na psicodindmica freudiana para estabelecer os efeitos formativos da organizagio social da repressio sobre o comportamento individual, mas nenhum dos dois foi além da assertiva de que o capitalismo gera modelos de personalidade padrio (Marcuse, 1959; Deleuze, 1973). No geral, os marxistas satisfizeram-se com a crenga intuitiva de que as pessoas executam (act out) suas posigdes de classe: as expressdes de Marx a respeito de estudar os capitalistas como "personificagdes", "portadores" ou "representantes" do capital pareciam bastar, ¢ fato de que Marx se referisse ao lucro as vezes como "o motor", as vezes como "o alvo", as vezes como "o motivo" e outras vezes ainda como "a necessidade" dos capitalistas, do capital, ou do capitalismo de alguma maneira no parecia acarretar confuso, O que era importante a respeito da historia acontecia ao nivel das forcas, estruturas, coletividades ¢ condicionamentos, nao ao. nivel de individuos. Devido a isso, os microfundamentos eram no méximo um luxo de que seria agradavel dispor, para explicar outras variagées menores. O marxismo era uma teoria da historia sem qualquer teoria sobre as agdes das pessoas que faziam essa historia’, Essa posigio j4 nao é defensavel, porque as criticas resultantes dos postulados do individualismo metodolégico vao ao centro da teoria marxista da ago coletiva e, portanto, da histéria. As agdes dos individuos j4 nao podem ser vistas como dadas por suas posigdes de classe; devem ser explicadas no Ambito de cada conjunto de condigdes. Afirmagdes sobre individuos ¢ coletividade devem ser cuidadosamente separadas: atribuigdes do status de ator coletivo ao "capital", 4 "classe trabalhadora” ou ao "estado" devem ser sempre submetidas a exame critico para ver se a agio coletiva & consistente com racionalidades individuais. O desafio resultante da abordagem da escolha racional é especifico: a teoria satisfatéria ¢ aquela capaz de explicar a historia em termos das agdes de individuos racionais e voltados para a realizagio de objetivos. Qualquer teoria da sociedade deve basear-se nesses fundamentos: 0 desafio é esse. 6 A anilise mais acurada da teoria marxista da agdo até o momento & o estudo de David Lockwood (1981, p. 435-81), Lockwood arguments: que a tcoria marxista tradicional da ago era basicamente utlitéria; que os conceitos de dominagao ideoligica e de falsa consciéncia desempenharam o papel de explicar por que © proletariado agiairracionalmente (especificamente, de maneira nao revolucionéria); ¢ que 0 papel de normas, valores e tradigSes ? 0 no racional enquanto diferente de aspectos irracionais da ago ? era subestimado. Como resultado, a teoria marxista da agao é altamente instével, como "manifesto pela tendéncia a trocar constantemente de posigao entre as explicagSes positivas ¢ idealistas do radicalismo e da aquiescéncia da classe trabalhadora' (p. 456-57). Lockwood atribui a origem dessa fragilidade & base utilitarista,e defende uma énfase nos componentes normativos da ago: exatamente o contririo do que penso. Acho que tratar as ages dos trabalhadores como racionais ¢ suficiente para explicar por que na maioria das circunstncias elas nao seriam revolucionarias, portanto & desnecessério qualquer referencia a normas, tradigBes ou valores. Ver adiante e Adam Przeworski (1985) 7 Aposigdo extrema nesta questio foi a escola althusseriana. Num brilhante angumento de que "individuo" nio é um conceit te6rico, Balibar afirmou que as pessoas agem apenas como "mensageitos" de relagdes sociais especificas (classificadas de acordo com a tendéneia dessa escola, em econdmicas,politicas e ideol6gicas), nunca como sujeitesintegrais. (Etienne Balibar "Fundamental Concepts of Historical Materialism’, 1970) Uma critica arasadora dessa posi foi feta por Femando Henrique Cardoso (1973). Objegdes marxistas ao individualismo metodolégico Os pressupostos do individualismo metodolégico, porém, encontram diversas objegdes, algumas das quais profundamente ancoradas em tradigdes marxistas. Essas objegdes enquadram-se em trés categorias basicas: as preferéncias nio so universais nem estéveis, mas contingentes a condigdes, portanto, alteram-se historicamente; 0 jinteresse préprio € uma caracterizagdo inadequada das preferéncias, pelo menos para algumas pessoas; e sob determinadas condigdes a agdo "racional" nao é possivel, mesmo que os individuos sejam "racionais" Discuto- as uma a uma. O cardter histérico das preferéncias A objego mais tradicional ao individualismo metodolégico, ou