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570 ARTIGO A RT I C L E

Culpa da vítima: um modelo para perpetuar


a impunidade nos acidentes do trabalho

Guilty victims: a model to perpetuate


impunity for work-related accidents

Rodolfo An d rade Go u veia Vilela 1


Ap a recida Mari Iguti 2
Il d e b e rto Muniz Almeida 3

Abstract Introdução: acidentes de trabalho


e sua importância
1 Programa de Pós-graduação This article analyzes reports and data from the
da Engenharia de Pro d u ç ã o, i n vestigation of seve re and fatal work - re l a t e d Os acidentes do trabalho constituem fenômeno
Ce n t ro de Referência em
Saúde do Tra b a l h a d o r, accidents by the Regional Institute of Criminol- de múltiplas facetas. Sua ocorrência costuma
Un i versidade Metodista de ogy in Piracicaba, São Paulo State, Bra z i l .S o m e t ra zer à tona no mínimo a face existencial, a
P i ra c i c a b a ,P i ra c i c a b a , Brasil.
2 De p a rtamento de Me d i c i n a
71 accident investigation reports were analyzed técnica e a jurídica. Ou seja, simultaneamente
Pre ve n t i va e S ocial, from 1998, 1999, and 2000. Accidents involving ao drama existencial que produz para vítimas,
Un i versidade Estadual de m a c h i n e ry re p resented 38.0% of the total, f o l- f a m i l i a res e pessoas próximas, os acidentes
Ca m p i n a s , Ca m p i n a s , Bra s i l .
3 De p a rtamento de Saú de
lowed by high falls (15.5%), and electric shocks costumam ser seguidos de iniciativas técnicas
P ú b l i c a , Faculdade (11.3%). The reports conclude that 80.0% of the visando a compreensão de suas causas e po-
de Medicina de Bo t u c a t u , accidents are caused by “unsafe acts” committed dem ensejar ações também na esfera judicial.
Un i versidade Es t a d u a l
Pa u l i s t a , Bo t u c a t u , Bra s i l .
by workers themselve s , while the lack of safety Segundo estimativas e dados da Organiza-
or “unsafe conditions” account for only 15.5% of ção Internacional do Trabalho (OIT), no plano
C o r re s p o n d ê n c i a cases. Victims are blamed even in situations in- mundial, os acidentes do trabalho causara m
Rodolfo An d rade
Go u veia Vi l e l a
volving high risk in which not even minimum em 1994 um total de 335 mil mortes em aciden-
Pro g rama de Pós-gra d u a ç ã o safety conditions are adopted, thus favoring em- tes típicos, que se somam a um total de 158 mil
da Engenharia de Pro d u ç ã o, ployers’ interests. Such conclusions reflect tradi- mortes por acidentes de trabalho durante o tra-
Ce n t ro de Referência em
Saúde do Tra b a l h a d o r,
tional reductionist explanatory models,in which jeto e 325 mil mortes por doenças relacionadas
Un i versidade Metodista accidents are viewed as simple, unicausal phe- ao tra b a l h o, que totalizam 818 mil mortes no
de Pira c i c a b a . n o m e n a , g e n e rally focused on slipups and er- ano de 1994. Além desses dados estima-se que
Ro d . Santa Bárbara d’ Oe s t e -
Iracemópolis Km 1, rors by the workers themselves. Despite criticism ocorrem anualmente 250 milhões de acidentes
Santa Bárbara d’ Oe s t e , SP in recent decades from the technical and acade- e 160 milhões de doenças ocupacionais 1.
1 3 4 5 0 - 0 0 0 , Bra s i l .
mic community, this concept is still hegemonic, Segundo os últimos dados do Instituto Na-
ra v i l e l a @ u n i m e p. b r
thus jeopardizing the development of pre ve n- cional de Se g u ridade Social (INSS), no ano de
tive policies and the improvement of work con- 2000 ocorre ram no país 343.996 acidentes e
ditions. 3.094 mortes por acidente de trabalho para uma
população segurada pela Consolidação das
Occupational Ac c i d e n t s ; Occupational Safety; Leis Trabalhistas (CLT) de 20.374.176, o que re-
Working Conditions presenta uma proporção de incidência de aci-
dente de trabalho de 1,68 por 100. A taxa de le-
talidade no ano foi de 9,0 mortes por mil aci-

