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vamente esbatido com o decurso do tempo. Sé em época avangada do Baixo Império surgir4 algo que se pode apro- ximar da instituiggo hodierna e cuja regulamentagdo seré parcialmente adoptada pelos glosadores para configurarem a regulamentaeao da qual saiu o notério da nossa época, Na Roma Clissica e de acordo com a doutrina domi- nante, a escrituracgo dos actos privados competia a trés categorias de pessoas: os aotariri simples escribas, muitas ‘vezes escravos, cujos conhecimentos de processos de escrita répida (estenografia) exam utilizados pelos domini para a redacgao de actos orais que cumpria registar em forma escrita; os tabelliones (ou tabularii), escribas de profissao cujo mister era a redacgéo de contratos estipulados pelo seu publico; os scribae (ou curiales), dependentes das curias municipais, aos quais competia, nomeadamente, a elabo- ragio do cadastro predial, Nos seus registos se descreviam o3 «prédios, valor, carga fiscal a que estavam sujeitos, o nome do proprietario c, consequentemente, a transferéncia da pro- priedade imobilidria» conforme o ensinado vg. por Giry ¢ Leicht, cuja ligdo se perfilha nesta matéria. A estes scribae se dirigiam as partes para fazer trans- crever os contratos de alienagao entre elas celebrados — de onde resultou que acabasse por pertencer-lhes a redacgao dos documentos respectivos. Apés a queda do Império do Ocidente, verificou-se mesmo, nas terras onde se implantou a dominagao bizantina, um aumento da importancia de tais escribas, denominados entio scribas civitatis ou tabelliones civitatis, que passaram a assegurar-se «como privilégion a redacedo> dos actos referidos, Agrupados em corpos profis- sionais intentaram mesmo a transmissiio hereditria do cargo. © facto de as convengdes serem redigidas pot oficiais Piblicos deu-lhes um prestigio especial, separando-se desde 352, entdo os documentos em instrumenta privata ¢ instrumenta publica, sem que esta distinggo imporiasse, a0 que parece, por si o reconhecimento de autenticidade dos documentos. Segundo se admite, estes 86 adquiriram tal autoridade depois de insinuados nos registos pablicos, Quanto aos notarii também se podem detectar algumas linhas de transformagao: organizaram-se igualmente em colegia, alargando as suas fungies. De simples estendgrafos ou técnicos de oscritas répidas, passaram a exercer fungdcs de secretdrios dos principes, de magistrados e oficiais, de senhores, assim como de escrivées dos tribunais. Junto de muitos senhores ¢ principes coube-Ihes a escrituragao dos documentos sob a orientagiio do chanceler e mesmo a redac- g40 do respectivo teor, o que contribuiu, de certo, para a sua confusdo com os tabelides. Nao obstante, na ctria Pontificia © seu papel foi o de simples escritores materiais do docu- mento, portanto, sob a orientagao do chanceler. As implicagdes de qualidade de oficial pablico atribuida aos notérios na Itflia bizantina acentuar-se-iam com 0 chamado renascimento do direito romano!, sobretudo no tocante 4 redacg&o dos documentos relativos aos actos privados, Enguanto na Italia do Norte, antes do séc. XII af do documento assentava «nas formalidades externas reali- zadas pelas partes, na Itélia romanica o seu valor dependia essencialmente da autenticidade que lhe outorgava 0 noté- tio, considerado como sucessor do oficial da céiria muni- cipal do Baixo Império», Bra a intervenggo deste que dava valor ao documento, de acordo ainda com Leicht. Por isso, Muitas vezes, as partes ndo requerem mesmo ao tabelio que Ihes elabore um documento especifico, contentando-se 2 Cf. supra, n.o*73 es, 353 com a anotagdo nos registos deste da estipulagao que ccle- braram entre elas. E a chamada imbreviatura, que «poderé servir, quando as partes 0 queiram, para Ihes ser passado um. documento completo, o instrumentum». Por influéncia da Itélia romanizada e com a difusio do direito romano, operou-se em Franga, no século XII, uma transformagao no modo de redigir os contratos ¢ de conce- ber os documentos. Nas Gélias, 0 perecimento da organi- zagio romana tinha levado & redaceZo de documentos por simples particulares que sabiam ler, nfo representando a mengao de 0 acto haver sido escrito por um lector, scriba ou notarius senfo uma simples mengio translaticia do formuldrio romano (completio). S6 com Carlos Magno se haverd restabelecido uma organizaciio notarial, admitindo- -se como propésito do imperador a outorga de carécter ptiblico aos respectivos documentos. Seja como for, tais intentos nao vingarem e do século IX ao século XI nao se pode falar em documentos notariais com f€ auténtica. Quanto se deu ao documento foi apenas o prestigio da forma escrita, uma certa veneragdo pela solenidade um tanto misteriosa das formulas. Além da reprodugao do for- mulario romano, o tinico vestigio da tradigZo romana do instrumentum publico, dotado de uma fé especifica, residia na pratica de os particulares fazerem redigir os seus actos nas chancelarias dos senhores ¢ bispos -— que desta forma thes emprestavam a propria auctoritas, tornando 0 docu- mento como que auténtico. A influéncia romana antes descrita levou, porém, a que na Provenga e no Languedoc — e depois em toda a zona do direito escrito — se concedesse aos notarios o privilégio de outorgarem as escrituras, por eles lavradas de acordo com um formulario solenc, o caracter de escrituras auténticas. 354 Havia como que unia delegagao da autoridade piblica. Por isso, se viu na faculdade de criar notérios uma transferéncia de poder dentro de uma certa jurisdig&o. Dai reivindicarem © Papa ¢ o imperador a faculdade de todos os paises, em virtude da jurisdicao que pretendiam sobre o mundo! e terem conferido mesmo a terceitos 0 poder de erigir notérios apostélicos ¢ imperiais (Q.s.s.s., HAP., ‘VIM; Giry, 925, II, 824 et pas.) Tal foi a transformagdo que levou ao ressurgir da de- signagio romana — e A outorga em Franca da designacdi de tabeliao aos notérios. * oe 93. Tradigio documental alto-medieval na Espanha. Recepgiio do direito notarial — Como se passaram as coisas entre n6s? Para o compréender € preciso ter em conta as épocas antecedentes da formagao do reino. No periodo visigético nfo se exigia para a validade das escrituras relativas a actos entre privados intervengito de oficial piblico. Admite-se, porém, a existéncia de uma classe profissional de scriptores que assumin o papel de escriturar os negécios privados, em fungdo de o sistema legal estar dominado por uma preferéncia pela escritura- Jidade. Esses escribas tinham um estatuto semelhante ao dos seus homélogos longobardos: niio s6 as partes podiam celebrar validamente o acto mediante a intervengao de testemunhas e sob forma oral, sem recurso a qualquer documento, como a validade e eficécia deste dependiam de requisitos formais que nao podiam ser substituidos pela intervengiio do escriba ou redactor. Quer 0 documento fos- 1. Cir infra, mo 123 ¢98.€ 133.58. 355 se constitutivo, quer probatério ou de notitia, nao ficava revestido de f€ publica como a outorgada pelo notério moderno. A forga probatéria do documento resultava de nele se reunirem os requisitos legais do Cédigo Visigético, nomeadamente quanto 4 intervengdo de testemunhas. S6é em relacdo a resolugdes ou leis do imperante, constantes de traslados ou alegadas publicamente, se dispunha necesséria para a respectiva autenticidade a interveng&o do notario piiblico ou do notério do rei — podendo assim separar-se estas duas categorias da dos notérios particulares de Magnates e corporagées. O termo tabellio parece haver-se perdido, ([6.). Durante os séculos iniciais da reconquista o sistema nao se alterou fundamentalmente: consoante a lig&o da historio- grafia, nas Astirias, Galiza e Ledo 0 scriptor era por norma um ciérigo que encarava o documento apenas como «perito de uma técnica documental constante, sobretudo, em opera- gGes de redacedo e escrituragdo», motivo de muitas vezes se conservar anénimo, de assinar como simples testemunha ou de se nomear como mero autor material; nflo se encontram vestigios da insinuagdo romana; e a prética de celebrar e con- firmar os actos perante magistrados é mais tardia, Daqui o uso indiferenciado das designagGes scriba, notarius, scriptor. As grandes corporagdes (mosteiros, conventos...) € 0s mais importantes magnates possuem notérios proprios, tal como o monarca. O quadro sé se alteraré com a recepgao do direito romano, para 0 que teré contribuido a via francesa, conforme tem sido posto em destaque, nomcadamente para certas regides da Peninsula, como a Catalunha. Isso € particularmente importante no respeitante aos esquemas negociais, visto os formulérios terem sido relativamente homogéneos, correspondendo a elaborag&o documental a 356 uma categoria profissional comum as diferentes monarquias peninsulares. 94. Regulamentago de Afonso X — E na obra legisla- tiva — doutrinal de Afonso X (1252-1284), permeada de romanismo justinianeu, como vimos antes!, que se encontra definida uma teoria completa das fungdes do notario en- quanto outorgante de £6 ptiblica 20s documentos. Existente ja no Fuero Real ¢ no Espéculo, ela alcanga um superior desenvolvimento nas Partidas estabelecendo-se ai o con- ceito de notariado, os requisitos pessoais do notério e a teoria do instramento pablico, por forma que nio tornou dificil a critica estabelecer as respectivas fontes. Elas foram a Ars Notariae, de Salatiele, e o Speculum? de Guilherme Durante, obras que se incluem nos quadros dos ius com- mune e na tradigao do romanismo bolonhés. Neste, tomado no 6 na expressfo da escola da Glosa — a que Bono (1979, I, 167) reportou 0 quadro seguinte — mas também dos juristas posteriores — como ilustramos com alguns nomes —, a fungao notarial pode apresentar-se nestes termos: a) O notério — tabellio, tabularius — € uma publica per- sona, desempenhando — como o iudex— um officium ad publicam utilitatem pertinens: 0 de instrumenta conficere, entendendo-se por tal 0 exercicio do ius acta conficiendi (que no direito romano pertence a certas entidades, autoriza- das a manter registos oficiais onde se transcreviam os actos juridicos com vista a conferit-lhes forca probatoria especial). Assim 0 ensinaram, verbi gratia, Alberico de Rosate (m. séc. XIV), Bartolo (m. 1356), Zabarella (m. 1417), 1.Cfk. supra, 87.2, Chr, supra, n2 77. 