Jorge Miranda - Curso de Direito Internacional Público

Você também pode gostar

Você está na página 1de 383
Jorge Miranda Professor Catedratico das Faculdades de Direito da Universidade de Lisboa € da Universidade Catdlica Portuguesa Curso DE DmreiTo INTERNACIONAL PGBLICO 6. edigao, revista e atualizada PRINCIPIA Capitulo I O Drrerro INTERNACIONAL 12 Formacio ¢ evolugio 1. Direito Internacional ¢ histéria I— Tal como todas as realidades humanas, e principalmente as juridicas, aquilo a que hoje chamamos Direito Internacional, Direito Internacional Ptiblico ou Direilo das Gentes tem de ser compreendido a partir da historia; e ele tem uma historia que faz parte da historia das sociedades politicas e do Direito*. * Termo lancado, pela primeira vez, por Bevrua, em 1780, na sua An Introduction to the Principles of Moral and Legislation. 2 Cfr, entre tantos, ANTONIO TkuvoL ¥ Seka, Génése et Fondlements Spirituels de I'ldée d'Une Communauté Universelle, Lisboa, 1956, e Histéria do Direito Internacional Publico, Lisboa, 1996; Aurep Vexonoss, Valkerrecht, 1959, Derecho Internacional Publico, 44 ed. castelhana, Madrid, 1963, pags. 33 e segs. J. L. Bremy, The Law of Nations, 1963, Diretto Internacional, trad., Lisboa, 1965, pags. 1 e segs.; Paut Gucceien, Traité dle Droit International Public, 1, 2.4 ed., Genebra, 1967, pags. 3 € segs; Cuve Panay, “The Function of Law in the International Comunity’, in Manual of Public International Law, obra coletiva ed. por Max Sorensen, Londres, 1968, pags. 25 segs.; ApaiaNo Montara, Direito Internacional Puiblico, Lisboa, 1983, pags. 8 e segs; Arwaxbo Mangues 8 Curso de Direito Internacional Piiblico I - Em sentido latissimo, a historia do Direito Internacional interpenetra-se com a historia do Estado’. Quando e onde quer que haja Estado, e Estado que mantenha qualquer tipo de relagoes, mais ou menos duradouras, com outro ou outros Estados (ou entidades afins), tornam-se necessari norm juridicas para as estabelecer e fazer subsistir. Encontram-se também normas de outras categorias, com maiores ou menores im- portincia ¢ efetividade; nunca deixa de haver normas juridic: Aos diversos tipos historicos de Estados correspondem, naturalmente, diver- sos tipos de Direito Internacional. E a cada época e a cada grande area geogrifica separada das demais, com o seu sistema de Estados, corresponde um sistema pré- prio de Direito Internacional. Mas a extensio do modemo Estado de tipo europeu a todo 0 mundo, ocor- rida nas Ghimas décadas, levaria a que, pela primeira vez, existisse um sistema de Direito Internacional a escala do mundo — o sistema, como aquele, nascido e desen- volvido ao longo dos tiltimos quatro séculos e agora sujeito a mais ou menos largas mutagdes. Gueoes, Direito Internacional Piblico, policopiado, Lisboa, 1985, pags. 11 ¢ segs.; Cetso pe Aus ‘QuERQUE Matto, Guso de Direito Internacional Priblico, 8: ed., I, Rio de Janeiro, 1986, pags. 100 & segs.; Attino AzevEDo Soanes, Ligdes de Diretto Internacional Piblico, 4." ed., Coimbra, 1988, pags. 43 e segs, Pasguatr Daoxe, “The International Community and International Law", in University of Rome Il- Department of Public Law, Yearbook, 1989, Il, pags. 299 e segs.; Matcox N. Suaw, Inter- national Law, 3. ed., Cambridge, 1991, pags. 12 © segs.; Downigue Carneau, Droit International Public, 42 ed., Pais, 1994, pags. 10 e segs.; Epvaxoo Corseia Barnsta, Direito Internacional Pribli- 60, I, Lisboa, 1998, pags. 37 € segs.; Nove Quoc Dinu, Paruics Danae € Ataiw Peuet, Droit Inter- national Public, 6. ed., Paris, 1999, pags. 41 © segs.; Joxguin Siva Cuma € Mawta pe AsstiNcAo Do Vatr Prseea, Manual de Direito Internacional Piiblico, Coimbra, 2000, pags. 127 © segs; Srepren C. Nerr, “A Short History on International Law’, in International Law, obra coletiva ed. por Maicout D. Evaxs, Ox6inia, 2003, pags. 31 ¢ segs.; Wiapnme Barro, Direito Internacional Ptiblico, Coimbra, 2008, pigs. 33 e segs.; Vauéto be Ouverrs Mazzvou, Curso de Direito Internacional Piblico, 5.! ed. Sao Paulo, 2011, pags. 51 e segs.; Jonce Bacaiak Gouves, Manual de Direito Internacional Priblico, 52 ed., Coimbra, 2013, pags. 95 € segs.; Jonatas Macttano, Direito Internacional, 4. ed., Coimbra, 2013, pags. 57 © segs.; Maria Luisa Duakte, Diretto Internacional Ptiblico e Ordem Juridica Global do Século XX1, Coimbra, 2014, pags. 51 © segs.; Peoao Canpane Farttss, Hist6ria do Direito Inter- nacional Priblico, Cascais, 2015. Para um conhecimento mais direto dos grandes marcos da histéria, v. a coletinea de Jose Aneto AzeReno Loves, Textos Hist6ricos do Direito e das Relagdes Internactonais, Porto, 1997. 5 Cfi.o nosso Manual de Direito Constitucional, I, 10. ed., Coimbra, 2014, pags. 51 ¢ segs. ‘ Cfi. Ronaupo Viana Gorscials, A tnexisténcia do Direito Internacional na Antiguidade e na Idade Média, in Revista de Direito Constitucional e Direito Internacional, out-dezembro de 2011, pags. 369 € segs. O Direito Internactonal 9 Il - Considerando apenas © moderno Direito Internacional, cabe distinguir dois perfodos na sua hist6ria: o que, mais longo, se desenrola até 2 Primeira Guerra Mundial; e 0 que, muito rico de vicissitudes, vem desde entao. No primeiro periodo, dito de Direito Internacional cldssico, dominam as tela- \dos sto (com a Santa $é, aliés em unido com os Esta- des entre os Estados € os Es dos Pontificios) os tinicos sujeitos de Direito Internacional. Além do costume, quase 86 ha tratados de comércio, de navegagio, de alianga e de paz. No segundo periodo, 0 do Direito Internacional contempordneo, inicia-se em 1919, os Estados - embora continuem a desempenhar um papel primacial - tém de concorrer com sujeitos de novo tipo, as organizagdes internacionais. O individuo ad- quire também, em certas condigGes, subjetividade internacional. Multiplicam-se os tratados multilaterais sobre as mais variadas matérias e as organizacOes internacionais ctiam também verdadeiras normas juridicas vinculativas dos Estados e dos individuos. IV - Assim como a diversos tipos de Estado correspondem diversos tipos de Direito Internacional, igualmente aos diversos periodos de desenvolvimento do Di- reito Internacional vao corresponder diferentes modelos de Estado, com implicagdes quer na ordem externa, quer na ordem interna. O principio da soberania vai sofrer, no periodo contemporaneo, progressi restrigdes € limitagdes; tal como vao pér-se em termos bem diferentes (conforme adiante se vera) as relacdes entre as leis do Estado e os tratados. E sao cada vez em maior ntimero as matérias, a nivel interno, reguladas ou reguladas também por nor- mas de origem internacional. 