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dentes e a taxa de mortalidade ficou 15,2 mor- laudos do IC despertando atenção para a im-
tes por 100 mil trabalhadores registrados pela portância da Se c re t a ria de Segurança Pública,
C LT 2. Os coeficientes de 2000 mostram que o tanto como fonte de informações como na apu-
Brasil está com taxa de mortalidade por aci- ração de responsabilidades dos empregadores
dentes de trabalho acima da média dos países e seus representantes na geração de acidentes
da América Latina, que ficou em 13,5/100 mil, do trabalho.
só perdendo para a os países da Ásia – 23.1/100 Alguns casos foram objeto de inspeção de
mil e da África que é de 21/100 mil, segundo o campo quando tivemos a oportunidade de
último levantamento da OIT, que tomou como confrontar os laudos com informações obtidas
base os dados do ano de 1994 1. no local de ocorrência dos acidentes. Além de
No Brasil, parte dos acidentes do tra b a l h o entrevistas com os acidentados, com a equipe
que resultam em morte e lesões aos tra b a l h a- e familiares foi possível acessar outros docu-
d o res são objeto de investigação pelos órg ã o s mentos como Atas de CIPAS, processos admi-
da Secretaria de Segurança Pública (Polícia Ci- nistrativos dos órgãos oficiais, como do Progra-
vil). No entanto, a despeito de sua importância ma de Saúde do Trabalhador de Piracicaba e do
no que tange a iniciativas de responsabilização Ministério do Trabalho e Emprego, além de re-
civil e penal, essas investigações têm sido pou- g i s t rar as condições de trabalho por meio de
co exploradas enquanto fonte de informações f o t o g ra f i a s. Usando-se a aplicação do Método
sobre os acidentes do trabalho graves e fatais. de Árvo re de Causas (ADC) foi possível con-
As investigações do Instituto de Criminalís- f rontar os laudos oficiais com outra abord a-
tica (IC) são efetuadas a partir de solicitação gem, demonstrando de modo mais detalhado
das Delegacias de Polícia que instauram inqué- as distorções e simplificações resultantes da
rito policial quando ocorrem os acidentes gra- concepção monocausal conforme consta de
ves e fatais do tra b a l h o, visando a apurar re s- pesquisa de Vilela 4.
ponsabilidade criminal. Segundo o Manual da
Se c re t a ria de Se g u rança Pública do Estado de
São Paulo, além da abertura do Inquérito Poli- Concepções de acidentes
cial, o delegado que coordena as investigações
deve registrar o Boletim de Ocorrência, com o A análise de acidentes é sempre influenciada
histórico dos fatos; comparecer ao local; ouvir pela visão ou compreensão do analista acerca
o trabalhador acidentado e testemunhas; in- desses eventos. No entanto, nem sempre os va-
q u i rir e ve rificar junto ao empregador o cum- lores ou pontos de vista implícitos numa deter-
p rimento de normas de saúde e segurança no minada concepção são claramente assumidos
trabalho. Cabe ao delegado solicitar investiga- ou compreendidos por esse mesmo analista.
ção do IC para apuração das causas do ocorri- A própria idéia da existência de uma deter-
do e quando for o caso, o laudo do Instituto Mé- minada concepção de acidente associada a cada
dico Legal 3. proposta de análise pode causar estranheza tal é
O IC, por intermédio de seu representante a freqüência com que essas propostas são enun-
técnico, comparece ao local da ocorrência para ciadas como técnicas assépticas ou neutras.
investigação das causas do acidente do traba- O que é o acidente? Como ele é descrito em
lho, emitindo laudo técnico, que irá subsidiar o cada uma das diferentes concepções ou “esco-
delegado na apuração dos fatos e encaminha- las de pensamento” existentes? Nos próximos
mento do inquéri t o. Após a fase de inquéri t o parágrafos busca-se apresentar esboço de res-
na Delegacia de Polícia, o caso é encaminhado posta a essas questões.
p a ra a Justiça, que, de posse das inform a ç õ e s In i c i a l m e n t e, pode-se afirmar que pre d o-
disponíveis dá prosseguimento aos processos. mina, no Brasil e no mundo, a compreensão de
O interesse no acompanhamento e inve s t i g a- que o acidente é um evento simples, com ori-
ção dos acidentes gra ves e fatais foi-nos des- gens em uma ou poucas causas, encadeadas de
p e rtado a partir das experiências desenvo l v i- modo linear e determinístico. Sua abordagem
das no Pro g rama de Saúde do Trabalhador de privilegia a idéia de que os acidentes decorrem
Piracicaba, a contar de 1998. Quatro acidentes de falhas dos operadores (ações ou omissões),
f a t a i s, dois do setor de papel e papelão e dois de intervenções em que ocorre desrespeito à
da construção civil, foram investigados pelo norma ou prescrição de segurança, enfim, “atos
Pro g rama de Saúde do Trabalhador de Pira c i- i n s e g u ro s” originados em aspectos psicológi-
caba, ensejando os primeiros contatos com os cos dos trabalhadores. Os comportamentos são

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considerados como frutos de escolhas livres e tringem-se à identificação de falhas humanas


