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-V.Gordon Childe :mpo Aberto ~wi@Ceao dirigida por Victor dos Santos Goncalves Bertrand Livraria «Pré-Historia 6 um campo transdisciplinar que visa especifica- mente a reconstrucéo das estruturas sociais, do «funcionamen- to» e da transformacao das comunidades humanas sem escrita, reconstrucéo baseada exclusivamente em dados materiais em associagao, e 0 seu correcto posicionamento em fungao de estru- turas ambienciais (humanas e nao humanas) que determinam, se integram ou intervém no seu processo evolutivo.» do estudo introdutorio «Os meus colegas que trabalham com documentos escritos, e com dados contidos em textos escritos, podem muitas vezes intercalar os. laboriosos processos sé validos para os que estudam Pré-Historia. Apesar de tudo, até ao século XVI, a historia da ciéncia aplicada tem de ser baseada quase exclusi- vamente nos dados arqueologicos, e para o reconhecimento e classificagao de processos e instrumentos como parafusos e ganchos as técnicas dos que estudam a Pré-Historia precisam de ser invocadas muitas vezes. Se romanistas e medievalistas pudessem ser persuadidos a adoptar as técnicas e categorias elaboradas para periodos anteriores, muitos problemas da His- téria poderiam ser resolvidos. A arqueologia é so uma. Os con- ceitos aqui discutidos sao aplicaveis a todos 0s seus ramos.» do Prefécio de G. Childe V. Gordon Childe (1892-1957) representa um dos importantes vectores da clivagem que separaraé o amadorismo incipiente, o academismo estéril, de uma arqueologia pressupondo toda uma rigorosa e critica construgao tedrica. Longe da escola anglo-americana de um Clarke ou de um Binford, ele aproxi- ma-se, pela lucidez das andlises, pela riqueza do discurso, de um outro investigador cuja obra principal a coleccaéo «Tempo Aberto» em breve publicara, A. Leroi-Gourhan. Neste livro, sem ‘divida capital para a compreensao do peasamento do Autor, @ arqueologia e a Pré-Historia ganham, através da aplicagcao de conceitos materialistas historicos, o estatuto epistemoldgico que lhes faltava. TEMPO ABERTO, proximos lan Lucien Febvre, Martinho Lutero, J, Prado Coelho, Ao Contrarlo de Penélope A, Leroi- Gourhan, O Gesto e a Palavra Varios, A Estrutura da Sociedade TEMPO ABERTO 0 continuo e entreligado evoluir das estruturas, 0 Tempo 6 a régua graduada de um claro sistema aberto. Por isso, 0 titulo. De onde, o clarificar da aventura humana, objecto final desta colecgao. Tempo e espago, como Marc Bloch se aprazia em sublinhar, sao factores indispensdveis 4 compreenséo dessa aventura. E n&o apenas nos interessam as complexas estruturas no seu devir, a dialéctica e intensa relagéo dos componentes da grande teia. Hé que isolar os homens, quando rasgam espacos novos a compreensao e consciéncia do préprio espago humano. Mais que a um plano e programagao rigidos, os textos inclui- dos nesta colecgaéo obedecem a critérios muiltiplos. Os de se pro- curar um equilibrio entre diversos temas polarizadores e, tam- bém, o da oportunidade que torna premente a edicao de certos trabalhos, cujo alcance passou despercebido, por vezes até mesmo nas terttlias microscépicas ou na macroscopia iluséria de uma Universidade esclerosada. Neste pais por inventar (e no entanto bem real), que 6 o nosso, chegado é o momento de rever os vectores determinantes da nossa cultura e preparar a inevitdvel clivagem que nos situe em nés préprios e onde somos. Nao pretende «Tempo Aberto» colmatar brechas nesse esburacado edificio que 6 o da cultura nacional. E antes sua intencéo contribuir para alargar as fendas e, se possivel, empurrar o muro. E os tijolos da nova construgéo enformam-se nessa teoria que torna a pratica lucida e colectiva, que restitui ao gesto a importancia e significado que um obs- curantismo varias vezes milenar Ihe roubou. Para Uma Recuperagao do Passado Titulo original: PIECING TOGETHER THE PAST, THE INTERPRETATION OF ARCHAEOLOGICAL DATA Primeira edigao: Routledge & Kegan Paul, Londres, 1956 Tradugdo portuguesa (sobre a segunda reimpresséo — 1969). M. Luisa Penafiel Revisao: M. Joao Lourengo Capa José Candido © by Routledge & Kegan Paul Ltd., Londres Todos os direitos para a publicagéo desta obra em lingua portuguesa reservados pela Livraria Bertrand, S.A.R.L. © da introdugao: Victor dos Santos Goncalves Outras obras de Gordon Childe publicadas em Portugal O Homem Faz-se a Si Préprio—Ed. Cosmos, Lisboa, 1947 Teorias da Histéria — Ed. Portugélia, Lisboa, 1964 A Aurora da Civilizagéo Europela— Ed. Portugalia, Lisboa, 1969 A Pré-Histéria da Sociedade Europela— Ed. Europa-América, Lisboa s/d Introdugéo @ Arqueologia — Ed. Europa-América, Lisboa, 1961 V. GORDON CHILDE Para Uma Recuperagio do Passado a interpretagdo dos dados arqueoldgicos com um estudo introdutério por VICTOR DOS SANTOS GONGALVES LIVRARIA BERTRAND APARTADO 37— AMADORA V. GORDON CHILDE E A RECUPERAGAO DO PASSADO Contava-me um intelectual do Mali como, hé cin- quenta anos, quando era crianga, os homens da sua aldeia, sentados em circulo com um etndlogo que thes mostrava sucessivamente objectos rituais ou de uso comum, se consultavam entre si para encon- trar uma resposta que, afinal, agradasse ao seu convidado, J. DUVIGNAUD, Le /angage perdu, p. 262 Childe, Portugal, a recuperagdo do passado + Da origem da Pré-Histéria as primeiras periodizagées * 0 objecto da PréHistoria, A leitura de Childe. * Recuperar 0 Passado? Childe, Portugal, a recuperagaéo do passado ESTE Portugal, a diversos titulos arqueolégico, sempre tao arredio das grandes linhas do pensamento, onde as ideias indigenas (quando existem) sdo escarnecidas por «insuficientes» e as alienigenas (apenas por o serem) estra- bicamente plagiadas, V. Gordon Childe teve uma divulgagdo superior ao seu impacte. V. GORDON CHILDE Em 1947, Vitorino Magalhées Godinho e Jorge Borges de Macedo traduziam, sob a designagao geral O Homem Faz-se a Si Préprio, trés importantes textos de Childe: Man Makes Himself, What Happened in History, Progress and Archaeology '. Ainda hoje a Cosmos vende o espesso livro e se, apés ele, quatro outros foram editados, dois pela Europa-América’, os restantes pela Portugdlia®, quase todos sao de interesse bem menor 4. Por editar ficou bastante e entre ele, despercebido, o Piecing together the Past que ora se verte em portugués. Childe interessou-se muito por Portugal. O dolmenismo e o campaniforme justificavam s6 por si grande parte deste inte- resse e Childe investigava os grandes movimentos, as migra- des, as viagens. Procurava reencontrar 0 caminho dessas ideias téo. mortais que sao as anteriores a escrita. De onde as suas constantes deslocagées, as visitas a lugares arqueolégicos na Escocia, Irlanda, {India e por toda a Europa e Préximo Oriente e mesmo na Austrdlia, onde viria a morrer. E como reagiram os investigadores portugueses ao contributo de Childe, como vimos, desde 1947 ao seu dispor? Ao tempo de Manuel Heleno, e de toda a estrutura econd- mico-social que o tornou possivel, néo era de esperar receptivi- dade profunda e critica a um autor tao perigosamente marxizante como Childe. E, naturalmente, uma possivel voz dissonante teria de ser exterior ao sistema, livre dos compromissos que inevita- 1 QO Homem Faz-se a Si Préprio, colecgio «A Marcha da Humanidade», Lisboa, 1947. 2 A Pré-Histéria da Sociedade Europela e Introdugao 4 Arqueologia, ambas na colecgdo «Saber» s/d. e 1961. 3 Teorias da Historia, Lisboa, 1964, e A Aurora da Civilizagéo Europela, Lisboa, 1969. * £ também de referir um estudo publicado na obra colectiva The Euro- pean Inheritance, traduzida em portugués por Jorge de Macedo e publicada em 1956 pelas Organizacées Crisdlis, em Lisboa, sob 0 titulo Histéria da Civilizagao Europeia. Trata-se de um livro pouco citado, mas que conta com a colaboragéo de especialistas -notéveis, como Childe, Dodd, Ganshof ou Vaucher. A parte redigida por Childe intitula-se Pré-Histéria. 