Você está na página 1de 20
REIS DO CONGO NO BRASIL, SECULOS XVIII E XIX* Marina de Mello e Souza Departamento de Histcia ~ FFLCH/ USP Resumo Esse artigo busca explicar a presenga de reinados negros, depois chama- dos de congadas, em quase todas as regibes do Brasil que receberam esera- vos afticanos, do século XVI a0 XIX. O enfogue adotado abarca Portu- eal, Airica Central e Brasil como partes integrantes de um mesmo sistema ‘econéimico, sociale cultural, tecido em torno do Atkintico, A esfera da ‘cultura eas relagbes de poder sto os centros feats da andlise, que se pre- ‘ocupa scima de tudo eon a formagao de identidades. Palavras-Chave Reinados negros + Reis do Congo no Brasil + Mentidade catica negra Abstract ‘This article aims to explain the existence of Black kingdoms, later known as “congadas in almost all Brazilian regions that received African slaves ftom the sixteenth to the nineteenth centuries. The approach places Portu- gal, Central Africa, and Brazil as component pats of a single economic, Social and cultural system, woven around the Atlantic. Concerned prima ly with the formation of identities, the analysis focuses on the cultural sphere and on power relations Keywords lack kingdoms» Kings of Kongo in Bra + Black Cattle eat ‘Agradego a Maria Helena PT, Machado os comentarios sobre esse text. 80 ‘sine Mal Suz evs do Mista 152-205), 740 Acexisténcia de sociedades cotoniais das Américas € fato que & primeira vista surpreende, pois afinal estas eram sociedades es- cravistas, nas quais 0s afticanos e seus descendentes, isto &, 08 negros, eram is negros em vii na maioria das vezes propriedade de seus senhores, ou seja, escravos, portan- to, como podiam, em algumas situagSes, serreis? E no entanto o foram, como ‘nos contam relatos e documentos de varias qualidades que falam sobre os feste- {jos de grupos de negros pelas ruas, em torno de seus reis e principais, ou ape- nas da existéncia de um rei, que tinha autoridade sobre aqueles que 0 escolhi- am. Explorados principalmente por folcloristas, antropélogos e estudiosos da cultura popular, os reinados festivos nos quais grupos de negros safam cantan- do, dangando e representando ais ruas, vém também ocupando alguns historia- dores, principalmente aqueles interessados nas manifestagdes culturais brasi- leiras com influéneias africanas. No Brasil os primeiros historiadores a perceberem a sua importineia foram os que pesquisaram e analisaram as ir- mandades de “homens pretos”, como Julita Searano em seu Eycravidao e Devog@o, ou os que buscaram desvendar a contribuigo dos africanos para a formagio das culturas brasileira e portuguesa, como José Ramos Tinhorao, em Os sons negros no Brasil ¢ Os pretos em Portugal.' Nos muitos estudos sobre irmandades de “homens pretos” feitos depois da pesquisa pioneira de Julita Scarano, 0s reis € outras autoridades a ele associadas apareceram na do- cumentagao levantada.” Alguns autores se detiveram com mais vagar outros "julita Searano, Devogdo ¢ escraviddo. A Imandade de Nossa Senhora do Rosério dos Protos no Distrito Diamanuino no século XVII, edigio, Sao Paulo, Companhia Eito- x Nacional, 1978; José Ramos Tinhorio, Os sons negros ne Brasil. Cantos, dancas, folguedos: origens. Sto Paulo, Art Editora, 1988 ¢ Os pretos em Portugal. Uma presen: ‘ca silenciosa, Lisboa, Editorial Caminho, 1988. ® Alguns desses estudos sto: loo José Reis, A morte ¢ uma festa Ritosfznebres ¢ evol- 1a popular no Brasil do séeulo XIX, Sa0 Paulo, Companhia das Letras, 1991; Mary Karasch, Slave Life in Rio de Janeivo 1808-1850, Princeton, Princeton University Press, 1987; Patricia Ann Mulvey, “The Black Lay Brotherhoods of Colonial Brazil: a history” City University of New York, Ph.D., 1976, University Microfilms International; Antonia Aparecida Quintdo, Ld vert meu parente. As irmandades de pretos e pardos no Rio de Janeiro ¢ em Pernambuco (séeulo XVI), Sa0 Palo, Anabluine/Fapesp, 2002; Mariza {de Carvalho Soares, Devotos da Cor: identidade émica, religiosidade ¢ escraviddo no Rio de Janeiro, século XVII, Rio de Yaneiro, Civilizacao