357 b) A fungdo do tabelido compreende tanto a «autori- zagion dos documentos judiciais como extrajudiciais (ver, por todos, Bertachinus de Fermo — m. 1500). c) O documento tabeliénico como objecto de uma fungdo — officiwm — tem uma forma de produgdo regulamenta- da e, por isso, exige ser «in publicam formam confectum». A intervengao das testemunhas € um requisito «ad sole- nitatem». O tabeliio como responsfvel pela auctoritas do documento ha-de ser acreditado sem precisar da asse- veragiio de testemunhas, quando sc impugne a autenticidade do instramento!. Também aqui se trata de liglo comum, podendo comprovar-se, nomeadamente, nas obras de Bar- tolo, Alberico de Rosate e Bertachinus de Fermo, Tal é a concepgiio que prevaleceré, igualmente, no direito portugués, por inspirago do romanismo bolonhés, con- forme o sustentado por Gama Barros. Reportando-se ao facto de aos notérios caber em Franga, por influéncia romanica, a possibilidade «como delegados directos do poder piblico» de «sé pela aposigao do seu sinal con- ferirem» aos documentos «efeitos de prova e forga exe- cut6ria», escreveu o grande historiador: «A divulgagio do direito de Justiniano produziu em Portugal um resultado andlogo; e a0 passo que na Franga, na prépria regio considerada de direito escrito, o titulo de tabellio, do tempo do Império Romano, readquiriu o uso de que tinha decai- do, mas empregado indiferentemente com o de ‘notério’, ‘em Portugal o termo tabelido radicou-se na pratica pro- fundamente, com exclusio, pouco menos de geral, de outro ‘qualquer pata designar oficio em tudo idéntico», (HAP., VII, 1, Confrontar os at. 369,* ¢ 371.° do Cédigo Civil, 358 363). Sem dissentirmos desta ligo no que toca & im- portincia da influéncia do ius romanum, parece-nos que se deve aditar-Ihe a do direito canénico, que tragou uma larga disciplina do notariado, entre nés divulgada por Alvaro Pais (cfr. vg. SPE., V, 184, 224, 292, 312, 386, 388, 390...). 95. Legislaco portuguesa, Disciplina da profissio e interesses régios — A mesma documentago assevera- dora de quanto se referiu consente verificar que o nome de notério ficou reservado quase em exclusivo para os notd- rios apostélicos, conforme o ensinado por Gama Barros, podendo, todavia, referirem-se alguns textos de excepeao regra: «tabeliam notairo ppublico por el rey», constitui uma formula da época. Com base na mesma documentagao utili- zada j& pelo grande historiador, devem ainda distinguir-se 08 tabelides das notas ou do pago dos das audiéncias ou judiciais, embora algumas pessoas reunissem as duas quali- dades. Os tiltimos correspondiam aos escriviies dos juizos respectivos, carecendo de auctoritas propria. Exerciam 0 cargo como subordinados do juiz. Era a interven¢o deste que conferia a f€ piblica ao documento, Os do pago rece- biam tal designagao por deverem ter pago para 0 exercicio das fungSes. Com nenhum destes cargos se deve confundir 0 notério da corte, cujo cargo correspondia geralmente ao do escrivao: o seu «oficio era estranho ao do tabelido das notas», ensinou também Gama Barros’, parecendo-nos de duvidar se este quadro se deve ter por exaustivo. Com efeito, sfo miltiplos os escrivaes que encontramos com fungdes diver- sificadas e cujos estatutos importaria determinar com rigor”, 1. Veinffa,a 143, 2. V. infra a 169, 170, b), 171 € 194. 359 sendo 0 valor dos seus documentos parificado a escrituras pliblicas (OA., 1H, 65, Numa outra classificagtio separam-se os notérios gerais dos das cidades, vilas ou lugares. Estes tiltimos tinham Jurisdigao privativa a tais povoados; os primeiros a todo oreino, a uma comarca ou a tetras diferentes entre si, embora do mesmo senhor, Haverd ainda aqui a consignar os notérios apostélicos e os imperiais (j4 antes referidos). Dos tltimos encontramos apenas uma intervencio entre nés, no tempo de D. Dinis. Este, quando soube do facto, impbs. Ihe cobro por motivos ligados falta de iurisdictio imperii' relativamente a Portugal (EA., 423; Gav., III, 2708), A Igreja manteve, todavia, pre- tensdo de nomear notdrios, que a Coroa contrariou ou, pelo menos, lhes circunscreveu a competéncia, As classificagdes antecedentes pressupdem a existéncia de uma organizagao do tabeliado. A tal respeito cumpre salientar — com Gama Barros, HAP., VIII, 368 — que ia no reinado de D. Afonso II (1211-1223) existiam oficiais publicos cuja intervengio nos instrumentos de direito privado dava a esses actos a natureza de escritos auténti- cos — até af 0 notério é um scriptor. Por documentago posterior a 1271, sabe-se que impendia sobre os notérios a obrigacdo de residirem no pago do concelho respectivo, aludindo mesmo alguns diplomas as pensOes a serem por eles percebidas, Fontes da mesma época mostram-nos a existéncia de tabelides interinos. Numerosos instrumen- tos datados de 1290 — e pertencentes portanto «ao perio- do mais obscuro da histéria do tabeliado em Portugal», conforme escreveu Gama Barros, que os nao utilizou — 1 V. infra n? 133, 360 atestam-nos néo sé haver notérios generalizadamente instituidos nas vilas do reino como a quantia a pagar por cada um deles a0 monarca — em conformidade com a importancia da localidade e 0 nimero de confrades ai existentes — para poder exercer 0 oficio. (Gav., verbi gratia, X1.2,12; 2.38; 2.41; 2.42; 2.43; 2.44; 2.45; XV.15.20...). E possivel, também, gue se tenha elaborado, ainda no século XIII, uma tabela de emolumentos e no séc. XIV encontramos j4, em Coimbra, uma confraria de tabelifes. Foi orientagdo da coroa colocar 0 notariado na sua de- pendéncia. Isso, que ressalta j4 dos factos anteriormente referidos, pode melhor aperceber-se em alguns mais. D. Dinis no s6 impés aos tabelides a obrigagdo de presta- rem juramento na chancelaria da corte, como reivindicou mesmo, em oposigio as pretensdes do clero, 0 direito de os nomear para funcionarem nas pr6prias audiéncias eclesiais. ‘Tendo-se levantado a tal propésito uma controvérsia entre oreie o bispo de Lisboa, «(...) foi dada sentenga pelos Juizes que ElRey os pozesse; e ElRey Dom Donis mandou esto veer em Bolonha a Leterados, e acharom que os devia poer (...)» (OA. 11,7.57.). D. Afonso IV, segundo um documento publicado por Caetano do Amaral, «Ouve sobre esto seu concelho com Doutores, e com Letrados e com outros; @ achou que de Direito os senhores das ditas Cidades e Villas e Lugares nom podiam poor Tabellioens em esses lugares; e que Elle tam solamente os podia poer em seus Reinos (...) € diz que como quer que esto podia fazer, ouve por bem de se sofrer disto em quanto sd mercee fosse, e a quem fosse sd mercee» (Mem., V, 179-180). Nao prescindia, porém, o soberano de fazer examiner pelo chanceler os que fossem designados pelos senhores aos quais transigia o direito de 361 nomeagdo, O mesmo monarca determinou néio possufrem validade as escrituras feitas pelos clérigos das terras portu- guesas pertencentes A diocese de Tui perante os notérios desta cidade — opondo-se assim as pretensdes do bispo que thes determinara a obrigagao de unicamente se socorre- rem daqueles tabelizies conforme consta de um documento divulgado por ‘Gama Barros (VIII, 416). Além disso, reeditou nas Cortes de Santarém de 1331, ¢ a pedido dos POvos, a obrigagao de os tabelides prestarem juramento de chancelaria (art.° 44) (CP., DA. IV). Por seu turno, D. Fernando declarou, com a lei de 13 de Dezembro de 1375, pertenga ao rei o direito «de acrescentar ou fazer tabellidaes» (OA., 11.63.13.). Em conformidade com a reivindicagao anterior, deter- minou D. Femando a revogagio de qualquer privilégio de instituir notétios, excepto se concedido aos infantes, condes € outros magnates, como o almirante!, ao Masteiro de Alco- baga? e as ordens itares (conservaram, alias, também igual direito certas cidades, como Lisboa) (OA., 11.63.13; EA., 426). Mas a ressalva fernandina abrangia apenas 0 direito de escolher as pessoas que deveriam submeter-se a exame de aptidao na corte. O provimento era de compe- téncia régia (OA., II, 63.13. ¢ 14; ZA.; 426). Uma vez aprovados, os candidatos exerciam o oficio em nome do rei ¢ lavravam os traslados também por sua auto- ridade, sem embargo de as receitas ¢ emolumentos respe- ctivos caberem aos senhores designantes, diferentemente do que sucedia em relagio aos demais notirios, cujos rédi- tos pertenciam ao monarea. Para quem praticasse 0 oficio sem autorizagao régia — cra a morte. Os senhores das terras 1. Cin inva. a? 1712. Vuinfra n? 186, 362 perderiam a jurisdigao, Tratava-se de pesadas penas revela- doras do empenhamento posto pela Coroa na sua politica, Alias, embora, 0 direito canénico Proibisse a venda do oficio de notério, que deveria ser outorgado liberalmente, no taro os monarcas exi contrapartidas onerosas pela concessao (Alvaro Pais, SR., I, 276 e SPE., V, 293, bem como Ch, DPI., 167 ¢ 307). Consonantemente com quanto descrevemos a Coroa Procurou também definir os deveres funcionais dos tabe- lides. Importa, a este respeito, fazer referéncia a I -gislagdo emanada de D, Dinis a D, Fernando. A lei de 12 de Janeiro de 1305 — modemamente publi- cada por Gama Barros — regulameatou a disciplina dos tabelides, estabelecendo os emolumentos Tespectivos e ordenando que as notas fossem langadas nos livros em vez de se conservarem em cédulas avulsas. Os instrumentos deveriam ser lavrados pelas notas c lidos as partes e por estas confirmados. As infracg6es seriam punidas com a morte. Mais minuciosamente dispde o regimento de 15 de Ja- neiro do mesmo ano. Fruto de agravos apresentados contra os tabelifies, ai se estatuiu, nomeadamente (cfr. HAP; EA. 359), que estes deveriam escrever em livro de papel as notas das escrituras ou instrumentos, para no se perderem; registar em livro de coiro as escrituras dos contratos; escre- ver e ler as notas perante as testemunhas; chamar testemu- nhas que identificassem os intervenientes desconhecidos; datar ¢ localizar os documentos; nomear os intervenientes; referir 0 objecto do negécio — tudo por extenso. Dispuniha também o regimento quanto as formalidades dos diferentes documentos, 4 forma de autenticagao, verbi gratia quando se tratasse de instrumentos partidos por ABC; mandava 363 ainda ler as escrituras as partes antes de estas lhes screm entregues (LLP, 63). Pécil se toma descortinar neste con- junto de preceitos a influéncia das teorizagdes notariais por influxo da romanfstica bolonhesa, conforme o anotado pela historiografia juridica, e da disciplina canénica, que em vérios pontos coincidiu ndo s6 com disposigdes do regi- mento de 15 de Janeiro, mas também com subsequente legislagdo régia (oft. .g. SPE., 382, 386, 390 et pas.), O regimento de 1340, em grande parte simples confir- magio ou adaptagao do regimento de 1305 — e portanto menos interessante relativamente a estruturagdo do nota- riado —- versava também sobre os notérios judiciais e insti- tuia a fiscalizagao dos notrios pelos corregedores, Sem a pretensio de tragarem um estatuto genérico da fungao, varias outras leis disciplinaram a actividade dos nott- rios. D. Dinis, em 1305, determinou as formalidades a observar na elaboragio dos documentos, cominando pena de morte para o notério infractor (LLP, 205, EA., 434). 