8 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO velmente a estrutura do Poder impunha. Com efeito, entre nés, apenas Eduardo da Cunha Serrao, leitor de Childe mas também de Wheeler, tentou informar a sua praxis das proposicdes con- cretas dos dois ingleses. E no panorama desolado da arqueologia portuguesa, tao infe- liz no campo como inepta no gabinete, o contributo fundamental de Childe nao deixou outras marcas visiveis. Até hoje. Ora se livros hé que marcam épocas, assinalam inflexées de pesquisa e condensam em si a forga de um método rigorosa- mente aplicado, em arqueologia pré-histérica eles bem poucos sdo. Entre eles, o de Childe ocupa lugar de relevo. Porque mais que um manual para uso externo’ ou um pro- grama de circunsténcia, 0 Para Uma Recuperacéo do Passado é a correcta derivagéo de um método de andlise do facto econé- mico e social encarado na sua dupla natureza de integrado e integrante. Método por natureza néo dogmatico, e cuja extrema flexibilidade Ihe permite um leque de aplicagdes extremamente vasto. Mais que um manual ou um programa, para além da aplicagao de um método, este livro é uma lig&o. De humildade e desinibi- do perante o facto arqueolégico, por razées extrinsecas propicio a triunfalismos e ambiguidades. De coragem e dignidade, tam- bém, por estabelecer por vez primeira um estatuto epistemol6- gico para a disciplina empirica que a Pré-Histéria continuava a ser. Recuperar o Passado? Para j4, e aqui, materialmente impos- sivel em sentido estrito. E é 0 conhecimento dessa impossibili- dade, particularmente doloroso no que se refere a Pré-Historia, que molda ou, no minimo, informa a atitude do investigador. O conjunto de vivéncias que precederam os periodos e cul- turas com escrita sao, na sua diversidade e especificidade, irre- cuperaveis. Os gestos perderam-se. Os simbolos apenas chegam até nés sob a forma de invdlucros quitinosos. O que os movia, lhes emprestava a sua maravilhosa flexibilidade, nao existe mais, 9 V. GORDON CHILDE e da sua articulagdo com o real resta-nos a conjectura. Mesmo a cultura material apenas sobrevive nas formas, tantas vezes de preenchimento dificil. Falamos de «machados» e «enxds», numa aparente dicotomia funcional a que na verdade apenas corresponde uma discutivel dicotomia morfolédgica. Falamos de «alabardas» para referir arte- factos cuja orientagéo de gume operante desconhecemos e que, efectivamente, néo correspondem sequer a morfologia da ala- barda classica. Discute-se, sem um minimo de fundamento cien- tifico, a funcionalidade de uma lasca retocada, uma técnica decorativa, 0 significado de um artefacto. Enquanto isto, os (inexistentes) resultados concretos de investigagées concretas s&o inevitavelmente adiados (sine die?). Daqui, uma saida Unica: escavar mais e com rigor e isolar as questées especificas que a escavagaéo arqueoldgica invariavel- mente revela. Ao invés da limitativa definigaéo archaeology is archaeology, is archaeology’, 0 que transforma a pesquisa de Childe numa busca concreta, cientificamente conduzida, rica em perspectivas, 6 justamente a intuigdo de que a arqueologia nao 6 uma disciplina mas uma convergéncia de campos disciplinares e de técnicas a usar na possivel recuperagdo do passado. Mas se esse con- junto se converte num campo interdisciplinar, existe um outro que mais correctamente se deverd designar transdisciplinar — o da Pré-Histéria, como disciplina independente, como fase Ultima de um processo cuja esperada solidez deriva das primei- ras etapas, as propriamente arqueoldgicas, de escavagao, registo e inventéario. Portanto, questées especificas. Construidas sobre factos. E a natureza do facto arqueolégico 6 a mais multimoda possivel. Porque o testemunho pode ser artefacto ou sedimento, mandi- * David Clarke, Analytical Archaeology, Methuen, Londres, 1968, pp. 11-12: Archaeological data is not historical data and consequently archaeology is not history. The view taken in this work is that archaeology, Is archaeology, is archaeology. Como é facil ver, este 6 um dos pontos em que Clarke se demarca de uma determinada linha em que Childe se inclui. 10 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO bula de veado ou fémur de crianga. A arqueologia pré-histérica surge, nesta perspectiva, como 0 infinitamente paciente recons- truir de um edificio para sempre destrufdo. O que implica, inevi- tavelmente, dois tipos de leitura complementares, 0 microsc6pico e 0 macroscopico (que envolve o primeiro). Por um lado, 0 arte- facto — ou mesmo 0 atributo; por outro, a cultura que nele se reflecte de forma explicita ou nao. Porque sobre entidades minimas, os atributos', trabalha afi- nal, em primeira instancia, o pré-historiador. Nao sobre todos os atributos de um artefacto, mas, t4o-s6, sobre os que tem como indicadores de algo que se nao confina a estrutura material do objecto. Que indica ou busca, bem diversamente, 0 significado do gesto que esta na sua origem e da estandardizacéo que a sua objectivagao exige. Da origem da Pré-Histéria as primeiras periodizagées O leitor deve ser avisado n&o apenas da importancia de Para Uma Recuperagéo do Passado, como da natureza particular do seu discurso. E para compreender 0 seu momento e significado devemos procurar situé-lo na progressiva emergéncia da Pré- -Histéria como disciplina independente e no desenvolver da questdo particularmente importante que é a da periodizagao. O periodo 1800-1847 contém as sementes de um novo campo disciplinar. Sementes langadas por Frere, Jouannet, Caumont, Picard, Tournal, Schmerling. Boucher de Perthes faré a primeira colheita. ' Atemo-nos aqui a definigéo adoptada por Clarke, op. cit. p. 665: Attri- bute. Artefact attribute; a logically irreducible character of two or more states, acting as an. independent variable within a specific artefact system. An epistemically independent variable (Sommerhoff, 1950, p. 86), 0 que nao quer dizer que dela nao fagamos outro uso. 1 V. GORDON CHILDE Ao despontar o século XIX, a ignorancia da real antiguidade do Homem 6 completa‘. Mas 0 mecanismo de subversao esta ja montado e inicia-se um longo combate e em varias frentes. Contra a reticente ou hostil hierarquia da Igreja, contra a inércia do saber adquirido, incensado em esclerosadas Academias. Wiseman, Melleville, Catcott, nao levaréo porém a melhor contra © poderoso potencial subversor das novas ideias. E as escava- gdes de Schmerling e as proposigées de Picard iriam, inevitavel- mente, conduzir a um qualquer «fundador». 1847: Boucher de Perthes publica o primeiro volume das Antiguidades Célticas e Antediluvianas. A Pré-Histéria (que ainda assim se néo chama) 6, efectivamente, fundada. Sob o signo da tradigao judaico-cristé, sem divida, 0 proprio nome do livro de Boucher de Perthes 0 indica. A clivagem é de origem divina, deve-se as celestes torneiras. Noé, a quem os Sumérios chamavam Ziusudra, marcava a viragem. Mas basta ler os textos anteriores de Tournal e Schmerling para ver que n&o havia una- nimidade sobre o Diltvio. Estes s&o anos ricos em contextos individualizantes. Se é facil falar de um primeiro periodo, o da gestacgao da Pré- -Hist6ria, de 1800 a 1847, 0 certo 6 que a seguir a esta data-chave (pela convergéncia que nela se verifica) a complexidade da emergéncia real da Pré-Histéria deve-se mais aos intrincados mecanismos do bloqueio cultural (e do desbloquear decorrente) que a prépria natureza dos dados manipulados. Numa primeira fase. Um ponto é de reter: nestes anos sdo as ciéncias naturais que desempenham papel hegeménico. E s6 com Lubbock se ini- ciaré uma tentativa, sem sequéncia visivel, de definir pela pratica analitica uma nova unidade dentro do Ambito das Ciéncias His- téricas e Sociais, relativamente independente, mau grado a ' E, no entanto, tudo estava preparado para que essa antiguidade come- gasse a ser progressivamente recuada. Frere representaré um primeiro passo, mas 6 no Continente, e néo em Inglaterra, que se levantaré a verdadeira polémica que conduziré & ruptura. 12 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO dominancia da paleobotanica, da paleozoologia, da antropologia fisica, da geologia, da propria paleontologia animal, cujos pres- supostos —n&o nos iludamos—enformam e espartilham, mesmo, muitas das atitudes dos primeiros investigadores em Pré-Historia. Funda-se, portanto, uma nova ciéncia (apés periodo de emer- géncia). Nos anos que se seguem a 1847, as escavagées multi- plicam-se, na Europa e nao s6. Encontramos agora um facto particularmente mobilizador: a enormidade numérica da massa documental exumada. Milhares de artefactos que é necessério designar por nomes adequados. E a adequacao implicita é, evidentemente, a da funcionalidade. Nao se cria, assim, ab initio, uma metalinguagem. Pelo con- trario, sero palavras correntes que se utilizam para designar os artefactos recolhidos e s6 muito lentamente o conceito «desco- lard» da palavra. Mas houvera jé 0 tempo para o nascimento de um confuso sistema de «sinais» que demarcaré um novo real recuperado. A palavra, o nome, torna-se, destarte, para os nao iniciados, um pesado obstdculo dificilmente ultrapassével. O que nao explica, sé por si, o sucesso, talvez efémero, do cédigo e do numero e o empolamento que transformou o nome-referéncia num nome-rétulo ou ainda num nome-descrigéo, condensando em si um potencial fortemente restritivo mas marcadamente hermé- tico. Paralelamente a esta questéo de nomear os objectos surge outra, igualmente complexa: a da sua arrumagao por «familias», ao exemplo do que era j4 comum para animais e plantas. Claro 6, como escreveu Lévi-Strauss, que um machado néo dé origem a outros machados (pelo menos numa sequéncia bio- légica) e as familias de artefactos sao bem diferentes das que estabelecemos para animais e plantas. A nogao de tipo (nogao organizacional na classificagéo objectiva dos restos materiais das inddstrias pré-hist6ricas) est presente desde os inicios da Pré-Histéria. Primeiro, como nogao intuida e s6 depois como nog&o deduzida. Com implicagées por vezes de dificil destringa e obrigando a definicdes rigorosas. 