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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS DE HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
LICENCIATURA EM HISTÓRIA

ANA BEATRIZ SARAIVA LEITE

AS ASSEMBLEIAS HOMÉRICAS EM PERSPECTIVA E A FORMAÇÃO DA


PÓLIS: UMA ANÁLISE DA CONFIGURAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA NA
ILÍADA E NA ODISSEIA

João Pessoa
2022
ANA BEATRIZ SARAIVA LEITE

AS ASSEMBLEIAS HOMÉRICAS EM PERSPECTIVA E A FORMAÇÃO DA


PÓLIS: UMA ANÁLISE DA CONFIGURAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA NA
ILÍADA E NA ODISSEIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de História da Universidade Federal da
Paraíba como requisito parcial para obtenção do título
em Graduação em Licenciatura plena em História

Orientadora: Profa.° Dra.° Priscilla Gontijo Leite

João Pessoa
2022
ANA BEATRIZ SARAIVA LEITE

AS ASSEMBLEIAS HOMÉRICAS EM PERSPECTIVA E A FORMAÇÃO DA


PÓLIS: UMA ANÁLISE DA CONFIGURAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA NA
ILÍADA E NA ODISSEIA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Departamento de História da Universidade Federal da
Paraíba como requisito parcial para obtenção do título
em Graduação em Licenciatura plena em História

Data: 20/06/2022

Banca Examinadora

_____________________________________________
Profa.° Dra.° Priscilla Gontijo leite (Orientadora)
(Departamento de História - UFPB/CCHLA)
(Orientadora) (nota: 10,0)

_____________________________________________
Marco Valério Classe Colonnelli
(Departamento de Letras - UFPB/CCHLA)
(Avaliador) (nota: 9,0)

_____________________________________________
Gustavo Junqueira Duarte Oliveira (PUC-CAMPINAS)
(Avaliador) (nota: 9,0)

João Pessoa
2022
RESUMO

O presente trabalho consiste em analisar os aspectos sociais e políticos configurados


nos poemas homéricos, a Ilíada e a Odisseia. O intuito desta pesquisa é refletir como
estas obras caracterizam uma importante fonte acerca do início do período arcaico e
da formação da polis. Dessa forma, é ponderado até onde há uma proximidade entre
os elementos que compõem a organização política e social das epopeias com a
constituição de uma estrutura políade, situada entre os séculos VIII e VII a. C,
evidenciando uma das principais instâncias políticas da antiguidade grega: as
assembleias. Ao mesmo tempo, em que se pondera os elementos que caracterizam a
organização comunitária das epopeias homéricas enquanto uma sociedade cujo
domínio aristocrático – oîkos – se sobressai.

Palavras-chave: assembleias; polis; Homero; Ilíada; Odisseia


ABSTRACT

The present work consists of analyzing the social and political aspects configured in
the Homeric poems, the Iliad and the Odyssey. The purpose of this research is to
reflect on how these works characterize an important source about the beginning of
the archaic period and the formation of the polis. In this way, it is pondered to what
extent there is a proximity between the elements that make up the political and social
organization of the epics with the constitution of a polyad structure, situated between
the 8th and 7th centuries BC. C, highlighting one of the main political instances of
Greek antiquity: the assemblies. At the same time, it considers the elements that
characterize the community organization of the Homeric epics as a society whose
aristocratic domain – oîkos – stands out.

Keywords: assemblies; polys; Homer; Iliad; Odyssey


AGRADECIMENTOS

Enfim, após cinco anos intensos, encerro aqui um importante ciclo na minha
vida. E nada disso teria sido possível, sem a ajuda de pessoas incríveis que encontrei
ao longo desse caminho, e venho, por meio desse texto, expressar minha eterna
gratidão.

Primeiramente agradeço a minha família, em especial a minha mãe, Patrícia e


ao meu padrasto, Virgulino, que me forneceram todo o suporte pra eu dar
continuidade aos meus estudos. Aos meus irmãos, Sophia e Isaac, que mesmo
crianças sempre estiveram do meu lado. Ao meu companheiro, Lucas, que desde o
início do curso me acompanha nessa trajetória, me apoiando e incentivando,
acreditando mais em mim do que eu mesma.

Sou extremamente grata a minha panelinha do curso, sem eles teria sido
impossível aguentar esses cinco anos, obrigada Ana Laura, Mariana, Francinally,
Gustavo, Thiago e Devid, por todo o apoio, pelos trabalhos em grupos, por salvar com
resumos de prova, enfim, por serem minha rede de apoio nessa jornada.

Agradeço a todo os professores em que tive contato ao longo do curso, por


todo conhecimento repassado. A experiência da graduação foi um ciclo significativo
da minha vida, um dos mais importantes até então, e sou grata por toda a
aprendizagem adquirida. Agradeço também à professora Lívia, preceptora da
Residência Pedagógica, por todo o suporte oferecido não só durante o projeto. A
experiência na RP foi extremamente importante para minha formação docente.
Dedico aqui um agradecimento especial à minha orientadora, Priscilla, que me
acompanha e me orienta desde o início da graduação. Juntas já passamos pelo
PROLICEN, pela monitoria, estágio, iniciação científica, até enfim o TCC. Gratidão
por todo o suporte e por não me deixar desistir, desejo que todas as pessoas tenham a
oportunidade de ter uma orientadora assim. São experiências positivas como essa, que
ajudam a nós, discentes, permanecermos na graduação e dar continuidade nos projetos.
Mais uma vez, obrigada. Páginas no word não cabem o quão eu sou grata por tudo.
E por fim, mas não menos importante, a mim mesma por toda a dedicação
durante esses cinco anos. Nunca tive vontade de desistir da graduação, mas os últimos
semestres, dada a realidade social do país, tudo se tornou mais difícil e me vi numa
situação extremamente complicada para dar continuidade aos meus projetos
acadêmicos. Devido a experiência com a iniciação científica, pesquisando o tema
deste presente trabalho, pude fazer uma boa construção do tema. No entanto, queria
ter tido a possibilidade de me dedicar ainda mais. Gratidão mais uma vez à professora
Priscilla, e Lucas, por todo o incentivo e confiança em mim.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO - DISCUSSÃO TEÓRICA-METODOLÓGICA UTILIZADA


NA PESQUISA............................................................................................................ 8

CAPÍTULO I 12
1. O estudo da História Antiga através de textos literários........................... 12
2. Paul Veyne e o pensamento mítico do homem grego................................. 17

CAPÍTULO II 22
3. Reflexões acerca da formação da polis nos séculos VIII e VII a.C........... 22
4. A estruturação das instituições da polis: a assembleia.............................. 25

CAPÍTULO III 30
5. As assembleias homéricas............................................................................ 30
6. Uma análise das passagens em assembleia na Ilíada................................. 31
7. Analisando a assembleia em Homero: a Odisseia...................................... 34
8. Estruturação das assembleias homéricas.................................................... 40

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 45

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA......................................................................... 47
|8

INTRODUÇÃO -
DISCUSSÃO TEÓRICA-METODOLÓGICA UTILIZADA NA PESQUISA

Ambos os objetos de pesquisa aqui analisados, tanto o estudo em torno da


sociedade homérica, como a discussão acerca de como se constitui uma assembleia,
demarcam uma importante posição dentro dos estudos da antiguidade, mais
precisamente da Grécia Antiga. Os poemas de Homero, a Ilíada e a Odisseia, são
obras atemporais que revelam traços significativos não só da sociedade grega, mas
também da política, cultura, religião, costumes e até mesmo da educação na Grécia
durante o período arcaico. A assembleia, por sua vez, é consagrada como uma das
maiores instituições políticas do mundo antigo, presente mesmo antes da consolidação
do sistema democrático grego.

Por volta do século VIII a. C, acompanha-se algumas transformações no modo


de organização social do mundo antigo, dentre estas, o surgimento da polis e a
organização das cidades-estado. Nos poemas homéricos, já é possível encontrar
indícios dessa forma de organização, visto que, quando se trata das fontes escritas, os
trabalhos de Homero e Hesíodo, juntamente aos elementos fornecidos por outras áreas
de conhecimento, como a arqueologia, constituem as principais fontes diretas acerca
do período em questão. Os poemas homéricos, a Ilíada e a Odisseia, tornaram-se a
base da cultura grega, sendo transcendidos para além da literatura, cujos debates
perduram até a atualidade.

Segundo Ferreira (1996), o processo de surgimento da pólis até sua


consolidação, apresentam certa singularidade – se comparar os processos de Atenas e
Esparta, por exemplo –, no entanto as poleis surgem com um “núcleo comum” de
instituições, que com suas respectivas funções, auxiliam na organização política e
social da pólis, como a assembleia do povo, o Conselho e os Magistrados. Instituições
que remontam origem da polis, como o conselho dos anciãos e as assembleias, já
estavam presentes em Homero, e exercem uma importante função no esquema da
narrativa.

A polis grega, enquanto um espaço de comunidade, tinha na assembleia uma


de suas principais organizações deliberativas, desempenhando um papel fundamental
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na atuação popular dos cidadãos, sendo um local no qual o dêmos se reunia e decidia
questões relacionadas à vida na cidade. Em Homero, estas assembleias são
apresentadas enquanto um importante meio de interação social e já desempenhavam
algumas funções deliberativas – um espaço no qual se conduzia conflitos relacionados
aos homens e aos deuses –, sendo possível identificar um princípio organizativo que
constitui uma característica dessas instâncias de modo geral. Dessa forma, as
assembleias constituem um importante instrumento dentro dos estudos referentes aos
elementos comunitários representados na obra, relacionando-se diretamente com a
questão da emergência da polis enquanto forma de organização coletiva.

Para realização das atividades desenvolvidas na pesquisa, o estudo acerca das


assembleias fora montado num cronograma de textos que permitisse compreender a
relação entre os contextos social e político das assembleias organizadas no período
arcaico, acompanhando o surgimento da polis enquanto forma de organização coletiva,
com aquelas figuradas nas obras de Homero. Dessa forma, foram selecionadas leituras
que discutissem o aparecimento da polis, tanto no sentido de formação da cidade,
como de um estado político1, e sua estrutura política e social a partir do
funcionamento das instituições nesse espaço. Ao lado dessa discussão, entrando no
trabalho com a fonte, a análise fora realizada a partir de ambos os poemas, a Ilíada e a
Odisseia2, no qual foram trabalhados textos que perpassam a análise do quadro de
produção da narrativa, em conjunto com questões de autoria e reprodução, a chamada
questão homérica, como também se debateu as discussões em torno do contexto
histórico e social dos poemas.

A primeira fonte base a ser analisada foi a Ilíada, na qual se realizou a leitura
através de fichamentos dos cantos (do I ao XXIV), destacando as temáticas ali
abordadas, os principais enredos e personagens, e as passagens de assembleias
configuradas na obra, nas quais se destacam, além da passagem contendo a fala de
1
De acordo com José Ribeiro Ferreira, o conceito da “pólis”, vai além de apenas a formação das
cidades, da constituição de um estado, podendo ser remetido também ao sentido de povo: “Para o grego,
os cidadãos é que interessavam, já que eram eles o cerne da pólis e não o aglomerado urbano” (p. 76).
FERREIRA, J. R. Civilizações Clássicas I — Grécia. Lisboa: Universidade Aberta, 1996.
2
HOMERO. Ilíada. Trad. Frederico Lourenço. 1° ed. São Paulo: Pinguim Companhia das Letras, 2013.
HOMERO. Odisseia. Trad. F. Lourenço. São Paulo: Cia. das Letras, 2011.
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Tersites, os cantos: I, 54-305 e II, 50-399. Posteriormente, a Odisseia, seguindo a


ideia inicial do estudo por meio do fichamento dos cantos, destacando as temáticas
abordadas, os principais enredos e personagens, e as passagens de assembleias
presentes na obra: II, 6-259 e XXIV, 205-548.