seja, a de que as preferéncias individuais alteram-se historicamente, nio é especifica do marxismo. Mas a teoria marxista fornece a estrutura analitica para explicar as alterag6es histéricas da racionalidade individual. Gostaria de distinguir dois argumentos separados sobre a formagio social de racionalidade individual. Um diz respeito a comparagées de diferentes sistemas econdmicos; 0 outro, ao processo da formagao de identidade coletiva no capitalismo. Marx afirmava que os objetivos individuais e as altemativas de agdo disponiveis para os individuos dependem de como se organiza o sistema de produgao e de troca: um camponés que paga um arrendamento em dinheiro e que pode, por isso, utilizar informagdes fornecidas pelo mercado para escolher seus cultivos é uma pessoa diferente do camponés que paga arrendamento em espécie, pode no maximo escolher ténicas de produgio ¢ nfo participa das relagdes de mercado (Marx, 1967). A teoria de Witold Kula sobre o feudalismo esta construida sobre © pressuposto de que os proprietrios de terras tentam satisfazer um nivel constante de necessidades com informagées muito restritas sobre o valor dos recursos alternativos (Kula, 1963). Os exemplos sio iniimeros, e a questo nao é que camponeses, proprietérios de terras ou seja quem for ndo se comportem racionalmente, mas que devemos saber o que querem, 0 que sabem ¢ qual & 0 seu leque de opgdes antes de podermos explicar seu comportamento. O pressuposto de que os proprietérios de recursos maximizam o lucro num mercado repleto de informagées nfo terd qualquer utilidade sob outras condigdes histéricas que nfo as do capitalismo desenvolvido. Como argumentaram Jon Cohen ¢ Martin Weitzman, no mundo medieval "as pré-condigdes que teriam tornado a maximizagao do lucro um objetivo sequer factivel no eram evidentes (Cohen & Weitzman, 1975, p. 293). Em outras palavras, o individualismo metodolégico nao basta; sio necessarios pressupostos substantivos para explicar 0 comportamento dos individuos sob condigdes histéricas especificas. Em certa medida, essa é uma questo empirica. Quando Roemer afirma que os agentes econdmicos em todas as condigées histéricas procuram maximizar a renda (ou o lazer), ou quando Margaret Levi afirma que em todas as circunstancias histéricas os "governantes" procuram maximizar os rendimentos, esto formulando teorias que supdem que todas as variagdes de comportamento podem ser atribuidas a alteragdes nos condicionamentos estruturais (Roemer 1983; Levi, 1981, p. 431-65). Em principio, essas teorias podem ser avaliadas empiricamente, e Levi, numa série de ensaios, empreendeu exatamente um tal projeto, Estou afirmando apenas que 0 pressuposto marxista tradicional parece ser 0 de que os senhores medievais queriam algo diferente daquilo que os capitalistas queriam, e nfo apenas o de que enfrentavam condicionamentos ou constrangimentos distintos (ou que queriam algo diferente porque enfrentavam constrangimentos diferentes). O segundo argumento marxista contra o pressuposto das preferéncias estaveis fixas origina-se sobretudo na teoria, de Antonio Gramsci da formaciio de identidades pessoais sob o capitalismo? a concepgao especificamente marxista de uma énfase sociolégica, geral na origem da formagao da identidade*. Nessa concep¢ao, a politica nao diz respeito simplesmente a quem recebe 0 qué, mas em primeiro lugar a, quem & quem: ndo se di numa arena, mas antes numa dgora. A identidade coletiva vai sendo transformada continuamente? moldada, destruida e novamente moldada? como resultado de conflitos no curso dos quais partidos politicos, escolas, sindicatos, igrejas, jornais, exércitos e corporagdes empenham-se em impor uma forma particular de organizago a vida da sociedade. A relago entre os lugares ocupados pelos individuos na sociedade ¢ sua identidade ¢, assim, uma conseqiiéncia histérica contingente de conflitos: conflitos em torno de saber se determinada coisa é uma fonte de satisfagdo, se um objetivo especifico pode ser alcangado, se um determinado curso de agio é admissivel. comportamento eleitoral fornece exemplos claros: as pessoas votam as vezes por lealdade de classe, as vezes como catélicas, as vezes como sulistas ou como mulheres, ¢ outras vezes como individuos calculando livremente qual partido tem mais probabilidades de fazer coisas em seu proveito’, Assim, mesmo dentro dos limites de um periodo relativamente curto, o pressuposto de preferéncias estiveis exégenas nfo parece promissor. Essa tradicional énfase