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A Centro de Estudos cedipre de Direito Publico e Regulaciio Estudos de Contratacao Pdblica — 1 OS PRINC{PIOS GERAIS DA CONTRATACAO PUBLICA Roprico EsTeves DE OLIVEIRA SUMARIO: 1. Importancia, fungao e elenco dos princfpios da con- tratagio ptiblica, 2. Os princfpios comunitarios da contratagao ptiblica. 3. A légica dos principios juridicos (e das regras). 4. O prinefpio da concorréncia. 4.1. O princfpio da comparabilidade das propostas. 4.1.1. As medidas destinadas a assegurar a comparabilidade das pro- postas. 4.2. O principio da intangibilidade das propostas. 4.2.1. Alguns desvios. 4.3. O principio da estabilidade das regras do procedimento (ou da estabilidade objectiva). 4.4. O princfpio da estabilidade dos concor- rentes e dos candidatos (ou da estabilidade subjectiva). 5. O principio da igualdade. 6. O principio da imparcialidade. 7. O princfpio da trans- paréncia. 8. O principio da publicidade. 9. O principio da proporcio- nalidade. 10. O principio da tipicidade dos procedimentos e da ade- quagao. formal da tramitagio. 10.1. A admissibilidade da irrelevancia dos vicios procedimentais. 11. O principio do “favor” do procedimento, dos concorrentes e das propostas. 1. IMPORTANCIA, FUNCAO E ELENCO DOS PRIN- CiPIOS DA CONTRATACAO PUBLICA Apesar da regulacao mais extensa constante das leis internas (sobretudo do Cédigo dos Contratos Piiblicos) e das directivas comunitdrias, os princfpios juridicos sempre foram e vao conti- nuar a ser uma fonte de direito fundamental no sistema da contrata- gao publica. Alias, nao arriscariamos muito se disséssemos que a contratagao publica é certamente uma das matérias em que mais se sente a importAncia concreta ou pratica dos princfpios juridi- cos, bastando referir para o efeito os intimeros “casos” decididos pelas entidades adjudicantes e, em tiltima instancia, pelos nossos 52 Estudos da Contratacao Piiblica — I tribunais com fundamento directo e auténomo numa norma deles retirada ou neles implicita, sem esquecer também a juris- prudéncia comunitéria, que tantas e tantas vezes se faz eco dos princfpios da contratagao ptiblica (ver ponto 2). Essenciais para a criacéo de um mercado sfio de contratacéio puiblica, o relevo dos princfpios assume ou pode assumir dife- rentes configuragGes, que eles nao operam ou funcionam sempre da mesma maneira. Essas suas diferentes projecces no dominio da contratagao piblica (nos outros dominios passa-se 0 mesmo, natu- ralmente) podem distinguir-se metodicamente recorrendo as ideias de “fungio positiva” e de “funcio negativa’. No primeiro caso, o princfpio contribui positivamente para a regulacdo de uma qualquer hipstese da vida, para a elaborac&o da “norma-do- -caso”, seja em concurso com uma regra escrita, seja autonoma- mente. No segundo caso, o princfpio contribui negativamente, é dizer, o seu efeito é o de afastar a aplicac3o de uma determi- nada regra escrita que lhe esteja infra-ordenada e que com ele seja desconforme ou incompativel (“sinal vermelho”: a norma ou regra escrita nao passa). O que acontece depois, nesta ultima hipotese, depende do caso, podendo o afastamento da regra escrita dar origem & convocaco e extenso analégica de uma outra regra, que exista, ou entao o principio, que num primeiro momento assumiu relevo paramétrico negativo (ou exchidente), vai, num segundo momento, isolada ou contextualmente, ter uma fun- a0 positiva, de regulagéo auténoma do caso. Naturalmente, a func&o negativa dos princfpios resulta da (e pressupée a) sua forca paramétrica relativamente a fonte de direito escrito em causa. Por sua vez, aquilo a que chamdmos funcio positiva pode, como se viu, assumir contornos muito distintos, dependendo, desde logo, de haver ou nao regra escrita aplicdvel e da natu- reza dessa regra. Assim, se estiver em causa uma norma atri- butiva de poder descricionério ou cuja aplicac&o envolva a for- mulag&o de valorag6es préprias do exercicio da fungao administrativa, os princfpios da contratagdo publica assumi- rao uma fungio integrativa, contribuindo para a densificagéo dos espacos normativos em aberto e para a “construgao” ou definigao do critério normativo aplicdvel & hipstese em aprego. Os princtpios