Sobre pontos referentes ao contexto, vida e obra de Homero, foram resgatadas


obras como O Mundo de Homero (2002), de Pierre Vidal-Naquet, A Grécia Arcaica
de Homero a Ésquilo (1989), de Claude Mossé, e Homero: oralidade, tradição e
história (2008), de Gustavo Junqueira. Em seguida, foram organizadas leituras
focando na organização política e social retratada por Homero evidenciando os pontos
discutidos por Ian Morris, em The use and abuse of Homer (1986), Moses Finley, em
O Mundo de Ulisses (1982), Anthony Snodgrass, em The Dark Age if Greece (1971).

Acerca do contexto trabalhado, o surgimento da polis e funcionamento das


assembleias, foram selecionados textos como o Civilizações Clássicas I — Grécia
(1996), de José Ribeiro Ferreira, Polis, An Introduction to the Ancient Greek Citystate
(2006), de Mogens Hansen, o artigo de Florenzano, Pólis e oîkos, o público e o
privado na Grécia Antiga (2001), e As Origens do Pensamento Grego (2002), de Jean
Pierre-Vernant. Entrando na discussão das assembleias em si, apesar da dificuldade
em encontrar fontes específicas acerca da natureza das assembleias por volta dos
séculos VIII e VI a.C, no entanto, as referências trabalhadas fornecem um suporte
significativo da organização dessas instituições.

Em conjunto ao levantamento das passagens em assembleia, foram discutidos


trabalhos como a tese do historiador Alfredo Julien, Ágora, dêmos e laós: os modos
de figuração do povo na assembleia homérica (2006), que por sua vez, traça uma na
análise sobre como o povo é configurado na assembleia homérica, evidenciando os
vocábulos “ágora, dêmos e laós”, vocábulos estes auxiliam na compreensão das
relações sociais descritas nos poemas. Também foi utilizada a obra de Chester G.
Starr, O nascimento da democracia ateniense: as assembleias no século V a.C. (2005),
como forma de entender a estrutura dessas instituições durante o período clássico.

Compreendendo a complexidade em se trabalhar com uma fonte literária


dentro da pesquisa histórica, também foram escolhidos trabalhos que permitissem
|11

uma reflexão teórica-metodológica acerca dessa questão. A conciliação entre essas


duas áreas desde muito tempo é palco de análises e discussões, e principalmente de
dificuldades ao longo do processo, tornando-se extremamente necessária na medida
em que o estudo das obras literárias oferece importantes perspectivas dentro da
pesquisa histórica. Nesse caso, as obras em questão são mais do que auxiliares, elas
constituem literalmente uma fonte sobre o período trabalhado, independente do
gênero. Dessa forma, se faz necessário a aplicação de uma metodologia adequada que
permita uma análise desse objeto sem superficializar nenhuma das áreas, ou seja,
trabalhar numa perspectiva relacional tanto os aspectos históricos, como os literários3.

Apesar de ser um recorte amplamente debatido dentre os estudos acerca da


antiguidade grega, tanto o processo de surgimento da polis, como a configuração
social e política retratada nos poemas homéricos, cabe aqui pontuar algumas
dificuldades ao longo do processo de pesquisa, dentre elas, destacam-se três em
especial: a escassez e ausência de fontes acerca do período arcaico e a caracterização
das instituições da polis durante os séculos VIII e VII a. C.; a barreira da linguagem e
a falta de acessibilidade aos materiais já produzidos no meio acadêmico; realizar um
trabalho histórico onde sua principal fonte de pesquisa é uma fonte literária.

O presente trabalho, não tem como objetivo situar e delimitar de onde e/ou
quando Homero está falando. Mas sim, evidenciar através da metodologia acima
citada, como os poemas constituem uma importante fonte acerca do início do período
arcaico e o processo de formação da polis, por meio das assembleias presentes nas
obras. Dessa forma, a pesquisa se desenvolve da seguinte forma: inicialmente, no
primeiro capítulo, é realizada uma abordagem teórica metodológica acerca das fontes
utilizadas; em seguida, é elaborada uma análise acerca do período arcaico grego,
formação da polis e suas respectivas instituições; e por fim, a análise e levantamento
das passagens em assembleia na Ilíada e Odisseia.

3
Sobre esse debate, destaco a contribuição de Paulo Ângelo de Sousa, que reflete o uso literatura
dentro da pesquisa histórica, tomando por base os textos antigos – literatura grega clássica –, ao mesmo
tempo em que coloca as principais críticas realizadas aos historiadores no que diz respeito a abordagem
destes da literatura enquanto um documento histórico. Ver: SOUSA, P. Â. de M. A História Antiga a
partir de textos literários. Teresina: EDUFPI, 2017
|12

CAPÍTULO I

1. O estudo da História Antiga através de textos literários

A produção historiográfica, principalmente entre os séculos XIX e XX, passa


por mudanças e reestruturações que serão fundamentais para o campo, surgindo assim
a necessidade de ampliar seus horizontes para a possibilidade de se trabalhar com uma
maior variedade de fontes. Dentro dessa variedade, há uma discussão acerca da
utilização da literatura enquanto fonte histórica, e como a mesma constitui um
elemento importante enquanto objeto de construção do conhecimento histórico. Para
entender a possibilidade da articulação entre a história e a literatura, se faz necessário,
inicialmente, adentrar no contexto do século XX, marcado por profundas
transformações no campo da história, causadas pela chamada “crise epistemológica”,
crise esta que contribuiu para que houvesse novas reflexões acerca do saber
historiográfico e a necessidade dessa historiografia em trabalhar de forma
interdisciplinar com outras áreas de conhecimento.

Tal século, é abarcado por uma longa discussão na qual a história ainda está
sendo estruturada enquanto campo de conhecimento. então, nesse momento, nos
debruçamos num debate que questiona o estatuto da história enquanto ciência e a
necessidade de uma metodologia própria do saber histórico. Essa discussão é um
reflexo do debate que remonta ainda ao século XIX, em que a história até aquele
momento não era considerada uma disciplina científica, tendo como função
orientar/guiar a sociedade para o futuro enquanto magistra vitae4. No entanto, ainda
neste século, se acompanha a um interesse fervoroso pelo cientificismo e também a
influência do positivismo, que logo afeta o campo historiográfico, no qual serão
realizadas críticas acerca do discurso puramente retórico na história – que por sua vez
teria que assumir um caráter neutro e objetivo –, uma vez em que esse discurso se
4
Sobre a história enquanto magistra vitae, deixo aqui a reflexão realizada no texto: MARQUES,
JULIANA BASTOS. A historia magistra vitae e o pós-modernismo. Ouro preto: n° 12, 2013. (63-78)
Que traz uma crítica acerca das abordagens e discussões mais recentes realizadas na área de Teoria da
História sobre a ruptura radical entre a historiografia da Antiguidade clássica e da modernidade,
evidenciando o debate feito por Momigliano. Ver também: MOMIGLIANO, A. As raízes clássicas da
historiografia moderna. Tradução de Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru/SP: Edusc, 2004,
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aproximava e continha elementos artísticos em sua escrita, distanciando-se assim de


uma metodologia científica (FERREIRA, 2018, p. 11).

Dessa forma, a crítica da época assumia e defendia que a história deveria


assumir um caráter metódico, cuja a construção dos fatos deveria distanciar-se de uma
escrita narrativa e fontes consideradas “não confiáveis”. A corrente rankeana, por
exemplo, fortemente influenciada pelo positivismo, defende rigor ao método
científico e a aplicação deste às fontes históricas, e a necessidade de uma posição
neutra do historiador5, através desse método, é que a história conseguiria chegar o
mais próximo de uma verdade concreta possível. Em contrapartida, se faz necessário
propor os limites dessa objetividade, compreender o que a história e a historiografia
podem ou não englobar, afinal, já dizia Veyne (1994), se tudo é histórico, logo, a
história não existe.

O debate em questão gera reflexos principalmente na segunda metade do


século XX, dentro de um contexto de mudanças no mundo ocidental, marcado pelo
pós-guerra, emergência de uma “nova esquerda”, a ascensão de movimentos sociais,
como o feminismo, o movimento estudantil de “maio de 1968” na França e em outros
países, que acabam por afetar o campo historiográfico, acarretando assim a chamada
“crise epistemológica” (FERREIRA, 2018, p. 12). Se antes havia uma necessidade de
a história assumir um caráter científico, nesse momento compreende-se que esse
positivismo não abrange a complexidade da realidade, as novas configurações
políticas, sociais, econômicas e culturais não podem – e nunca puderam – ser
abarcadas pelos modelos teóricos advindos do século XIX. Com isso, há uma maior
reflexão a respeito do lugar do sujeito no mundo e ao sentido narrativo da história,
sendo este último um elemento presente nas discussões de autores como Paul Veyne6,
Michel de Certeau, Peter Burke e Roger Chartier, além da significativa influência da
Escola dos Annales, na França. Assiste-se, então, uma maior abertura para a
interdisciplinaridade do conhecimento histórico, permitindo que a história flertasse

5
Sobre o positivismo e o método científico histórico, ver: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O atual e o
inatual em Leopold von Ranke. In: _____ (org.) Ranke. São Paulo: Ática, 1979.
6
Não cabe dissertar neste trabalho, mas julgo essenciais alguns debates realizados por Paul Veyne para
compreensão da escrita histórica e a constituição do método científico: VEYNE, Paul. Como se escreve
a história. São Paulo: EDUSP, 1994.; VEYNE, PAUL. Acreditavam os gregos em seus mitos? In.
Quando a verdade histórica era “tradição e vulgata” / Pluralidade e analogia dos mundos de verdade. (p.
15-27/p. 27-39).
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com outros campos de conhecimento como a antropologia, a arqueologia, a ciências


sociais e a literatura7. Essas reflexões acerca da produção historiográfica irão resultar
numa quebra de paradigmas e na emergência de novas correntes dentro da área, como
é o caso da “História Cultural”, que vai trabalhar com ideias como a de
“representação”, atentando para uma concepção cultural da experiência histórica.8

Embora essa movimentação dentro da historiografia tenha possibilitado uma


maior abertura para interdisciplinaridade, a articulação entre história e a literatura não
se estabeleceu de forma cordial, e a utilização desta última ainda constitui uma tarefa
desafiadora para o historiador, uma vez em que a literatura é um objeto tido enquanto
“ficcional” e “fantasioso”, contrapondo-se a uma produção histórica científica, que
tem por objetivo ser “verdadeira” e “objetiva”, ainda que fuja dos paradigmas
postulados por um rigor científico positivista. É diante a essas dificuldades no
processo que alguns autores atentam para a exigência de uma nova concepção do
texto literário, com procedimentos interpretativos que incorporam a complexidade
desses textos.

Essa necessidade de uma nova interpretação está alinhada à crítica realizada


aos historiadores acerca de suas leituras tradicionais e “reducionistas” da literatura –
uma visão instrumentalista da linguagem – enquanto documento histórico, sendo
apontada a desconsideração da especificidade da linguagem literária e o uso da
literatura enquanto documento confirmador da realidade (SOUSA, 2017). Se faz
necessária a compreensão de que metodologia literária também obedecem a um rigor
científico. Essa visão instrumentalista da linguagem acaba por enquadrar a obra
literária numa concepção geral de documento assim como qualquer outra fonte com a
qual o historiador lida, e, além disso, analisa esse mesmo texto literário como sendo
um “espelho” confirmador da realidade.