13 V. GORDON CHILDE A noga&o de «faca», tipo alidés muito amplo, engloba em si artefactos com um conjunto de caracteristicas aproximantes (caracteristicas funcionais) e deixa voluntariamente de parte uma enorme série de atributos importantes a nivel descritivo simples. Uma faca nao deixa de o ser por ter dois (ou mesmo trés) gumes em vez de um. Por ter cabo de osso ou plastico em vez de madeira ou metal. Por ser fundida numa pega so ou enca- bada por espigao ou lingueta. E ha ainda o «problema da montanha»: 0 sopé pertence ja & montanha ou ainda ao vale? Os tipos encontram-se e «tocam-se» em zonas de indefinigado dos artefactos onde so a arbitrariedade do investigador discrimina e rotula. O esforgo significativo para arrumar a massa documental de que os primeiros investigadores dispunham inicia-se com o dina- marqués Thommsen, que, em 1837, publica a aplicagdo funcional do Sistema das Trés Idades. O que implicava a atribuigéo de um significado cronolégico a natureza intrinseca dos artefactos, desta forma seriados em trés familias em sequéncia: Pedra, Bronze, Ferro. «Familias» que se identificam afinal com catego- tias muito amplas de classificagaéo, que exigem a subsequente definicgao dos tipos que as compdem (por vezes comuns as trés). S6 que esta classificaco tedrica, que os primeiros resultados de campo confirmaram, cedo se tornou insuficiente e foi neces- sdrio procurar esquemas que melhor respondessem a multipli- cidade dos dados arqueolégicos. A nogéo de «esquema» néo contém em si, necessariamente, a nocdo de sequéncia. O Tempo 6, no entanto, em Histéria Humana, um dado implicito e uma pista que inevitavelmente tem de ser seguida. As primeiras classificagées de materiais pré-histéricos tradu- zem a necessidade evidente de os referir correctamente, pri- meiro, e de os agrupar, depois. Existe, também, uma atitude mental comum nos meios escolares franceses do século XIX, que conduz naturalmente & sistematizagéo do discurso e, dai, a uma visaéo «arrumada» do real. Essa viséo «arrumada» torna compre- ensivel néo unicamente a sintese de Caumont mas também a 14 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO precocidade dos primeiros textos sistematicos '. Outra linha 6 a de Jouannet, derivando da necessidade imediata de evitar que o investigador de campo seja submerso pelo numero e novidade dos seus achados. De onde classificagdes funcionais — as mais simples — que referenciam os achados e os agrupam em tipos naturais. Esta tipologia incipiente poderia ter dado origem, ante- cipadamente, aos esquemas tipolégicos de Mortillet (que alids nao traduziréo outra coisa senéo uma exploracgaéo das possibili- dades abertas pelo célebre e milenar Sistema das Trés Idades, agora alargado e revisto de acordo com os novos dados dispo- niveis). Mas nao. Sera Lartet, em 1861, a aplicar, numa verdadeira periodizagao, um critério novo, em que a paleofauna desempenha papel dominante. O periodo mais antigo da Humanidade aparece assim dividido em quatro «Idades»; do Auroque, da Rena, do Elefante e do Rino- ceronte, do Grande Urso das Cavernas. Outro critério, predominantemente tipoldgico, serd o do pré- prio Mortillet, ao introduzir, em 1867, uma sequéncia em que o osso e o silex demarcam dois grandes periodos, subdivididos. Em 1888, Boule avanga a correlacao climdtica entre a ultima glaciagéo (nessa altura, das cinco glaciagées hoje conhecidas, apenas se tinham identificado trés) e as indistrias humanas, colocando-se ja o Neolitico de Lubbock no pés-glaciar. Esta corre- lagdo sera, alias, seguidamente completada por Bruckner e Penck e, de seguida, precisada por Obermaier e Breuil *. Podemos dizer que na Europa da II Guerra Mundial se igno- rava ainda, ostensivamente, um contributo capital, parcialmente 1 Espero, em breve, na sequéncia de uma comunicagao apresentada em Julho de 1973 na Associagao dos Arquedlogos Portugueses, publicar um estudo onde se investigam justamente os problemas da emergéncia da Pré- -Hist6ria. 2 Exposi¢do sucinta e eficaz continua a ser a de Michel Brézillon em Pré-histoire, direcgéo de A. Leroi-Gourhan, P.U F., Paris, 2." ed. revista, 1968, pp. 279-293, onde abundante bibliografia reenvia o leitor interessado para textos mais completos. 15 V. GORDON CHILDE lido em Morgan e transmitido, com rectificagées significativas, por Engels. Contributo cujos textos essenciais continuam a ser a Sociedade Antiga', um dos capitulos da Dialéctica da Natu- reza*? e o conhecido Origem da Familia, da Propriedade e do Estado’. Ora o discutido corte epistemoldgico marxista néo deverd ser entendido, a meu ver, apenas numa perspectiva tnica, a teérica, mas numa colecgéo de momentos em que a sua intervencao em determinado campo disciplinar opera, efectivamente, uma cliva- gem. Dai a existéncia néo de um corte mas de varios, tantos quantos 0s momentos em que se regista uma intervengao deci- siva. Jean Duvignaud escreveu, com justeza, a propésito de Mor- gan, que ele teve «a extraordindria coragem (...) de tomar como objecto de ciéncia, com estatuto idéntico ao de Gregos e Roma- nos, esses indios que constituiam no seu tempo um resistivel obstaculo & penetragdo branca ‘, notando igualmente o profundo alcance de uma pequena frase do Ancient Society: «E a mesma a inteligéncia que encontramos no selvagem, no barbaro e no civilizado.» Esta tomada de posigdo corresponde ao correcto enunciar de um principio tedrico com enormes reflexos na praxis do inves- tigador. A Engels cabera a tarefa de juntar a esta nocéo nao idealista de igualdade uma outra, desdobrada em dois axiomas: * Lewis H. Morgan, Ancient Society, Nova lorque, 1887. Existe uma boa tradugao francesa, La socleté archaique, Editions Anthropos, Paris, 1971. Existe, também, versao portuguesa. ? O Papel do Trabalho na Transformagéo do Macaco em Homem, pp. 171- -186 da edico portuguesa da Dialéctica da Natureza, de Friedrich Engels, colecgéo «Sintese», Editorial Presenga, Lisboa, 1974. * Tradugao portuguesa também na colecgdo «Sintese» da Editorial Pre- senga, Lisboa, s/d. * Jean Duvignaud, Le langage perdu, essai sur la différence anthropolo- gique, P.U. F., Paris, 1973, nomeadamente o notavel ensaio Morgan, pp. 55-91. A citagdo 6 da p. 60. 16 ge PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO €.0 trabalho que transforma 0 macaco em Homem, é no Homem (e nao algures no seu exterior) que se encontra a forca da sua transformacao. / Ou como diria Childe, em titulo de um dos seus livros, O Ho- mem Faz-se a Si Prdprio. Esta nogao, avangada por Engels, do papel do trabalho na hominizagaéo e na aventura humana esta prenhe de consequén- cias e marcaré a sua propria concepgao das sociedades primi- tivas. A leitura marxista de Childe condu-lo, na linha de Morgan e Engels, a sobrevalorizar.conclusdes que o empurram para uma nova periodizagao, onde modo de produgao, relacées de producao e estrutura socioeconémica desempenham, pela primeira vez em Pré-Histéria, papel preponderante. Se lermos o indice desse importante texto que 6 0 What happened in History, néo sera dificil reconhecer o critério de Morgan refeito por Engels. A t6- nica da periodizagaéo de Childe coloca-se, porém, num periodo fulcral: o do aparecimento da agricultura, o da Revolugdo Neo- litica. Childe ultrapassa assim, sem os esquecer, como indispen- sdveis pontos de referéncia que s&o, os critérios tecnoldgico, climatico e paleozooldégico. O importante na sua leitura das comunidades primitivas é 0 papel de clivagem, a fung&o classificatéria e organizacional que 6 conferida, a nivel amplo, ao modo de producao (entendido j4 no sentido que Althusser adoptaria e que Martha Harnecker divulgou) e a infra-estrutura econédmica enquanto geradora de relagdes sociais. «Cada cultura neolitica representa uma adaptacao aproxi- mada a um ambiente especifico, com uma ideologia mais ou menos adequada a ele. A diversidade 6 consequéncia de uma multiplicidade de descobertas ou inventos menores, a principio provocada por condigées puramente locais e condicionada pelas pecularidades