gerais da contratagao piiblica 53 No entanto, o relevo “positivo” dos princfpios nao desapa- rece se estiver em causa uma regra de conduta vinculada. Abs- traindo da sua funcao negativa, o que se passa nessa hipétese é que os principios se constituem como factor de intrepretacio das regras constantes das directivas comunitdrias ou das leis internas, como tépico de determinagao do seu sentido e alcance das nor- mas escritas, impondo, por exemplo, uma interpretagdo mais extensiva ou mais restritiva ou vedando uma coisa ou outra. Esta fungao dos princfpios é alids expressamente reconhecida na Directiva 2004/18/CE, no seu 2° Considerando, quando — depois de afirmar, primeiro, que “a adjudicagao de contratos... deve respeitar os principios do Tratado, nomeadamente os princfpios da livre circulagao de mercadorias, da liberdade de estabeleci- mento e da livre prestacao de servicos, assim como os principios deles resultantes, tais como os princfpios da igualdade de trata- mento, da no discriminagao, do reconhecimento miituo, da pro- porcionalidade e da transparéncia” e, segundo, que, “no que se refere aos contratos ptiblicos que ultrapassem um determinado valor, é aconselhdvel estabelecer disposicdes que instituam uma coordenacao comunitéria dos procedimentos nacionais para a adjudicagao dos contratos puiblicos que se baseiem nesses prin- cipios por forma a garantir os seus efeitos e a abertura a con- corréncia dos contratos ptiblicos”, — se diz af que “tais disposi- ges de coordenacio devem ser interpretadas em conformidade com as regras e principios atrds referidos, bem como com as restantes regras do Tratado” (a mesma ideia encontra-se na Directiva 2004/17/CE, 9° Considerando). Naturalmente, estando aqui em jogo principio de direito comunitdrio e também, como veremos melhor ja de seguida, princfpios constitucionais da actividade administrativa, ambos prevalecentes sobre o direito interno ordindrio, esta sua fun- cao vale igualmente (e ainda mais reforgadamente) quando se trate de fixar o sentido e alcance de leis (em especial, o Cédigo dos Contratos Publicos) e regulamentos (por exemplo, os programas de concurso ou de procedimento) nacionais de contratacao publica. A terceira projeccaio ou “fungio positiva” dos princfpios juridicos é a de, na falta de uma regra que possa aplicar-se & quest&o em apreco — ou porque ela pura e simplesmente nao 54 Estudos da Contratacao Piiblica — I existe ou porque, existindo, foi afastada (por inconstituciona- lidade ou por violacao do direito comunitério, tratando-se de uma norma da lei, e ainda por ilegalidade, se se tratar de norma administrativa ou regulamentar) e nao ha outra que possa valer ao intérprete —, a terceira projeccdo, dizia-se, 6 a de eles fornecerem por si sés a “norma-do-caso”, a regulagiio ou ordenagio concreta para a hipdtese que se impoe resolver. Aqui, os princfpios valem como fundamento directo e auténomo da solucao jurfdica que se dé ao caso concreto da contratagao piiblica, sendo esta a situaco em que se manifesta de forma mais clara a sua natureza normativa (de “princfpios-norma”). Isto significa, portanto, que além de um relevante instrumento de interpretagao e integragao do direito, os princfpios juridicos servem de base auténoma de deveres, direitos ou faculdades dos sujeitos dos procedimentos adjudicatérios — e significa, conse- quentemente, que, para garantir a legalidade de um procedimento pré-contratual, nao basta actuar em conformidade com as regras, com a lei, mas também com os principios da contratagao ptiblica. Por tiltimo, aos princfpios compete também uma impor- tante fungio de legitimagao (de “sancio” ou de “sinal verde”, se se quiser) das proprias regras constantes da lei ou dos regu- lamentos administrativos, das solugdes deles constantes (a solu- cdo é intrinseca e juridicamente valida de iure condito na medida em que ndo viole um princfpio supra-ordenado). Resta dizer, embora seja uma evidéncia, que a funcio para- métrica dos principios, além de valer para os actos adminis- trativos ou outras medidas juridicas adoptadas pelas entidades adjudicantes vale igualmente para os actos juridicos dos inte- ressados, concorrentes ou candidatos — que serao sempre ile- gitimos quando violem um principio jurfdico, dependendo a sangao aplicdvel das circunstancias do caso e das consequén- cias da violacéo do princfpio em causa. 