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JOSE LUIZ FIORIN oatsticat (Que Comielio Editorial Ataliha Teixeia de Castitho Carlos Euuardo Lins da Silva José Luic Fiosin Magda Soares Pedro Palo Fanari Rosing Tania Regina de Luce Doin de Almeida Tiida repr al ou parcial em qualgwer midis io cerita da Ferra (Os infstones esto sujets Bs penas da I A Fiitora nao ¢ respansivel pelo contesido da Obra, ‘com 0 qual nio necessariamence concord. Os Autores conhecer os fates narsados, pelos quais sio responsive, assim como se reaponssbilizam pelos juleos cmitides Conte nowa catalogs comple «skims langaments rs wawceditoracontete. come José Luiz Fiorin (org) Linguistica? Que é isso? editoracontexto Coprighe © 2013 do Organi Tides ot disinos dea digi revervador 4 Fedivora Conrexto(alora Pinsky Lada) Monagom dr cape ediagomagio Gaveav S, Vi Bos Prepare de es Tian Aquino Revisy Ferman Gisrito Antunes Dados Ineracionis de Catlogato na Publicasio (cr) (Caunars Brasilia do Lito, st, Beas) Trg? Que € nF exganizalor Jou Cas i ‘Sto Paulo: Content, 2013. Bibliograa ISBN978-85-7244.7966 1. Lingua elinguagem 2. Lingusica 3. Meabinguagern 4, Varnes linguistics. Hori, José Lie. 13.0379 epp.10 Tadic par cil dacratcar TV Lingutsica 410 ma Eprrons Coxrexto Diretor eich Jae Py Run Dy José Bliss, 520 — Ako da Lap 5083-030 Sie Palo st re (11) 3832 5838 ‘coneesit@editersconent.com.br ‘wncediteacamtest.com.br Sumario PRErActo. ALLINGUAGEM HUMANA: BO MITO A CIENCIA. José Luiz Fiorin AS LinGuas po MUNDO. José Luiz Fiorin A NATUREZA DA LINGUAGEM HUMANA. 7 Esmeralda Vailati Negro Linaua F VARIACAO. Ronald Beline Mendes Mupanca LINauisTica. 7 a Bvani Voth O USO LINGUISTICO: A PRAGMATICA E 0 DISCURSO. José Lulz Florin e Norma Diseint Os autores 45 15 sinc 99 scenes 81 acces 205 Prefacio ‘Todos, 86 porque filam, creem poder falar da lingua também. Goethe, Arie ¢ aniiguidade ANlingua & uma rao humana que tem suas razdes « que o homem nio conhece Lévi-Strauss, O pensamento seivagem No primeiro semestre de 2011, um grande debate sobre o ensino de portugués teve lugar na imprensa brasileira. O pretexto foi um capitulo sobre modalidade escrita ¢ oral de linguagem e sobre variagao linguistiea de um livro de Heloisa Ramos, intitulado Por wma vida melhor, destinado a Educagao de Jovense Adultos. A discussio do tema foi muito pobre, pois, fundamentalmente, como 0 livro foi distribuido pelo MFC, acusou-se 0 Ministério de incentivar o ensino do portugués errado a fim de manter a populago na ignordneia, de estimular o “anarquismo”, de destruir a lingua portuguesa. No curso da polémica, foram feitas afirmagdes como “A Linguistica aceita tudo, para ela no hi erro, tudo é valido”. Uma ma- téria da revista Véja, de 23 de maio de 2011, assinada por Renata Betti e Roberta de Abreu e Lima, para desqualificar a tese de que o aluno tem que aprender que as linguas variam, usa as seguintes expresses: “tese absurda”, “falsos intelectu- “desservigo aos jovens”, “motor ideoligico dos obscurantistas”, “desvarios dos talibas académicos”, “lixo académico travestido de vanguarda intelectual”. Linguistas foram acusados de “trombadinhas académicos”. Em todo 0 debate, o que vimos foi uma ignorincia muito grande a respeito da ciéncia da linguagem, Confusdes de toda sorte foram feitas. A Linguistica nunca negou a existéncia de uma norma culta, usada em todas as sociedades para produzir textos B Linguistica? Quo 6 isso? de algumas esferas de circulagdo, como a académica, a jomalistica, etc. No entanto, cia comprovou que s Tinguas variam ¢ mudam e que, portanto, cabe a ela explicar os enunciados produzidos em qualquer variedade e em qualquer 6poca. As- sim como um botinico niio pode excluir, em suas descrigtes, por critérios est essa ‘uma planta, um linguista no pode recusar um determinado uso. Por outro lado, nao se pode considerar um padrio lusitano antigo como modelo de lingua. Raquel de ‘Queiroz, numa carta a um editor portugués que queria comigirIhe a linguagem, diz: Acontece, entretanto, meu caro amigo, que esse caganje, que esses pronomes ‘mal postos, que essa lingua que Ihe revolta o ouvido, & a nossa lingua, € 0 nosso ‘modo normal de expressio, é — uso dizer ~a nossa lingua literériae artistica. J4 no temos outra e voltar ao modelo inflexivel da fala de Portugal seria para nds, 4 esta altura, uma contrafagéo impossivel e ridicula, (/00 crénicas escolhidas 5. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977, p. 192) A questo da lingua ¢ muito maior, A linguagem é um instrumento que nos ‘acompanha em todos os momentos de nossa vida, tem um poder para o bem e para ‘omal (por exemplo, com ela sussurramos palayras de amor ¢ com cla caluniamos). Por isso, ¢ empobrecé-la reduzi-la a uma questio de certo ou de errado. Afirma Vilem Flusser, a respeito da lingua; © instrumento mais perfeito que berdamos de nossos pais ¢ em eujo aperfeigoamento colaboraram incontiveis geragies desde a origem da humanidade, ou, talvez, até além dessa origem. Ela encerra em si toda a sabedoria da raga humana. Ela nos liga aos nossos proximos ¢, através des idades, aos nossos antepassados. Ela &, ‘um tempo, a mais antiga e a mais recente obra de arte, obra de arte majestosamente bela, porém sempre imperfcita. E cada um de nds pode trabalhar essa obra, contri- bbuindo, embora modestamente, para aperfeicoar-Ihea beleza. No intimo sentimos ue somos possuidos por ela, que mio somos nés que a formulamos, mas que & ela que nos formula, Somos como que pequenos portBes, pelos quais ela passa para depois continuar em seu avango rumo ao desconhecido. (Lingua e realidade. S30 Paulo: Herder, 1963, p. 18-9) A Linguistica nao se ocupa apenas da norma culta, no opera com 0 certo e 0 cerrado, pois ela tem um objetivo grandioso, tratardo mistério e da epifania da palevra Este livro nasceu com 0 propésito de explicar o que éa Linguistica. Para isso, trata das fungdes ¢ caracteristicas da linguagem humana, para depois discorrer sobre 08 cinco grandes objetos tedricos criados pela Linguistica dos séculos xix Pretéco 9 : a lingua, a competéneia, a variago, a mudanga e 0 uso. Mostra como cada um deles se volta para um aspecto da linguagem humana, tem uma concepgio, diversa de lingua, trabalha com categorias distintas. Apesar das diferengas entre esses objetos tedricos, eles e iveram fundados no que se poderia chamar uma epistemologia que opera com a estabilidade, trabalhando com conceitos como lingua, competéncia, norma, elementos discretos, diferengas, descontinuidades, identidade, falante nativo, comunidades de fala, ete. Parcec estar-se configurando em nosso tempo uma nova epistemologia linguistica. Ela esta ligada ao desman- telamento das fronteiras; 4 diminuigao da soberania dos Estados nacionais com a criagdo das grandes entidades transnacionais; a livre cireulagao de bens ¢ de capitais; A deserenga nas grandes narrativas; enfim, ao fendmeno que é chamado globalizago e & sua expressio cultural que é denominada pos-modernidade. As ccireunstncias histrieas criaram um tempo em que adquirem relevo as margens, ‘ descentramento, o dialogismo, as mestigagens, os hibridismos, as imigragdes, a recusa da pureza. Esse ar do tempo leva a pir em questo os construtos tedricos com que operamose propie uma epistemologia fundada na instabilidade, na con- timuidade, na mistura linguistica, nas priticas de linguagem, na heterogeneidade. 1s fluxos, nas trocas, nos entrelugares, ete, Essa epistemologia esta alterando a configuragdo de alguns objetos tedricos, como, por exemplo, a mudanga linguis- tica, quando ¢ estudada por uma teoria, apresentada neste livro, que vé a lingua ‘com um sistema complexo, dindmico e adaptativo. Os assuntos cientificos, em geral, nao stio bem compreendidos pelo piblico leigo. A mesma coisa acontece com a Linguistica. No entanto, como todos falamos, temos nogdes do senso comum a respeito da linguagem. Por isso, todos acham que entendem de Linguistica. Por essa razio, essa ciéncia no so é desconhecida, mas, também ignorada, Pensemos um pouco mais sobre essa questio do senso comum. Em sua reflexio espontinea sobre a lingua, os falantes investem valores afe- tivos, estéticos, ideoldgicos, politicos. Diz-se entio que ha linguas civilizadas © linguas primitivas, linguas musicais e linguas dissonantes; hé prontincias feias e bonitas, hd modos de falar harmoniosos e nio harmoniosos. Afirma-se que 0 inglés € uma lingua facil, Afianga-se que as linguas sem tradigdo literdria, tal como a conhecemos, sdio menos desenvolvidas do que as outras, Assevera-se que alguns ovos so mais dotados para linguas do que outros. Diz-se que o franeés 6 lingua da clareza; que o italiano é uma lingua musical propria para expressar o amor; que 0 alemiio é a finica Lingua em que se pode filosofar. Uma lingua é, portanto, 10 Linguistica? Que 6 ieso? considerada mais préxima da natureza das coisas do que outra. Nesses enunciados linguisticos do senso comum, diz-se que o portugués esti em decadéncia, Um famoso apresentador de televisio, ao entrevistar um antigo embaixador do Brasil ‘em paises africanos, disse que as linguas africanas, porque so primitivas, tém tas vogais ¢, principalmente, muitos /a/. E por ai poderiamos continuar. Es ideias, em geral, nio tém nenhum apoio na realidade linguistica, elas so fantasias sobre a linguagem ¢ a natureza das linguas. Nesses enunciados do senso comum diante da lingua, segundo Marina Yaguello no livro Catalogue des idées recues sur la langue (Paris: Scuil, 1988, p. 13), 08 falantes adotam trés tipos de atitudes: 1. a explicativa, que busca racionalizagdes; que faz tentativas de teoriza- ¢des, como, por exemplo, no caso das falsas analogias do seg se voc’ no diz entrega a casa, voct nio pode dizer entrega a domicilio dizer ane (ce isso fosse verdade, como se diz andar a cavalo, dever-s dar a Gnibus, andar a