0 mesmo monarca, também nesse ano, impés aos notarios, sob pena de crime de falsidade, o dever de fazerem as partes jurar antes de eles elaborarem escrituras de compra e venda, a fim de se evitar simulagdes em favor dos clérigos, (LLP, 204). D. Pedro cominou aos tabelides, também sob pena de morte, a obrigacao de garantirem com fiadores 0 cum- primento dos deveres fiscais a que estavam adstritos. D. Fer nando determinou em 12 de Setembro de 1379 que os direitos © obrigagées de valor excedente a cinco libras nao se pudes- sem alegar nem provar em jufzo sendo por escritura publica lavrada por tabelio ou por carta com selo do rei — ou outro auténtico. O instrumento seria lavrado no livro do tabelifio e a nota devia ser lida as partes, que a assinariam, sendo substi- tufdas por testemunhas quando 0 nfo soubessem fazer, A falta 364 de registo no livro das notas dava lugar a indemnizagdo pelo tabelido dos prejuizos causados as partes (OA., III. 64. 9.; HAP). Com todas estas medidas ficava a instituigdo notarial absorvida no ambito da Coroa — quer no tocante & sua qua- lidade funcional, quer as normas burocriticas e processuais a serem observadas na execugio do oficio. Ja o mesmo no suceden no plano material, onde a liberdade de elaboragio permaneceu como vestigio do anterior estado de coisas. Com efeito, aqui a criagiio dos esquemas manteve-se no quadro de um direito de técnicos, alheio ou independente de qualquer promulgagao politica. Notou Schupfer que a primitiva formagiio do pensamento juridico nos tempos barbaros se fez através de formulérios — como aconteceu em Roma, onde os primeiros gérmenes da ciéncia do direito brotaram da elaboragio de férmulas. Na Idade Média eles foram elaborados a partir dos antece- dentes romanos, quase sempre por eclesifsticos ou, quando assim n&o sucedia, por quem possuisse também a cultura roméanica correspondente aos quadros basicos do saber -medieval, 0 trivium (gramitica, retérica e dialéctica) — sem que as necessérias adaptagdes as circunstancias dos novos tempos quebrassem homogeneidade de espirito e estilo correspondentes a uma comunidade de origem. Destacou-o a historiografia moderna ao aproximar entre si os esquemas negociais correspondentes 4 Alta Idade Média e todos com os precedentes romanos do Baixo Império. Contribuiu, aliés, para a manutengo do cardcter translaticio dos formu- litios o préprio sistema de ensino. O mestre ditava os dife- entes esquemas (dictare, enunciare) escolhidos por si ou por si claborados. O discfpulo recolhia esse ditado (notare, scribere, titulare) até adquirir os conhecimentos, suficientes 365 para realizar a propria redacgfio ou, mais modestamente, poder reproduzir um esquema alheio, seleccionando, entre os miiltiplos médulos transmitidos, aquele considerado apto para documentar o intento pratico das partes. Sem prejuizo de um certo saber teético tanto de direito romano como canénico, atestado entre nds j4 no século XHI pela propriedade de livros respectivos existentes nas suas bibliotecas, resulta de quanto fica dito corresponder a pre- paracdo dos notdrios a um conhecimento largamente empi- rico relativo 20 esquema material dos negécios, por um lado; Por outro, aos conhecimentos literérios inerentes A cultura basica medieval. A este quadro corresponde o juramento feito ao rei por Estévao Gongalves, tabelido geral do Algarve (1386), de que escreveria bem e direitamente as cartas e esctituras. A ele corresponde também e principalmente a disposi¢ao das OA. que impunha ao chanceler verificar se os tabelides «escrepvem bem e som perteencentes para os officios» (1, 2. 10.). O exame a que D. Fernando submetia os candidatos a notério e que jé estava em pratica no ano de 1321, a avaliar pela noticia consagrada numa carta régia de alguns tabelides que tinham vindo A corte para «a eisami- nacom assi como eu mandei aos outros iabelioens do meu senhorio», versaria a0 menos essencialmente sobre as maté- tias que referimos. Nos finais do séc. XV ainda se encontram, porém, dentincias contra os tabelides, por nao saberem ler ou cuja escrita era ininteligivel. Nao era exigido o conhecimento do jatim (OA., II. 94.13.). 96. Da «ars dictaminis» a «ars notariae» — A este respeito havera que aludir ao facto de os ensinamentos do trivium se terem consubstanciado, no tocante a redacefo 366 [ | dos documentos, na ars dictandi, «disciplina que trata da técnica de redacgao (dictare), conforme as regras (gramati- cais, l6gicas e estilisticas) da composigdo textual (dicta- men); dirigida de inicio redacgio epistolar (epistolae), amplia rapidamente 0 seu campo, incluindo a redaceao documental, primeiro dos documentos de carficter pétblico (privilegia), ¢ posteriormente também os de carActer priva- do (instrumenta), A finalidade da ars dictandi era estabe- lecer a base te6rica para se obter a correcefio gramatical, a precisio légica ¢ propriedade estilistica dos seripta, isto 6, para «gramatice regulas non excedere», a «légica discer- nere verum a falson, e «rethorice eloquentia serva- re» — conforme a sintese que a este respcito tragou Bono (1979, I, 200). Embora a ars dictaminis fosse em si mesma alheia ao dircito, o facto de os documentos a elaborar pelos dictactores se reportarem materialmente a actos juridi- cos levou a incluir nas summae de dictaminis, como parte prtica, colecgdes de formulas juridicas de proveniéncia notarial. A mesma circunsténcia impulsionou os dictatores a0 conhecimento teérico do dircito. Com a recepeio das doutrinas juridicas a arte de bem escrever (ars dictaminis) veio a aproximat-se consideravel- mente do notariado propriamente dito. Baseado este, na sua expressio inicial, sobre o empirismo das formulas € os preceitos da redacgio pertencentes aquela, como vimos, também cla incorporou progressivamente conhecimentos de direito. Nas obras de indole pratica os escritores juridi- cos foram dando lugar a exposigdes para uso dos noté- rios — que vieram a ser recebidas pelos mestres do ensino notarial. Nas aulas estes expunham assim, ao lado dos ensinamentos concemnentes especificamente aos diferentes tipos de formularios, os ditames da gramitica da ret6rica, 367 ministrados em conjunto com rudimentos de direito, princi- palmente de direito processual. Deve-se tal particularidade ao facto de terem sido os processualistas que mais trata- ram aspectos notariais, como consequéncia de aos notérios haverem cabido funges adjuvantes dos juizes. Surgindo como duas correntes da mesma fonte cujos cursos se tivessem processado por leitos diferentes — segundo a imagem de Masi —, a ars dictaminis e 0 notariado acaba- iam, em grande parte ¢ como consequéncia da adico comum do elemento juridico, por confluir num tnico veio. Ai a pres- sao das circunstancias criaria um tipo de actividade literétia bem definido, com esbatimento dos caracteres hibridos resultantes da multiplicidade de origens por nés consignada. O trafico juridico, resultante da renovagdo econémica e cultural, especialmente nas grandes cidades, tornara, com efeito e pouco a pouco, inadequados os esquemas antigos, herdados dos tempos bdrbaros, A inventio de novas fér- mulas impunha uma reflexZo especifica necessariamente transcendente do empirismo anterior ¢ do carécter mais ou menos ocasional das investigagées processualisticas. Tra- tou-se de um movimento lento, nao tendo havido natural- mente uma substituiggo do anterior estado de coisas sendo Ge forma progressiva. Iniciado em Bolonha nos fins do primeiro quartel do século XIII, s6 nos inicios do século XIV lograria af uma expresso material dominante — hayen- do depois irradiado para as restantes cidades de It4lia e para além dela, Entre nés vimos j4 qual 0 niicleo essencial do exame dos notérios naquela centiria, O novo quadro adquiriu expresso formal com o apa- recimento da nomenclatura ars notariae, que sabemos utili- zada cm 1221 e de si reveladora de uma especificidade do notariado em relagao as diferentes artes medievais, verbi 368 gratia por confronto com o dictamen. A sua individualida- de material encontra-se expressa nas obras de Rainerio de Perusia (1213), Salatiele (1210-1280) e Rolandino (1207- 1301) —- ¢ é, portanto, sensivelmente contemporanea do moyimento que culminaria na Glosa (cerca de 1260). Foi Rainerio quem pela primeira vez afirmou a substan- tividade do notariado. Fé-lo na sua Ars Notariae (1224- 1234), entendendo-a nao s6 como «scientia» da formu- lagao, conforme a lei (ordinatio) dos ‘negotia — contractus, indicia, ultimae voluntates — e proclamando-a discipli- na te6rica (doctrina) — até enti falecente por imperitia docentium — mas ainda como pratica. De acordo com este caput scholae, a scientia notarial envolvia o estudo de iure da escrituragiio dos negécios (figuras) e 0 estudo pratico (de facti) in cartis, ou seja, o exame de formulirios. Por isso, se denominou correntemente «scientiae artis notariae» 0 com- plemento juridico teorético da simples prética documental (ars notariae, s.s.), conforme também frisa moderamente Bono, cuja sintese seguimos de perto (1979, I, 210). Deu Salatiele um passo mais, De acordo com ele impor- tava A ars notariae sobretudo 0 incorpéreo e nfo 0 cor- péreo, devendo transitar-se