14, E de que princfpios se fala, quando os reportamos a contratagao publica? No dominio da contratagaio publica, encontramos, desde logo, principios gerais de direito interno e comunitdrio (v. g., igual- Os princtpios gerais da contratagio piiblica 55 dade, imparcialidade, concorréncia), mas também principios especificos da realidade comunitdria (v. g., proibicéo da discrimi- nagiio em raz&o da nacionalidade e reconhecimento miituo) e ainda principios especificos da realidade da contratacao publica (v. g., intangibilidade das propostas). Assim, além do princfpio da legalidade administrativa (sobre- tudo na sua vertente da legalidade procedimental ou principio da formalidade), aos diversos procedimentos de adjudicagao regu- lados pelo direito publico aplicam-se os restantes princfpios gerais da actividade administrativa consagrados na Constituigéo (artigo 266./2), os princfpios gerais previstos do Cédigo do Pro- cedimento Administrativo — neste caso, mais nao fosse, por forga do respectivo artigo 2.°/5 —, como é 0 caso do princfpio da prossecucdo do interesse publico e da proteccdo dos direitos e interesses dos cidadios, da igualdade, da proporcionalidade, da justica, da imparcialidade, da transparéncia, da publicidade, da boa-fé, da colaboragao, da participacio, da decisao, da eficiéncia, da gratuitidade, do inquisitério, da informacao e do acesso & justica, e ainda o importante principio da tutela da confianga ou da seguranga juridica, bem como os princ{pios mais directamente derivados do direito comunitério, como € 0 caso do principio da concorréncia (que acaba por ser uma derivago especifica do principio da igualdade), da proibig&o de discriminag&o em razo da nacionalidade, do reconhecimento miituo, etc. Todos eles podem e devem, portanto, ser chamados a regulagéo de questées procedimentais adjudicatérias, pelo menos, se e na medida em que ndo. sejam afastados pela lei ou nao sejam incompativeis com a regulacdo e ordem dela constante. Nao ha aqui qualquer contradicao com o que se disse atrés. Os prinefpios juridicos, porque sao mais “porosos” ou porque séo intrinsecamente conflituais (ver ponto 3), admitem, dentro de certos limites, diferentes solugdes. O que se pretende dizer é que, se e na medida em que as regras escritas nao violem um principio juridico, ou seja, se e na medida em que o legislador tenha exercido a sua liberdade de conformacao dentro da mar- gem consentida pelos parametros jurfdicos que lhes estao supra- -ordenados, entao as normas legais tém preferéncia na regula- 56 Estudos da Contratacao Ptiblica — I cao directa do caso. O que significa, bem vistas as coisas, que 0s principios so, de facto, um instrumento indispensdvel do trabalho do intérprete, mas apenas na medida em que nao sejam afastados (ou enfraquecidos no seu alcance ou diminui- dos nas suas exigéncias), expressa ou concludentemente, por regras legais constantes do CCP ou de outras leis procedi- mentais (desde que tais regras sejam legitimas). Julgamos assim dever evitar-se — e este é um ponto espe- cialmente importante, considerando a entrada em vigor do CCP e as novas solugdes que ele traz — que ideias formadas com base em concepcées abstractas ou aprioristicas dos principios da contratacao ptiblica prevalegam sobre a ordenacio legal, ou seja, sobre as regras legitimas postas pelo legislador para a dis- ciplina dos procedimentos adjudicatérios de direito piblico. Em suma, e em termos légicos, hd que ver, primeiro se ha regra escrita. Se nao houver (e se se tratar de uma verdadeira lacuna e néo de um “siléncio eloquente”), h4 que recorrer aos princfpios, eventualmente, com as modulacdes que sejam pedi- das pelo sistema interno da contratagao ptiblica (como pode suce- der quando no esteja em causa um prinefpio tipico da contra- tagao ptiblica). Se houver regra escrita, ha que proceder ao teste da sua legitimidade em face dos principios juridicos prevale- centes. Se a regra nao for ilegitima a luz do “bloco dos princf- pios”, é ela que se aplica, com a eventual colaboraco dos prin- cipios na tarefa da sua densificagao ou interpretacio. Se for ilegitima, ou hd uma regra que discipline caso andlogo ou, entao sim, recorre-se & forca ou efeito dispositivo dos principios. No entanto, como se sabe, em matéria de contratacaéo ptiblica, hé um leque de principios estruturantes, uma lista de principios que tém uma posigaéo ou funcgdo qualificada nos procedimentos administrativos de adjudicacao. Sao os prin- cfpios fundamentais da contratagao piiblica. Sucede assim com os princfpios da transparéncia, da igualdade e da concorréncia (artigo 1.