Últimas Vontades. Roberto Guedes PDF

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‘Fonte: ACMR), LOFSSS-RJ, n. 18 (1776-1784) e LOFSSS-RY, n. 2 (1790-1797) ‘OBS: Embora seja tecnicamente inadequado calcular percentuais para niimeros meno- res do que 100, no caso dos forros e dos naturais do Rio de Janeiro mantivemos os cdlculos para realizar uma comparacdo entre os grupos. * Cileulo feito apenas em relacZo aos testadores escravistas, ‘Conquanto a amostra nao tenha resultado de um levantamento exaustivo em todos os livros de dbito disponiveis para a mencionada pardquia no século XVIII, em termos proporcionais ela é bastante representativa, sobretudo ao se levar em conta que até 1745 foram anotados apenas nove testamentos de forros na fre- guesia da Sé,° do que resulta nossa op¢io em estabelecer uma anilise compa- rativa restrita a segunda metade da centiria. Decerto argumentamos fundados na producao e na interpretacao de algumas cifras bem modestas e, por isso, sem qualquer ambigao de cunho quantitative. Como pode ser observado no Quadro V, do ponto de vista cronolégico, a maior parte dos testamentos concentra-se no tiltimo quartel do século e convém nao esquecer que nem todos os testadores eram senhores de escravos, nem todos que os tinham alforriaram e, dentre os que 0 fizeram, poucos aludiram aos motivos que os moveram a conceder a liberdade ‘ao sentirem a aproximagao da morte. Todavia, se ainda assim insistimos em apre- sentar ao leitor alguns niimeros absolutos e proporcionais é porque estamos for- ‘temente convencidos de que os mesmos apontam para tendéncias mais amplas, 0 {que no final das contas nos permitiu privilegiar a dimensao qualitativa das fontes. Destaque-se, para comegar, que os forros nao formavam um grupo homoge- eo, nem mesmo em sua origem. Dos 76 libertos, 42 (55,3%) eram africanos e 34 (47,3%) haviam nascido no Brasil. Entre os afticanos predominaram os pretos da Costa da Mina (22 mulheres e 13 homens), seguidos de quatro vindos de Angola (dois homens e duas mulheres); um homem de Cabo Verde; uma mulher do Con- go e uma africana de procedéncia desconhecida.’ Por outro lado, entre os 34 liber- XUlll_e XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 133. Segundo o Cddigo Filipino, estavam limpedios de testa: 0s catdlicos impuberes (varbes menores de 14 anos e fémeas com idade inferior a 12 anos); 05 hereges; os apdstatas; os surdos; os mudos; os mentecaptos; 0s furi0sos; os escravos e 08 condenados & morte natural. CI. Ordenacdes Filpinas. Livro I, Titulo LXXXI. * C1. SOUZA, Ingrid Ferreira de. Vivendo além do cativeiro: 0s libertos da Sé do Rio de Janeiro (1701- ‘1797), Rio de Janeiro: UNIRIO: PPGHIS, Dissertago de Mestrado, 2014, p. 57. 7 Trata-se de Maria do Rosario, preta fora, cujo testamento data de 25 de janeiro de 1747. & Osrams Vornaoes: Testatewro, Soceoane € CiuTura na Aenea Ingnce fesse Xie 4109 tos nascidos no Brasil havia 19 mulheres e 15 homens, dos quais 27 eram naturais da cidade do Rio de Janeiro ou de seu entorno e sete de outras capitanias. H4 que se notar, portanto, que havia, ao todo, 45 mulheres e 31 homens, mas entre os afri- canos a quantidade de homens e mulheres era a mesma, isto é, 26 testadores. Pode ‘ser que esse equilibrio entre africanos e africanas resulte da amostra que, no en- tanto, como tendéncia, aponta para uma propor¢io nada desprezivel de testadoras e testadores libertos nascidos no Brasil, além de atestar uma presenca significativa de homens entre os testadores forros em geral. Este iiltimo aspecto no destoa do conjunto da'cidade no ano de 1799, para os casos em que é possivel saber 0 sexo, embora na pardquia da Sé houvesse, proporcionalmente, mais mulheres forras do que nas demais freguesias (ver Quadro 2).* Logo, apesar do muito que se disse e citou sobre a destreza e fortuna das pretas minas estabelecidas no Rio de Janeiro e nas Minas Gerais em matéria de alforria, ha que se reconhecer que a pericia dos forros nascidos no Brasil, mormente os homens, também merece aten¢io.’ resumidamente africana porque nao ha na amosira nenhuma alficena de qualidade parda, apenas pretas erras. Por outro lado, no ha pretas forras entre as lbertas nascides no Estado do Brasil. Embora remonte ‘20 ano de 1747, Maria do Rosério fl incluida na anlse porter perf similar ao de outras foras ahicanas: solteira, sem fihos, Senhora de escravos, etc, Sobre a tendéncia no periodo colonial de 2s pretas serem ‘africanas, ct. FARIA, Sheila de Castro. & colinia em movimento, Fortuna ¢ famia no cotidiano colonial. {de pesquisa na reinvengto de um corpus documenta, Rio de Janeiro: Mauad, 2074, p. 127-186. Estudos gualmente importantes sobre os foros na cidade resultaram das pesquisas de SOARES, Mariza de Carvatho, Devotos da Cor: identidade étnica, reigiosidade e escravidao no Rio de Janeiro, século XVI Rio de Janeiro: Civiizagao Brasileira, 2000; A 'nagao’ que se tema "eral de onde se vem: calegorias de Insergao social de aficanos no Império portugues, século XVI. Estudos Alro-Asiéticos (UCAM. Impresso). Rio de Janet, v. 2, p. 303-330, 2004: A blograffa de Ignacio Monte, 0 escravo que virou re. In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina Siva; NEVES, Guilherme Pereira das (rgs.). Retratos do Imps: trajetrias Individuals no mundo portugues nos séculos XVI a XIX. Niterbi: EDUFF, 2006, p. 47-68 Na cidade, os forros de sexo masculino eram 44%, mas na freguesia da Sé eram 32,2%. Esses Percentuals nao levam em conta os fihos e agregados para os quais nao ha dados sobre sexo (cAlculo ‘com base no Quadro 2) * Felizmente ja existem excegdes dignas de nota que atentaram para a imporiancia dos homens foros, tanto em areas rurais quanto em cidades. sobretudo para a cidade do Rio de Janeiro. Cl. VERGER, Pierre, Libertos: os sete caminhos da liberdade. Salvador: Corrupio, s/¢: GUEDES, Roberto Egressos do cativeiro, 2008; MACHADO, Cacilda, A trama das vontades: negros, pardos e brancos na consirucdo da bierarquia social no Brasil escravista, Rio de Janeiro: Apicur, 2008, AGUIAR, Julia Ribeiro. Por entre 2s frestas das normas: nobreza da terra, elite das senzalas e pardos forros em uma freguesia rural do Rio dde Janeiro (S80 Gongalo, sécs. XVII-XVIl) Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Dissertago de Mestrado, 2015, Para o Rio de Janeiro, SOUZA, Vivendo além do cativei, 2012, p. 118-124; TOSTES, Ana Paula ‘Cabral. Luger Social dos homens ‘pardas” no cendrio rural de Cidade do Rio de Janeiro (Recéncavo UFRJ, PPGHIS, Dissertagdo de Mestrado, 2014, 110 Rosento Guees ~ Manco oF Sousa Sones _ De qualquer modo, o certo é que, nao obstante sua presenca significativa, os forros séo 0 grupo minoritario da amostra geral (Quadro 1). Por outro lado, 0 fato de haver muitos portugueses, acorianos e madeirenses entre os testadores da fre- _guesia da Sé é bastante sugestivo. Reindis e ilhéus compdem-se por 161 pessoas cuja naturalidade dividia-se entre 46 nascidos nos Acores ou na Madeira (31 ho- ‘mens € 15 mulheres) € 115 naturais do reino (105 homens e dez mulheres), dos quais 86 (74,8%) procediam do Minho, Trés-os-Montes e Beira. Somava-se, por- tanto, ao todo, 136 homens ¢ apenas 25 mulheres. Sem esmiugar questdes que es- capam ao propésito deste capitulo, vale lembrar que ao refletir sobre a “constante estrutural” representada pelo fenomeno da emigragao na Historia de Portugal, € de longa data que a historiografia assinalou as estratégias familiares adotadas a0 norte do pais e nas ilhas atlanticas em resposta as presses demogrificas e econd- ‘micas para tentar evitar a pulverizacao das propriedades rurais por forca do regi- ‘me igualitario de heranca vigente. A acanhada dimensio das unidades produtivas Jevava as familias a, na pratica, privilegiar um dos herdeiros ao fazer a transmissao da terra ¢, dada a disponibilidade limitada do principal recurso agrério, criar um poderoso fator de éxodo.'° No entanto, mais recentemente, outros autores vem alertando sobre a importancia de se levar em conta a emigracao voluntaria, mo- tivada sobretudo pelas redes de protegio formadas pela presenga de parentes nas conquistas ultramarinas. Com efeito, ndo se deve esquecer que, como bem obser- vou Russel-Wood, afora os milhdes de africanos arrancados a forga do continente de origem, o Império portugués foi marcado por um continuo fluxo € refluxo de pessoas livres com os mais variados propésitos e condicdes sociais, sem que todos fossem necessariamente impelidos pela pobreza sem eira nem beira."’ Dada a raridade da documentagao setecentista sobre o fenomeno da emigracao nos dominios da Coroa portuguesa, os passaportes expedidos aos acorianos que ‘rumaram para a América sao de grande valor e interesse, pois langam alguma luz sobre a presenca deles no Rio de Janeiro (Quadro Ill). De saida, salta aos olhos ‘* ROWLAND, Robert. Emigracion, estructura y region en Portugal (siglos XVI-XIX). In: ROEL, Antonio ras (org, Emigracién Espanola y Portuguesa a Amenca, Actas det II Congresso de la Asociacion de Demografa Histérica, Alicante, Abri de 1990. Acai: institio de Cultura Juan Gil Alber 1991, p. 137- "146; CORDEIRO, Carlos; MADEIRA, Artur Boavida. A emigragso aroriana para o Brasil (1541-1820): uma Jeitura em tomo de interesses vontades. Arqupélago, Histona, 2* série, (Vl), p. 99-122, 2003; BRETTELL, Caroline. Homens que partem, muheres que esperam: consequéncias da emigragdo numa trequesia ‘minnota, Lisboa: Dom Quixote, 1981; SCOTT, Ana SiNia Volpi. Familas, formas de unido e reprodugso ‘social no.noroeste portugues (séoulos XVII e XIX). Sdo Leopoldo: UNISINOS, 2012, p, 55-89. ™ RUSSEL-WOOD, A. J. R_ Um mundo em movimento: os portugueses na Africa, Asia ¢ América (145-1808), Lisboa: DIFEL, 1992, p, 99-191; PEDREIRA, Jorge, O Gras ronteira de Portugal: negocio, seats ibaa soaks Ne HIE Cun Aeie owed dat foe MONTEIRO, Nuno Gongun, A crelebo ces las no inparo don open (1040-08) tgunan ‘notas. Tempo, Nitti, v. 14, n. 27, p. 51-67, 2008, ‘Ucraas Vorranes: Testauenro, SocreoAne & CuTuRANAAMERICA InERICA [secs XV EVI] 113 que a urbe carioca era o principal destino declarado pelos requerentes e, em que pese o desequilibrio entre os dois periodos em que a amostra foi dividida, as proporgées entre homens e mulheres que desejavam aportar na urbe carioca néo sofreram grande variagio: 60,2% e 39,8% até o ano de 1775 € 63,9% © 36,1% no periodo seguinte. Como era de se esperar, tratava-se de um contingente ma- joritariamente adulto que a0 longo do tempo apresentou tendéncia de queda da presenca de criancas de 26,0% para 22,7%. Quadro 3. Emigracio agoriana para a América portuguesa (1766-1797) EE sees fw ee Ta ea Fonte: BELO, Anténio Raimundo. Relagdo dos emigrantes agorianos para os estados do Brasil ‘extrafda do “Livro de Registros de Passaportes” da Capitania Geral dos Asores. in: Boletim do Instituto Histérico da Ilha Terceira (1947 a 1950 e 1954), v. V; VI, VIL, VIII, IXe XL Nio hd meios de saber quantos faleceram em transito, rumaram para outros rincdes da América portuguesa ou retornaram as ilhas depois de resolvidas as pen- déncias que os trouxeram ao Rio de Janeiro, entretanto as declarag6es feitas pela maioria dos emigrantes e anotadas nos passaportes, embora sucintas, so bastante eloquentes porque atestam a importéncia do amparo familiar em solo estranho, como de resto prestam informagées valiosas sobre o animo que os movia."* Fosse qual fosse a motivacao dos ilhéus e dos reinéis para migrar, no resta divida de que a cidade do Rio de Janeiro era um polo de atragio poderoso, visto que em meados do século XVIII a urbe carioca assumiu a posi¢ao de principal encruzithada do Im- pério portugués e ganhou a fisionomia de maior cidade escravista das Américas."* "7 “Manoel de Aguiar, da Vila da Praia, 4 cidade do Rio de Janeiro, para seu immo José de Aguiar de Almeida que 0 mandara buscar’ “José Pereira Borges, & mesma cidade, para receber a heranga de ‘seu tio Mateus Vieira Borges”; “Aniénio Feliciano Serpa, & cidade do Rio de Janeiro, com sua mulher ‘Ana Joaquina de Castelo Branco @ um fiho de sete meses, 8 procurar modo de vida"; Jodo de Souza Chora, vidvo, de S. Bartolomeu, @ cidade do Rio de Janeiro, com sua filha Bernarda Joaquine, para seu limo José de Souza, abastado de bens”; “Ana Joaquina, de Angra, com sua filha Maria do Carmo, @ procurar a companhia de seu marido Manoe! José Joaquim”. CY. BELO, Antonio Raimundo. Releco dos ‘emigrantes... v. V, VI, Vil, Vill, IX @ XI. "3 LOBO, Eulalia M.L. Historia do Rio de Janeiro: do capital mercantil 30 capital industrial e inanceiro, Rio de Janeiro: Ibmec, 1978; FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma Histéria do trafico de escravos entre a Africa e © Rio de Janeiro (séculos XVill XIX), 3* edigao. Sao Paulo: Unesp, 2014; ‘SAMPAIO, Antonio Carlos Jucé de. rage ngigreseah raynsny ap menteene Pte oe oy econdmicas no Rio de Janeiro (c. 1850-c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 114 RosenTo Guenes ~ MaRcio 0€ Sousk Soares 4 4 : 2 ‘ Sa Be ee "desta cidade”, que a fizeram a “sua custa” ¢ assistiam-na, “para o ornato dela”, ‘com recursos de “uma confraternidade”. Os pretos forros e cativos “mandavam -dizet todos os anos uma capela de missas pelos seus irmaos vivos e defuntos”2” Bram devotos e nao deviam ser poucos no século XVII. Continuavam devotos “mais de um século depois, porém numa proporgio bastante elevada na cidade -escravista que libertava.” Os pardos e pretos libertos somavam 8.808 pessoas, correspondendo a 44,9% dos 19.578 livres. Ou para cada dois brancos livres havia um liberto pardo ou preto™ (ver Quadro 2); no entanto, certamente boa parcela dos brancos nao era alva na aparéncia da tez e sim pessoas socialmente reconhe- ‘cidas como brancas. A semelhanga do que viram e escreveram outros viajantes, -Frangois Vivez lamentava, em 1767, que o Rio de Janeiro fosse habitado por uma gente téo barbara, na sua maioria negros e mulatos ~ ha pelo menos vinte negros ou mulatos para cada branco. E é esta maioria que dita lei no pais, pois sao em tao grande nimero que o vice-rei- um homem. detestado por todos ~ vé-se obrigado a nao os incomodar [...].O seu governo 6 formado somente por mulatos [...]- Na opiniao do observador estrangeiro, os mulatos estavam no poder no Rio ein de 1767, ainda que o viajante se referisse a eles em tom depreciativo. Da cidade em 1748 ja se dizia que ela era “um verdadeiro formigueiro de negros”, ‘quando se via também, conforme o relato de outro viajante, “uma grande quanti- dade de mulatos. Nessa cidade, a cada dia que passa, o sangue mistura-se mais mais".”’ Portanto, é bastante provavel que entre os brancos computados no mapa de 1799 houvesse mesticos e outros egressos do cativeiro, enquanto os demais livres foram discriminados como libertos. Entre eles, pelos indices calculados com base no Quadro 2, os pardos somavam 4.222 (47,9%) e os pretos, 4.586 (52,1%), um ligeiro desequilibrio pendendo para os segundos. Entre os homens pardos li- Dertos ~ excluidos eclesiasticos, filhos e agregados ~ os casados e vitivos chegavam ACR — Noticias do Bispado... % CF, 08 interessantes estudos sobre devotos devoro negra. SOARES, Devolos da cor, 2000; OLIVEIRA, Anderson José M. Devocdo Negra: santos pretos e catequese no Brasil Colonial Rio de Janeiro; Quartev/FAPER4J, 2008, 3 Os fonoa equvalom a 58.8% da populagdo escrava Diferente de Minas Gerais (cf. capitulo 5 neste lito), na Corte 0s foros no eram poucos, Para outros exemplos, cf. AGUIAR, Por entre as restas, 2014. 3 Apud FRANCA, Jean MC. A construgdo do Brasil na Literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVI, ode Janeiro: Jose Olympia; So Paulo: Unesp, 2012, p. 584-586. FRANCA, Jean M,C. Visdes do Ro de “Janeiro Colonial. Antologia de textos (1531-1800), Rio de Janeiro: EDUERY: José Olympia, 1999; Outras ‘Vibes do Rio de Janeiro Colonia. Antologia de texts (1581-1808). Ro de Janeiro: José Olympia, 2000; "FRANCA. Jean M.C. Visdes do Rio de Janeiro Colonial, Antologia de Textos (1531-1800), Rio de ‘Janeiro: EDUERY; José Olympic, 1999, p. 83-84. Sobre mesticagem, ver PAIVA, Eduardo Franca. Dar ‘nome a0 novo: uma histéna lexical da Ibero-América, entre os séculos XVI e XVIll (a8 dindmicas de _mestigagens eo mundo do trabalho). Belo Horizonte: Auténtica, 2015. Ouras Voroes: Testuenro, SoceDADe CuMTIRANAAMERECA RICA scan XVEXVI A124 4 75,3% e os solteiros a 24,7%. Casadas ou vitivas compunham 61,5% entre pardas e as solteiras respondiam por 38,5%. Por sua vez, os pretos libertos casados ou vitivos alcancaram o patamar de 62,5% e os solteiros representaram 37,5%, en- proporcéo de casados ou vitivos era de 67,6% e a de solteiros, 32,4%. Era entre as mulheres brancas que estava a maior diferenca, uma vez que as casadas atingiram 0 cume de 82,2% e apenas 17,8% eram solteiras. Afora o fato de haver 0 que se possa chamar de brancas de cor de pele, pode ser que o estado de solteira levasse 4 ten- déncia, nao a regra, de comtabilizar as mulheres como pretas.”