geoldgicas, climaticas ou botanicas, ou ainda, por 17 V. GORDON CHILDE idiossincrasias arbitrérias, ou seja, inexplicaveis» ', escreveria Childe. Isto é: 0 modo de producgdo no pode ser encarado sectorialmente ou limitativamente. O cinturéo ambiencial (e a isto nado é estranho o lamarckismo engelsiano) obriga a uma resposta das comunidades humanas. Uma resposta no sentido mais lato da palavra. No obriga a resposta alfa, beta ou gama. Uma resposta, t4o-s6. Resposta que se integra no dialéctico e complexo existir auto-eco-reorganizativo das comunidades hu- manas *, Aplicando a lig&o marxista, aplicando-a, como é correcto, a situagdes concretas, Childe iré procurar para além do préprio objecto da Pré-Historia. Iré procurar a razéo desse objecto e, como Duvignaud em Chebika, a prépria natureza da sua investi- gac¢do, o seu itinerdrio do investigador. Esta a originalidade real de Para Uma Recuperacéo do Pas- sado. O objecto da Pré-Hist6ria. A leitura de Childe. Aparentemente nao é hoje dificil a quem manipule os dados arqueolégicos, ultrapassando por pressuposto tedrico a sua mi- croscopia, encontrar uma definigdo para Pré-Histéria e um esta- tuto decorrente para pré-historiador. Para simplificar, adianto 0 que entendo eu por Pré-Historia, o que poderé ser util para compreender a Optica deste estudo. 1 V. Gordon Childe, O que Aconteceu na Histéria, trad. brasileira, Zahar, Rio de Janeiro, 1960, p. 60. 2 Com as reservas que devemos de antem&o formular (nomeadamente o «mecanicismo», 0 «esquematismo» e o «biologismo» que marcam as suas sinteses, sem duvida brilhantes), 6 recomendavel a leitura do Paradigma Per- dido, de Edgar Morin (tradugao portuguesa editada pela Europa-América, em 1975) e, sobretudo, o excelente La nature de /a societé, que em breve «Tempo Aberto» apresentaré. 18 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO Pré-Hist6ria 6 um campo transdisciplinar que visa especifica- mente a reconstrugao das estruturas sociais, do «funcionamento» e da transformagéo das comunidades humanas sem escrita, reconstrucéo baseada exclusivamente em dados materiais em associacéo, e o seu correcto posicionamento em funcgéo de estruturas ambienciais (humanas e néo humanas) que determi- nam, se integram ou intervém no seu processo evolutivo. Ora a autoconsciéncia do investigador que lhe permite for- mular em 1975 esta ou outra definig&o nao se forjou no vazio, tem necessariamente antecedentes que a permitiram e a justi- ficam. Antecedentes marcados por esse pressuposto tedrico que referi. Simplesmente, os pressupostos tedricos variam com as coor- denadas geogréficas e culturais e a definigéo mais sucinta nao 6, certamente, a mais «inocente». E se voltarmos a que acima afirmei ser a minha, encontraremos os seguintes conceitos a reter: campo transdisciplinar, reconstrucgéo, estruturas sociais, «funcionamento», transformag¢ao. Facil 6 distinguir, assim, 1. um conjunto de disciplinas, reformuladas na intengdo de as aplicar a um dominio novo, constituindo, portanto, um campo transdisciplinar. 2. um objecto de pesquisa: as comunidades humanas sem escrita, entendidas prioritariamente como estruturas so- ciais (logicamente decorrentes de um dado modo de pro- dugao) e investigadas em termos de «funcionamento» e transformagao. - 3. um axioma que recoloca essas comunidades na complexa teia de relagdes com as estruturas ambienciais, que in- cluem o sistema ecolégico e o jogo de transformacées decorrente dos contactos com outras comunidades. Que a Pré-Hist6ria é inevitavelmente interdisciplinar ja o tinham percebido os primeiros investigadores, quando a palavra 19 V. GORDON CHILDE «Pré-Histéria» ainda nem sequer existia. O que nao quer dizer que, de seguida, tal intuigéo nao tenha vindo a ser esquecida. Que 0 objecto da Pré-Histéria sao comunidades sem escrita, também ndo 6 problema nem questao a discutir. Restam-nos nogdes muito menos divulgadas entre os inves- tigadores da Pré-Histéria como as conotadas com as estruturas sociais (j4 para nao falarmos no modo de produgao). Quanto as estruturas ambienciais (e a auto-eco-reorganizagao das comunidades humanas que elas subentendem) ha que pro- curar as pistas que a elas conduziram. Seria estulticia insistir na contribuig&o do materialismo his- térico para a convergéncia destes conceitos. Mas é no seu encontro em Pré-Histéria que Gordon Childe desempenhou um papel fundamental. Foi acompanhado, alias, por dois outros tipos de pesquisa que conduziram, por um lado, a impasses (parado- xalmente clarificadores) e, por outro, 4 abertura de caminhos insuspeitados. Metodologicamente, os indicios da clivagem que Gordon Childe contribuiré para abrir encontram-se por volta de 1945. Nesta altura, André Leroi-Gourhan publica os dois tomos de Evolugao e Técnicas, que prenunciariam a mais de vinte anos de distancia esse marco fundamental que s&o os dois volumes de O Gesto e a Palavra'. Pouco depois, Francois Bordes, Denise Sonneville-Bordes e Bourgon arriscavam a aplicagao do método estatistico 4 Pré-Histéria. O que sé era novo pelo que derivava da sua generalizagdo: o aparecimento, por fim, de uma tipologia rigorosa, 0 que, mesmo tendo em conta a possivel parandia de alguns dos seus expoentes (e dos seus divulgadores), se deve considerar importantissimo. André Leroi-Gourhan define:as linhas de pesquisa que averi- guam o papel do meio ambiente e da natureza téo peculiar do evoluir das técnicas. Frangois Bordes, companheiros e discipulos (ortodoxos ou heresiarcas) dao & nogdo de tipo o rigor até entao inexistente. ' Presentemnte em tradugdo e a publicar brevemente nesta colecgao. 20 PARA UMA RECUPERACAO DO PASSADO Gordon Childe dira: Estas s&0 as espécies de coisas nas quais os arquedlogos, a semelhanga dos historiadores — alids: como historiadores —, estado interessados — acg6es e pensamentos. E simplesmente porque eles sao o resultado do comportamento humano, e dai expressarem 0 seu pensamento, que os arquedlogos coleccionam ansiosamente, medem e registam escrupulosamente e classifi- cam sistematicamente restos de velharias e buracos no chao. Isto distingue a arqueologia da filatelia, a colecgéo de objectos arqueolégicos da colecgao de caixinhas de rapé. Acgées e pensamentos, como os encontrar? Nesse real que o pré-historiador reinventa, onde e como os encontrar? A originalidade de Childe esta, entre outros pontos, nesta forma de enunciar como fundamental, como objecto privilegiado de pesquisa, uma impossibilidade. E a Pré-Hist6ria encontra-se, para além dos artefactos que séo ansiosamente coleccionados, no processo de aproximacg&o ao que esta por detrés desses artefactos, ao modo de produg&o que os exigiu, 4 sociedade que os adoptou. Recuperar o Passado ? Nove capitulos procuram responder a uma questao aparente- mente nao formulada. «De que trata a arqueologia?», «De quando data a arqueologia?», «O que 6 o registo arqueolégico?», «Para que serve?», «Quando foi criado?», «Ha quanto tempo aconte- ceu?», «Quem o formulou?», «O que aconteceu na Pré-Histéria?», «Qual a vantagem da arqueologia?» Nove capitulos e nove questdes. Em troca teremos respostas? Escritos no inglés dificil de Childe (e mal transcritos numa tradugao que ficou muito aquém do que seria desejavel) os nove 21 V. GORDON CHILDE capitulos do livro que perante nés estd traduzem também a consciente procura de uma clareza e de uma exactidao dificeis de conseguir mesmo na lingua do original e impossiveis de man- ter num idioma como o nosso, ausente de todo o processo de formagao do vocabulario arqueoldégico. Mas se as questées sao, efectivamente, nove, uma s6 condi- ciona o texto e determina as oito anteriores. «Qual a vantagem da arqueologia?». Ou «apologia da arqueologia e da profisséo de arquedlogo»... Mais que uma autojustificagado (e a biografia do autor per- passa ao longo dos varios capitulos, detectando-se nos préprios exemplos escolhidos), estamos perante—e dai a parafrase — uma Apologie no sentido usado por Marc Bloch. E, para além disto, de um escrito modelarmente pragmatico. Num livro recente, posterior de doze anos ao Piecing ', David Clarke mastiga com aplicagdéo e método toda uma possivel cons- trugdo tedrica, formalmente correcta mas de que estd ausente qualquer perspectivacdo que efectivamente traduza esse didlogo tdo necessério entre os concretos problemas de campo e a urgéncia da sua leitura num enquadramento que os arranque ao seu exclusivismo morfoldgico e os projecte na complexa teia do humano. Clarke situou o fenémeno arqueolégico (ver figura 1) num 1 Analytical Archaeology, Londres, 1968. Ressalve-se ponto importante: as objeccées que levanto por diversas vezes a Clarke nao representam de modo algum uma oposigao formal a sua formiddvel construgdo tedrica, mas tdo-s6 a «desvios» especificos de intencéo e, sobretudo, a impossibilidade concreta, real, de a usar no transporte e integracéo dos dados de campo para as sinteses te6ricas. Numa certa perspectiva, Edgar Morin, que se integra na mesma escola tedrica, esté muito mais préximo desse concreto aparentemente ausente dos textos de Clarke. Descrever e inventariar, traduzir em notagdes mateméticas, é possivel para artefactos enquanto tal. Mas 0 modo de produgao asidtico nao se isola através de um atributo confirmado. A simplificagéo que 0 modelo implica nao pode ser a razéio de uma busca, mas um artefacto no processo de reconstru- g&o do passado. No me parece ser isso o que pensa Clarke, o que seré ponto a desenvolver noutro lugar. 