trem), no se pode dizer risco de vida e sim risco de morte, porque ninguém corre risco de viver, mas todos correm risco de morrer (na verdade, pode-se dizer risco de vida, porque a expressio quer dizer que a vida esta em risco); no se pode dizer correr atrés do prejuizo, porque ninguém corre atris de prejuizo, corre atris de luero (na verdade, 0 sentido das expresses € constituido em bloco e nao pela soma das palavras que as compdem; assim, correr atrés do prejuizo significa “reverter uma situagdo desfavoraivel” ‘apreciativa, que se exprime por intermédio de julgamentos sobre a beleza, a logica, aclareza, a simplicidade, a dificuldade desta ou daquela lingua ou desta ou daquela variante linguistica: por exemplo, 0 rretroflexo, aquele utilizado, no interior de So Paulo, sul de Minas, norte do Parand, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Goiis, em final de silabas, como pore mar, é feio; 0 polonés é uma lingua aspera, porque tem muitas consoantes: os gaiichos falam cantado; 3. a normativa, que considera a lingua um conjunto de fatos que devem ser julgados apenas em termos de certo/errado e que se ope a todas as formas de “corrupgo” da lingua: por exemplo, quem diz estow com um pobrema, na verdade esti com dois; ficam agora dizendo 14, 16, tava, isso do verbo tar, porque comeram um pedago do verbo estar. Profacio 11 Essa metalinguagem do senso comum, apesar de, na maior parte dos casos, nfio ser verdadeira, ¢ indcua, No entanto, ela deve ser combatida, quando as simplifi- cages eas ideias falsas que ela veicula podem dificultar a compreenso do outro, podem dar argumentos a todas as formas de preconccitos ¢ de exclusdes, podem servir de base até mesmo pars tas. Quando se cons Jinguistica feia e isso leva a ridicularizar, a desrespeitar, a por de lado quem a usa, € preciso dizer, com clareza, queas variantes sio apenas diferengas ¢ clas no sto feias nem bonitas, que respeitar o modo de falar do outro é aprender a conviver ‘com as diferengas. Quando se diz que os falantes de linguas “primitivas” nao sio capazes de raciocinio logico, ¢ necessirio mostrar que ndo ha linguas primitivas e desenvolvidas, porque todas as linguas possuem grande complexidade fonica, agramatical e lexical e que todas elas dao suporte ao pensamento ldgico, queseacha presente em todas as culturas. Muitas vezes, as ideias do senso comum sobre a Jinguagem esto, sem que percebamos, na base de muitos de nossos preconceitos. Como se observa, o fato de falarmos uma lingua niio nos dota de conhecimento para descrever ¢ explicar a lingua, Isso é o que a Lingufstica tem por finalidade. Desejamos que os linguistas sejam ouvidos em discussdes a respeito da lingua € que as confuses sobre os principios nos quais se assenta a Linguistica scjam dissipados. Esperamos que se compreenda que a linguagem é algo sublime e nfo sc limita a uma questao de erro ou de acerto. Almejamos que se veja a seriedade do trabalho dos linguistas. ideias r José Luiz Fiorin ‘Quaxe no erepiiseulo de um dia ensolarado da primavera de 2012 A linguagem humana: do mito 4 ciéncia ose L No principio era o Verbo: ‘© Verbo estava em Deus 0 verbo era Deus, Jou Linguagem e lingua A linguagem € a capacidade especifica da espécie humana de se comunicar por meio de signos. Entre as ferramentas culturais do ser humano, a linguagem ocupa um lugar a parte, porque o homem nao esta programado para aprender fisica ou matematica, mas esta programado para falar, para aprender linguas, quaisquer que elas sejam, Todos os seres humanos, independentemente de sua escolaridade ou de sua condigdo social, a menos que tenham graves problemas psiquicos ou neurolégicos, falam, Uma erianga, por volta dos trés anos de idade, j4 domina esse dispositive extrernamente complexo que & uma lingua. A linguagem responde a uma necessidade natural da espécic humana, a de se. No entanto, ao contrério da necessidade de comer, dor 14 Linguistica? Que 6 eso? manter relagdes sexuais, etc., ela no se manifesta de maneira natural. Ela deve ser aprendida, No caso da linguagem verbal, ela deve ser aprendida sob a forma de uma Lingua, a fim de se manifestar por meio de atos de fala, A lingua é um sistema de signos especificos aos membros de dada comunidade. A aptidio para a linguagem é um traco genético. Sua realizagio, no entanto, passa por um aprendizado, que ¢ do dominio cultural, como testemunham os «casos das criangas sclvagens, cuja capacidade de linguagem no se desenvolvcu. Os sentidos podem manifestar-se de diversas maneiras: por meio de sons, ‘como no caso da linguagem verbal, por meio de imagens, como na pintura, por meio de gestos, como nas linguas de sinais utilizadas pelos surdos. Temos lin- guagens ndo mistas, cujos significados se manifestam apenas de uma maneira: a esctita, a pintura, a escultura, a lingua de sinais; temos linguagens mistas, cujos significados se manifestam de diferentes maneiras, como 0 cinema, em que os sentidos so veiculados pelos sons da linguagem verbal e da miisica, pelas imagens, da Tinguagem visual, etc. Assim, podemos falar da linguagem como capacidade specifica da espécie humana de produzir sentidos, de se comunicar, mas também das linguagens como as diferentes manifestages dessa capacidade. Uma ordem de parar no triinsito pode coneretizar-se por meio da palavra “pare” pronunciada por um guarda; por um sinal de um apito; pelo gesto de abrir a palma da mao em posigao vertical; pela luz vermetha do semaforo. Sao diferentes linguagens que ‘comunicam a mesma significagdo. Hielmsley, no primeiro capitulo de seu Prolegdmenos a uma teoria da lin- .guagem, esereve uma das mais belas paginas sobre o papel da linguagem na vida dos seres humanos: A inguagem [...] €uma inesgotével riqueza de mialtiplos valores. A linguagem insepardvel do homem e segue-o em todos os seus atos. A linguagem é 0 instrumento gragas a0 qual 0 homem modela seu pensamento, seus senti- mentos, suas emogdes, seus esforgos, sua vontade e seus atos, o instrumento gragas ao qual ele influencia e € influenciado, a base Giltima e mais profunds da sociedade humana. Mas ¢ também 0 recurso iltimo e indispensayel do homem, seu refiigio nas horas solitarias em que o espirito luta com a exis téncia, e quando o conflito se resolve no mondlogo do poeta e na meditagao do pensador. Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciéneia, as palavras jd ressoavam & nossa volta, prontas para envolveros primeiros germes fraigeis de nosso pensamento ¢ a nos acompanhar inseparavelmente através da vida, desde as mais humildes ocupacées da vida cotidiana até os momentos Alinguogem humane 15 mais sublimes e mais intimos dos quais a vida de todos os dias retira, gragas ds lembrangas encarnadas pela linguagem, forca ¢ calor, A linguagem niio € tum simples acompankante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento: para o individuo, ela é tesouro da meméria e a consciéncia vigilante transmitida de pai para filho. Para © bem e para o mal, « fala é @ marca da personalidade, da terra natal € da nagdo, o titulo de nobreza da humanidade. © desenvolvimento da linguagem esta to inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada individuo, da terra natal, da nagio, da hhumanidade, da propria vida, que é possivel indagar-se se ela nfo passa de um simples reflexo ou se ela nao & tudo isso: a propria fonte de desenvolvimento dessas coisas. (1975: 1-2) Hé um provérbio popular que diz: “Palayra nao quebra osso”. Esse ditado ‘quer contrapor a palavra & ago, quer dizer que a ago & que conta, pois a lin- guagem no tem nenhum poder. Um golpe, mas no uma palavra, € que quebra ‘oss0. Esse provérbio vé as coisas de maneira simplista. Vamos analisar para que serve a linguagem. Fungées da linguagem Em primeiro lugar, a linguagem é uma maneira de pereeber 0 mundo. “Este deve ser 0 bosque”, murmurou pensativamente [Alice], “onde as coisas ino tém nomes"”. [..] la devancando dessa maneita, quando chegou a entrada do bosque, que parecia muito imide ¢ sombrio. “Bom, de qualquer modo ¢ um ali- ‘vio”, disse cnquanto avangava cm meio as érvores, “depois de tanto calor, entrar dentro do... dentro de qué?” Estava assombrads de no poder lem “Bom, isto é, estar debaixo das... debaixo das... debaixo disso aqui, ora”, disse colocando a mio no tronco da arvore, “Como essa coisa se chama? E bem capaz de nio ter nome nenhur...ora, com certeza nao tem mesmo!” Ficou calada durante um minuto, pensando, Ento, de repent, exclamou: ~Ah, entio isso acabou acontecendo! F agora quem sou eu? Eu quero me lembrar, puder. (Carroll, 1980: 165-6) Esse texto, retirado do livro Airavés do espetho e 0 que Alice encontrou la, mostra que Alice, quando entra no bosque em que as coisas no tém nome, incapaz de apreender a realidade em torno dela, de saber 0 que as coisas sio. Isso significa queas coisas do mundo exterior s6 tém existéncia para os homens quando 16 Linguistica? Que 6 ieso? stio nomeadas. Quando fazemos essa afirmagiio nao estamos querendo dizer que a realidade ndo existe independentemente das pessoas ou que ela seja uma eriagio de sua mente, mas que s6 atentamos para as coisas por intermédio da linguagem. Em outras palavras, sé pela Tinguager ‘© mundo ganha sentido para nds Por outro lado, cada lingua é uma forma de interpretar a realidade. © segundo projeto era representado por um plano de abolir completamente todas 5 palayras, fossem elas quais fossem [..J. Fm vista disso, propds-se que, sendo as palavras apenas nomes para as coisas, seria mais conveniente que todos os homens trouxessem consigo as coisas de que preeisassem falar ao discorrer sobre determinado assunto[..).[.