7
É válido ressaltar que a interdisciplinaridade dentro do campo histórico não é incorporada apenas com
as discussões dos séculos XIX e XX. Na área da antiguidade, por exemplo, a arqueologia já vinha
sendo utilizada como uma importante ferramenta, assim como a literatura.
8
Pode-se destacar nessa linha, o historiador francês Roger Chartier, que coloca a ideia de cultura como
as significações que o homem dá à sociedade e como este a compreende, tendo como objetivo
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade cultural é
construída, ver: CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. de
Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988.
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Ao colocar as produções literárias nessa metodologia, o historiador muitas


vezes desconsidera a ideia de “representação” que a crítica literária se expressa ao
pensar as relações entre linguagem literária e realidade social (SOUSA, 2017). Afinal,
não adianta se debruçar sobre a teoria da história e o método necessário a ser utilizado
com a fonte histórica e ignorar que a literatura e a metodologia literária também
obedecem a um rigor científico. Ao debater a literatura comparada, SANTOS e LIRA
(2018, p. 54) atentam para multidisciplinaridade da literatura e como esta, por si só,
também dialoga com outras áreas e conhecimento “... texto literário não é isolado em
si mesmo (contexto interno), ao contrário, ele dialoga com áreas afins do
conhecimento, para uma interpretação crítica, dinâmica e interdisciplinar”. Em A
Literatura como Missão (1995), Sevcenko discorre:

A literatura, portanto, fala ao historiador


sobre a história que não ocorreu, sobre as
possibilidades que não vingaram, sobre os planos que
não se concretizaram. Ela é o testemunho triste,
porém sublime, dos homens que foram vencidos
pelos fatos. Mas será que toda a realidade da história
se resume ao seu sucesso? Felizmente, um filósofo
bastante audacioso nos redimiu dessa compreensão
tão estreita, condenando o “poder da história”, que,
praticamente, se transforma, a todo instante, numa
admiração nua do êxito que leva a idolatria dos fatos
(SEVCENKO, 1995, p. 21)

De acordo com Paulo Ângelo, outro ponto para qual se faz necessária a
atenção, diz respeito ao método da leitura histórica, mais precisamente, ao método
histórico-formal da abordagem materialista da literatura. Para o historiador, toda
produção está inserida no seu tempo, logo, o estudo de suas expressões permite
compreender como a sociedade se configura naquele momento. Dessa forma, a
abordagem histórica revelará um conjunto de ideias e valores que informam a
experiência social representada nessas produções. Esse método histórico-formal da
abordagem materialista da literatura, apontado por Ângelo, consiste então em colocar
de um lado os aspectos sociais e do outro, a sua ocorrência na obra literária, propondo
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uma síntese dialética que permita uma interpenetração efetiva do literário com o
social (SOUSA, 2017). Se remete justamente à busca do historiador pela
contextualização, dada através da identificação e aproximação da realidade social de
uma determinada obra com o contexto em que a mesma está inserida. Nessa
perspectiva, a abordagem histórica vai representar um tipo de leitura que sobrepõe o
contexto ao texto, contexto esse que é entendido como uma realidade fora do texto e
não pertencente a ele, fazendo com que a obra literária se torne apenas um mero pano
de fundo do social, sem efetiva força cognitiva (SOUSA, 2017).

A alegação da importância acerca de uma nova abordagem ao utilizar a


literatura como instrumento de pesquisa histórica, que, por sua vez, necessita do
conhecimento das regras presentes no discurso literário, não significa que o
historiador tenha que deixar a busca por uma contextualização, visto que a aplicação
da fonte ao contexto é algo inerente ao ofício do historiador. Entretanto, essa noção de
contexto tem que ser pensada numa perspectiva relacional com o texto, conferindo
autonomia à obra literária, que nem é imune aos condicionamentos sociais, nem é
mero reflexo dos mesmos (SOUSA, 2017). Com isso, é preciso ter a noção não só do
contexto em que a produção literária está inserida, mas compreender as
representações expressadas – normas, discursos, instituições, imagens – pelo autor em
sua narrativa, e que embora se possa realizar paralelos entre o real e o ficcional, por
ser uma obra literária, não tem obrigatoriedade de apresentar uma realidade concreta.

No que diz respeito ao estudo do campo da história antiga, a utilização dos


textos literários já era algo recorrente, visto que além da arqueologia, estes já
forneciam importantes elementos históricos desse contexto. As produções literárias,
quando analisadas de forma coletiva, constitui o que se chama de gêneros literários,
gêneros estes que acabam por revelar características significativas da sociedade
pertencente, como é o caso da comédia, da tragédia, da fábula e das epopeias
(SOUSA, 2017). A Ilíada e a Odisseia de Homero, juntamente com Os trabalhos e os
dias de Hesíodo, por exemplo, são obras que evidenciam traços significativos para
entender certos aspectos da sociedade grega antiga. Dentro do debate acerca da
história antiga e sua articulação com a literatura, um importante exercício de reflexão
a ser realizado confere à forma como antigos viam a história e a literatura, e como
lidavam com seus mitos.
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2. Paul Veyne e o pensamento mítico do homem grego

Em Acreditavam os gregos em seus mitos? Paul Veyne traz uma importante


análise dessa questão ao colocar as diferenças de concepção da história que temos
atualmente, com a história concebida na antiguidade. É importante ressaltar que a
história não nasce quando se inventa a criticidade, referente ao método moderno da
pesquisa histórica que consiste na separação das fontes; pelo contrário, muito anterior
a isso, a história já vinha sendo construída sem necessariamente se preocupar ou
corresponder a metodologia com a qual os historiadores atuais estão familiarizados.
Ao colocar a história produzida na antiguidade enquanto uma “tradição” e “vulgata”,
Veyne observa que os historiadores da época não reformulavam as fontes com a qual
trabalhavam, às vezes completavam ou melhoravam, mas acabavam apenas por
afirmar seus antecessores. Dessa forma, a história referida nasce como uma tradição e
não se elabora a partir de fontes, o historiador antigo é a própria fonte e documento,
na medida em que reproduz o que outros autores escreveram (VEYNE, 1984).

No que se refere à posição do grego em relação ao mito, o mesmo podia


encará-lo enquanto uma fantasia, ou conservava uma visão na qual a questão da
historicidade ou da ficção não tinha sentido. Embora se tenha assumido uma posição
crítica perante a tradição mítica, Veyne aponta para a problemática na qual os antigos
se debruçaram durante muito tempo: essa tradição mítica reflete um núcleo autentico,
que por sua vez, ao longo dos séculos, se rodeou de lendas, e são essas lendas que
constituem as dificuldades, não o núcleo (VEYNE, 1984). Enquanto para nós o mito é
uma expressão grandiosa de um acontecimento épico, para o grego, o mito é uma
verdade adulterada pela ingenuidade popular, tendo em seu núcleo autêntico alguns
detalhes que são verídicos, visto que estes não possuem nada de grandioso. O tempo e
o espaço mítico, de acordo com Veyne, eram “secretamente heterogêneos” aos nossos,
visto que se encontravam em um mundo diferente, que, no entanto, expressavam uma
vaga analogia com o tempo cotidiano. Ao mesmo tempo, esse mundo mítico, uma vez
constituído em um outro horizonte, era tido como algo nobre e inacessível, onde o
valor dos deuses e dos heróis eram indiscutivelmente maiores do que um homem
comum, sendo o problema da autenticidade algo suspenso (VEYNE, 1984).
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Veyne coloca que um mundo não poderia ser fictício apenas por si mesmo,
mas sim, se este é visto como uma ficção, na medida em que se acredite nele ou não.
Logo a ficção não se opõe necessariamente à verdade, mas é um subproduto desta, na
medida em que, por exemplo, a Ilíada seja uma obra imersa em elementos ficcionais,
misturando deuses e humanos, ao se acreditar na obra, ela não será menos verdadeira
dentro da sua lógica de verdade mítica (VEYNE, 1984). O mito se configura, então,
enquanto sendo um relato anônimo, no qual não se poderia ser o autor, consistindo
numa reprodução do que já era dito acerca dos heróis e deuses.

Em paralelo a isso, pode-se resgatar o fato de que, a partir dos pensadores


racionalistas da antiguidade, a interpretação da “tradição” histórica se enquadra
também enquanto uma memória transmitida por aqueles contemporâneos ao ocorrido
aos seus descendentes. Dessa forma, na medida em que a história produzida na
antiguidade não obedece à metodologia moderna/pós moderna, nascendo de uma
tradição na qual o historiador não tem a necessidade de citar suas autoridades, visto
que ele mesmo é a fonte, esse saber histórico torna-se menos importante que os outros?
Os trabalhos de Heródoto, Tucídides e toda uma tradição antiga passam a ser menos
relevantes por causa desse fator? Se não, por que os textos literários antigos também
não podem ser tomados como fonte de pesquisa dentro desse campo de estudo? Se
ignorarmos a relevância da literatura enquanto fonte histórica, caímos mais uma vez
no conto proposto por aqueles que defendem o caráter positivo da história.

No caso das epopeias homéricas, sabe-se que a Ilíada e a Odisseia são


produções literárias que revelam elementos essenciais acerca da vida social, religiosa,
política e cultural da Grécia arcaica e clássica. A relevância de Homero para a
antiguidade é algo indiscutível, os poemas homéricos tornaram-se base da cultura e
educação grega, fazendo parte da educação dos jovens e do pensamento político e
moral dos adultos (GABRECHT e SILVA, 2006). Homero acaba por ser uma fonte
incontestável na medida em que uma das dificuldades, ao nos depararmos com os
estudos acerca da antiguidade, e não só ela, é a ausência de fontes concretas acerca do
período. O início e formação da polis, que caracteriza o período arcaico grego, ainda
constitui uma incógnita dentro desses estudos, onde os elementos fornecidos pela
literatura e arqueologia fornecem aos historiadores peças do grande quebra cabeça
que é a compreensão desse momento na Grécia antiga.
|19

A existência do poeta em si já constitui dentro da história uma grande


incógnita, escolher trabalhar com as fontes homéricas é também estar a par de
algumas discussões que dizem respeito ao contexto, vida e obra do poeta, discussões
estas que remetem desde o questionamento da existência do aedo, à composição e à
datação dos poemas, estas, por sua vez, constituem a chamada questão homérica. É de
consenso geral9 que a tradição homérica esteja situada por volta do século VIII a. C.,
sendo uma fusão de poemas cantados por autores desconhecidos que viriam a ser
conhecidos como os homeridas, ou seja, os descendentes de Homero, que
transmitiram os poemas oralmente passando de geração em geração, até por fim
serem escritos/fixados por volta do século VI a. C10, sendo a Ilíada mais antiga entre
os dois poemas.

As epopeias homéricas consagram um marco dentro da história antiga,


fornecendo elementos significativos acerca de ritos religiosos, relações sociais e
políticas, e características culturais da Grécia. É tanto, que o debate em torno de
Homero perdura até os dias atuais, tanto na área da literatura, como na de história,
sendo impossível contar a vastidão de pesquisa que perpassa essa temática. Situar os
poemas homéricos, compreender de onde fala Homero e qual o pano de fundo que
autor desenvolve sua narrativa é palco de discussões até hoje, o trabalho aqui presente
é um exemplo disso. Afinal, o mundo de Homero se configura no oîkos, restringindo-
se a aristocracia, aos palácios e aos grandes reis e heróis, ou apresenta elementos que
aproximaria a configuração política e social dos poemas com a constituição de uma
polis? Ao longo de três anos de pesquisa11 em torno da sociedade e política em
Homero, torna-se nítido que essa não é a pergunta mais importante a ser realizada. O
mundo de Homero se caracteriza como multi-temporal, sendo possível enxergar

9
Por “consenso geral” entende-se as colocações realizadas por Finley, em O mundo de Ulisses (1982),
Vidal-Naquet, em O Mundo de Homero (2002), Ian Morris, em The Use and Abuse of Homer (1996).
10
Sobre a tradição oral e fixação dos poemas, ver o artigo produzido por OLIVEIRA, Gustavo
Junqueira Duarte. Homero: oralidade, tradição e história. PPG-LET-UFRGS, Porto Alegre. Vol. 04,
N° 01. Jan/jun 2008., que resgata uma ampla discussão feita por autores como Milman Parry; James A.
Notopoulos; Albert Lod; Snodgrass. Sobre as hipóteses dessa questão, ver a discussão feita por: NETO,
Félix Jácome. A arte de Homero e o historiador: observações introdutórias. Romanitas - Revista de
Estudos Grecolatinos, n. 2, p. 197-218, 2013.
11
Me refiro nesse ponto a uma experiência pessoal realizada através do Programa de iniciação
científica, onde pude desenvolver uma pesquisa em torno dos aspectos sociais e políticos nos poemas
homéricos: Assembleia - Espaço de palavras: uma comparação entre Homero e Aristóteles, e As
assembleias homéricas e reflexões sobre o início da política em Atenas.
|20

elementos que variam desde o mundo micênico, ao início do período arcaico, no


século VIII a. C.

