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Poesia completa Organizagio, preparacio do text, preficio ¢ notas: Tania Franco Carvalhal A oxrens Critic Posi & Po£TICA DE Manto QUINTANA Informa-nos Augusto Meyer que Mario Quintana poderia ter estreado com“ essencial” dos pocmas de O aprendiz de feiiceiro, em verde fart-lo com os sonetos da Rut dos catavents, Foi uma estréia duplamente tari: ‘ poeta andava pea casa dos 34 anos eseu primero livro era de sonetos aperentemente convencionais, O soneto sara de moda, Sé uns dez anes depois seria “essuzcitado” pela chamada *Geragio de 45°e mesmo assim comm um tratamento que o diferencava consideravelmente do soneto par nasiano ¢ do soneta simbolsta ou neo-simbolis. ‘Mas Quintana tinha razdo em lancar primeiro A rua dos cataventos, ‘io queria perder irremediaveimente os sonetos de sua juventde. Como teve rardo ainda em langar como segundo liveo as Condes, que revelarn sua transigfo do" passadismo” para o Modernismo. Em 1946, James Ama- do f se refera a alguns poems que s6iriam aparecer vinte anos depois, 1 Antolegia podtica. A ordem de publicagdo adotada pelo poeta revela uma aguda intuigao critica de oportunidade ¢ 20 mesmo tempo uma consciéncia critica de seu préprio valor. Se um dia se fizer a cronologia Sistemstica de scus poems, 0 que nko seri demasiado dificil pelo menos Para os pocmas do fimoso Caderno H eos estampados na Revista do Globo (nesmo que ele os exteai, como dizem os seus amigos, de uma gaveta cheia de poemas de todas as épocas),terse-4, a0 que nos parece, uma Visto de sua unidade essencal de sua evoluga0 a0 longo de uma lina harmoniosa e constante, pouco importa que as vezes © poeta nos d@ a impressio de caminhar em circulo. Duss preliminares que convém ter em vista: © ano de publicagao dos livros de Mario Quintana (especialmente a Rua ¢ 0s Noves poemas) no Pode servir de medida de sua eventual atualidade riadora; segunda, em tne tetas aberte ‘estucdus de critiew litentrie, Rio de Janeirux Catedra / Instituto Nae ‘sional do Livro, a9z, = esti Pasant int ‘ BHA » Manto Quintana / Potsia Contre, ‘nenhum momento se deve considerar Mario Quintana como um ingénuo ou um retardatrio em relagdo 20 Moderismo de 2, como acontec, por ‘exemplo, com outro sonetista da linha de Anténio Nobre, 0 pernambu: «ano Austro Costa — com quem algumas vezes © Quintana da Rua tem ‘nuanees em comum, No Brasil de 1940 ainda eram numerosos os poetas Provincianos que fariam sonetos a moda de Blac de Nobre, Cruz e Sousa ‘ou de Augusto dos Anjos, para nfo falar nos que ainda viviam em pleno romantismo castroalvino. £ bom lembrar que, vinte anos depois da Semix na de Arte Moderna, a recepividade da provincia aos sonetos a antiga era sinda muito maior do que a dispensada ao Mocernismo, que permanecia de fora dos livros escolaes¢ sé era ensinado por professores mais avana dos. Toda a reagdo literaria a 22 estava ainda viva e atuante, confundia-se (de boa e mé-fé) Modernismo com Futurismo, o poema-piada era apre sentado como o protétipo da nova estéticaliteriri sso quer diet entre outras coisas, que, se oaparecimento de um ivr de sonetos neo-simbolistas podia, para uma critica mais radical em termos de Modlernismo, ser conscerado um fato marginal e mesmo desprecivel, para © grande piblico esses versos ainda alendiam as suas necessidades imedia tas de consumo; € bem verdade que, no caso espectico de Quintana, ese pilblico tradicionaista nao podia perceheralgumas dissondnicia e liberda- des que o sometista se permits, Quem escreve estas linhas aprendew numa antologia escolar ~ a bastante avangada para a época — onde se podia let ‘0 "Soneto VIII" da Rua, dedicado a Dyonelio Machado. Elembra-se de que ele foi estudadbo € decorado como um soneto convenciona, sua pungente bleza a parte, Se dissemos que Mario Quintana em 1940 no era um ingénwo nem ‘um retardatirio no eampo estético foi porque no nos esquecenos de que por essu época ele assinava tradusoes de algumas das obras mais sadase decisivas da moderna literatura mundial: Proust, Virginia Woolf teduciu Charles Morgan, autor menor mas que nio 36 no Brasil como ‘ropa era 0 idolo de uma lepido de jovens escritores, os de antes da 1 Guerra (ver, por exemplo, o que diz R. M. Albeéés: "A fontee Sparken- broke foram, por volta de 1938, s livros de cabeccira de tma geragio, co sua arte inimitavel da nuance impressionistae sua anslise elegante est- Perficial dos problemas do espirito © do eoragao"). Em contato, desde (8 vinte anos, com literatura européia contemporinea, gragas a0 seu éemprego ma Livraria do Globo (Porto Alegre) na segd0 de livros estan- seins, nto era por falta de conhecimento que ele ainda preferia Antonio ortua Calnien ” [Nobre, Sua geragdo ¢ a geragéo imediatamente anterior abeberaram-se fartamente nao s6 em Nobre e Cesirio Verde (o futuro contists Anibal ‘Machado usou, como poeta, nas suas primicias, o pseudénimo de Antdnio Verde, nunca dupla homenagem epighnica), como em Verhaeren, Rollin, Laforgue, Macterlinck, Huysmans, D’Ansunzio, Samain ¢ alguns poetas rmenores hoje esquecidos na prépria Europa, ‘Atentacio de considerar Mario Quintana, por sua estriatardia com um livro de sonetos, como uma itha solitirit nos pampas modernists, reduz-se a nada quando consideramos a primeira obra de Jorge de Lima, ‘Tasso do Silveira, Menotti del Picchia, Mario de Andrade, Guilherme de Almeida, Cectia Meiteles, José Geraldo Vieirs, Manuel Bandcira — onde esas e outtasinfluéncas (Blac, Raimundo Corres, lio Dantas, Guerra Junqueiro) sio notérias. Mesmo alguns poetas de 45 ainda cheiravam, na ‘strtia, 20 leite parnasiano. Essas notas preliminares sio jogadas com a intengso de nao nos dei sarmnos seduzir pela idéin do anacronismo da Rua dos eataventos, com 0 Pretextosubjacente de o explicarmos como uma resisténcta qualitativa a uum Modernismo ainda informe. Isso no quer dizer, por outro lado, que o consideremos um livro“mo- derno” em 1940. A dicedo de virios sonetos dese livrojé era, naquele ano, irreparavelmente dessueta A prOpria homenagem ao Séde Anténio Nobre ‘ealgumas parifrasesparciais dticilmente se justficavam,exceto como ato de honestidade criadora. Recentemente, por ocasito de centensrio de seu nascimento, alguns escitores portugueses de geracOes mais novas nepa- ‘am radicalmente o yalor de AntOnio Nobre, hovve quem o considerasse "uma influéncia literiria em certo sentide peraiciosa £ 0 mesmo exagero para olado negativo que houve paraa consagracao. Sé continua sendo um dos mais belos momentos da lirica portuguesa e sux larga influéncia no Brasil, menos que win equivoco esttico, foi uma venturasa coincidéncia de ajustamentos aetivos A bibliografi critica sobre Mario Quintana ¢ escassa, bre de grande qualidade. A rus das cutavents foi ue liveo bem rexsbide, ‘dentro da precariedade instrumental em que se debati £m 1949. Anda havi o critério de comsugrado, de cert forma Quintana Re consagrou com esse livro, © Modernism — aquilo que nio mui dis- {itamente se chamava entio de Modernismo — ganhava foros de escola GhseLJuctoa critica dominante. Matio de Andrade, Mutilo Mendes Jonge = Lima, Carlos Drummond de Andrade