°/4 do CCP) — nas directivas faz-se também refe- réncia expressa aos principios da igualdade de tratamento, da nao discriminacao e da transparéncia (artigo 2.° da Direc- tiva 2004/18/CE e artigo 10.° da Directiva 2004/18/CE) —, Os principios gerais da contratagio piiblica 87 mas também certamente com o princfpio da imparcialidade e da tutela da confianga (e aconteceria também com o da publi- cidade, se nao estivesse j4 implicito no princfpio da transpa- réncia). E neles, e na sua observancia estrita pelas entidades adjudicantes, que assenta o “bom nome” do mercado da con- tratacao publica, em termos tais que quebrar aqui as suas exi- géncias é, afinal, pér em causa a fungio, a confianga e o crédito do piiblico no funcionamento desse mercado. Esses princfpios, note-se, nao afastam a valia dos demais, que acima referimos, nem sequer so suficientes para resolver todas as hipéteses de contratacao publica que se suscitam, mas a ver- dade 6 que, por tutelarem valores e interesses fundamentais dos procedimentos adjudicatérios e dada a sua essencialidade na estrutura e fungao de tais procedimentos, sao eles os juridica- mente determinantes na relagdo que se estabelece entre enti- dade adjudicante e os interessados (entre os quais, 0s concor- rentes e candidatos). Sao princfpios que devem ser vistos como verdadeiras condicionantes juridicas das decisées que af se tomem, reconhecendo-se-Ihes uma forca qualificada no con- fronto com outros princfpios, sobre os quais, em caso de conflito, hao-de prevalecer (!). As entidades adjudicantes estao portanto vinculadas, em cada procedimento ou concurso que se langar, a observar inderrogavelmente esses principios. (}) Nao se trata, note-se, de uma hipétese de preferéncia puramente abstracta por um ou outro princfpio, mas apenas de reconhecer que uns, por servirem interesses fundamentais da concorréncia ou dos procedimentos adjudicatérios, se colocam af numa posigao “reforcada”, ndo permitindo, em caso de lesdo séria dos bens que tém em vista tutelar, limitagdes impostas por outros principios que com eles colidam. Trata-se apenas de reconhe- cer, portanto, que certos principios, quando inseridos num ambiente con- correncial, ganham uma importancia que em “lugares” diversos até pode nao Ihes ser atribufda, enquanto que outros principios perdem ai parte do “falgor” que lhes é reconhecido em geral ou noutros procedimentos (esta “variagao” da forga dos principios consoante o lugar onde operem € assi- nalada, por exemplo, por Claus Wilhelm Canaris, em Pensamento Sistemd- tico e Conceito de Sistema na Ciéncia do Direito, 1989, FCG, pag. 95). 58 Estudos da Contratag&o Piiblica — I Ao invés do que sucede com estes princfpios, outros nao respeitam a valores e interesses fundamentais destes procedi- mentos e, por isso, 0 seu campo de aplicacao restringe-se a hipé- teses especiais juridicamente delimitadas. Trata-se agora de prin- cipios que — ou porque cedem perante outros que, no caso concreto, tém especial valor, ou porque a relativa inatendibilidade a que esto votados em matéria de procedimentos adjudicatérios constitui um seu limite imanente, ou, ainda, porque se mostram inconcilidveis com o “sistema” normativamente plasmado nos diplomas legais — véem encolher o ambito de “validade” que em regra lhes esté destinado (quando nao sao simplesmente des- considerados), para dar lugar a plena ou prevalecente aplicacao dos princfpios fundamentais ou qualificados. 1.2. Para terminar, trés breves notas. A primeira, para assinalar que o legislador do CCP — apesar de ter reconhecido no preémbulo do DL n.