da entidade material a imaterial, que tanto vale dizer do instrumentum (ou documento) & forma instrumenti (esquema abstracto individualizado pela causa fungdo ou negotium). Daqui a passagem de uma reflexdo sobre uma realidade extrinseca ao vinculum iuris — 0 texto corpéreo — para este mesmo, considerado nos seus diversos elementos formativos (voluntas, fides, causa). Estava-se ja perante um entrevistar das concepgdes éticas como elemento rector das formulas — e¢ por forga elimi- nante da apeténcia nestas existente ¢ ditada pelo caracter ritual ¢ sacral outorgado por séculos de reveréncia para a 369 tejeicao de qualquer excepgio (consideragdo casuistica) ou modificagao. Era, simultanea e necessariamente, um atribuir a respectiva elaboragdo o papel de simples aplicar pratica- mente valores correspondentes 4 concepgao contempo- ranea de mundo. Nao admira assim ter a posterior voz de Rolandino declarado expressamente supor a arte nota- tial — «theorica et pratica» — uma consideragao filoséfica pela causa, pelo fundamento, pelos materiais que Ihe corres pondiam, considerando-a na sua intentio, utilitas et finis como parte da filosofia. Equivalia isso, aliés, a equiparé-la a0 direito, pois também os juristas o declaram filosofia (Q.5.8.8., v.8., Orlandeli e Vecchia, 1968, pas.). Nem admira. A obra de Rolandino estava permeada das correntes do romanismo bolonhés (como notou Nufiez Lago). Fechava-se, desta forma, 0 caminho especulativo ini- ciado pela consideragio tedrica da prética notarial feita por Rainerio a luz dos métodos ¢ da cultura das escolas juridi- cas ¢ continuado por Salatiel, que, intentando adequar a pritica ¢ a teoria do notariado a ciéncia do direito, chegara a Proclamar a ars notariae como particula do direito civil. A luz de quanto fica descrito se ha-de compreender a critica de Rolandino 20 movimento reformador da pratica notarial do seu tempo. Se a época exigia novos esquemas formularios adequados aos «mores novos et subtiliores», bom seria nao os tomar como superiores aos antigos. O seu mérito era a adequago as exigéncias contemporaneas, néo Possuindo um valor absoluto. A construgdo teérica da ars noiariae nfo determinou obviamente uma modificagao total dos esquemas nego- ciais. Eles resultaram sobretudo do novo contexto social. Possibilitaram-na, porém, dando-Ihe nomeadamente a fun- damentagdo necessatia. Foi ela, também, que consentiu 370 outorgar as férmulas a elasticidade necesséria Pata acom- Panhar no futuro as modificagdes sobrevindas, A ela deve igualmente a conjugago do notariado com a doutrina juri- dica, de forma a aquele fomentar e acompanhar a renovago ue se operaria com os comentadores, conduzindo, verbi gratia, 4 inclusio das ars notariae nas escoles juridicas, Como assinalémos. Sem o movimento doutrinétio que ficou descrito, dificilmente 0 notariado Poderia ter permanecido como uma actividade prudencial, suprindo no campo das solugdes materiais a escassez da actividade legislativa, Importa, com efeito, nao perder de vista ter 0 direito nota- rial evolufdo para 14 e com independéncia dos ditames estatais no que conceme a fixagaio dos processos técnicos respectivos, nfio sendo raro a posterior promulgaco politi- ca de solugées antes consagradas translaticiamente pelos notérios. Referimo-nos aos chamados costumes notariais ou cldusulas de estilo que os notétios repetiam invariavel- mente nas escrituras como forma de assegurar a vontade das Partes. Tradutoras, em forma técnica, do intento destas face a generalizadas circunstincias da época, acabaram frequen- temente por serem tomadas como conaturais aos institutos respectivos, observadas por toda a parte e recebidas em consequéncia pelos legisladores. Por isso, o direito notarial pOde funcionar nos quadros do ius commune, sobrepondo-se 08 particularismos dos direitos nacionais — e constituir um dos elementos unificantes existentes na cultura da época, 97. Documentos de actos juridicos e seu valor como fonte de hist6ria do direito; caracter translaticio de muitas cliusulas; sobreposi¢do de varios extractos juri- dicos — Os documentos dos actos juridicos no sio em si 371 fontes do direito — mas fontes de histéria. A sua importin- cia resulta de eles nos revelarem no sO 0 operar de factores de produgao juridiea especificos ~~ os tabelidies ou noté- trios —, mas também a maneira como se projectaram na pré- tica as demais fontes, Sao o espelho daquilo que se chamou 0 direito vivo, permitindo apreciar a distincia que medeia entre as concepcoes das normas gerais e 0 acto concreto no qual elas se pretendem traduzir. Por isso, constituem © mais facil testemunho da sobreposigio ¢ 0 entrecruzar dos diferentes factos normativos coexistentes numa época e 0 elemento essencial para o apercebimento da aculturagio juridica. E neles que se surpreende quase sempre a suces- sao ¢ intercambio de estratos ou ordens juridicas. Para nao fugirmos do ambito do curso diremos que em muitos dos nossos documentos medievais se podem aperceber influéncias germanicas e influéncias romnicas. As circuns- tancias apontadas levam a uma heterogeneidade de termi- nologia, que nuns casos é em si contraditéria, noutros como epetidamente o notario, nfio tendo ao seu lidade de fixar os nomina dos formularios de maneira correcta, emprega em conjunto nomenclaturas de origem diversa, para assim cobrir as diferentes hipéteses que se Ihe figuravam. Isso pGe ao intérprete modemo pro- blemas de exegese dificil, arriscando-se ele ao cometimento de erros se partir a priori da existéncia de uma dogmatica rigorosa e invariavel. Permite-the, em compensagio, des- cobrir frequentemente as linhas de forga de estruturagaio de institutos © 0 prosseguimento de criagdo e adaptagdo de um direito efectivamente vigente, embora n&o promulgado © muitas vezes efectivo para além deste. Noutros termos: sio os documentos notariais uma fonte privilegiada para a apreensiio de como os diferentes factos normativos reagi- 372 ram entre si © quais os caminhos percorridos ¢ as transi- géncias aceites pelo direito erudito (romano-canénico) na sua implementag4o em detrimento do dircito tradicional, a0 qual as populagdes estavam aferradas. A este respeito se nao hé-de esquecer terem os notatios figurado entre os meios de divulgagao do ius commune. «A intervengao dos notérios — escrevem, a prop6sito Ourliac e Gazzaniga — 6 (...) um dos factos maiores da histéria social dos sécs. XIIT e XIV. Eles s&o os demi-savants, sempre. presentes entre as partes para dar uma forma romana ao respectivo pensa- mento (...). Eles fazem evoluir a pratica e constituem os agentes mais activos da romanizagdo» (1985, 76), Aqui como I4, Entio, de certo, como ja antes e depois. Tudo isto, naturalmente, para além de quanto o do- cumento nos transmite no conteddo da sua notitia, ou seja, ‘no aspecto substancial dos respectivos propésitos tomados com independéncia da expresso formal assumida peta técnica da redaccdo. BIBLIOGRAFIA — LLP; TT, Ti, Il e IV; CP. DA., IV; Ht aio de uma Bibliografia Critica do Notariado Portugués, Lisboa. 1924; JORGE DE ALARCAO, «Emolumentos do Tabelionado Medie- ‘val Portugués. Um Documento Inédito», Sep. da Rev. Port. de Hist., 1959; M. G, M. ALTEA, Scienze e Professione Legale nel Secolo X1, Milo, 1979; CAETANO DO AMARAL, Meméria V; ANTONIO J. DE AVILA, «Relatério sobre 0 Cadasiron, in Trés Relatérios sobre 0 Cadastro, Lisboa, 1963; RUI PINTO DE AZEVEDO, Introdugiio a Documentos Medievais Portugueses, Lisboa, 1958, I; GAMA BAR- ROS, HAP, VII; ANGELA G. 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Trata-se de um direito transcendente selativamente a esse grupo social, de cardcter pessoal e con- ‘fessional — mas cujo titulo de aplicaggo se identifica com ia régia? que permite a respectiva recepcao3, enquanto privilégio, dando-se a este termo o seu sentido cti- molégico e técnico. Como relativamente ao direito mugul- 1. Ci, vg. ina, n° 160 € 0 vol. comespondente aos Grupos Saclais e Conteido do Direito, nas partes relatives ao estatuto material dos judeus e as Normas de Con- 190, bem como o volume respeitante 20s Grupos Suciais ¢ ao nas pines relativas & comunidade judaica, 3. Of para o conczto supra, n° 85, 379 mano, a oposigao de religides levou a circunscrever-lhe a influéncia! e a impedir que fosse de outra maneira, inver- samente ao sucedido no tocante aos direitos canénico e romano, em relago aos quais houve © sentimento mais ou menos genérico de obrigatoriedade. diteito judaico é pessoal ¢ confessional — como disse- mos. O primeito aspecto permite-Ihe vigéncia tendencial- mente universal, seguindo o sujeito de direito para além de quaisquer fronteiras ¢ leva-o a abdicar da pretensio de reger todos quantos se encontram num determinado terri- torio. O segundo, liga-o a religifio, nfo s6 enquanto expli- cével apenas a partir de uma crenga, mas também por dela se nao diferenciar de forma clara, a0 menos nas origens. Falta-Ihe, assim, a autonomia c a especializagiio de fun- des que vamos encontrar no direito romano e em tantos aspectos do direito medieval. As normas religiosas e as juridicas entrelagam-se quando nao nos surgem indife- renciadas. Ilicito e pecado andam conjuntos. Nos tempos mais antigos os sacerdotes velavam tanto pelo piiblico, como pelo religioxo — e mesmo depois, quando se limi- taram a0 culto, os escribas e mestres so 0s sopherim (os homens do livro, ou seja da Biblia) que interpretam a lei, Por isso se Ihes chama também kakamim, os sdbios da lei, Coube-lhes ainda o titulo de rabi, ou grande, pelo re- conhecimento da respectiva auctoritas na interpretagio dela — acabando, em virtude de uma evolugio natural, © termo por designar aquele tido por Mestre, «Escribas e rabinos sio os verdadeiros regentes do povo judeu», ensinou Garcia-Gailo (1975, I, 337), como sintese de palavras das quais as nossas estiio proximas. LY, typane 41. 