No entanto, essa multi-temporalidade homérica não impede que alguns


recortes dentro dos poemas sejam realizados, ainda mais se for levada em conta a
distância épica e a licença poética com a qual o autor trabalha. A análise acerca das
assembleias homéricas, por exemplo, objeto de estudo do presente trabalho, constitui
um importante estudo acerca do papel político e social que configura a obra. A polis
democrática, enquanto uma comunidade cujo dentro do corpo social se sobressai o
poder da decisão, tinha como uma de suas principais instâncias a assembleia, na qual
os cidadãos se reuniam para resolver as questões que afetavam diretamente a vida da
cidade. É diante a este contexto que se desenvolvem estudos acerca do tipo de
organização comunitária representada nos poemas homéricos, se essa se aproxima da
constituição de uma polis, na qual estas assembleias exercem soberania sob o espaço
abarcado por elas, ou se a mesma é caraterizada como uma sociedade pré-política,
predominada pelo oîkos.

Em ambas as narrativas homéricas, estas assembleias são apresentadas como


sendo um importante meio de interação social, sendo nela decidida questões que
competem à guerra entre aqueus e troianos, um espaço de celebrações, pacificação e
discussões. Na Ilíada, por exemplo, são organizadas dez assembleias entre os homens
– aqueus e troianos –, e todas elas irão conduzir pontos significativos da narrativa e as
questões referentes à guerra. Já na Odisseia, identificam-se a formação de duas
assembleias entre os homens, a de Telêmaco e a do julgamento de Odisseu. Apesar de
aparecer em menor número, se comparar com aos presentes na Ilíada, é por meio
destas reuniões que se consegue analisar melhor a clivagem social presente na obra,
isso ocorre também devido ao caráter narrativo e a estruturação dos poemas. Se
observa então como o estudo em torno da assembleia homérica se relaciona com a
questão da emergência dessa polis enquanto forma de organização coletiva,
destacando-se as observações antagônicas realizadas pelos autores Ian Morris e Moses
Finley.
|21

A temática envolvendo as assembleias tem como objetivo ilustrar as


possibilidades de trabalhar com a literatura enquanto uma fonte histórica, na medida
em que o estudo das assembleias configura um objeto importante para a compreensão
do surgimento e constituição da polis e o início do período arcaico grego. Embora a
Ilíada e a Odisseia sejam obras literárias, as narrativas por trás dos heróis, dos deuses,
e das criaturas fantásticas descritas por Homero se movem em um mundo real, pois a
sociedade retratada e o pensamento de quem as produziu são históricos. Apesar do
mundo representado pelo poeta seja uma mescla de vários períodos, com histórias que
envolvem elementos claramente fictícios, as estruturas e valores sociais ali presentes
são reflexos de um mundo real e histórico, da sociedade em que Homero viveu, logo,
possuindo grande utilidade dentro da pesquisa histórica.
|22

CAPÍTULO II

3. Reflexões acerca da formação da polis nos séculos VIII e VII a.C.

Por volta do século VIII a.C., acompanha-se algumas transformações no modo


de organização social do mundo antigo, dentre estas, o surgimento da polis e a
organização das cidades-estado. Nos poemas homéricos, já é possível encontrar
indícios dessa forma de organização, como através da relação com o divino e os ritos
religiosos, as ligações de hierarquia, de comércio, e a constituição das instituições
políticas presentes nas obras. Observa-se que, sobretudo na Odisseia, é possível notar
com mais clareza os elementos demarcadores da sociedade retratada nas obras.
Segundo Ferreira (1996), as poleis surgem com um “núcleo comum” de instituições, e
através de suas respectivas funções, auxiliam na organização política e social da
cidade, como a assembleia do povo, o Conselho e os Magistrados. Instituições que
remontam à origem da polis, como o conselho dos anciãos e as assembleias, já
estavam presentes em Homero, e exercem uma importante função no esquema da
narrativa.

A polis grega, enquanto um espaço de comunidade, tinha na assembleia uma


de suas principais organizações deliberativas, desempenhando um papel fundamental
na atuação popular dos cidadãos, sendo um local no qual o dêmos se reunia e decidia
questões relacionadas à vida na cidade. Em Homero, estas assembleias são
apresentadas enquanto um importante meio de interação social e já desempenhavam
algumas funções deliberativas – um espaço no qual se conduzia conflitos relacionados
aos homens e aos deuses –, sendo possível identificar um princípio organizativo que
constitui uma característica dessas instâncias de modo geral. Dessa forma, as
assembleias constituem um importante instrumento dentro dos estudos referentes aos
elementos comunitários representados na obra, relacionando-se diretamente com a
questão da emergência da polis enquanto forma de organização coletiva.

Como já mencionado, a formação da polis grega é uma temática amplamente


discutida dentro dos debates sobre a antiguidade. O momento em que foi iniciado esse
processo, como ocorreu, quais transformações marcam o desenvolvimento desse
|23

Estado grego e sua ruptura com a estrutura que o antecedeu, são alguns dos
questionamentos que perpassam o campo neste momento. Apesar de sua ampla
difusão, a pesquisa em torno da formação da polis ainda é uma temática bastante
nebulosa visto que as fontes dessa época, principalmente a escrita, não revelam tantas
informações acerca desse período12 . Com isso, as pesquisas em torno desse tema são
realizadas sobretudo com o auxílio de outras áreas como a arqueologia e a literatura,
que revelam traços significativos de como se estabeleceu esse sistema. Em A
arqueologia e o estudo da cidade grega, Snodgrass reforça essa dificuldade com as
fontes, ao realizar uma análise acerca da composição da polis, centralizando o papel
da arqueologia. Segundo o autor, ocorre uma abertura nesses campos de pesquisa,
principalmente após 1950, no qual novas evidências passam a serem utilizadas para
compreensão desses estudos, visto que as fontes escritas já se mostravam insuficientes
pela sua inexatidão. Diante desse obstáculo, Snodgrass chega a afirmar que “[...]
podemos refletir sobre uma questão em relação ao tratamento da polis em seu estado
de formação, como um exemplo não histórico, uma vez que ela é praticamente
inexistente na documentação da época.” (SNODGRASS, 2006, p. 272)

Morgan (2003) tece uma análise acerca dos Estados gregos a partir de sua
formação identitária, evidenciando o éthnos como um fator primordial da constituição
de uma identidade política. Segundo a autora, “póleis e éthne eram, então, níveis de
identidade com os quais as comunidades podiam se identificar com entusiasmo e
motivação variáveis conforme o momento.” (MORGAN, 2003, p. 1) Diferentemente
de Snodgrass, Morgan indica a relevância das evidências arqueológicas, mas pontua
também as dificuldades e limitações dessas fontes, indicando como a variação das
identidades influenciam no modo em que Estado é formado. Nesse sentido, ela resgata
materiais referentes a regiões como Tessália, Fócida, Lócris Oriental, Acaia e Arcádia,
cuja as evidências são deixadas de lado dentro dos estudos acerca da polis.

Hansen (2006), por sua vez, ao trabalhar a cultura das cidades-estado na


Grécia antiga, discute a formação da polis no século VIII a. C, apontando essa

12
Acerca da ausência de fontes escritas e o auxílio da arqueologia, ver as considerações realizadas por:
SNODGRASS, A. Archaeology and the Emergence of Greece. Edinburgh, Edinburgh University Press:
2006. (p 269-289). [tradução: Cibele E. V. Aldrovandi; revisão Labeca] e MORGAN, C. Early Greek
States Beyond the Polis. Londres, Routledge: 2003. (p. 1-44). [tradução: Maria C. Abramo; revisão
Labeca
|24

concepção da polis enquanto cidade (fechada em muros, fortificada), e também


enquanto comunidade, remetendo à ideia de cidadãos. O autor faz então um debate
historiográfico, trazendo as contribuições de historiadores e arqueólogos acerca do
tema, como esse sentido de comunidade política antecede a constituição da cidade em
si. Segundo Hansen, “Se compararmos as fontes escritas com a opinião prevalecente
quanto a quando ocorreu a urbanização, temos que concluir que o conceito de polis no
sentido de cidade surgiu entre cem e ou/ duzentos anos antes das cidades a que o
conceito se refere. Isso não é inconcebível, mas é, para dizer o mínimo, estranho.”
(HANSEN, 2006, p. 99)13

Apesar das imprecisões de algumas evidências, esse processo de constituição


da polis é situado por volta do século VIII a. C., marcando o início do período arcaico
grego, mais precisamente entre os anos de 776 e 480 a. C., que data o primeiro Jogos
Olímpicos e o ano da Batalha de Salamina, respectivamente. Ferreira (1996), ao
debater as origens da polis, une as evidências do campo literário, arqueológico e
topográfico como forma de compreender como teria surgido esse sistema político e
social. Essa análise consiste em perceber que o conceito de polis vai além da
construção de um estado político em si, com instituições determinadas, sendo essa
estrutura também englobada a partir do sentido de povo. Já Florenzano (2001)
caracteriza a polis como “... um estado jurídico que atinge seu ponto de realização no
momento em que as relações entre os membros da comunidade, qualquer que seja a
extensão desta, sejam definidas por normas escritas e retiradas da interpretação
arbitrária de indivíduos”, completando ainda que “No fundo, podemos definir a polis
não como uma unidade basicamente territorial, mas, sim, como um conjunto de
cidadãos governados pelas mesmas ferramentas jurídicas” (p. 2). A autora ressalta que
essa maturidade política atingida é fruto de um longo processo de evolução social,
política e econômica, não é desenvolvida logo no início do período arcaico, sendo
considerada uma fase de transição.

13
“a ascensão das cidades na cultura de cidade-estado da Grécia antiga deve ser colocada pelo menos
até o século sétimo a. C, e possivelmente no início daquele século. Não há fundamento para supor um
intervalo de 100 ou 200 anos entre a formação do estado e a formação da cidade: os dois processos
aconteceram lado a lado, sem dúvida em constante interação.” HANSEN, Mogens Herman. Polis, An
Introduction to the Ancient Greek City-state. Oxford University Press Inc. New York, 2006 (p. 100)
|25

4. A estruturação das instituições da polis: a assembleia

Mossé (1984), ao discorrer acerca do poder conferido ao dêmos nesse período,


atenta para os cuidados em situar essa forma logo no início do período arcaico,
apontando algumas questões como decisivas para essa evolução política como o início
da colonização grega, o desenvolvimento do comércio, o aparecimento e a introdução
da moeda, a criação de hoplitas. O processo de colonização grega se desenvolveu em
conjunto com o surgimento da polis por volta do século VIII e perdura até o período
helenístico, levando os gregos a chegarem nas margens do Mediterrâneo, da Europa,
África e Ásia. Essa movimentação dos gregos está ligada a motivos internos como o
excesso de população, as secas e fortes chuvas que acometiam a região, mas,
sobretudo, a dificuldade em abastecer alimentos para toda a população fez com que os
dirigentes enviassem parte de seus habitantes com o intuito de fundar novas colônias,
nas quais os gregos denominavam de apoikia (residência distante)14.