* Entretanto, entre as_ pardas libertas residentes na freguesia da Sé, o indice de solteiras chegou a 60,1%, 0 maior de todos os grupos de solteiros da cidade. Na Sé, a proporgao de celibatarias entre as pretas libertas também era a maior da cidade, 58,4%. Parece que se casava_ menos na Sé e, como se verd mais adiante, a expressiva quantidade de forras pretas € pardas solteiras da freguesia interferiu no perfil dos testadores foros. Seja como for, prevaleceram os casados no conjunto dos forros, mas vale dizer que ninguém deixava de ser cristo porque nao era casado. A propésito, ¢ igualmen- te importante assinalar que a maior parte das irmandades de pretos e de pardos esta~ va abrigada na freguesia da Sé, desde meados do século XVII e ao longo do XVIIL."* Foi, portanto, num ambiente urbano, catélico e acentuadamente escravista com altas taxas de alforria que os testadores aqui analisados ditaram suas tiltimas vontades. Laetitia hes eos naa NE ERAT a OK Perfis sociais e patriménio dos testadores Expressando 0 crescimento de desembarques de cativos africanos na cidade, ‘© Quadro 5 demonstra o acesso a posse de cativos por diferentes grupos. Nada menos que 81,6% dos testadores forros eram senhores de escravos as vésperas da morte, propor¢io superior aos 75,2% dos portugueses e ilhéus, mas ambos ultra- passados pelos naturais do Rio de Janeiro, cujo percentual de senhores atingia o patamar de 86,1%. Decerto a média de escravos possuidos pelos forros, no con- texto da escravidio urbana do Rio de Janeiro, era menor do que os demais, contu- do indiscutivelmente a posse de escravos era amplamente disseminada entre os li- bertos a semelhanca de outras épocas e cendrios examinados pela historiografia.”* * Aventamos @ hipétese em GUEDES, Livros paroquials, 2014. p, 127-186. Cl. também FARIA, A * Segundo 0 dicionério de Antonio Moraes e Siva, pubicado em 1798, aifabeto significa “Abecedério: ‘28 primoiras letras que se do a conhecer a quem aprende a lar. Ct. hipwww-brasiiana.usp.bript-by/ dicionario/altabersC3%A 140 2" No vocabularlo de Raphael Bluteau, cuja primeira edigdo data de 1720, letradinho ¢ 0 “hemem de poucas letras”. Ct. htp./iwww brasiana usp bript-beidicionarie/Netrado 124 Rosenro Gueves ~ MARCI DE Souss Soames - escrever, inclusive entre os 62 senhores de cativos desse grupo. Porém, 0 fato de 15 (19,7%) saberem ao menos escrever o préprio nome nao é nada desprezivel para os padrdes de época. A estraneidade derivada da origem africana que marcava a maior parte da populagio escrava do Rio de Janeiro era uma barreira conside- “rivel ao acesso ao dominio da escrita."° Nao é ocioso lembrar que os africanos, a “maioria entre os forros que testaram na freguesia da Sé, desembarcavam adultos € _bogais para se ver diante do desafio de aprender uma nova lingua simultaneamen- _ te ao idioma da escravidio e, porisso, o leitor ha de reconhecer que, salvo algumas “excegdes, a vida pregressa sob a canga vexaminosa do cativeiro nao favorecia 0 aprendizado do abecedario. Qs testamentos de forros espelham a incapacidade de utilizagao da palavra escrita com grande nitidez, pois eles geralmente se encerravam com a seguinte “declaragao: ¢ por ndo saber ler nem escrever pedi a [...] que esse por mim escrevesse. Se- melhante situagao, diga-se de passagem, nao se restringia aos libertos, uma vez que nada menos do que 32 testamentos, dentre os 37 (23,0%) de portugueses ou ilhéus sem dominio do abecedério, utilizaram expressao idéntica. Para 49 portu- _gueses (30,4%) afirma-se que 0 testamento foi escrito a rogo e assinado pelo testador com sinal de que usa ou entao que havia sido escrito a rogo por no poder escrever, 0 que -deixou margem a diwvidas sobre o conhecimento do alfabeto pelo testador, pois ‘em certos casos, o motivo da incapacidade de redigir do proprio punho era claro: ‘escrito a rogo por nao poder escrever 0 testamento em razdo da doenga. De todo modo, “era muito menos assidua qualquer alusao explicita ao assinar com cruz ou ao nao saber ler nem escrever entre os portugueses ¢ ilhéus, o que talvez signifique que 0 ‘indice de letradinhos entre eles pode estar subestimado. Todavia, levando em conta ‘que a maior parte desses testadores era composta por homens, entre eles nao era tao baixa a intimidade com a palavra escrita, haja vista que entre as 112 situagdes ‘em que hd certeza sobre a relago do testador com o abecedirio,"' 75 (67,0%) ou cerca de 2/3, seguramente sabiam ler e escrever.” oo ‘A par disso, @ ainda que maior parte dos foros atricanos testadores da amostra soja oriunda da ‘Atica Ocidental, alguns estudos tém salientado a difusdo da escria entre aficanos na Africa Central ailéntica setecentsia © otocentista, Porém, o modo publica de se ler era iguaimente importante, indo ‘lem da dicotomia entre oralidade © escrita CI, TAVARES, Ana Paula; SANTOS, Catarina M. 2002 ‘Aficee Monumenta. A apropriagao da escrita pelos africanos. Lisboa: ICT. SANTOS, Catarina, Escrever “0 poder. Os autos de vasselagem e 8 vulgarizacdo de escrita entre os alricanos: 0 caso dos Ndeumbu ‘em Angola (aéculos XVII-XX). In: Intemational symposium Angola on the Move: Transport Routes, ‘Communication, and History, Bertin, 24-26 September 2003. “* Nao levamos em conta 0s casos em que se afirma apenas que o testamenio foi assinado pelo teslador, pois 180 hé precisBo se foi assinado com cruz ou com firma. Consideramos conhecedores do afabeto 0s que assinaram com leva, firma, nome, dente outros indicios nesse sentido. © Segundo a leitura que Nuno Monteiro faz das evidéncias © dos argumentos apresentados por Jorge Pedreia, ‘| ratava-se de uma emigrag0 majoritariamente jovem, masculina, e, 20 que tudo indica, afebetizada, que se inseria em grande medida dentio de uma ligica de expulsdo de flhos ‘Ucrnins Vonanes: Tes awenTo, SociEDADE © CULTURA WA AMERICA Inémica [eowios XVI XVIN] 4.25 As fontes examinadas revelam, portanto, que, independentemente das dife- rengas sociais entre os testadores livres e os forros, a falta de dominio da palavra — escrita sempre pesou mais sobre as mulheres. No caso das 19 testadoras vindas do além-mar, sobre as quais ha certeza quanto ao grau de conhecimento do alfa- beto, apenas cinco sabiam ao menos assinar o nome, mas, dentre os 93 homens, — apenas 24 (25,8%) nao dominavam a palavra escrita. No conjunto dos testadores alforriados, dos 31 homens, apenas nove sabiam escrever, ao passo que nos 45 testamentos ditados pelas forras apenas seis sabiam assinar o nome. Quando se leva em conta a naturalidade dos libertos, verifica-se que no conjunto formado por 34 testadores forros e forras nascidos na América portuguesa, 1] sabiam es- crever, correspondendo a mais de 1/3 do grupo, porém sete deles eram homens,o _ ‘que significa dizer que quase metade dos 15 homens libertos aqui nascidos sabia escrever, ao passo que, entre as mulheres forras apenas quatro das 19 testadoras eram capazes de assinar. A semelhanga do que ocorria com os adventicios do além-mar, a desigualdade de género entre os libertos foi preponderante para determinar o grau de conheci- mento da escrita.* Todavia, a0 contrario do que se possa eventualmente pensar, preciso levar em conta a observa¢ao acurada de Cristina Wissenbach ao conduir que, mesmo nao sendo leitores nem escritores, 08 escravos € os libertos sabiam muito bem em que circunstancias deveriam recorrer aos cédigos escritos endo poupavam esforcos para isso, nem que fosse preciso rogar pelo amor de Deus que alguém thes fizesse a mercé de empunhar uma pena para registrar suas tltimas vontades. Na verdade, os testadores, mesmo sem saber ler e escrever, eram, pelo ditado, protagonistas da enunciacéo de suas iltimas vontades, valendo-se de maos alheias ¢ adentrando a ldgica dos poucos que dominavam a palavra escrita.