-] muilos eruditos e sébios aderiram ao novo plano de se expressarem por meio de coisas, cujo nico inconveniente residia em que, se ‘um homem tivesse que falar sobre longos assuntos e de varia espéeie, ver-se-ia obrigado, em proporgdo, acarregar nas costas um grande fardo de coisas, a menos, de poder pagar um ou dois eriados robustos para acompanhé-lo |... Outra grande vantagem oferecida pela invengao eonsiste em que cla serviria de lingua universal, compreendida em todas as nagdes civilizadas, cujos utens € abjetos so geralmente da mesma espécie, ou Lio parecidos que o seu empreyo pode set facilmente pervebido. (Swifl, 1998; 194-5) Esse trecho do livro Fiagens de Gulliver narra uma invengao dos sibios de Balnibarbi. Eles propdem substituir as palavras, que, segundo eles, tém o ineon- veniente de variar de tingua para lingua, pelas coisas. Quando alguém quisess falar de uma cadeira, mostraria uma cadeira; quem desejasse discorrer sobre uma ‘dolsa apresentaria uma bolsa ¢ assim sucessivamente. A histéria narrada por Swift éuma ironia as concepgdes vulgares que imaginam que a compreensio da realidade independe da lingua que a nomeia, que pensam que as palavras so etiquetas que sc aplicam a coisas classificadas independentemente da linguagem. A lingua é uma forma de categorizar 0 mundo, de interpreti-lo. A impossibilidade de o sistema imaginado pelos sabios de Balnibarbi funcionar nao ¢ 0 inconveniente pratico de que cada um teria que carregar muitos objetos, se fosse falar de muita coisa. As coisas nao podem substituir as palavras, porque 4 lingua no é apenas um sistema de mostragao de objetos. As coisas no desig- nam tudo o que uma lingua pode expressar. Mostrar um objeto nio indica, por exemplo, sua pertenga a uma dada classe. No Iéxico de uma lingua, agrupamos os nomes em classes. Maca, pera, banana e laranja pertencem a classe das futas. Ao se exibir qualquer fruta, no se pode exprimir a ideia da classe /ruta. Nao se Alinguogem humane 17 poderiam expressar ideias mais gerais, apresentando objetos. Nao produzimos palavras apenas para designar as coisas, mas para estabelecer relagdes entre elas © comenti-las. Mostrar um objeto no exprime as categorias de quantidade, de género, de posse, niio permite indi ir sua localizagio no espaco, etc. A lingua nio € um sistema de mostraco de objetos, porque permite falar do que est presente € do que esti ausente, do que existe e do que néo existe, porque possibilita até criar novas realidades, mundos nao existentes. A linguagem é uma atividade simbélica, o que significa que as palavras criam conecitos ¢ eles ordenam a realidade, categorizam 0 mundo, Por exemplo, eria- mos 0 conceito de nascer do sol. Sabemos que, do ponto de vista cientifico, no existe nascer do sol, uma vez que é a Terra que gira em tomo do Sol. Contudo, esse conceito, criado pela linguagem, determina uma realidade que nos encanta a todos, Apagar © que foi escrito no computador é visto como uma atividade diferente de apagar © que foi escrito a Lipis. Por isso, cria-se uma nova palavra para denominar essa nova realidade, delerar, que & considerada diferente de apa- gar. Afinal, o instrumento desta ago ¢ uma borracha, enquanto se deleta, com um clique, um texto selecionado. No entanto, se esses vocibulos distintos niio existissem, nao perceberiamos a atividade de cscrever no computador como uma aco diferente daquela de escrever & méquina. Uma nova realidad, uma nova invengao, uma nova ideia exigem novas palavras, ¢ sao os novos termos que Lhes conferem existéncia para toda a comunidade de falantes. As palavras formam um sistema independente das coisas nomeadas por elas © que quer dizer que cada lingua pode ordenar 0 mundo de maneira diversa, exprimir diferentes modos de ver a realidade. Nao hi uma homologia entre a ‘ordem da Lingua e a ordem do mundo. O inglés, por exemplo, tem duas palavras, finger ¢ toe, para expressar aquilo que denominamos dedo. A primeira significa © dedo da mio; a segunda, o do pé. Isso quer dizer que, para nds, as extremi des das mios ou dos pés constituem a mesma parte do corpo. Para os falantes de inglés, so duas coisas muito distintas. O inglés tem dois termos, pig e pork, para designar 0 que chamamos poreo. O primeira denota o animal vivo, 0 segundo refere-se ao alimento preparado com a carne do suino, Em portugués, dizemos Havia muitos porcos no chiqueiro & O tempero do porco ficou no ponto certo. Em inglés, no primeiro caso, usa-se pig ¢, no segundo, pork. A mesma realidade € categorizada diferentemente em inglés e em portugués. Naquele, o animal ¢ 0 alimento feito com a carne do animal sio vistos como duas coisas distintas. 1B Linguistica? Que 6 isso? Neste, porco indica uma iinica coisa, seja vivo, seja morto e preparado para ser consumido, Fm portugues, veste-se uma roupa, mas calyese um sapato ou uma Juva. Em inglés, nos dois easos, usa-se fo wear. Isso significa que a lingua é uma maneira de recortar a realidade, de ordenar o mundo, de eategorizar as coisas, as ages, os sentimentos, ete, Por essa razéo, a linguagem modela nossa maneira de perceber e de ordenar a realidade. Vamos cxplicar melhor o que significa dizer que a linguagem interpreta 0 mundo. Um tomate é uma fruta ou um legume? Do ponto de vista botinico, & ‘uma fruta, No entanto, na feira, 0 tomate esta entre os legumes. Nenhum ser do mundo pertence a uma determinada categoria preexistente a linguagem. A lingua ndo é uma nomenclatura que se apliea a uma realidade ja categorizada, Ela é um meio de categorizar mundo, Ela cria categorias e poe nelas os seres. Isso no ocorre somente com os seres concretos, Também acontece com as ages, os processos, ete. Imaginemos que uma pessoa mate outra. Essa ago pode ser categorizada como assassinato, quando alguém tira a vida de outrem por vinganga; como acidente, quando alguém esti manuseando uma arma e ela dispara e mata alguém: como cumprimento do dever, quando um policial mata um sequestrador que se preparava para atirar na vitima; como um ato de heroismo, quando 0 soldado mata o inimigo no campo de batalha; como perda temporiria da razio, quando alguém por uma forte cmocdo mata uma pes perdoamos quem foi vitima das circunstaneias; elogiamos o policial que matou ‘0 sequestrador; damos uma medalha ao herd ‘Mas a lingua nao é s6 0 instrumento pelo qual percebemos 0 mundo, nto é apenas uma forma de interpretar a realidade." A lingua é também o meio pelo qual interagimos socialmente, No texto que segue, temos uma reprodugio feita pela revista Veja de um didlogo travado entre Francisco de Paula Medeiros, i época diretor de produgdo da Petrobras, ¢ alguns repérteres 0a. Essa categorizagdo determina nossas atitudes; prendemos o assassino, Pergunta ~ Qual 6 a finalidade de sua visita a Aracaju? Resposta ~ Que pergunta besta. Rotina, P— Que poderia informar sobre a implantagio da unidade de amdnia e ureia em Sergipe? R—Nao é da minha area. P—Quais as perspectivas de aumento da produgo petrolifera no Estado? R- Ni sou computador. Alinguogem humane 19 P— Qual 0 montante de investimentos que a Petrobras aplicari este ano em Sergipe? R— Niko posso ter na cabeca. P—Qual a atual producio de Sergipe em terra e no mar? R- Vocés nio sabem isso? Voeés entendem de metros ctibicos? P—Foram localizadas novas jazidas de gis natural? R—(siléncio). (16 de janciro de 1977: 12) Na interago entre o diretor da Petrobras e os jomalistas, os repérteres 10 obtiveram nenhuma informagdo. O engenheito da Petrobras transmitiu uma imagem antipatica e prepotente, a ideia de que ele tem total desprezo pela imprensa Diz-se que a fungo principal da linguagem & comunicar. No entanto, hi duas ‘questdes que devem ser pensadas. De um lado, comunicar ndo é sé transmitir informages, pois as pessoas se comunicam até para nio dizer nada. De outro lado, comunicar nio é um ato unilateral, mas é um jogo em que um parceiro da comunicagao age sobre o outro. A comunicagdo é, antes de qualquer coisa, relacionamento, interagiio. Por isso, a linguagem & um meio de ago reeiproca, € um meio de interagir com os outros, é um lugar de confrontagdes, de acordos, de negociagdes. Na interago, usamos a linguagem com diferentes fungdes. A linguagem serve para informar. Essa fungo ¢ denominada informativa ou referencial. (© Consetho Regional de Medicina (Cremerj) proibiu a participagao de médicas em partos domiciliares ¢ nas equipes de sobreaviso, que ficam de plant para 0 caso de alguma complicagao, (0 Estado de S. Paulo, 24 de julho de 2012, A 10) Com a linguagem, armazenamos conhecimentos na memdria, transmitimos esses conheciments a outras pessoas, ficamos sabendo de experiéncias bem- sucedidas, somos prevenidos contra as tentativas malsucedidas de fazer alguma coisa, Gragas a linguagem, uim ser bumano recebe de outa pessoa conhecimentos, aperfeigoa-os ¢ transmite-os AA fungdo informativa da linguagem tem uma importineia central na vida das pessoas, consideradas individualmente ou como grupo social. Para cada indivi- 20 Linguistica? Que 6 ieso? duo, ela permite conhecer © mundo; para o grupo social, possibilita 0 acimulo de conhecimentos ¢ a transferéneia de experiéncias. Por meio dessa fungio, linguagem modela o intelecto. F.a fungio informativa que permite que o trabalho conjunto se desenvolva, Operar bem essa fungo da linguagem possibilita que cada individuo continue sempre a aprender. ‘Além de prestar-sc & fungo informativa, a linguagem serve para influenciar ser influenciado. Ea chamada fungdo conativa da linguagem. ‘Vern pra Caixa vocé também. Essa frase favia parte de uma campanha destinada a aumentar o nimero de correntistas da Caixa Econémica Federal. Para persuadir as pessoas a tomarem-se clientes da Caixa, usa-se um convite expresso numa linguagem bastante coloquial. Por exemplo, emprega-se a forma vem, forma de segunda pessoa do imperativo, em lugar de venha, forma de terceira pessoa, que, na norma culta, deveria ser utilizada quando se usa voet Com a linguagem, levam-se 0s outros a fazer determinadas coisas, a crer em determinadas ideias, a