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As Emoções e a Ordem Pública:

uma investigação sobre modelos teóricos


para a análise sócio-antropológica das emoções1

Maria Claudia Coelho (UERJ)

Resumo:
Este trabalho procura examinar modelos teóricos utilizados na construção das emoções
como um objeto de análise relevante para a compreensão de aspectos da vida pública. O
campo da antropologia das emoções vem, ao longo dos últimos anos no Brasil,
conhecendo um desenvolvimento em larga medida associado à trajetória dos estudos
sobre saúde/doença, corpo e gênero. Esta associação faz com que esta fase inicial de sua
consolidação esteja fortemente marcada pela construção de objetos de estudo associados
às esferas do íntimo/privado. Paralelamente, contudo, outros ambientes acadêmicos vêm
testemunhando a emergência de modelos teóricos que buscam, em um movimento de
mão-dupla, discutir, por um lado, a fecundidade das emoções para a compreensão da
vida pública; e, por outro, a necessidade da atenção para as macro-relações hierárquicas
e de poder para a compreensão das gramáticas das emoções individualmente
vivenciadas. Este texto, de natureza exploratória, propõe um exercício de revisão
bibliográfica voltado para a compreensão e comentário dos modelos teóricos utilizados
para o estudo sócio-antropológico das emoções em pesquisas recentes relativas a três
fenômenos da esfera pública: os movimentos sociais, as guerras e a violência urbana.

Palavras-chave: antropologia das emoções; micro-política das emoções; violência


urbana

Introdução
O campo da antropologia das emoções conheceu, aproximadamente a partir dos
anos 1980, um forte desenvolvimento na cena antropológica norte-americana.2 Datam
desta época dois trabalhos que são hoje referências seminais para esta área de
investigação: o texto de Michelle Rosaldo (1984) sobre a influência da antropologia
interpretativista de Clifford Geertz sobre a construção do self e dos afetos como objetos
possíveis para a reflexão antropológica e a etnografia de Catherine Lutz (1988) sobre os
Ifaluk da Micronésia, em que a autora elabora uma análise da “etnopsicologia
euroamericana”, ou seja, da forma como as sociedades às quais se refere como
“euroamericanas” concebem a experiência emocional.

1
Trabalho apresentado na 27ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de
agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.
2
Em outros trabalhos, realizamos esforços mais detalhados de mapeamento desta história do campo da
antropologia das emoções na cena norte-americana (Rezende e Coelho, 2010; Coelho e Rezende, no
prelo).
1
Nestes trabalhos, duas ideias destacam-se por sua fecundidade e “longevidade”
teóricas. A primeira delas é a concepção das emoções como “pensamentos
incorporados”, ou seja, a visão das emoções como pensamentos que são sentidos no
corpo, através de pulsações, suores ou rubores, proposta por Rosaldo (1984). A segunda
é a identificação, por Lutz (1988), de dois eixos centrais em tornos dos quais a
etnopsicologia euroamericana estaria estruturada: as oposições emoção-pensamento e
emoção-distanciamento. Na análise de Lutz, na primeira oposição a emoção seria o pólo
negativo, associada ao descontrole, ao perigo e à vulnerabilidade; na segunda, a
valoração estaria invertida, com a emoção sendo associada à maior capacidade de
“empatia” com o outro. Nos dois casos, uma forte marca de gênero, em que a emoção
estaria sempre associada ao feminino, por oposição ao masculino, associado ora à razão
“fria” (e por isso mesmo controlada), ora ao distanciamento “frio” (e por isso mesmo
pouco compassivo).
Os dois trabalhos podem ser considerados representantes exponenciais da
corrente que, poucos anos depois, a própria C. Lutz, em co-autoria com L. Abu-Lughod
(Lutz e Abu-Lughod, 1990), batizariam de “relativista”. Esta corrente integraria,
juntamente com o “essencialismo” e o “historicismo”, o mapa das abordagens das
emoções no campo das humanidades, tal como desenhado pelas autoras. O
“essencialismo”, como o próprio nome sugere, teria como convicção central a crença na
natureza universal das emoções, que teriam “essências” invariantes; esta corrente seria
predominante no campo das análises de orientação psicológica. O relativismo viria opor
a esta convicção a noção de “construção cultural das emoções”, ou seja, sob a égide da
atitude intelectual relativista e seu compromisso com a compreensão da diferença
cultural, o relativismo postularia a natureza de “construto cultural” da experiência
emocional. O historicismo seria seu “par” intelectual, endossando esta postura de
“construto” variável das emoções, adotando, contudo, para o estudo destas diferenças,
um eixo diacrônico de análise.
A este conjunto de perspectivas, Lutz e Abu-Lughod sugerem como alternativa a
perspectiva a qual batizam de “contextualismo”. Sua âncora teórica é a noção
foucaultiana de “discurso”, entendida como uma forma de linguagem que mantém com
a realidade uma relação pragmática (ao invés de referencial), ou seja, como algo que
“forma aquilo sobre o que fala”. As autoras sugerem assim que os discursos emocionais
e os discursos sobre as emoções dizem respeito somente às emoções presentes no
2
contexto de interlocução. Estas, assim, não apenas não teriam qualquer essência
universal, como não seriam “coisas” que poderiam ser retiradas de contexto e referidas
em outra situação – seriam, ao contrário, sempre engendradas pelo contexto discursivo
em que emergem.
As autoras retiram daí também a noção de uma capacidade micro-política das
emoções. Estas teriam a capacidade de dramatizar, reforçar ou alterar as macro-relações
de poder e hierarquia em que as relações interpessoais dos interlocutores estariam
inseridas. É a convicção quanto a esta capacidade que orienta, por exemplo, as reflexões
das próprias autoras em textos que integram a coletânea em cuja introdução este
mapeamento do campo é esboçado: Abu-Lughod (1990) discute o trabalho micro-
político realizado pelas poesias amorosas beduínas, enquanto Lutz (1990) aborda a
retórica do controle das emoções e sua articulação com as dominações de gênero nos
Estados Unidos contemporâneos.
Este breve vislumbre de temáticas estudadas à luz da perspectiva contextualista
nos sugere o surgimento de um “segundo tempo” na história da construção deste campo.
A primeira etapa parece ter tido como tônica um embate com o senso comum, o qual, ao
representar as emoções como pertencentes ao domínio do “psíquico” e do “natural”, as
teria tornado refratárias à análise sócio-antropológica. A superação deste entrave teria se
dado justamente com a noção de “construção cultural”.
Entretanto, a relação que a virada contextualista mantém com o relativismo não
parece ser de rompimento, como no caso do relativismo em relação ao essencialismo; ao
contrário, parece ser uma relação de refinamento, na medida em que as emoções, para
que possam não ser “coisas”, mas sim “construções em contexto”, precisam antes,
evidentemente, ser “des-essencializadas”. Falar de emoções em contexto supõe assim a
ideia de uma “construção cultural” como ponto de apoio, já entronizada na história do
campo pela perspectiva relativista.
Mesmo aí, contudo, aquele esforço original de construção das emoções como
objeto das ciências sociais parece ainda inconcluso. Entre as temáticas eleitas para se
investigar as emoções é nítida ainda a predominância das esferas que o senso comum
ocidental associa também ao “íntimo” e ao “privado”, tais como as relações
interpessoais (familiares, amorosas, de amizade), o corpo, o gênero e a saúde/doença.
No Brasil, um breve exame das temáticas predominantes nos Grupos de Trabalho
dedicados à antropologia das emoções nos Encontros da ANPOCS (2007, 2008 e 2009)
3
e da RAM (2005, 2007 e 2009) sugere a existência de tendência semelhante. As obras
de autores que já há vários anos se dedicam ao estudo das emoções podem também
ratificar a importância deste viés na cena brasileira, tais como os trabalhos de Rezende
(2002) sobre a amizade e sobre a gravidez (2009) e de Menezes sobre a gestão das
emoções no universo médico (2006).3
Entretanto, não sentimos apenas na vida privada. Se é verdade que há emoções
que podem fazer um trabalho micro-político no âmbito doméstico (conforme discuti em
outro lugar a respeito do trabalho emocional da gratidão nas trocas de presentes entre
patroas e empregadas domésticas [Coelho, 2006]), há também emoções que integram a
esfera pública, realizando um trabalho subjetivo crucial no plano mesmo de fenômenos
tradicionalmente entendidos como de ordem “macro” – os movimentos sociais, as
guerras, a violência urbana.
É para esta dimensão pública das emoções que a atenção das ciências sociais
vem se voltando recentemente. Neste trabalho, a idéia é discutir alguns problemas
teóricos centrais para a formulação de modelos capazes de dar conta do trabalho
desempenhado pelas emoções naqueles três fenômenos de ordem “macro” acima
mencionados. Escolhi para isso três trabalhos: a coletânea organizada por Goodwin,
Jasper e Polletta (2001), que traz um conjunto de textos dedicados ao estudo das
emoções em movimentos sociais; a etnografia de Ben-Ari (1998) sobre as emoções em
uma unidade militar israelense; e o meu próprio estudo sobre as emoções presentes em
relatos de vitimização em contextos de violência urbana (Coelho, 2009). Subjacente a
todos eles, uma questão central: como conciliar cognição e emoção?