* Sexo, herdeiros forcados e situaga0 conjugal dos testadores Os testadores de além-mar e os libertos apresentam diferen¢as substanciais no que concerne ao sexo, & existéncia de herdeiros forcados ¢ & situacao conjugal. excedentarios de grupos domésticos de lavradores razoavelmente abastados do Nordeste, a zona agricola mais rica € densamente povoada de Portugal, ¢ também de filhos de artesos; uma emigragio de remediados, portanto, dotados.de dois capitais extremamente valiosos: saber ler e escrever, num reino esmagadoramente analfabeto, e um espectro de relagSes que Ines garantiam uma colocag30 cconveniente no local quase sempre urbano de destino”. MONTEIRO, A circulagso das aites, p. 63. Ct, no mesmo sentido VARTUILI, Silvia Maria A. R. Por mBos aiheias: usos sociais da escrita na Minas Gerais colonial. Belo Horizonte: UFMG, Programa de Pés-graduagdo em Educagdo, 2014, ‘“* WISSENBACH, Maria Cristina. Cultura © escravidSo, In: Anais da Reunido Anual da Associag#o Nacional de Pesquisa ¢ Pds-greduagéo em Educagso, Caxambu: ANPED, 2002, s/p. CD-ROM. ** Ver a complexidade da questo em VARTUIL!, Por méos alheias, 2014 126 Rosenro Guroes - Mancio 0& Sousa Soares: _ Embora nos faltem estudos sisteméticos sobre o assunto, parece indiscutivel que ne dos testadores em relagao aos ascendentes também era uma especifici- i Nada menos de 141 (87,6%) portugueses eram filhos legitimos, -cujos pais foram nomeados no testamento, enquanto apenas nove (11,8%) forros -eram filhos de pais casados e 15 (19,7%) haviam nascido de mulheres solteiras, todos eles eram naturais da América portuguesa e sobre os demais 52 testadores “nao ha informagdo. Como era de se esperar, os africanos nao faziam mengao aos _nomes de seus pais ¢ os dizeres de alguns testadores explicam o motivo. Em abril ‘de 1777, Maria Soares, natural da Costa da Mina, afirmou nao “ter conhecimento "de quem foram [seus] pais”;** ao testar em julho de 1783, Isabel da Silva declarou "que era “natural da Costa da Mina filha de pais gentios”;“” Rita Francisca dos Pas- 's0s, por sua vez, disse em novembro de 1792 que era “natural da Costa da Mina _de onde vim menor e batizada na freguesia de Nossa Senhora da Candelaria”.** _ Esses fatores de ordem parental eram cruciais para determinar a existéncia ou nao de ascendentes ou outros potenciais herdeiros necessarios, a exemplo de parentes colaterais. No caso dos 161 portugueses e ilhéus, 54 (33,5%) declararam -aexisténcia de filhos legitimos ou naturais, ao passo que 47 (29,2%) testadores _que nao possuiam descendéncia alguma, declararam a existéncia de parentes con- __sanguineos em seus locais de nascimento ou na cidade do Rio de Janeiro e outras -paragens da América portuguesa. Os forros, por sua vez, sofriam menos pressdo da existéncia de herdeiros forcados na ocasido da feitura de seus testamentos, _ pois apenas 23 testadores tinham filhos e tio somente cinco sem descendéncia de qualquer espécie acusaram a presenca dos pais ou de parentes colaterais vivos. A luz dessa reflexo, torna-se imperativo examinar a correlacdo entre a exis- téncia ou nao de herdeiros necessirios e a concessao da alforria. Como é possivel observar no Quadro 5, no conjunto dos 62 forros senhores de escravos, 47 (75,8% ou 3/4) alforriaram, contudo essa proporsao cai para 14 dentre os 21 testadores (1A dos escravistas) que mencionaram herdeiros forgados. Por outro lado, dentre 08 41 senhores libertos sem herdeiros forgados, 30 (quase 3/4) alforriaram, No entanto, a intensidade do ato de libertar entre os livres com herdeiros forgados guardava alguma diferenca com relagao aos forros, visto que dentre os 121 tes- tadores senhores de escravos nascidos em Portugal € nas ilhas pouco mais da metade libertou. Nesse conjunto havia 60 sem herdeiros forcados, dos quais 38 libertaram cativos, ou seja, quase 2/3, porém quando se observam os 61 com herdeiros, verifica-se que 26 0 fizeram, isto é, 0 equivalente a 42,6%. Conside- CMR ), LOFSSS-Ru, n. 18 (1776-1784), p. 83v. "TACMRY, LOFSSS-RU, n, 18 (1776-1784), p. 408. “®ACMRJ, LOFSSS-RJ, n. 2 (1790-1797), p. 250. crus Voroes:Testuenro, Soceonor & Curunana Avena enc oeoxoe XVII] 427 -escravos que jé havia libertado antes de expressar as tiltimas vontades. Vale notar _ que nenhuma portuguesa, agoriana ou madeirense solteira possuia um escravo ssequer, diferenga marcante em relagao as 17 mulheres forras na mesma situagao “conjugal responsiveis pela alforria de 29 escravos, Com efeito, se por um lado os ‘53 senhores de além-mar libertaram mais mulheres do que homens (49 e 34 res- pectivamente), por outro, as 11 senhoras demonstraram uma preferéncia quase exclusiva pela alforria das suas escravas, pois foram 13 libertadas e apenas um es- cravo."® Nesse aspecto, as senhoras do além-mar se parecem com as 17 senhoras forras, que libertaram 21 cativas e apenas seis cativos, ¢ para trés manumitidos ‘em testamento nao foi possivel saber 0 sexo, j4 que nao foram nomeados, eram apenas filhos de Gracia. Por seu turno, os senhores forros de sexo masculino liber- ‘taram 14 homens e 12 mulheres, ao passo que o conjunto das senhoras forras, & revelia do estado conjugal, manumitiram 54 pessoas: 35 mulheres, 16 homens e (05 trés filhos de Gracia. Em quatro casos, os homens libertos eram rebentos de suas ‘ativas, havia um aprendiz de carpinteiro, um rapaz, um moleque, um cabrinha de menor idade, um moleque e uma cria, que totalizam dez homens, mas apenas trés homens libertos eram africanos. Ou seja, as senhoras forras quando libertavam ho- mens priorizavam cativos criangas suas crias e/ou filhos de suas escravas. Os ho- mens forros s6 mencionaram um crioulinho e um mulatinho entre seus 14 homens libertos, mas havia cinco africanos entre eles que certamente nao eram suas crias. © que esses niimeros sugerem é que senhoras tenderam mais a libertar mulheres, € os homens testadores 0s seus “iguais”, isto é homens, sobretudo os senhores forros; portanto, a escolha dos escravos a serem alforriados tinha menos a ver com 4 origem e a condicao juridica dos senhores e mais com seus respectivos sexos. Em sintese, tudo sugere que a combinagao entre escravarias diminutas e ma- joritariamente compostas por mulheres pertencentes as portuguesas ¢ ilhoas (no total eram 34 escravas ¢ somente dez escravos) ~ 0 que decerto implicava em uma estreita convivéncia entre senhoras e cativas ~ associada a sensibilidade feminina ‘aos fartos apelos piedosos langados por aquele “catolicismo barroco” explica a larga vantagem obtida pelas escravas na obten¢io da alforria.*’ Contudo, questées de género A parte, vimos que, mormente no caso dos tes- tadores forros, a existéncia ou nao de herdeiros forgados foi decisiva para a maior inclinacao de conceder alforria testamentaria. Por exemplo, em julho de 1795, % A respeito dos 97 escravos libertados pelos portugueses e iihéus, foi possive! identificar a Procedéncia de 65, com ligeira vantagem dos africanos sobre os escravos nascidos na América (36 © 29 respectivamente). NAo ha muitas indicagbes precisas sobre a idade, mas 12 certamente eram ‘cnangas e, levando em conta as alusbes & procedéncia africana @ a indicagdo de oficios exercidos pelos ‘escravos, possivelmente 51 eram adultos e velhos. * Segundo Raphael Bluteau, considerava-se beataria ou beatice uma aletada demonstragao de virlude. Cf. http://www. brasiliana.usp.br/pt-bridicionario//beataria. ‘Giraas Vormoks: Tesrasento, Socsnane € Cinruna na Aenea Inémca[xcxoe 11 @xViH} 429 Leonor Francisca da Silva, forra natural do Rio de Janeiro, solteira com filhos, afirmou possuir duas escravas: Barbara e sua mae Tereza, seus bens mais valiosos, além de “mais uns trastes velhos de casa que pouco ou nada valiam”. Como dis- posi¢ao de ultima vontade, depois de sua morte libertava Tereza gratuita e incon- dicionalmente por lhe ter “servido sempre bem”, cujo valor deveria sair da “parte de minha [sua] tera”. A senhora Leonor Francisca nao parou ai, pois também desejava conceder a liberdade a Barbara. No entanto, estabeleceu duas condi¢des: _ “Declaro que se na minha terca couber o valor da escrava Barbara, filha de Tereza acima declarada, se couber na minha terca ¢ minha vontade que esta fique forra dando [em] dois anos uma dobra e meia até completar seis dobras".