° 18/2008, de 29 de Janeiro, que “os princfpios da igualdade, da concorréncia, da imparcialidade, da proporcionalidade, da transparéncia; da publi- cidade e da boa fé [sfio] parametros que reconhecidamente domi- nam as tramitacgGes procedimentais pré-contratuais” — optou depois, no artigo 1.°/4, por dizer apenas que a “contratacio ptiblica so especialmente aplicdveis os principios da transparéncia, da igualdade e da concorréncia”, norma que, como é evidente, nao afasta a relevancia dos demais e cuja justificaco se encontra no facto de serem aqueles os constantes das directivas comunitarias (por nés, 86 peca talvez.a falta de referéncia ao principio da impar- cialidade). Esta opcao do legislador no nos merece reparo, e 6 eventualmente uma consequéncia da maior e mais pormenori- zada regulacao legal que se encontra hoje no CCP (e dai a menor preocupagéio em fazer ressaltar a forca aut6noma dos princfpios) contrastando assim com a opgao do antigo DL n° 197/99 (de 8 de Junho), em cujos artigos 7. a 15° podia encontrar-se o enunciado € a definic&io do contetido essencial dos principios da transparén- cia e da publicidade, da legalidade e da prossecugio do interesse puiblico, da igualdade, da concorréncia, da imparcialidade, da pro- porcionalidade, da boa fé, da estabilidade e da responsabilidade. Os princtpios gerais da contratagio piiblica 59 A segunda nota serve para dizer que 0 CCP faz, aqui ou ali, referéncia avulsa a outros “blocos de princfpios”, como sucede i) no artigo 5.°/4, alinea a), onde se prevé que, “sem pre- jutzo do disposto no n° 2 do artigo 11., a parte II do presente Cédigo nao é igualmente aplicavel a formaciio dos ... contratos que devam ser celebrados com uma entidade, que seja ela pré- pria uma entidade adjudicante, em virtude de esta beneficiar de um direito exclusivo de prestar o servico a adquirir, desde que a atribuigao desse direito exclusivo seja compattvel com as normas e 0s princfpios constitucionais e comunitdrios aplicdveis", ii) no artigo 5°/6, onde se dispde que a formagio de determinados contratos exclut- das da parte II séo porém aplicaveis os princtpios gerais da activi- dade administrativa e as normas que concretizem preceitos cons- titucionais constantes do Cédigo do Procedimento Administrativo, iii) e no artigo 277°, a propésito dos contratos a celebrar por entidades beneficidrias de direitos especiais ou exclusivos no exercicio de actividades de servico puiblico, onde se diz que “na formacao de contratos de locag&io ou de aquisigéo de bens méveis por entidades ndo referidas no artigo 2° ou no n° 1 do artigo 7° as quais tenham sido atribuidos direitos especiais ou exclusivos no exercicio de actividades de servico publico por uma das enti- dades adjudicantes neles referidas, devem aquelas respeitar 0 principio da ndo discriminagao em razdo da nacionalidade” A terceira nota, para referir que lidamos (e vamos lidar aqui) apenas com os princtpios da contratacao publica, é dizer, com os princfpios dos procedimentos de adjudicacéo, pelo menos com os mais caracteristicos ou estruturantes, ndo tam- bém com os principios dos contratos administrativos ou dos con- tratos ptiblicos, que é matéria muito distinta daquela. 2. OS PRINCIPIOS COMUNITARIOS DA CONTRA- TACAO PUBLICA Como dissemos atrés, quando se fala dos princfpios fun- damentais dos procedimentos de adjudicacdo, nao pode esque- cer-se que muitos deles, encontrando-se consagrados em texto 60 Estudos da Contratacao Pitblica — I de direito interno, tém também origem e forca comunitéria, é dizer, derivam do Tratado, das suas liberdades fundamentais ou das directivas, e resultam igualmente do labor “pretoriano” do TJ, que, numa jurisprudéncia rica e relativamente estavel, tem vindo a definir ou estabelecer qual o seu sentido e alcance no mercado da contratagao piiblica. Comegando por se fundar, directa ou indirectamente, ora nas liberdades de circulagéo de mercadorias, de circulacgao de pessoas e de prestagao de servigos, ora na funcao e objectivos comunitarios da contratagao ptiblica, ora ainda na regulagao constante das varias directivas adoptadas ao longo dos tempos, o TJ — a maior parte das vezes no 4mbito de processos de reenvio prejudicial — ajudou a construir de facto um sistema coerente e organizado de princfpios, que serve actualmente de fundamento auténomo das suas