Brasileira, 2000; Marcos Ma- galhies de Aguiar, “Vila Rica dos confrades. A sociabilidade confratial entre negros € Inulatos no século XVII, Dissertacdo de mestrado, Departamento de Historia - FFLCH! asus Ge Melle Su Ravi de Ws (2-209), 70.98 a1 ‘com menos sobre as atividades ligadas a essas realezas, que atuavam principal- mente por ocasifo das festas dos oragos das irmandades dentro das quais es- ses lidetes eram escolhidos, Em livto publicado em 2002, eu mesma propus uma hist6ria da festa da coroagio de rei do Congo no Brasil escravista, tracando os antecedentes das chamadas congadas.” E aquele um estudo de cunho geral, no qual eu propus ‘uma interpretagio abrangente da presenga disseminada no Brasil, do século XVII ao XIX (sem considerar 0 presente, pois essas festas ainda acontecem) da tradigao que comunidades negras tinham de escolher um rei e outras figu- ras principais, que estavam & frente da realizado de uma festa anual, na qual a comunidade safa as ruas festejando-nos, Além de trazer um tema mais explo- rado na antropologia e nos estudos de folclore para o campo da histéria, o mew livro também fez um esforgo de entender manifestagées afro-brasileiras & luz das realidades africanas, sob inspiragio de Robert Slenes, de Sidney Mintz, de Richard Price, ¢ de vérios outros autores que analisaram dessa perspectiva as sociedades caribenhas e do sul dos Estados Unidos. Para isso foi preciso me iniciar no estudo de culturas africanas, especialmente centro-afticanas (pois, foram estas que deram aos reinados negros a contribuigo cultural mais signi- ficativa), € no estudo do catolicismo na Africa, uma vez que ele ja marcava presenga no reino do Congo antes mesmo de chegar ao que foi chamado de Brasil pelos portugueses. John Thornton foi um autor fundamental para come- ar a entender © que ele chamou de “catolicismo africano”, forjado no reino USP, 1993: Anderson José Machado de Oliveira, "Devogto e Cardade, mandades reli sions no Rio de Janciro imperial (1840-1889)" Dissetagao de mestrado, Departmen {o de Hisria, UFF, Nite, 1998; Marcelo MucCord, “© Rowsiio do Homens Pretos de Santo Antonio: aliangase conflitos na historia social do Recife, 1848-1873", Disseta- 20 de Mestado, Departamento de Histria, UNICAMP. Campinas, 2001; Elizabeth Kiddy “Brotherhood of Our Lady of the Rosary of the Blacks: Community and Devotion Jn Minas Gerais, Brazi.”, UM Dissertation Information Service. Albugueegue, The Uai- versity of New Mesieo, 1998 ® Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista, Histéra da festa de coroa Ge de re} congo, Belo Horizonte, Esitora UFMG, 2002. * Sidney Mine Richard Price, Te Birth of African-American Culture. n Anthropological Perspective, Boston, Beacon Press, 1992 (hs edited 1976), Richatd Price, Al's Word Baltimore, The Johas Hopkins University Pres, 1990; Robert Slenes, Malungu ngoma vem!" Aiea cbertae descaberta no Bras”, Revista USP. 1.12, p86, dea/afev 1991- 1002 € Na sencala uma flor: as esperancas eas eeondagdes na formagdo da fala raya ~ Brasil sueste.séuto XIX. Rio de Janene, Nova Frontera, 1999 a ‘sine Mal Suz evs do Mista 152-205), 740 do Congo e espalhado para regides vizinhas.* Além de considerar na minha andlise dos reinados negros brasileiros algumas de suas possfveis relagdes com © chamado “catolicismo africano”, o conhecimento das formas de organiza- «0 social e politica das sociedades africanas, ¢ de seus sistemas culturais, per- mitiu que eu construfsse uma interpretagio da forga da presenga dos reis ne- _s70s, ¢ posteriormente das congadas, entre muitas comunidades brasileiras, E essa minha interpretagio que pretendo expor aqui, no final dialogando com trabalhos posteriores ao meu, que também abordaram os reinados negros no Brasil, como os de Linda Heywood e Elizabeth Kiddy.