2. O Direito Internacional classico I-E nos séculos XV, XVI e XVII que se encontram as origens diretas do Di- reito Intemacional modemo e € nos séculos XVIII e XIX que ele se desenvolve e ganha importancia crescente Sucedem-se trés fases ou subperiodos: a) A primeira, de primérdios, abrange os tempos anteriores & paz de Vestefilia (1648); b) A segunda fase decorte até A Revolugiio Francesa e aos finais do século XVIII; ©) A terceira fase comega nessa altura € termina na Primeira Guerra Mundial II - Entre os finais do século XV e 1648 (Vestefalia) sucedem-se grandes even- tos historicos: a quebra tanto do poder do imperador do Sacro-Império quanto clo 10 Curso de Direito Internacional Piiblico poder do Papa; os Descobrimentos ¢ a expansio maritima, primeiro dos Portugueses, depois dos outros povos europeus; o Renascimento; a Reforma, a Contra-Reforma e as subsequentes guerras politico-religiosas. Muito especialmente os Descobrimentos trazem problemas até entao desco- nhecidos, Si0 os que se reportam a delimitagao da ago e das esferas do dominio das poténcias europeias em expansio (recorde-se Tordesilhas), os que se ligam & definicio do modo de entender 0 encontro entre esses povos ¢ os povos de outros continentes e os que contendem com o regime juridico do mar e da liberdade de na- vegacaio (mare clausum ou mare liberum). Sobre estes problemas se debruca a chamada escola espanhola do Direito In- ternacional (de que sao mais ilustres representantes Francisco pe Vir6xi4, DoMINco DE Soro € Francisco Suarez)’ e também uma — menos conhecida, ainda que nao pouco importante — escola portuguesa (que culmina com O Justo Império Asidtico dos Lusita- nos de Seearia pe Frerras)*”. Todavia, é Huco Grocio (De Juri Belli ac Pacis, de 1625) 0 jurista habitualmente considerado o primeiro grande cultor do Direito Internacional. II — Os tratados de Vestefilia reconhecem o principio da soberania como prin- cipio de independéncia dos Estados europeus entre sie de exclusao de qualquer po- der que lhes seja superior (0 que vem a par da doutrina absolutista na Grbita interna). Ha um equilibrio de facto, baseado na forca militar; mas torna-se imprescindi- vel defini-lo em cada momento por formas mais ou menos solenes e vinculativas. Ao mesmo tempo, vao-se multiplicando (até por causa da proximidade geogrifica e de inelutveis fatores econémicos) relagdes politicas ¢ relagdes comerciais, celebram-se 5 V., por todos, Marni pe Atnuquerqur, A Expressdo de Poder em Luis de Camées, Lisboa, 1989, pigs. 229 e segs. © Gfi, sobre 0 pensamento juridico portugués a respeito dos Descobrimentos e da navega- cdo maritima, Pauto Meta, "Um Aspecto da Questio Hugo Grécio — Serafim de Freitas (Condi Juridica dos Mares no Direito Romano)", in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Il, 1916, pigs. 465 e segs.; Vicente Luis Sivo Saxroja, Escuela Portuguesa de Derecho Inter nacional - Siglo XVI~ Domingos Antunes Portugal, Valencia, 1973; Maxceuo Cartano, Histéria do Direito Portugués, 1, Lisboa, 1981, pags. 520 ¢ segs.; Mawr pe Auuquengue, “Os Descobrimentos € os Direitos do Homem’, in Jornal de Letras, 13/3/1990; José M. Pureza, “Sobre a Universalidade no Modem Diteito das Gentes’, in Commiunio— Revista Internacional Catélica, 1991, pags. 559 & segs.; Joxgtim Joaguiat Siva Cunna @ Manta pe Assuncio Vate Perema, op. cit, I, pigs. 172 e segs.; Pa- Lo Fonsi Da Conn, Faces da Justica, Coimbra, 2002, pags. 57 e segs; Minto Jiuo pe Atwips Costa, Hist6ria do Direito Portugués, 42 ed., Coimbra, 2009, pags. 379 € segs. 7 Nao custa reconhecer a convergéncia dss teses de Sexarim pr Frertas e de Huco Grocio com 0s interesses dos respetivos Estados: mare clausum para Portugal e 0 mare liberum para a Holanda. O Direito Internactonal 11 tratados — quase sempre bilaterais - e vao surgindo normas consuetudindrias em reas to vitais como os poderes dos Estados sobre os limites (terrestre e maritimo) dos seus tertit6rios, as representages diplomiticas e a propria guerra. Por conseguinte, apesar de a visao oficial dominante se apresentar estatalista € voluntarista — no sem contraste com as referencias ao direito natural por parte dos principais autores, de Purrexporr a Woure a Varrrt —o Direito das Gentes afirma se projetando, quase insensivelmente, na vida dos Estados’. secom crescente alcance € v: IV - As grandes revolucées do século XVIII, a americana ea francesa, determi- nam sensiveis alteracdes. Elas marcam uma nova fase, que ir coincidir com o libera- lismo burgués, com o nacionalismo romantico e com 0 apogeu do poderio ocidental. Com a independéncia dos Estados Unidos, pela primeira vez um Estado geo graficamente nao europeu (embora o seja cultural e politicamente) entra para 0 cam- po dos Estados reconhecidos como sujeitos de Direito Internacional. No entanto, é a Revolucao Francesa que intoduz ou pretende introduzir mais significativas novida- des, ao afirmar, na linha dos seus principios, que