Ferreira (1996), atenta para o domínio da aristocracia no início da polis, que


detinham naquele momento os poderes político, judicial, militar, religioso e
econômico, sendo essa autoridade conquistada ao longo da Idade das trevas. Na
medida em que a aristocracia detinha todo esse poder, as instituições da polis também
serviam a esse grupo seleto até então: “Os nobres exerciam esses poderes através de
um Conselho onde apenas tomavam assento, a título vitalício os chefes das famílias
aristocráticas que pretendiam descender de um herói local ou de um dos antigos reis.
Era esse Conselho que definia a política da polis depois executada pelos Magistrados
(...), escolhidos também eles apenas entre os nobres” (FERREIRA, 1996, p. 4).
Noções de justiça e autonomia do homem, ainda eram muito embrionárias nesse
momento, as leis eram concebidas mais como um “costume” baseado na tradição
(themis), do que a justiça com base no dêmos. O senso de justiça colocado aqui, se
aproxima do que era regido nos poemas homéricos, também por base na themis, como
bem aponta Finley (1982) “Menelau e Antíloco tinham o mesmo estatuto. Esse é um
ponto essencial: entre os heróis, como no código de honra aristocrático das épocas
mais modernas, a justiça dizia respeito apenas aos iguais.” (FINLEY, 1982, p. 105)

14
Intrinsecamente ligado ao processo de surgimento da polis, a colonização grega é um dos pontos que
Finley alega “faltar” em Homero, indicando também a ausência de povoamento que seria uma das
consequências desse processo de colonização.
|26

No entanto, Finley acredita que para o momento em que o poeta escrevia, “o princípio
da comunidade já estava bastante desenvolvido”, o suficiente para que a
administração da justiça assumisse um caráter público. Em contrapartida, o contexto
em que a narrativa se desenvolve, isso não poderia ocorrer dado ao “poder intangível
da opinião pública” (p. 106).

E mesmo essa maturidade política sendo alcançada, assim como qualquer


outro processo histórico, ele não ocorre de forma linear, no século VII a. C. Esparta,
por exemplo, passa por uma crise interna que resulta numa nova partilha das terras
conquistadas entre os cidadãos hoplitas. Atenas, por sua vez, nos fins do século VII a.
C. já constituía uma cidade-estado do tipo aristocrático, governada por nove
magistrados que eram eleitos anualmente e por um Conselho de Anciãos. O dêmos,
nesse momento, até se fazia presente, mas sua participação era extremamente restrita,
e em sua maioria, não consultada. Com a institucionalização do sistema políade, a
aceitação das leis e sua representação das vontades do homem grego, passam a se
tornar algo central que se perpetua até a pólis democrática15. Seria esse então o
conjunto de fatores que levaram a polis grega a ser “o sistema de vida e mestra do
homem”, como aponta Ferreira (1996).

Apesar desses estudos citados divergirem entre si, o que é natural dado o seu
processo de constituição, Ferreira (1996) aponta uma estrutura comum às poleis,
como estas se organizavam socialmente (a clivagem entre as classes sociais, os “livres”
e “não-livres”), a estrutura política, a obtenção da cidadania e a limitação da soberania
popular, os principais órgãos institucionais. Estes últimos eram o Conselho, os
Magistrados e a Assembleia do povo. Quando se estuda as origens da polis, muito se
observa os materiais que indicam algum tipo de vestígio dessa estrutura, como um
determinado grupo social, ou uma forma de organização política, a presença de
alguma instituição. Ambos os poemas também fornecem elementos do que seriam as
principais instituições da polis, como o Conselho dos anciãos e a Assembleia. Se os
estudos acerca da formação desse sistema são nebulosos, a análise em torno da
construção das instituições é mais imprecisa ainda.

15
Sobre as leis e a polis democrática, ver: TRABULSI, José Antônio Dabdab. A democracia ateniense
e nós. In: E-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro
Universitário de Belo Horizonte, vol. 9, n.o 2, Agosto/Dezembro de 2016
|27

Apesar da vastidão das discussões envolvendo a questão homérica, existe um


consenso entre os especialistas da área que situam a composição e fixação dos poemas.
No entanto, quando se trata em situar o pano de fundo, o contexto sobre o qual a
narrativa se passa, há um atrito entre os pesquisadores, destaco aqui dois pelo qual
guio este trabalho: Moses Finley e Ian Morris. Em O Mundo de Ulisses (1982), Finley,
nos capítulos “A riqueza e o trabalho”, e “Domínio, família e comunidade”, nos quais
o autor aborda o funcionamento da sociedade grega concebida por Homero, refletindo
questões relativas ao trabalho e a agricultura, escravidão, sistema e ao comércio.
Segundo o autor, os poemas homéricos são marcados por uma clivagem horizontal: de
um lado se tem os aristoi, que compõe a nobreza e detém a riqueza e o poder seja em
tempos de paz ou de guerra, e do outro, se encontravam o restante do povo, “a
multidão que nenhum termo técnico definia coletivamente” (FINLEY, 1982, p. 51).
Essa manutenção das classes, devia-se a própria economia descrita no poema que
tornava impossível a criação de novas fortunas, assim como de novos grupos de
nobreza.

Ao contrário da distinção básica entre aristocratas e plebeus, a clivagem e


separação entre estes não era bem destacada nos poemas homéricos, e apesar de ser
possível resgatar nas epopeias pontos relacionados à estrutura sócio-política, em
nenhum dos poemas há o vestígio da polis no sentido político clássico, sendo esta
apenas uma referência a uma cidade-estado comum16. Além disso, embora a
arqueologia forneça uma certa ligação entre elementos citados na Ilíada, com aspectos
da sociedade micênica, são apontados alguns anacronismos presentes nas obras
homéricas, onde “os seus heróis viviam nos grandes palácios da Idade do Bronze,
desconhecidos no seu tempo” (Ibid., p. 42). Com isso, Finley situa então o mundo de
Ulisses entre os séculos X e IX a. C., embora apresente alguns aspectos do período
micênico, Homero estaria retratando mais uma sociedade passada, do que o tempo
presente em que o mesmo viveu.

16
Analisando o debate realizado por Mossé (1984) e Ferreira (1996), a própria clivagem social presente
no início da formação da polis, no século VIII a. C. não pode ser entendida como bem consolidada,
dada a ausência das fontes. A polis regida por uma lei que abrangesse a todos, cujo poder de escolha
concentrava-se no dêmos, só apresenta indícios nos fins do século VII a. C.
|28

A leitura de Finley sobre a sociedade em Homero não constitui uma


interpretação única, sendo a análise do tema amplamente debatida. Starr (2005), ao
traçar um debate sobre as Assembleias do século V a. C, na Atenas clássica, discute
também seu possível aparecimento na sociedade grega. Nesse sentido, o autor fala da
dificuldade em encontrar assembleias em Atenas antes do século VI a. C., o que
necessariamente não quer dizer que elas não existissem. Starr compreende a
estruturação da assembleia, como a consolidação das outras instituições da polis, no
caso de Atenas, como um longo processo histórico, que perpassa a atuação de Sólon,
as Reformas de Clístenes; a invasão persa; a atuação de Elfiates; a era de Péricles; a
Guerra do Peloponeso, processo este que só viria a se tornar mais claro com as
Reformas de Sólon no ano 594. No caso de Homero, segundo o autor, as assembleias
não seriam estruturadas, funcionando apenas como forma de transmitir informações,
mas não de modo político que rege os assuntos referentes à polis. (STARR, 2005)

E de fato, não há como negar que as assembleias homéricas não


acompanharam esse processo político apontado por Starr, no entanto, embora postas
de maneira distinta, já desempenhavam algumas funções deliberativas – constituindo
um espaço no qual se conduzia conflitos relacionados aos homens e aos deuses –,
sendo possível identificar um princípio organizativo que se assemelha não só as
assembleias da democracia ateniense, mas constitui uma característica comum dessas
instâncias de modo geral17. Por outro lado, alguns autores discutem como as
assembleias em Ítaca, poderiam ter sido capazes de organizar algumas das atividades
na Grécia do século VIII a. C., indicando que a sociedade representada por Homero se
encaixa no contexto vivido pelo poeta. Morris (1986), em seu trabalho The use and
abuse of Homer, rebate algumas das colocações feitas por Finley em O mundo de
Ulisses, colocando que "o cerne do argumento de Finley contra uma data do século
VIII é a ausência de instituições que ele sente devem ter existido na época do poeta.

17
Ao apontar uma característica comum entre estas instituições, evidencio o princípio organizativo e
deliberativo, sem ignorar suas respectivas singularidades, das assembleias, sendo esta, uma instituição
que remonta o início da polis e perdura até o período clássico, com o nascimento e solidificação da
democracia, consagrando também um dos principais órgãos desse sistema. Acerca das funções
desempenhadas por esta na antiguidade, ver: STARR, C. G. O nascimento da democracia ateniense - A
assembleia no século V a.C. Trad: Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Ed. Odysseus; 2005; como
também: HANSEN, Mogens Herman. The Concepts of Demos, Ekklesia and Dikasterion in Classical
Athens. Greek, Roman, and Byzantine Studies 50 (2010), que ao analisar os conceitos de dêmos,
ekklesia e dikasterion, evidencia o conceito de demos concebido enquanto instituição política
(relacionando-o com a ekklesia), e no sentido de povo ateniense no geral (p. 507-515).
|29

Seus escritos são um pouco vagos quanto ao que devemos esperar encontrar em
Homero ou não [...]. O que está faltando em Homero que existiu no século VIII?"
(MORRIS, 1986, p. 96)

Mossé, ao indicar a participação ativa do dêmos no século VII, alega que


“embora podendo, por vezes, ser chamado a juntar-se na ágora, não tinha qualquer
periodicidade de reunião e, sobretudo, não possuía poder algum de decisão.” (MOSSÉ,
1984, p. 157). Essa colocação se aproxima do que diz Finley, que por sua vez,
compreende estas assembleias apenas como um espaço de transmissão de informações:
“A assembleia nem votava nem tomava decisões. A sua função era dupla: confrontar
os argumentos prós e contras e exprimir ao rei ou ao comandante do campo a opinião
predominante.” (FINLEY, 1982, p. 77) Ao traçar uma comparação com o que é
debatido acerca do processo de formação da polis, e como esse período é retratado
nos poemas homéricos, é possível identificar que muitos dos autores que saem em
defesa - destaco aqui Starr (2005) e sobretudo Finley (1982) - de que Homero não
desenvolve em sua narrativa qualquer vestígio de uma estrutura políade, acabam por
“ignorar” que Homero constitui uma fonte de transição.

Os poemas homéricos estão situados no século VIII a. C., sendo fixado e


escrito séculos mais tarde. Os séculos VIII e VII são lidos enquanto período de
transição da Idade do ferro, para época arcaica grega. É nesse momento que
assistimos à queda dos reis, à formação do domínio aristocrático, ao início da
colonização grega, à formação das cidades-estado e à estruturação da polis, que viria a
resultar, séculos a frente, no período clássico, na formação do sistema políade grego.
Homero se encaixa exatamente nesse período de constantes transformações, e os
vestígios e a maturidade política e social que lhe é cobrada, também foi fruto de um
longo processo histórico. A formação da polis não implica necessariamente no
desaparecimento do oîkos. Como o próprio Morris coloca, “portanto, embora falemos
de Homero inspirando-se em sua própria cultura, que deve ter sido seu modelo
principal, não está de forma alguma implícito que Homero estava tentando descrever
conscientemente o mundo do século VIII.” (MORRIS, 1986, p. 120).
|30

CAPÍTULO III

5. As assembleias homéricas

As assembleias, por serem uma das principais instituições da polis, estando


presente desde o início de sua formação, é um objeto de estudo amplamente discutido
quando se trata da configuração social e política dos poemas. Em sua tese, Alfredo
Julien (2006), evidencia essa discussão levantando observações da crítica
especializada em torno do tema, sobretudo no que diz respeito às configurações
sociais da obra, enfatizando o papel das assembleias. Ao longo de sua análise, são
resgatados os vocábulos “ágora, dêmos e laós” que ao serem atrelados ao sentido de
povo, e estabelecerem relação com a ecclesia, a fixação desses termos acabam por
auxiliar na compreensão dos estudos das formas sociais retratadas por Homero.
Segundo o historiador, o vocábulo ágora é utilizado tanto para denominar o espaço
físico – praça pública –, como o social representado pelas assembleias, estas últimas,
por sua vez, são empregadas no esquema de ambas as narrativas enquanto um
importante mecanismo de interação social, utilizado enquanto local de discussões e
resolução de conflitos (JULIEN, 2006).