decisdes, como é 0 caso dos princfpios da igualdade e concorréncia, da nao discriminacéo em razao da nacionalidade, da transparéncia, publicidade e imparcialidade, do reconhecimento mtituo, da proporcionali- dade e da protec¢ao ou tutela jurisdicional efectiva. A existéncia de um corpo de princtpios comunitdrios da con- tratagao priblica tem, entre outras, duas consequéncias: em primeiro lugar, a densificacao e aplicagéo dos principios dos procedi- mentos de adjudicacio pelas entidades (administrativas e judi- ciais) nacionais nao deve limitar-se a uma leitura interna, segundo a lei, a doutrina e a jurisprudéncia “domésticas”, digamos assim, mas deve tomar também em considerac&o o sentido e alcance que esses princfpios tém recebido na jurisprudéncia comunité- ria, seja por forca do primado do direito comunitario, seja por- que é com esse sentido e alcance que o TJ decidiré a questiio con- trovertida, se ela for levada ao seu julgamento, designadamente através do reenvio prejudicial. A segunda consequéncia, que é derivada dessa, é a da permanente importancia e relevo juri- dico dos princfpios comunitérios, que, apesar da transposicio das directivas, é dizer, apesar do CCP, constituem um parametro de validade das leis internas e suas op¢Ges, circunsténcia que as vezes quase transforma as entidades adjudicantes e as empresas em “fiscalizadoras” da regularidade do direito nacional face ao Os princépios gerais da contratacdo piiblica 61 direito comunitario, em hipoteses de delicada solugio (sobre- tudo a luz do principio da legalidade e do principio da tutela da confianga ou da seguranga jurfdica). 2.1. Um outro dado fundamental nesta matéria é 0 de que o relevo dos principios comunitdrios nao se esgota no estrito dominio dos procedimentos ou contratos piiblicos sujeitos (pelo seu valor ou pelo seu objecto) ao regime das Directivas 17/2004 e 18/2004. Pelo contrério, existem variadfssimos actos de soft law comu- nitéria sobre a operatividade e aplicabilidade de tais principios em matéria de adjudicagao de contratos nao abrangidos pelas referidas directivas, como é o caso (por ordem cronolégica) da “Comunicagao interpretativa da Comissdo sobre as concessées em direito comunitdrio” (JO, 29.4.2000), do “Livro Verde sobre as parcerias puiblico-privadas e 0 direito comunitdrio em matéria de contratos puibli- cos e concessdes” (COM, 30.4.2004), da “Comunicagao interpreta- tiva da Comissao sobre a aplicagao do direito comunitdrio em matéria de contratos piblicos e de concessdes as parcerias piiblico-privadas ins- titucionalizadas” (JO, 12.4.2008) e da “Comunicagdo interpretativa da Comissao sobre 0 direito comunitdrio aplicdvel & adjudicacdo de con- tratos néo abrangidos, ou apenas parcialmente, pelas directivas comu- nitdrias relativas aos contratos pitblicos” (JO, 1.8.2006, C 179/2) — soft law, assinale-se, que, carecendo, por natureza, de efeitos juridicamente vinculativos, tem evidentes efeitos praticos (por dar a conhecer qual é o entendimento da Comissao sobre o direito comunitdrio) e se baseia, na maior parte dos casos, no “estado da arte” da jurisprudéncia comunitaria. Hi, de facto, relevantissima jurisprudéncia comunitéria a afir- Mar 0 mesmo, ou seja, que, apesar de as directivas nao se aplica- em a contratos cujo objecto nao se subsuma no respectivo ambito objectivo de aplicacdo ou cujo valor nao ultrapasse o limiar previsto em cada uma delas (TJ, Comissao/Itdlia, de 21.2.2008), valem porém para tais contratos as normas do Tratado (sobretudo, o regime da liberdade de estabelecimento e da liberdade de presta- Gao de servicos) e os principios fundamentais da contratacdo ptiblica (TJ, Teleaustria, de 7.12.2000), pelo menos se eles (con- tratos) tiverem um “interesse transfronteirico certo” (TJ, Comis- 62 Estudos da Contratagio Publica — I sdo/Irlanda, de 13.11.2007), ou seja, se tiverem caracteristicas tais (em fungio do valor estimado, da localizagéio, da tecnicidade, etc.) que os tornem propicios a despertar o interesse de operadores estrangeiros. Assim, por exemplo, no conhecido acérdao Teleaustria, em que estava em causa um contrato exclufdo do regime das directivas (tra- tava-se de um contrato de concessao de servigo puiblico entre uma sociedade