1. Política e Participação: motivação, crença e paixão


A coletânea Passionate Politics – emotions and social movements (Goodwin,
Jasper e Polletta, 2001) reúne um conjunto de trabalhos sobre diversos movimentos
sociais, precedido por uma primeira parte, composta por quatro textos, voltada para a
discussão das dificuldades encontradas pelos teóricos dos movimentos sociais para dar
conta de sua dimensão emocional. É a esta primeira parte do volume que dedicaremos
aqui nossa atenção.

3
Esta predominância não exclui naturalmente a presença, entre os autores que nos últimos dez anos vêm
se dedicando a esta área nas ciências sociais brasileiras, de atenção para a dimensão emocional de
fenômenos de natureza pública, como por exemplo o estudo de Koury (2008) sobre as formas do medo e
a sociabilidade na cidade de João Pessoa.
4
Na introdução à coletânea, os organizadores se propõem a inventariar o lugar das
emoções nas teorias dos movimentos sociais, sugerindo que, apesar da centralidade que
já ocuparam em matrizes clássicas da teoria política, as emoções estariam praticamente
ausentes dos modelos teóricos predominantes nas últimas quatro décadas. Em sua visão,
os atores engajados nos movimentos sociais seriam percebidos pelos teóricos como
racionais e instrumentais, movidos a cálculo e interesse.
Esta forma de colocar o problema confere centralidade à questão da motivação
no estudo dos movimentos sociais. O que faz um sujeito se engajar na participação em
um movimento? O que sustenta sua participação por períodos mais prolongados? O que
o faz desistir?
Na história das teorias dos movimentos sociais, muitas são as visões da
motivação do ator social, algumas de tonalidade acentuadamente crítica, em particular
no que diz respeito à dimensão apaixonada do engajamento. O “prazer da participação”
é, em algumas visões, a mola propulsora básica, seja como origem, seja como resultado
do envolvimento. Como dizem os autores, os indivíduos são vistos como “guiados por
forças fora do seu controle, sejam elas impulsos subconscientes ou a misteriosa atração
da massa” (2001:4).4 Em qualquer dos casos, a “política em si” – definida como
“princípios morais, objetivos explícitos, processos de mobilização, estratégias, os
prazeres da participação” – estaria ausente (p. 4).
Esta oposição entre a “paixão” e a “política em si” aponta na direção de uma
questão nodal no mapeamento proposto pelos autores, e que estará também no cerne de
vários dos modelos teóricos apresentados na primeira parte do livro: a oposição
cognição/emoção na motivação para participar. Ao listar uma série de conceitos
utilizados nas teorias sociais mais recentes para analisar os movimentos sociais – tais
como visões de injustiça ou redes sociais – os autores, ao comentar sobre o conceito de
“identidade social”, abstraem assim o problema da oposição cognição/emoção:
“Entretanto, a maior parte das discussões apresenta a identidade coletiva
como a definição de uma fronteira cognitiva, ao invés de afeto por membros
do grupo e, frequentemente, antipatia pelos não-membros. Sentimentos
fortes em relação ao grupo tornam a participação prazerosa em si mesma,
independentemente dos objetivos e resultados finais do movimento. O
protesto pode ser uma maneira de dizer algo sobre sobre si mesmo e suas
convicções morais, de encontrar alegria e orgulho nisso. Também é possível
ter emoções negativas em relação à própria identidade, tais como vergonha