380 99. Fontes, A Thord — O direito judeu corresponde a lei revelada no Sinai por Deus a Moisés, Coube a este patriarca fixar a palavra divina. Ao descer do Sinai, Moisés chama Aario ¢ dé-lhe a conhecer a Lei — bem como os comenté- ios a esta— e a Revelaggo. Aardo fez. 0 mesmo com os sens filhos — ¢ assim sucessivamente. E a Thoré, a lei escrita, denominada usualmente Leis de Moisés ou Livros de Moisés. Na Biblia ela compreende cinco livros (Pentateuco), a saber: Génesis (a criagdo e a vida dos patriarcas), O Frodo (estadia no Egipto e volta a Canaan), Levitico (livro de pres- crigdes religiosas e culturais), Nuimeros (organizagio da forga material) e Deuiordmio (ou segunda publicagio da lei, complemento dos anteriores). A critica moderna tem atri- bufdo diversas datas a estes textos: «certas partes (...) remontariam a0 inicio do segundo milénio; a maior parte das outras teriam sido redigidas em periodos diferentes entre os séculos XII e V; a forma definitiva nfo dataria sendo de cerca de 450 anos antes de Cristo, Este problema de datagio continua muito controvertido» (Gilissen, 1986, 68) — assegurando firmemente a tradigZo judaica a sua atribuicdo a Moisés, Na lei mosaica compreendem-se matérias heterogé- neas — noticias relativas & otigem do mundo andam juntas com nogées medicinais, agricolas, técnicas... — sem que isso prejudique a formulagdo preceptiva. Referindo-se ao Declogo, contido no Exodo, escreve Gibert: «a precisio, a clareza e vivacidade destas leis no tém equivalente na hist6ria do direito» (1978, 169). Além desta parte da Biblia sao normalmente destacados como fontes jurfdicas: a) 0 Cédigo da Alianga (também parte do Exodo), no qual se encontram prescrig6es religiosas, regras de direito penal e respeitantes A reparagdo dos danos); b) Deutoronémio, 38L nova vers%o daquele Cédigo considerada por alguma histo- riografia uma codificagao de antigos costumes respeitantes 4 manutenco do monoteismo — que engloba disposigées de direito ptblico e familiar; c) Levitico, aonde, além de disposigdes rituais, se encontram preceitos sobre o matri- ménio e de direito penal. A lei escrita mosaica foi completada com novas revela- g®es de Deus aos Profetas, pelo que os chamados Livros dos Profetas (Neviim) sto adjuvantes daquela. Os demais livros da Biblia, Ketuvim (de natureza histérica, de indole literéria, moral, hagiogréfica ou religiosa), so intepretativos dos resiantes. Nao contém prescrigdes juridicas formais. A Thord constitui o fundamento do direito hebraico. Qualquer interpretagao se hé-de apoiar num versiculo, 100. Fontes (cont.), A Mischnd (ou repeticao) — A atengdo dedicada, durante séculos, pelos escribas 4 Biblia levou & formulagdo de um considerdvel corpo doutrindrio transmitido oralmente de pais para filhos e denominado «tradigdo dos pais» (toré sche baal pe), de caracter casuis- tico, literal, formalista. Através dela se faz a adaptagio da lei escrita as necessidades dos tempos sobrevindos, pela incorporago de novos costumes e tradigdes, num trabalho que j foi comparado ao dos juristas romanos contempora- neos. Esta lei oral, cujas origens, segundo a tradigtio judaica, Temontam aos tempos da lei escrita, sendo de cardcter in- terpretativo, comportava varias divergéncias e apresentava- -se, por isso, consentfinea a formagao de seitas. O seu pré- prio valor era objecto de polémica. Os saduceus rejeitavam 0 culto da tradigao, preconizando a observancia estrita ¢ literal da Thord. Os fariseus, ao contrario, consideram que 382 a adigao tinha «o mesmo valor que a Thord e, consequente- mente, devia prevalecer sobre ela em caso de contradicao, pois (...) a tradigio recolhe a revelacdio de Deus a Moisés, transmitida por este aos sacerdotes, sobre muitas questées nao reguladas por escrito na Thord; a observancia cstrita desta ‘tradigao’ que regula tudo, leva os fariseus a recusa- rem toda a influéncia externa e a serem ferranhamente conservadores ¢ tradicionalistas» (Garcia-Gallo, 1, 1975, 338), contastrando com os saduceus no tocante a aceitagio por estes de influéncias helénicas ¢ romanas em tudo que no contrariasse a lei, Por seu lado, Cristo denunciou repe- tidamente a oposigao da tradigfo a lei, a aberracéo de muitas das interpretagdes consagradas por aquela, inteira- mente literais e em contraste com 0 espirita — 0 mesmo fazendo S. Paulo, cuja ligdo seria reeditada pela posterior cultura crista!, A necessidade de preservar a tradig&o levow ao intento da sua fixagao escrita. Cerca de 130 depois de Cristo, o Rabi Ashiba tragou o plano de uma colectfinea que reco- Ihesse a jurisprudéncia desde Moisés. Realizou-o um outro rabino cminente, Juda, o Santo, iniciado na cultura grega e influenciado pela civilizaclo romana, Conseguida auto- rizagao do imperador Antonino Pio, celebrou-se um coneflio, a fim de recompilar as leis, bem como as deci- s6es dos mais importantes doutores, e decidir as contro- vérsias fundamentais. A recolha da tradigfo fixou-se no texto de Juda, o Santo, que «eclipsou todas as redacgdes» da lei oral. E a Mischnd (ou Duplicagio, visto a lei oral se apresentar como simples repetigao da lei escrita), livro este considcrado como «o primeiro cédigo completo das 1, Cir supra, n2 80. 383, leis israelitas», conforme escreveu Fernandez Espinar (1985, 228), nfo obstante constituir uma recolha «relativa- mente confusa de opinides dos rabinos sobre matérias iosas e divinas», sendo «a opinido das minorias mencionada a0 lado da maioria dos ‘sabios'» (Gilissen, 1988, 69). De um ponto de vista material a) a Thord; b) a tradigZo ou interpretagio oral; c) as providéncias regula- mentares resultantes das citcunstincias, representavam os seus elementos. 101. Fontes (cont.). A Guemard — 0 estudo ¢ dis- cussdo da Mischnd pelos escribas conduz A produgio de comentatios, interpretagdes e exposigbes, que por sua vez foram compiladas — & a Guemard — com duas vias aut6- nomas: os da escola de Tiberiades, na Palestina, coligidos pouco depois da fixago da Mischnd por Jud4, o Santo, atin- gindo a fixagdo em 370; os da escola de Sura, no Traque, que encontraram no rabi Ashi o primeiro colector, cerca de 367, e foram recolhidos até 500. 102, Idem. O Talmud e a tradig&o judaica — A Mischné © a Guemard formam o Talmud (isto 6, Estudo). Sendo a Mischnd una, a Guemard foi diversa (versio palestiniana, versio babil6nica), pelo que existe um Talmud duplo, sendo o de Babilénia o mais completo e o de maior difusiio. Dada a profusdo de matérias da Biblia 0 duplo comen- tario que delas se encontra no Zaimud é naturalmente heterdgeno: repetigdes e interpretagdes de textos biblicos, temas médicos, astrondmicos ¢ naturais, folcléricos e len- das (hagad4) compreendem-se nela ao lado de uma parte 384 perceptiva (religiosa ¢ juridica) — halachd. A historia de Israel reflecte-se nessa imensa e impressionante com- pilagdo que se diz ter correspondido ao trabalho de 5000 douiores ¢ que abrange nove séculos de pensamento. A sua valoragiio, que feita em termos muito dispares segundo os autores, apresenta-se na pena de Fernandez Espinar nos seguintes termos: «O Talmud € um imenso conjunto de pre- ceitos, doutrinas e opinides, que no compreendem menos de 12 volumes in folio e a que os doutores israelitas chama- ram o mar talmidico. Os seus preceitos inspiram-se num formalismo estreito e minucioso. A finura do raciocinio analitico leva a um casufsmo subtil. A moral talmidica compteende méximas rectas ¢ também abertagdes. Pos- tula a caridade com o préximo — mas o proximo, para o Talmud, € S60 judeu. Os demais homens so equipara- dos aos animais». Por seu turno Gallo assinala que a Bi- blia acaba por ficar num lugar secundério para os cultores do Talmud. Para os crentes 0 Talmud 6 um tepositério da. sua fé. Sendo o Talmud mais uma enciclopédia do que um cédigo, como ja se tem dito, nao faltaram, a partir da Idade Média, esforgos de compendiagao, A primeira grande compilagio foi realizada na Peninsula Ibérica por Mamoi- des, no século XII, que expés metodicamente as matérias relativas a teologia, A ética e ao direito. Segundo uma duyidosa tradigéo, Afonso X ter ordenado a tradugdo do Talmud, Na nossa Peninsula floresceu também: uma ‘impor- tante escola talmtidica, em Cordova, podendo apontar-se a aljamia de Lucena como relevante centro talmddico na Espana mugulmana, A controvérsia antijudaica levou os evangelizadores ctistos 4 refutagiio do Talmud, tendo Benedito XIII orde- 385 nado aos bispos ¢ cabidos a recollia de todos os exemplares do Talmud, glosas, sumétios e comentarios, Ficou célebre a controvérsia de 1413, em Tortosa, convocada pelo mesmo pontifice e onde se discutiu a obrigactio e o direito dos judeus observarem o Talmud, procurando-se os erros da lei mosaica. O regime da liberdade dos judeus, consagrado nas cartas de privilégio', consagrava naturalmente a obser- vancia do direito talmidico —-e o respectivo ensino. 103. Direito muculmano. Concefto e Caracteristicas — Lopes Ortiz define o direito mugulmano com as seguintes palavras «Regulacdo dimanante da vontade de Deus, da totalidade da conduta dos mugulmanos ainda que em dominios diversos do que julgamos como juridico, ¢ cuja transgressio é considerada como pecado, e como tal sancio- nada pelo préprio Deus com castigos ultraterrenos, ainda que sem excluir uma organizacdo de carécter estatal, actuando em representagio de Deus, ou, ao menos, do Seu Profeta e, por isso, legitimada ¢ obrigada a manter na res- pectiva pureza a ordem querida pelo supremo legislador, aplicando para isso os meios coactivos apropriados.» O dircito muculmano € assim: a) um direito revelado; 5) de origem divina; c) destinado a uma comunidade de crentes; d) nao diferenciado relativamente a religiiio dessa comunidade ¢ como tal imutavel; e) de cardcter pessoal e nao territorial, mantendo-se unitério no espago — embora isso nfo precluda particularidades regionais — e sem carac- ter estadual. 