marxista na formagio histérica da identidade 6 extremamente daninha para a perspectiva da escolha racional. As identidades individuais, e portanto as preferéncias individuais, sio constantemente moldadas pela sociedade: isso parece inquestionavel. Mesmo assim, acredito que os proponentes dessa visio esto excessivamente ansiosos para celebrar seu triunfo. Quase todos os escritores que destacam o carter social da formag3o das preferéncias saltam equivocadamente para a conclusio de que a visio do comportamento como ago racional é invalidada por essa assertiva. Isso ¢ verdade em relagdo a Roemer em seu artigo de 1978 (p. 47-61), a Johannes Berger e Claus Offe (1981, p. 521-27), Alessandro Pizzorno (1984, p. 3-47) e Barry Hindess (1984, p. 255-77). Roemer sustentou que a "formulagao individual do problema econémico impede, em sua propria concepgfio, um exame frutifero dos aspectos mais importantes da mudanga e da histéria, a saber, como a realidade social produz seres sociais que em seguida atuam para alterar a realidade" (Roemer, 1978, p. 149). O mesmo ponto foi levantado por Pizzorno e Hindess. Berger e Offe observaram que "logicamente, 0 jogo s6 comega depois que os atores foram constituidos e que sua ordem de preferéncia se formou como resultado de processos que nao podem ser considerados eles préprios parte do jogo" (Berger & Offe, 1981, p. 525). B Ver Lockwood (1981), para uma comparagio interessante das regras de Gramsci e Durkheim, 9 Adam Przeworski e John Sprague (1986). Observe-se que as invocagdes de Schumpeter como pai intelectual da teoria econémica da democracia sio enganadoras: Schumpeter considerava 0 processo politico um processo de persuasdo. "Aquilo com que nos deparamos na anilise dos processos politicos" insistia, "é, em ampla medida, ndo uma, vontade genuina, mas uma vontade construida, a vontade das pessoas é 0 produto ¢ ndo a forga propulsora do processo politico". (Schumpeter, 1975, p. 263) Uma vez formadas as preferéncias, porém, as pessoas as tém e atuam a partir delas num determinado instante do tempo: a forga da economia neoclissica reside em ser capaz de separar a andlise da ago num momento determinado de tudo aquilo que criou as condigdes sob as quais essa ago corre". Além disso, a abordagem da escolha racional certamente no impede a investigagao da formacio das preferéncias mesmo se na economia neoclissica as preferéncias sio vistas como dadas (e no utilitarismo classico, como casuais). Portanto, a crenga de que as preferéncias se formam historicamente e a de que as pessoas agem racionalmente com base nas preferéncias que tém nao sio contraditérias. Ademais, nao ha razo para pensar que 0s processos que resultam na formagio das preferéncias nfo possam incluir agdes racionais, um "jogo", embora nfo Yo mesmo" jogo. Na verdade, acredito que John Sprague © eu demonstramos que a razio pela qual alguns individuos, em determinadas circunstincias histéricas, identificam-se como trabalhadores ¢ conseqiiéncia de estratégias adotadas pelos lideres de partidos cleitorais de esquerda (Przeworski & Sprague, 1986). Qual a viabilidade de teorias da historia que considerem as preferéncias como formadas endogenamente? Estou longe de sentit- me seguro quanto a isso, mas nao vejo base metodologica que justifique a rejeigio da possibilidade de tais teorias". Altruismo segundo contra-argumento & ofensiva do individualismo metodolégico ¢ 0 de que o interesse proprio é uma caracterizagio inadequada das preferéncias de pelo menos algumas pessoas sob determinadas circunstincias histéricas. Alguns individuos podem se preocupar com os outros, sejam eles membros de sua familia, classe, nagdo, ou outros seres humanos em geral. Aparentemente ha pouca discrepancia em torno disso e, de fato, diversos modelos econdmicos recentemente desenvolvidos baseiam-se em pressupostos nao-egoisticos (Collard, 1978; Margolis, 1982; Marwell, 1982; Kolm, 1984). Em principio, modelos que envolvem estados de outras pessoas como argumentos das fungdes de utilidade de todos apresentam, no maximo, dificuldades mateméticas”. Uma questio polémica & se as preferéncias altruisticas, no sentido de qualquer fungao de utilidade que inclua entre seus argumentos estados de outros individuos, devem e podem ser sempre inferidas de motivagdes egoistas. Especialmente interessante é a nogio de mudanga de preferéncias por meio do didlogo, que Offe e Helmuth Wiesenthal (1980) consideram essencial para a organizagao dos trabalhadores enquanto classe, e