sentir determinadas emogdes, a ter determinados estados de alma (amor, desprezo, desdém, raiva, etc.). Por isso, pode-se dizer que ela modela sentimentos, emogdes, paixdes Nii se leva as pessoas a fazer certas coisas, apenas com a ordem, 0 pedido, a siiplica. Ha textos, como o publicitirio, que nos influenciam de maneita bastante sutil, com tentagdes ¢ sedugdes, dizendo-nos como seremos bem-sucedidos, atracntes, charmosos, se usarmos determinadas marcas, se consumirmos certos produtos. A provocacdo e a ameaga, que sao expressas pela linguagem, também servem para levar alguém a fazer alguma coisa. A linguagem alivia as dores, consola os aflitos, apazigua a eélera, aumenta a coragem e assim por diante A linguagem nao se destina apenas a informar ea influenciar, ela serve também para expressar a subjetividade, E a denominada fungdo emotiva da linguagem. Eu sem voce Sou sé desamor ‘Um barco sem mar Um canto sem flor Alinguogem humane 21 Tristeza que vai Tristeza que vers Sem vocé, meu amor, Eu nilo sou ninguem (Baden Powell ¢ Vinicius de Moraes. Samba em prelidio, Universal, 1963) Nesse trecho, quem fala esta exprimindo seus sentimentos por causa de um rompimento amoroso. Com palavras, objetivamos ¢ expressamos nossos sen timentos & nossas emogdes. Exprimimos a revolta e a alegria, expressamos 0 sentimento amoroso ¢ explodimos de raiva, manifestamos desespero, desdém, desprezo, admiragio, dor, tristeza. Intimeras vezes, contamos coisas que fizemos. para afirmarmo-nos perante © grupo, para mostrar nossa valentia ou nossa eru- digo, nossa capacidade intelectual ow nossa competéncia na conquista amorosa. Quando falamos ou escrevemos, transmitimos uma imagem nossa, por meio do tipo de linguagem que usamos, do tom de voz que empregamos, ete. Com a linguagem, objetivamos os fenémenos subjetivos, exteriorizamos 0 que estava dentro de nés, libertamo-nos de emogdes penosas. Mas a linguagem nao se presta somente a informar, a influenciar, a exprimir as emogdes ¢ os sentimentos. Na cangao “Sinal fechado”, Paulinho da Viola ex- plora © tema dos encontros apressados entre velhos amigos que nao se vem hii muito tempo e s4o obrigados a conversar, sem ter muito que dizer um ao outro Oli, como vai? Eu vou indo, ¢ voos tudo bem? Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futuro, E voce? Tudo bem, eu you indo em busea de um sono tranquilo, quem sabe? Quanto tempo... Pois é, quanto tempo. (Paulinho da Viola, Sina! fechado. Philips, 1974) Nesse caso, a linguagem esta sendo usada na fungio fitica, isto é, aquela que serve para criar lagos entre as pessoas ¢ manté-los. Quando estamos num grupo de pessoas, numa festa, por exemplo, nio é cortés manter-nos em siléncio, olhando uns para os outros. Nessas ocasides, a conversacdo é obrigatoria, porque o siléncio poderia parecer hostil. Por isso, 22 Linguistica? Que 6 ieso? quando nio se tem assunto, fala-se do tempo, repetem-se historias que todos conhecem, coniam-se anedotas que todos esto cansados de saber. A linguagem, nese €aso, tem como nica fungo manter os lagos sociais. Quando encontramos alguém e the dizemos Tudo hem?, nio se quer, de fato, saber se ele esté bem, se est doente, se esta com problemas. A formula é uma maneira de estabelecer um vinculo social. Os hinos, como, por exemplo, o hino nacional ou os hinos dos clubes de futebol, tém a fungdo de criar um vineulo entre os habitantes de um pais ou entre 03 torcedores. Nao importa que as pessoas nao entendam bem o signi- fieado da letra do hino nacional, pois ele ndo tem uma fungdo informativa, O que tem importinia é que, a0 canté-lo, sentimo-nos participantes da comu- nidade de brasileiros. A linguagem no se destina somente a informar, a influenciar, a exprimir emogdes e sentimentos, a criar ou manter lagos sociais, mas ela serve também para fular sobre a propria Tinguagem, como neste trecho a seguir: Papai, que é plebiscito? [..] ~ Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comicios, (la: Gongalves, 2006: 148-50) Esse pequeno trecho foi retirado do conto “O plebiscito”, de Artur Azevedo, ‘em que se satiriza a imagem do pai sabe-tudo. O filho pergunta-lhe o que é ple- biscito e, como ele nao sabe e nao quer confessar sua ignorincia, esbraveja que 0 filho deveria saber ¢ que ele esta perguntando s6 para testar seus conhecimentos. Depois de fazer uma cena, vai para o quarto onde hd um diciondrio, Mais tarde, volta para a sala e explica que plebiscito é um sistema de promulgagao de leis, inventado pelos romanos, em que o povo vota diretamente determinada proposi- ‘go. Nesse caso, pai e filho estavam usando a linguagem para explicar o sentido produzido pela propria linguagem. Quando dizemos frases como A palavra edo é um substantivo; B errado dizer “a gente viemos”; Extou usando 0 termo “diregdo™ em dois xentidos; Nao é mui- to elegante usar palavrées, estamos falando nao de acontecimentos do mundo, ‘mas estamos tecendo comentarios sobre a propria linguagem. Em outros termos, ‘estamos usando palavras para referir-nos a palavras. Eo que se chama fung’o metalinguistica. A atividade metalinguistica ¢ inseparivel da fala. Mesmo quando Alinguogem humane 23 falamos sobre 0 mundo exterior (os acontecimentos, as coisas) e o mundo interior (0s sentimentos, as sensagdes, e.), intercalamos comentirios sobre a nossa fala e dos outros. Quando dizemos, por exemplo, Desculpe a grosseria da expressdo. estamos comentando 0 que dissemos, estamos dizendo que nao temos o hibito de dizer uma coisa to vulgar como a que estamos enunciando, Todos os estudos. sobre a linguagem sio metalinguisticos. A gramética é, assim, a linguagem em fungao metalinguistica. AS artes sio linguagens e, portanto, quando elas falam da propria arte, temos também metalinguagem. A poesia que trata da poesia é uma metapoesia, 0 teatro que trata do teatro é um metateatro; o cinema que trata do cinema é um metaci- nema e assim por diante, Vejamos dois exemplos de metapoesia. © primeiro & o poema “Autopsico- agrafia”, de Femando Pessoa, em que o poeta discute o problema do sentimento exposto no poema; o segundo é um soneto de Cruz e Sousa, em que o poeta co- menta a elaboragiio de um soneto, destacando sua forma tradicional (os quartetos € 08 tervetos) € os recursos poéticas (a rima, por exemple). © poeta é um fingidor. Finge tio completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. Eos que leem 0 que excreve, Na dor lida sentem bom, Nao as duas que cle teve, Mas s6 a que eles nao tém. E assim nas calhas de roda Gira, a entreter raza0, Esse comboio de corda Que se chama coragBo. (1997: 176) [Nas formas voluptuosas 0 Soneto ‘Tem fascinante, célida fragrancia F as leves, langues curvas da elegancia De extravagante e mérbido esqueleto, 24 Linguistica? Que 6 ieso? A graga nobre e grave do quarteto Recebe a original intolerincia, Toda a sutil, secreta extravagincia Que transborda terceto por terceto, E como um singular polichinelo Ondula, ondeia, curioso e belo, © Soneto, nas formas caprichosas. As rimas do-Ihe a pirpura vetusta Ena mais rara procissio augusta ‘Surge o sonho das almas dolorosas. (1965: 190-1) Dois exemplos de metamisica so os clissicos “Samba de uma nota s6” e “Desafinado”, ambos de Tom Jobim ¢ Newton Mendonga. Tivemos, no Brasil, até mesmo uma metanovela de televisio: a novela Espelho migico, de Lauro ‘César Muniz, apresentada, nos anos 1970, na rede Globo. Nessa novela, havia ‘outra novela, que se chamava Coquetel de amor ¢ que era escrita por uma das personagens, um escritor de telenovelas. O que Lauro César Muniz pretendia, a0 discutir 0 fazer novelistico, era mostrar todos os clichés de que uma novela ¢ feta. Como ha dois niveis de linguagem, a linguagem-objeto e a metalinguagem, as artes falam do mundo e, assim, nos do a conhecer os seres humanos, a Historia, etc, ¢ falam de si mesmas e, assim, nos revelam o priprio fazer artistico. A linguagem nio se presta apenas para informar, influenciar, expressar emo- ‘gdes e sentimentos, criar e manter lagos sociais e falar da propria linguagem, ela & também lugar e fonte de prazer. Brincamos com as palavras. Os jogos com o sentido e os sons sio formas de tornar a linguagem um lugar de prazer. Divertimo-nos com cles. Manipulamos 5 voedbulos para deles extrair satisfagao. Oswald de Andrade, em seu manifesto antropofigico, diz Tupi or not mpi ‘Trata-se de um jogo com a frase shakespeariana To be or not to be. Conta-se que Emilio de Menezes, quando soube que uma mulher muito gorda sentara-se no banco de um Gnibus ¢ este quebrara, fez 0 seguinte trocadilho: £ a primeira que vejo um banco quebrar por excesso de fundos. A palavra banco esti usada ‘em dois sentidos: “mével comprido para sentar-se” Também esti empregado em dois sentidos o termo finrdos: “nadegas” e “capital, dinheiro” Alinguogem humane 25 Verifica-se que a linguagem pode ser usada utilitiria ou esteticamemte. No pri ilizada para informar, para influenciar, para manter os lagos sociais, ete. No segundo, para produzir um efeito prazeroso de descoberta de sen- tidos. Quando se iro caso, el usa a Tinguagem em fungio utilitiria, importa mais 0 que se diz Em fung3o estética, 0 mai criado pelo ritmo, pelo arranjo dos sons, pela disposigio das palavras, etc. Na cstrofe a seguir, retirada do pocma “A cavalgada”, de Raimundo Corrcia, a sucesso de sons oclusivos, /p/, //, /k/, /b’, /d/, /g/, sugere o patear dos cavalos: importante € 0 como se diz, pois o sentido também & Eo bosque esiala, move-se, estremece. Da cavalgada o estrépito que aumenta Perde-se aps no centro da montana. Obserye-se que a maior concentragdo de sons oclusivos ocorre no segundo verso, quando se afirma que o barulho dos cavalos aumenta. Nos versos a seguir, do poema “Noite de S, Jodo”, de Jonge de Lima, o poeta niio quer transmitiraos leitores nenhuma informagao sobre fogos de artificio, nem