a soberania reside no povo, e nao nos monarcas; que 0 Direito Internacional nao € o Direito das relagdes entre os sobe- ranos, mas 0 Direito das relagdes entre os povos; que todos os povos — a semelhanca dos individuos - sao livres e iguais. Coevo destes acontecimentos, embora bem diverso nas intengoes, seria o des- pontar do cosmopolitismo, com maxima expresso na Paz Perpétua de Kant, assim * Como escreve Orro Hintze (Staatsverfassung und Heeresverfassung, 1906, trad Stato e Fsercito, Palermo, 1991, pag. 32), a continua rivalidade entre as grandes poténcias, unida a guerras confessionais (esse estaclo de tensio permanente dla situagto politica que obrigava con- inuamente 2 novos esforcos militares para salvar e consolidar a autonomia dos diversos Estados @, por essa via, o bem-estar e a cultura), a politica de poténcia e equilibrio criou os alicerces do Estado modemo, 0 sistema de Estados fundado no Direito Internacional, assim como as Consti- uigdes absolutistas e os Exércitos estiveis do continente. * Cfr, Antonio Cassese, Linluenze delle grandi rivoluzione nazionali sui principi della co- munita internazionale, in Politica del Diritto, 1989, pags. 189 segs. © Na obra assim intitulada, Kant sustenta que a paz. internacional requer a forma repu- blicana de governo, uma vez que, em monarquia, hé uma separacdo entre o detentor do poder € 0 povo: o senhor do poder faz a guerra, mas nao sofre com ela (wv. na edi¢io de Axrue Moro, Lisboa, 1988, pigs. 126 e segs.). Cir. j4 Eraswo, Dulce Bellum Inexpertix, 1500, Querela Pacis, 1517, trad. portuguesa A Guerra ea Queixa da Paz, Lisboa, 1999, pag. 105: “Mas causa vergonha recordar quo vergonhosos e quao fiiteis Sio os motives, pelos quais os principes provocam o mundo & guerra”. ‘Vale a pena ainda transcrever o seguinte passo de outra obra de Kant, A Metafisica dos Costumes (na trad. portuguesa de José Laseco, Lisboa, 2005, pigs. 227 e 228): ian: 12 Curso de Direito Internacional Piiblico como no inicio do século XIX, com o “plano para uma paz universal” de Bexmian e com “a reorganizacio da sociedade europeia” de Sanvt-Sivon Mas o cosmopolitismo!" revelar-se-ia uma pura utopé tos, perante a forga dos nacionalismos. , na Europa de Oitocen- V— 0 Congresso de Viena” assinala tanto o triunfo (que seria efémera) dos reis como a consciéncia da necessidade de reforcar 0 equilibrio, 0 concerto euro- peu, através de conferéncias diplomaticas"* " “Os elementos do Direito das gentes so os seguintes: 1. Que os Estados considerados nas suas relagdes exteriores se encontram por natureza num estado mo juridico (como as selvagens sem lei); 2. Que este es guerra efetiva e permanente agressio efetiva (hostilidade); agressio essa que, mesmo por via dela nenhum sofra por parte do outro qualquer injustiga (enquanto ambos no queiram melhorar a si- tuacdo), € em si mesma sumamente injusta, e os Estados que tém entre si relagdes de vizinhanga esto obrigados a sair desse estado; 3. necessiria uma liga de nagdes, em conformidade com a ideia de um contrato social originirio, de modo a que essas se obriguem (reciprocamente) a ndo imiscuir-se nos contfltos internos de cada um, mas sim a proteger-se de ataques do exterior; 4 Que @ unio no deve, de todo em todo, conter nenhum poder soberano (como numa Consti- tuigio civil), mas somente uma associacio (confederaco); alianga essa que pode ser denunciada em qualquer momento que, portanto, tem de ser renovada de tempos a tempos ~ trata-se de um direito in subsidium de um outro originatio, o de reciprocamente se impedirem de cair no estado de guerra efetiva (foedus Ampbictyonumy’. "' Cfr. Soraya Nour, A Paz Perpétua de Kant - Filosofia do Direito Internacional e das Re- Jagées Internacionais, Sao Paulo, 2004. Segundo escreve (pigs. 54 € segs.), 0 Direito até Kant tinha duas dimensées: 0 Direito estatal, isto é, 0 Direito interno de cada Estado, e 0 Direito das Gentes, isto &, 0 Direito das relagdes dos Estados entre si e dos individuos de um Estado com os de outro. Kavr acrescenta uma terceira dimensio: 0 Direito cosmopolita, 0 Direito dos cidadios do mundo, que considera cada individuo nao como membro do seu Estado, mas como membro, ao lado de cada Estado, de uma sociectacle cosmopolita fr, também, por exemplo, Acitio Roc, Za Question de la Paix dans le Cosmopolitisme des Lumibres, separata da obra coletiva La Philosophie de la Paix, 1, Paris, 2002; ou “A Europa Cosmopolita: ‘Unitas Complexa”, in Europa, Cidadania e Multiculturalismo, obra coletiva, Braga, 2004, pags. 87 e segs.; e Ceciuus Goer, “Cosmopolitan Law?’, in The Yale Law journal, 2007, pa 1024 e segs. Noutra Gtica, OrAvio Cancano Taipape, “Kant na Haia: Abordagem Constitucional do Dit Internacional pela Corte Internacional de Just ', in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, janeiro-junho de 2008, pags. 353 e segs. ” Das grandes poténcias: Gri-Bretanha, Austria, Priissia, Rtissia e Franca. E tendo como convidados, por cortesia, a Espanha, Portugal e a Sérvia. °5 Clr. Nepou, “Le Développement Historique du Droit International depuis le Congres de Vienne’, in Recuetl des Cours de l'Acaclémie de Droit International de La Haye, 1924, 1, pags. 5 ¢ segs. “ Quanto Portugal, cfr. Peoxo Caripabe pe Fees, Portugal e a comunidade internacio- nal na segunda metade do século XIX, Lisboa, 2012. Sobre o Direito das Gentes na Constituigoes desse século, pigs. 163 € segs. ido é um estado de guerra (do direito do mais forte), mesmo que nao seja O Direito Internacional 13 A Santa Alianca é uma expressao temporaria desse triunfo. Mas nao conse- gue impedis, na América, as independéncias das col6nias espanholas ¢ do Brasil e, na Europa, a da Bélgica, nem sucessivas revolugées liberais ¢ 0s movimentos que conduziriam & unificacdo italiana e & alema. O