4
Todas as traduções de trechos citados dos artigos da coletânea Passionate Politics são de minha autoria.

5
ou culpa; muitos movimentos são organizados exatamente para combater
identidades estigmatizadas. O que é difícil de imaginar é uma identidade
puramente cognitiva e ainda assim firmemente defendida. A ‘força’ de uma
identidade, mesmo cognitivamente vaga, vem do seu lado emocional.”
(2001:8-9)

O apelo dos autores é então para que emoção e cognição sejam pensadas em
relação de articulação, ao invés de oposição. Este é também o esforço de outras
reflexões incluídas na coletânea, tais como aquelas de Randall Collins, Theodore
Kemper e Craig Calhoun.
A contribuição de Randall Collins em seu texto “Social Movements and the
Focus of Emotional Attention” baseia-se em duas noções: “espaço de atenção social” e
“energia emocional” (esta última fortemente ancorada em uma leitura crítica da obra de
Durkheim). Para Collins, em cada grupo social haveria limitações quanto à capacidade
de devotar atenção a determinados tópicos ou problemas. Assim, um movimento social
bem-sucedido seria aquele que conseguisse granjear para sua atuação parcela expressiva
dessa “atenção coletiva”. Este foco compartilhado de atenção é o ingrediente básico
para a formação, nos termos de Durkheim, de uma “consciência coletiva” que
apresentaria ao mesmo tempo dimensões cognitivas e morais; para que isto ocorra,
contudo, não basta compartilhar o foco de atenção; é preciso também o reconhecimento
mútuo entre os participantes de que os demais elegeram também o mesmo ponto como
foco de sua atenção. É desta consciência de compartilhar o mesmo foco que emerge o
sentimento de solidariedade do grupo, gerando assim uma “energia emocional”. Para
Collins, o ponto central desta dinâmica emocional é a transformação da emoção original
em uma outra experiência emocional definida justamente por seu caráter compartilhado.
Em suas palavras:
“O segundo tipo de transformação emocional envolve a transmutação da
emoção inicial em outra coisa: a emoção que surge da consciência de estar
envolvido em um foco coletivo de atenção. Esta é a emoção que forma a
solidariedade, e que faz o indivíduo se sentir mais forte como membro de
um grupo. Chamo a isto energia emocional.” (2001: 29)

A discussão proposta por Collins é fortemente comprometida com a questão do


(des)equilíbrio cognição/emoção, e com os perigos teóricos da atenção excessiva para
um ou outro destes pólos. Por um lado, há o risco de esboçar uma imagem dos
participantes de movimentos sociais como ansiosos por experimentar os prazeres da
participação, sem qualquer compromisso com a “causa” do movimento; por outro, a
6
retórica “nativa” dos movimentos sociais fala frequentemente em “conscientização”,
dando a impressão de que a adesão é essencialmente um processo cognitivo, quando,
para Collins, sua dinâmica é basicamente emocional.
O modelo teórico proposto por Theodore Kemper, de orientação interacionista,
está baseado na convicção da existência de dois tipos básicos de teorias sociológicas das
emoções: a “cultural” e a “estrutural”. Para Kemper, o modelo cultural investiga a
prescrição de determinadas emoções em grupos específicos sob uma perspectiva
dinâmica e atenta para as mudanças nestas normas ao longo do tempo. Já o modelo
social examinaria as “condições sociais estruturais que explicam porque emoções
específicas prevalecem ou têm probabilidade de emergir à medida em que condições
estruturais mudam ou continuam como antes” (2001:59). Sua “abordagem estrutural das
emoções” tem como pressuposto básico a idéia de que “muitas emoções resultam de
resultados reais, antecipados, rememorados ou imaginados de relações sociais”
(2001:59). O argumento de Kemper prossegue então rumo à elaboração de uma
tipologia das emoções relacionada àquelas que o autor considera serem as duas
dimensões principais das relações: o poder e o status. Procurando sistematizar as
diferenças entre uma perspectiva cultural e uma abordagem interacional/estrutural, o
autor afirma:
“...uma visão cultural das emoções nos movimentos sociais fornece um
valioso ponto de partida em que os tópicos podem ser formulados em
termos normativos, de crença ou de valores. Por outro lado, quando os
tópicos são melhor formulados em termos interativos, com resultados que
definem relações estáveis ou em transformação, principalmente de poder
e/ou status, uma abordagem estrutural é mais adequada.” (2001:72)

Calhoun chega à questão emoção/cognição pelo caminho do esgotamento da


oposição entre emoção e interesse. Para o autor, o apego a recursos variados que muitos
teóricos tratam como uma questão de “interesse” envolve também uma dimensão
emocional. Buscando então um outro pólo ao qual opor as emoções, Calhoun chega à
cognição, ressaltando que esta teria sobre o “interesse” a vantagem de “remover a
implicação de que o pensamento sempre resulta no alcance de uma ‘racionalidade’
normativamente entendida” (2001: 50). Entretanto, o autor não se contenta com esta
solução, ressalvando a inadequação de se separar emoção e cognição, e advogando a
necessidade de se construir modelos teóricos capazes de integrar “as dimensões