conscientes por parte dos operadores, ensejan- que ocorrem nas proximidades da lesão e do
do responsabilidade do indivíduo. A dimensão acidente pro p riamente dito porque eles têm
coletiva aparece associada com noção de cul- pouca importância para a prevenção. Segundo
tura de segurança, compreendida como soma e l e, a gestão da segurança e da saúde passa a
dos comportamentos dos indivíduos. recomendar medidas pró-ativas e a busca de
Essa abordagem associa-se a propostas de reformas contínuas do sistema, como por exem-
gestão da segurança e da saúde que enfatizam plo, as estratégias de qualidade.
a vigilância e o recenseamento desses “atos in- Apesar da referência à visão de Pe r row 10
seguros ou abaixo do padrão”, a adoção de pu- nessa proposta, a teoria do acidente normal ou
nições ou recompensas em caso de descumpri- sistêmico dá origem a uma concepção de aci-
mento ou de adesão às regras e a idéia da res- dente que tem vida própria e é adotada sobre-
ponsabilidade individual. A cultura de segu- tudo em estudos de desastres ocorridos em sis-
rança seria construída com a adoção de estru- temas técnicos complexos, com conseqüências
t u ras hierárquicas e disciplina rígida. Em al- que estendem-se muito além dos muros da or-
guns casos a referência ao modelo de organiza- ganização em si. Na visão de Perrow, nesse tipo
ções militares e instituições totais é explícita. de sistema, sempre haverá interações de natu-
Com pequenas diferenças, às vezes, apenas reza inesperada, complexas, incompreensíveis
de ênfase segundo o autor, essa forma de con- em tempo real para os operadores e capazes de
ceber o acidente recebe denominações como: desencadear, de modo irreversível, o processo
centrada na pessoa 5 , paradigma tradicional 6,7, acidental. O acidente é normal não por ser fre-
paradigma burocrático da Saúde e Segurança 8, qüente, mas sim por ter origem em proprieda-
c e n t rada no erro 9. Segundo Ll o ry 6,7, essa é a des inerentes ao sistema.
única forma de conceber o acidente que alcan- Além da referência ao modelo de gestão do
çou o status de paradigma, no sentido dado erro, acima citado, Hollnagel 9 cita dois outros:
por Kuhn ao termo. o da “g e stão do desvio de desempenho” e o da
Infelizmente, quando se trata de apresentar “gestão da variabilidade de desempenhos”.
o u t ras concepções de acidentes pre d o m i n a m A gestão do desvio do desempenho destaca
diferenças entre os autores. A seguir, de modo a idéia de desvio, que teria origens em causas
resumido, apresenta-se algumas das propostas manifestas e latentes a serem geridas, tanto pe-
de sistematização desse tema que estão pre- la busca de sinais ou avisos de sua existência,
sentes na literatura. quanto pela sua supre s s ã o. O termo desvio é
Reason 5 classifica duas concepções de aci- usado para indicar mudança tanto em relação
dentes como sendo “da engenharia” e a “orga- ao que é esperado e, portanto, previamente co-
nizacional”. A concepção da engenharia enfati- nhecido como, por exemplo, uma norma ou pa-
za a quantificação da probabilidade de eventos drão, como em relação ao habitual, entendido
ou aspectos associados, e as falhas de concep- de modo equivalente ao trabalho real ou ativi-
ção ensejando o surgimento de propostas de dade desenvolvida pelos operadores. O aciden-
sistemas de gestão de segurança e da saúde no te é compreendido principalmente como sinal
trabalho e de melhoria das interfaces de troca de disfunção no sistema sociotécnico. É enfati-
de informações. Abordagens de confiabilidade zada a necessidade de estender a análise além
que privilegiam cálculos de probabilidade são dos limites dos aspectos causais situados nas
apontadas como exemplos desse enfoque. Essa proximidades do acidente propriamente dito e
forma de conceber o acidente mostra-se pouco de suas conseqüências. Ao citar explicitamente
difundida no Brasil, sendo praticamente ine- as causas latentes, o autor sugere que a visão
xistentes experiências e publicações que a te- a p resentada por Reason também situa-se no
nham adotado, sobretudo como instru m e n t o marco dessa concepção.
para abordagens de acidentes. A técnica de análise de acidentes dita “ á r-
Na concepção organizacional, Reason 5 con- vore de causas” adota como um de seus princi-
sidera que o erro é muito mais conseqüência do pais pilares de sustentação o conceito de varia-
que causa e que suas origens estariam em condi- ção, apresentado de modo muito próximo des-
ções latentes, incubadas na história do sistema. sa visão, apesar da ênfase que dá ao fato de que
O modelo de acidente organizacional pro- a definição de variações deve basear-se na no-
posto por Reason 5 enfatiza o fato do acidente ção de trabalho real, e não em norm a s, re g ra s
a p resentar origens latentes, associadas às es- ou pre s c ri ç õ e s. Aliás, é essa característica que
colhas estratégicas adotadas desde sua con- permite sua utilização e interpretação de mo-
cepção e às políticas de gestão assumidas. O do diferente deste, ou seja, como ponto de par-
autor critica as análises de acidentes que re s- tida para demanda de análises complementa-