sobressaiam ao lado de Manuel critica brasileira = Mano Quivtasa / Possta Comutns Bandeire, Cassiano Ricardo, Guilherme de Almeida, AF Schmidt (Cecilia Meireles ainda era um rome timido na poesia, apesae do alto nivel de Via- ‘gem, 1938, premiado pela Academia numa escolha dignificante), Deses, apenas Drummond e Schmidt publicaram obra em 1940: Drummond, Sentimento do mundo, um dos maiores livros da literatura brasileira, © Schmit, desigual Estrela soitéra A citagao desses nomes evidencia que A rua dos cataventas, com seus sonetos aparentemente passadistas, nfo era im fil litera fsses cram, por exemplo, os XIV Alesandrinos de Jorge de Lima. Era um lvro «que ainda podia falar 4 sensibilidade dos modernistas de 22 30, que ha- vam experimentado 0 verso pamasianoe simbolistae que podiams ta ‘bém sentir o que havia de conquista formal de inovagio, de modernismo até, nos versos antiga de Quintana, ‘A propria continuagio de sua obra mostrou que © poeta no era um solitrio: sua linha se cruza numerosamente com a de Ceelia, Guilherme, Bandeira, Augusto Meyer, até Drummond, cuja frase coloquial ni dife- re da de Quintana, sobretudo no poema custo ¢ no uso sutl da ambigti- dade em todos os seus see tipos Mas nem sempre a critica do momento estava atenta a esses porme- nores. Escrevendo sobre o livro, numa pégina que mais tarde excluiris, pporém que ainda figura no Jornal de Critica, série, diz Alaro Lins: “Jé tendo declarado minha predilesio pela poesia moderna, sinto-me ‘muito bem com a oportunidade que me oferece 0 Se. Mario Quintana (A ra des earaventas, Porto Alegre, 1940) de poder louvar uin posta dt melhor espécie dentro dos processos da velha poética. Nao sei quais te tnham sido as relagdes do Sr. Mario Quintana com o Modernism, mas 0s seus versos mostram-no como um indiferente ao que se passou, entre ns, de 1922 para cé. O seu livro se compoe de 35 sonetos, todos bem rimados, bem metrificados, bem estruturados, © poeta nao se permite ¢ minima liberdade com esta forma secular de 14 verso. Dispondo, no entanto, de recursos tio limitados, consegue realmente comover porque € um auténtico poeta. Mas comoveria ainda mais se nio fosse to generalizada,e tio ostensiva, em sua obra,a presenga de Antonio Nobre” Pouco adliamte, die 0 eritico que a poesia de Mario Quintana “6 sin ples, limitada, repetida, como os proprio decassilabos de seus sonetas” E mais: reS | pve “A poesia de Mario Quintana é tods intimista: ea se forma na zona de superficie da sensibilidade; ela exige, para se comunicar, que o leitor se tncontre no estado de espirito propicio, que se disponha a confidéncias sussurradas, que se determine # ouvir um poeta de vor mansa, suave € delicads. Pois, neste poeta gaucho, tudo ¢ delicadeza, ¢ simplicidade, & hhumildade:” 3 Fortuna Cairica ssa pigina,eserita em 1940, ndo passou nem podia passar pelo ctivo do critico literario quando este, anos mais tarde, remanejou sua obra para the dar uma estrutura mais coesa, Continha wma visdo generosa, mas ex- tremamente superficial, do fendmeno Quintana. Havia diversos erros de informacio, denotando uma leituraimpacientecincrédula, As"relagBes de Mario Quintana com o Modernismo” parecem-nos Sbvias no texto da Rua. “Apresenga de AntOnio Nobre era deliberada, busceda afinal, um poeta tem ‘o direito de render seu tributo), mas é na maiotia dos casos uma presenga alusiva ou, antes, remissiva. Ela no invalida nem ocupa oespago destinado 40 proprio Quintana, que em momento algum é um epigono ou saudosista do 6. De cera manciea,éaté umn recurso de que o poeta se vale para ganar