Como já mencionada, tanto a Ilíada, como a Odisseia, utiliza na organização


das reuniões em assembleia no esquema da narrativa18. A Ilíada é constituída por dez
assembleias, organizadas em prol de discutir assuntos relacionados aos homens19 –
aqueus e troianos –– no tocante à Guerra de Troia. Na Odisseia, por sua vez,
identificam-se a formação de duas reuniões em assembleia, que são direcionadas a
discutir o tema da narrativa: o regresso de Ulisses. Nesta primeira, as assembleias
eram organizadas num contexto de guerra (o conflito entre aqueus e troianos), e, de
certa forma, acabavam por obedecer e seguir a certas discussões e pautas voltadas
para o meio inserido. A segunda, narra acontecimentos posteriores à guerra, a busca
de Telêmaco pelo seu pai, e as aventuras de Odisseu em seu retorno à Ítaca. Apesar de
empregadas em ambos os poemas, a narrativa pela qual a Odisseia é contada, revela
traços mais precisos acerca de qual seria esta configuração social descrita, como

19
Faço aqui esta distinção devido ao fato de existir as assembleias realizada para discutir assuntos
relacionados aos deuses.
|31

aponta Finley (1982) “A Odisseia, em particular, abrange um vasto campo de


atividades e relações humanas: estrutura social e vida familiar, realeza, aristocracia,
gente do povo, banquetes, agricultura, criação de porcos” (FINLEY, 1982, p. 32).
Para este trabalho, fora evidenciada, na Ilíada, a assembleia que ilustra o caso de
Tersites(Ilíada., II, 215-260). E na Odisseia, a assembleia de Telêmaco e a do
julgamento de Odisseu (Odisseia. II, 6-259 / XXIV, 205-549).

Finley, ao analisar o aspecto comunitário do mundo homérico, evidencia as


limitações dessas instâncias: “A assembleia nem votava nem tomava decisões. A sua
função era dupla: confrontar os argumentos prós e contras e exprimir ao rei ou ao
comandante do campo a opinião predominante. A aclamação representava o único
meio de avaliar a opinião [...] O rei era livre de tomar ou não em conta os sentimentos
expressos [...]”, e continua “A assembleia era para os reis um modo de testar a opinião
pública, da mesma maneira que o conselho de anciãos exprimia o sentimento dos
nobres.” (FINLEY, 1982, P. 77-79) Starr, ao discorrer sobre o aparecimento das
assembleias, também compartilha da interpretação de Finley: “[...] nos épicos
homéricos, as assembleias não eram estruturadas e existiam, em ampla medida, para
transmissão de informações.” (STARR, 2005, p. 14) Finley caracteriza as instituições
homéricas enquanto “maleáveis” e “flexíveis”, presentes ali apenas como um arranjo
sem grande significado e profundidade política, devido ao themis.

6. Uma análise das passagens em assembleia na Ilíada

É possível identificar na narrativa a limitação da participação popular nas


assembleias apontada pelos autores acima. E de fato, na Ilíada, a convocação das
reuniões e fala diante assembleia, era conduzida, sobretudo, por Agamemnon,
Aquiles, Heitor, Nestor, personagens que pertenciam ao núcleo central da trama e
pertenciam à camada dos aristoi, ou possuem um alto cargo dentro da tropa. Tersites é
o único membro dos aqueus, pertencente a uma camada mais baixa, que exerce uma
fala perante a assembleia, mas logo é repreendido por Ulisses ao ter contrariado
Agamêmnon:

Todos os outros se sentaram, contidos nos seus


assentos. Só Tersites de fala desmedida continuava a
|32

tagarelar – ele que no espírito tinha muitas e feias palavras,


sem nexo e sem propósito, para vilipendiar os reis [...]. Era
o homem mais feio que veio para Ílion: [...]. Para
Aquiles e Ulisses era ele especialmente odioso, pois contra
ambos disparatava; mas agora era contra o divino
Agamêmnon que gritava estridentes insultos. Muito irados
contra ele estavam os Aqueus no coração. Mas ele gritava
em voz alta e assim insultava Agamêmnon: “Filho de
Atreu, estás descontente? Falta-te alguma coisa? As tuas
tendas estão cheias de bronze e muitas mulheres escolhidas
estão nas tuas tendas, essas que nós Aqueus te demos em
primeiro lugar, quando saqueávamos uma cidade [...].
Assim falou Tersites, insultando Agamêmnon, pastor
do povo. Rapidamente se postou junto dele o divino
Ulisses; fitando-o com o sobrolho carregado, repreendeu-
no com duras palavras: “Tersites de fala desbragada
(embora até sejas bom orador), controla-te! Não queiras
entrar, sozinho, em conflito com reis. Pois eu afirmo que
não há criatura mortal mais abjeta que tu, entre todos
que para debaixo de Ilíon vieram com os Atridas. Por isso
não devias andar com os nomes dos reis na boca, nem
proferir injúrias, nem preocupar-te com o regresso [...].
(Ilíada, II, 215-260 – grifos nossos).

A palavra tomada por Tersites na assembleia é muitas vezes resgatada no


estudo das representações sociais do poema, na medida em que a conduta do
personagem pode apontar elementos referentes a clivagem social ali presente
(JULIEN, 2006). O tratamento dado à conduta do aqueu levanta o questionamento de
que até onde os membros atribuídos a uma camada baixa tinha o direito de tomar a
fala, seria sua participação reduzida a uma simples expressão? No entanto, vale
ressaltar também que a repressão feita por Ulisses não ocorreu apenas por Tersites ser
um “membro inferior”, mas sim, pelo seu desrespeito perante ao magnífico
Agamêmnon, fato este também ilustrado pela expressão dos demais presentes em
assembleia.
|33

Finley, ao mencionar a conduta de Tersites em assembleia, coloca “o povo


devia escutar, depois aclamar ou discordar, mas não devia tomar a palavra” (p. 78). -20.
Todo o desenrolar da Ilíada, em torno do nono ano da guerra de Troia, gira em torno
desses personagens21. Não existe pensar tal poema, sem associá-lo a figura de Heitor,
Aquiles, Agamemnon e Nestor.22 As dez assembleias presentes na obra, tem por
objetivo decidir questões referentes a guerra, sendo focadas principalmente na
resolução de conflitos e decisão da próxima estratégia a ser tomada.23 Observa-se que
em todas elas, não cabem a participação de outros personagens24, sendo estes
apresentados através de expressões indicando o silêncio, a concordância ou
discordância, a inquietude: “Em agitação turbulenta estava a assembleia e a terra
gemeu sob o peso dos homens sentados. Ouviam-se berros e com seus gritos tentavam
nove arautos contê-los, para que parassem de berrar e ouvissem os reis criados por
Zeus. A custo, sentara o povo, contido em seus assentos, tendo já parado o clangor.”
(Ilíada. canto II, 95-100). Finley (1982) pontua que o rei tinha poderio para tomar
sozinho uma decisão, sem consultar os demais, entretanto, o fato de Homero
empregar as assembleias na narrativa, demonstra uma certa preocupação com a
opinião pública, mesmo que esta fosse limitada. Fica evidente, que a assembleia na
Ilíada está longe de ter uma configuração cuja opinião do dêmos prevalece, mas esta,
exerce seu princípio organizativo obedecendo aos valores políticos e sociais dispostos
ao aedo, sobretudo obedecendo ao contexto histórico em que a obra se desenvolve.

20
“Canta ó deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida (mortífera!, que tantas dores trouxe aos Aqueus e
tantas almas valentes de heróis lançou no Hades, ficando seus corpos como presa para cães e aves
desde o momento em que primeiro se desentenderam o Atrida, soberano dos homens, e o divino
Aquiles” (Ilíada. I-VII; grifos nossos). Logo no primeiro verso, Homero define o tema da Ilíada e a
trama que move a narrativa.
21
No texto de introdução da Ilíada, Jones contabiliza que 40% das falas tomadas dentro do poema, são
de Aquiles: “Mas, na Ilíada, há nada menos que 666 falas, constituindo mais de 40% do conjunto total
da obra. O fato ainda mais notável de todos é que embora Aquiles esteja ausente em mais da metade da
Ilíada, sua voz é ouvida muito mais que qualquer outro.” (p. 33)
22
Ao falar da valorização dessa aristocracia em Homero, leva-se em conta também para quem os
poemas eram cantados: “Quando lemos a Ilíada e a Odisseia, não podemos esquecer que esses poemas
eram destinados a serem recitados para um auditório de homens ricos e poderosos, capazes de ir à
guerra armados dos pés a cabeça” (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 15).
23
Ver as assembleias organizadas para decidirem acerca da libertação de Briseida, filha de Crises
(sacerdote de Apolo), que estava sob posse de Agamêmnon. As discussões em torno desse conflito se
estenderam por duas sessões de assembleia (Ilíada, I, 17-52 e 54-305). As assembleias em torno desse
conflito, são as que dão início à narrativa. Na primeira, Agamêmnon recusa o pedido de resgate feito
por Crises, em prol da libertação de sua filha. O sacerdote então recorre a Apolo, que, por sua vez,
envia a peste avassaladora ao acampamento em que se encontrava os aqueus. Diante da situação,
Aquiles convoca uma assembleia, a segunda, na qual ocorre um embate com o Agamemnon. A
discussão resulta na retirada de Aquiles dos combates, que pede à sua mãe, a deusa Tétis, que interceda
junto a Zeus para que seja vingado.
|34

Em contrapartida, Morris indica que “A assembleia dos guerreiros em Troia


era menos poderosa, mas representa um contexto político muito diferente. Ela poderia
fazer seus desejos aplaudindo e torcendo, mas as decisões estavam na mão dos
basileus. Na ocasião, a assembleia poderia até mesmo ser dissolvida e a palavra final
colocada nas mãos de uma reunião de nobres no jantar” (MORRIS, 1986, p. 101).
Como já mencionado, o funcionamento da assembleia pode ser observado em ambos
os poemas, no entanto, a narrativa pela qual a Odisseia é contada, revela traços mais
precisos acerca de qual seria esta configuração social descrita, como aponta Finley:
“A Odisseia, em particular, abrange um vasto campo de atividades e relações
humanas: estrutura social e vida familiar, realeza, aristocracia, gente do povo,
banquetes, agricultura, criação de porcos” (FINLEY, 1982, p. 32). Trabulsi (2001),
aponta que “Em suma, pudemos observar-que, nos poemas homéricos, mobilização
política e mobilização militar acontecem juntas. Mais militar na Ilíada, mais política
na Odisséia, sem que possamos realmente separá-las.” (p. 44).