22 PARA UMA RECUPERACAO DO PASSADO plano que o ultrapassa, objectivou-o apenas como e enquanto especifica amostra em estudo, com vista a posterior integracao em modelo, O que fica de fora deste quadro, exemplarmente pouco ori- ginal (tenha-se em conta a origem dos seus elementos, directa- mente filiados no «mecanicismo» americano), é a propria dina- mica do processo, a mobilidade do préprio objecto, que para o arqueélogo representa pesadelo idéntico ao da enguia mais gil para o pescador. Childe funciona em coordenadas diversas, melhor explicitas, alias, no Social Evolution. E a raz4o por que um marxista aceitaria como nota¢géo marginal o esquema de Clarke, sem the atribuir particular interesse, nao deriva de ele ser obsoleto, incorrecto ou despropositado, mas por nao existir em termos de campo imediato de andlise. Imediato e principal. A outra imagem que escolhi para ilustrar um contraste entre Childe-Clarke (figura 2) pode ler-se no sentido da primeira. Nada do que ela refere 6 em si incorrecto. A integracaéo proposta nem sequer 6 de contestar. Mas um ponto importante fica de fora. O mundo do homem pré-histérico nao 6 o mundo do técnico do Peterhouse College, de Cambridge, Inglaterra. O que o homem pré-histérico entendia por fauna nada tem a ver com a imagem sofisticada que um jovem europeu pode reco- Ther das bem ilustradas paginas de um manual de biologia. Ima- gem decorrente de um esquema classificatério permitido por um especifico modo de produgao e cujo real representado ou pro- posto raramente seré verificado, em experiéncia, pelo leitor. Para o cagador musteriense, a fauna dividia-se muito prova- velmente em animais que (1) se podiam abater sem perigo (2) se podiam abater com risco animais de que era necessdrio fugir (e depressa). Quanto a outro ponto correlacionado, o da carga mitica que um animal pode conter, ai néo nos percamos em conjecturas. Mas 23 SEGMENTO ARQUEOLOGICO DO MUNDO REAL ! AMOSTRA OBTIDA > INA ESCAVACAO E COMPILACAO > OBSERVACAO ___DE _DADOS ~- > | ESFERA_DA ESFERA_DA ANALISE_CONTEXTUAL ANALISE _ESPECIFICA ENSAIO Y Observacées contextuais controtadas experimentalmente, amostra Baseada na escavacdo e recolha de dados no campo. Recupe. ragdo das caracteristicas contextuais ou ambienciais Observacdes especificas controladas experimentalmente, amostra baseada nos artefactos conjuntos e nas suas caracteristicas intrinsecas reveladas pelas andlises quimica estatistica ou outras HY —_—_ ESFERA DA SINTESE _E TEORIA GERAL ‘Arquivo central para operac®es com modelos e esquemas, constru¢&o de modelos, modificacSes experimentacio através. de uma andlise comparativa continua Modelos _simbélicos Modelos analdgicos /Aoalogia matematica- (a) modelo. deterministico 7 (b) modelo estatistico (c) modelo estocdstico (a) modelo canénico /‘Formulagéo da / simulagdo analégica d histérica, antropoléai ou abstracta Registo isomérfico avaliado ou codificado através de observacGes tais como diagramas, histogramas, mapas, ete, , Consequéncias Idgicas matemdticas do modelo y Observacdes ,/ generalizantes Y / Observacdes / generalizantes XPERIMENIACAO DO MODELO / ESQUEMA EM INTERPRETACAO RELAGAO AS ULTIMAS OBSERVACOES DE ~~ AMOSTRAS, NUMA TENTATIVA’ DE AJUSTAMENTO PROPOSIGOES DE SINTESE SOBRE © MUNDO REAL PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO basta um afirmagdo de passagem: fosse qual fosse essa carga mitica, ela bastaria para recriar a fauna, para a catapultar para muito longe do colorido livro de biologia. Mas que nos resta disso? «Os motivos, como as emogées, perderam-se sempre, apenas por serem ilusdes. Sera isto importante?» Assim encerra Childe o seu livro. Subsisterna religioso Subsistema econdmico aK Sy a \Nsuvzistemal = 24°" psicoldgico ees Subsistema de cultura material Subsistema social Segundo Clarke, 1968, p. 125. Os subsistemas interagem numa dinamica estével com o melo ambiente. Os subsistemas comportam-se em fungéo do meio, propée Clarke, como um Unico Sistema Sociocultural. A unidade 6 definida em termos da coesdo criada pela prdépria interaccéo 4 Uma adaptagdo ao processamento arqueolégico do modelo geogréfico de Chorley. Segundo Clarke, 1968, p. 36 V. GORDON CHILDE «J'ai beau aller tout droit, je n’arréte pas de tourner en rond», dizia 0 caracol desenhado por Mandryka e reconhece o investi- gador perante a complexidade e a riqueza do processo. «To a prehistorian», escreveu Childe, «a people are just what they did. Their culture is their behaviour, fossilized, and that is what the culture name connotes.» E nés de perguntar: e que entender por comportamento? Sem dtivida esse duradouro intervir no meio ambiente, as marcas deixadas (por um individuo?, ndéo, por um grupo que estandardizou e legitimou em si 0 individual) que podem e devem ser lidas em termos de psiquismo e biologia, na instancia que preludia o social. Propus-me explorar noutro sitio! o jogo das culturas (isto é: dos grandes grupos fésseis do comportamento humano), como Childe 0 entendeu, néo longe de Morgan, Engels e Marx, e a subtil relagéo estabelecida entre o singular e o plural. Ou, se quisermos, entre o singular simples e o singular colectivo. N&o queria terminar, porém, sem recordar uma prescrigéo de Childe, para a qual se recomenda a atencdo do leitor eventual- mente interessado. Para fazer uma raspadeira D, apanhe-se um nticleo de pedra (1) durante a lua cheia (2) depois de jejuar o dia inteiro (3) dirija-se-lhe com delicadeza «palavras. de poder» (4) bata-se-lhe com um martelo de pedra (5) besuntado com o sangue de um rato sacrificado. Mas atencao, leitor, a sua raspadeira D assim obtida, mesmo que fossem estes os ritos do cacador musteriense, esta ainda @ sempre no universo tao cheio de diferenca que é 0 seu, e os milhares de anos que os separam nao traduzem, por si sds, um milésimo dessa inultrapassdvel clivagem, aparentemente au- sente, como outras, do registo arqueolégico. Lisboa, Outono de 1975 Victor dos Santos Gongalves ' Nas Origens da Sociedade, a publicar nesta mesma colecgao. PREFACIO técnica arqueolégica tem sido exposta com lucidez e mesmo de forma vivida em varios manuais recentes. Atkin- son, Cookson, Kenyon, Crawford e Wheeler explicaram admi- ravelmente como os arquedlogos podem identificar, recuperar, registar e conservar dados para a historia. Os métodos e teorias usados na classificagéo de tais dados, historicamente perspecti- vados, nao foram nunca téo compreensiva e sistematicamente explicados em quaisquer outros livros ingleses actuais. Ainda agora, para interpretar.e mesmo reconhecer os seus proprios dados, os arquedlogos sao forcgados a fazer certas suposi¢ées, embora estas sejam raramente formuladas de forma explicita; elaboraram categorias distintas para a sua classificacao; e, na verdade, empregam—nem sempre consistentemente — todo um conjunto de vocdbulos correntes em sentidos especiticos, altamente invulgares. Desde 1946 acostumei-me, ano sim ano nao, a dedicar uma série de conferéncias aos principios da clas- sificagéo arqueolégica, 4 actual terminologia e implicitos con- ceitos interpretativos. O presente livro 6 baseado nessas con- feréncias. A sua finalidade 6 explicar as palavras as quais os arquedlo- gos profissionais, como eu, atribuem signiticados técnicos, as hipéteses metédicas que invocamos e os postulados subjacentes aos nossos métodos. A exposi¢do nao pode deixar de ser critica; inconsisténcias de nomenclatura e da pratica séo muito notorias 27 V. GORDON CHILDE e demasiado confusas para serem ignoradas. Tentei sugerir algumas emendas, mas ndo fago teng¢éo de as adoptar nem espero que os meus colegas o fagam. Abstive-me, portanto, de propor qualquer sistema idealmente Iégico de classificacaéo e de terminologia. Logo que o leitor perceba o verdadeiro significado dos termos correntes, reconheceré quéo confusos e ambiguos eles podem ser e dar-lhes-4 o devido desconto. Extrai quase todos os meus exemplos