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res que sirvam de lastro, por exemplo, para a complementares, entre elas, a da própria ativi-
c o m p reensão de comportamentos humanos dade.
aparentemente irracionais ou inusitados quan- Discutindo as abordagens do fator humano
do olhados sem a “p e r s p e c t i va do nativo”, ou na Saúde e Segurança, Neboit 11 descreve qua-
seja, a compreensão daqueles que vivem o co- t ro enfoques, a saber: da uni causalidade, da
tidiano do sistema. m u l t i c a u s a l i d a d e, a sistêmica e da confiabili-
A terceira concepção proposta por Hollna- dade humana. Segundo Neboit, o surg i m e n t o
gel 9 dita da gestão da variabilidade de desem- da multicausalidade representou rompimento
penhos, destaca contribuições de abordagens com a visão reducionista acerca de acidentes, e
cognitivas rompendo com a leitura que vê o er- serviu de base para o surgimento das compre-
ro sempre como evento negativo. A variabilida- ensões sistêmicas e da confiabilidade humana
de do trabalho tanto pode ser negativa como que alarg a ram o perímetro da compre e n s ã o
p o s i t i va. No caso de sistemas sócio-técnicos desses fenômenos. Segundo ele, a visão sistê-
a b e rtos que alcançaram bons desempenhos mica estaria representada, sobretudo, por con-
em termos de segurança e confiabilidade, essa t ribuições que ro m p e ram com a noção de Er-
variabilidade mostra-se associada, sobretudo, gonomia de Posto de Trabalho intro d u z i n d o
aos componentes humanos, sendo fortemente idéias como as de Confiabilidade e Ergonomia
influenciada pela compreensão dinâmica da de Sistema.
atividade em todos os seus momentos. Em ou- Por sua vez, o enfoque da confiabilidade
tras palavras, trabalhar implica a adoção de es- humana centra-se no estudo da evolução tec-
tratégias cognitivas de gestão da atividade: do nológica e organizacional, explorando aspec-
planejamento à execução. As re p re s e n t a ç õ e s tos como os da mediação simbólica e da com-
mentais do que vai ser e do que está sendo fei- p l e x i d a d e, e também do modo como as ciên-
to são influenciadas por aspectos do tempo (ho- cias humanas abordam o acidente.
ra do dia, “ i d a d e” dos componentes etc.), da Esses dois últimos enfoques apresentam lei-
história do indivíduo, dos grupos e da empresa tura que parece associar aspectos das visões de
a que se vincula, como das características téc- Reason e Hollnagel, acima expostas, sem per-
nicas e organizacionais do sistema e do contex- der de vista a forma como o fenômeno aciden-
to sócio-político-econômico em que esse está te é abordado na Ergonomia (sobretudo na
i n s e ri d o. Assim é que a compreensão de um França) e por escolas das ciências humanas.
ruído, por exemplo, pode ser diferente para um Uma perspectiva que também associa as-
n ovato e um trabalhador experiente; ou para pectos de diferentes escolas é apresentada por
um membro de equipe de empresa contratada Ll o ry 6,7. Seu modelo psicoorganizacional de
e trabalhador da contratante que atua há anos acidentes não perde de vista a importância da
naquele setor. c o m p reensão de aspectos técnicos pre s e n t e s
O erro é um dos sinais que orienta a com- em acidentes, mas ressalta sua insuficiência
preensão da equipe acerca do que está ocorren- para a compreensão desses eventos. O aciden-
d o, do controle ou não da atividade, em cada te é apontado como potencialmente revelador
m o m e n t o. De acordo com esse enfoque, sua de aspectos da história da organização, sobre-
ocorrência revela que a representação mental tudo daqueles relacionados às suas ori g e n s,
da atividade tanto dos objetivos (o que fazer), que estavam incubados ou adormecidos. A di-
seja do como faze r, não está em consonância mensão subjetiva é reconhecida tanto em nível
com a realidade. Distanciou-se dela. No entan- individual, quanto no das relações horizontais
t o, os procedimentos usados para elaborar e e verticais estabelecidas historicamente nas si-
atualizar esse modelo mental, enfim, o próprio tuações de trabalho. Ou seja, ressalta-se a ne-
modelo adotado, foram exatamente os mesmos cessidade de explorar tanto aspectos conjun-
usados nas situações sem acidente. De acordo t u ra i s, ditos sincrônicos, como aqueles cons-
com Hollnagel, 9 as origens dessa variabilidade t ruídos ao longo da história de vida das pes-
podem ser identificadas e monitoradas. soas e da organização, ditos diacrônicos.
Essa forma de pensar o trabalho leva a com- No Brasil, o modelo explicativo monocau-
preender o acidente como indicador da ruptu- sal centrado na culpa da vítima vem se man-
ra da compreensão da atividade, do compro- tendo intocável no meio técnico – industri a l ,
misso cognitivo usado pelos operadores na ges- em meios acadêmicos mais conserva d o res e
tão da atividade. No entanto, embora o aciden- em organismos oficiais como mostra re m o s
te nos mostre o momento em que ocorre a rup- neste estudo, mesmo após inúmeras críticas
tura, ele não nos permite compreender em que publicadas nas décadas de 80 e 90 12,13,14,15.
consiste esse compromisso. Para desvendá-lo, Esta manutenção silenciosa não seria uma
t o rna-se necessária a realização de análises demonstração de que este modelo é convenien-

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te e interessante para esconder as verdadeiras Figura 1


causas dos acidentes do trabalho?
Recente campanha da Co n f e d e ração Na- Cartaz de segurança campanha do SESI/SENAI, 2000.
cional da Industria (CNI) repete em folhetos e
cartazes o conteúdo das mensagens dos carta-
zes das décadas de 70 e 80. Um deles mostra
uma mão embaixo de um martelo de uma pren-
sa mecânica sem proteção na zona de ri s c o
(portanto uma máquina desprotegida, com zo-
na de prensagem aberta, caracterizando situa-
ção de risco grave e iminente – que deveria ser
p roibida de operar) com dize res: “At e nção ao
trabalhar com prensas!” 16,17,18.
Nesse estudo explora-se o conteúdo de aná-
lises de acidentes do trabalho gra ve s, conduzi-
das por organismo técnico policial. A questão
central do estudo refere-se à identificação de
concepções de acidentes adotadas e de implica-
ções associadas às conclusões dessas investiga-
ções. Antes disso, apresenta-se breve relato de
estudos que exploraram o mesmo tema com ba-
se em análises conduzidas no âmbito de empre-
sas, publicações, material de divulgação dito de
prevenção de acidentes e discurso de vítimas de
acidentes atendidas em instituição pública.