deseja levé-los a tomar euidado com cles. O que ele quer de fato é imitar, nas palavras, o ruido que eles fazem, para descrever seu espeticulo nos eéus. Dai a ‘quantidade de sons sibilantes (s/2) ou chiantes (expressos na escrita por digrafo che pela letra.x), que imitam o sibilo ¢ 0 chiado dos fogos, ¢ a onomatopeia ichi - bum. O delegado proibiu bombas, foguetes, busca-pés Chamalotes checoslovacos cenchem o cl de chamas rubras Chagas de enxofre chinesas chiam choram cheiram ‘numa nuvem de chispas, chispas de todos os tons, Tistas de todas as cores eno fim sempre um Tehi - bum! (1997: 218) 26 Linguistica? Que 6 eso? A linguagem nao se presta somente para perceber o mundo, para categorizar a realidade, para propiciar a interagio social, para informar, para influenciar, para exprimir sentimentos e emogdes, para criar e manter lagos sociais, para falar da propria Tinguagem, para ser fonte e lugar de prazer, mas serve também para esta~ belecer uma identidade social — Te abana, indio vetho, que té ineluido no prego. — Ai-diz-o paciente — Toma um mate? "Na-nio ~ geme o paciente —Respira fundo, tch8. Enche bucho que passa. paciente respira fundo. O analisia de Bagé pergunta: Agora, qual € 0 causo? = B depressio, doutor © analista de Bage tira uma patha de tris da oretha ¢ comeca a enrolar um cigar. To te owvindo ~ diz, — Fuma coisa existencial, entende”” Continua, no mis. Comeco a pensar, assim, na finitude humana em contraste com 0 infinito cismico, — Mas tu é mais complicado que receita de creme Assis Brasil E entio tenho conseiéncia do vazio da existéncia, da desesperanga incrente condigdo humana. E isso me angustia Pos vamos dar um jeito nisso agorita ~ diz 0 analista de Bagé, com uma batorada. O senhor vai eurar a minha angiistia? Nao, vou mudar 0 mundo. Cortar 0 mal pela mandioca. (erissimo, 2004: 15-16) Luis Femando Verissimo criou uma personagem, que se tomiou um clissico do humor brasileito, o analista de Bagé. O analista, embora nao seja nada ortodoxo na andtise da alma humana, diz-se um freudiano “mais ortodoxo do que eaixa de maisena”, Trata os problemas dos pacientes como quem amansa cavalo, um gaticho de uma franqueza rude, que considera bobagem todos os problemas psiquicos. A identidade do analista é criada pela linguagem e na linguagem. De um lado, ele usa a variedade regional gaficha em sua fala: tratamento com 0 pro- nome fu, concordando com a terceira pessoa; perda das semivogais em ditongos de palavras como pois € mais, que sc tomam pos ¢ mas; léxico regional, como, Alinguogem humane 27 por exemplo, abanca, indio vetho, mate, iché. De outro, mostra sua franqueza rude: por exemplo, quando diz que no vai curar angistia do paciente, mas vai mudar 0 mundo ou quando afirma que o paciente mais complicado que receita de creme Assis Brasil. O uso de uma determinada variedade lingui: grupo social e di uma identidade a seus membros. Aprendemos a distinguir as diversas variedades ¢, quando alguém comega a falar, sabemos se a pessoa é um -gauicho, um carioca, um paulista e assim por diante. Sabemos que certas expresses Pertencem a fala dos mais jovens; outras indieam que o falante tem mais idade. ‘As variantes linguisticas conferem uma identidade as pessoas, sejam elas pessoas do mundo real ou personagens, que sio pessoas de fiegao, Ridicularizar a variante usada poralguém é uma atitude muito agressiva, pois estamos zombando do proprio ser das pessoas. Existe um julgamento social sobre as variantes: algumas sto consideradas elegantes e outras, feias. Do estrito ponto de vista linguistico, nilo existem formas feias ou bonitas, pois elas se equivalem Escamecer de alguém, por causa da variante lingufstica utilizada, ¢ mostra de preconceito, de dificuldade de conviver com as diferengas. As recorréncias de tragos linguisticos da expresso (por exemplo, ritmos, rimas) do contetido (por exemplo, sclegao lexical, construgo de personagens), isto ¢, 0 estilo, criam uma imagem do falante. Paulo Mendes Campos tem uma crdnica, em que mostra que um mesmo fato pode ser narrado de diferentes pon- tos de vista, empregando diferentes estilos. O fato é 0 seguinte: “o corpo de um homem de quarenta anos presumiveis ¢ encontrado de madrugada pelo vigia de uma construgao, 4 margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, no existindo sinais de morte violenta”, Observe-se um dos estilos marca a incluso num dado Estilo reacionério (Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhi de hoje profundo desagrado de deparar com o cadiver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bébado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se ji niio bastasse para enfear aquele local uma sérdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos do a honra de residir no Rio. (1979: 32) © mesmo fato, contado por um reaciondrio ou por um progressista, é muito diferente. Dizer 0 corpo ficou as margens da Lagoa é muito diferente de dizer 0 2B Linguistica? Que 6 ieso? corpo ficow ali eniregue ds moscas que pululam naquele perigoso foco de epidlemia; dizer corpo de um homem & distinto de eaddver de um vagabundo. A Tinguagem cria a imagem de um reaciondrio ou de um opositor aos governantes. F preciso muito cuidado para nao rotular alguém disso ou daquilo, pois a identidade é mével, nao é fixa. Uma pessoa ora é reacionz ‘ora mostra-se durona; ora sensivel. Por outro lado, ela pode simular uma imagem {que quer transmitir a scus interlocutores. Por isso, ¢ frequente encontrar pessoas que mudam o que dizem conforme o meio em que esto. Allinguagem nao se destina apenas a perceber mundo, a categorizar a realida- de, a servir de instrumento de interagdo social, a informar, a influenciar, a exprimir sentimentos e emogdes, a criar ea manter lagos sociais, a falar da propria linguagem, ser fonte e lugar de prazet, a forjar uma identidade para o falante, mas ¢ também uma forma de ago, ora é progressista; a) Depois da chuva, apareceu um bonito arco-iris. b) Peco desculpas por ter chegado atrasado. A primeira frase fala de um evento do mundo, 0 aparccimento de um arco-iris depois da chuva. Pode, por isso, ser submetida a prova da verdade. acontecimento mostrado por ela pode estar ou no de acordo com o que acontece no mundo. Se, de fato, apareceu um arco-iris depois da chuva, a frase é verdadeira. Em caso contrario, é falsa. Ja a segunda frase nio relata uum evento do mundo, é a realizagio do ato de pedir desculpas. Portanto, cla ndo pode ser submetida 4 prova da verdade, pois, quando alguém pede des- culpas, no se pergunta se 0 ato é verdadeiro ou falso. A pessoa esti, de fato, pedindo desculpas. O ato pode ter sucesso ou nao. $6 terd sucesso se forem. observadas certas condigdes: por exemplo, a pessoa que pede desculpas deve sera mesma que ofendeu alguém, porque um pedido de desculpas feito por uma tereeira pessoa nao vale. Na lingua, temos enunciados que servem para fazer uma constatagio a res- peito dos eventos ou dos estados do mundo ¢ temos outros que sio a realizagao de um ato, Isso quer dizer que a linguagem é também uma forma de ago, pois ha determinados atos que se realizam quando se diz um determinado enunciado. So exemplos de atos que acontecem ao dizer: Ordeno que vocé saia dagui; Aposto dez reais como vocé ndo consegue fazer isso: Declaro aberta a sessio. Alinguogem humane 29 Aordem acontece, quando alguém enuncia ordeno; a aposta efetiva-se, quando alguém declara aposto; a sessiio se abre, quando alguém diz dectaro aberta a sessdo. Esses atos se realizam de muitas formas: uma ordem se dé também quando se usa um imperativo (por exemplo, Saia daqui), um pedido efetua-se quando se diz, por exemplo, Uma esmola pelo amor de Deus, Muitas vezes, esses atos efetivam-se de maneira indireta. Por exemplo, se alguém, no inverno, entra numa sala, cujas janclas estdo todas abertas, ¢ diz Estdé muito frio aqui, ele ndo estard constatando a temperatura ambiente, mas estard certamente pe- dindo que se fechem as janelas. © mesmo acontece quando a mie diz ao filho Seu quarto esta uma bagunga. Nesse caso, cla nao estard constatando 0 estado de arrumagio do quarto, mas ordenando que ele seja arrumado. O falante tem uma grande capacidade de compreender esses atos de fala indiretos: se alguém pergunia Vood sabe onde fica a estagdo?, nao esti solicitando que 0 outro diga se sabe ou ndo a localizagio desse lugar, mas estt pedindo que Ihe seja expli- cado onde se localiza, Seria muito estranho que diante de tal pergunta a pessoa respondesse apenas Sei. Além dos atos que se realizam ao dizer, hd outra forma de agir ne mundo pela linguagem. Sao 0s atos produzidos nao ao dizer, mas em consequéncia do dizer. Cecilia Meireles mostra isso no belo poema “Romance das palavras aéreas”, de que vamos reproduzir alguns versos: Ai, palavras, ai, palavras, Que estranha poténeia a vossa! Todo sentido da vida principia a vossa porta; ‘9 mel do amor cristaliza seu perflume em vossa ros; sols © sonho e sois 2 audicia, caliia, faria, derrota. A liberdade das almas, ai, com letras se elabora.. E dos venenos humanos sois a mais fina retorta(..] Reis, impérios, povos, tempos, elo vosso impulso rodam (1985: 493) 30 Linguistica? Que 6 isso? A poeta vai, nesse poema, falar do poder da palavra. Ela serve para o bem e para o mal, isto é, as consequéneias que ela produ sto positivas ou negativas. Coma palavra, declaramos amor; com ela, caluniamos e, assim, destruimos 0 ‘outro; com ela, mostramos nossa audicia; com ela seduzimos e fazemos que © outro se enamore de nés; com ela, ampliamos nossa mente e, assim, liberta~ ‘mos nossa alma; com ela, magoamos, espezinhamos, humilhamos e, por isso, cla é a mais fina retorta dos venenos humanos; com cla, concebemos novos projelos sociais, novas utopias e, por isso, derrubamos a tirania; alteramos os sistemas politicos, eriamos novos tempos; com