a nogdio de Serge-Christophe Kolm (1984) de "reciprocidade geral", Essa questo e outras correlatas so discutidas por Jon Elster (1984) bem como por Scott Lash e John Urry (1984, p. 35-50), e nao tenho nada a acrescentar além de, talvez, uma certa dose de ceticismo. LO Esse aspecto foi demonstrado por Schumpeter: "Historicamente, o desejo do consumidor por um par de sapatos pode, ao menos parcialmente ter sido moldado pela ado dos produtores que oferecem calgados atraentes e que fazem publicidade em torno disso; mesmo assim, em qualquer momento dado, trata-se de um ddesejo genuino, cuja previsio vai além de ‘sapatos em geral’ e que uma experimentagao prolongada isenta de boa parte das irracionalidades que possam té-lo rodeado originalmente" (Schumpeter, 1975, p. 258). 11 A base factivel seria invocar alguma determinagio individual auténtica, como faz Boudon em algumas partes de seu La Place du desordre, ou miltiplos e numerosos equilibrios. Como, entretanto, eu me satisfaria com teorias de histéria possiveis, nlo considero este iltimo argumento prejudicial Nao é evidente, porém, se devemos ou no abandonar o pressuposto do interesse pessoal, por trés razdes. Em primeiro lugar, se abandonarmos a hipotese de que os individuos sio invariavelmente egoistas, 0 que deveriamos postular em lugar disso? Certamente, 0 pressuposto de que as pessoas sio invariavelmente altruistas seria igualmente a- hist6rico e igualmente arbitrario. O que precisamos conhecer ¢ a relagio existente entre condigées e preferéncias, talvez até entre ages de alguns e preferéncias de outros. Contudo, apesar da difundida atengo dos sociélogos 4 formagio da identidade coletiva, por alguma razio nao sabemos quando esperar que certas pessoas sejam egoistas, quando esperar que sejam altruistas e quando esperar que sejam ideolégicas. Dentre os escritores mais individualisticamente orientados, A. K. Sen (1977) sugeriu que deveriamos pensar em termos de "simpatia" e "compromisso" como dois mecanismos distintos de ativagio de preferéncias; Howard Margolis (1982) propds uma regra segundo a qual os individuos derivam a utilidade de objetivos de interesse proprio versus objetivos de interesse de grupo; Albert Hirschman propés que distinguissemos entre "valores" (a respeito dos quais, refletimos e argumentamos) e "gostos" (que so "gratuitos"), ¢ argumentou que os individuos distribuem deliberadamente tempo e energia entre atividades instrumentais e nao instrumentais (Hirschman, 1985, p. 7-21). Mas essas sio distingdes conceituais ¢ nio proposiges substantivas. Assim, 0 pressuposto do interesse pessoal é mais facilmente rejeitavel do que substituivel Em segundo ugar, ndo deveriamos supor que os problemas estratégicos desapareceriam numa sociedade altruista ou mesmo ideologicamente motivada? coisa em que os criticos da teoria econémica gostam de acreditar. Imagine-se uma \¢dio fosse mais importante para vocé do que a sua propria, a sua satisfagdo fosse mais importante para mim do que a minha, e nos encontrassemos diante de uma porta através da qual no pudéssemos passar simultaneamente. Esse paradoxo do "vocé primeiro" é apenas uma amostra dos problemas estratégicos que se encontrariam numa sociedade altruistica’’. situagio em que a minha satis 12 Isso ndo quer dizer que hoje tenhamos uma linguagem adequada para descrever fungdes de utilidade. E preciso esclarecer diversas distingdes; infelizmente, sua discussio ultrapassa o limite deste artigo. Em primeiro lugar, a definigdo de “altruismo", no texto, é excessivamente ampla, jé que uma pessoa pode se preocupar com os estados de outros devido a motivagdes puramente egoistas, quando existem extemalidades no consumo. Por exemplo, a utilidade de um telefone para mim depende do nimero de outras pessoas que possuem um aparelho. Para um modelo geral de equilibrio que incorpore tais extemalidades, ver Michael L. Kartz.