revel maior liberdade estrutural ‘A alusio “A delicadeza, a simplicidade, a humildade” de Mario Qui tana mostra como sua poesia é mas diffi, mais obscura, do que parece 8 primeira vista. Ela nada tem de humilde nem de simples: estamos diante de lum artes irdnico e astuto, com um grande dominio de sew instrument de trabatho, lquimista da ambiguidade, cultvador do hermetismo. Mutitos vetsos de Quintana permanecerso inexpliciveis. ‘odavia,o ini ero grave de leitara por parte doertco fo quando ai ‘mou que “o ivro se compunha de sonetos todos bem rimados, bem met ficados, bem estruturados’ Bem rimadas ¢bem estruturados io todos, nao bh dvida, mas a metrficayao de Quintana esti longe de ser a tradicional {entre nés,a ponto de Alvato Lins declarar que ele “no se pervaite a minim: liberdade com esta forma secular de 14 verso” Nem seus decassilabos sio sempre repetdos (notar que virins sonctos da Rue mio s30 decals) Logo no *Soneto XIV" temas este primeira quartet; "Dentro da noite al- {86m cantou. / Abri minhas puplasassustadas / De ave notin. Bas ‘has mos, velasparadas,/ Nio sei que frémito as agitou!” si uma admiravel combinagao de versos de 8,10, 12, € um quarto We, por simetria, podemos ler como de ¥ slabas, embora possaalongar- S¢ Por 9 e mesmo 10 slahas. Observers enjambement e a cadencia do Aerceico verso, © terceo final desse mesino soneto combina versos de 12,7 ‘Manso Quintana Poesia Comtsta a £8 slabas, com o primero cabendo na categoria dos versosinumersves, de que fala Manue! Bandeira: “Foi minha prépria voz, fantastica e sondm. buat / Foi, na noite alucinada,/ A vor-do morto que eantou.” Por esas ¢outrasrazées, 0 poeta deve ter sido oprimeiro a fica surpre. 50 ante as afitmagées do citico sobre a “regulatidade” de seus versos, Nio se trata aqui de refutar este ou aquele crtico,e sim de mostrar ue mesmo a um letor mais experiente encartado no process lteirin fimo era ocaso de Alvaro Lins, 0 Sbvio pode passr desperceido quande 1d um juizo preconceitual. ‘Sérgio Miliet, que além de eitico ea poeta (¢,diga-se desde logo, wim dos eriticos mas tolerantes deste pais), foi mais direto e quase crue! nas suas observagoes, ainda que com a clara intengio de elogiar.Transcreves ‘mos de Didrio crtico, volume 3 “Alguns desses sonetos que Mario Quintana reuniu hd tempo, em A rua dos cataventos, hio de figurar em todas as antologias futuras. No entante, {ses Versos serdo por certo os menos signifcatives da sua obra, Mas eles tém todos uma facilidade de expresso, uma melodia natural, uma limpider de imagens que descansam eagradam, como 4 midscs lve descansae agri. dla 20 ouvido mais exigente, desde que nfo comporte pretensdes exvessivig (critica mais requintada talvezexpulse esses sonetos da poesia, mas opi, blico os acetara sempre e Ihes daré um lugar que, afnal, ninguém poders {hes trar. Prevejo, para alguns desses sonetos, destino semelhante aos de Raimundo Correia ou Olavo Bilac.” Mas justamente 0 que Mario Quintana precisava cra de uma critica re uintada! © pablico, no final das contas, foi menos caloroso de que Milist imaginava e Quintana comegou a arrebanbar os seus maiores admiradores justamenteentze os letores mais requintaios, aqueles que, como o priprio Sérgio Millit, podiam ver no verso "Nenhurn avul para te distraires", do “Soneto XVI”, “indiscutivelmente, uma solugao digna de Mallarmé", Embora alguns sonetos da Rua possim ser considerados como “val sas de esquina’, por sua levera encantatéria, ha em Quintana, desde os Drimeiros sonetos, 0 rato magistral. Sérgio Millet tem raz8o quando fila nur certo