de capitais exclusivamente puiblicos e uma empresa pri- vada), o TJ entendeu que das regras do Tratado e dos princfpios da n&o discriminac&o e da igualdade resultava uma “obrigagao de transparéncia” para as entidades adjudicantes, em termos tais que permitisse assegurar, “a favor de todos os potenciais concor- rentes, um grau de publicidade adequado para garantir a abertura 4 concorréncia dos contratos de servigos, bem como o controlo da imparcialidade dos processos de adjudicacao”. Esta jurisprudén- cia foi depois confirmada em outras decisées, como no caso Coname (de 21.7.2005, novamente uma concessao de servico), no qual o TJ voltou a afirmar que, por forca da obrigagéo de’trans- paréncia, as entidades adjudicantes devem “permitir que uma empresa situada no territério de um Estado-membro diferente... tenha acesso as informag6es adequadas & concessao antes de esta ser adjudicada de forma a que, se essa empresa o desejar, possa manifestar 0 seu interesse na obtengao dessa concessao”. E note-se que esta jurisprudéncia do TJ nao respeita ape- nas ao momento decisivo da abertura & concorréncia dos con- tratos nao abrangidos (pelo seu objecto ou valor), mas estende-se também ao préprio regime dos procedimentos que se lancem para a adjudicacéo desses contratos, Por exemplo, no recente acérdao Secap (de 15.5.2008), o TJ considerou que era incom- pativel com os princfpios comunitarios uma legislag&o que pre- via a rejeicdo automética de propostas de preco anormalmente baixo com base em critérios matematicos, apesar de o contrato em causa no estar sujeito as directivas. Pensamos, no entanto, que esta posicao do TJ e da Comis- sao Europeia sobre a aplicacao dos princfpios comunitarios da concorréncia, da igualdade e da transparéncia aos contratos excluidos do ambito das directivas (sobretudo em func&o do Os principios gerais da contratagio priblica 63 valor), nos termos em que tem vindo a ser entendida, devia ser repensada, designadamente, pela inseguranga juridica que pro- voca nas entidades adjudicantes (assim, Sue Arrowsmith, The law of public and utilities procurement, 2005, p. 197). Por nés, compreende-se e aceita-se a posicao teérica, mas a sua aplica- sao prética pelo T] devia estar reservada apenas para os casos mais flagrantes e ostensivos de violagao dos ditos principios. 3. A LOGICA DOS PRINC{PIOS JURIDICOS (E DAS REGRAS) Ainda nesta parte introdutéria, parece-nos importante fazer uma breve referéncia a légica dos principios juridicos. Com efeito, apesar de os principios e as regras serem normas juri- dicas, sfo porém normas qualitativamente distintas, que nao funcionam da mesma forma, e conhecer isso 6 fundamental para o intérprete saber servir-se de uns e de outras. Assim, enquanto principios normativos, os diferentes princi- pios relevantes em matéria de contratacdo ptiblica constituem, claro, um tépico de argumentacio ou ponderacio juridica nas diferentes hipdteses em que se suscite um problema situado no seu dominio de operatividade, devendo ser necessariamente chamados & colagio — isolada ou contextualizadamente, tudo depende — sempre que se trate de aferir da legitimidade, da admissibilidade ou da regulagdo concreta a dar a uma certa questo. Em alguns casos, quando a hipétese a resolver se situe em “zona radical vermelha” ou em “zona radical verde”, digamos assim, o problema é simples e o principio juridico, apesar da sua “porosidade genética”, 6 capaz de fornecer quase automatica- mente a solugao (a pretensdo, no primeira caso, é proibida, no segundo caso, permitida ou legitima). Mas isso nem sempre acontece, pois, como se sabe, a maior parte das hip6teses situa-se em zonas de maior incerteza (em “zonas cinzentas”) e que sus- citam dtividas fundadas ou ponderosas. Nao pode com efeito esquecer-se que, como princfpios que sao, eles no obedecem — como as regras jurfdicas obedecem — & “légica do tudo ou nada” (applicable in all-or-nothing fashion), nao encerram (ou 64 Estudos da Contratagdo Publica — I podem nao encerrar) um comando juridico abstracto de «sim ou nao», sobre se uma determinada conduta ou pretensdo é ou nao juridicamente admitida ou legitima. Os princfpios configu- ram “normas impositivas de uma optimizac4o, compatfveis