1. Cie. infra, 190¢ 191 € o volume comespondente aos Grupos Saciais e Conteido do Direito 386 A assinalada uniformidade do direito mugulmano decorre da auséncia de Orgios politicos na criacao do direito, Jamais © Califa ou qualquer outro chefe politico actuou como 6rg0 de criagdo do direito. Provindo este de Deus, tal conduta Constituiria uma transgressdo. Pela mesma razio a comuni- dade, tomada em sentido Politico-civil, também nfo intervem na criagio do diteito, produzindo regras gerais abstractas correspondentes ao conceito de lei no nosso direito, Quando cria 0 Ichmd! f4-1o enquanto comunidade confessional, assistida ou orientada por Dens, Por isso, embora 0 Corio, como a Sunna, como o Lima, encorpore na realidade normas consuetudinarias, nunca lhes foram atribuidas a natureza de fonte jurfdica, Para os mugulmanos os ditames normativos visam exclusivamente o estabelecimento de limites a autonomia humana a fim de possibilitar 0 convivio mituo. A liberdade sem limites torn4-lo-ia impossivel. «A lei foi feita para Sacilitar, no para empecilhar» — & um dito tradicional- mente atribuido a Maomé e no qual se sintetiza o espirito do direito muculmano. Ele methor se comprenderA, todavia, se. se disser que provindo todo o direito de Deus este 6 a sua Gnica fonte, importando consequentemente apenas a deter- minag&o dos meios da respectiva tevelagao. Por isso jé se tem dito implicar alguma distorgao, fruto da transposigéo de quadros mentais proprios da nossa cultara, a enumerapo para © direito islamico de um quadro de fontes essendi, isto por um lado; por outro, que, na realidade, nfo existe um direito islamico mas sim e apenas a disciplina pela religiao de matérias que no mundo cristo so reguladas, com, auton relativamente a ela, pelo ordenamento juridieo. Pata o mugul- 1. V. infra, n° 105, 387 mano, o que ha é a Charia' («a via a seguir», «a lei reve- lada»). Tais séo prevengGes a ter em conta para o entendi- mento das linhas que se seguem. 104, Fontes, Int. a) 0 Cordo e b) a Sunna — Segundo um hadit!, Maomé teré perguntado a um dos seus proséli- tos: «De acordo com que critérios julgards a conduta dos crentes». «Em primeiro lugar — respondeu cle — ater-me-ei 40 Corde. Na sua falta, a Sunna do enviado de Ald. Por fim recorrerei a Lima! (o mex proprio critério!». Tais sio as Sontes bisicas do direito mugulmano (a Charia’) ¢ a pre- cedéncia entre elas. Vejamos cada uma por si: 8) A vontade de Deus é revelada pela palavra do seu Pro- feta, Maomé — e esta comunicada por uma recitagdo ov leitura (Coro) de um livro existente no Paratso, desde o infcio dos tempos, que teré sido transmitido por Alé ao Profeta mediante um anjo. De inicio nao denominado, foi este posteriormente identificado como S. Gabriel, . A doutrina de Maomé enunciou-a ele oralmente. E duvi- doso que em vida do Profeta se haja comegado a fixar por escrito tais ensinamentos. Nos tempos do seu sucessor, 0 primeiro califa, se recolheram por ordem deste numerosas folhas soltas onde haviam sido registadas diversas reve- lagdes — e cuja guarda foi confiada a uma das vitivas de Maomé. Compilacées diversas langaram em circulagao qua- tro redacgSes completas e ndo coincidentes do Corio. No tempo do terceiro califa, Utman (644-656), fixou-se 0 texto pela oficializagdo da versio devida a Zaid, secretério 1.V. Infra, alinea 388. de ie eon e Claborada em vida deste, As demais fo, em conto ¢ gaat? #88 conseauido enconeeen dividido 7 mite capstulos ou sétes (surat) compostas de versicuto § ROS quais se con; SOneHARUrAis>, divisdes estan ger noes OU signos b) A Sunna. A revel #0 divina contida no Cordo foi elagi ‘ina contid, Completada com a conduta do Profeta (Sunna), AS suas 389 decisées e comportamento nao podiam deixar de serem consideradas como realizagio do ideal prégado. Tal dogma- tizagao encontra-se em algumas passagens cordnicas: «Formoso exemplo den o Profeta para todos quantos esperais no Senhor e no Dia do Juizo e tém tido Ald na memoria». A Sunna compreende tés elementos: 0 que o Profeta disse (preceitos extra-coranicos), 0 que praticou (e cons- titui exemplo a imitar), 0 que consentiu (ou seja, as priti- cas sobre as quais se nao se pronunciou ¢, dessa forma, tacitamente aprovou). Na conduta de Maomé h, todavia, a distingir 0 que deve ser imitado ¢ o insusceptivel disso Por coresponder a um comportamento assumido por privi- légio pessoal. Sendo consentidas aos mugulmanos quatro esposas, o Profeta teve-as mais, por concessiio especial de Alf a ele proprio revelada. A Sunna nao possui uma natu- reza de fonte interpretativa mas é em si mesma perceptiva ¢ tem a via de divulgacdo na tradi¢do ou narragao oral (hadit), de geracto em getagdo. Iniciada por um compa- theiro do Profeta (sahib), continua-a um discipulo deste (tahib) — ¢ assim sucessivamente numa verdadeira cadeia de geragdes. S6 a conduta de Maomé é perceptiva, nao a dos discipu- Jos, que relevam apenas enquanto transmissérios e transmi- tentes dos ditos e feitos do profeta, MGltiplos como estes foram ofereciam naturais dificuldades de fixagio — a que se agregaram as resultantes de se imputarem ao «enviado de Deus» muitos outros comportamentos para os fazer impor. De tal maneira se ampliou a conduta de Maomé que um cadi de Mosul, falecido em 946, se vangloriava de saber de cor duzentos mil hadits. A necessidade de climinar as tradigdes apocrifas e deter- minat o tor das auténticas levou a elaboracdo de uma cién- 390 cia critica do hadit, de caracter hist6rico, O seu proce- dimento radica-se na determinagio das pessoas que dio © testemunho do feito de Maomé e das relagoes ontre elas, desde 0 sahib ao tahib respective — ¢ assim por diante, telativamente a todas quantos 0 onviram contar. Quando se demonstra nao haver alguma delas conhecido aquela de quem afirma té-lo recolhido, 0 hadit 6 considerado como falso. Daqui distinguir-se no hadit duas partes: 0 apoio (isnard), ou seja a indicagao da cadeia de pessoas que trans- mitem a tradiggo ¢ a garantem, por um lado e, por outro, o matn, ou relato do comportamento de Maomé, de cardcter perceptivo. Para as correntes tradicionalistas a Sunna deve inter pretar-se na sua literalidade, tal como consta do hadit em causa —~ com reptidio de toda a interpretaciio generalizante ou racionalizante, Daqui a conversiio do direito numa cién- cia casuistica, 105. Fontes. (Cont,). ¢) Imi’; d) Qiya’s — Quer a pala- ra, quer a conduta de Maomé constituiam factor motriz. Com a morte do Profeta tornaram-se em elementos cristal- izados de regulagao social, com a inerente necessidade de estabelecimento de meios susceptiveis de comesponderem As circunstincias dos tempos. Tal papel foi atribuido a Comunidade dos crentes. Segundo a tradig&io, Maomé terd dito: «A minha comunidade [de crentes] jamais se poré de acordo sobre um erro». «Aquilo que aos mugulmanos parece bom, parece-o também a Ald». O providencialismo insitio no consenso e conduta da comunidade religiosa mugulmana (idjama’), permite tor- né-los como critério de solugaio — justa — nos casos julga- 391 dos omissos por relagZo com a palavra ¢ 0 comportamento de Maomé, Controvertida a forma de identificagio da comunidade, ou seja, quem a representa — sustentou-se ora que ela se re- conduzia ao povo de Medina, ora ao de Meca, ora aos sahibs © rahibes... — a natureza das coisas acabou por a identificar com a interpretagio dos doutores, configurando-se 0 [jma', ‘como a opiniao dos mais doutos e dos mais sdbios. Assim Gallo Sanchez define a [jma' como «opiniao unanime dos doutores mugulmanos de uma determinada época» e nio falta quem parifique o Jjma' a jurisprudéncia romana, vendo na responsa dos doutores do ius commune um fenémeno paralelo. A auctoritas dos juristas garante a respectiva inter- Pretagdo ¢ iegitima a aplicago ao caso concreto. 4) Qiya's. Literalmente o termo significa analogia; mate- rialmente compreendem-se nele os procedimentos dedu- tivos € indutivos ¢ os diferentes métodos l6gicos, logi- ficantes e pr6-l6gicos de seleccdo de fontes ¢ a aplicagio e adaptagao destas aos casos concretos, com a finalidade de suptir lacunas ou encontrar uma solugio justa. © valor do giya’s € controvertido. Varias correntes rejei- tam 0 giya’s, exigindo uma interpretaco literal do [jma Tal repidio afigura-se, em todo o caso, tendencial, Qualquer interpretagao, por muito aderente que seja ao texto, quando pretende a respectiva aplicagdo ao caso necessariamente implica a criagao de direito. Para os sufragantes da legitimi- dade do giya's 0 papel deste decorre da propria indole do Lima. Sendo os preceitos respectivos formulados em fungio de casos concretos encontram naturais dificuldades na transposigdo para outros a eles alheios. A fungao giya's reconduz-se a tal cometimento, 392 106, Fontes. (Cont.), A ciéncia do figh — im é a cién- cia em geral. O figh a ciéncia que permite saber como actuar em cada caso concreto para obedecer a lei divina, A importancia e prestigio respectivos conduziram a que essa espécie de conkecimento se identificasse com o género, de tal forma que figh acabou por significar a ciéncia por antonomésia e 0 seu cultor, para nés o «jurista», 0 fagui, soja equiparado ao sfbio (ulema). A missio do fagui € a investigagio da norma, mediante a interpretagao das fontes, sendo designada por ichtihad (ou seja, 0 esforgo) — o esforgo de apurar a vontade divina em telago ao caso particular, enunciando a norma individual correspondente, As diferentes missées e fases do ichtihad — que crista- liza no século IV, dizendo os juristas que se cerrou a «porta do esforgo> — leva a distinguir varias espécies de juris- tas. Os motchtahid, sio os que trabalharam directamente sobre as fontes, Pronunciando-se sobre os problemas que mais corentemente se apresentavam, formaram uma dou- trina, espécie de communis opinio — como jé alguém dis- se —, erigida, pelos juristas posteriores, em precedentes, Os mochtahidin, versam primariamente a elaboragdo dos mochtahid e s6 recorrem as fontes em caso de lacuna da- quela, Dentro dos mocitahidin ha os que se alcandoram a resolver divergéncias entre os mochtahid e os que se limi- tam a aplicagao das doutrinas enunciadas pelos predeces- sores, Tais sio os designados por discipulos (mocalid), que acabam por se impor, no faltando quem os considere os Verdadeiros fautores da ciéncia juridica mugulmana, Explica-o 0 facto de com eles aquilo que constituia pre- cedente passar a ser olhado como preceito juridico. Por isso J houve quem exageradamente considerasse as respectivas 393 obras como verdadeitos cédigos de conduta em vez de livros prudenciais, Resultante directamente do ichtihad 6 a fetua, ou seja, © texto no qual argumentativamente se expe a solugio encontrada para o problema, cabendo 0 titulo de mufti a0 doutor legitimado para a respectiva emissio. Se quiséssemos retratar o figh no seu aspecto formal e substancial podiamos faz6-lo com as seguintes palavras de Lalinde — «Em geral os livros do figh so de leitura dificil, agravada pela falta de sistematica. O seu método € casuis- tico, embora de tipo especulativo, com formulagao de ques- tes hjpotéticas, No tocanie ao método € possivel observar a influéncia talmédica, ou seja do direito judaico» (1970, 72). 