7
intrapsíquicas e culturais do sentido e da ação de forma clara com a organização social”
(2001: 51).
Para que esta integração seja possível, contudo, seria necessário, na visão de
Calhoun, transcender alguns dualismos fundamentais (tais como pensar/sentir,
mente/corpo, público/privado, masculino/feminino, controle/descontrole)5 que
perpassariam as representações do senso comum ocidental, “contaminando” as teorias
sociais. Em sua análise, o autor destaca dois problemas criados por essa “invasão” da
teoria pelo senso comum. O primeiro vem da representação “nativa” de que as emoções
seriam “disruptivas” e ameaçariam a estabilidade das instituições. A isto, Calhoun opõe
a convicção de que justamente o contrário seria o verdadeiro, ou seja, de que a
estabilidade das instituições seria ao menos parcialmente derivada do investimento
emocional nelas feito. O segundo problema decorre da convicção de que as emoções
estariam localizadas no interior dos indivíduos, o que obscureceria a percepção da
importância das relações emocionais nas grandes organizações e outros “campos de
relacionamento” (entre eles, os movimentos sociais). Calhoun formula assim sua
questão:
“Não se trata simplesmente de notar que as organizações exigem de nós um
trabalho emocional, embora isto seja verdade. É também uma questão
relativa ao modo como investimos e alcançamos nossas identidades através
de relações emocionais com outras pessoas e com organizações complexas.”
(2001:53-54)

Esta preocupação de Calhoun de identificar aspectos em que as representações


nativas da emoção, ao serem “contrabandeadas” para o interior dos modelos teóricos,
nublariam as reflexões dos cientistas sociais, pode ser entendida como exemplo de uma
preocupação que surge também em outros textos incluídos em Passionate Politics. Esta
é a questão abordada por Dobbin (2001) em sua contribuição.
Este problema mais geral do “intercâmbio” entre senso comum e modelos
teóricos aparece no texto de Dobbin sob a capa do problema da motivação individual:
paixão ou cálculo? Sua hipótese é a de que a idéia, recorrente entre os atores sociais
envolvidos em movimentos sociais, de que as emoções podem ser “gerenciadas”, teria
levado a uma concepção, no plano dos modelos teóricos, do ator social como um sujeito

5
Cabe notar aqui a semelhança entre as “pinceladas mais gerais” do quadro desenhado por Calhoun e a as
características da “etnopsicologia euroamericana” discutida por Lutz (1988).

8
racional movido a cálculo e interesse. Para Dobbin, contudo, este “alerta” não pode ser
confundido com um argumento em favor da natureza “apaixonada” da participação
política. O ponto central é que o “real objeto de estudo” seria o modo como interesse,
cognição e emoção se articulam na motivação individual, sem que a percepção de que o
“ator racional” dos “nativos” teria se “infiltrado” no campo das teorias dê margem a
uma inversão simplista do problema, em que este ator racional seria simplesmente
substituído por um ator apaixonado. Para Dobbin, o que é importa é “perceber de onde
vêm estas molduras da percepção, e de que modo as escolhemos para explicar a nós
mesmos o modo como nos comportamos” (2001:80).6

2. O Militarismo: a retórica do controle emocional


Em sua etnografia Mastering Soldiers, Ben-Ari (1998) realiza um estudo de uma
unidade militar israelense, baseado na metodologia da observação participante. Ele
mesmo um oficial integrante da unidade estudada, Ben-Ari foca seu estudo na análise da
visão de mundo da atividade militar.
Esta definição do objetivo do estudo é calcada na opção por uma antropologia
“cognitiva”, definida pelo estudo de “sistemas de significado”, cujas preocupações
centrais o autor define como sendo a análise da sistematicidade que caracteriza toda
cultura; a atenção para a forma como os indivíduos dominam o conhecimento que os
orienta no mundo; e a capacidade “gerativa” destes sistemas, ou seja, seu potencial para
habilitar os indivíduos a lidar com novas situações.
Tendo esta abordagem como guia teórico, o propósito do estudo é identificar um
“esquema”: o modelo do combate. Sua questão principal é: que tipo de experiência é o
combate? O autor vai buscar uma resposta através da recorrência da noção de “pressão”
utilizada pelos militares para definir o combate:

6
Este problema do “intercâmbio” de categorias entre ativistas e antropólogos/sociólogos no campo dos
movimentos sociais vem merecendo a atenção de outros autores. Este é o cerne da crítica que Goldman
(2009) faz a interpretações consagradas dos chamados “movimentos culturais”, apontando para a
emergência de um tipo de ator social que faz uso das mesmas categorias empregadas pelos cientistas
sociais para analisar sua atuação. Em outro trabalho, apontamos para as implicações deste problema para
o estudo da questão da “agência” em um estudo de caso sobre o Grupo Cultural AfroReggae, sugerindo
que a noção de “subjetividade etnográfica” (Clifford, 1998) abre um caminho fecundo para a superação
dos dilemas teóricos colocados por este tipo de ator social que, ao invés de se deixar docilmente
“constituir pela cultura” – como parece ser uma exigência lógica das matrizes clássicas das ciências
sociais -, constitui, ao contrário, a cultura como objeto de sua reflexão e intervenção sociais (Durão e
Coelho, 2010).
9
“Qual é o significado desta ‘pressão’? Vou argumentar que é neste ponto de
junção no qual as metáforas da ‘máquina’, da ‘burocracia’ e do ‘cérebro’
são aplicadas à situação extremamente estressante do combate que surge
toda uma ‘retórica do controle emocional’: que este controle emocional sob
pressão – durante e depois da situação de combate – figura em um esquema-
chave ou modelo do desempenho militar; e, finalmente, que é este modelo-
chave que é utilizado na avaliação dos soldados e das ações e na
interpretação de novas situações.” (Ben-Ari, 1998: 43, tradução minha)