* Uma vez _ apresentado o valor estipulado dentro do prazo estabelecido, a escrava Barbara deveria receber sua carta de liberdade, “sem embargo de avaliagao em que ela for feita porque todo © excesso quero que se tome na minha parte”. Leonor Fran- cisca agiu assim foi porque nao era do seu “intento prejudicar os meus [seus] filhos".* O caso ilustra de maneira inequivoca que a existéncia de herdeiros forcados era fator decisivo sobre a concessao das alforrias e suas modalidades. A senhora Leonor Francisca viu-se obrigada a escolher e assim o fez. £ de se supor que a liberdade gratuita incondicional foi direcionada a Tereza, mae de Barbara alforriada condicionalmente, em virtude de um convivio prévio maior com a tes- tadora por ser sua escrava hd mais tempo. Porém, beneficio idéntico no péde ser concedido a Barbara para ndo prejudicar os filhos da senhora, ainda que tenha prevalecido o desejo de libertar ambas. Outro exemplo de preocupacao com a vida dos filhos apés o falecimento dos testadores é o de Floréncia Maria, preta forra da Guiné, vitiva, mae de Juliana. Em maio de 1795, a testadora dissera possuir entre seus bens 0 escravo Manoel de nacao Cabundi, oficial de barbeiro, o qual, depois do falecimento de sua senhora, ficaria com seu testamenteiro, que deveria tomar “conta dele e dos seus irmaos [do escravo e] que estes servirao para sustento da dita minha filha e herdeira e isso dentro de um ano, findo 0 qual, dando 0 dito escravo a quantia de seis dobras pelo seu valor”, o testamenteiro Ihe passaria carta de liberdade.** Outro caso foi o de Anténio José Afonso, preto forro da Costa da Mina, que em maio de 1777 afirmou em testamento ser casado e pai de quatro filhos. Dera um escravo de dote a uma de suas filhas e mencionou mais seis cativos em testamento entre os bens que possuia. Recomendou as providéncias para sua boa morte e salvagao de sua alma (enterramento, missas, acompanhamento), o pagamento de suas varias dividas e que de seus bens se vendesse “o que for melhor, e do seu produto se cian ion a reales siceesiaaelaaeS "ACMRJ, LOFSSS-RJ, n, 2 (1790-1797), p. 331. Uma dobra ou dobla equivalia a 123800 réis, "°ACMRU, LOFSSS-RJ, n. 2 (1790-1797), p. 328. ™ ACMRU, LOFSSS-RJ, n. 2 (1790-1797), p. 3085. 130 Roverro Gueces — MARcio 0€ Sousa Sones Kar ices -mande dizer em missas pela minha alma na igreja de Sio Domingos”, sem es- pecificar que os bens fossem os escravos.** Do que sobrasse de sua terga, talvez ‘a tercinha,** se daria meia dobra ao seu neto Francisco “e o mais que restar da dita terca se mande dizer em missas pela minha alma a saber, a metade na Igreja -de S40 Domingos e outra metade na Igreja dos Frades de Santo Santo Anténio”. Nenhum cativo foi alforriado. Em suma, ao se tragarem perfis dos testadores aqui analisados, deve-se notar ‘que, entre os portugueses e ilhéus prevaleciam aqueles que tinham herdeiros for- ados € parentes colaterais vivos; uma elevada propor¢io de homens com maior “frequéncia no ato de alforriar e acentuadamente mais sabedores do abecedirio do que as mulheres. Em rela¢ao aos forros, majoritariamente sem nogao do alfabeto € afora o fato de todos terem experimentado uma parcela da vida em cativeiro, ‘salta aos olhos que mais da metade era composta de africanos, com forte predo- ‘minio das mulheres que, 4 semelhanca das testadoras livres, também alforriaram Proporcionalmente mais do que os homens, bem como os sem herdeiros forgados. Todavia, havia outras diferencas, pois 0 viver em uma sociedade catélica tam- ‘bém hierarquizava as pessoas de acordo com 0 estado conjugal, o que igualmente interferia na decisdo de alforriar, sem que esse aspecto seja aqui computado de- vido aos limites impostos pela dispersdo dos niimeros da amostra que inviabiliza uma comparaco das praticas de alforria conforme o estado matrimonial dos tes- tadores.*” O catolicismo interferia, no entanto, de outros modos, uma vez que as alforrias testamentarias eram, em larga medida, uma modalidade de doa¢o, uma dadiva.** Por sinal, é bastante significativo que no imaginario catélico setecentis- taa figura de Deus estivesse profundamente associada a alforria e aos forros, uma ‘vez que, segundo as explicagées do dicionarista Raphael Bluteau, liberto era sind- ‘nimo de “escravo forro; escravo que tem carta de alforria” e “amar a Deus porque nos remiu é tributo de libertos”.* [0 grifo € nosso} Ora, um dos aspectos que mais se destaca na documentagao é a quantidade ‘expressiva de testadores sem herdeiros forcados, o que nos levou a indagar sobre ‘© teor das disposigGes testamentirias dos tementes a Deus, que nao raro estavam adoentados ao ditarem suas dltimas vontades naquele mundo catélico. Jé se de- ‘monstrou alhures que os legados pios ultrapassavam em tipo de doacao e em valor "5 ACMRJ, LOFSSS-RJ. n. 18 (1776-1784), p. 52. ** Lei de nove de setembro de 1769 que ampliou as disposigdes da Lei de 25 de julho de 1766. In: http ‘wor iuslustaniae fesh unl pt. Para uma analise detalhada sobre o assunto, Cf, RODRIGUES, Inlervindo ‘sobre @ morte, 2015. *7 0 assunte foi abordado em GUEDES, Egressos do cativeiro, capitulo 1V. 5 CL SOARES. A remissdo do cativeiro, p. BS ef passim. Ct. htp:/www brasiliana.usp briptbridicionari Vibert. ‘Ucrmas Vowraves: Testawento, Socizoane © Cuctuna na Amica Inés [seonoe XVe XVI] 134 Aqueles deixados a amigos e/ou parentes.“° Enquanto esteve em vigor, a legislagao josefina (1750-1777) sobre os testamentos, especialmente as leis de 1766 ¢ 1769, rendeu muita polémica e bem que tentou limitar a dilapidacao do patrimdnio que _ ‘os siditos costumavam fazer com avultados gastos e doac6es pias, sobretudo as agremiacées religiosas, que visavam favorecer a salvagao de suas almas, Em nome do bem comum, as novas leis testamentarias decretadas durante o reinado de D. José procuravam beneficiar os parentes colaterais até 0 quarto grau de consangui- nidade dos testadores que, na auséncia de ascendentes ou descendentes, deve- determinou-se que, para fins soteriolégicos, 0 testador poderia dispor apenas da terca parte de um tergo do patriménio - vulgarmente chamada de tercinha - desde que © valor dos bens nela contidos nao ultrapassasse 0 limite de 400$000 réis, © que, diga-se de passagem, era valor suficiente para pagar 1.250 missas no Rio de Janeiro.*' Ademais, a partir de 1769 procurou-se restringit as doagSes feitas as pessoas estranhas aos vinculos de sangue, permitindo-as somente em relacao aos bens adquiridos pelo testador, dai resulta o cuidado que 44 pessoas, incluindo seis forros, tiveram ao declarar a origem de seus haveres tinica ¢ exclusivamente “adquiridos por indiistria e trabalho sem que nada seja herdado” a fim de garantir maior liberdade de decisio sobre o destino de parte de seus patriménios. Houve, de fato, redugao dos legados pios em fins do século XVIII, mas nunca deixaram de representar menos do que 40% do total das doagées, 0 que indica que, entre outras evidéncias elencadas pela historiografia do direito na Era Moder- na, a legisla¢ao nao possuia um carater positivo €, em matéria to delicada quando se tratava de salvar a alma, a forga da piedade catélica falou mais alto entre os stiditos cristdos de Sua Majestade até que Dona Maria I houve por bem sossegar 0s animos dos seus vassalos e decidiu, em julho de 1778, revogar varios artigos das Leis Testamentarias em nome da liberdade de testar.® ‘Mesmo com as restrigGes vigentes no periodo josefino, nenhum testador ja- mais deixou de mandar rezar missas para sua alma. Nada menos do que 56 for- FRAGOSO, Joao. Apontamentos para uma metodologia em Historia Social a partir de assentos paroquiais (Rio de Janeiro, séculos XVIL-XVIIl). In; FRAGOSO; GUEDES; SAMPAIO, Ampuivos paroguias, p. 19-126. * De corde com Claudia Rodrigues, os Processos de Prestacdo de Contas de Testamenios da época Indicam que © valor da “esmola costumada” de uma missa em inlencdo das amas era de $320 réis. ‘Ao contrério do que se possa eventualmente pensar, tratava-se de uma redugdo dréstica, haja vista Internacional ~ morte na teroamérie (sdculos XV"XIX} fontes © matodolgies UNIRIO: 2014 (mimes) " RODRIGUES, intervindo sobre a morte, 2015, p. 331. 