¢ Carl Shapiro (1985, p 424-41). Uma definigdo mais estreita de altrufsmo seria aquela em que a satisfagdo de outros se classificaria como argumentos) na fungao de utilidade do ego. Uma tal definigdo significaria, porém, mais problemas mateméticos sérios, ¢ criaria a necessidade de distingdes adicionais. Por exemplo, posso dar mais importancia ao prazer de outra pessoa do que ao meu proprio, mas nao se esse prazer & obtido com o consumo de heroina, Em segundo lugar, podemos considerar as preferéncias como contingentes, seja a ages de outros seja a circunstancias. A. K. Sen (1977, p. 317-44), afirmou que as pessoas tém diversas ordens de preferéncia que acionam contingentemente segundo alguma metaordem. O altruismo condicionado ao comportamento cooperative por outros constitui uma forma de livrar-se do dilema do prisioneiro. Em terceiro lugar, ser “altruista”" pode ndo ser o mesmo que ser "ideolégico” no sentido de Alessandro Pizzomo (1966, p. 235-86), para quem ser ideolégico € incluir na propria fungao de utilidade estados de uma coletividade, mais do que de outros individuos. Finalmente, uma descrigdo realista da sociedade, onde individuos egoistas, altruistas e ideolégicos coexistem em qualquer momento dado, pode tomar qualquer andlise dedutiva praticamente impossivel. A forga do individualismo metodolégico & metodoldgica: reside na disposigaio dos economistas neoclassicos de ignorar todas as complicagdes que impegam a obtengao de respostas a questdes centrais. Introduzir 0 realismo descritivo é cortar 0 cabelo de Sansio. E por isso que a cuidadosa avaliagio da racionalidade humana e de seus limites que faz Elster em Ulysses and the Sirens, livro recebido com entusiasmo por Scott Lash ¢ John Urry como "uma ontologia do processo social e ... ndo apenas um attificio heuristico ou instrumental para gerar predigdes sobre o mundo social", pode redundar em subverter 0 projeto do individualismo metodolégico"*. Sociedade irracional Finalmente, a terceira critica da abordagem da escolha racional deve- provavelmente a Sartre, Trata-se de um argumento geralmente compreendido e admitido entre os especialistas da teoria dos jogos: alguns jogos nao tém solusao. Nossas ages t8m conseqiiéncias, mas quando atuamos essas conseqiiéncias nio podem ser previstas (muitas vezes porque dependem totalmente das ages de outros que esto na mesma situagdo). O argumento de Sartre (em Le Mur) era que as conseqiiéncias de nossas ages so imprevisiveis e, as vezes, perversas. Num mundo irracional no ha possibilidade de ago racional. Assim, a agio irracional ndo diz respeito aos individuos, mas 4s condigdes. Suponhamos, por exemplo, que a probabilidade condicional de que um governo adote a politica que defendeu durante a campanha eleitoral seja igual a zero: se isso é tudo de que os eleitores dispdem, ser impossivel votar racionalmente, Se a compreendo corretamente, a versio de Pizzomo desse argumento desenvolve-se como segue: jé que as fontes de satisfago individual sio determinadas socialmente, os individuos nao podem comprometer-se racionalmente com a busca de quaisquer objetivos a prazo mais longo porque, chegado o momento de atingirem esses objetivos, pode ser que j4 nao derivem deles qualquer satisfagio (Pizzomo, 1984, 1985). Assim, essa é uma versio social da observagio de Friedrich Wilhelm Nietzsche de que a satisfagdo dos desejos nunca, ¢ to intensa quanto a dor causada pela privagio ? um fenémeno que os economistas chamam de regret ¢ desdenham. Pizzomo parece acreditar que essa situago representa uma condiga social geral e toma fiitil o comportamento orientado por objetivos. Para avaliar esse argumento, devemos ter 0 cuidado de distinguir jogos sem solugdes (tinicas), como o chicken ou a "guerra dos sexos", do tipo geral de jogos em 13 Tais problemas sio discutidos por Collard (1978). Ver também o argumento de Alan Buchanam (1979, 1. 59-82), de que 0 "paradoxo da revolusio” existiria mesmo que os trabalhadores fossem idcoldgicos. Robert Van der Veen demonstra porém, que certs ordens nio egoistas de preferéncia consistriam em efeitos socialmente desejaveis eom maior probabilidade de serem obtidos (1981, p. 345-74). Observe-se que os efeitos do processo politico numa sociedade democritica (uma pessoa’ um voto) perfeitamentealtrusta seriam idénticos aos efeitos de uma sociedade perfetamente egoista: os interesses de cada individuo receberiam peso igual em ambas as sociedades Ver, por exemplo, Koichi Ramada (1973, p. 243-64). 