A “retórica do controle emocional” é o eixo que orienta a partir daí a análise da


concepção de militarismo que pauta as atividades da unidade israelense estudada. De
certo modo, é como se Ben-Ari descrevesse a etnopsicologia militar israelense (para
usar a terminologia de C. Lutz), cujos principais aspectos destaco a seguir.
Partindo de uma atenção para a dimensão gramatical dos discursos sobre a
emoção, Ben-Ari aponta um primeiro traço: a recorrência da voz passiva. Ao contrário
do pensamento ou das intenções, as emoções são algo em que o agente é “tipicamente
descrito como alguém que as vivencia passivamente” (1998: 43). Outros traços seriam a
capacidade das emoções de provocarem reações fisiológicas; sua possibilidade de se
misturarem, com o sujeito podendo vivenciar várias emoções simultaneamente; e a ideia
de que as emoções seriam “coisas” a serem manejadas, estados internos provocados por
circunstâncias externas.
O autor religa então sua preocupação com a identificação do esquema cognitivo
com esta descrição da etnopsicologia militar israelense, sugerindo que o ponto central
seria aí a questão da agência: “quem tem o domínio, a situação ou a pessoa?” (p. 44).
O tema fundamental é assim a questão do controle. Este, contudo, apesar de
normalmente associado ao excesso – na etnopsicologia euroamericana de Catherine
Lutz, o descontrole seria a manifestação “excessiva” de emoções através de gritos,
lágrimas, agressões, etc. -, tem aqui uma outra manifestação: a paralisia. Esta é a forma
do descontrole temida pelos soldados em situação de combate: um sucumbir à “pressão”
sob a forma da incapacidade, eventualmente motora, de agir.
Uma segunda forma do descontrole surge quando a retórica do controle
emocional é aplicada nas prescrições quanto às atitudes dos soldados diante dos
inimigos civis. Aqui, o “descontrole” temido não é a paralisia, mas sim a raiva e o
decorrente uso indevido da força. Este uso – caracterizado por agressões físicas,
empurrões ou mesmo tiros – é considerado, segundo Ben-Ari, uma “aberração”, porém
“não apenas devido a um senso básico de humanidade ou de valores humanos esperado
10
dos soldados, mas, o que não é menos importante, porque indicaria uma falta de
profissionalismo. O uso “indevido” da força é visto como falta de controle e como
incapacidade de ter domínio sobre si mesmo e sobre a situação” (1998: 82).
A retórica do controle emocional surge ainda em um terceiro contexto: o
cotidiano da vida em Israel, fora do serviço militar. Para Ben-Ari, haveria uma
“migração” das atitudes emocionais prescritas pelo ethos militar para a vida civil, e que
se expressaria sob a forma de uma identidade masculina cujo desempenho emocional
seria marcado pela ausência de expressão dos afetos e pela repressão dos sentimentos de
dor e inadequação, criando uma fachada de onipotência e invulnerabilidade.
Esta etnografia realiza então, através de uma combinação entre as preocupações
teóricas da antropologia cognitiva e o referencial da antropologia das emoções, uma
síntese teórica específica para pensar, de forma articulada, as dimensões cognitivas e
emocionais na experiência do combate. Centrais para esta síntese são as noções de
“esquema” – entendido como um padrão sistemático de interpretação acionado pelos
membros de uma cultura (um “sistema de significados”) para dar conta das situações
que lhes são apresentadas – e as contribuições de Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod
para a compreensão do modo como as emoções são representadas pela etnopsicologia
ocidental e para a formulação de alternativas teóricas desprendidas destas noções.

3. Experiências de Vitimização: violência, emoção e hierarquia


O terceiro estudo que gostaria de expor aqui é a minha própria pesquisa sobre as
emoções relatadas em experiências de vitimização em assaltos a residências vividos por
pessoas pertencentes às camadas médias do Rio de Janeiro.7 A hipótese é a de que as
emoções relatadas fariam um trabalho subjetivo de restauração de uma ordem que teria
sido “perturbada” pela violência, subversão esta que surgiria sob a forma de uma
percepção da situação como invertendo as posições em uma relação hierárquica. Este
7
Os dados analisados são um conjunto de oito entrevistas realizadas com três casais que vivenciaram
juntos, marido e mulher, experiências de assaltos a suas residências; e com duas mulheres que passaram
por situação semelhante também em companhia de seus maridos (estes dois homens não aceitaram dar
entrevistas). Os homens entrevistados têm 84, 55 e 43 anos; suas esposas têm, respectivamente, 85, 52 e
42 anos. As outras duas mulheres têm 66 e 50 anos. Todos têm filhos. Há três casais residentes na Zona
Sul do Rio de Janeiro; um casal morador da Barra da Tijuca; e um casal residente em um bairro de
camadas médias da Zona Norte do Rio de Janeiro. Quanto às profissões, entre os homens há um
funcionário público aposentado, um engenheiro e um gerente de empresa; entre as mulheres, há três donas
de casa, uma marchand e uma pequena empresária. Os nomes utilizados aqui são fictícios como de praxe.

11
tipo de trabalho teria assim uma natureza micro-política, ou seja, de reforço das macro-
relações de hierarquia e poder que desenhariam o quadro geral da organização social no
bojo da qual as relações interpessoais se dão.
Examinei a existência de uma “narrativa-padrão” nos relatos analisados,
enfocando as representações feitas pelos entrevistados dos assaltantes e os sentimentos
descritos. O quadro que emerge desta conjugação entre representações e sentimentos é
uma percepção da violência como disruptiva, associada à “desordem”. Esta “desordem”
é sugerida por uma representação dos assaltantes como “bagunceiros”, “sujos”,
“pobres” e “ignorantes”, apontando na direção de uma compreensão da violência como
associada a diferenças de classe social, entendidas em termos de diferenças de poder
aquisitivo. Estas representações, por sua vez, sustentam a emergência de uma gramática
emocional em que desprezo e compaixão ocupam lugar central, realizando um trabalho
subjetivo de restauração da ordem que a violência teria vindo “perturbar”.
O primeiro traço que chama a atenção na forma como os entrevistados
descrevem os assaltantes é sua atuação “desorganizada” e “caótica”. Eles são
representados como “agitados” e “bagunceiros”, com esta “desordem” sendo
ocasionalmente associada à “sujeira”, conforme mostram os depoimentos abaixo:
“Aí eu fiquei com raiva, entendeu, deles estarem ali, jogando cigarro no
chão, entendeu, fazendo a maior bagunça, rasgando aquelas roupas da gente
toda, levando meu casaco que eu adorava que meu marido tinha me dado na
lua de mel...” (Joana)