132 Rovenro Gueoes ~ MARcio 0€ Sousa Soares “ros e 137 portugueses ¢ ilhéus revelaram temer a morte e/ou manifestaram o desejo de colocar as suas almas no caminho da salvacao. No conjunto analisado, 437 forros e 89 livres diziam-se doentes quando testaram, entretanto convém no esquecer que as enfermidades eram geralmente entendidas como consequéncia “do pecado ou uma provagao divina ~ estando doente de doenga que Deus foi servido me dar — por conseguinte o que mais sobressai na documentagao eram a incerteza e 0 ‘medo dos testadores sobre o destino post-mortem e, nesses momentos de angistia, tudo faz crer que a satide do corpo era 0 que menos importava até porque para muitos ela ja estava irremediavelmente perdida Os pedidos de sufrégios em beneficio préprio e para outras almas de gente ‘conhecida ou estranha que pudessem estar padecendo no purgatério eram consi- derados imprescindiveis.® Nao é ocioso lembrar que a principal finalidade de um testamento era a promocio da boa morte e, para tanto, o concurso dos mortos e das entidades celestiais era decisivo." Conforme advertiu Phillipe Ariés, é neces- sério levar em conta que a disposi¢ao dos bens materiais feita pelo moribundo era, acima de tudo, um dever de consciéncia. A titulo de exemplo, basta citar 0 caso do portugués José da Silva, que se encontrava doente ao ditar suas tiltimas vontades ‘em 15 de janeiro de 1782. Natural do termo de Barcelos, arcebispado de Braga, nao sabia dizer se seus pais estavam “vivos ou mortos por nao ter ha tempos no- ticias deles”, para logo em seguida declarar que na véspera havia-se casado com [..] Micaela Arcanja mulher parda, cujo casamento foi feito no dia quator- ze do corrente més sem cléusula alguma estando eu enfermo de cama para ‘contas a Deus e para desencargo da minha consciéncia a recebi como minha egitima muther pelas obrigacdes que the devia, e trabalho que comigo sem- [pre teve em todas as minhas moléstias (...].° Sem filhos para suceder os bens ~ duas moradinhas, um reldgio de prata e cin- 0 escravos ~ instituiu os pais seus herdeiros universais dos 2/3 de sua meacio, caso ainda estivessem vivos ou, do contririo, deixava o remanescente da terca ¢ © restante de sua meacio a sua mulher “[...] por esmola pela razio de a ter (sic) recebido na cama em perigo de morte pelo trabalho que comigo tem tido”. Quatro dias depois o testador exalou seu iiltimo suspiro. Os exemplos citados autorizam-nos’a concluir que, como parte integrante dos ritos necessirios A salvago da alma, a distribuigdo dos haveres em um testamento ' RODRIGUES, Nas fronteiras, 2005, op. it; CHAHON, Sérgio, Os convidados para a cela do senhor. ‘as missas e a vivéncia leiga do catoicismo na cidade do Rio de Janeiro e aredores (1750-1820), S80 Paulo; EDUSP, 2008, p, 208-232 et passim. ‘ RODRIGUES, Nas fronteiras, 2005 ‘SSACMR4, LOFSSS-RJ, n, 18 (1776-1784), p. 300, “*ACMRJ, LOFSSS-RU,n. 18 (1776-1784), p, 300, ‘Ocraas Vonraces: Testamenro, SOCEDADE € CULTURA NA AMERICA IBERICA [secvios XVII = XVIN] 433 nao se reduzia a uma preocupacdo meramente mundana. Era, para usarmos as _ palavras de Ariés, “antes de tudo, um ato religioso, embora nfo sacramental”,‘” uma verdadeira obrigag4o moral preparatéria para o inevitavel acerto de contas entre o finado e o Criador. Nao é de admirar, portanto, que 69 testadores sem ascendentes ou descendentes vivos, incluindo 13 forros e 18 naturais do Rio de Janeiro, tenham instituido as suas préprias almas como herdeiras, visto que a cultura juridica de Antigo Regime ibérico herdou do medievo a convic¢ao de que ‘as mesmas eram sujeito de direitos.“* E assim, moradas térreas ou assobradadas, terra, gado, joias, trastes das casas e escravos foram convertidos em bens da alma daqueles testadores que os transformavam em legados pios ou entio ordenavam ‘40s seus testamenteiros que os levasse & praca para que o produto de suas vendas pudessem saldar os gastos fiinebres, Nada menos do que 117 escravos pertencen- tes a testadores reindis ou ilhéus assumiram o estatuto de bens da alma de seus falecidos donos, dos quais 33 foram agraciados com a alforria, a0 passo que os demais 84 deveriam ser vendidos para abreviar a permanéncia dos seus senhores ‘no purgatorio, No caso dos testadores forros sem ascendentes ou descendentes vivos, 20 escravos tornaram-se bens da alma de seus donos, dentre os quais me- tade foi alforriada ¢ os demais deveriam ser vendidos para que os testamenteiros pudessem arcar com as despesas das almas. ‘Como bom cristo, Pedro Rodrigues da Costa iniciou seu solene testamento, redigido em janeiro de 1793, oferecendo perdao de “todas as ofensas e agravos por maiores que sejam que me tenham feito primeiramente por amor de Deus € pelo mesmo peso perdio a qualquer pessoa que de mim estiver ofendida ou agravada”.” Instituiu a propria alma como herdeira universal, pois se tratava de um portugués solteiro, sem ascendentes nem descendentes, mas com parentes vivos no Reino, aos quais, porém, no deixava nada “[...] por lhe ter mandado e repartido com eles na fragata que deste porto saiu em 30 de junho de 1790 por isso s6 faco essa declara¢ao para que me nao tenham por ingrato para com eles”.”° "TARIES. O homem diante da morte, p, 209, v.1 ‘“CLAVERO, Bartolomé. Almas y cuerpos. Sujetos de! derecho en la edad modems. In: Studi in ‘Memoria di Giovanni Tarelo, v, |, Mido: Giufhé Editora, 1990; ESPIRITO SANTO, Claucia Coimbra 140. Economia da palavra acbes de alma nas Minas setecentistas. Dissertacao (Mestrado em Historia Social) - Programa de Pos-graduacdo em Historia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da Universidade de Sto Paulo. Sao Paulo, 2003; ROSA, Maria de Lourdes Pereira. As ‘aimas herderas: fundagao de capelas finebres @ afirmarao da alma como sujelto de direitos (Portugal, 1400-1521). Tese (Doutorado em Histiria Medieval) — Faculdade de Ciéncias Socials @ Humanas da [Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2005; HESPANHA, Antonio Manuel. Direto luso-brasilero no ‘antigo regime. Florianopolis: Fundagao Boiteux, 2005, p. 44-45. ACMRJ, LOFSSS-RJ, 0, 2 (1780-1797), p. 178. T® idem. Note-se que a dala da redagao desse testamento & posterior & Lei de 17 de julho de 1778, por 1380.0 testador pode institur sua alma como herdeira ndo obstante a existéncia de parentes colaterais. 134 Rowenro Gueoes ~ Maacio 0€ Souss SOARES: ‘Somados a outros bens, ele era senhor de uma africana e de dois afticanos adultos, nio alforriou nenhum deles, no entanto, deixou “[...) para redencdo dos cativos “na terra de Mouros que se entregario ao meu porteiro deles 51$200 réis”.”' Ao "que parece, o testador considerava que, antes de tudo, era necessério libertar os -cativos, cristos quem sabe, das maos dos mouros infiéis. Afinal, os escravos dele jéeram cristios batizados. _ Ao contrario do que se possa eventualmente pensar, nao foram apenas os es- ccravos pertencentes Aqueles senhores que instituiram suas préprias almas como herdeiras que concorreram para a redencao eterna de seus donos. Em janeiro de 1792, Ant6nio Pereira, crioulo forro, natural da cidade do Rio de Janeiro, casado ‘com Maria Antunes, preta forra de na¢do mina, doente e com medo da morte, de- clarou que os bens que possufa eram “um escravo por nome Joao nagao Cassange, ‘e assim mais um sitio pela Tijuca”; também disse que os trastes que se achassem por seu falecimento, a roupa de seu uso e o seu fardamento tudo se venderia para com o seu produto se pagarem as suas dividas e “tudo o mais que sobrar se man- dard dizer de missas pela minha alma; quero que se digam pela alma de meu pai quatro missas da esmola costumada, e nesta forma tenho por acabado este meu testamento”. Visto que Ant6nio nao alforriou Jodo, certamente o escravo estava incluido no conjunto de tudo o mais que sobrou, logo, fora transmutado em missas para salvar a alma de seu senhor.”