Fonte de informações e método Detalhe: cartaz mostra a mão do trabalhador sendo


prensada ao ingressar na zona de operação do
equipamento. A máquina desprotegida permite o
Em contato formal com o IC de Piracicaba, ob- acesso da mão na zona de risco, em desacordo com as
normas atuais de proteção (Norma Regulamentadora
t i vemos acesso a 104 laudos produzidos para n o 12 do Ministério do Trabalho e Emprego, e Norma
investigação de causas de acidentes ocorridos Brasileira da ABNT). O cartaz induz a uma culpabilização
transferindo a responsabilidade para o operador.
entre (data) e (data) na cidade de Piracicaba e A máquina sem proteção pode ser operada desde
em alguns municípios vizinhos. O material foi que o operador preste atenção, tome cuidado.
fornecido na forma de gravação eletrônica (CD),
cujos textos não vieram acompanhados de in-
formações complementares como fotografias,
cópias dos Boletins de Ocorrência e outros do- ficados por meio de simples inspeção. Já os aci-
cumentos como cópia das CATs etc. Dos laudos dentes do Grupo 2 necessitam de conjunção de
fornecidos foram selecionados 71 casos de aci- fatores que não ocorrem de modo habitual e de
dentes graves e fatais do trabalho para estudo, técnicas mais apuradas para investigação de
pois os demais não eram relacionados ao tra- c a u s a s, como entrevistas aos opera d o re s, ob-
balho ou estavam incompletos, impossibilitan- servação das atividades de trabalho etc.
do o estudo. O modelo de laudo, as descrições dos aci-
Os casos selecionados foram distri b u í d o s dentes e as conclusões re l a t i vas a causas do
segundo a localidade onde ocorreu a lesão e evento foram comparados com as concepções
causas, conforme conclusões emitidas nos lau- de acidentes apresentadas, de modo a possibi-
dos. Eles foram classificados quanto à categoria litar identificação da concepção presente no
da atividade econômica do empre e n d i m e n t o modelo de investigação adotado na Instituição.
em que ocorreu o acidente, causa externa da le- Alguns casos selecionados são apresentados e
são segundo a Classificação In t e rnacional de discutidos.
Doenças – 10a versão (CID-10) 19 e segundo ti-
pologia proposta por Monteau 20, sendo distri-
buídos em grupos 1 e 2. Nesta divisão, os aci- Resultados
dentes pertencentes ao Grupo 1 ocorrem em si-
tuações de risco evidente, cujos fatores de risco A maioria dos laudos re f e riam-se a acidentes
estão presentes de modo habitual no processo ocorridos na cidade de Piracicaba, que respon-
de trabalho e que podem ser facilmente identi- de por 41,0% dos eventos, seguida das cidades

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A CULPA NOS ACIDENTES DO TRABALHO 575

de Araras (17,0%), Limeira (12,7%), Americana anos no campo da Saúde e Se g u rança do Tra-
(5,6%) e Rio das Pedras (4,2%). As demais 11 ci- balho, reforçam essa idéia.
dades da região totalizaram 14 casos do con- Por si só, esses elementos já permitem afir-
j u n t o. Tal situação pode ser explicada pelo mar que a concepção de acidente subjacente a
maior contingente de tra b a l h a d o res e maior essas análises é a mesma anteri o rmente des-
densidade econômica das cidades pólo com- crita como “c e nt rada na pessoa”, gestão do er-
paradas com as vizinhas. ro, paradigma tradicional ou burocrático da
A distribuição dos casos de acordo com a saúde e segurança no trabalho. O uso do singu-
atividade econômica do empreendimento em lar na denominação do campo “causa apurada”
que ocorreu o acidente, mostra que os ra m o s revela a natureza simplista com que se vê o aci-
de atividade que apresentam maior freqüência d e n t e. De s c rições sucintas, re s t ri n g i n d o - s e
de casos são os da indústria de produtos ali- quase que exc l u s i vamente à desestabilização
mentícios e de bebidas, com 16,9% dos casos, do sistema e às origens da lesão confirmam es-
seguido do setor da construção civil, com 15,5%. sa afirmação.
Em seguida, surge o setor de fabricação de pa- Discutindo implicações de análises que atri-
pel e celulose, que responde por 11,2% do uni- buem o acidente a comportamentos dos ope-
verso estudado. Destaca-se ainda o fato de que radores, Lima & Assunção 21 ( p. 95), afirm a m :
o setor da indústria de transformação respon- “não é a conclusão quanto aos atos inseguro s
de por 41 casos, o que equivale a 58,0% das ocor- que leva à prevenção baseada em mudanças de
rências, enquanto que outros grupos de ativi- atitude e de comportamento, mas sim a concep-
dade econômica, como o setor primário (agrí- ção racionalista de que o comportamento hu-
cola e extrativo), respondem por 11,2% e o se- mano é determinado exclusivamente pela cons-
tor de comércio e serviços por 15,5% dos casos. ciência e que, p o rt a n t o, o acidente decorre da
As causas externas das lesões foram agrupa- falta de consciência do risco”.
das segundo a CID-10 19. Podemos observar que Ou t ro autor que também destaca a inade-
as máquinas, exceto as agrícolas, respondem quação da concepção de ser humano presente
por 38,0% das ocorrências em estudo. A queda nas práticas tradicionais de segurança é Llory 6
de altura responde por 15,5% das ocorrências e (p. 150). Referindo-se a seus colegas engenhei-
os acidentes causados por corrente elétrica res- ros, ele afirma: “os engenheiros esquecem o me-
pondem por 11,3% dos casos. Em seguida, sur- do, a incerteza, o sofrimento, a incapacidade de
gem os acidentes causados por equipamento manter a atenção a todos os instantes, os perigos
agrícola incluindo tratores com 8,5% dos casos. da agressividade, às vezes, da violência, eles des-
A Tabela 1 mostra a distribuição das con- conhecem as frustrações, o mal-estar, a desmobi-
clusões das análises em termos de “causa apu- lização subjetiva”. “Eles concebem o homem
rada”. Dos 71 casos investigados, quarenta, ou com um ser sem corpo ou sem moral responden-
seja 56,3%, foram atribuídos a atos inseguro s do essencialmente aos imperativos das sanções e
cometidos pelos trabalhadores. Por sua vez, 17 ou aos atrativos de uma recompensa...”.
casos (24,0%) foram atribuídos a atos insegu- Essa incapacidade de compreender e incor-
ros cometidos pelos trabalhadores e seus men- porar a concepção de homem, contemporânea
tores. A falta de segurança ou condição insegu- da evolução dos conhecimentos, aparece como
ra de trabalho responde por 11 casos, represen-
tando 15,5%. Observa-se que a menção aos
atos inseguros seja do trabalhador acidentado
e/ou dos mentore s, responde por um total de Tabela 1
80,3% do universo.
A presença de campo denominado “c a u s a Freqüência, porcentagem e porcentagem acumulada de acidentes de trabalho
apurada” no modelo de laudo adotado nas in- típicos graves e fatais, analisados pelo Instituto de Criminalística de Piracicaba
vestigações não parece ser fruto de acaso. A segundo a conclusão – causa apurada.
mesma expressão, no singular, foi adotada du-
rante anos em modelo de análise de acidente Classificação Quantidade % % acumulada
recomendado em norma regulamentadora do
Ato inseguro 40 56,3 56,6
Ministério do Trabalho e Emprego e em norma
Ato inseguro do trabalhador 17 24,0 80,3
brasileira referente à investigação de acidentes
e/ou dos mentores
do trabalho. Sua presença em laudos do IC su-
Falta de segurança 11 15,5 95,8
gere que o modelo adotado tenha encontrado
Outros não conclusos 3 4,2 100,0
inspiração nessas fontes. As conclusões redigi-
Total 71 100,0 –
das com uso das noções de atos e condições in-
seguras, ou seja, as mesmas adotadas durante