“Aí demoraram muito. Porque eles inclusive comeram, abriram geladeira,


fizeram uma farra geral, uma barulheira tremenda.
Uma imundície, né?” (Magnólia e Rafael)8

A violência é também associada à pobreza, como fica particularmente nítido no


depoimento de um entrevistado assaltado por rapazes a quem descreve como sendo de
“classe média”. Falando sobre sua surpresa ao constatar isso, ele comenta:
A diferença seria mais ser surpreendido por é, expectativa que eu tinha que
as pessoas que roubam são pessoas é... Altamente necessitadas, que vieram,
é, de uma situação muito difícil, não tiveram nenhuma oportunidade na vida

8
Este primeiro traço da representação dos assaltantes nos conduz a teses desenvolvidas em trabalhos já
consagrados no campo de estudos da violência urbana no Brasil, como a discussão de Caldeira (2000)
sobre a violência na cidade de São Paulo, em que a autora mostra a nítida associação da violência com a
“desordem” nos relatos de seus entrevistados.

12
e o crime seria uma conseqüência racional dessa, desse meio ambiente que
elas viviam, né? O que não me pareceu em nenhum momento ser o caso
deles, né? Um deles, inclusive, tinha, morava praticamente na (rua de
moradias de alto luxo) ali e tal.” (Guilherme)

A fala de Guilherme explicita uma expectativa que nos demais depoimentos


aparece de forma sub-reptícia: a vinculação da criminalidade à pobreza, com a privação
material sendo concebida como motivação fundamental para a decisão de assaltar. Esta
associação aparece de forma mais sutil em outros relatos, eventualmente vinculando
pobreza, criminalidade e “favela” ou “subúrbios”, em uma relação de resto já tantas
vezes estabelecida no senso comum de segmentos das camadas médias e altas da
população carioca:9
“... era uma quadrilha de classe média alta. Quer dizer, dois eram de classe
média alta, dois. Nenhum era favelado, os outros dois eram... classe média...
um classe média baixa o outro pobre, mas nenhum deles morava em favela.
(...) esse era o único pretinho da situação, e, o outro até era mulato, o outro
que estava lá embaixo, um deles era e outro era branco. E... um era da (rua
de moradias de alto luxo).” (Ana)

“... o meu medo é que eu me via assim, jogada, num subúrbio aí qualquer da
vida, estuprada, levando tiro, ou morta, eu visualizava na minha cabeça já
eu, já era, jogada num buraco aí qualquer...” (Joana)

Esta vinculação entre violência e diferenças de classe social aparece ainda nas
especulações que vários entrevistados fazem quanto ao porquê de suas residências terem
sido “escolhidas” para serem assaltadas. Em vários relatos, surgem suposições, baseadas
em indícios mínimos, de que pessoas que haviam lhes prestado serviços de baixa
qualificação profissional, tais como serviços domésticos ou de construção/reparos – ou
seja, pessoas pertencentes às camadas populares –, teriam, intencionalmente ou não,
passado informações a outras pessoas de seu “meio social” (definido pelo nível de renda
e/ou pelo local de moradia), gerando assim uma “cobiça” que os teria tornado alvo dos
assaltos.
Esta compreensão desta modalidade de violência está assim associada a uma
visão das relações entre as classes sociais como clivada, operando com uma associação
entre criminalidade, pobreza e local de moradia. Este raciocínio é particularmente nítido

9
De acordo com Soares e Carneiro (1996), este postulado da existência de focos urbanos de violência,
associados primordialmente às “favelas” do Rio de Janeiro, seria característico de um tipo de discurso
sobre a violência urbana batizado pelos autores de “despótico”.
13
em um depoimento em que o casal imagina a existência de uma rede de contatos entre
pessoas moradoras de um bairro onde há “favelas” em uma cidade praiana e a Baixada
Fluminense (região, no imaginário dos moradores do Rio de Janeiro, fortemente
associada à pobreza e criminalidade).
Nestas representações dos assaltantes, há ainda um último traço importante, o
qual, contudo, não aparece da mesma forma explícita, sendo sugerido em comentários
depreciativos, por vezes irônicos: a “ignorância”. Alguns exemplos:
“Acharam aquilo lindo e maravilhoso, levaram acharam aquilo lindo e
maravilhoso, e outras coisas que tinham que talvez tivessem até mais valor e
eles não levaram. Tipo um relógio da (nome de marca), de ouro.
Não viram?
Viram, eu dei, mas eles não quiseram, não entenderam, então...” (Ana)

“Aí eu mostrei o revólver, apontei, ele foi lá, pegou, aí, nessa altura
estávamos eu e ele no quarto, um de cada lado da cama, da minha cama. Ele
então pegou o meu revólver, botou no meio da cama e disse assim: ‘vamos
ver quem é mais rápido’, o dele no cinto, né, preso à calça. E eu disse ‘não,
não vou fazer isso, isso não é meu métier’, depois me arrependi porque tive
que explicar pra ele o que que era métier, entendeu?” (Luís)

“Aí eles começaram a remexer as coisas, pegaram minha carteira de


identidade. Que eu era funcionário naquela época e tinha uma carteira
especial. Eu digo ‘eu tou perdido’. Mas eles eram analfabetos, felizmente.”
(Rafael)