principio das nacionalidades levara, por seu turno, também & independéncia da Grécia e dos demais paises balcinicos. Quatro importantes notas anunciam- a comunidade de Estados de paises nio europeus ou nio cristios — a Tur quia, a Pérsia, o Japao, a China's, a Libéria, Outra é 0 aparecimento de unides ad- ministrativas internacionais (como a Unio Telegrfica Internacional € a Uniao Pos- tal Universal), bem como das comissdes internacionais do Reno e do Dantibio. Por obra da Cruz Vermelha, a criactio de um Direito humanitirio de guerra e a atencao as vitimas dos conflitos. Em quarto lugar, a tentativa de abrir caminho a arbitragem internacional (com a criago de um Tribunal Permanente em 1907) e & limitagio do modo de fazer a guerra, do jus in bello. precursoras de mudanga. Uma é 0 3. O Direito Internacional contemporaneo I- 0 Direito Internacional evolui a seguir & Primeira Guerra Mundial em fases: a) Uma primeira fase, até 1939, até a Segunda Guerra Mundial ~ é a fase de- corrente do Tratado de Versalhes e marcada pelo malogro da instituciona- lizago tentada através da Sociedade das Nacdes; b) Uma segunda, apés 1945, traduzida juridicamente na Carta das Nagdes Unidas e assinalada por aquilo a que se chamaria “Guerra Fria”; ©) Uma terceira fase, aberta pela queda do Muro de Berlim em 1989. I-A derrota e o desmembramento dos chamados Impérios Centrais levam 2 reafirmacdo dos principios da autodeterminacao dos povos e das nacionalidades, separadamente ou conjugados. Novos Estados (de base nacional, mas integrando miltiplas minorias nacionais) surgem na Europa Central; desenham-se movimentos anticolonialistas fora da Europa; ¢ em antigos territrios alemaes e turcos define-se um regime especial de governo e administragio — 0 regime de mandatos - voltado para a preparacao da independéncia, e nao ja para a anexacao pura e simples pelas poténci: \dministrantes. 'S Cf. Truvo y Sexes, El Ingreso de China en Familia de las Naciones, Lisboa, 1996. 14 Curso de Direito Internacional Piiblico Em anexo ao Tratado de Versalhes (1919) € criada a Sociedade das Nagdes, a primeira organizagao internacional de ‘iter politico. Conquanto nao confinada a (0 eles que avultam; e, embora a vida internacional agora objetivos de seguranga, aparega aberta a Estados de todos os continentes, ainda sao os Estados europeus (até devido a auséncia dos Estados Unidos) que dominam a Sociedade das Nagdes ~ na pra venir e remediar conflitos. Ao mesmo tempo institui-se a Organizacao Internacional do Trabalho (com uma estrutura muito diferente da das uniGes administrativas vindas do século XIX), a qual int desempenhar uma funcio decisiva no progresso social, através das con- vengdes e das recomendagdes que elaboraré a partir da sua assembleia, a Confe- réncia Internacional do Trabalho. Neste 6rgao, cada Estado € representado nao s6 pelos delegados governamentais (que falam em nome dos interesses gerais do Es- tado) mas também por representantes das organizagdes dos trabalhadores e por re- presentantes das organizacdes dos empregadores. E tanto 0 objeto das convengdes como a composiciio da Conferéncia prefiguram ou figuram jé a ultrapassagem do Direito Internacional como Direito intergovernamental De registar, igualmente, a criagdo de um Tribunal Permanente de Justiga In- ternacional — ou seja, a formacao, pela primeira vez, de uma instincia jurisdicio- nal, de um érgio de solugio de litigios internaciona estritamente jurfdicos; e esse tribunal (assim como, depois, 0 seu sucessor, © atual Tribunal Internacional de Justica) daria um grande contributo ao proprio desenvol- vimento do Direito Internacional. Finalmente, sdio dos anos 20 alguns textos de nao pouco interesse: 0 Proto- colo para a Resolugao Pacifica dos Conflitos Internacionais, de 1924; os Acordos de Locarno (de garantias mituas e de arbitrage), de 1925; 0 Pacto Briand-Kellog, de rentincia geral 4 guerra, de 1928; e 0 Ato Geral de Arbitragem, também de 1928. Ficariam, porém, sem efetividade. A realidade desses anos e, sobretudo, dos anos 30 nao permitiria a aplicagio desses textos € conduziria 4 faléncia da Sociedade das Nagdes, incapaz de enfrentar as agressOes japonesa na China e italiana na Etiopia, o rearmamento alemao, a guerra civil da Espanha (1936-1939), as ocupacdes da Austria, da Albania e da Checoslova- quia. Bem pelo contrario, os totalitarismos de varios sinais e os nacionalismos milita- ristas pareciam entao prevalecer, chegando aquilo a que se chamaria guerra fotal”®, uma espécie de conferéncia diplomatica permanente destinada a pre- is de harmonia com critérios "© Cf. Hannan Arenor, Was Ist Politik?, 1993, trad. francesa Qu’Bst-Ce Que la Politique?, Paris, 1995, pags. 124 e segs. O Direito Internactonal 15 m- Em face da experiéncia nao satisfatéria das estruturas juridico-internacio- nais de entre as duas guerras, as grandes poténcias vencedoras de 1945 quiseram im- plantar um novo, mais completo e mais dindmico sistema mundial. A Organizacao das Nagdes Unidas, criada nesse ano, foi pensada como o seu instrumento por exceléncia Sio os seguintes os tragos distintivos da Organizagio no cotejo da Sociedade das Nagoes: a) A elevacio da cooperacdo econémica € social e da promogio dos direitos do homem a tarefas no mesmo plano da manutengao da paz e da seguranca internacionais (arts. 12, 332 € segs. e 55.2 e segs. da Carta); b)O empenhamento no progresso politico, no sentido da autodeterminagao e da independéncia nao s6 dos territérios sob tutela, correspondentes aos anteriores mandatos (arts. 75.2 € segs.) mas também de todos os tertit6rios nao auténomos (arts. 7: ©) A proibicao da guerra (arts. 2°, n.