* Destino semelhante, mas por raz6es distintas, pairava sobre a parda Rosaura e a cabra Quitéria, escravas de Maria dos Anjos Silva que, como disposicdo de ultima vontade, feita em agosto de 1794, além de ter legado o moleque Manoel Angola “para servir 4 Nossa Senhora da Concei¢ao do Hospicio”, declarou que a dita Rosaura [J vive fora da minha companhia por desobediente com a qual trago uma demanda para a chamar ao cativeiro a qual meu testamenteiro continuard até 4 sua tiltima decisdo com o poder e dominio como a minha pessoa prépria € chamada que seja ao cativeiro meu testamenteiro a vendera e a metade do seu valor serd para missas para minha alma e para as almas do Purgatorio para as mais préximas a ver a Deus € a outra metade do dito valor sera para pagar as despesas e trabalho da dita demanda, Declaro mais que tenho outra escrava cabra de nacao por nome Quitéria a qual anda fugida ha trés anos se meu testamenteiro a poder haver a si a vender e do seu valor pagar as despesas que me tenha feito serd para missas ou para aquilo que meu testamenteiro determinar também.” (0 grifo é nosso] Tider. TACMRS, LOFSSS-RJ, n. 2 (1790-1797). p. 111. TACMR), LOFSSS-RJ, n. 2 (1790-1797), p, 285v, Claudia Rodrigues menciona outro caso parecido, ‘no qual a parda forra Francisca de Souza Melo fez determinaco idéntica em relago a um escravo {ugido. Cf. RODRIGUES, Nas fronteiras do 64m... p. 93. ‘Germs Vorranes: TestaMento, SOCHDADE E CULTURA NA AMERICA IVERICA[secucs XVII XVI] 135 ‘Salta aos olhos que a concessao de alforrias gratuitas como disposigao de él- ‘timas vontades prevaleceu com larga vantagem sobre as pagas. Se a liberdade ‘gratuita concedida pelos testadores forros equivalia a quase 2/3 do total, ela era mais acentuada entre os testadores de além-mar, visto que ultrapassava 4/5 das manumiss6es (Quadro 6). Além da elevada proporcio de alforrias gratuitas, os testadores portugueses e ilhéus raramente estabeleciam condigdes aos escravos agraciados com a liberdade. Para favorecer a salvagao, alforriava-se na maior parte das vezes sem se fazer qualquer exigéncia, 0 que por certo nao significa dizer que ‘0s demais testadores estivessem menos preocupados com o destino post-mortem ‘ou pretendessem atazanar a vida dos libertos. Quadro 6. Modalidades e condigées das alforrias Fonte: ACMRJ, LOFSSS-RJ, n. 18 (1776-1784) e LOFSSS-R), n. 2 (1790-1797) © mencionado José da Silva, que poucos dias antes de morrer havia-se casado com a parda Micaela Arcanja, alforriou a mulatinha Benta, filha da escrava Gertru- des, com a condigdo de acompanhar e servir a sua mulher enquanto viva fosse “e sea dita minha mulher falecer primeiro poderd ela tratar da sua vida como fora” Por outro lado, Gertrudes deveria ser vendida junto com o escravo José sapateiro para a solucao das dividas, gastos fiinebres e legados pios do testador.” A con- digo imposta, em janeiro de 1781, por Miguel de Araujo Freitas a liberdade de Bernarda, alforriada por ser cria da casa, Cuja idade girava em torno de 10 para 11 anos, era que a menina se casasse logo, no prazo de um ano, “para honra e gléria de Deus Nosso Senhor”.”" As demais exigéncias estabelecidas pelos testadores livres estavam ligadas a prestacao de servicos a terceiros, mormente cénjuges, T*ACMRY, LOFSSS-RU, n. 18 (1776-1784), p, 300. T*ACMRJ, LOFSSS-RU, n. 2 (1790-1787), p. 186 v. ‘Ocas Vowaoes: Testavento, SoceoHDe € CULTURA Na AMIGA Ini fotcnor XVM eXVIl] 437 parentes € ou amigos, enquanto vivos fossem como forma de amparo€ protegio aos legatdrios e aos libertos. As alforrias pagas, por sua vez, nao raro atendiam a um duplo desejo senhorial, conceder a liberdade e providenciar os recursos ne- cessarios para as missas, velas, doag6es, cortejos fiinebres, esmolas, etc. Asicon- digdes impostas pelos libertos para manumitir seus escravos eram quase sempre ‘as mesmas das dos senhores livres. Por exemplo, em fevereiro de 1795, Agostinha Rodrigues, crioula forra, natural da cidade do Rio de Janeiro, vitva sem herdei- 0s forgados, afirmou que possuia uma escrava chamada Maria de nagio, mae do crioulinho Joao a quem deixou liberto por té-lo criado. Maria, porém, teriade pa- gar trés dobras por sua liberdade no prazo de dois anos, mas “nao 0 fazendo serd vendida para as disposicdes que ordeno e a deixo encostada a meu testamenteiro”. Entre as disposigées da testadora, estava um legado de uma dobra destinado “Nossa Senhora do Rosério da Freguesia de Magé donde também sou irmé na dita irmandade”, A senhora forra, disse, queria “dispor e preparar a minha alma”." O leitor ha de admitir que todas essas condi¢ées estabelecidas pelos testadores estavam em perfeita harmonia com a moral catélica estribada nas trés virtudes teologais: a fé, a esperanga e a caridade (ou o amor)."! "© ACMRY, LOFSSS-RJ, n. 2 (1790-1797), p. 314. "Em 1566, logo apts 0 encerramento do Concilio de Trento, veio a lume o Calecismo Romano dirigido ‘208 parocos com o objetivo de orienta-los na difusdio dos dogmas e dos demais principios da Reforma Catélica. A obra ganhou a primeira tradugio lusitana em 1590 e inspirou a publicago ~ em latim e em portugues, afora nas linguas brasiica, tamul e quicongo — de dezenas de catecismos que circularam no Reino © suas conquistas, cuja mensagem certamente fitrada atingla a massa de feis letradinhos 0 ignorantes do abeceddio por melo da oralidade que marcava a execugdo dos ntuais publicos e privados, a exemplo das celebrapdes do sacnificio das missas, as procissdes, as ladainhas ¢ outres 2228. Cl, Catecismo dos parocos, redigide por decreto do Concilo de Trento e publicado por ordem do senhor Papa Pio V (1590). Petropolis: Vozes, 1951; CRISTOVAO, Francisco da Silva. Cafequese €e catecismos. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (dic). Dicionario de Histéria religiosa de Portugal. Lisboa: Circulo dos Lettores, 2000, v. 1, p. 302-310, 138 Rovenro Gurves ~ Mancio 0€ Sousa Soares Fonte: ACMRJ, LOFSSS-RYJ, n. 18 (1776-1784) e LOFSSS-Rj, n. 2 (1790-1797). Por sinal, vale dizer que os protestos de afeto e de piedade religiosa como mo- tivagéo senhorial para a concessio das alforrias, quer nos testamentos, quer nas escrituras piiblicas, sempre chamaram a atengao dos historiadores. No entanto, a grande maioria das pesquisas praticamente limitou-se a constatar a aventar explicagdes que, salvo engano, secundadas por uma concepcao vulgar de ideo- logia, frisavam “os verdadeiros interesses ocultos”, quase sempre materiais, dos senhores ou assinalavam a postergacao da liberdade derivada das clausulas condi- cionais, mormente a prestagao de servigos a terceiros e a morte do senhor como sin6nimo de artimanha senhorial."* A rigor, todas as alforrias testamentarias es- tavam, de fato, condicionadas 4 morte do testador. Logo, conhecer o intervalo decorrido entre a redagao do testamento e 0 6bito dos senhores que alforriaram é de fundamental importancia para que se possa avaliar a dimensao da margem de incerteza para que as mesmas entrassem imediatamente em vigor. ee MATTOS, Testamentos de escravos; OLIVEIRA, O liberto; BELLINI Ligie. Por amor © por interesse 'reiagdo senhor-escravo em cartas de alfortia, In: REIS, Jodo José (org). Escraviddo & invengo da Noerdade: estudos sobre 0 negro no Brasil, Sdo Paulo: Brasiliense, 1988, p. 73-86 ‘crus Vonranes: Tesrauenro, SocOADE & CATIRA NA AWEICA Erick [sconce XViLCXVA] 13) Quadro 8. Intervalo entre a aedagio ¢ 0 dbito dos De T ano e 1 dia até 3 anos 7 = eiaevtaasos ee [sce Bornes tebe aT ena eae nea Fonte: ACMRJ, LOFSSS-R), n. 18 (1776-1784) ¢ LOFSSS-RJ, n. 2 (1790-1797). (OBS: Excluidos ts testadores lives e dezforros para 0s quais nio foi possivel fazer o céleulo. Basta dizer que, ao observar 0 Quadro 8, quase 2/3 dos testadores livres e dos libertos que alforriaram faleceram no maximo até seis meses apés a manifes- tagdo do desejo de alforria, de sorte que o gozo da liberdade incondicional gratuita ‘ou paga apés a morte do senhor era, portanto, um horizonte muito préximo para a maior parte dos escravos que foi alforriada pelas tiltimas vontades dos testadores livres. © mesmo vigeu entre os escravos dos senhores forros, que em mais de 1/3 dos casos receberam alforrias incondicionais, ainda que aquém dos cativos liberta- dos pelos senhores livres. Quase sempre redigidos quando o testador, no leito de morte, acometido por uma doenga grave, pressentia o fim proximo, era, portanto, muito pouco crivel que, nesses momentos de angiistia quanto ao destino de suas almas, os senhores se ocupassem maliciosamente com a urdidura de artimanhas para alimentar falsas esperancas ¢, com isso, ludibriar alguns de seus escravos. Ainda que novos estudos tenham procurado romper com os limites empobre- cedores desse tipo de interpretacdo, até recentemente nenhum historiador brasi- leiro havia-se encarregado de situar a pritica da alforria levando em conta o papel do amor e da amizade na cultura politica de Antigo