® No Brasil existiram reis negros entre algumas comunidades afrodescen- dentes, fossem elas quilombolas ou grupos de trabalho, mas prineipalmente has que se agrupavam em torno de irmandades leigas de devogao a determina dos santos, com destaque para Nossa Senhora do Rosario e Sao Benedito. A principal atividade dessas irmandades, além daquelas relacionadas ao enter- 10 dos irmaos, era a realizagao da festa anual em homenagem ao seu orago, ou seja, santo de devogao, e nela o rei desfilava em cortejo pela cidade, segui- do de sua corte, de seus misicos, de seus dangadores, que podliam apresentar cencenagdes, alumas vezes descritas por observadores atentos a essas manifes- tages da cultura afro-brasileira, 0 que permitiu que informagies sobre elas chegassem até nds. Enquanto a maioria dessas deserigdes sao do século XTX, para o século XVIII podemos recorrer a um ou out registro feito por observa~ dores dos reinados negros e a documentos de itmandades de “homens pretos” (este € 0 termo mais comum pelo qual elas sao identificadas nos documen- Ene ws obras de Jahn Thorton, ver espevilmente Africa and africans inthe Making of ‘he Atlansic World, 1400-1680, Cambvidge, Cambridge University Press, 1992; “On the tual of voodoo: Aizican Christianity in Alice and the Ametieas", The Americas. 55, p. 261-278, jan. 1988: “Early Kongo-Pomtuguese relation: a new interpretation. in: History in Africa. A Journal of Method, Massaehusets, Brandeis University, African Studies Associaton, v8, p. 183-204, 1981; “The Development ofan Afsican Caolic Church the Kingdom of Kongo, 1491-1750", Journal of African History. 28 p. 147-167 1984. " Linda M. Heywood, “As conexdes culturais angolano-lso-brasletas", em Entre Afri cos ¢ Brass, organizado pot Selma Pantoja, Sao Paulo, Marco Zero / Pareto 15, 2001 (adugao brasilea de “The Angolan-Aito-Brazilian Cultural Connections. Stayer and Abolition, vol20:n.1 Spring 1999, pp.9-28): Elizabeth W. Kiddy. "Who isthe King of Congo? A New Look at African and Afvo-Brazilian Kings ia Braz”, in Central Africans cand Cultural Transformations in the American Diaspore, edited by Linda M. Heywood, Cambridge, Cambridge University Press, 2002. asus Ge Melle Su Ravi de Ws (2-209), 70.98 83 tos), onde estao descritas as normas de escolha, as condigdes didatos aos cargos e suas obrigagdes, Conforme minha interpretagdo, esses reis negros no Brasil escravista eram ppélos aglutinadores de comunidades que construfam novas identidades a par- tir dos seus legados africanos, acomodados & estrutura da sociedade esera brasileira, O intuito da minha andlise foi mostrar um processo por meio do qual alguns africanos ¢ afrodescendentes elaboraram uma idemtidade negra catélica, Na constituigdo dessa identidade, foram importantes as irmandades de “homens pretos”, no interior das quais existiu a maioria dos reinados ne- ‘gros; contaram as normas de convivéncia entre eseravos ¢ senhores, mas tam- ‘bém estiveram presentes as experiéncias do “catolicismo africano”, conheci- do de muitos centro-africanos escravizados que foram levados para o Brasil Os indicios para 0 sSculo XVIII mostram que havia celebragdes em torno de reis de diversas nagdes, preferencialmente centro-africanas mas nio 6°, enguanto as fontes relativas ao século XIX falam quase s6 em rei do Congo. Para mim, a proliferagio no século XIX do titulo de rei do Congo, havendo antes uma variedade de “nagdes” que escolhiam e festejavam seus reis, de- veu-se ao fato da referéncia a este reino ter significados importantes tanto para senhores ¢ administradores coloniais como para centro-africanos eseraviza- dos, que tinham de refazer suas vidas na sociedade escravista brasileira, € que eram maioria nas éreas de maior incidéncia dos reinados negros. Para eles a experitncia do catolicismo também era um elo com a Africa natal (crescente- mente idealizada & medida que se afastava no tempo), devido a existéncia de chefes que se diziam catélicos no Congo e em Angola e A incorporagio de ritos e objetos de culto do catolicismo por algumas populagées centro-aftica- nas, Essa familiaridade anterior com formas de catolicismo africano ajudou a construgtio de uma identidade elaborada e reproduzida por meio dos reinados negros realizados nas irmandades. Mas além desse aspecto de ordem mais impostas aos can- ‘Apenas amanhecia o dia de Reis, o campo de Sie Domingos, nas