Estas passagens permitem entrever um esforço de demarcação de superioridade,


aqui acionado em relação a um nível cultural representado como inferior: os assaltantes
são analfabetos, com vocabulário limitado e incapazes de reconhecer o valor das
próprias coisas que desejam roubar. Este esforço sugere haver um traço de desprezo dos
entrevistados pelos assaltantes – sentimento este que pode funcionar como uma “ponte”
entre a análise das representações e o exame dos sentimentos suscitados por estas
experiências.
Os depoimentos são permeados por referências às emoções vivenciadas durante
os assaltos, entre as quais se destacam o desprezo e a compaixão. As passagens em que
o desprezo aparece de forma mais explícita são aquelas em que os entrevistados
acentuam a superioridade de sua condição econômica:
“... ele disse pra mim (imita tom impositivo) ‘me dá o celular!’. Aí eu, pra
não ficar sem telefone, ele não tinha me revistado, eu peguei o celular no
bolso, entreguei a ele. Um celular lindo. Presente dela pra mim. Agora eu
tenho um que é uma porcaria. Ótimo. Quando eu der esse celular pra um
14
bandido ele vai dizer, ‘coitadinho. Doutor, fica com ele.’ (risos). ‘Não quero
isso não’.” (Rafael)

“A única coisa que eles levaram da (filha) foi o chip do celular só! Pra gente
não poder se comunicar. Ela... Eles... ‘O celular dela é bem pior do que o
meu!’ Aí, o Guilherme, nessa hora a gente pensou, eu pensei cá com os
meus botões: ‘o meu é comprado o teu é roubado, mas tudo bem!’” (Ana)

“... eles diziam assim: ‘É! Esse pessoal aí, esse prédio de classe média, esse
pessoal não tem nada mesmo!’ Eu falei assim: ‘É! não tem nada não meu
filho. Meu marido é funcionário público. O que que um funcionário público
ganha? Se você tá querendo assaltar lugar de dinheiro você vai procurar
lugar que tenha gente de dinheiro aqui no prédio todo mundo é assim do
mesmo jeito, todo mundo é duro. Você não vai encontrar nada de um milhão
por aqui.’ Eu falava pra ele (gargalhadas).” (Vania)

A forma irônica com que os entrevistados relatam esses momentos dos assaltos,
seus diálogos internos, a jocosidade, sugerem a existência de uma espécie de regozijo
neste proclamar-se detentor de pouco. Mas de que modo o declarar-se detentor de
pouco ou menos do que o outro pode estar a serviço de uma afirmação de um lugar
hierarquicamente mais elevado? Enfatizo o “declarar-se” porque é evidente, por outras
passagens dos depoimentos, que a percepção dos entrevistados acerca das diferenças de
poder aquisitivo entre eles e os assaltantes atribui a eles, as vítimas dos assaltos, o maior
status. Qual o trabalho que esta auto-declaração realiza então no plano subjetivo?
Em seu clássico estudo sobre a dádiva, Mauss (1974) realiza, em meio a uma
profusão de dados etnográficos, uma análise do ritual do potlatch, encontrado entre as
tribos do noroeste norte-americano. No potlatch, enormes quantidades de riquezas
materiais são destruídas, em um esforço de construção de prestígio social e obtenção de
poder por meio do desprendimento material: se eu destruo, é porque posso dispor, e se
destruo mais, é porque tenho mais, e por isso posso mais e sou mais. Os entrevistados,
assim, ao rir de uma suposição quanto à própria destituição recolocam-se em uma
posição de superioridade hierárquica. “Tenho tão mais do que você e estou tão seguro
disso que sequer preciso ostentar, sequer me deixo atingir pela sua suposição de que
tenho pouco”: é isto o que os entrevistados parecem estar realizando no plano da
linguagem, em uma espécie de potlatch discursivo.
Úrsula sintetiza esse “clima” geral dizendo não reagir porque, ao contrário dos
assaltantes, precisa zelar por sua vida porque tem o que perder: “E eu não reajo a
assaltos porque eu acho que eu tenho muito a perder, né? Eles não têm a perder, né?”
15
Estes comentários, aliados àqueles sobre a “ignorância” dos assaltantes, sugerem
a recorrência de um sentimento de desprezo a eles dirigido pelas vítimas. Miller (1997),
em análise sobre o sentimento de desprezo, acentua sua capacidade de demarcação de
hierarquias. À luz desta colocação, temos então um primeiro traço da dinâmica
emocional que marca estas experiências de vitimização: o esforço de recuperação, por
meio deste sentimento, de um lugar de superioridade hierárquica no plano subjetivo.
O desprezo, contudo, não é o único sentimento capaz de realizar este
movimento. A compaixão é um sentimento dotado também desta mesma capacidade
micro-política (Clark, 1997), e está presente em algumas passagens destes relatos, como
em fragmentos do depoimento de Úrsula que estabelecem relações entre impotência,
medo, pena e raiva:
“Esse que tava comigo no hall, no closet entendeu? E ele quando saiu ele
fez um monte de ame... Ele ficou olhando assim pra mim: ‘Você vai ver!
não sei o quê...’ Sabe? Essas coisas. Aí você fica assustada até porque, aí
quer dizer, você fica com um sentimento assim, é uma pena misturada com
medo entendeu? E com impotência porque você vê o cara entrou ali, ele, o
que que ele vai fazer ali?”

“Agora na hora, você, eu não fico com raiva, entendeu? Assim, tem gente
que fala: ‘Ah! Você não ficou com raiva? Vontade de pegar uma arma e
matar todo mundo!’ Eu não faço isso. Entendeu? Eu não tive esse
sentimento. Eu fiquei com muito mais com uma coisa de pena.”

No primeiro fragmento, a pena aparece como uma decorrência do medo e da


impotência diante das ameaças recebidas; no segundo, ela é uma alternativa à raiva
passível de ser suscitada pelas ameaças.
Um último depoimento vem reforçar essa presença da pena como um aspecto
emocional relevante destas experiências de vitimização. Joana, ao terminarmos a
entrevista e já com o gravador desligado, comentou que até o assalto vivia
“anestesiada”, sem “ver as pessoas”. Após o assalto, passou a sentir “pena” delas.
Em seu discurso, ela não nomeia quem seriam estas pessoas invisíveis as quais,
ao serem notadas, nela suscitaram pena. Só podemos entender quem são através de suas
associações, quando, na sequência da conversa, ela conta o caso de uma pessoa a quem
encontra por acaso e que ela jamais havia notado que havia trabalhado em sua casa
como faxineira, arrematando: “para mim, ela era só um detalhe na minha vida”.10