°°3, 4 € 5, € 51.2) € a atribuicao de poderes coercitivos & Organizacao com vista 8 manutengio da paz e da seguranga internacionais (arts. 39. € segs.); d) Um conjunto mais complexo de érgios — Assembleia Geral, Conselho de Seguranca, Conselho Econémico e Social, Conselho de Tutela, Tribunal In- ternacional de Justica e Secretério-Geral, além de érgios auxiliares ou sub- sidiarios. Nao admira que, doravante, as Nagées Unidas passem a tomar a iniciativa ou a dar enquadramento a todas as atividades internacionais multilaterais que no sejam meramente continentais ou regionais. ‘A par das Nagdes Unidas e da Organizacao Internacional do Trabalho, consti- tuir-se-iam, entretanto, outras organizacdes de ambito parauniversal, cobrindo os mais diversos dominios, nos setores econdmicos, sociais € culturais: Organizagio das Na- des Unidas para a Educagio, a Ciéncia ea Cultura (UNESCO), Organizacio das Na- ao e a Agricultura (FAO), Organizacio Mundial de Satide, Oes Unidas para a Alimenta etc, Juridicamente distintas das Nagées Unidas, estio-lhe vinculadas, enquanto suas organizacdes especializadas, por acordos celebrados através do Conselho Econémico € Social (arts. 572 e 63.9, e daf falar-se, por vezes, em “familia das Nagdes Unidas’. Do mesmo modo, seriam criadas numerosas organizagées de ambito continen- tal, pluricontinental ou subcontinental, com objetivos politicos, militares, econémicos e culturais, e algumas com estruturas de integracao. IV ~ Trés anos depois do fim da segunda guerra mundial, em 10 de dezem- bro de 1948, e sob o impacto e a emocao dos seus horrores ¢ dos regimes totaliti- 16 Curso de Direito Internacional Piiblico rios, a Assembleia Geral das Nacdes Unidas aprovaria a Declaraco Universal dos Direitos do Homem. Seguir-se-iam, como se vera no respetivo capitulo, numerosissimos tratados, declaragdes € recomendagdes, e, em conexio direta com a Declaragao, os Pactos de Direitos Econémicos, Sociais e Culturais ¢ de Direitos Civis e Politic V-A Carta das Nagdes Unidas e os Pactos"” reconheceriam 0 direito dos po- vos 4 autodetermina¢ao. Sob 0 impulso de movimentos locais ¢ com © apoio dos Estados Unidos da Unido Soviética, as grandes poténcias emergentes, iriam aceder 4 independéncia politica, nas décadas seguintes, por processos pacificas ou depois de guerras pro- longadas, praticamente todas as coldnias ou semicolénias de impérios maritimos europeus - na Asia, na Africa, nas Caraibas € no Pacifico". O aparecimento dos novos Estados — em numero tal que obteriam maioria na Assembleia Geral das Nacdes Unidas — dir-se-ia por em causa algumas das bases do Direito Internacional”, Para certas correntes doutrinais e politicas, teria mesmo de se dar uma rutura com os principios ¢ as regras anteriores, produto do dominio de paises imperialistas e exploradores, i semelhanga do que ocorreria com 0 Direito interno, também haveria um Direito Internacional de classe; ¢ seria necessario criar um novo Direito para permitir uma justiga social internacional e o desenvolvimen- to. Porém, ultrapassados apriorismos ideolégicos, verificar-se-ia que © Direito In- "” B, em 1960, a Assembleia Geral das Nagdes Unidas aprovaria uma Declaragio sobre a Concessiio de Incependéncia aos Paises ¢ Povos Coloniais, ° Caso particularissimo, sob muitos aspetos, seria 0 portugués, por diversas causas bem conhecidas. Tal como, antes, os regimes soviético e nacional-socialista, rompendo o consenso de concegdes juridico-politicas na Europa, tinham ameacado a subsisténcia de um Direito Internacio- nal (nico. Gfi., por exemplo, Wourcane Frrbuawn, De Efficacité des Institutions Internationales, trad, francesa Paris, 1970, pags. 71 € segs.; ou Gricony TuNkis, “International Law in the Interna- tional System”, in Recueil des Cours, 1975, IV, pags. 9 segs. © Chr, de virios prismas, Winrisia Wincisr, “La Crise de Unité de 'Ordre Juridique Inter- national”, in Mélanges Offerts & Charles Rousseau, obra coletiva, Paris, 1974, pags. 335, 336 ¢ 338; Rene-Jean Durcy, “Communauté Internationale et Disparités de Développement’, in Recueil des Cours, 1979, IV, pags. 21 e segs.; Monae Beojsout, Pour Un Nouvel Ordre Economique International, rad. portuguesa Para Uma Nova Ordem Econémica Internacional, Lisboa, 1980; L’Avenir du Droit Inter- national dans Un Monde Multiculturel, obra coletiva, Haia-Boston-Londres, 1984; Astowio Cassesst, I] Diritto Internazionale nel Mondo Contemporaneo, Bolonha, 1984, pags. 82.¢ segs.; Eowako Mewrtin- ney, Les Nations Unies et la Formation du Droit, Paris, 1986, maxime pigs. 199 e segs.; Macon N. Siw, op. cil, pigs. 40 e segs.; Jost Mantes Pureza, O Patriménio Comum da Humantdade. Rumo O Direito Internacional 17 ternacional conseguiria adaptar-se as transformacoes, revelando-se dotado mesmo. de maior capacidade de adaptacao do que o Direito interno, em vez de ser mera superestrutura dependente de quaisquer interesses”'. A Carta dos Direitos e Deveres Econémicos dos Estados (de 1974), a Con- vencao de Direito do Mar, de Montego Bay (de 1982) e algumas outras declaracdes e convengées traduziriam bem essa linha evolutiva. Em contrapartida, o desiderato de uma “nova ordem econdémica internacional” nao tem recebido até hoje concre- tizagao significativa. VI O mundo seria atravessado a partir de 1945 pelo confronto ideolégico, politico € estratégico de dois grandes blocos (0 “ocidental” € 0 “soviético”), cada um dos quais com aliangas militares dominadas por uma poténcia hegeménica; um confronto s6 muito pouco atenuado pela formagao, apés a Conferéncia de Bandun- gue (de 1954), de um grupo de paises “nao alinhados”, Era uma bipolarizacao, em contraste com a multipolaridade que, salvo duran- te as duas guerras mundiais, sempre havia assinalado as relacdes intemacionais Mas o aparecimento das armas nucleares, de destruig’io maciga, na posse de ambos os blocos, levaria a que se conseguisse ultrapassar todas as crises, através de um