proximidades da capela, opulentava-se de um expeticulo variado e estranho em que Mogambiques, ‘Cabundis, Benguelas, Rebolos, Congos, Cassanges, Minas, e a pluralidade finalmente «os representantes das nagdes d’ Africa, escravos no Brasil, exibiam-se auténticas, cada ‘qual com seu caracteristico fundamental, seu tipo proprio, sua estética privativa.” Mello Moraes Filho, Fesias e radigdes populares do Brasil, 3"edigao, Rio de Janeiro, FBriguiet & Cla. Bditores, 1946, p. 383. (A descrigao se reere a festa do século XVII) my Masud Mle Souz Revit do istra 52(1-205), 70.88 simbética, as préprias formas de organizagao politica africanas, nas quais era central a figura do chefe, encontraram receptividade junto a tradigGes da reli- ssiosidade popular européia,¢ particularmente lusitana, segundo as quais eram eleitos alguns reis de festa, como no caso da festa do Divino Espirito Santo 44 para os senhores e administradores da sociedade coloni tomo de um rei do Congo eram na maior parte das vezes aceitas por serem feitas a partir das irmandades leigas de devogio a santos eat6licos, institu «es que integravam os africanos e seus descendentes as normas da socieda- de escravista, Mas além desse aspecto considerado como disciplinaclor de co- ‘munidades negras, sempre potencialmente ameagadoras, havia elementos simbsticos igualmente importantes para a aceitagiio de reis do Congo, ou pelo, menos tolerdncia & sua existéncia, Estes se relacionavam a histéria do impé- rio portugues, que legitimou sua expansio em parte na ago missionstia, justi- ficando-a pela necessidade de converter ao catolicismo o gentio dos territéri- ‘os reivindicados, No que diz respeito 3 Africa, primeiro espago explorado pelos portugueses, os sacerdotes tiveram grande dificuldade em difundir a religiio catélica, com a excegao do reino do Congo, cujos principais chefes aceitaram © batismo em 1491 a partir de entio adotaram o catolicismo como a religiio que fundamentava o poder central, mesmo sem abandonar as erengas ances- trais © as formas tradicionais de legitimagao do poder. A erOnica portuguesa dda época registrou com detalhes os episédios ligados & conversio dos chefes congoleses e no século XVI houve uma grande aproximagao entre Portugal € ‘0 Congo, que no entanto manteve sua soberania.* © momento de maior forga do chamado reino do Congo - um determinado territ6rio cujas aldeias se sujei- tavam a uma autoridade central - foi o perfodo do governo de Mbemba Nzinga (1507-1542), batizado ainda crianga com o nome de Afonso no momento inau- ural da aceitagio do catoticismo por parte de alguns chefes congoleses. D. ‘Afonso I entrou para a hist6ria como mais importante rei eatslico do Congo, ‘mantendo correspondéncia com D. Joao Il, D. Manuel I¢ D. Jofo III de Portu- gal apoiando a disseminagio do catolicismo entre a populagio por ele gover- nada. Essa vitbria da agao missiondia liderada pela Coroa portuguesa foi reme- |. as festas em * Para a conversdo dos chefes congoleses, ver entre outras, a narrativa de Rui de Pina, “'Relagao do Reino do Congo”, em Carmem M. Radulet, O cronista Rui de Pina a “Relacde do Reino do Congo”, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1992. asus Ge Melle Su Ravi de Ws (2-209), 70.98 85 morada por séculos, dramatizada em festas piblicas e fartamente utilizada para © enaltecimento do império portugues? Assim, considerando os reinados negros como manifestagde ignificados distintos para aqueles que os realizavam, ou seja as comunida- ddes negras, e para aqueles que tinham o controle da sociedade escravista, para uns eles seriam formas de organizagio social e de construgao de novas identi- dades, e para outros seriam comprovac3o do dominio sobre a comunidade negra e de um poder articulado ao império, Dessa forma, a unificagi dos diver- 0s reis de nagio em uma tinica designagio, de rei do Congo, liga-se, no meu entender, a esses dois universos culturais, o dos negros ¢ 0 dos brancos. De uum lado houve a consolidagdo de uma identidade mais uniforme adotada por africanos de origens diferentes, que passaram a se ver