Você está na página 1de 3

O ESTADO PATRIARCAL

E se porventura Marx tiver entendido mal a verdadeira natureza do

poder do Estado? Pode ser que o Estado não seja primordialmente expressão política de uma
divisão econômica na sociedade, mas uma organização que sustenta uma divisão ainda mais
profunda entre as pessoas: a divisão entre homens e mulheres, e a subordinação das mulheres
aos homens? Afinal, há na obra de Marx uma reveladora desatenção para com as mulheres
(ainda que seu colaborador e cultor Frederick Engels estive-se mais consciente da necessidade
de discutir a situação das mulheres). De acordo com Catharine MacKinnon:

Max achava ridículo discutir valor e classe como se fossem dados naturais. Ele criticava
acerbamente as teorias que discutiam classe como se brotasse espontaneamente e operasse
mecanicamente (e, embora harmoniosamente em acordo com leis naturais. Ele identificava
tais teorias como justificativas para um status quo injusto. Mas é essa exatamente a maneira
como discutia o gênero. Mesmo quando as mulheres produziam bens de consumo como
trabalhadoras assalariadas, Marx escreveu sobre elas primordialmente como mães, donas de
casa e integrantes do sexo fraco. Sua obra tem em comum com a teoria liberal a concepção de
que as mulheres pertencem naturalmente aos lugares onde são socialmente colocadas.
(1989:13)

Sem entrar nos detalhes de sua crítica a Marx, esta seção vai ado-

tar MacKinnon no que se refere à crítica do Estado liberal como defen-

sor do poder patriarcal. Como jurista praticante, acadêmica e ativista,

MackKinnon tem produzido obras sobre o Estado que se tornaram muito

influentes em questionar os ideais liberais da igualdade e direitos abs-

tratos. Como veremos, um dos exemplos que ela usa para problematizar

esses ideais é a legislação “paradoxal” relativa à pornografia.

A teoria liberal assim como os Estados democráticos liberais valorizam muito a igualdade,
especialmente no tratamento igual perante a lei, Em termos simples, um dos pilhares da
ideologia liberal é que a lei precisa tratar a todos com igualdade. É esse pilar da ideologia
liberal que MackKinnon submete à crítica a partir de uma perspectiva feminista. Ela enfatiza o
que considera uma contradição no cerne da legislação liberal do sexo. Em suas próprias
palavras:

Socialmente se distingue uma mulher de um homem pela diferença entre um e outro, mas só
se reconhece que a mulher está sendo discriminada à base do sexo quando antes se disse que
ela é como o homem... A igualdade sexual torna-se uma contradição de termos, algo como um
oxímoro (1989:216).

Ao tentar levar adiante uma alegação de tratamento desigual com base em discriminação
sexual, a mulher precisa provar de que forma ela recebeu tratamento distinto pelo fato de ser
mulher, mas só quando convidada a considerar se um homem “na mesma situação” teria sido
recompensado ou punido da mesma forma, por exemplo, em termos de remuneração ou
promoção. De acordo com MacKinnon, essa exigência na verdade nega as diferenças entre os
sexos, as quais se presume tenham inicialmente provocado o problema. Ela prossegue
argumentando que essa exigência contraditória pressupõe um entendimento confuso de
sexo/gênero no âmbito da lei. As estruturas legais reconhecem algumas diferenças entre os
sexos como naturais e fixas, e outras, como produto da sociedade e, por isso, potencialmente
arbitrárias. Presume-se que a legislação sobre igualdade de sexo deva remover as últimas, uma
vez que essa diferenciação arbitrária equivaleria a “discriminação sexual”. Mas chamar isso de
“discriminação sexual” causa confusão, e essa confusão frequentemente resulta em que as
causas das mulheres sejam vistas como causas que não são matéria de lei porque, em última
análise, têm a ver com a “diferença sexual natural”. Em outras palavras, a discriminação, em
termos de papéis de gênero socialmente construídos, muitas vezes é vista como um caso de
diferença sexual natural que a lei não pode abarcar ou vedar. Dessa maneira, as tensões no
interior de estruturas legais liberais relativas ao relacionamento entre sexo e gênero servem
para promover o poder inerentemente patriarcal do sistema legal.