precio. sismo do poeta, heranga estética de que Mario Quintana jamais ve liber {ard inteiramente. Outra coisa que Millet c mn nos sonnets da Rua foi “essa atmosfera imponderavel que se ars tratamento ritmico e mel6dieo muito consciente, Fowrunea Gntrica cm toda br de Quinta, Maiti een sb Spe Jo, mosizou-sesinda mis sensive personalidad do poeta clembrou pouco esquecido mas que chegov a criar um estilo dos mais imitados em certaépoca. E caro que se trata de um parentesco um pouco afsiado (entre ‘Quintana e Moreyra),e nto de uma semelbanga facia . ‘A melhor explicagao de que dispomos sobre o “fendmeno Quintana’ fos dade por Aug Meyer em fre sere, Devens dit de passagem que, a0 longo de toda & nossa convivéncia com o mestre de Aeharee amar cl nanca dein dees ansse adage soal pelo poeta (e Meyer também o era). Nesa pig, temos uma risonha descrip fica de Quintana — "Paes strapalbado com um exeso de dedoseatirava as pernas como quem vai chutande baldes colorides* — e tambéin in rettato literdvio dos mais iluminadore. Explica-nos por que Mario Quintana permaneceu & margem do movimento gauchista, em- bora sua dicgdo, em mais de um momento, reele 0 fntimo sentiment ‘auchesco “Em pleno fervor do poema-piads,ou dos caigramas rioulos, quando jf ensaisvamos os primeisos borborigmos surrénises 6 abria a boca — uma boca larga de clown, rasgada de oreiha a oxetha — para clog a panoptias de Heredia” £0 que nos diz Meyer, apanhando-nos um pot 0 de surpresa, porque se alguém desse grupo deixow paginas de autémtico sabor surrealista foi sem daivida Mario Quintana. E rematando 0 retrato, depois de flr na “vida profunda {que Maria Quintana sabia insular soe ‘S05 com aquela vor cantante © grave, podeross entio de magia, ¢ to ferente des vor: habitual” {¢.0 poeta balbuciava uma linguagem sé dele, seguia o exemplo de Stefan George, tentando achar para cada coisa seu nome proprio. Lo.) a = 6 ‘Manso Quosvana / Possta Coster, A referéncia 20 poeta de Alga, vinda de Augusto Meyer, ndo era ca- sual; era honrosa e profundamente expressiva, As primeiras obras de Stefan George mostram a influéncia fecunda de Baudelaire, de Mallarmé e de a. {guns pernasianos. “Escreveu sonetos que lembram os de Heredia ou Le conte de Lisle”, refere seu tradutor ¢ exegeta Maurice Boucher. Nao é 0 «aso aqui— evidentemente — de fazer qualquer aproximagio entre George € Quintana, mas serve para diminuir © nosso espanto diante de um pocta jover que, no meio da “febre nativista’ se comprazia em citar sonctos de “Heredia eo epis6dio de Adamastor dos Lusfadas, preferindo jéentdo —aqui sim, como George — falar “a um circulo fechada de convivas” Por isso: “O que eu posso atesta, joao Inécio, ¢a autenticidade, a crstalinidade dda sua arte —e 6esteo fendmeno Quintana, saiba voce, Nao sei de outro oeta em que o poema scja uma consubstanciagdo to perfeita entre viver ‘cantar, entre softer vivendo e softer cantando, Ele é, dando luz na corrida, ‘todos, o maior poeta moderno do Rio Grande.” Essa afitmacio eategérica — e de rara grandeza, porque vinda de um poeta que poderia disputar o mesmo titulo de “niaior poeta moderna” do Rio Grande do Sul — colocou Mario Quintana, de uma vez por todas, ‘ha primeira linha dos poetas brasileros modernos. Publicado que foi em vvirios jornais, antes de sair em livro, esse artigo de Augusto Meyer foi Pedra angular no reexame do “fendmeno Quintana’. A evolugio do poeta, que Sérgio Millet sentiria a0 ler Sapato florid, ¢ descrita de outra forma na pagina que estamos acompanhando. Meyer identifica no Aprendiz de feiticeiro "a genuina vor