como membros de uma comunidade catélica negra, parte da sociedade brasileira para a qual cles ou seus antepassados foram trazidos. De outro lado, 0 lugar de destaque que © reino do Congo ocupava no imagindrio lusitano, principal matriz. das manei- ras de pensar da classe senhorial brasileira e que permaneceu presente mes- mo quando o Brasil se tornou independente de Portugal, ajudou a aceitagio jas congadas ¢ por meio delas a integragio de alguns dos grupos de descenden- tes de afticanos a sociedade brasileira ‘Acessa interpretagao de cardter mais simbélico, posdemos somar as informa- ges relativas ao trafico de escravos centro-africanos para o sudeste brasil 10, pois no século XIX, quando se consolidou a designagao de rei do Congo nos reinados negros existentes no Brasil, cresceu a quantidade de africanos embareados nos portos da regio do antigo reino do Congo. A vigilancia do fisco portugués sobre as transagdes comerciais que aconteciam no porto de Luanda c 0 cerco dos britinicos sobre os navios negreiros fez com que os trafi- antes reativassem os portos mais préximos a for do rio Congo, 0 que tam- bbém acarretou uma mudanga nas rot vos, que passaram a ser pessoas mais ligadas & area de influéncia do mani Congo, No territério que até 0 século XVII havia existido uma unidade poli- tica coesa, no século XTX conjuntos de aldeias tinham autonomia adminis turais.com interiores de abastecimento de escra- "A esse respeito ver também Silvia Lara, “Significados cruzauos: as embaixadas de congos ‘na Bahia setecentista”, em Carnavals eoutras f(rjestas, oganizado por Maria Clementina Pereira Cunha, Campinas, Cecult / Editora Unicamp. 2001. 6 Masud Mle Souz Revit do istra 52(1-205), 70.88 tiva e econdmica, mas mantinham uma unidade simbética, pois os chefes lo- cais ainda reconheciam a autoridade do mani Congo: o chefe principal, que continuava recorrendo ao catolicismo para reforgar e legitimar sua autorida- de sobre os demais."” Assim, com a chegada de africanos traficados pelas ro- tas do Congo no século XIX, os lagos das comunidades negras brasileiras com aquela regio se estreitaram novamente depois de um longo predominio do porto de Luanda ¢ da regio de Angola." Ao estudar os reis negros no Brasil escravista eu queria encontrar uma explicagdo para a disseminagio dos festejos em torno de um rei do Congo por grande parte do territério brasileiro no século XIX. A partir da reconstituigio que me foi possfvel fazer da historia da festa de coroagiio de reis do Congo no, Brasil, propus, na ocasiao, o uso do termo “rei congo” como indicador de uma determinada identidade, expressa num mito vivido nas teatralizagdes que ocor- riam em alguns festejos, como contam relatos do século XIX. Por estarem ex- pressos nesse mito sentimentos que ultrapassam em muito o reino do Congo, tal como existin historicamente, optei por usar o termo como uma categoria e escrevé-lo com letra mintiscula. Para mim, o termo “rei congo” remete a uma idéia de Africa construida no Nove Mundo ¢ ao ser usado como uma catego- ria abstrata do conhecimento, ¢ ni como a descrigao de uma realidade hist6- rica, se toma mais geral, como a identidade para cuja construgdo ele serviu. [A sociedade escravista no interior da qual algumas comunidades negras construfram essa identidade catslica negra, para a qual o rei era um cataliza- dor, era um arcabougo de coergao e de controle sobre os aftodescendentes, E 6 surpreendente, para retomar uma idéia com a qual comecei esse texto, & que escravos, negros livres e libertos ocupassem as ruas das eidades e os terreiros das fazendas com procissdes, cantos, dangas ¢ encenagdes toleradas ¢ as ve~ 7e8 até apreciadas pelos senhores, pelos brancos, pelos pardos embranquecidos pela ascensio social. Com a garantia da liberdade oferecida pelo momento da TK esse respeito ver Susan Hesin Broadhead, “Beyond decline: the Kingdom of the ‘Kongo in the eighteenth and nineteenth centuries" International Journal of African Historical Stuiies, 12, pp. 615-650. 