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um dos maiores problemas de análises de aci- Acidente: trabalhador é ferido na região do


dentes baseadas na concepção tradicional de pescoço com a ponta da lâmina de uma ro ç a-
Saúde e Se g u rança. Uma das conseqüências deira de mato tipo costal motorizada. A lâmina
mais perversas associadas a essas análises é a rompeu-se ao atingir uma pedra conforme ates-
adoção de leituras acerca dos comportamentos ta o exame pericial.
humanos presentes nos acidentes que sistema- “C o nc l us ã o : do observado e do re l a t a d o, a
ticamente desconsideram o contexto ou situa- causa do acidente deu-se em função de uma so-
ção em que ocorrem. En t re os aspectos não matória de atos inconseqüentes, a saber:
a b o rdados nessas análises pode-se citar: (a) • utilização inadequada do equipamento,
atividade que estava sendo desenvolvida, aí in- uma vez que o local não é propício, dada a exis-
cluída as noções de pre s c ri ç õ e s, objetivos, re- tência de pedras de cobertura;
cursos disponibilizados, os aspectos tempo- • operar o equipamento sem a proteção devi-
rais, sua variabilidade normal e incidental etc.; da da ferramenta de corte;
(b) influências do contexto externo ao sistema, • não utilizar o cinto de apoio recomendado;
como urgência de pedidos de forn e c e d o re s, • utilizar a ferramenta não recomendada pe-
exigências de legislação etc.; (c) va riações do lo fabricante (faca dupla metálica).
estado psíquico dos tra b a l h a d o re s, inclusive Do exposto conclui-se que o acidente ocor-
aquelas referentes a aspectos da gestão da ati- reu em função de atos inseguros caracterizados
v i d a d e, como a ansiedade decorrente de difi- por negligência e imprudência, potencializados
culdades na resolução de problemas etc. pela inobservância por parte dos mentores e fis-
Estudando a tipologia dos acidentes quan- calizadores no cumprimento das normas regu-
to à sua complexidade e possibilidade de iden- lamentadoras e no obedecimento das instruções
tificação das causas durante investigação, con- de operação e manuseio ditadas pelo fabrican-
forme proposto por Binder & Almeida, 22 utili- t e . Era o que havia a re l a t a r” (Fonte: Su p e ri n-
zamos a descrição encontrada nos laudos e ob- tendência da Polícia Técnica e Científica 23 ).
s e rvamos que dos 71 casos 37 podem ser en- Esta é a re p rodução de conclusão de um
q u a d rados como pertencentes a acidentes do dos laudos que foram objeto desta pesquisa,
Grupo 1, re p resentando 52,0% do total, en- numa situação característica em que se imputa
quanto que 18 casos podem ser enquadra d o s culpa ao acidentado por decisões que não es-
como do Grupo 2, re p resentando 25,5%, e 16 tão ao seu alcance. Como é feito habitualmen-
casos não permitem uma classificação precisa te esse tipo de trabalho na empresa? Que as-
por falta de informações complementares. pectos organizacionais e individuais modelam
Esses achados reforçam a necessidade de ou determinam a forma de fazê-lo? Quem “es-
ações de vigilância e de promoção à saúde dos c o l h e” o local em que ele será executado? Po r
trabalhadores nos segmentos pro d u t i vo s, com acaso existe terreno isento de pedras? Qu e m
atenção aos fatores causais de maior re l e v â n- decide o tipo de ferramenta a ser usada na exe-
cia como máquinas e equipamentos, queda de cução da tarefa? E por acaso existe lâmina de
altura e acidentes com eletricidade. aço disponível no mercado que seja inquebrá-
A presença de tais fatores causais re ve l a vel, resistente a impactos desta natureza? O
que no contexto local e regional os problemas ambiente de produção, especialmente no Bra-
clássicos de segurança do trabalho não estão sil, é um terreno definido, de antemão imposto
equacionados, persistindo processos e condi- por relações hierárquicas rígidas e relações de
ções de elevado risco, com a maioria dos casos trabalho essencialmente autoritárias.
(52,0%) classificados como do Grupo 1 de Mon- Chama a atenção o fato de que em gra n d e
teau, ou seja, acidentes com relativa facilidade número de casos, mesmo reconhecendo a exis-
para identificação de suas causas, por meio de tência de várias situações de risco evidentes
inspeções simples, em situações onde é fla- no local de trabalho, a conclusão é enfática em
grante e visível o desrespeito às regras mínimas a t ribuir culpa às vítimas: “c e rt if icou-se que a
de segurança. referida obra não obedecia os critérios mínimos
exigidos pelas Normas Re g u l a m e n t a d o ras de
Se g u rança e Medicina do Trabalho ... e s p e c i f i-
Discussão: atribuindo culpa e abrindo camente no tocante a trabalhos em altura s ,
caminho para a impunidade sendo observa d o : – ausência de tapumes fro n-
tais para isolamento de transeuntes... – área de
Os casos apresentados a seguir podem ser con- trabalho conturbada e impedida – emprego de
s i d e rados como emblemáticos de inve s t i g a- poucas e estreitas pranchas de tábuas nos an-
ções que adotam a concepção tradicional de daimes – presença de entrelaçamento de tábuas
saúde e segurança. nos andaimes sem critério técnico de sustenta-