equilibrio de forcas constantemente sustentado. E a Europa conheceria um periodo de paz sem precedentes, ainda que nao faltassem os conflitos noutros con- tinentes (muitos dos quais envolvendo, direta ou indiretamente, os dois blocos, 0 que explica a nao interven¢ao af das Nagdes Unidas). VII - A queda, em 1989, do Muro de Berlim (expoente da divisio da Alema- nha e do mundo), 0 quase imediato desmoronamento do comunismo na Europa Centro-Oriental e, em 1991, a desagregacdo da Unido Soviética® alterariam radical- a Um Direito Internacional da Solidariedade?, Lisboa, 1998; José Jani Roca JONton, “O Futuro da. Soberania ¢ do Direito dos Povos na Communitas Orbis’, in Noticias do Direito, Brasilia, nova série, 1.29, 2002, pags. 192 ¢ segs; International Law and the Third World, obra coletiva, Londres, 2008. Sobre a autorregéncia do Direito, releia-se, por todos, Gustav Rapnavcss, Rechtspbiloso- phie, 34 ed, portuguesa Filosofia do Direito, trad. portuguesa, Coimbra, 1961, I, pags. 79-80, ¢ TL, pags. 136 e segs. * Cfr., embora ideologicamente marcada ¢ radicada num mundo ainda multipolar, a tese de Can. Scar (Vélkerrechtliche Grossraumordnung mit Interventionsverbot fiir Raumfrende Machte, 1941, trad. italiana I Concetto di Impero nel Diritio Internazionale, Roma, 1996, pags. 45 € segs.), segundo a qual 0 Diteito Internacional, em vez de assentar em relagdes entre Estados, doravante assentaria em relacdes entre impérios. % Na realidade, o império continental susso. 18 Curso de Direito Internacional Piiblico mente as condicionantes da vida internacional e os Estados Unidos ficariam sendo, pelos seus recursos, avanco tecnolégico e forca militar, a tinica poténcia mundial. Mas os ataques terroristas de 2001 ¢ as dificuldades de resposta a um funda- mentalismo difuso de matriz antiocidental, seja ou nao religiosa (tudo agravado nos Uiltimos tempos), a insuficiéncia comprovada de politicas unilateralistas® perante 05 conflitos que se vio propagando do Mediterraneo ao {ndico iriam afetar a unipo- laridade s6 aparentemente triunfante. Assim como o renascer do poderio da Rti eo peso emergente da China, da India e do Brasil A globalizacio, nas suas miltiplas vertentes, reflete e projeta em escala ain- da maior os problemas de relacionamento entre os Estados € os blocos regionais — tudo no contexto de extensas e, por vezes, dramiticas deslocagdes de popula- des, do capitalismo financeiro transnacional, da ameaca de proliferagio de ar- mas nucleares, de novos irredentismos étnicos e nacionalistas, de desigualdades na distribuigao de riqueza entre o Norte e o Sul, de instabilidade politica e social em numerosos paises, de catastrofes ambientais e tecnoldgicas”. Nao custa compreender, por isso, por que as Nacdes Unidas € as suas or- ganizacées especializadas nao tém conseguido até agora redefinir o sistema de relac6es internacionais, apesar de alguns resultados considerdveis, como algumas “operagdes de paz” e a criacto, em 1998, do Tribunal Penal Internacional. Se o Estado se encontra em crise™, esta longe de ser substituido por uma governacdo » Concorde-se ou no com a anilise, v. Samui Hoxnneroy, The Crash of Civilizations ~ Remaking the World Order, 1996, trad. portuguesa O Choque das Civilizagdes e a Mudanca de Ordem Mundial, Lisboa, 1999. 5 Cr. as visdes portuguesas de Loveiko pas Santos, A Idade Imperial, 4 ed., Lisboa, 2003, € O Império debaixo de Fogo — Ofensas contra a Internacional Unipolar, Lisboa, 2006; Pamwicis Gatvio Tass, “A Ordem Juridica Internacional em Transigio? Multiculturalismo vs Unilateralismo € a Intervengo Militar no Traque’, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocéncio Galvdo Telles, obra coletiva, V, Coimbra, 2003, pags. 749 e segs.; Pauts Escarantia, “Tempo de Estabilida- de e Tempo de Mudanca em Modelo de Organizacio Mundial’, in Themis (revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa), n.° 10, 2005, pags. 165 e segs. ® Manto Tuncitert fala, a propésito, em “economizagio do mundo" (Zyranie et Tyranicide de l'Antichité & nos jours, Paris, 2000, pags. 973 © segs.) ” © Papa Francisco nao hesita em declarar existit uma “divida ecolégica”, particularmente entre o Norte € 0 Sul (enciclica Laudato Si, n2 51). % Cir, por todos, Sxsino Cassese, La Crisi dello Stato, 24 ed., Bari, 2002; ou Wtapeutr Barro, “Do Estado. Da Construgio € da Desconstrugio do Conceito de Estado”, in Revista de Histéria das Ideias, vol. 26, 2005, pags. 294 e segs.; Ru Meneiwos, A Constituigdo Portuguesa no Contexto Global, Lisboa, 2015, pags. 22 e segs. O Direito Internactonal 19 global®; as conferéncias periédicas de Estados G-7 ou G-8 € G-20 so expressoes ainda de tendéncias hegem6nicas. 4, Horizontes de futuro? I-A despeito disto, ou por causa disto, tém voltado a aparecer propostas de cosmopolitismo, como as de: — Nokserto Bossio, apontando para a submissao de todos os Estados a uma ordem democratica, até porque os Estados apenas poderao tornar-se ple- namente democriticos numa sociedade internacional completamente de- mocratizada”. = Joun Rawis, entendendo o Direito dos Povos a partir de uma ideia de jus- tiga como equidade, similar 4 da sua Teoria de Justica*'. “As sociedades democraticas nao fazem guerra umas as outras®; os povos justos limitam. ‘0s seus interesses basicos a um nivel razodvel”. — Perer HAwenix, para quem a intengio cosmopolita de Kanr é hoje um io de esperanca’ € um “principio de responsabilidade” no Estado constitucional ¢ os direitos do homem e os direitos da humanidade vém juntos®; e para quem os cruzamentos e as ag6es reciprocas de Direito constitucional e de Direito internacional resultam num “Direito comum 38 de cooperacao". ® Cli Axronio Soxpaxo, Gli effetti costituzionali della c. d. ‘globalizzazione’, in Politica del Diritto, 