7. Analisando a assembleia em Homero: a Odisseia

Diferentemente da Ilíada, na Odisseia é possível identificar apenas duas


assembleias: a assembleia de Telêmaco e o julgamento de Odisseu. A primeira
assembleia é identificada logo no início da obra (Odisseia, II, 6-259) sendo convocada
por Telêmaco, sob influência de Atena, para discutir a situação dos pretendentes de
Penélope. Logo de início, é possível perceber a semelhança entre a organização
estrutural da assembleia presente tanto na Ilíada, como na Odisseia: “Sentou-se no
assento de seu pai; os anciãos cederam-lhe o lugar. Dentre todos foi o herói Egípcio o
primeiro a falar, um homem vergado pela idade, cuja sabedoria era imensa”
(Odisseia , II, 14-16). Finley, ao discutir as assembleias homéricas pontua que era de
costume o mais velho falar primeiro: “[...] aquele que desejava tomar a palavra
levantava-se; [...] queria o costume que o mais velho tomasse a palavra em primeiro
lugar. Em seguida era o curso do debate mais do que a idade que determinava a ordem
dos oradores.” (FINLEY, 1998, p. 77)

Acerca dessa estruturação, em A assembleia de Telêmaco como espaço de


experiências (2010), Alexandre de Moraes resgata a assembleia de Telêmaco
|35

enquanto um espaço antropológico, evidenciando a questão da etariedade, mais


precisamente a transição etária da juventude, para “idade adulta”, e como presidir uma
atividade política, nesse caso a assembleia, colabora para essa transição. Sobre a
assembleia, ele pontua: “Nesse momento, há a primeira menção à assembleia como
um lugar antropológico, definidor de identidades etárias. Desde a Ilíada, a atividade
política é um dos privilégios associados aos idosos, visto que a sociedade homérica
tem um particular apreço pelos conhecimentos acumulados através da longevidade.”
(MORAES, 2010, p. 16)

Descrito como o mais velho, dentre os presentes, Egípcio é o primeiro a tomar


a fala, emocionado, questiona o fato daquela ser a primeira reunião em assembleia
desde que Ulisses havia partido para a guerra:

Escutai agora, homens de Ítaca, o que tenho para


dizer. Nunca houve entre nós, uma assembleia desde que o
divino Ulisses partiu nas côncavas naus. Quem nos chama
agora? Quem sentiu tal necessidade dentre os homens mais
novos ou dentre os mais velhos? Será que ouviu a notícia
de que sobrevirá um exército, notícia que nos comunicaria
com clareza, por ter sido o primeiro a saber? Ou será outro
o assunto público sobre o qual quer discursar? (Odisseia
II, 26-34).

Tomando por base a passagem citada, teriam então os habitantes de Ítaca


ficado todo esse período sem discutir os assuntos pertinentes à cidade, ou/e
relacionados ao povo? No entanto, a passagem também indica que a convocação da
assembleia já era realizada antes da partida de Ulisses. Identifica-se também, ainda na
fala de Egípcio, questões relacionadas à natureza desta assembleia, se a mesma era de
caráter público, ou seria algo privado, relacionado ao oîkos.

Dentro da passagem, apesar de ter sido delimitado por Telêmaco que a


assembleia era de caráter privado, percebe-se uma mescla dos assuntos de cunho
privado e público. Embora pareça tratar de uma “necessidade própria”, envolvendo a
casa de Telêmaco, envolve também uma pauta de domínio público – as atitudes dos
pretendentes, e a consequência desses atos –, na medida em que o filho de Odisseu
|36

perante a assembleia clama a indignação dos demais presentes diante a situação


provocada25. Julien (2013), ao debater o caráter público e privado das assembleias
homéricas afirma: “Porém não é aos pretendentes que Telêmaco dirige sua queixa,
mas aos demais presentes na assembleia”. Ele começara afirmando que trataria de
uma questão particular, observando que os pretendentes estavam se comportando de
maneira errada, consumindo os seus bens, mas ao clamar para que saíssem de sua casa,
não se dirige diretamente a eles, mas ao resto da assembleia. “O caso é particular, mas
Telêmaco envolve toda a comunidade”26 (JULIEN, 2013, p. 62)

Ainda na difícil tentativa de fazer com que os pretendentes desistissem,


Telêmaco tenta resgatar a memória de Odisseu como forma de motivar o público da
assembleia por meio de uma comoção popular. Nesse sentido, destaca-se a fala de
Mentor perante a assembleia: “Escutai agora, homens de Ítaca, o que tenho para dizer
[...]”, exalta a figura de Ulisses, e por fim, coloca: “É o resto do povo que censuro, o
modo como todos vos sentais em silêncio, evitando abordá-los com discursos que os
refresassem, sendo vós muitos, e eles poucos.” (Odisseia II, 228-241). Julien (2013)
classifica a fala de Mentor enquanto um discurso que faz alusão ao dêmos, no qual,
este se dirige aos itacenses de forma geral, não aos pretendentes. Verifica-se então, a
partir das passagens da assembleia de Telêmaco, uma interação entre as esferas do
oîkos e do dêmos.

É notória a distinção no modelo organizativo das assembleias presentes na


Odisseia. Já nesta primeira mencionada, é possível perceber uma maior dinamização
no que diz respeito a “tomar a fala” perante a ecclesia. A identificação do público
presente, as reações perante ao que Telêmaco proferia, torna-se mais notável,
deixando de lado a perspectiva que identifica os diálogos desenvolvidos em
assembleia na Ilíada enquanto uma conversa privada, a dois27. O canto XXIV, no qual
se desenrola o julgamento de Odisseu, é dividido em duas partes: do I ao verso 204,

25
“[...] nem há outro assunto público sobre o qual deseje discursar. A necessidade é minha, pois sobre
a minha casa se abateu uma dupla desgraça: perdi o nobre pai, que vos reinou [...] Mas a outra desgraça
é pior, pois em breve toda minha casa destruirá e a mim tirará os meios de subsistência [...]”. (Odisseia,
II, 44-49)

27
“Ao decorrer da segunda assembleia cujo propósito era resolver a libertação de Briseida, Aquiles
toma a palavra seis vezes, e Agamemnon quatro; mas ao longo de todo o debate dirigem-se sempre
directmente um ao outro como dois homens que altercam em privado (...)” (FINLEY, 1982, p. 78)
|37

onde Hermes guia a descida ao Hades; e do 205 ao verso 547, no qual a narrativa se
volta para Ulisses em Ítaca28.

Já na segunda assembleia retratada na obra, essa reação popular é representada


com mais clareza. A “assembleia da vingança”, como denomina Julien, discorre o
episódio protagonizado por Ulisses, no qual ele assassina os pretendentes de Penélope,
gerando assim revolta entre os itacenses que clamam por justiça, e por consequência,
um sentimento de compaixão dentre os aqueus:

Amigos, foi uma enormidade o que aquele


homem fez contra os Aqueus. Muitos e valentes foram
levados por ele nas naus. Mas ele perdeu as côncavas
naus, e todos esses homens morreram. E agora outros
mata no seu regresso, os melhores dos Cefalênios. [...] Da
minha parte, nenhum prazer sentiria em estar vivo;
preferiria morrer e juntar-me no Hades aos mortos. Vamos
agora, não vão eles escaparnos, atravessando o mar
(Odisseia, XXIV, 425-439; grifos nossos).

Haliterses em sua fala, aponta que aquilo só ocorrera devido ao fato de que os
pretendentes não quiseram escutar a ele e a Mentor, desrespeitaram Odisseu e sua
nobre esposa, e agora estão arcando com as consequências:

Ouvi agora, homens de Ítaca, o que tenho para vos


dizer! Devido à vossa própria covardia, ó amigos,
aconteceram estas coisas; pois não quisestes obedecer-me,
nem a Mentor, pastor do povo, quando vos dissemos para
pôr cobro à loucura dos vossos filhos, que praticaram atos
de monstruosa vergonha, dissipando a riqueza e
desonrando a esposa de um homem nobre [...] (Odisseia
XXIV, 450-460).

A assembleia aqui analisada fornece um elemento diferente, o da dualidade,


marcando essa divisão de opiniões entre o público, do que fazer perante ao ocorrido.

Acerca dessa divisão de temáticas presentes no canto, ver: GOETTEMS, Míriam Barcellos. O Canto
28

XXIV e a unidade na Odisseia. Classica, Sao Paulo. 7/8: 181-193, 1994/1995.


|38

Julien (2013) evidencia o padrão de composição das cenas de assembleia, no qual o


atrito entre os que estão discursando não leva necessariamente a divisão dos presentes
em apoio a uma ou outra posição. Percebe-se aqui novamente a proximidade entre as
esferas do público e do privado, na medida em que a revolta por parte dos parentes
configura uma posição pública, no entanto, o anseio pela vingança diante desse
ocorrido, classifica uma posição particular.29 A ausência de unidade e a passividade
do público apontada por Julien, é inclusive criticada ainda na assembleia de Telêmaco:
“Não! É o resto do povo que censuro, o modo como todos vos sentais em silêncio,
evitando abordá-los com discursos que os refreassem, sendo vós muitos, e eles
poucos.” (Odisseia. II, 239-241).

Trabulsi (2001), defende que existem várias indicações de que Homero


detinha um conhecimento preciso acerca do funcionamento político das assembleias
naquele contexto30: “As reuniões da Assembléia, diante de Tróia ou em Ítaca sempre
se desenrolam em momentos críticos, quase que de ruptura política, quando o rei ou o
chefe precisa do apoio do povo.” (p. 26). Ao chegar à terra dos ciclopes, “os
arrogantes sem lei”, como coloca Homero, o autor utiliza a existência da assembleia
para definir os limites do “ser civilizado”: “Para eles não há assembleias deliberativas
nem leis” (Odisseia. III, 132). Morris (1986), alega que “os debates em Troia
poderiam caber igualmente bem em situação do século VIII; de fato, a aclamação
pública e a capacidade dos nobres de derrubar os desejos de a assembleia lembra de
nada mais do que o relato de Plutarco sobre o golpe espartano que provavelmente data
do século VII.” (p. 102). Finley (1982), pontua que Telêmeco fracassa em seu
objetivo de mobilizar a opinião pública, caracterizando o dêmos presente enquanto um
“estado de neutralidade”.
Trabulsi, assim como Morris, tecem uma crítica à visão proposta por Finley,
que por sua vez, situa os poemas nos séculos X e IX a. C., alegando a clara
minimização do papel desempenhado pelas assembleias. No entanto, este primeiro

29
“Não há nessa assembleia a constituição de um corpo coletivo pensado em termos de unidade. Não
há uma votação na qual a minoria se obriga a acompanhar a decisão da maioria, no sentido da
realização de uma ação conjunta. Os eventos nela descritos não podem ser caracterizados por uma
consulta ao povo para saber qual seria a sua vontade para traduzi-la em ação política, em nome do todo.”
(JULIEN, 2013, p.72)
30
Na assembleia utilizada para o julgamento do comportamento de Odisseu perante os pretendes, no
momento de concessão das honras fúnebres, é possível identificar já uma menção à ágora: “Depois
foram todos para ágora, entristecidos. Levantou-se Eupites e dirigiu-lhes a palavra.” (Odisseia XXIV,
420-421)
|39

reconhece que as obras também não estão plenamente situadas numa estrutura políade.
E de fato, como já mencionado, Homero recorre a várias temporalidades para
desenvolvimento de sua narrativa, havendo assim uma mescla de elementos que
impossibilita essa delimitação temporal da obra. No entanto, a discussão em torno da
questão homérica, que situa os poemas no século VIII, torna-se evidente como a
realidade histórica da polis influenciou na composição dos poemas. Finley, em O
mundo de Ulisses, não deixa de estar correto em sua evidência do domínio do oîkos, e
a ausência do dêmos na tomada de decisões, mas essa estrutura não anula os indícios e
a influência da realidade histórica na obra. Os deuses, as criaturas míticas, os heróis e
as batalhas de Homero se movem em um mundo real.

Embora a assembleia homérica ainda não obedeça a estrutura daquelas


apontadas por Starr (2005) por volta do século VI e início do V, esta já exercia a
função de organização coletiva e consulta pública. O fato de Homero empregar as
assembleias na narrativa, demonstra uma certa preocupação com a opinião pública,
mesmo que esta fosse limitada. Limitação esta que é aceitável dado o contexto
histórico em que viveu o poeta e composição das obras. Ao analisar essas instâncias
dentro do poema, se faz necessário entender que as mesmas foram fruto de um longo
processo antes de atingir sua organização política clássica, sendo suas funções
mudadas ao longo dos séculos. Homero é situado num período de transformações
políticas e sociais gregas, assim como o processo de formação da polis, e por mais
que ele não reflita diretamente uma estrutura políade, o contexto em que o mesmo é
colocado, o século VIII a. C, o início da época arcaica, por si só, também não reflete
claramente estas estruturas que passaram a ser melhor delimitadas ao fim século VII a.
C. em diante. Não se pode exigir de Homero uma organização política que fora
consolidada após anos da composição dos poemas. A assembleia em Homero exerce
seu princípio organizativo obedecendo aos valores políticos e sociais dispostos ao
aedo.