14 Lash ¢ Umry (1984, p. 39). Talvez esse ponto seja muito forte, considerando-se que jé existem anilises razodveis de situagdes nas quais s6 algumas pessoas comportam-se estrategicamente enquanto outras seguem ‘um hébito. Ver John Haltiwanger e Michael Waldman (1985, p. 326-41 e a bibliografia anexa). que estratégias individualmente racionais conduzem a uma solugio que & coletivamente subétima, sintetizados no "dilema do prisioneiro""’. Nos jogos sem solug&io, nenhuma agdo individual racional é possivel; em jogos com solugdes, cada individuo tem uma estratégia racional dnica. Se situagdes correspondentes a jogos sem solugdes (‘inicas) forem suficientemente freqiientes, a abordagem da escolha racional sera discutida enquanto instrumento de andlise, A ubigiiidade da situagdo descrita pelo dilema do prisioneiro, porém, toma essa estrutura extremamente ttil. Nao estou seguro quanto a maneira de determinar a freqiéncia dessas situagdes irracionais no mundo real, e por isso desconfio que as diferengas entre as perspectivas ndo se baseiam em avaliagdes empiricas. O viés na escolha de fator de produgiio na mudanga técnica proporciona um exemplo extensamente estudado de jogo ‘sem solugio (Elster, 1983). O teorema de Kenneth Arrow e os desenvolvimentos subseqiientes demonstram que, dadas preferéncias individuais fixas, nenhum procedimento de votagio produzira, em geral, uma ordenagdo tnica de preferéncias coletivas (Arrow, 1963; Mickelwey, 1979, p. 472-82; Schofield, 1982). As situagdes de barganha também parecem indeterminadas, embora isso possa ter a ver antes com a teoria da barganha do que com a realidade. Essas ilustragdes so suficientes para demonstrar que 0 conceito de condigGes irracionais — condigdes que nao permitem que os individuos ajam racionalmente — constitui um instrumento de andlise Util, talvez até subutilizado. Mesmo assim, continuo duvidando de que 0 mundo seja t&o irracional quanto os existencialistas o pintaram. Por sua vez, situagdes em que o curso de ago individualmente racional tem como resultado estados do mundo que so coletivamente subétimos so ubiquos no capitalismo e, como observou Karl Korsch, em 1928, estariam presentes no socialismo (Korsch, 1975, p. 60-82). A existéncia de tais situagdes também pode ser interpretada como indicadora de que a sociedade é organizada irracionalmente — componente tradicional da critica marxista do capitalismo, mas no significa que ages individualmente racionais sejam impossiveis. ATORES COLETIVOS O desafio A implicagdo mais danosa do individualismo metodolégico & que as pess que partilham interesses e condigdes de vida ndo agiriam coletivamente, em geral, para promover esses interesses. Mesmo que os resultados da agao coletiva fossem benéficos para todos os trabalhadores, cada trabalhador deixaria de participar se se beneficiasse dos resultados independentemente de participagao. Se Mancur Olson & seus seguidores tém razdo, no podemos esperar que a classe trabalhadora se transforme jamais num sujeito histérico coletivo, uma classe para si com todas as conseqiiéncias decorrentes (Olson, 1965). E compreensivel que a maior parte das reagdes marxistas ao individualismo metodolégico se tenha concentrado nessa questio. Bases para a rejeicao do dilema da agio coletiva no caso dos trabalhadores A validade do problema do “carona" (free-rider) em relagio a cl: trabalhadora foi questionada por uma longa lista de razdes. 1) O problema é 15 Para discussies gerais de efeitos contrafinais, ver Raymond Boudon (1977) ;¢ Jon Elster (1978) irrelevante com base nos supostos do coletivismo metodolégico (Holmstrom, 1983, p. 305-25; Pizzomo, 1984). 2) As pessoas, os trabalhadores pelo menos, no sio egoistas (Booth, 1978, p. 263-85). 3) Os trabalhadores sfio coagidos com tal rigor por suas condiges que nfo tém escolha: relativamente aos trabalhadores, a abordagem da escolha racional coloca um falso problema (Roemer, 1978). 4) Os trabalhadores tm uma inclinagdo especial para alterar as preferéncias uns dos outros através da comunicagio (Elster, 1984, esp. p. 146; Offe & Wiesenthal, 1980). 5) Os trabalhadores satisfazem as condigdes para cooperagao num dilema do prisioneiro iterative (Shubik, 1970, p. 181-202; Taylor, 1976): esto repetidamente na mesma situagio; ndo sabem durante quanto tempo permanecerdo nessa situagdo; e tm um coeficiente baixo de preferéncia pelo presente (timediscount) (Edel, 1979, p. 751-61; Shaw, 1984). 6) Os trabalhadores respondem as condigdes para uma alteragio endégena de probabilidades de sucesso: quando alguns deles dio inicio & agi coletiva, a probabilidade de sucesso da ago coletiva aumenta, o que significa que 0 beneficio esperado também aumenta, sobrepujando 0 custo esperado para os trabalhadores adicionais, cuja participagdo, por sua vez, aumenta ainda mais a probabilidade de sucesso, e assim por diante"®, As trés primeiras posigdes rejeitam por inteiro 0 problema do free-rider; os trés iltimos admitem que os supostos da teoria neoclissica de agi coletiva podem ser validos em determinados contextos, mas encontram razées para que as implicagdes dessa teoria