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A CULPA NOS ACIDENTES DO TRABALHO 577

ção – apoios instáveis de andaimes, tanto na “não re c o m e n d a d o s”, omissões ou similare s


vertical e horizontal – piso acidentado”. O lau- definidos com base em padrão fruto de ideali-
do conclui que o acidente “deu-se em função zação do analista acerca de qual “deveria ser” o
dum ato inseguro por parte da vítima, caracte- c o m p o rtamento seguro naquela situação. A
rizado por negligência e imprudência, p o t e n- adesão da vítima a esse padrão é tomada co-
cializado pela inexistência de critérios técnicos mo obrigatória e inalterável em todas as situa-
de segurança presentes na obra, e acima descri- ções e contextos, como se a mera suposição de
to” (Fonte: Superintendência da Polícia Técni- sua existência re p resentasse condição neces-
ca e Científica 23). s á ria e suficiente para a adesão dos tra b a l h a-
Em outro caso, dois trabalhadores desmai- d o re s. Ou seja, independentemente de mu-
am ao acessar área contendo gases de uma gale- danças no desenvolvimento da atividade e no
ria de esgotos, sem que fossem tomadas as me- estado fisiológico e psicológico dos indivíduos
didas mínimas de segurança como ventilação que a realizam.
forçada ou fornecimento de proteção indivi- Esses achados mostram que as análises
dual, com suprimento de ar externo, falta de adotam a perspectiva tradicional apontada em
monitoramento do ambiente etc., a conclusão é diversos momentos nesse artigo, que entende
taxativa alegando que o acidente é causado por: os acidentes como fenômenos simples e uni-
“ato inseguro caracterizado por imprudência e causais, resultando em conclusões que descar-
negligência por parte da vítima e seus mentores, regam nos trabalhadores as responsabilidades
pela inexistência de política preventiva a aciden- pelos acidentes do trabalho. Estas conclusões
tes do trabalho, sinalização de alertas e cuidados, serão utilizadas em eventuais processos de res-
n o r m a s ,p rocedimentos e treinamentos alusivos ponsabilidade civil e penal com favorecimento
a este tipo de atividade” (Fonte: Superintendên- dos interesses dos empregadores.
cia da Polícia Técnica e Científica 23). Merece destaque o uso da idéia de ato inse-
guro para configuração sistemática da culpa da
vítima nos casos de acidentes do tra b a l h o.
Considerações finais – os laudos Construiu-se então um modelo conveniente e
e suas conclusões útil para a descara c t e rização da culpa do em-
p regador ou de seus pre p o s t o s, mantendo-se
Os laudos fornecidos para análise na forma de deste modo um clima de impunidade em rela-
CD re p re s e n t a ram limites para estudo mais ção aos acidentes do trabalho. Cabe destaque o
aprofundado, uma vez que não permitiam aces- fato de que nossa teoria jurídica no acidente de
so a outras informações que pudessem eluci- trabalho assenta-se na responsabilidade subje-
dar questões como o resultado das lesões, aci- tiva, baseada na necessidade de demonstração
dentes leva ram a óbito, existência ou não de de culpa do empregador para dar fundamento
vínculo formal de emprego dos trabalhadores aos processos civil e criminal. Segundo os Có-
acidentados etc. Mesmo com estas limitações, digos Civil e Penal Brasileiros, não cabe repara-
o estudo revela que as máquinas estão envolvi- ção civil ou processo penal quando o acidente
das na gênese da maioria dos acidentes gra ve s t i ver ocorrido “por culpa exc l u s i va da vítima”
e fatais na região, seguidos dos acidentes cau- ou nas hipóteses de caso fortuito ou de força
sados por queda de altura e choques elétricos, maior 25.
o que confirma estudos recentes sobre causa Do ponto de vista da prevenção, as conclu-
de acidentes graves e fatais 24. sões emitidas reforçam a idéia e a cultura em
Apesar das limitações das informações apre- vigor de que as medidas cabíveis para se evi-
sentadas para estudo, o acesso aos dados obti- tar novas ocorrências devem ser centradas na
dos pela Secretaria de Segurança Pública, cons- mudança do comportamento dos trabalhado-
titui uma importante fonte de inform a ç õ e s, re s, para que estes prestem mais atenção, to-
que podem ser úteis para investigação e vigi- mem cuidado etc., permanecendo intocadas
lância em saúde do trabalhador, especialmente as condições, processos de tra b a l h o, ativida-
para os acidentes graves e fatais. des e meios produtivos que são assim natura-
Em todos os casos a conclusão apresentada lizados – assumidos como perigosos.
mostra-se circunscrita a acontecimentos situa- Embora este estudo não tenha explorado as
dos nas proximidades da lesão e do acidente razões da escolha desse modelo de análise por
propriamente dito. Pior ainda, atribuindo a es- parte do IC de Piracicaba, seus achados apon-
ses fatos papel determinante na avaliação do tam para a necessidade de se investir na capa-
processo causal. citação e reciclagem dos profissionais desse
Em todos eles verifica-se a repetição de re- instituto no tocante às concepções e métodos
ferências a comportamentos “ i n a d e q u a d o s”, de investigação de acidentes do trabalho, bem