de Mario Quintana, gt ‘ye pungente; mais que nos sonetos, mais que nas cangbes: e sem divida ‘mais que nas deliciosasreticéncias do Sapatoflerido”(Veja-se, nas entre- linhas,a hierarquia de preferéncias.) Concluindo, dé-nos Augusto Meyer uma informacio importante: “Posso agora dizer com quanto receio acompanhei a publicagao dos seus livros; temia que o pocta, rebelde e cabesudo, acabasse desprezando (5 seus melhores poemas. Foi por espirito de contradigao, por teimosia € capricho, que ele escotheu para estrear no prelo os sonetos da Rut «dos cataventos. 1a entao teria sido possivel coligit em volume o essencisl deste grande livrinho, cuja dedicatoria me enche de orgulho, saudade € alegria.” Fonrena Caitica 9 ‘A obstinagao do poeta er langarp-imeiro A rua dos cataventos, sem se- quer escoimé-lo daquilo que Sérgio Millet chamou de “lgum preciosi- smo bem do gosto de 1918-1922", foi em iiltima andlise um acontecimento feliz na fortuna critica de Mario Quintana. Publicé-lo em 1940 ou antes, rum pais como o Brasil, ndo passa de um acidente editorial (muitos anos depois, em autras provincias, autores de algum renome estrearam com livros bem mais antiquados"), Publci-lo depois do Aprendiz, ou mesmo «das Cangdes, podera significa um retrocesso formal. Nao o publicat nunca, cu 86 aproveitar alguns sonetos, teria sido uma perda que feizmente ndo se concretizou. Foi por entender que Mario Quintana tem suas propriasrazdes que, depois de muito hestar, preferimos no inclu neste estudo composigoes do famnoso Caderno H nem the pedir versos inéditos. Os Novos poemas constituem uma prova de que ele sabe ordenar sua produsio com um critérioaltamenteseletivo, Purecia que o poeta ia ficar apenas como o sonetsta da Rua dos cataventos, «com sua obra posterior confineds a um circulo muito estreito de leitores ou Aispersaem revistase suplementos, quando, ao complete 40 anos, reapa- rece com um novo livro, Ganges, de 1946, Nos cinco anos seguintes vamos ter Sapato flor, O aprendiz de feticcira Expelho migice. A transicéo da Ru para as Cangoes se faz em violéncia, Ao lado de alguns poemas em verso livre, de um tnico em que aparecem decassilabos ("Cangao do desencontro no terraco"),€ um de eneastlabos de cadéncia ‘egular, lembrando um tipo de verso que fo muito usado pelos romin ‘98 brasileires (“Cangio para uma valsalenta”), vanios encontrar — pre- ominando agamente —versos de arte meno, 3,7 labas, com mas © (ou) assondncias. Sese quiser procurar Antonio Nobre cle ali est, citado nominalmente. Como Verlaine, Villon e Rimbaud. Abrindo 0 liveo coin uma “Cangio da Primavera’ poeta parece suger uma certa muclanga ems relagdo ao cli- ‘ma crepuscular da Rut. Enquanto os sonetos do primeiro lvto sto visivel- Imente literirios, no sentido de que, em muitos casos, expressam apenas {uma emogio estétice, nas Canes 0 contato com o mein ambiente, a vida, $8 Pessoas é mais dircto 0 poeta se ateeve a contissdes (“Cangdes do anor AmPrevisto”), hé mesmo aqui e ali uma nota alegre de disponibilidade ormalmente,virias das angie encontiamy um parentesco em Cecilia Mei ‘les em esprit, algamas lembram Augusto Meyer (“Canglo da garoa" Nos comentirins que acompanham este estudo, virias dessas ci ‘do apreciadas mais detathadamente. OO * Manio Quintana | Poesia Conus Sapate florid, de 1948, € um livro por todos os titulos surpreendente, No género, € sem dhivida um dos mais interessantes de nossa literatura, Sto pequenos textos de viria natureza de contetdo imprevisivel: ern as, quase contos mimtsculos, provérbios, inscrigoes, legendas, manchas, -anotagdes, repentes,fragmentos