10
Este depoimento de Joana ilustra com particular poder de síntese aquele diagnóstico discutido por
Soares acerca da “invisibilidade” que caracterizaria as relações entre os dois lados da “cidade partida”
16
Aquela associação entre violência e pobreza com que principiei a análise dos
depoimentos, com sua conexão com as diferenças entre classes sociais, reaparece aqui
com este matiz emocional: este “outro” que a agride é o mesmo “outro” que lhe presta
serviços, e a quem, ao notá-lo, passa a destinar, em lugar da indiferença, um sentimento
de pena por sua condição, estabelecendo neste movimento uma hierarquia em que ela, a
entrevistada, ocupa a posição de maior status. A “pena” de Joana parece executar assim
aquele trabalho micro-político que, segundo Clark (1997), estaria entre as capacidades
micro-políticas da compaixão: a demarcação de fronteiras entre grupos sociais.
Desprezo e compaixão surgem nestes depoimentos em articulação com a raiva, o
medo, a impotência e a humilhação. Estes sentimentos formam complexos emocionais,
dotados, contudo, de dinâmicas particulares à situação que os engendra. De acordo com
Katz (1988), a raiva que orienta uma agressão física pode ser produto de um sentimento
de humilhação. Aqui, contudo, é como se dar vazão à raiva fosse uma atitude avaliada
como inadequada/impossível, na definição da situação empreendida por estes atores
sociais.
Desprezo e compaixão realizariam assim, no plano emocional, o mesmo trabalho
que a agressão física: o restabelecimento da hierarquia rompida pela violência, que
implica a invasão de suas casas, a expropriação de seus bens, a exposição a
xingamentos, ameaças e agressões físicas. A emergência destes sentimentos nesta
situação, contudo, é facultada exatamente por aquelas representações dos assaltantes
como “desordeiros”, “pobres”, “sujos” e “ignorantes”, sugerindo estarmos diante de
uma percepção da violência urbana como associada a diferenças entre classes sociais,
entendidas em termos de poder aquisitivo e/ou local de moradia. E é justamente este o
trabalho micro-político feito aqui pelos sentimentos de desprezo e compaixão: o
restabelecimento da hierarquia entre estas duas “classes sociais” distintas – às quais
pertenceriam “assaltante” e “vítima” –, hierarquia essa invertida pela violência.
O conceito de “representação social” surge assim articulado com a noção de uma
“micro-política” das emoções. Embaso esta aproximação na revisão deste conceito feita
por Laplantine (2001), em que o autor define a representação como sendo uma idéia

(Ventura, 1994) em que o Rio de Janeiro se teria tornado: “os ‘de baixo’ são frequentemente invisíveis
para os de cima, salvo quando lhes metem medo, produzem incômodo ou passam a representar alguma
ameaça, imaginária ou real” (Soares 2000: 41).

17
sobre o real “que não duvida de si mesma”, ou seja, que se apresenta ao espírito do
sujeito que por ela se pauta como sendo a própria realidade. Em um primeiro plano, a
representação é, portanto, uma forma de conhecer. Mas Laplantine afirma ainda que a
representação comporta também duas outras dimensões: como este “conhecer” nunca é
destituído de valorações, a representação é também uma forma de valorar, e por ser
assim, serve de guia para a ação, sendo também uma forma de agir.
A indicação que faço aqui é de que podemos acoplar a este modelo a sugestão de
que a representação é ainda uma forma de sentir, ou seja, uma tradução, no plano da
experiência emocional individual, deste conhecimento valorado que informa sua
atuação na vida social. E é esta sugestão que permite aqui articular as dimensões
cognitiva e afetiva de um tipo de experiência da violência urbana: a vitimização.

Considerações Finais
O esforço realizado neste trabalho foi o de expor três estudos voltados para a
discussão do papel desempenhado pelas emoções naquilo a que poderíamos, ao menos
provisoriamente, nos referir como “mundo público”, por oposição ao universo da
intimidade e da privacidade. Esta exposição procurou sublinhar as construções teóricas
propostas pelos autores para dar conta do trabalho subjetivo que as emoções realizam na
cena pública, com destaque para a questão da articulação cognição/emoção e suas
tangências (em particular os problemas da motivação e da agência individual).
Em Passionate Politics, a questão cognição/emoção aparece atrelada à
prioridade dada ao estudo da motivação, com os teóricos parecendo ocasionalmente
cindi-la entre cognição, emoção e interesse, pintando assim imagens distintas do ator
social, ora racional, ora apaixonado, ora calculista. O tom geral dos artigos expostos é
em favor da formulação de modelos teóricos capazes de dar conta do modo como
cognição e emoção se articulam na motivação do indivíduo para a ação.
Os outros dois estudos expostos aqui realizam justamente, a partir dos objetos da
guerra e da violência urbana, esforços de articulação destas duas dimensões na
compreensão da experiência dos envolvidos. Em Mastering Soldiers, Ben-Ari escolhe o
caminho da antropologia cognitiva e sua noção de “esquema”, combinando-a com a
antropologia das emoções norte-americana encabeçada por C. Lutz e L. Abu-Lughod,
para dar conta da “retórica do controle emocional” que pauta o treinamento, a avaliação
e a atuação dos militares israelenses em situação de combate. Em meu próprio trabalho,
18
recorro a esta mesma matriz teórica da antropologia das emoções, combinando-a,
porém, com a noção de “representação social” como forma de compreender a relação
entre a emergência de uma gramática emocional na situação de vitimização e uma
determinada visão dos agressores e suas motivações.
Reunidos em um conjunto, estes três trabalhos nos propõem algumas matrizes
teóricas para o estudo das emoções na cena pública, apontando para a relevância de se
ampliar o raio de alcance da antropologia das emoções para além dos objetos que se
encontram, juntamente com a emoção, situados pelo senso comum ocidental nos
domínios da privacidade e da intimidade. É para este alargamento do campo da
antropologia das emoções que este esforço de aproximar estudos sobre movimentos
sociais, guerras e violência urbana pretende contribuir.

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