107, Fontes, (Cont). As escolas de figh — A preponde- raneia dos discfpulos e a mutiplicagiio de fetua, organizadas em colecgdes, as contradigées existentes nesses ditames, seja nos aspectos metédicos, seja nas solugSes propugnadas, conduziram a formagio de diferentes escolas, centradas num. mimero limitado de enunciados fundamentais e divergen- tes, Conforme acatem ou nfo a Sunna, é costume separar tais correntes em ortodoxas ¢ heterodoxas. Entre as tiltimas destacam-se os aiitas, seguidores de Ali, genro do profeta. Nas primeiras (sunnitas) as de maior importancia s40 a hanefi, malequi, xafei ¢ hambali, dos nomes dos respectivos fundadores. A seu propésito j4 se notou que o pensamento juridico mugulmano passou de uma relativa transigéncia para a intransigéncia, ao contrario do sucedido no campo politico, A tendéncia liberal é representada por Abu Hanifa, aberto as influéncias judaicas ¢ bizantinas e A atracgio racionalista, Hanbal representa o integrismo, propugnando 394 uma metédica literalizante e repudiadora do qiya’s. Xafei € Malik, ¢ os respectivos discipulos, representavam vias médias, embora porventura mais préximas de Hanbal, pois ambos rejeitam as tendéncias racionalizantes, apoiando-se essencialmente na tradigdo (hadit). Das duas, a menos conservadora € a de Xafei, ao indentificar o Limit! com a opinido dos faquies, enquanto a doutrina de Malik a recon- duz a interpreta¢ao da comunidade confessional,tomada esta no sentido restrito dos proprios seguidores do tito, no de todo o Islao, ou na expressio restrita dos doutores da escola (opinidio comum destes). Daqui as perseguigdes movi- das pelos seguidores de Malik aos dos demais credos, A historiografia tem assinalado o conhecimento muito precoce destas varias tendéncias em Espana — com exce- pedo da hanatita. A vinda do mestres orientais e a ida de estudantes para os grandes centros do figh produziram a res- pectiva importagao, como sucederia mais tarde com o direito romano bolonhés. Entre todas logrou, porém, supre- macia a malequita, por ventura em fungdo do ressentimento de Malik contra os novos califas, Abassidas, vencedores dos Omeidas — tendo um destes logrado implatar uma dinastia em Espanha, elogiada por aquele mestre de Medina. No século VIII j4 os discipulos de Malik haviam assegurado a difusao da respectiva doutrina por toda a Espanha e na centiria seguinte eram «senhores da jurisprudéncia (...) os julgados das cidades principais estavam nas suas maos» (Fernandes Espinar, 1985, 213). O afa de unidade politica Perante um contexto social muito diversificado — arabes, Sirios, berberes, renegados... — impunha, aliés, a necessi- dade de manter a pureza doutrinal, suprimindo todos os desvios, mesmo os consentidos pela ortodoxia —— 0 que levou a punico dos sequazes de qualquer outra corrente. 395 A escola malequita seria posta em causa em virtude das reacgGes anti-racionalistas ocorridas no Islao. A invastio de Espanha pelos Almoadas impée uma violenta perseguigéo aos malequitas, sendo queimados os tespectivos livros e punidos os crentes pelo verdugo. Varios movimentos contra- riaram também a escola, como o dos sufitas, com incidéncia em territérios hoje portugueses, O sufismo constituiu a alma dos movimentos contestatdrios que quebraram a unidade politica mugulmana em Espanha, acompanhando o apare- cimento de pequenos reinos (taifas), Tendo constituido no século X a corrente espiritual dominante — manteve-se vivo nas duas centirias seguintes. A sua esséneia foi pre- dominantemente mistica e ascética —, mas o respectivo espiritualismo cedo resvalou para um intervencionismo social de cardcter critico em relago ao establishment (com a tomada da consciéncia subjectiva como método de con- duta, em prejuizo de clnones objectivos e do intelectua- lismo juridico-religioso), erigindo cm instrumentos de acgio a pregacao e a espada. Nenhum dos factores antes referidos determinou, porém, a supress%o da influéncia de Malik. A sua obra, Muwata ou Almoata (Caminho Facil), colecgao de hadit comentada sistematicamente, manteve um indiscutivel Prestigio, continuando a ser venerada, bem como as dos comentadores respectivos, de que se pode citar Ibn al-Arabi. A Reconquista crista também nao suprimiu o pensamento juridico muculmano. As comunidades vencidas conti- nuaram as tradigdes hispinicas do figh, oferecendo muito interesse a respectiva literatura — a literatura aljamiada. A historiografia modema, se assinala aos doutores mugul- manos peninsulares a autoria de varios contributos em re- lagdo aos ensinamentos de Malik — nomeadamente em dominios processuais ¢ no dircito das obrigagées — tem 396 ainda discutido 0 gtau de influéncia romana ¢ crista nos textos da doutrina aljamiada. Hinojosa vai ao ponto de ver neles uma adaptagio do direito romano — texe esta ‘con- trariada por Lopez Ortiz. Um Ponto de vista porventura conciliador poder exprimir-se attibuindo literatura alja- miada um cardcter autenticamente muguimano, embora nao isento de influéncias romano-cristis, nomeadamente NO tocante aos contratos, cuja regulamentagao se apresent entagai Bk ta 108. O Isléo € os infiéis — Para a religito mugulmana todos quantos nao a professam sdo estrangeiros, Contra eles deve mover-se a guerra santa: ou crés ou morres — Posigaio esta de intransigéncia que se agudizow conforme as épocas, Processar-se com base no aman, Pode teconduzir-se a duas situagdes que tém sido cauipare das, uma a0 passaporte, outra ao tratado de paz, conforme a situagtio Juridica dos infiéis em causa. Estes eram mustamin (propriamente estrangeitos), cujo amen era de tipo indi dual, com duragio fixa, especificando 0 itinerario autoriza- do e outras particularidades evidenciadoras da sua precari- dade, ou cram dimmies (protegidos), infiéis do livro, isto & Seguidores das religides reveladas na Biblia, judeus ¢ cris. tos. Maomé reconhecia a inspiragio divina das Sagradas Escrituras, embora acusasse tanto os judeus como os cris. tos de as haverem falsificado — e acreditou na missao divina dos profetas, entre os quais destacou, como recipen- diérios de leis reveladas (derrogativas as posteriores das anteriores), Adio, Noé, Abraiio, Moisés e Jesus, 2 que se seguiu ele proprio. 397 Aos dimmies podia conceder-se uma protecgio genérica, estavel, traduzida num tratado de paz. Contra os dimmies esto os mugulmanos obrigados também & guerra santa, embora podendo estes submeter-se, $6 se resistirem serio mortos ou reduzidos a escravidao. A situagao juridica dos dimmies (submissos) implica © pagamento de tributos, a interdigo do exercicio de cargos ptiblicos, de testemu- nharem entre mugulmanos, de tomarem mugulmanas ‘por esposas — podendo, ao invés, os mugulmanos terem espo- sas cristas ou judias. Aos dimmies impde-se-lhes 0 uso de trajes com distin- tivos visiveis ¢ a exclusio de certas pegas de vestuario, como 0 turbante, Devem ainda os dimmies acatamento ao direito piblico muguimano, Embora se lhes reconhega liber- dade de culto e a respectiva comunidade seja regida por autoridades pr6prias — foi o caso dos condes dos mocéra- bes, cristéos submetidos que viviam como arabes — a res- pectiva organizagio nao é auténoma, mas dependente da autoridade mugulmana, Nas relacgdes individuais entre um dimmfe ou mogdrabe um mugulmano é 0 direito deste que se aplica — o direito cristo rege apenas entre cristiios. Todas as questées relati- vas & paz piiblica stio de competéncia dos tribunais mugul- manos, cuja jurisdigdo se alarga sempre que um dimmfe por ela opte. A proteccfo (amén) cessa: quando o dimmie deixa de pagar tributos; blasfema contra o profeta; rapta ou casa com uma mugulmana; converte um muculmano A sua fé — entre outras causas, Nessa eventualidade o dimmie converte-se em inimigo, pode ser condenado a morte, reduzido a escra- vidao c os seus bens confiscados. 398 BIBLIOGRAFIA — No tocante 20 Direito hebraico of, vig., J. LA« LINDE ABADIA, /niciacién Historica al Derecho Espahol, Barcelona, 1970; B. COHEN, Law and Tradition in Judaism, Nova Iorque, 1959 & Jewish and Roman Law, Nova lorque, 1966; F. CRUSEMANN, The Thorah, Theology and Sacral History of Old Testament Law, Edimburgo, 1996; W. FALK, Hebrew Law in 1 Times, Jerusalém, 1964; FERNANDEZ ESPINAR, Las Fuentes del Derecho Historico Espafiol, Madrid, 1975, I; RAFAEL GIBERT, Historia General del Derecho Espafol, Madrid, 1978, JOHN GILISSEN, Introduction Historique au Droit, Bruxelas, 1979 — trad. port., 1986; HERZOG, The Main Institutions of Jewish Law, Londres, 2 ed., 1967; P. 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TRUYOL Y SERRA, Hist6ria do Direito Internacional Publico, Lisboa, 1966; JOAO SILVA DE SOUSA, Religidio ¢ Direito no Alcordo (Do Pré-Islao & Baixa ldade Média, Séc, XV), Lisboa, 1986. the Islam Communtiy», Id O Islio e o Di 400 CAPITULO IV CONJUGACAO DAS FONTES NORMATIVAS E DOS ELEMENTOS FORMATIVOS DO DIREITO PORTUGUES 109. Introdugéo — Identificadas as diferentes fontes do direito, cabe, agora, dizer alguma coisa ex professo quanto a respectiva articulagao. Trata-se em parte, como é ébvio, embora noutro plano, de repassagem de factos jé mencio- nados, em parte de explicitagaio de matéria exposta, mas em certos pontos também de consideragao de novos dados: recapitulagdo, sintese e desenvolvimento. Pode jé avangar-se que o papel de centro de gravidade coube aqui aos monarcas, embora a respectiva forga nio se tenha manifestado sempre com igual intensidade, Deve mesmo dizer-se que variou de acordo com as fungdes em presenga e 0 estidio eronol6gico considerado. 