de poems, versos que ficaram a meio do ‘caminho, refiexdes, miximas, frases sotas. Mais que nas CangBes, 0 poeta Aescobre o mundo, descobre as pesoas. ‘As veres, de um flagrant, estabelee uma igagorepentina: “Telegramna 4 Lin Yutang,—Acabo de ver um negrinho comendo um ovo cozido, Hei, Lin Yutong?” Em “Prosédlia,o poeta anota brevemente: ‘As folhas enchem de ff as vogais do vento.” um verso que se esgota em si mesmo. O poeta nio de- seja outra coisa. f puramente visual a projegao mdgica de “Horror”: "Com (08 seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR & uma ppalavra de cabelos em pé, assustada da prépria significagio” De permeio,dé-nos Mario Quintana algumas das melhores piginas de sua obra, Sio brevissimos poems em prosa como “Pardbola’:"A imagen ‘daquelessalgueiros n'égua é mais nitida e pura que os proprios salgueitos. E tem também uma tristeza toda sua, uma tristeza que nao esté nos pr ‘witivos salgueiros”; ou “Envelhecer”, que, se nao é 2 obra-prima de Mario Quintana, ¢ certamente um de seus dois ou tees instantes maximas:“An- tes todos os caminhos iam. / Agora todos os caminhos vem. (Acasa éacolhe- dora, 0 ivros poucos./E eu mesmo preparo o cha para os fantasmas.” 0 Sapato florde, como um todo, veio inserever posta numa ds Ui- thas criadoras mais vélidas do presente século, a do realismo fantéstco. Jt abordei este aspecto em outro estudo, Se o aspecto material de um livro pode inluir no seu destino, entéo © aprende de feiticeiro nem teria existido, Era uma pobre plaquetalanga- «da por uma dessas editoras que 6 t8m o nome. E, no entanto, naqueles 1 poemas estava um dos maiores livros de poesia de nossa literatura con temporanea, O livro é de 1950, mas jf sabemos que o “essencial” remonta as décades de 30-40. Poemas como Pino’; “O da’, “Forest”, “Veranico’, “Sempre ‘para citar apenas os mais dbvios, podem-sc encartar numa estética do Modernismo em sua fase herdica. Pelos poemas que conhecemos, Mari? (Quintana jamais se aventurou por uma area de contestagdo aberta, come também jamais enveredou pelo gauchismo, Suas solugiesplisticas cont ruaram interioes,sio buscas de melodia e de vite. Fortuna Calica » f-rara nele uma solugéo puramente gréfica do tipo: ‘Um reflexo joga 08 seus dados de vidro. alta alta Ea minha janela € alta satishain plenamente as necesidades lidicas de uma ela do Moder imo de 22. Nao é descabido falar numa presenga de Mario de Andrade € de Oswald de Andrade, mais do que da presenga direta de Augusto Meyer, fm alguns versos do Aprendiz. Hé wm arrojo maior, a frase mais sol, 0 proprio verso as vers se desfaz de sua condigto de verso para que 0 poe- ta tenba mais iberdade expressive, ‘Neste sentido, ¢ imperioso ler O aprendie de feiticero os Novas poe- ‘nus, publicados na Antologia podtica de 1966, como um livro vinico. No Cas de Mario Quintana,» dia ds pomat eds ros em pou i ortincia. A excesao dis 11 quadras do Espelho miégico,ivro puramente ‘poems constituem, em niimero de pegas recolhidas, © maior “livro” de (Quintana: sio 60 poemmas contra os 31 do Aprendiz. Se excetuarmos ainda 108 textos do Sapato florido e nos limitarmos 40s poernas em verso, pode- mos ver que, antes da publicacao da Antologia, desconheciamos cerca de (60% da produgio poética de Mario Quintana. Tudo indica que os 161 po- «mas em verso hoje reunidos em volume representam igualmente apenss "uma parte extremamente selecionad da sua obra, que, se nao € das mais sbundantes, no € também das mais exiguas -Mesmo sem conhecer a cronologia exata dos poemas de Mario Quinta- ‘a