1998, pigs. 449 e segs. Manta Rosatis Feeranese, “Le Istituzioni della Globalizzazione”, in Diritto— Diritti nella Societa Trasnazionale, Bolonha, 2000, maxime pigs. 11 € 101 e segs.; M- cain, Zonx, “Globalization and Global Governance”, in European Review, vol. 11, n2 3, julho de 2003, pags. 341 € segs.; Power in Global Governance, obra coletiva (ed. por Mice. N, BaxNert ce Raywionb Dovatr), Cambridge, 2004; Giaxuiict PaLowneuia, 1 Rule of Law oltre fo Stato, in Rivista ‘Trimestrale de Diritto Pubblico, 2009, pigs. 326 e segs. ° 11 Futuro della Democrazia, trad. O Futuro da Democracia, 7 ed., Sao Paulo, 2000, ‘maxime pas. 12 e 207. * The Law of Peoples, rad. A Lei dos Povos, Coimbra, 2000, pigs. 9 € 63. ® Ibidem, pag, 14. % Ibidem, pig, 36. * [Frat Constitutionnel, rad., Paris, 2004 ® Der kooperative Verfassungsstaat, trad. O Estado Constitucional Cooperativo, Rio de Ja- neiro, 2007, pags. 4 € 10 e segs. 20 Curso de Direito Internacional Piiblico = Orrraep Hore, pronunciando-se por uma repiblica mundial democratica, assente nos principios da subsidiariedade e do federalismo, mas rejeitando um Leviata global. = Awarrva Sem, dizendo que uma democracia global nao € algo que deva fi- car atirado para uma arca congeladora por tempo indefinido™® — Joncrn Hanrewas, sustentando que o objetivo de uma constituigao democriti- ca da sociedade mundial exige - 4 por razdes conceituais relacionadas com ‘a.construgdo de ordens juridicas modernas a partir de direitos subjetivos — a constituic¢ao de uma comunidade de cidaddos do mundo. O conceito de uma cooperacdo constitucional entre cidaddos e Estados, desenvolvido no exemplo da Unio Europeia, aponta o caminho que a comunidade dos cida- «aos do mundo poderia tomar para completar a comunidade internacional de Estados, jé existente, transformando-a numa comunidade cosmopolita. Esta nao se constituiria como uma reptiblica mundial, mas sim como uma associacio supraestatal de cidadaos € povos de Estados, de tal modo que ‘0s Estados-Membros preservariam a disposic2o - ainda que nao o direi- to a livre disposicio — sobre os meios de recurso legitimo a violéncia. Os Estados nacionais constituiriam, a par dos cidadaos do mundo, o segun- do sujeito constituinte da comunidade mundial, uma vez que os cidadaos ® Demokratie im Zeitdilter der Globalisierung, Munique, 1999, trad. A democracia no mun- do de hoje, Sio Paulo, 2005, maxime pigs. 265 ¢ segs, Contra um Estado mundial, uma Respublica Universal, cft., porém, Gustavo ZackebetsKy, La Virtix del Dubbio, Roma-Bati, 2007, pigs. 137 e segs; ou o que escrevemos em Manual de Di- reito Constituctonal, 1, 10.4 ed., 1, Coimbra, 2014, pags. 116 e segs. % The Idea of Justice, trad. A Ideia de Justica, Coimbra, 2010, pag, 533. * Cfr. ainda Ren Mouerson, Democracy Promotion: Institutions, International Law and Politics, in Recueil des Cours de V'Académie de Droit International de La Haye, 2008, pags. 13 e segs.; GIULIANA Ziccarbt CaPatvo, Diritio Globale — II nuovo Dirito Internazionale, Milao, 2010, pigs. 27 e segs.; Micuaet Watzer, I! governo mondiale 2 un sogno?, in Quaderni Costituzionali, 2011, pags. 187 e segs.; Anne Perees, Caminhamos para a constitucionalizacdo da comunidade mundial, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2012, Il, pags. 789 © segs.; Mareus Kowaiski, A “ordem puiblica universal” como fim da Historia? Universalizagao e desenvolvimento do Direito Internacional, ibidem, Il, pags. 857 € Segs.; ANDERSON VICHINKESKI ‘Trxeina, Teoria pluriversalista do Direito Internacional, Sio Paulo, 2011, pags. 149 e segs.; Luis Mania Ditz-Ptcazo, Solidarité entre Nations?, in Revue Européenne de Droit Public, 2014, pags 127 € segs.; Loxenzo Casint, Solidarity between States in the global legal space, ibidem, pags. 147 © segs.; ALESsanpRo Sere, Per una democrazia cosmopolita. Quis custodiet custodes?, in Themis, 2014, pags. 115 e segs. O Direito Internactonal 21 cosmopolitas voltam ou voltariam a ter boas raz6es para insistir num papel constitutivo dos seus Estados a todos os niveis supranacionais” Il - Por estimulantes que sejam essas e outras propostas, continuam a situar- -se no dominio da utopia. © que se verifica, sim, é 0 constante desenvolvimento do Direito internacio- nal, penetrando em todas as dreas; bem como a consciente comunicagio com as ordens juridicas estatais e prevalecendo sobre as normas destas - como se mostrar adiante, em capitulo proprio. Ao mesmo tempo, tem vindo a avultar a presenga de grupos de cidadios, de organizagdes nao governamentais (hoje j4 em ntimero de centenas) em miilti- plas agdes de sensibilizacao € nas grandes conferéncias mundiais. Gragas a elas € 2 imediata circulacio das noticias, estaria surgindo uma sociedade civil ou um es- paco ptblico a escala do planeta; estaria ocorrendo uma espécie de socializagio do Direito das Gentes; e a comunidade internacional, em vez de ser definida como a comunidade dos Estados, tenderia a identificarse com a propria humanidade®. » Zur Verfassung Europas: Ein Essay, 2011, trad. Um ensaio sobre a Constituigdo da Europa, Lisboa, 2012, pags. 119 e 120. V. também Philosophie Tete. Stidienausgabe, vol. 4, 2009, trad. Teoria Politica, Lisboa, 2015, pags. 261 e segs.; e para quem (pag. 319), a Carta das Nagdes Unidas institui um quadro em que os Estados membros ja ndo 16m de se compreender como normas sujeitas de tratados regidos pelo Direito internacional; juntamente com os seus cidadaos, podem agora reconhecer-se como protagonistas de uma sociedade mundial politi- camente constituida ® Cfi. L'Emergence de la Société Civile Internationale. Vers la Privatisation du Droit Inter- national?, obra coletiva (ed. por Haute Grirrart € Sanpra Szurex), Paris, 2003; Rosa Riquetme Cor- ‘1an0, Derecho Internacional - Entre Un Orden Global y Fragmentado, Madrid, 2005, pigs. 143 € segs.; FerNanpo Catroca, “A Coabitacio dos Sentimentos de Pertenca na Era da Cosmépolis”, in Da Virlude e Fortuna da Reptiblica ao Republicanismo Pés-Nacional, obra coletiva (coordenada por J. J. Gowes Caxomuno e Virat Monetna), Coimbra, 2011, pags. 69 © segs; Jonatas Mactano, op. cit., pigs. 98 e segs. Utkicu Beck, Weltrisikogesellschaf?, 2007, trad. A Sociedade de Risco Mundial, Lisboa, 2015. 