da arqueologia pré-historica, arqueolo- gia néo secundada por textos, porque os conceitos e métodos arqueolégicos mais especiticos foram justamente elaborados para este ramo. Mas estes conceitos e métodos podem ser apli- cados —e proveitosamente — em todos os ramos da arqueolo- gia. Os meus colegas que trabalham com documentos escritos, e com dados contidos em textos escritos, podem muitas vezes intercalar os laboriosos processos s6 vdlidos para os que estu- dam Pré-Historia. Apesar de tudo, até.ao século XVI, a historia da ciéncia aplicada tem de ser baseada quase exclusivamente nos dados arqueolégicos, e para o reconhecimento e classifi- cacao de processos e instrumentos tais como parafusos e gan- chos, as técnicas dos que estudam a Pré-Historia precisam de ser invocadas muitas vezes. Se romanistas e medievalistas pu- dessem ser persuadidos a adoptar as técnicas e categorias elaboradas por periodos anteriores, muitos problemas da Histéria poderiam ser resolvidos. A arqueologia 6 sé uma. Os conceitos aqui discutidos sao aplicdveis a todos os seus ramos. V. GORDON CHILDE Marco de 1955 CAPITULO UM Do que trata a Arqueologia? arqueologia estuda todas as mudangas do mundo mate- rial que s&o devidas @ acgéo humana — naturalmente, apenas quando sobrevivem. O registo arqueolégico é constitufdo pelos resultados fossilizados da acgaéo humana, ca- bendo ao arqueélogo reconstituir essa acgdo e indo tao longe quanto possivel para recuperar os pensamentos que ela ex- pressa. Se o conseguir, 0 arquedlogo torna-se um historiador. A finalidade deste livro 6, por conseguinte, explicar como os arquedlogos pdem em ordem os seus dados para formar um registo e como eles podem tentar interpreté-los como materia- lizagdes concretas de pensamentos. Entre os resultados sobreviventes do comportamento humano os mais familiares séo, evidentemente, as coisas que os homens criaram ou destruiram e que podem ser chamadas artefactos. Isto abrange, por um lado, instrumentos, armas, objectos de adorno pessoal, enfeites, estatuetas e, por outro, casas de habi- tacdo, templos, castelos, canais, timulos, minas. E conveniente dividir os artefactos em duas classes: objectos e monumentos. Os primeiros s&o portéteis e podem ser transportados, para estudo, para museus ou laboratérios. Os monumentos, devido a impossibilidade da sua transferéncia, tem de ser estudados no préprio lugar. Mas nem todos os dados arqueolégicos perten- cem a uma ou outra destas classes, nem podem ser de maneira alguma chamados artefactos. Uma concha mediterranica, nao 29 V. GORDON CHILDE modificada pelo homem, encontrada na caverna de um cagca- dor de renas na Franca Central, néo pode ser considerada um artefacto. Mas a sua presenga na Franca Central, algumas cente- nas de milhas para l4 do seu habitat natural, 6 o resultado de uma acgéo humana, consequentemente um dado arqueolégico, Porque as conchas nao voam e nenhum agente natural conhecido traria a concha do molusco do golfo de Lido para o vale do Vezére, que desemboca na bajia da Biscaia. Portanto, o seu trans- porte é um fenémeno arqueolégico significativo. Um cadaver inumado, deitado sobre o lado esquerdo, e virado para o sul, 6 0 resultado de uma acc&o humana, mas nao pode ser chamado artefacto. Uma casa, na antiga aldeia da Idade do Bronze de Buchau, era duas vezeg maior que as restantes e de construgao mais elaborada. Tais relagdes entre monumentos ou objectos séo muito significativas como fendmeno arqueolégico de que se podem tirar deducées histéricas, mas nao so em si monumentos ou objectos. As ligagdes dos monumentos e objec- tos com 0 ambiente humano também podem ser dados arqueolé- gicos; O local de fixagao, em relagdo aos bons lugares de pesca, terrenos de facil cultivo ou portos abrigados, pode dar uma indi- cagao decisiva quanto as actividades e economia dos colonos. Um ambiente natural é portanto um incentivo e um limite a acc&o humana. Ao mesmo tempo a acgao do homem pode por si s6 afectar profundamente o ambiente, exterminando alguns ani- mais e introduzindo outros, derrubando florestas e transformando estepes cobertas de erva em campos Uteis. Estas mudangas séo fundamentalmente o resultado da accéo humana e nao podem usualmente ser definidas por técnicas arqueolégicas normais, mas s6 com a ajuda de métodos estabelecidos pelas ciéncias naturais — botanica, zoologia, climatologia e geologia. E a sua ajuda precisa, também, de ser invocada para determinar a nao modificagéo do ambiente, o qual sem a intervengéo humana sofreu grandes mudangas durante o periodo da existéncia do homem sobre a Terra. A importancia, para a arqueologia, destes fenémenos, que precisam de ser estudados por outras discipli- nas, foi reconhecido na Universidade de Londres com a criagéo 30 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO do Departamento do Ambiente Arqueolégico — um precedente seguido por outras universidades em Inglaterra e no continente. A viséo do arquedélogo nao pode ser limitada pelo tempo. A porca de parafuso que caiu do meu carro esta manha em Haverstoch Hill, a lata de sardinha que enterrei depois do almogo, assim como a cratera deixada por uma bomba alema, so dados arqueolégicos tal como a folha de /oureiro quebrada e deitada fora por um cacador de renas solutrense. Grande parte do material arqueolégico é terrivelmente parecido com os trés primeiros exemplos. Se nés nao estudamos tais coisas 6 porque temos fontes de informagéo mais completas. A luz disto, nem todos os acontecimentos que eu menciono poderao merecer a sua incluséo numa histéria séria. Mas quando uma chuva de bombas de hidrogénio destruir os arquivos da Europa e da Amé- rica do Norte, um arquedlogo fuegino, em 5555, pode ficar redu- zido a esta espécie de «lixo» ao querer reconstituir a hist6ria do que hoje chamamos Inglaterra. Esté claro que ele nao poderd identificar o professor ‘Childe como condutor do carro donde a porca de parafuso caiu, nem como aquele que enterrou a lata de sardinhas em Esher Common. Na realidade os arquedlogos s6 lidam com abstracgées, aquilo a que chamamos «tipos». Nos podemos admitir como um tipo nao exactamente «porca de para- fuso», mas s6 um especificado de porca de parafuso. Contudo, para nés, todas as porcas de parafusos respondendo a uma espe- cificagaéo sao as mesmas, séo exemplos do tipo. Os arquedlogos nao estao interessados nas diferencas entre porcas de parafuso individuais, do tipo especifico — nem 0 leitor. S6 por si, os restos mencionados néo significariam mais para um estudante do ano 7000 do que para um do ano 2000. Eles s6 podem adauirir signi- ficado em conjunto com outros fragmentos da mesma espécie. Sem melhores técnicas que os meus contemporaneos, o arqued- logo do ano 7000 podia ler nestes restos como em documentos ilustrativos e saber a espécie de vejculos utilizados nas estra- das, 4 volta das grandes cidades, os hdbitos de limpeza de alguns dos seus cidadaos, etc. Estas sao as espécies de coisas nas quais os arqueélogos, a 31 V. GORDON CHILDE semelhanga dos historiadores —alids, como historiadores —, estéo interessados — acgdes e pensamentos. E simplesmente porque eles sao o resultado do comportamento humano, e dai expressarem 0 seu pensamento, que os arquedélogos coleccionam ansiosamente, medem e registam escrupulosamente e classifi- cam sistematicamente restos de velharias e buracos no chao. Isto distingue a arqueologia da filatelia, a colecgéo de objectos arqueolégicos da colecgao de caixas de rapé. Coleccionadores de selos ou de caixas podem estar tao desejosos de acumular arti- gos como ser minuciosos na sua descrigao e cientificos na sua classificagéo. Mas o contetdo das suas coleccées 6 avaliado principalmente pelos préprios artigos; o seu valor 6 determinado pelas suas verdadeiras qualidades e pela escassez do artigo. A investigagao do arquedlogo sé 6 avaliada como uma indicacgéo para qualquer coisa mais — a actividade e mentalidade dos seus criadores e utentes. Quase da mesma maneira, a aproximacéo do arquedlogo pode ser contrastada com a do connoisseur e historiador de arte. Os objectivos deste Ultimo sao, evidente- mente, os dados arqueolégicos como expressées do pensamento humano, mas eles s&o principalmente julgados pela sua beleza intrinseca. Além disso, um trabalho de arte — pintura, escultura, construcéo — é apreciado sé pelo seu valor préprio, sem que se tenha em vista o lugar onde foi encontrado. O valor de um objecto arqueolégico, a extenséo da resposta que pode dar a hist6ria, depende principalmente do seu contexto. Uma porca de parafuso isolada nao 6 um objecto belo e s6 dificilmente sera uma raridade. S6 porque foi encontrada envolvida numa camada de alcatrao, e porque porcas de parafuso do mesmo tipo seréo encontradas em contextos ainda mais significativos — por vezes associadas a fragmentos de automdveis —, podem revelar propé- sitos humanos. Poucos documentos arqueolégicos sao belos e informativos em si. Mas a maioria pertence a tipos encontrados em contextos — com, dentro ou contendo outros objectos — que dao a indicagao da sua fungao e do que significavam para aqueles que os fizeram e usaram. Finalmente, um objecto de arte 6 indi- vidual e Unico; os dados arqueolégicos s&o tipos abstractos. 