8. Estruturação das assembleias homéricas


|40

Como forma de compreender melhor seu funcionamento, fora organizada uma


tabela contendo a estrutura geral das assembleias presentes nos poemas. Esta foi
dividida em quatro partes, para se obter uma visão mais ampla dessa organização: a
passagem na obra (cantos e descrição); quem toma a palavra durante as reuniões; o
número de vezes em que o personagem exerce a fala; e a manifestação do dêmos, se
entende aqui como o público, presente nessas assembleias.

A ILÍADA

Passagem na obra Quem toma a palavra N° de vezes que toma Reação do dêmos
diante a assembleia a fala presente

Canto I, 17-52 Crises suplica pela sua 1 (x)


filha (ancião)
Agamemnon recusa o
– –
pedido de resgate feito
Leto reza para Apolo 1 (x)
por Crises em prol da
(ancião)
libertação de Briseida,
sua filha
Canto I, 53-307 Aquiles (herói) 1(x) O dêmos presente se
Desentendimento Calcas (ancião/ sábio) restringe aos anciãos
(querela) entre Aquiles que tomam a palavra
Aquiles 1(x)
e Agamemnon nesse momento
Calcas 1(x)
Agamemnon direciona 1(x)
a fala para Calcas
(rei/herói)

Aquiles direciona a 1(x)


fala para Agamemnon

Agamemnon direciona
a fala para Aquiles 1(x)

Aquiles direciona a
fala para Agamemnon 1(x)

Agamemnon direciona 1(x)


a fala para Aquiles

Aquiles direciona a
fala para Agamemnon 1(x)

Nestor (orador/ancião) 1(x)


|41

Agamemnon responde 1(x)


Nestor

Aquiles o interrompe
1(x)

Canto II, 50-154 Agamemnon delibera 1 (x) “Assim falou; a todos


agitou o coração no
Agamemnon se reúne
Nestor toma a palavra peito por entre a
com seu exército em
e logo se retira da 1 (x) multidão, a todos
assembleia para decidir
assembleia quantos não
a próxima estratégia a
participaram do
ser tomada
Agamemnon 1 (x) Conselho. E a
assembleia foi posta
Tersites, considerado em movimento como
(207-398)
um membro de baixo 1 (x) as grandes ondas no
escalão, contraria mar de Icária (...) com
Aqueus retornam ao
Agamemnon a violência do seu
combate; fala de
sopro e faz vergar as
Tersites
Odisseu repreende espigas – assim a
Tersites (herói) 1 (x) ssembleia foi posta em
movimento.” (143-
O dêmos fala, 149)
repreendendo Tersites 1 (x)
“Todos os outros se
Odisseu fala, favorável sentaram, contidos nos
ao retorno dos 1 (x) seus assentos. Só
combates Tersites de fala
desmedida continuava
Nestor delibera 1 (x) a tagarelar.” (212-213)

Agamemnom responde 1 (x) “Assim falou Tersites,


Nestor insultando
Agamemnon, pastor do
povo.” (243-244)

“Assim falava a
multidão”, reação do
povo diante a fala de
Tersites. (270-276)
Canto II, 788-808 A deusa Íris toma a 1 (x) “Estavam eles na
fala assemelhando-se a assembleia perto dos
Os troianos recebem a
Polites portões de Príamo e
notícia do ataque
encontravam-se todos
reunidos, tanto novos
quanto velhos.” (788-
789)
Canto VII, 325- Nestor inicia a 1 (x) “Assim falou; e com
assembleia ele todos os reis
Rejeição do acordo de –
concordaram” (344)
paz por parte dos
aqueus

Antenor toma a fala
1 (x)
(caracterização
Em paralelo, ocorria
resumida ao adjetivo
uma assembleia entre
|42

os troianos (345-380) “prudente”) 1 (x)


– –
Alexandre (herói) 1 (x)

Príamo (rei)

Retorna a assembleia Ideu, transmissor do “Assim falou, e todos


1 (x)
entre os aqueus (384- acordo (membro do permaneceram em
– exército) silêncio.” (398)

Diomedes fala “Assim falou; e


contrário ao acordo de 1 (x) gritaram alto todos os
paz (domador de filhos dos Aqueus,
cavalos/herói) aplaudindo o que
dissera Diomedes
Agamemnom fala domador de cavalos.”
1 (x)
dirigindo-se a Ideu (403-404)



Ideu chega com a O anúncio de Ideu


notícia da recusa (414- encerra a assembleia “Ora, na assembleia
420) dos troianos estavam sentados
Troianos e Dardânidas,
todos reubidos, à
espera do momento em
que chegaria Ideu. Ele
chegou e transmitiu a
sua mensagem, em pé
no meio deles.” (414-
417)
Canto VIII, 488-543 Heitor convoca a 1 (x) “Assim falou Heitor; e
assembleia – fala única os troianos gritaram
Após uma batalha
alto.” (542)
intensa, Heitor convoca
a assembleia de
troianos e jura derrotar
os aqueus
Canto IX, (8-173) Agamemnom convoca 1 (x) “(...) ordenando os
a assembleia e é o arautos de voz
Agamemnom propõe
primeiro a tomar a fala penetrante que
fuga dos aqueus
convocassem para a
Diomedes toma a fala assembleia cada
1 (x)
divergindo de homem pelo nome,
Agamemnon mas sem gritarem alto.
(...) Sentaram-se na
Nestor toma a fala duas assembleia,
vezes seguidas 2 (x) acabrunhados;” (8-15)

Agamemnon dirige-se “Assim falou; e todos


a Nestor 1 (x) os outros ficaram em
silêncio. Muito tempo
Nestor replica calados sofreram os
Agamemnon 1 (x) filhos dos Aqueus”
(29-30)

“Assim falou; e
|43

gritaram alto todos os


filhos dos Aqueus,
aplaudindo o que
dissera Diomedes,
domador de cavalos.”
(50-51)

“Assim falou; e suas


palavras foram do
agrado de todos.” (173)
Canto XVIII (243-315) Polidamante inicia a 1 (x) “Assim falou Heito, ao
assembleia tomando a que os Troianos
fala (conselheiro) aplaudiram.” (310)

Heitor o responde
Canto XIX (40- 240) Aquiles inicia fala em 1 (x) “Ao longo da orla do
assembleia mar caminhou o divino
Aquiles retorna aos
Agamemnon replica Aquiles, lançando um
combates
Aquiles “do lugar em grito medonho, que
estava”, sem se colocar acordou os heróis
1 (x)
“no meio” da Aqueus. E até aqueles
assembleia (76-78) que outrora tinham o
hábito de permanecer
Aquiles reponde 1 (x) entre as naus ou que
Agamemnon eram ucheiros nas
naus, dispenseiros de
Odisseu toma a palavra 1 (x) comida, até esses
vieram à assembleia,
Agamemnon replica 1 (x) por que Aquiles
Odisseu aparecera, ele que
1 (x) havia muito desistira
Aquiles toma a palavra do combate doloroso.”
(40-46)
1 (x)
Ulisses replica e sua
fala encerra esta
reunião

A ODISSEIA

Passagem na obra Quem toma a palavra N° de vezes que toma Reação do dêmos
diante a assembleia a fala presente
Canto II, 6-259 Egípcio, abre a reunião 1 (x) “Assim falou e na sua
em assembleia sendo o fúria atirou o cetro ao
A assembleia de
primeiro a tomar a fala chão, sufocado de
Telêmaco para decidir
(herói) lágrimas; e todo o povo
o que fazer diante a
sentiu pena dele. Todos
situação com os
Telêmaco toma a fala, ficaram em silêncio;
pretendentes de
discutindo a natureza ninguém teve coragem
Penélope 1 (x)
pública e/ou privada da de responder a
assembleia (nobre) Telêmaco com
palavras agrestes.” (80-
Antino responde à 1 (x) 83)
Telêmaco (nobre)

Telêmaco replica
|44

Antino 1 (x)

Haliterses toma a fala


(herói/ancião) 1 (x)
Eurímaco responde
direcionado a
Haliterses 1 (x)

Telêmaco replica o que


foi dito por Eurímaco 1 (x)

Mentor toma a fala (ex


companheiro de 1 (x)
Odisseu/herói

Liócrito responde ao 1 (x)


que foi dito por
Mentor, encerrando a
assembleia
Canto XXIV, 420-470 Eupites toma a palavra 1 (x) “Depois foram todos
(pai de Antino/nobre) para ágora,
Se desenvolve o
entristecidos.
julgamento de Odisseu,
Mêdon fala em seguida 1 (x) Levantou-se Eupites e
perante sua atitude de
de Eupites dirigiu-lhes a palavra.
vingança diante os
Tinha no espiríto uma
pretendentes
Haliterses toma a fala, dor inconsolável pelo
dirigindo-se aos filho” (420-423)
“homens de ítaca” 1 (x)
“Assim dizia enquanto
chorava; e a compaixão
dominou todos os
aqueus.” (438-439)

“Assim falou; e a todos


dominou o pálido
terror.” (450)

“Assim falou; mas


levantaram-se com
grande alarido mais de
metade deles (e os
outros ficaram
sentados), pois não
lhes agradara ao
espírito o discurso, mas
preferiam o que dissera
Eupites.” (463-465)
|45

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir desse debate, é possível então perceber como os estudos em torno das
representações políticas e sociais do mundo homérico estão diretamente relacionados
com os debates acerca da formação da polis. Aqui, eu trago as análises acerca de uma
das principais instituições do mundo grego antigo, a ecclesia, mas os poemas
fornecem diversos outros elementos que auxiliam na compreensão da temática
referida. O trabalho numa perspectiva relacional entre a fonte e o contexto em que
esta perpassa, compreendendo também a complexidade literária que a obra envolve,
permite que a análise dessa configuração social em Homero não caia em armadilhas,
promovendo assim uma ampla visão de como proceder com o que o poeta nos conta.

A Ilíada, em seu respectivo contexto, auxiliou a entender como Homero


refletia essa estrutura política naquele período de guerra, a Odisseia, por sua vez,
revela maiores sensibilidades acerca dessas representações, com uma sociedade
melhor delimitada. As assembleias na Odisseia apresentam novos elementos acerca
de como funcionam, podendo-se resgatar uma maior profundidade principalmente dos
assuntos debatidos em sessão e da reação do público presente. Tanto na primeira, a
assembleia de Telêmaco, como na segunda, a assembleia do julgamento de Odisseu, é
possível observar como as esferas do público e do privado se comportam. Ainda que
limitados mais a reações, do que opiniões propriamente ditas, o público,
principalmente na segunda assembleia, transparece melhor sua decisão.

Morris (1986) fala como as assembleias em Ítaca poderiam desempenhar


funções organizativas semelhantes com aquelas no início da polis. Apesar de não se
ter uma evidência concreta para compará-las diretamente, sabe-se que o
funcionamento da polis passou por transformações até chegar numa estrutura social e
política com determinadas instituições, leis e padrões civis. Os poemas homéricos, ao
serem situados nesse período de formação e início da época arcaica, poderiam sim
revelar traços significativos acerca de como esse sistema funcionava em sua origem,
principalmente se ponderarmos aqui alguns dos pontos levantados pela questão
homérica, que situa partes compostas da Odisseia ainda no século VII a. C.
|46

Dessa forma, destaco aqui a importância em trabalhar com dois debates


essenciais ao campo da história antiga: as representações sociais nos poemas
homéricos e o estudo da polis. Como já visto aqui, ambos estão diretamente ligados,
não há como analisar a configuração política homérica, sem antes entender o contexto
histórico refletido nos poemas, e não tem como compreender as origens da polis sem
antes debater uma de suas mais antigas fontes, a Ilíada e a Odisseia. Ambos os
estudos são bastante nebulosos dada a imprecisão e ausência de fontes escritas
concretas, no entanto, ao trabalhar de forma relacional com as evidências fornecidas
de outros campos para além do histórico, é possível obter resultados melhor definidos
acerca do período em questão.
|47

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