Regime." Para evitar qualquer espécie de mal-entendido, vale acompanhar de perto, ainda que sucintamente, as formulagées propostas pela historiografia portuguesa responsavel pela renovacio € avango do conhecimento sobre a cultura politica no mundo ibero-americano da Era Moderna."' De saida, Pedro Cardim adverte que, até bem avancado o sé- © Todo 0 mérito de um duplo pioneirismo deve ser creditado @ tese de Doulorado, em processo de elaboracao, levada @ cabo por Silvana Godoy que analisa as alforias testamentarias concedidas @ Indios @ 2 mamelucos em Séo Paulo no século XVII, CI. GODOY, Siivana, Nobreza da Terra ¢ Indios na ‘monarquia pluricontinental (S80 Paulo, século XVI). Qualificagao de Doutorado em Historia, Instituto de Historia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014, + Salvo indicagao em contrario, 08 parigralos seguintes reproduzem jpsis Iitens as ideias do autor ‘mencionado. Ct: CARDIM, Pedro. Religido e ordem social...op. cit, p. 133-174; CARDIM, Pedro, Amor € amizade na cultura politica dos sécuios XVI © XVII, Lusténia Sacra, 2* série, n. 11, p. 21-67, 199 Para uma argumentagao mais detainada CI. CARDIM, Pedro. O poder dos afectos: ordem amorosa © ‘dinamica politica no Portugal do antgo regime. Tese (Doutorado em Historia Modema) ~ Faculdade de Ciéncias Socials ¢ Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2000. 140 Rosenro Gueves ~ Mancio 0€ Sousa Soares _ culo XVIL, os afetos foram vividos de modo muito diverso daquele que hoje co- mhecemos, pois nem de longe se assemelhavam aos parimetros posteriormente estabelecidos pelo Romantismo, a saber, “o amor puro, desinteressado e de foro intimo”. De forma bastante original e convincente, 0 autor demonstrou que no mundo ibérico da época moderna, o amor e a amizade geravam lagos sociais bas- ‘tante formalizados e instauravam mecanismos comportamentais que permeavam a conduta cotidiana, em larga medida informada pelas construgdes dogmaticas ‘produzidas no ambito da teologia e do direito. Nesse sentido, tedlogos e juristas insistiam que o amor pautava a rela¢ao dos homens com Deus, os lagos de con- sanguinidade, assim como 0 amor ao préximo e a amizade eram considerados Jagos essenciais, traduzidos em gestos caritativos, na reciprocidade, na obediéncia ena entreajuda em favor do bem comum. Era com base nesses preceitos eruditos que a atividade pastoral da Igreja disseminava entre os paroquianos uma prédica que incentivava a liberalidade, a benevoléncia e a disponibilidade para partilhar, uma vez que as dadivas trocadas entre amigos constituiam uma espécie de mate- tializagao do afeto que nutriam entre si."* © discurso juridico, por sua vez, sempre reconheceu a normatividade dos afe- tos e sublinhou a sua importancia para a coesao social. © Cédigo Filipino, diz Cardim, contém numerosas alusées a importincia social do amor e da amizade, bem como sua influéncia ordenadora. Essa pedagogia da virtude, que emanava de um discurso religioso e laico, modelava e servia de modelo para uma conduta ideal nio era, portanto, mera ret6rica. Ainda que estivessem longe da perfei¢io, as relagdes afetivas cimentavam as relag6es sociais extravasando os vinculos de sangue. Assumiam varias formas, a exemplo do apadrinhamento, do clientelismo, ‘das confrarias, do companheirismo militar, entre outros, geradores de lagos morais ‘entre as pessoas, impelindo-as para a colaboracao e auxilio mituo por meio da tro- cade bens e de servicos. De acordo com um adagio corrente, “mais apertados si0 95 lagos da virtude do que os de sangue" e tal lago apertado, afirma Cardim, “podia ‘unir tanto as pessoas de igual estatuto social como um servidor e seu senhor”, pois ‘0 poder dos afetos estendia-se a todos estratos sociais."* E 0s vinculos clientelares implicavam obrigagdes reciprocas levadas muito a sério. Quase sempre implicitos, semelhantes deveres eram expressos de forma ritualizada e publica, por meio de gestos, de promessas, de formulas verbais padronizadas ou de ceriménias com a troca de dadivas e de presentes entre aqueles que se queriam bem. Consequente- ‘mente, a ingratidao representava 0 esquecimento e a infidelidade responsaveis pela ruptura dos deveres morais de amizade. Ora, tudo isso salta aos olhos das primei- ras as ultimas linhas dos solenes testamentos setecentistas. "Sobre a aplicagao da teoria da dadiva as alforrias cf. SOARES, A remissdo do cativeiro, 2009, ““CARDIM, Amore amizade, p. 44-45, Grrane Voces: Tesrmero, Sooebnoe€ Crime na Autmen nner otoxonxMie il] 444 A sires Godoy, acreditamos que essas formulagdes de Pedro Cardim oferecem uma chave de interpretacao importantissima para que possamos evitar as arapucas do anacronismo e situar a pratica da alforria na América portu- ‘guesa dentro da légica societaria de Antigo Regime. Os testamentos demonstram — 4 farta que se a perfeigdo era uma virtude dificilmente alcancada pelos homens e mulheres, a aproximacao da morte fez com que muita gente temente a Deus tentasse remediar a situacdo e, ao menos nos tiltimos instantes, tomasse essa ou aquela atitude que se aproximasse daquele ideal preconizado pela pedagogia da virtude. Com efeito, é impressionante a constante frequéncia das alusées feitas 20 amor, a lealdade, a fidelidade e a amizade nos testamentos consultados, Dentre os portugueses e ilhéus, 79 testadores mencionaram o amor 116 vezes, ao passo que 27 libertos fizeram 45 alus6es ao mais nobre dos afetos. Essa contagem que nio levou em consideragdo as manifestagées correlatas, nao pretende, evidentemente, quantificar os sentimentos, apenas atesta a importincia da forte presenca do amor de Deus, paternal, filial, conjugal e fraterno nas declarag6es das vontades derra- deiras contidas nos testamentos, sem contar que é imperativo assentir que redigi- -los a rogo de uma pessoa letradinha, doente ou a beira da morte, era igualmente um gesto de piedade e/ou de amizade, Apesar do muito que se disse e citou em sentido contrario sobre o assunto, ha ‘que reconhecer que, queira-se ou nao, havia senhores que amavam seus escravos © a reciproca era igualmente verdadeira, Tudo isso se encontra fartamente docu- ‘mentado nos testamentos, pois, a titulo de exemplo, basta dizer que 14 testadores forros mandaram celebrar missas em inten¢io das almas de seus falecidos donos. E para aqueles que porventura ainda enfrentam alguma dificuldade para admitir 0 poder dos afetos na concessio das alforrias, vejam-se as tiltimas vontades expres- sas, em dezembro de 1795, pelo portugués Nicolau da Costa Guimaries, homem vitivo, com dois filhos e alguns netos. Cavaleiro Professo da Ordem Cristo, cujo habito todo cravado de diamantes brilhantes deveria ser remetido a sua terra natal para 0 glorioso Santo Anténio, no Convento de Sio Francisco da Vila de Guima- aes, era senhor abastado de bens e escravatura. Fez uma longa declaracao na qual determinava que Os meus escravos que ao presente tenho e devo fazer esmola porque sempre me serviram bem e se acham na minha companhia em primeiro lugar Domingos que est cego, Joao Benguela, Jodo Bambambuila [sic], a estes trés passard meu testa- ‘menteiro carta de alforria e thes entregaré trés moradinhas de casas a saber uma na ‘rua dos Ourives que consta de uns sobradinhos com duas lojas, outras de fronte da ccapela de N. Sra. da Conceigo do Campo, e a outra de fronte do porto do Mestre de ‘Campo Manoel Alvares as quais nao poderdio vender nem empenhar ¢ somente delas terdo 0 usufruto enquanto viverem e por sua morte passardo as filhas de Bernar- do Francisco de Brito advertindo que o dito Domingos que se acha cego, pego aos 142 ‘Rosenro Guenes ~ MARCIO DE Sousa Soames salad ‘outros dois tratem com muito amor e caridade e nao o fazendo o dito Domingo cego 105 poderdé mandar embora e ficar com tudo, ¢ eles serdo obrigados a fazer os concertos necessdrios nas mesmas casas, e peso aos mesmos escravos que em atengo a esta esmo- la, se lembrem de mim rogando a Deus pela minka alma, Tenho mais um escravo por ‘nome Anténio crioulo e carpinteiro 0 qual ainda que os seus servigas ¢ merecimentos ‘io poucos também meu testamenteiro passard carta de alforria. Declaro mais que ‘este preto nao assista nem more com os outros a quem deixo as casas acima nem eles

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