Mas o que dizer da enxurrada de políticas de “ação afirmativa” que foram introduzidas na
legislação liberal? Não é assim que os Estados liberais têm consagrado proteção legal para a
“diferença”, em vez de simples reprise legal de “discriminação”? Em todos os setores da vida
pública e em muitas áreas dos negócios privados, as diferenças de gênero supostamente estão
sendo ativamente promovidas e celebradas. MacKinnon, porém, sustenta que a afirmação
legal da diferença não resolve radicalmente a contradição que suporta os argumentos de
igualdade legal. Em suas próprias palavras:

|O gênero sequer contaria como diferença, poderia não significar distinção


epistemologicamente, não fossem as consequências para o poder social. Distinções de corpo e
mente ou conduta são apontadas como causa antes que efeito, sem entender que são, de
maneira tão profunda, efeitos mais do que causa, que até o apontá-las constitui um efeito.
Primeiro vem desigualdade; a diferença vem depois... sendo assim, um discurso e uma lei
acerca do gênero que se concentram na diferença servem como ideologia para neutralizar,
racionalizar e encobrir disparidades de poder, até mesmo quando aparentam criticá-las ou
problematizá-las. A diferença é a luva de veludo a recobrir o punho de ferro da dominação

Em suma, idealizar as diferenças de gênero é reforçar as estruturas de desigualdade de gênero


que conduzem à ideia de que os gêneros são para começar “diferentes. ” Para MacKinnon, as
correntes da legislação liberal, tanto as da “igualdade” como as da “diferença, ” ocultam a
realidade de que “o homem é a medida de todas as coisas. ” Ou a “mulher” é medida em
relação ao homem e contada como igual ou a “mulher” é medida em relação ao homem e
contada como diferente. Os enfoques igualdade/diferença proporcionam “duas maneiras de a
lei confrontar as mulheres comum padrão masculino e de chamar isso igualdade sexual”

Algum defensor do Estado liberal bem que poderia responder a MackKinnon nesta linha: ao
identificar as impropriedades do sistema liberal assim como está, MacKinnon evidencia como
as igualdades formais (baseadas seja em igualdade, seja em diferença) precisam ser
repensadas a fim de promover igualdade real, substancial na vida social e política. A melhor
maneira de fazê-lo é apelar para a doutrina liberal dos direitos humanos: afinal de contas, usar
tal discurso tem sido de importância fundamental para provocar mudanças positivas nos
sistemas legais de democracias liberais, há muitos séculos. Ocorre, porém, que MacKinnon
afirma que o discurso dos direitos é tão problemático como a legislação da igualdade dos
sexos.

Ecoando Marx, ela argumenta que “ser uma pessoa, um indivíduo abstrato com direitos
abstratos, pode ser um conceito burguês, mas o seu conteúdo é masculino” (1989: 229). De
maneira semelhante à sua argumentação sobre a igualdade sexual, MacKinnon assevera que
“o direito da mulher” ou é o direito de ser como um homem, ou o direito de ser diferente do
homem; seja como for, o conceito de “homem” persiste como medida e, por isso, determina o
conteúdo da ideia formal de direitos. Conjugando essas questões, “a igualdade abstrata jamais
incluiu aqueles direitos de que as mulheres enquanto mulheres mais necessitam e nunca
receberam” (1989: 229). Afora isso, os direitos liberais são atribuídos aos indivíduos enquanto
indivíduos. Por consequência, esses direitos não reconhecem que o dano que se inflige a
indivíduos, dano contra o qual cabeira aos direitos protegê-los, muitas vezes tem caráter
estrutural mais do que individual. Por exemplo, o dano que se inflige às mulheres em Estados
liberais democráticos (além de outros) reside não apenas em indivíduos com mentalidades
patriarcais, mas também no próprio sistema patriarcal. Assim sendo, reivindicar um direito em
contexto liberal é aceitar que o dano seja definido de maneira “individualizada, atomística,
linear, exclusiva, isolada, especificamente semelhante a crime - em suma, de maneira
positivista” (1989:208). Entretanto, o mal cometido contra as mulheres, sustenta MacKinnon,
nem sempre é desse tipo, porque suas fontes, razões e expressões remontam às estruturas
patriarcais de vida de todos os dias. 1sso é indicativo de mais um problema que há na defesa
dos direitos liberais. Os direitos naturais são tipicamente concebidos negativamente: isto

é, os indivíduos têm direitos contra os braços abarcantes do Estado. Isso

Você também pode gostar