32 PARA UMA RECUPERACAO DO PASSADO Esta claro que qualquer produto feito 4 mao nao é realmente Gnico. Obviamente duas igrejas goticas ou dois castelos norman- dos nao sao idénticos, e uma observacao mais profunda revelard diferengas comparaveis, se bem que menos conspicuas, entre duas ferraduras forjadas em Little Puddleton em 1863 ou duas pontas de seta do nivel campaniforme em Maiden Castle. Nao obstante, os membros individuais de cada uma destas quatro associagées exibem certas caracteristicas comuns, repetidas em ambos e até em todos os membros da classe, 0 que 6 a razio da designagéo comum. Os arquedlogos consideram os fenédmenos quase exclusivamente como membros de uma classe ou, como eles dizem, exemplos de um tipo. Eles ignoram as peculiaridades acidentais ou intencionais que de facto distin- guem cada espécimen. Os arquedlogos vao apurando distingées e intensificando a discriminagaéo para que as coisas, uma vez juntas num grupo representando um s6 tipo, sejam divididas num numero cres- cente de tipos. Como o numero de tipos discriminados aumenta, cada um vai-se tornando mais concreto, definido por um numero cada vez maior de caracteres distintos. Mas um dado arqueolé- gico como tal mantém-se uma abstracgao, exemplo de um tipo. N&o pode nunca atingir a concretizacéo da individualidade e continua um objecto de estudo arqueoldégico. A criagdo unica, o resultado de um facto nunca repetido nem imitado, cairia através da rede arqueolégica classificadora fugindo a sua interpretagdo, a no ser que fosse condicionada por qualquer circunstancia externa — uma descrigao escrita contemporanea ou uma inscri- ¢ao explicativa. Poderia entdo tornar-se um «objecto de arte»; os criticos de arte lidam com criagdes Unicas de génios — eles tratam portanto com escultores, pintores, gravadores e arqui- tectos cujos nomes s&o geralmente conhecidos ou cujas per- sonalidades, pelo menos, séo reputadamente expressas nas suas criagdes. Como o historiador politico, militar ou eclesidstico, o. historiador de arte visa recuperar os pensamentos e as acgdes 33 V. GORDON CHILDE de agentes individuais. Um arquedlogo, como tal, ndo pode com- petir com o historiador. Como arquedélogo, ele esta limitado a um mundo de abstracgdes, e os seus agentes sao também abs- tracgdes. Contudo, insistimos, a arqueologia lida com os resul- tados das accdes humanas, com a materializagao dos pensamen- tos e propésitos humanos. Quais? Quem s&o os actores? Sem duvida as «sociedades» — grupos de individuos inspirados por propdsitos e necessidades comuns e guiados por uma tradicéo comum. A arqueologia estuda realmente os resultados do comporta- mento humano, n&o tanto a acgao instintiva especifica do Homo sapiens — isso seria um assunto para a zoologia—, mas os padrées de comportamento aprendidos e individualizantes das sociedades humanas. Como animais, os homens séo omnivoros; aquilo que cada individuo desfrutar 6 demarcado de uma maneira notavel pelos gostos e preconceitos adquiridos pela sua socie- dade — os seus familiares mais velhos e companheiros. As res- postas a outros impulsos naturais, tais como a defecagéo, sao ainda em maior escala reguladas pelas convengées sociais. Distintamente, 0 comportamento humano 6 ainda mais social. Como diz Emile Durkheim', «o sistema de sinais que eu uso para expressar 0s meus pensamentos, o sistema monetério com que pago as minhas dividas, os instrumentos e a prdtica do meu negécio, operam independentemente do uso que fago deles... N&o escolhemos a forma das nossas casas nem o corte dos nossos fatos: s&o-nos ambos igualmente impostos pelo uso social». O homem nao nasceu equipado com orgaos para assegurar a sua alimentagao, para evitar o perigo, para manter a tempera- tura do corpo, nem com nenhum instinto especial para remediar estas deficiéncias. O éxito bioldgico do homem na luta pela ‘ E. Durkheim, Les Regles de la Méthode Sociologique, p. 6. 34 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO sobrevivéncia foi conseguido pela sua capacidade em fazer ins- trumentos, vestudrio, casas, abreviando todo o contetdo do re- gisto arqueolégico. Esta capacidade foi aprendida através da experiéncia e do erro, mas em quase todos os casos actuais deri- vou da sociedade através da tradigdo social acumulada. O pro- gresso da técnica humana e o sucesso bioldgico teriam sido impossiveis se cada geracaéo tivesse de aprender por si s6 a agir nas circunsténcias—a esmagadora maioria—em que o instinto nao servisse de guia. Gragas aos distintos meios de comunicagaéo e com a ajuda de simbolos convencionais, cada geracao foi capaz de aproveitar a experiéncia das geragdes ante- riores, cada individuo. a experiéncia dos membros da sua socie- dade, passada e presente. Uma crianga nao sabe instintivamente como usar ou fazer um instrumento; tem de ser ensinada pelos seus pais, pela sociedade onde nasceu. Desde a primeira estan- dardizagéo do machado-de-mao abbevilense, ha meio milhaéo de anos, as sociedades determinaram que instrumento criar, como fazé-lo, e o melhor material necessdrio para o produzir. Geracdo apds geracao, todos tém seguido a determinacao da sociedade e reproduzido em milhares de exemplos o modelo socialmente aprovado. O tipo arqueolédgico é justamente isso. O fenémeno arqueolégico pode ser agrupado em tipos porque resulta de experiéncias privadas, de erros e tentativas individuais que foram comunicados a outros membros de uma sociedade e por eles adoptados e desenvolvidos. Claro que cada tipo comecou por um acto criador individual, como resultado de uma descoberta ou invengdo. S6 se tornou um dado arqueolégico porque a descoberta ou invengio foi adop- tada e imitada por qualquer sociedade. Uma invengdo muito brilhante, que nao seja repetida e aceite, nado sera reconhecida pelo arquedlogo e por essa razdo fica sem interesse histérico. Por outro lado, o mais admirével invento de um Watt ou de um Edison 6, no fim de contas, um progresso relativamente insignifi- cante num complexo de conhecidas invengées adoptadas e acu- 35 V. GORDON CHILDE muladas através da tradigao social ao longo de geracgdes sem fim. A maquina a vapor, Watt acrescentou a valvula distribuidora e 0 excéntrico; ele herdou da sua prépria sociedade e das anteriores nado s6 a maquina Newcome, mas também os tornos mecanicos de precisdo, 0 aco, o ferro, uma série imensa de descobertas e invengées consideradas no seu tempo tao revoluciondrias como a sua. Ao mesmo tempo péde dispor de uma série de 6ptimos mecAnicos e operdrios para executarem as suas ordens, de um sistema de distribuigéo para montagem dos materiais em bruto necessérios e de um mercado assegurado para as suas mdqui- nas, numa palavra, das condigées precisas para a realizagéo da sua ideia. A restrigaéo do arquedlogo aos tipos abstractos nao 6 uma desvantagem téo grande como pode parecer, porque os tipos s&o criagées individuais que foram aprovadas e adoptadas por uma sociedade. O arquedlogo é entéo um historiador, mas um historiador da cultura. Os seus agentes nao sao individuos con- cretos, mas grupos abstractos de pessoas que comungam de uma tradigaéo para a qual todos contribufram. A comunidade de tradigéo impde, a todos os membros da sociedade em questao, um padréo comum de comportamento. Isto resulta na produgao de tipos estandardizados que, sejam eles abstractos, rituais fune- bres ou restos de refeigdes, a arqueologia pode identificar. Na verdade, o dado arqueolégico sé é um tipo porque resulta do padréo de comportamento duma Unica sociedade. E também um tipo porque é o exemplo de um todo, a expressdo e materia- lizag&éo concreta de um conceito. Este conceito é—ou era— objectivo, enquanto existe — ou existia — nao no cérebro do seu criador mas numa sociedade que transcende todos os seus mem- bros. Ao identificar tipos, o arquedlogo esta, entao, na verdade, a «fazer actuar em si» 0 pensamento do agente (como Colling- wood insiste que um historiador deve) — mas nao 0 pensamento subjectivo individual que pode ser deformado na sua expressdo por incompeténcia ou descuido; 6 0 pensamento objectivo man- tido @ realizado por uma sociedade humana que é assim recaptu- rado e ordenado. 