com varios graus de concretizacao, consoante os condicionalismos fac- ticos e jurfdicos”, enquanto “as regras sio normas que prescrevem imperativamente uma exigéncia” (Gomes Canotilho, Direito Cons- titucional, 2003, pag. 1161). Por outras palavras, os principios constituem normas que “apenas indicam um sentido de regula- so” (David Duarte, A norma de legalidade procedimental admi trativa, 2006, pag. 129), cujo relevo para o caso (para a norma- -do-caso) s6 se alcanga depois de se saber qual é o seu verdadeiro peso e valia na hipétese concreta dada, além de que, como é natural a coliséo entre principios, sucede muitas vezes que o objectivo a que um dado principio ia votado (a tal solugio que dele decorreria prima facie) tenha de ser confrontada, ponderada e eventualmente harmonizada com outros princfpios juridicos pertinentes concretamente aplicdveis e valoriz4veis. Em suma, a “convivéncia dos principios é conflitual, a convivéncia das regras € antinémica: conflito os princfpios coexistem, as regras antin6- micas excluem-se” (Gomes Canotilho, Direito, 2003, pag. 1161). Assim, o princfpio da estabilidade das regras do procedi- mento, por exemplo, n&o determina que todas as alteragdes aos documentos normativos do procedimento sejam ilegais. Sendo claramente um princfpio pertinente para regular essas questGes, e podendo até implicar a sua inadmissibilidade de princtpio, a sua efectiva contribuigdo para a elaboracdo da “norma-do-caso” esta sempre dependente da situagéo concreta, podendo acontecer que o caso nao contenda afinal com os valores ou interesses a cuja tutela esse princfpio vai votado ou podendo também acontecer que existam outros princfpios ou valores que, na hipétese em apreco, se revistam de maior dignidade ou pecam uma solucao harmonizadora. Por outro lado, hé também que distinguir entre pertinén- cia, perturbac&o nao invalidante e violagaéo dos principios. Para um princfpio ser pertinente, basta que, além de “vdlido” no contexto jurfdico em causa, haja uma qualquer hipdtese em Os principios gerais da contratagdo priblica 65 que se suscite uma questo situada no seu dominio de opera- tividade. Se essa hipstese colocar algumas interrogacées sobre se terao sido cumpridas de forma absolutamente escrupulosa todas as derivagdes e deduges imputaveis ao principio em causa, pode falar-se numa situacdo de desassossego ou per- turbagdo sua. Mas isso nao significa necessariamente que haja af uma violagao desse princfpio ou, o que é o mesmo, que haja af uma ilegalidade invalidante. E que, sendo os principios normas abertas, carentes de um preenchimento valorativo e de contetido juridico tendencialmente poroso, as suas prescri- g6es nao so aptas a um mero processo de subsun¢do, como sucede em muitas regras escritas. Se se preferir, pode dizer-se que, enquanto a violagéo de uma regra por um acto adminis- trativo é sobretudo uma questao de qualidade (ou viola ou néo viola), a violacéo de um principio é sobretudo uma gues- tio de grau ou de medida, a aferir, numa escala gradativa, em fun- cao do (maior ou menor) cardcter intrusivo da les4o concreta provocada e do valor ou bem concretamente lesado. Assim, para que possa (e deva) afirmar-se a violagéo de um principio juridico é necessério que a hipdtese, por uma qualquer perspec- tiva relevante do ponto de vista da func&o e légica da contrata- Go publica, implique ou constitua uma lesdo séria e efectiva dos interesses e valores a cuja tutela ele vai votado neste dominio. 4. O PRINCIPIO DA CONCORRENCIA Apesar de as Directivas 2004/18 /CE e 2004/17/CE, ao con- trério do que sucede com a igualdade de tratamento e com a transparéncia, néo a assumirem expressamente como um prin- cipio da contratacao publica, sio muitos os considerandos des- ses diplomas comunitarios (e artigos também) em que se faz referéncia ao facto de a concorréncia efectiva ser um objectivo da contratacao ptiblica, em geral, e dos procedimentos adjudicaté- tios, em especial, impondo condutas e proibindo outras, em ter- mos tais que se afigura adequado encaré-la ou qualificé-la como um verdadeiro principio, e fundamental, como de resto fez o nosso legislador no artigo 1.°/4 do CCP. 5

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