ela, sonhamos em construir uma nova vida; com ela, fazemos planos; com ela, elogiamos ¢ apoiamos e, assim, ineitamos os outros a seguir em frente; com ela, corrigimos; com ela, repreendemos. O que podemos fazer em consequéncia daquilo que dizemos 6 ilimitado. A linguagem € uma forma de o homem agir no mundo, porque hi agdes que se realizam uo dizer e ages que ocorrem em consequéncia do que se di A linguagem nao se presta apenas para perceber o mundo, para categorizar a realidade, para realizar interagdes, para informar, para influeneiar, para exprimir sentimentos ¢ emogies, para criar ¢ manter lagos sociais, para falar da propria Jinguagem, para ser lugar ¢ fonte de prazer, para estabelecer identidades, para agir no mundo, mas também para criar novas realidades: A menina apareceu grivida de um gavi ‘Veio falou para a mae: 0 gavido me desmogou. ‘A mie disse: Vocé vai parir uma érvore para a gente comer goiaba nel E comeram goiaba, Naquele tempo de para ser. Se a gente encostava em ser ave ganhava 0 poder de agar Sea gente falasse a partir de um c6rrego 4 gente pegava murmitrios, ‘Nao havia comportamento de estar ‘Unubus conversavam sobre auroras Pessoa viravam drvore intes no havia limites Peciras viravam rouxindi Depois veio a ordem das coisas e as pedras Alinguogem humane 31 tém que rolar seu destino de pedra para o resto dos tempos. S6 as palavras no foram castigadas com a ordem natural das coisas. As palayras continuam com seus deslimites. (Barros, 1998: 77) © poeta Manoel de Barros fala do tempo em que as eoisas no tinham limites, Nele, tudo podia acontecer: urubus conversavam sobre auroras, pessoas viravam, ‘irvores, pedras se transformavam em rouxindis e assim por diante. O poeta mostra acontecimentos impossiveis, como a mie dizer filha que ela iria parir uma érvore para que comessem goiaba nela e isso acontecer (“e comeram goiaba”) ou alguém, desejar (= encostar em ser) ser ave e ganhar poder de algar voo, para revelar ‘que no havia limites para os acomtecimentos. Depois, veio a ordem natural das coisas € as pedras tém que rolar seu destino de pedra para o resto dos tempos, isto €, cada coisa tem uma fungdo no mundo. No entanto, as palavras nao foram castigadas com essa ordem natural, clas continuam, segundo o poeta, com seus deslimites. Nesse belo poema, o que 0 poeta nos mostra é que as palavras, ou seja, a Tinguagem, nao sdo um decalque do mundo, nao se limitam a reproduzir a ordem natural das coisas, mas so um instrumento com que os homens podem ceriar as realidades que bem entenderem. Esse poder eriador da linguagem est presente nas narrativas religiosas. Na Biblia, conta-se que Deus ria o mundo pela Jinguagem: “Deus disse: Faga-se a luz. E a luz foi fetta” (Génese, 1,3). A linguagem nao fala apenas daquilo que existe, fala do que nunca existiu Com ela, imaginamos novos mundos, outras realidades. Essa & a grande fungXo da arte, que é um modo de organizagio da linguagem: mostrar que outras manei- ras de ser so possiveis, que outros universos podem existir. O famoso filme de Woody Allen rosa piirpura do Cairo mostra isso de maneira bem expressiva. Nele, conta-se a histéria de uma mulher, que tinha um cotidiano muito sottido € que era maltratada pelo marido. Por isso, ela refugia-se no cinema, assistindo a filmes de amor, onde a vida é glamorosa. Um dia, 0 gala sai da tela e eles vio viver juntos uma série de aventuras. Nessa outra realidade, os homens sio gentis, a vida niio € monétona, o amor nunca diminui e assim por diante, Uma fungdo importante da linguagem é seu poder de criar realidades, que revelam os anseios, os temores, as expectativas do homem da época em que foram criadas. O homem pode criar uma realidade futura, como em muitos fil- 32 Linguistica? Que 6 isso? mes de fice4o ciemtifica, em que a terra é um lugar sombrio, poluido, dominado por gangues que impdiem a lei do mais forte (veja, por exemplo, o filme Duna) Isso revela a angistia com a destrui¢ao do meio ambiente e com a quebra das is. Pode construir reali ades em que os computadores dominam ‘os homens (veja, por exemplo, o filme 2001, uma odisseia no espaga), 0 que mostra a angistia diante das aceleradas mudangas produzidas pelas novas tecno- logias. Também o homem pode idealizar o passado. Criar novos espagos, como a Terra Média, que aparece no Senhor dos Anéis, de Tolkien; a Ilha dos Amores, ‘onde os navegantes portugueses, segundo a epopeia Os Lusiadas, de Camées, encontram muitos prazeres e descansam depois das fadigas da expedi¢ao de Vasco da Gama, Criam-se com a linguagem personagens, que nos ensinam a ‘conhecer melhor os seres humanos: por exemplo, Dona Flor, de Dona Flor ¢ seus dois maridos, de Jorge Amado, que mostra © desejo dos seres humanos de conciliar o trabalho e o prazer, pois © primeira marido & Vadinho, o sujeito folgaro, que representa o principio do prazer, enquanto 0 segundo, Teodoro, & um homem metédico, que & a imagem do trabalho. A linguagem permite criar as realidades que quisermos, pois ela nao esta submetida, como nos diz. Manoel de Barros, aos limites da orcem natural das coisas. Ela dé ao homem o poder considerado divino de eriar universos. Depois de analisar todas as fingdes da linguagem, compreende-se por que cla éonipresente. Sem ela, ndo se pode estruturar 0 mundo do trabalho, pois & ela que permite a cooperagaio entre os homens ¢ a troca de informagdes ¢ de experiéneias. Sem ela, 0 homem nao pode conhecer-se nem conhecer 0 mundo, Sem ela, nio se exeree a cidadania, porque os eleitores nao podem influenciar 0 governo, Sem ‘ela nio se pode aprender, sem ela nao se podem expressar 0s sentimentos, sem ela no se podem imaginar outras realidades, sem ela no se constroem as utopias ¢ ‘os sonhos. Sem ela... Sem ela... Sem ela... A reflexdo sobre a linguagem Por esse papel to importante é que sempre “a linguagem cativou o homem enquanto objeto de deslumbramento e de descrigio na poesia e na ciéncia” (Hjelmslev, 1975: 1-2). Se ela estd presente em todas as atividades humanas, se & constitutiva do estar do homem no mundo, conhecer a Tinguagem é conhecer Alinguogem humane 33 © homem. Nos primérdios da marcha do homem sobre a Terra, os mitos tentam. explicar as origens da Tinguagem e a diversidade das linguas. No Génese, vé-se que a linguagem ¢ um atributo da divindade, pois 0 Criador dela se vale, quando realiza sua obra. No primeito relato da criagio, Deus cria 0 mundo falando. No inicio, no havia nada. Depois, ha 0 caos. No principio, criou Deus 0 eéu e a terra. A terra, contudo, estava vazia e vaga e as trevas cobriam o abismo e o Espirito de Deus pairava sobre as aguas. (I, 1-2) A passagem do caos a ordem (= cosmo) faz-se por meio de um ato de lingua- gom. E esta que dé sentido a0 mundo. © poder eriador da divindade ¢ exercido pela linguagem, que tem, no mito, um poder ilocucional, ja que nela e por ela se ‘ordena o mundo. Deus disse: Faga-se a luz. E a luz foi feta, E viu Deus que a luz era boa: e separou luz eastrevas. Deus chamou a luz dia € as trevas noite; fer-se uma tarde e uma ‘mana, primeiro dia. (1, 3-5) Até 0 quinto dia, o Senhor vai criando linguisticamente 0 mundo. No sexto, depois de fazer os animais da terra, cria o homem. Fagamos homem a nossa imagem e semelhanga; ¢ que ele domine os peixes do mar, ¢ as aves do céu, ¢ os animais da terra, ¢ todo réptil, que se move na terra. E Deus criou o homem a sua imagem; a imagem de Deus criou-o, macho ¢ fémea criou-os, (I, 26-7) Mas hd, no primeiro livro da Biblia, uma segunda narrativa da criago, 0 ho- mem é feito de barro, portanto, no mais com a linguagem, mas com o trabalho das mos: Entio, o Senhor Deus modelou o homem com o barto da terra, ¢ soprousthe no rosto o sopro da vida, e © homem tornou-se um ser vivo. (Il, 7) O mito mostra que as duas categorias fundadoras do cosmo, do sentido, siio a linguagem (primeiro relato da criagio) 0 trabalho (segunda narrativa). Alias, nesta, ndo s6 © homem foi feito de barro, mas também os outros animais. O que diferencia aquele destes é que o homem é composto de dois prineipios distintos: © barro da terra (corpo) ¢ 0 sopro de Deus (alma). A mulher foi feita de uma cos- 34 Linguistica? Que 6 isso? tela de Adio. Quando o Criador leva a mulher ao homem, este realiza um ato de Jinguagem, um ato de denominagio. Depois, o Senhor Deus transformou a costela, que tirara de Ado, numa mulher € levou-a para Adio. Este disse: “Este & 0 osso de meus ossos, a care de minha serd chamada mulher, porque foi tirada do homem". £ por seo que 0 bo- mem deixard seu pai e sua mae ¢ se unird a sua mulher; ¢ eles serdo dois numa sé carne, (11, 22-4) carn A lingua adémica é uma faculdade divina dada ao homem, para que ele, de- nominando cada uma das coisas criadas, apreenda o Universo. A proporgio que Ado descobre 0 mundo, denomina os seres, pois uma coisa 6 existe na medida ‘em que tem um nome, ou seja, entra no universo da linguagem. Disse também o Senhor Deus: Nio é bom que o homem estes, Fagamos-the tum auxilio semelhante a ele. Tendo formado o Senhor Deus do barra todos os animais da tera todas as aves do eu, levou- para Adi, para que visse como coschamaria; cada um deveria portaro nome que Adio Ihe tivesse dada. Echamou ‘Adio por seus nomies todos os animais,¢ todas as aves do edu, ¢ todas as feras da terra. (il, 18-20) Oepisédio da torre de Babel explica 0 mistério da diversidade das linguas, Os homens pretenderam fazer uma torte que chegasse aos eéus, Deus foi ver 0 que cles faziam e no aceitou sua pretensdo, Como castigo, provocou a confusio das linguas. A diversidade linguistica é vista, entdo, como maldig2o, como castigo & soberba dos homens ‘Todos se serviam da mesma lingua e das mesmas palavras. [..] Disseram-se uns aos outros: Vinde, fagamos tijolose cozamo-los no fogo. Os tijolos serviram-lhes de pedra e o betume, de cimento, Disseram: Vinde, fayamos uma cidade © uma torre, cujo cume atinja o céu. Celebremos nosso nome antes que nos dispersemos por toda a terra. Ora, Deus desceu para ver a cidade ¢ a torre que os fithos de Adio edificavam e disse: Bis que todos s20 um s6 povoe falam uma dnica lingua. Comegaram a fazer isto © nio desistirio, até que tenham completado sua obra, ‘Vamos, desgamos e confundamos sua lingua, para que um nio entenda mais yor do outro. (It, 18-9) No Novo Testamento, aparece 0 relato do chamado milagre de Pentecostes. Anarrativa conta que o Espirito Santo desceu sobre os apdstolos sob a forma Alinguogem humane 35 de linguas de fogo. Isso permitiu aos apéstolos seja falar todas as linguas de seus ouvintes, vindos de diferentes paises (“... e comegaram a falar em varias inguas”. Atos, 1, 4), seja serem compreendidos pelos ouvintes como se falassem a lingua de cada um (“porque cada um ouvia-os falar em sua propria lingua”). spantavam-se todas e maraviThavam-se, dizendo: Por acaso todos estes homens ue falam nio sio galileus? Como ouvimos cada um nossa lingua materna? Os Partos, e os Meias, ¢ 0s Flamitas, € as que habitam a Mesopotimia, a Judeia, i Copidbcin: Ponto oa Asis; Fright 6 6 Panillia, o Eigito e parsé dé Libia, que & proxima de Cirene, ¢ os Romanos que estio aqui, também os Judeus € 0s Prosélitos, e os Cretenses e os Arabes: ouvimo-los falar em nossas Lingus as maravilhas de Deus, (Atos, tl, 6-11) Pode-se entender que os apdstolos falavam numa espécie de “esperanto mistico", numa lingua que reconstitui a lingua adimica (Yaguello, 1984: 31) Esse episédio é muito importante, porque, se, com a morte de Cristo, os homens receberam a salvaco e, assim, tiveram a possibilidade de anular as maldigdes da primeira queda, com o milagre de Pentecostes, pde-se um termo a maldigao da segunda queda: & diversidade das linguas opde-se aqui a unidade, c, dessa forma, © ciclo do mito completa-se. Observe-se a explicagdo sobre a origem do mundo e da linguagem dada por uma sociedade bem diversa: ‘Uma das grandes escolas de iniciagdo da savana sudanesa, 0 Komo, diz que a palavra (kuma) era um atributo reservado a Deus, que por ela eriava as coisas: “o que Maa Neala (Deus) diz 6”. No comego, s6 havia um vazio vivo, vivendo dda vida do Ser. Um que se chama a si mesmo Maa Ngala. Entio ele criou Fan, © ovo primordial, que, nos seus nove compartimentos, alojava nove estados fundamentais da existéncia. Quando esse ovo abriu, as criaturas que dai sairam ceram muddas. Entio para se dar um interlocutor, Maa Ngala tirou uma parcela de cada uma das criaturas, misturou-as e por um sopro de fogo que emanava dele ‘mesmo, constituiu um ser parte: o homem ao qual deu uma parte de seu priprio nome (Maa). (Petter, 2002; 11) s dois mitos expostos anteriormente, engendrados em sociedades muito di- ferentes, narram a origem da linguagem de maneira muito préxima: a Tinguagem € um atributo da divindade, que € concedido ao homem. Aliés, 0 mito vai mais 36 Linguistica? Que 6 isso? longe. No inicio do Evangelho de Sio Joao, que serve de epigrafe a este texto, diz-se que a linguagem no s6 estava em Deus, mas elt era o proprio Deus. Mais tarde aparece a reflex3o linguistica, que é feita pelos filésofos. Por exemplo, Platio, no Crifilo, estuda o estatuto do nome, algo que nfo é a propria coisa. Como instrumento ¢ imagem, ele isso, comega a delinear-se 0 problema da significagio. Se a linguagem conduz a alguma coisa fora de si, o nome ¢ um signo ¢, portanto, pode-se analisar scu sig- nificado. Em Platao, o nome é 0 [égos da coisa ¢ 0 discurso é 0 logos da relagiio ‘entre as coisas. Surge 0 problema da adequagao entre a linguagem ¢ a realidade, No Critilo, o nome tem uma relagao de semethanga com a coisa nomeada, 0 que implica certo grau de representagiio. No Sofista, a adequagdo nao & buseada nos, termos, mas em sua articulagdo, que & um reflexo do acordo existente entre as cespécies, Nesse ldgos discursivo, no ha convengiio, pois a articulagdo das partes da proposigao revela a articulago das esséncias. A representagiio das esséncias, feita pelos nomes, permite certo grau de convengiio, o que no acontece no dis- curso, pois a relago entre as espécies € natural e, por conseguinte, universal (Cf. Neves, 2005). No petiodo helenistico, as condiges historicas propiciam a instituciona- lizago de uma disciplina gramatical, pois cle & marcado por um intenso plu- rilinguismo, ou seja, um confronto de linguas ¢ culturas. Ora, esse ambiente plurilingue, ao invés de produzir uma profunda mescla de cultura, intensifica ‘0 zelo de preservagdo da lingua considerada mais pura ¢ elevada, 0 grego. Exalta-se 0 ideal helénico contra os barbaroi. Isso implica o exame atento dos fatos linguisticos, aqueles revelados pelo uso concreto da lingua, bem como 0 estabelecimento de padres normativos para a lingua que constitui, na visio helénica, o modelo mais elevado de analogia, o grego. O helenismo precisa ser difindido; a lingua grega, ensinada, para ser preservada da corrupgo. O ensino de padres linguisticos implica o estabelecimento dos quadros da gramatica, que € a exposigio das analogias no ambito das formas linguisticas. O modelo dessas formas sio 0s autores classicos. No entanto, é curioso 0 mundo dos conceitos. Assim como nas narrativas s6 existe o herdi porque ha o vilao, a analogia s6 pode ser estabelecida, quando se tem em vista a anomalia. Ambas supdem-se e explicam-se. Ademais, a ideia de lingua comum (a koiné) esta na base da codifi- ‘cagdio das nogdes gramaticais e associa-se & nogiio de norma. Estabelecem-se 0s ‘quadros de flextio como paradigmas; mapeiam-se os desvios ¢ as irregularidades pica a natureza ea convengio. Com Alinguogem humane 37 determinados pelo uso. Assim, est inaugurada a disciplina gramatical, que tem por objeto a sistematizagaio dos futos da lingua. A filosofia fornece-the as bases te6ricas. A lingua vai pouco a pouco sendo considerada aut6noma: primeiro, da realidade; em seguida, das categorias do pensamento. Isso possibilita, nas con- digdes hist6ricas particulares do periodo helenistico, o levantamento dos fatos concretos do uso correto ¢ eficiente da lingua. E, a partir dai, o estabelecimento das classes de palavras ¢ de suas flexdes ndo mais como suporte das catcgorias da légica, mas como uma realidade em si. Nas condigdes particulares de sua emergéncia, a gramitica é normativa. Ela separa-se da filosofia, que fiea sendo © dominio dos conceitos, ja que a linguagem é um dominio especifico, uma vez que ela no é uma imagem fiel das relagdes dialéticas (Cf. Neves, 2005). A gramatica foi o modelo de reflexdo linguistica durante toda a Antiguidade, a Idade Média e parte da Idade Modema, Depois surge a filologia: J4 em Alexandria havia uma escola “filoldgica’, mas esse termo se vinculou sobretucio 20 movimento eriado por Friedrich August Wolf partirde 1777 e que Prossegue até nossos dias, A lingua ndo 6 o tinico objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar os textos; esse estudo a leva a s¢ ocupar também da histéria literdria, dos costumes, das instituigdes, etc.; em toda parte usa seu métode proprio, que & a eritiea. Se aborda questdes linguisticas,fé-lo sobretudo para comparar textos de diversas épocas, determinar a lingua peculiar de cada autor, deciffar e explicar inscrigGes redigidas numa lingua areaica ou obscura, (Saussure, 1969: 7-8) Mais modemamente constitui-se a Linguistica como ciéncia da linguagem. A Linguistica ¢ uma cigneia, porque ela, ao contrério da gramatica, no se pre- tende normativa (nfo tem por finalidade prescrever como se deve dizer), mas se ‘quer descritiva e explicativa (tem por objetivo dizer o que a lingua & e por que € assim). Assim como um quimico nao diz que uma reagio é certa ou errada, um bidlogo ndo declara que determinada espécie ndo deveria existir ou que ela é feia, lum astrénomo nio classifica os corpos celestes em bons © maus, um linguista nao condena certas maneiras de falar, nao as declara inexistentes, ndo prescreve como se deve falar, mas procura descrever e explicar as construgdes, as formas. Por exemplo, explicar por que aparece o chamado gerundismo, por que se usa 0 pronome /he em fungdo de objeto direto em lugar dos pronomes que serviam para expressar essa fungdo sintitica, 0, a, os, as. 3B. Linguistica? Que 6 isso? A Linguistica, a0 contririo da Filologia, ocupa-se principalmente da linguagem oral. Muitas vezes, pensa-se que a escrita seja uma simples transerigiio da fila Na verdade, a relagao entre elas € muito mais complexa. Si duas modalidades distintas. Cabe lembrar, em primeiro lugar, que a oralidade é condigo necessitia, porém nio suficiente, da fala. Quando lemos, por exemplo, um texto previamente escrito, temos manifestagao oral da linguagem, mas nao temos a construgao de sum texto falado. Quando se elabora um texto, ele & feito para alguém, que € seu receptor. O texto falado ¢ reeebido ao mesmo tempo que ¢ elaborado, Enquanto 0 emissor vai construindo o texto, 0 receptor vai ouvindo-o. Na escrita, é diferente, pois 0 texto 6 lido 86 depois de ter sido escrito, depois de estar pronto. Dessa caracteristica resultam varias distingdes entre um texto escrito e um texto falado. 