36 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO O mais grave defeito do registo arqueolégico é que muitos dos tipos assim produzidos nao sobrevivem. Nao 6 correcto dizer-se que 0 comportamento n&o fossiliza. Grande parte do comportamento adquirido é expresso em acgées que, directa ou indirectamente, deixam uma marca durdvel no mundo material, tao susceptivel de estudo cientifico e interpretagéo como ossa- das de organismos extintos. Mas assim como a carne, 0 sangue e os tendées do morto nao fossilizaram, também uma parte ainda maior do comportamento humano desapareceu para sempre do registo arqueoldgico.’Salvo em circunstancias excepcionais, da- qui a alguns séculos toda a matéria organica teré desaparecido completamente. Ossos, marfim, chifres e conchas podem, na verdade, durar mais e, até mesmo, fossilizar e tornarem-se quase impereciveis. No entanto, os ossos situados em terrenos Acidos podem dissolver-se completamente ao fim de cinquenta anos, a nao ser que sejam previamente calcinados (o que pre- serva a substancia mas também a deforma). Outras matérias — carne, tendées, couro, madeira, plantas ou fibras animais — dificilmente sobrevivem; assim, rarissimos fabricos téxteis resistiram ao mesmo. Nao s6 construgdes de madeira e telhados de colmo ou casca de 4rvore, mas também vasilhas de madeira das primeiras casas inglesas, maquinas feitas de madeira na Idade Média, e barcos, veiculos e charruas, ainda anteriores e feitos s6 desse material, sao conhecidos por um numero infinitesimal de exemplares ou por dedugdes de fontes indirectas, incluindo pinturas e descrigdes. Um rapido olhar sobre qualquer colecgao etnografica das regides polares, da América do Norte, das ilhas do Pacffico ou da Africa revelaraé logo o tremendo vazio no registo assim feito. Nao sé alimentos, artigos de vestudrio, casas e equipamento pratico, mas também expressoes de arte ritual desvaneceram-se pura e simplesmente. Em circunstancias excepcionais, preservadas em gelo, de- baixo de elevagdes tumulares no Alto Altai, na lama himida dos lagos alpinos, na terra turfosa dos lodagais do Norte da Europa, na areia estéril do deserto egipcio ou na baia de Tarim, ou no velho pogo que nunca secou, artigos intactos de pele, como 37 V. GORDON CHILDE sapatos, tapetes e outros téxteis, carrogas completas e diversos produtos de carpintaria e marcenaria, servem para avaliarmos quanto perdemos, mas também ajudam a preencher o vazio; porque, com as devidas precaugées, a lico de tais achados pode ser generalizada e usada para completar a imagem de outras situagdes onde tipos similares em matérias durdveis consegui- ram sobreviver. Igualmente podem acontecer casos menos excepcionais em que, por exemplo, um artigo téxtil impregnado de cobre e sais de ferro tenha sido preservado na lamina de um machado ou de um punhal. Trabalhos de madeira, se bem que danificados, deixam muitas vezes tracgos notdrios. Escavagées com técnicas aperfeigoadas podem identificar os buracos no terreno onde estiveram as estacas e mesmo a marca de vigas mestras e, assim, recuperar o plano de uma construgéo de ma- deira, mesmo que esta J4 no exista. Apesar de a madeira enter- rada no chao poder apodrecer, o terreno que fica no mesmo lugar difere em cor do restante terreno em volta. Observando tais diferencas, Watelin e Wooley foram capazes de identificar as rodas e grande parte da estrutura dos carros fiinebres que trans- portaram para o tmulo os antigos reis de Kish e Ur. Em 1951, escavadores chineses conseguiram recuperar, através de técni- cas mais aperfeigoadas, os contornos de quadrigas com rodas de muitos raios dos séculos III ou IV a.C. Além destes casos excepcionais, 0 registo arqueolégico con- siste a maioria das vezes em objectos de pedra desgastada, pedacos de metal corrofdo, fragmentos de ceramica indestru- tivel, montes de terra disformes e buracos amorfos no chao — laminas de machados sem cabo, rocas sem contrapeso, dobra- digas sem portas, quartos sem mobilia. Mas, com as devidas precaugées, estes vazios podem em parte ser preenchidos por dedugdes de etnografia comparativa, assim como pelos felizes achados acima mencionados. Por fim, objectos regra geral trabalhados em madeira, com formas préprias para gravar, podem ser copiados em ceramica ou metal e entdéo as cépias mostram o que o gravador podia fazer. Assim, ao falecido Sir Ellis Minns foi possivel reconhecer a 38 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO inspiragao do trabalho de madeira do estilo Scythian Beast, mesmo antes de a madeira gelada de Pazyryk ter documentado os modelos. Imitagées similares, de cabedal e téxteis, sao reconhe- civeis. Sir John Myres chamou «skeumérficos» a todos os objec- tos com o formato préprio doutro. Muitas vezes a ornamentagéo de um pote parece desenhada para realgar a sua semelhanga com uma abobora, com uma vasilha de cabedal ou qualquer outra espécie de recipiente. Tais padrdes podem chamar-se «skeumé6r- ficos». O «skeumorfismo» dé-nos muitas vezes a visdo répida de actividades produtivas e artisticas das quais directamente nao sobrevivem indicios. Cabaga e cerémica skeumérfica Dentro das drasticas limitagées citadas, os arquedlogos, atra- vés de observagées do mundo externo, tentam decifrar comporta- mentos estandardizados, aprovados pelas sociedades anteriores, e descobrir alguma coisa dos destinos dessas sociedades, em particular a sua contribuigaéo para a tradigéo cultural que her- damos. Embora o seu objectivo seja deste modo humanistico e his- t6rico, os seus dados sao mais facilmente comparaéveis aqueles estudados pelas ciéncias naturais como a zoologia e a bota- nica. Portanto, os métodos arqueolégicos aproximam-se dos das 39 V. GORDON CHILDE ciéncias naturais e indutivas. Em primeiro lugar, o dado tem de ser classificado. A classificagdo arqueolégica desenvolve-se em trés fases distintas; podemos dizer que possui trés dimensées, de maneira a qualquer fendmeno arqueolégico poder ser locali- zado por trés coordenadas. A primeira base da classificacio é Vasos de bronze (1, 3, 5, 7) e cépias de ceramica (2, 4, 6, 8) funcional: qual foi 0 propésito do acto que produziu o dado ou o seu uso? Na préatica isto significaria «para que serve 0 objecto?». De acordo com isto, vamos situar 0 nosso dado em grupos fun- cionais; juntamos, por exemplo, todos os cutelos, punhais, lami- nas, brincos, campos, habitagdes, celeiros, castelos, timulos e assim por diante. Depois, em cada grupo funcional, reconhece- 40 PARA UMA RECUPERAGAO DO PASSADO mos ainda um vasto numero de tipos diferentes. Uma explicagao para as diferengas observadas pode ser a idade. Instrumentos e armas tornam-se normalmente mais eficientes conforme a expe- riéncia gradualmente acumulada; a repeti¢ao de um padrdo tradi- cional por artistas que esqueceram o seu significado e perderam a inspirac4o original, resulta numa alteragao progressiva; notoria- mente, as modas mudam com o tempo, portanto nés reclassifi- camos todas as coleccées e inventarios sobre uma base crono- légica. Todos os cutelos atribuidos a um dado periodo arqueol6- gico seréo agora agrupados com os punhais, laminas, etc., pertencentes ao mesmo periodo. Mas dentro de cada grupo cro- nolégico assim formado nés podemos ainda observar diferentes tipos de cutelos, punhais, timulos, etc. Podemos entao observar, consultando os relatérios das escavagées, que um dado tipo de cutelo é muitas vezes encontrado com um dado tipo de punhal ou lamina num dado tipo de sepultura, e assim por diante. A luz des- tas «associagées» tornamos a classificar os contetidos dos nos- sos grupos cronoldgicos, numa base coroldégica'. E recordamos, através de observagées feitas nos Balcds ou noutros pontos da Europa menos industrializados, para nao falar das pouco evolui- das regides da Africa ou do Pacifico, como as modas no vestir, na arquitectura doméstica, em cerimdnias funebres e praticas religiosas, e mesmo nos métodos de trabalhar madeira e técnicas de luta, divergem entre diferentes povos, isto 6, entre grupos unidos por tradigées comuns, mas igualmente distintos, de comu- nidades contemporaneas e vizinhas. Os métodos adoptados para averiguar cada uma das trés coordenadas — funcional, cronolégica e corolégica — sao discu- tidos em capitulos separados. Mas é conveniente antecipar um ponto comum. Na prética dé-se o caso de tipos particulares de cutelos, punhais, laminas e ornamentos pessoais serem siste- 1 Palavra «feia» que fui buscar ao austriaco. Cf. O. Menghin, Weltges- chischte der Steinzeit, Viena, 1931. Nunca a vi usada em inglés, mas nao conhego melhor equivalente. MM

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