nfo se apliquem aos trabalhadores. Jamais se demonstrou que qualquer um dos trés iiltimos argumentos seja verdadeiro empiricamente, ou mesmo formalmente, em relago aos trabalhadores: eles constituem, na melhor das hipéteses, conjeturas esperangosas. E note-se a maneira peculiar com que 0 problema tende a ser formulado: todos esses argumentos partem do principio de que ha algo de errado com uma teoria que prediz que os trabalhadores em geral nao se organizartio como classe e nfo empreenderao agdes coletivas, incluindo, de maneira especialmente importante, a ago correspondente a uma revolucao socialista. Ha algo de surrealista na questio "O que induziria o proletariado a fazer a revolugio socialista?" (Shaw, 1984, p. 12). O proletariado jamais fez uma revolucao socialista. Os trabalhadores, de maneira geral, no estio sequer organizados como classe: embora em uns poucos paises a maioria dos trabalhadores faca parte de uma federagdo de sindicatos centralizada, em geral muitos no pertencem a partidos de esquerda ou sequer votam por eles, e¢ muitos evitam participar de outros empreendimentos coletivos. Mais do que isso, certos sindicatos, partidos e outras organizagdes freqiientemente adotam estratégias contrarias aos interesses coletivos da classe trabalhadora, Nao ha divida de que existem sindicatos e partidos da classe trabalhadora com participagao significativa, mas empiricamente, a teoria neoclassica da ago coletiva ndo € menos valida do que as teorias coletivistas. ‘A questo central colocada pelo individualismo metodolégico ¢ a seguinte: sob que condigdes, de sempre a nunca, a solidariedade (cooperagao de classe) & racional para os trabalhadores individuais ou para grupos especificos de trabalhadores? Michael Wallerstein (1984, 1985) demonstrou recentemente que determinados sindicatos tentario organizar todos (¢ apenas) os trabalhadores que competem uns com os outros no interior do mesmo mercado de trabalho, e que determinados sindicatos cooperartio uns com os outros em pequenas economia 16 Para o modelo geral, ver Mark Granovetter (1978, p. 1420-43), Usado com relagdo aos trabalhadores por Gregory 8. Kavks (1982). obrigadas a depender do comércio exterior, mas procurardo cooperar com os empregadores se puderem beneficiar-se de qualquer forma de renda monopolistica (especialmente, protegio). A teoria de Wallerstein fornece os microfundamentos do fenémeno do "neocorporativismo" e contribui muito para explicar os diferentes modelos de estrutura sindical em diferentes sociedades capitalistas. Observe-se que toda a discussio acima diz respeito aos trabalhadores. A nogdo de que os capitalistas podem ser incapazes ou nao de desejarem organizar-se e agir coletivamente enquanto classe esteve tradicionalmente presente no marxismo. Na andlise do proprio Marx, a competigao entre os capitalistas tem como resultado um nivel decrescente de lucro, mas eles nada podem fazer a esse respeito, visto que sua situago & uma situagdo de dilema do prisioneiro. A observacdo de que os capitalistas individuais tém interesses conflitantes que impedem sua ago coletiva foi importante na obra de Nicos Poulantzas (1973). A questio da unidade da burguesia sempre pairou sobre a literatura latino-americana (Cardoso, 1971; Evans, 1982, p. 210-48; O’Donnell, 1978; Zeitlin & Ratcliff, 1975, p. 5-61), enquanto nos Estados Unidos realizaram-se muitos trabalhos empiricos interessantes sobre a separagio entre propriedade e controle, diretorias superpostas e outras formas de organizagao da classe capitalista””. Finalmente, o problema da organizagio da classe capitalista foi formulado recentemente de maneira sistemética no interior do quadro de referéncia da escolha racional por John Bowman (1982, p. 571604; 1984) Em conjunto, a perspectiva do individualismo metodolégico exige que se realize uma total reavaliago da teoria marxista da ago de classe. Como formulou Olson, 0 problema do free-rider constitui, muito provavelmente, uma descrigi0 inadequada da agdo coletiva entre os trabalhadores, mas o efvito da critica neoclassica 4 teoria marxista da agdo de classe foi extremamente salutar. Um dos sintomas & que coisas escritas ha apenas alguns anos, nas quais "a classe trabalhadora” marchava através da historia conduzindo o interesse dos trabalhadores, agora parecem desconfortavelmente ingénuas. Estou longe de me sentir seguro de que algo restaré, ao cabo, da teoria marxista da ago de classe. Como a propria, teoria formal do comportamento coletivo esté se