8) Na fala, a recepgo ovorre no interior de uma situag3o de interlocusio, ou seja, dentro de uma cena enunciativa, que compreende dois partieipantes (os terlocutores) ¢ se passa num determinado tempo e num dado lugar: Essa cena é a instincia de instauragiio de um ew (pessoa que fala), um fu (a pessoa ccom quem se fala), um aqui (0 lugar onde esté 0 en), um agora (0 momento em que 0 eu toma a palavra). A partir do ewagui/agora, ordenam-se todas as pessoas, os tempos ¢ os espagos colocados no discurso. Ora, na fala, no & preciso explicar ao interlocutor a que o emissor se refere, quando diz eu, agtti, agora, ontem, hoje, lé, ele, ete, O sentido desses elementos linguistics ¢ retirado da propria situagdo de interlocugao. Por outro lado, 0 receptor entende os sentidos que se referem a situago. Se alguém diante do carro parado, com 0 capé aberto, diz: Droga! Mandei ver o motor semana passada, niio precisa explicar que se rata do motor do carro, Da mesma forma, se isso for dito diante da enceradeira, a referéncia do termo motor seré outra. Como comunicas 0, & preci recriara cena enunciativa, a situago, para que 0 receptor compreenda quem esti falando, que semana foi mencionada como semana passada, quais so as referencias situacionais dos sentidos. & por isso que, numa carta, por exemplo, ¢ imprescindivel que se mencionem o lugar e a data em que o texto foi pro- duzido, que se assine o texto ¢ que se contem todos os elementos situacionais, cuja omissio nao permite entender o sentido do que é dito. na escrita se dé fora da situagZo de interloc Alinguogem humane 39 b) Na fala, ocorre uma alterndncia dos papéis de falante e de ouvinte. O receptor pode interromper o emissor a qualquer momento e tomar a pala vra. Este, por sua vez, usa certas estratégias para manter a palavras (por exemplo, prolongar uma vogal, enquanto procura uma palavra), busca anuéncia do interlocutor (diz, por exemplo, né?, certo?, 6 néo acha?), solicita-Ihe colaboragao (por exemplo, como & mesmo que se diz?), ete Na escrita, no ocorre essa altcrnancia de papéis. Mesmo quando ncla se ria um difilogo, trata-se de uma simulagio e no de um didilogo real com suas interrupgdes, superposigdes de vores, tentativa de segurar a palavra, ‘marcas da presenga do outro, ete. ©) Na fala, o planejamento ¢ a execugdo do texto so concomitantes. Por isso, 0 texto falado caracteriza-se por um grande ntimero de pausas, frases truncadas, repetigdes, corregdes, periodos comegados e abandonados para iniciar outro, desvios, volias, aceleragBes. O texto escrito nao apresenta marcas de planejamento e de exeeugio. O produto é apresentando pronto a0 leitor e ndio em elaborago como na fala, Na versio final do texto escrito, sio abandonadas as marcas da construgio do texto. Nele, no aparecem hesitagdes, truncamentos, comegdes, etc 4) Na fala, empregam-se periodos mais curtos € mais simples. Na eserita, eles sio mais longos ¢ complexos. Nesta, usam-se mais oragdes subordi- nadas. As unidades de sentido de um texto escrito so os parigrafos. os capitulos, ete. No texto falado, so os turnos (intervengao de cada falante) € 08 t6picos (assuntos de que se fala). ©) Na fala, hd um grande envolvimento do interlocutor no texto do outro, Ele colabora em sua elaboragio, participa dela com sugesides, diz que compreendeu, assente na continuagdo, etc. Ha uma série de marcadores conversacionais que servem para indicar esse envolvimento do interlo- cutor: hum, hum!, certo!, claro!, ah, sim!. © falante monitora o acompa: nhamento do interlocutor (por exemplo, vocé esti me entendendo?). Essa participagdo do interlocutor é to intrinseca ao texto falado que, quando, por exemplo, se fala ao telefone ¢ a outra pessoa nio diz nada, imediata- ‘mente se Ihe pergunta: ald, vocé estdé ouvindo? No texto escrito, nao hi esse envolvimento da parte de um interlocutor. 40 Linguistica? Que 6 ieso? ‘Muitas pessoas dizem que, num texto escrito, podem-se admitir quando muito variantes Iexicais, mas, em hipétese alguma, variantes de outros planos da lingua, pois elas constituem erro. A questo é mais complexa. No trato com as variantes, devernos substituir 0 par certo/errado pela dicotomia adequado/inadequado, Com ‘feito, cada variante é mais adequada para uma determinada situag3o de interlocug%o €, portanto, a um dado género do discurso, Por isso, na construgdo de uma perso~ nagem de um romance, por exemplo, ndo se pode atribuir-the alcatoriamente wma variedade linguistica. As variedades criam uma identidade para o narrador ¢ para as personagens: por exemplo, nao se faz um peio da fronteira do extremo sul do pais falar como um adolescente carioca. Uma variedade cria um efeito de sentido, ois se ajusta a um lugar, a um tempo, a uma situagZio de interlocugdo, a um grupo social. Um bom falante da lingua ¢ 0 que sabe usara variedade adequada a situagio de comunivagio. & vio inadequado dizer, num bate-papo de botequim, Fi-lo ao meu alvedrio, quanto, num depoimento na Camara dos Deputados, afirmar Fiz prugue me dew na tela. Linguagem humana e linguagem animal Temos ouvido falar de experiéncias cientificas que comprovam que os animais sav dotados de capacidade de linguagem. $30 primatas que aprendem centenas de palavras, so abelhas que se comunicam, animais domésticos que entendem 0 que thes dizemos. Pensemos melhor a questo. Fm Através do espetho, de Lewis Carroll E um hébito muito inconveniente dos gatinhos (Alice jé tinha observado isso) responderem sempre com um ronrom a qualquer coisa que se diga. “Se ao menos eles fizessem rom para ‘sim’ e miau para ‘no’, ou qualquer coisa dese tipo”, ela se dizia, “entio j4 se podia continuar uma conversa, Mas como conversar com alguém que sempre diz a mesma coisa?”. (1980: 245) Nao se nega que os animais tenham uma forma de comunicar-se. As abe- Ihas, por exemplo, so capazes de produzir e entender uma mensagem, com trés informagdes: existéncia de uma fonte de alimentos, sua distincia ¢ sua direyao. Podem, pois, registrar relagdes de posicao e distincia, conservi-las na meméria, ‘comunicé-las por meio de certos movimentos, que sio compreendidos pelas ou- Alinguogem humane 41 tras abelhas, tomando-se um motor para a ago. Benveniste, num clissico texto intitulado Comunicagdo animal e linguagem humana (1976: 60-7), diz que as abelhas tém a capacidade de formulare interpretar um “signo”, que remete a certa “realidade”; elas tém a meméria da experiéncia e a aptidio de decompé-la, No entanto, a comunicagao das abelhas nao ¢ linguagem no sentido humano, aquela {que € objeto da Linguistica. As abelhas nfo conhecem o didlogo, que & condigio da linguagem humana. Assim, suas mensagens nao provocam uma resposta li ul set reproduzida por outra abelha, que vi a outra colmeia levar uma mensagem que tenha recebido de outra abelha. Ela ndo constroi uma mensagem a partir de outra mensagem, mas. partir de um dado da realidade, Sua comunicagao refere-se sempre a um dado objeto, nao ha comunicacao referente a um dado linguistico, as abethas niio tém metalinguagem. O contetido da mensagem se refere sempre um dado da realidade, a existéneia de uma fonte de alimento, A linguagem humana é uma mistura livre ¢ infinite de referéncia a realidade objetiva e de ‘mas uma conduta, Nao ha reago linguistica a mensagem: ela nao pode reagio As manifestagdes linguisticas. Ela propicia um substituto da experiéneia ‘que pode ser transmitido indefinidamente no espago e no tempo. Na linguagem humana, nao hé relago necesséria entre referencia objetiva ¢ forma linguistica A linguagem ndo fala apenas do que existe, fala também do que nunca existiu. ‘A mensagem das abelhas tem um conteiido global que nao se deixa analisar em unidades menores. A linguagem humana é analisivel em elementos menores (uni- dades minimas dotadas de forma fonica ¢ sentido, que se combinam para formar palavr O principio que rege a linguagem humana é a eriatividade, que esti ausente da ‘comunieag3o animal. Os animais nao tém linguagem, t&m eddigo de sinais, cujas idade das mensagens, referéncia a uma dada realidade, natureza indecomponivel do enunciado e transmissio unilateral. Portanto, a Linguist A linguagem € comum a todos os homens. Nao hi diferenga de natureza entre as linguas. As distingdes entre clas so culturais. Nao ha linguas simples e linguas complexas. Todas sao igualmente simples e complexas. Todas as linguas tém determinadas propriedades e caracteristicas, que so universais: ‘ons que se combinam para constituir as unidades dotadas de sentido). caracteristicas so sentidos fixos, invariabil no se ocupa da “linguagem” animal. a) tém dupla articulagdo (poucos sons que se combinam para formar unidades dotadas de sentido, que, por sua vez, se combinam formando enunciados); 42 Linguistica? Que 6 ieso? bb) constituem sistemas cujas unidades se definem umas em relaedo As outras; ©) sio convencionais os signos linguisticos; 4) comportam redundancia (excesso de meios em relago as informagdes transmnitidas); ©) apresentam ambiguidades, dissimetrias, irregularidades; 1) produzem infinitos enunciados a partir de regras infinitas; 2) esto cm perpétua mudanga; h)_permitem a invencdo, a eriatividade, © deslocamento de sentido, o jogo: i) sao estruturadas em trés niveis, o dos sons, o da gramiitica © 0 do léxic i) sao lineares 0s significantes (um som tem que vir depois do outro); k)_ sao constituidas de unidades diseretas (unidades distintas umas das outras, isoliveis, segmentiveis). Os objetos da Linguistica ‘A Linguistica tem por finalidade elucidar o funcionamento da linguagem hu- mana, descrevendo e explicando a estruturs ¢ 0 uso das diferentes linguas faladas, ‘no mundo, Esse é seu objeto empirico. No entanto, o objeto empirico é diferente dos objetos observacionais e tedricos. O objeto observacional & a “regidio” do objeto empirico que serd objeto de estudo. Sendo ele delimitado, estabelecem-se centidades bisicas, a partir das quais serdo atributdas propriedades aos fendmenos pertencentes ao campo de anaiise, e serdio determinadas relagSes entre eles. O objeto observacional converte-se entio em objeto tedrico. Poxiemos estudar os universais da linguagem, isto é, as propriedades ¢ caracte- risticas universais, que definem o que é inerente & natureza mesma da linguagemy as, ‘operagdes cognitivas envolvidas no processamento linguistico, bem como a perda da capacidade da linguagem por lesdes no cérebro. Podemos debrugar-nos sobre as

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