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578 Vilela RAG et al.

como na aproximação e tentativa de art i c u l a- Outras pesquisas necessitam ser efetuadas


ção de ações conjuntas com as Se c re t a rias de para entender a contribuição das investigações
Segurança Pública e os órgãos responsáveis pe- de causas e suas repercussões na apuração de
la vigilância em Saúde do Trabalhador. responsabilidades junto aos inquéritos promo-
A pequena revisão apresentada na introdu- vidos pela Se c re t a ria de Se g u rança Pública,
ção deste texto sobre concepções de acidentes, bem como as re p e rcussões destes inquéri t o s
pode ser tomada como sugestão de conteúdos nas políticas de saúde e segurança adotadas
que precisariam ser abordados em proposta de pelas empresas.
f o rmação de técnicos re s p o n s á veis pela con-
dução desse tipo de investigações.

Resumo Referências

Neste artigo analisam-se os laudos e dados obtidos das 1. Takala J. Global estimates of fatal occupational
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nal de Piracicaba. Foram analisados 71 laudos de aci- ternational Labour Organization. http//www.oit.
dentes ocorridos em 1998, 1999 e 2000. Os acidentes org (acessado em 15/Mai/1998).
envolvendo máquinas representam 38,0%, seguido pe- 2. Instituto Nacional de Se g u ridade Social. Da d o s
las quedas de altura (15,5%) e em terc e i ro lugar os estatísticos de acidentes do trabalho da previdên-
causados por corrente elétrica (11,3%). Os laudos con- cia social. http//www.mpas.gov.br (acessado em
cluem que 80,0% dos acidentes são causados por “atos 15/Out/2002).
i n s e g u ro s” cometidos pelos tra b a l h a d o re s ,e n q u a n t o 3. Se c re t a ria de Se g u rança Pública de São Pa u l o.
que a falta de segurança ou “condição insegura” re s- Polícia e acidentes do Trabalho. São Paulo: Fun-
ponde por 15,5% dos casos. A responsabilização das ví- dação Jo rge Du p rat Fi g u e i redo de Se g u rança e
timas ocorre mesmo em situações de elevado risco em Medicina do Trabalho/Delegacia Regional do Tra-
que não são adotadas as mínimas condições de segu- balho; 1998.
rança, com repercussão favorável ao interesse dos em- 4. Vilela RAG. Desafios da vigilância e da prevenção
pregadores. Ob s e rva-se que estas conclusões re f l e t e m de acidentes do trabalho: a experiência do pro-
os modelos ex p l i c a t i vos tra d i c i o n a i s , re d u c i o n i s t a s , g rama de saúde do trabalhador de Pira c i c a b a ;
em que os acidentes são fenômenos simples, de causa c o n s t ruindo pre venção e desvelando a impuni-
ú n i c a ,c e n t rada via de regra nos erros e falhas das pró- dade [Tese de Doutorado]. Campinas: Faculdade
prias vítimas. A despeito das críticas que tem recebido de Ciências Médicas, Un i versidade Estadual de
nas duas últimas décadas no meio técnico e acadêmi- Campinas; 2002.
c o, esta concepção mantém-se hegemônica pre j u d i- 5. Reason J. Reconciling the different approaches to
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Colaboradores 8. D w yer T. A study on safety and health manage-
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R. A. G. Vilela elaborou e redigiu o corpo do artigo. A. veloping country. In: Frick K, Jensen PL, Quinlan
M. Iguti participou da revisão da primeira versão do M, Wilthagen T, editors. Systematic occupational
a rtigo; I. M. Almeida contribuiu em re l e i t u ra s, mu- health and safety management. Amsterdam: Perg-
danças na discussão inicial e acréscimos na versão fi- a m o n / National Institute for Wo rking Life; 2000.
nal do manuscrito. p. 149-74.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(2):570-579, mar-abr, 2004


A CULPA NOS ACIDENTES DO TRABALHO 579

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Recebido em 12/Mar/2003
Versão final reapresentada em 29/Set/2003
Aprovado em 23/Out/2003

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(2):570-579, mar-abr, 2004

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