1979. "Ver, entre outros trabalhos, Susan J. Helin, “Brazil and the Commercialization of Kongo, 1840-1870", em Enslaving Connections. Changing Cultures of Africa and Bracit During the Bra of Slavery, edited by José C. Curto and Paul. Lovejay, New York, Humanity Books, 2004 asus Ge Melle Su Ravi de Ws (2-209), 70.98 87 festa, chefes negros se mostravam a frente dos grupos que os escolheram, que acatayam a sua autoridade, que contavam com sua protego e com que eles assumissem todos os encargos associados aquele lugar de lideranga."® Mas tam- ‘bém eram freqlientes os peclidos para que os reinados negros fossem proil dos, porque vistos como ameagadores & ordem. A liberalidade que podia cercé- los, com a tolerncia a uma inversio de lugares caracteristica do tempo da festa, ‘quando a ruptura do cotidiano permite que © mundo, mesmo numa soviedade se posto de cabega para baixo, tinha como contrapartia a solici- tagio de medidas repressoras. E 0 que vemos numa petigio escrita em 1771 por ‘um vigério mineiro que no se conformava com o fato dos reis negros se atribu- ‘rem autoridade (reconhecida por muitos) durante a vigencia de seus reinados festivos, exigindo que as pessoas se descobrissem & sua passagem, que hes cedessem os melhores lugares na igreja ou que obedecessem a ordens suas de natureza diversa, como por exemplo soltar escravos dos castigos ou mesmo da cadeia."* Em um outro extremo das maneiras como a sociedade eseravistalida- ‘va com os reinados negros, havia senhores que emprestavam jéias a seus escra- vos, permitiam que se ausentassem, e fs vezes participavam ativamente da far- sa teatral, quando reconheciam a autoridade, para eles burlesca, do rei." eseravist, T=Npis ie 8 missa ceva de 400 homens e mulhetes elegeram un rei uma sain, @ ‘marcharam pelas ras cantando, dangando erecitando os verses que fizeram, acompanh ds de oboés, trombetasetambores bascos. Estavam vestides com as roupas de seus senho- ree senhoras, com cortentes de ourd e hrineas de our ¢ péolas alguns doles masea os. Todas as diversoes desta cerimonia Ines custaram 100 eScudos. O rie seus ofits ‘ao fizeram nada em toda essa semana, além de andarem solenemente, com a espada ¢ svadaga ao seu lado” (Ohservagio feita em 1666). Urbain Souchy Rennefort, Histoire des Indes Orientales. Pass: Arnoul Sencuze, 1688. Citado em Paulo Augusto Ca “Fontes bibliograficas para a pesquisa da pritca musical no Brasil nos séculos XVI & XVI, wT (documentaeao) pS, Disertgao de Mestrao, Escola de Comunicasbes «© Antes, Universidade de S20 Paulo, S20 Panio, 1991 ® Pesigao do Padee Leonard de Azevedo Castro, vigéro colado de Sao Sebastiaa de Mariana, Minas Gerais, wanserita em parte por Carlos Drummond de Andrade, “Roséeo dos homens pretos" em Poesia completa e prose, Rio de Saneto, Compania José Aguilar Editora, 1973, pp. $10 a 815. “Como contam Spx e Marts, que assstiram a um destesreinados em 1818 em Diamant ~Chosundo a jgzeja da Mae de Deus, peta e 6 dos nepos, ori deposto enregu 0 ct © Acoroaa seu sesso, cet ferent uma visit de gal. nasa nova dignidade, so intendente db Dissito Diamantino, com oda sua conte O inten, ja prevenido dessa visit, espero ‘su hspede real em camisola de dormir carapuca. O reeén-eleto, negro foe ¢ sate rod ofico. ao avistaroilendene cou io atrapalhad, que, a ser convidado par sear Sm sold, deixou caro ceva. O deicado Femeta da Cara, apn, eit. o vest 8 ‘sine Mal Suz evs do Mista 152-205), 740 Mas nao era s6 farsa que havia no teatro (ou nas dangas draméticas, como ‘0 bem definiu Mirio de Andrade)", pois para mim é justamente nele que reside o micleo da construgao mitica de uma identidade negra catslica no esctavista. Coroados na igreja pelo padre no dia da festa do orago da irmandade que os abrigava, os reis desfilavam com seus séquitos pelos bairros em que moravam mas também pelos espagos mais nobres das cidades, pragas e ruas| onde se situavam os prédios da administragio e das moradias das pessoas im- portantes. O grupo ostentava com orgulho suas roupas especiais sas possiveis, meia, calgdo, sapatos de fivela, camisas com babados e casacas cengalonadas, manto, cetto e coroa, para as rainhas vestidos & moda européia. As cortes festivas usavam roupas semethantes is daquelas com que foram des- crtitos e retratados os chefes africanos recebendo emissétios europeus, geral- mente obtidas nas negociagées com os comerciantes atlnticos, que tinham que oferecer aos chefes as mercadorias que mais Ihes agradavam para obter as licengas para a compra de eseravos. O que para os senhores luso-brasilei- 10s indicava a adogio dos padres curopeus ¢ a subordinagao, para a comunida- de negra devia ser lembranga de grandes chefes que por terem boas relagies com os comerciantes europeus que atuavam em suas terrastinham acesso aque- las roupas, que 0s distinguiam dos menos poderosos do que eles."* fo mais luxuo- ‘uu ao rei jeans, com as palavras:- Vosea Majestadedeixou cairo cero!" © coro musical exprimiu com barulnentatoada a respeitosa graidgo pelo gesto do intendente.e,fnalmente, salu toda a multidao, depois de haver, segundo o costume dos eseravos, dabrado 0 joelho direito deante das pessoas da casa, ¢, caminhando alegremente pelas rua, © rei e a Tainha Voltaram 2s suas chogas.” LB. Von Spit e CFP. Von Martius, Viagem peio Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Navional, 1938, vl, p.120. ' Mario de Andrade, “Os congos”. em Danas draméticas do Brasil, tomo 2, Belo Ho- sizonte, Editora Istiaia, Brasilia, Instituto Nacional do Livre, 1982, '© “Ficamos parados & porta quando aparecet um volumoso nimero de negros e nepras, vestidos de algodao branco e de cor, com bandeiras ao vento ¢ tamibores soando. Quando se aproximaram, descobrimos, no meio, o Rei arana eo Secretitio de Estado. Cada um os primeiros trazia na cabeca uma coroa de papel colorido e dourado. O Rei estava ves- ‘ido com uma velha roupa de cores diversas, vermelho, verde e amarelo, manto, jaleco € calgfes. Trazia na mo um cetro de madera, lindamente dourado. A Raina envergara um vestido de seda azul, dat moda antiga © humilde Secretrio ostentava tantas cores quant ‘ou chefe, mas era evidente que sua roups provinha de wras partes, umas muito estreitas © outas demasiado amplas pata cle. As despesas com a sagrada cerimonia deviam ser pagas pelos negros e por isso, no meio da igraj, estava uma mesinha, com 0 tesoureira dessa lrmandade prota e outros dignitirios,e sobre ela uma pequena caixa para receber o dinhei- 1” (Obser\aglo feta em 1814.) Henry Koster, Viggens ao nordeste do Brasil, raduedo & notas de Luis da Cimara Cascudo, Sao Paulo: Companhia Fditora Nacional, 1942, p. 354 asus Ge Melle Su Ravi de Ws (2-209), 70.98 8 Acompanhando os reise suas cortes vinham tocadores de instrumentos de origem tanto européia quanto africana: diferentes tipos de tambores, pia- nos de dedo, marimbas, instrumentos de corda, além dos que dangavam com, ;passos © gestos tipicamente africanos, descritos com espanto e repugndncia pela maioria dos registros.” Muitas vezes, junto aos personagens reais com {rajes de estilo europeu, vinham outros, vestidos de maneiras africanas, envol- tos em peles, carregados de colares, pulseiras, guizos, ¢ penas na cabega & semelhanga dos saverdotes centro-africanos, As misicas tinham ritmos africa- nos e as letras misturavam palavras africanas com um portugués com grams- tica e sintaxe alterados. Se considerarmos que as letras cantadas entdo eram semelhantes as que foram coletadas a partir do final do século XIX e inicio do XX, elas falavam de situagdes que remetiam a temas familiares &s comu dades negras, como o aprisionamento na Africa, a travessia do oceano, a ado- dio do catolicismo, a interferéncia dos santos na vida cotidiana, situagdes liga- das a0 cativeiro e & inserydo dos afticanos e seus descendentes na sociedade escravista brasileira. O Suge dos cortejos festivos era a danga dramitiea, nem sempre presente, mas descrita por virios observadores."* 0 now rei dos negros recebeu oficialmente a visita de um enviado estrangeito & cor te do Congo (a denominada congada). A familia real ea corte, em roupas de gala, dirig- ram-se com pompa a praga do Mercado: 0 rei e a rainha sentaram-se em eadeira, sua

Você também pode gostar