desenvolvendo rapidamente, estou convencido de que apenas comegamos a examinar a questo da ago de classe. Pontos fracos da teoria neoclAssica da ago coletiva ‘Ao mesmo tempo, a perspectiva marxista tradicional salienta dois pontos frigeis da teoria neoclissica da ago coletiva: em primeiro lugar, o problema estratégico que se coloca diante dos trabalhadores individuais ndo consiste na possibilidade de agir como "carona" no que diz respeito a provisio de bens piiblicos, mas na competiggo de uns com os outros para conseguir emprego; em segundo lugar, o problema de organizar cada classe (e outras coletividades) nao pode ser considerado isoladamente da relagio dos membros individuais de uma classe com a outra classe. 17 Maurice Zeitlin (1974, p. 1073-119) ofereceu uma formulagdo fecunda. Essa literatura foi resenhada recentemente por Davita S, Glasberg e Michael Schwartz (1983, p. 527-40). Ver também J. A. Witt (1979, p. 51-59), para um exemplo fascinante no qual os capitalistas se organizaram, a despeito de conflitos de interesse A situagao estratégica dos trabalhadores Um tanto surpreendentemente, todos os autores marxistas que lidam com 0 paradoxo do free-rider aceitam a descrigo que Olson faz do problema, que se coloca diante dos trabalhadores individuais. Mas a descrigdo de Olson é inexata. Imaginemos um cruzamento com quatro postos. de gasolina, um em cada esquina, De acordo com Olson e seus seguidores, os proprietirios desses postos de gasolina véem-se diante do problema dofree-rider quando tentam instalar_ um seméforo no cruzamento, coisa que lhes proporcionaria mais fregueses durante a noite, Todos se beneficiaram com 0 trafego mais intenso, mas como de todo modo cada um deles iria beneficiar-se uma vez instalado o seméforo, nenhum estaria disposto a pagar os custos da instalago. Antes de surgir 0 problema do seméforo, os postos de gasolina nao enfrentam problemas estratégicos: como diz Olson, esto em “contexto pré-estratégico". Mas serd que isso ¢ verdade? Os postos de gasolina competem uns com os outros: cada um deles baixa o prego (ou melhora o servigo) para atrair os fregueses dos outros. O resultado é uma guerra de pregos; os pregos baixam e todos os proprietarios dos postos de gasolina perdem. Evidentemente, uma solugo possivel para esse problema é algum tipo de acordo de pregos (ou de diferenciagdo de servigos), e poder-se-ia dizer que esse acordo constitui um bem piiblico. Mas acho que essa manobra terminolégica oculta uma diferenga fundamental: os postos de gasolina estio num dilema do prisioneiro, devido 4 interdependéncia de seu consumo particular e rival, antes ¢ independentemente de qualquer ago que resultasse em proporcionar bens cujo consumo uns nfo rivalizem com os outros (os assim chamados "bens piblicos"). Os trabalhadores (e em determinados aspectos os capitalistas) (Bowman, 1984) esto em situagdo andloga 4 da guerra de precos. Os trabalhadores individuais competem uns com os outros, baixando suas exigéncias salariais na procura de emprego. O resultado & uma baixa geral dos saldrios. Assim, os trabalhadores estio num dilema do prisioneiro em relago a seu consumo pessoal. E verdade que quando os trabalhadores formam um sindicato ou se envolvem em outras formas de ago coletiva, podem deparar com o problema do free-rider, ou seja, 0 dilema do prisioneiro associado a agdes que tém o objetivo de proporcionar bens cujo consumo no apresente rivalidade. Mas precisam organizar-se no para proporcionar bens piiblicos, ¢ sim para evitar a competigdo de uns com os outros em sua busca de bens pessoais". Note-se que é impossivel representar interesses particularistas de individuos imersos numa situagiio de dilema do prisioneiro, pois os interesses particularistas sao exatamente aqueles que opdem os individuos entre si. Se os individuos estio numa situagdo em que 0 estado especifico do mundo que é melhor para eles € a0 mesmo tempo o melhor para todos, entio de fato seus interesses "comuns" podem ser representados simultaneamente: na terminologia de Sartre, seu interesse de "grupo" € idéntico a seus interesses "de série” (Sartre, 1980). Mas se os individuos competem uns com os outros, seus interesses "comuns" ou de grupo ja no sfo idénticos a seus 18 Observe-se a confusio, tal como exemplificada por Peter H. Aranson e Peter C. Ordeshook (1985, p. 93) Eserevem: "O free-riding ocorre em diversos contextos. O uso tradicional do termo refere-se aqueles que

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