22 Curso de Direito Internacional Piiblico §22 Sentido do Direito Internacional 5. Ambito do Direito Internacional I- Sao varios os critérios possiveis de defini¢do do que sefa 0 Direito Interna- cional, 0 Direito Internacional Piiblico ou Direito das Gentes (tomamos as expresses como sindnimas, embora elas tenham origens € possam adquirir sentidos diferentes)!, Dentre esses critérios, importa considerar os que focam os elementos mais determinantes de caracterizagao’. a) O primeiro e mais imediato critério atende as relacdes regulacas pelo Direito Internacional como relagdes entre Estados (ditos impropriamente “Nagdes”): Direito Internacional é entio o Direito das relagdes entre Estados (entre Estados nactonais, ou fendencialmente nacionais, como sio os modernos Estados de matriz europeia). ‘Todavia, esta nogdo nao pode terse por correta. Por um lado, existem outras entidades para além dos Estados, que também sao alvo de consideraciio e que participam ativamente no que se tem vindo a chamar vida juridica internacional. Sao elas, como se sabe, a Santa Sé, as organizacdes internacio- nais, os movimentos e grupos de pessoas que obtém alguma forma de reconhecimento internacional, 0 pr6prio individuo e até empresas privadas em determinadas relacdes. Em contrapartida, existem Estados que nao participam (ou s6 participam em termos limitadissimos) da vida juridica internacional — os Estados-membros duma federagdo ou duma uniao real. Por outro lado, uma definicao concebida na base das relagdes entre os Esta- dos ignora normas de Direito Internacional que vém regular situagdes verificav no interior de cada Estado e que nada tém a ver com as relacdes entre Estados. Entre es , Por agora, Numerosas normas sobre matérias econdmicas, de ‘ocial ou de protecio das pessoas. as, citem- seguran " Clr, Tauvon ¥ Senna, Nogdes Fundamentais de Direito Internacional, 2.* ed. portuguesa, Coimbra, 1962, pags. 23 e segs ? Cfi., por exemplo, AFOSSo QuiiRo, Ligdes de Direito Internacional Piiblico, policopiado, Coimbra, 1960, pigs. 3 e segs.; AueD Vexnross, op. cit, pags. 3 € segs; Pav Guccensiem, op. cit, figs. 3 € 4; ARwabo Mangues Guenes, op. cit, pags. 5 e segs. Beveoerto Coxrosn, Diritto Interna- zionale, 32 ed., Napoles, 1987 (reimp. de 1988), pags. 3 e segs.; ANokE Goncalves Pentika e Fausto De Quankos, Manual de Direito Internacional Piiblico, 32 ed., Coimbra, 1993, pags. 26 e segs.; Epuar- bo Comets Barrista, op. cil, pags. 21 e segs.; Vatsno pe Ouveika Mazzvou, op. cit, pags. 62 e segs. O Direito Internacional 23 Definir Direito Internacional segundo os parfimetros fornecidos por este crité- rio é ficar, de algum modo, com uma concecio estreita € redutora do que seja 0 Di- reito Internacional. E uma maneira de olhar que, podendo ter servido em certa fase da evolugao do Direito Internacional, hoje se apresenta perfeitamente ultrapassada. b) Um segundo critério possivel que tem sido adotado para recortar 0 Direito Internacional contempla nao j4 0s Estados, mas sim os sujeitos de Direito Interna- cional em geral. Nesta Gtica, 0 Direito Internacional é encarado como um Direito regulador das relacdes entre sujeitos de Direito Internacional, independentemente de estes serem ou nao Estados. ‘Tal definicio tem, desde logo, um gravissimo defeito: o de implicar uma pe- ticio de principio — define 0 Direito Internacional a partir dos sujeitos de Direito Internacional; ora, 0 que sejam € quais sejam esses sujeitos de Direito Internacional depende do proprio Direito Internacional. ©) Uma terceira defini¢ao de Direito Internacional parte do objeto das nor- ‘mas. Tudo © que seja matéria internacional é objeto de normas de Direito Interna- cional; este aparece como o Direito relativo a matérias internacionais, e nao como © Direito das relagdes entre Estados e outros sujeitos. E, prima facie, 0 art. 22, n.2 7 da Carta das Nagdes Unidas pareceria corrobo- rar tal conceito, ao prescrever que as Nacdes Unidas nao podem intervir em “ tos que dependam essencialmente da jurisdigio de qualquer Estado” Surgem, porém, logo as duividas: afigura-se tarefa dificil afirmar com segu- ranca e firmeza que uma dada matéria cabe ou nao no Direito Internacional, é in- ternacional ou nao; e cada vez se observa mais uma intrincada teia de circulacao, comunicacdes, relacdes e trocas entre os povos. Quanto a ideia de dominio reservado dos Estados do art, 2.2, n.2 7 da Carta das Nagdes Unidas (a tratar adiante), ela tem-se prestado a oscilagdes e entendi- mentos opostos, encontrando-se a sua interpretaclo A mercé menos de posturas juridicas do que de opcées € conjunturas politicas. Nao se divisa um conceito uni- voco do que seja “dominio reservado dos Estados” e, por essa via, nao se consegue destringar matérias internas e matérias internacionais. d) Outro critério aponta para os processos de formacdo das normas: o Direito Internacional abrangeria as normas resultantes de processos de formagao especifi- cos de normas, contrapostos aos de Direito interno. E, com efeito, as diferengas ressaltam quase a vista desarmada. Nao encon- tramos leis como modos de formacio centralizados do Direito por obra de autorida- des com competéncia para tal. Como modo mais aproximado apena — hoje, nao ha 100 anos - os tratados multilaterais gerais e as decis6es, ou certas ssun- encontramos

Você também pode gostar