alguns trabalho dos Novos poemas poderiant ter igurado no Sapato florido, nas Cangdes ou no Aprenliz de feticeto;hé mesmo wma “Canga0 ‘da primavera” que se repete entre os inédits da Amtologia — nao € di estabelecer uma perspectiva da evolucao do poeta em relagio a Oswald ¢ Mério,talver Cassiano e 0 grupo gauchista. Mario Quintana é por cro nolagi e por adesio, um modernista da geragio de 30a segunda, Mesmo nesta, porém, foi um aderente a principio timide e algo dernier vem. Ja sabia cxatamente a qualidade de poesia que desejava fazer, de modo que nio 0 deslumbrava @ foguetério de primeira hora Era timido, mas tam- bem inten. Seu temperamento artstico, que exigia um crescenterequinte formal, £78 pouco sensfvel 3 implantagao da desordem estética, ainda que essa 6 Mario Quivtana / Poesia Contin, desordem fosse, como visivelmente era, prentincio de uma ordem nova © poema-piada vai repontar aqui e ali em Quintana, porém como um Poema engajado no absurdo da vida e no como uma reagio 2 velhoy ‘inones litecérios, B-assim que no Aprendiz mais notadamente nos Novos poems vamos encontrar alguma coisa que o aproxima de Carlos Drummond de Andrade preciso um esforgo para deixar de ver uma alusio a Drummond nos ver. sos de “Arrabalde”, com seu toque deireveréncia:“O mundo € mais vast ‘A vaca muge,/ Puxa-me ao presente... Vsto, vasto 60 pasto!” Outro poema claramente alusivo é "O poeta e a ode’ que podemas refetir“) maneira” de Joio Cabral de Melo Neto ou até de Henriqueta Lisboa, mas € de estipite drummondiano. Dentro da sistemética deste trabalho, que integra uma série, deixamos 4 andlise de alguns poemas do Aprendis e da Antologia para a parte de comentirios. ‘Tomamos a liberdade de concluir com 0 que nés préprios dissemos bum estudo de 1962 que hoje figura em nosso livro A lta litndria, Esse trabalho nasceu de uma longa edmiragao, mas também da descobertade tama evidencia ("Découvrir ume évidence, toute la critique est l2..”), a de srandeza do pocta. Mais do que eplicar métodos que apenas desmontam — para lembrer Paul Valéry — aguilo que o poeta construi, com sa intuigio ow genio, deixando de fora a esséncia do poema, interessa-nos transmitir esse sentimento de grandeza: “£ uma poesia dificil, porque intensamente alusiva e de um humour Sutil irredutivel. Una clareza ilusSria, porque de um instrumento mult- co. B af etd o segredo dos grandes poetas:trabalham nas subcamadss do divinatéri, manipulam uma linguagem que se propaga pelos campos simultineos do acomtecer,inserem-se no continuum espaga-tempo com) tum corpo de signos dices. ‘A poesia de Mario Quintana é 0 que ela é toda uma série de virtual dades. Um poema sem outra angistia que sa misteriosa condi de poe ras diz ele Essa misteviosa condigao faz com que possamos interpreta Dorma 3 luz de seus provives (virtua) signos imediats econtiguos, de suas conotagbes e de suas extrapolasies.Terminacia a tarefa simblica pocma regresss so seu cubo orginal Pouco importa que o poeta no tenha conscigncia de suas vrtalidades Fle cria dentro de umm mundosproprio para um mundo césmico e si0 0 i Forrena Cattics a mas imponderiveise ndo os etretipas que asteguram a pere- spel rat in ee oe feu tempo (isto é que falavam a linguagem imedata de seu tempo) so inreeuperavelmente esquecidos no dia seguinte a0 de sua morte. E por que ‘outros ndo morrem nunca, hibernam ou secam, mas a0 primeiro calor, ot {primeira chuva, brotam instantaneamente. O poema é uma pedra no abismo? diz Quintana. “O eco do poema desloca os pers” Fausto Cunha

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