110. Direito canénico ¢ direito civit — No tocante a articulagao do direito canénico com a ordem juridica nacional fez-se, numa primeira fase, de acordo com a teoria 401 da supremacia pontificia relativamente aos poderes laicos. Parece-nos, a tal respeito, fornecer cabal ilustrac&o o pre- ceito de D, Afonso II anteriormente referido ¢ no qual © monarca determinava nio valerem as suas proprias leis se «fectas ou estabelecidas» contra os «dereytos» da Igreja (1211)', Interessante, também, a afirmagdo produzida nas Cortes de Elvas de 1361 sobre o dever de os monarcas observarem o direito canénico — e que referiremos mais adiante com alguma mintcia®, Texto de indole doutrinaria particularmente elucidativo encontramo-lo no Speculum Regum, de Alvaro Pais. Sao as seguintes palayras, tradugdo. da passagem em referéncia: «E daqui se segue que as leis que © rei instituiu nfo devem discordar da doutrina da lei divina, mas com ela concordar e submeter-se aos sagrados cAnones. Efectivamente, assim como o poder secular se sim devem as leis temporais estar sujeitas as leis espirituais» (1, 124). Tradugdo, tam- bém, de proposicdes do bispo de Silves, encontrémo-la nestes outros textos: «Se os leigos dizem que nao so obri- gados As leis da Igreja, digam também que nao fazem caso da cadeira de Pedro e que sdo acéfalos»; «Se os leigos nao esto sujeitos aos direitos canénicos, 0 Papa nfio 6 nem seu pastor, nem juiz, nem reitor, nem tem poder algum sobre eles, O que tudo € herético e insano». A este respeito merece ainda a pena referir mais algumas afirmagoes: «O principe cristo costuma obedecer aos dectetos da Igreja, e ndo pode opor-lhe o seu poder» (I, 36); «Constituem [os monarcas} leis infquas (...) ¢ frequentemente contra a Igreja, a liberdade eclesidstica e suas leis, as quais por isso mesmo perdem o vigor» (I, 254); «assim como 0 poder 1. Cte, supra, nc 43 ¢46, 2. inha, neste mesmo ndimero. 402 secular se sujeita ao poder espiritual, assim as leis tem- porais devem estar sujeitas as leis canénicas» (I, 124). E como poderfamos recortar testemunhos idénticos saidos da mesma pena! (cfr. v.g.; SR., I, 248, 254, 276, 278; SPE,, V, 294, 304, 412... Estruturada doutrinariamente por formas diferentes!, a auctoritas superlativa papal foi abertamente reconhecida pelos nossos monarcas (podendo apresentar-se disso va- tiadas, repetidas e heterogéneas provas), pata o que nao poderé deixar de ter contribuido o facto de D, Afonso Hen- tiques haver prestado juramento de vassalagem ao Papa, encomendando a terra portuguesa a S. Pedro e A Igreja romana € obtido o reconhecimento da sua dignidade real pela bula Manifestis probatun. O pagamento do censo & Santa Sé pelos monarcas portugueses 6 também expresso do referido reconhecimento da auctoritas pontificia — em- bora tenha padecido miltiplas peripécias, Da prépria posigao, atribuida A fonte de onde emanava, decorria a prioridade da norma can6nica face a qualquer outra norma positiva, mas essa prioridade 6 era indiscrimi- nada nas doutrinas hierocréticas m4ximas. Nas correntes que atribufam aos monarcas uma fundamentagdo do poder auté- homo selativamente ao pontifice ou que, pelo menos, thes teconheciam uma zona de competéncia propria, dentro da qual o Papa nfo deveria intervir — embora pudesse privar da coroa o respectivo titular se para isso houvesse razdes suficientes —, a norma can6nica s6 precedia a norma tempo- ral in spiritualibus?. In temporalibus a norma do poder civil era, em si mesma, uma norma auténoma. A respectiva legitimidade derivava da propria fonte promanante. 1. Clr infra, n°" 123 ess. 2, Ch infra, n®* 123 es. 403, encontrar dificuldades em concreto. E a este respeito sinto- mitica uma carta de D, Dinis. Embora 0 monarca ai afi masse como correspondendo A sua competéncia deci a legitimacio de filhos naturais, recuava quanto a possibi dade de os autorizar a hospedarem-se nas igrejas ¢ mostei- ros!: as «cartas per que os legitimasse mando que thes non uatha contra os moesteiros nem contra as Igreias ca eu entendo que 0 nom posso fazer de direito E que he perjgo da minha alma E eu querendo des aly thes farej bem E mercee ca a legitimagom entende-sse em - no leigall (...)». (ODD., 166). Numa sociedade que atribuiu projeccio metafisica as mais simples acgdes de paredes-meias —- para parafrasear Hauriou —, actuando o homem em fungao da vida para além da morte”, 0 critério de pecado teve enorme extensio, ndo sendo facil tragar a0 conceito respectivo os contornos projeccao doutrinaria ¢ tanto mais con! surgiram, frequentemente, conjuntas as pretensées politicas do clero nacional. Quem percorrer a histéria das di tas entre os nossos monarcas ¢ a Igreja vera qu andaram, nao raro, em torne de contestagées de pri gios que 0 clero declarava titulados ou legitimados pelos cdnones, A obra de Alvaro Pais fornece-nos a este respeito alguns elucidativos exemplos das posigées eclesiais. A isengdo de impostos no tocante aos legados a favor da Igreja; a isengdo dos eclesidsticos ¢ igrejas relativamente a talhas, colectas e exacgdes, impostos ordinarios e extraor- LV. infra, 02183 2. Che supra, m2 5 404 FRANCISCI ZABARELLAE PATAVINI. CARD. FLORENTI om a pn ones ea ge ‘encsgon TOMVS PRIMVS Rosto de uma edigio do comentario de Zabarella Super Primo Decretatium, ‘em que se representam as diversas leis. 405 dindrios, penas de direito civil ¢ multas; a isengao dos clé- i ago de combaterem — sio outras tantas proposigdes concretas sustentadas por este doutor com recurso a fontes do proprio direito canénico. E foi também com recurso a tais textos que garantiu a obrigagdo de os principes respeitarem genericamente as liberdades da Igroja, deles se socorrendo ainda para pro- clamar a nulidade de todas as normas laicas que as dimi- nuissem ou prejudicassem —— da mesma forma procedendo quando da proclamag&o daqueles privilégios espectficos antes referidos (cfr. Vig. SR., I, 246, 248, 254, 256). No pensamento de Alvaro Pais, tomével como expressio. da canonfstica coeva, quanto antes enunciémos represen- tava 0 quadro imprescindivel para o exercicio do munus eclesial, necessério para a realizagtio do fim espiritual da sociedade e do homem. Quem quiser tracar os factores determinantes de situagdes de conflito entre o ordenamento canénico e o ordenamento civil, ha-de ainda referir a circunstncia de eles se configura- como entre si parcialmente sobrepostos. E que can6nico se apresentava com propésitos teleol6- gicos circunscritos ¢ tomava, portanto, como objecto apenas uma parcela do obrar humane, o direito romano, a sombra do qual os monarcas estruturavam o préprio poder, com uma genealogia muito mais longa do que a daquele e com um superior complexo normativo, quando visto quantitativa- mente, reclamava-se do dogma da plenitude do ordenamento juridico, como hoje dirfamos (cfr. Odofredo, Lec ff. Vet., rub. De divisione, 1. Tantum; Gl. Notitia, ff. De Iustitia et iure, 1. Justitia) e, portanto, apto a reger qualquer situagao. Sem contestar doutrinariamente o estatuto abstracto dos pontifices, ao menos por forma directa e declarada, nem 406 Or em causa de maneira genérica a hierarquia e poder vin- Culante das normas de direito canénico, o poder civil agiu frequentemente, no campo dos factos, por forma que per- mite inferir veleidades de autonomi quando nao mesmo uma supremacia. Isso deu-se tendo umas vezes por agentes 0s principes, outras os seus oficiais, Cabe aqui relembrar quanto se ensinou a respeite do beneplacito régio!, salientando a forma indirecta adoptada pelos monarcas para o justificar. Merece também a pena referir uma lei de D. Dinis (Maio de 1314), por ser igual- mente reveladora da maneira eliptica e do cuidado com que © poder civil procedeu no concernente a conjugagao da lei canénica com a sua propria, Interessado cm alargar a jurisdigao dos seus tribunais, diminuindo a intervengao eclesidstica, D. Dinis no delim: tou de maneira directa a esfera de competéncia dos magi trados civis, seguindo o caminho de impedir a verificagao dos pressupostos atributivos de jurisdigSo da autoridade eclesiastica, cuja competéncia ficava formalmente intacta. Fé-lo, proibindo que se prometesse sob juramento o cumpri- mento dos contratos —, pois a inclusio de tal cléusula nos pactos determinava por si s6 a privaglo da jurisdiggo dos oficiais régios de conhecerem os pleitos resultantes de qualquer infracgdo, atribuindo-a, em virtude do pecado tesultante da quebra da jura, aos jutzes clericais (ODD., 293). Revela-o 0 proprio intréito aposto na compilagéo afonsina a referida lei: «El Rey Dom Denis (...) fez hla Lei sobre os contrautos, que se faziam com juramento por des- Jraudar sua juridigom», Nele se pode ver a tazio altima da lei, que D. Dinis justificou com a alegagio de a quebra de 1. Chr supra, a a4, 2. Chr infra, m2 160¢ 161, 407 jutamento importar em infimia de que resultava para o infractor a incapacidade de ser conseiheiro «d’alguit Rey, nem de nenhun outro Cémuit» ou juiz, «nem Aportellados, nem (...) aver nenhtia honra, nem algum officio de Jus- tiga. (OA., IV, 6). Com efeito, mal persuade a especifici- dade do fundamento o carécter genérico da previsio e as penas que Ihe eram aparelhadas, ndo s6 para as partes con- tratantes como para o tabeliao autenticador. Alias, sabe-se que iguais determinagdes foram editadas em Franca com o declarado propésito de impedir o afastamento da jurisdi- 40 dos principes e, em diversas cortes de Castela, se pro- testou contra o facto de os juizes eclesidsticos usurparem a competéncia civil com a alegagio de os actos em causa terem sido confirmados com juramento. Por seu turno, os juristas deixaram consignagdes expressas a tal respeito. Cino de Pist6ia escreveria mesmo que a Igreja, com o pre- texto do pecado, usurpava toda a jurisdigao («Ecclesia sibi usurpavi ratione peccati totam iurisdictionem»). (Sup. Cod., I, 3, Aut. Cler). Razo teve, por isso, Gama Barros ao escrever que, para obviar as pretensdes dos tribunais eclesiasticos, «que as ideias do tempo nao permitiam con- trastar directamente, proibiu D. Dinis que nos contratos se exercesse aquela formula religiosa de Ihes segurar a exe- cugao», havendo sido o «compilador das Ordenagées Afonsinas mais sincero na justificagao dada a lei de 1314» (HAP., VI, 213). Poder-se-4 compreender melhor a atitude do monarca se atentarmos num capitulo das Cortes de Elvas de 1361. Reclamaram ai os prelados — a propésito do nao re- conhecimento pelas justigas régias da excepgao da excomunhfo deduzida em juizo contra «Juiz, Procurador, Vogado, ou outros» —, 0 acatamento do direito candnico 408 por parte de D. Pedro. Fizeram-no, postulando-o como obrigacto. «Outro sy muitas vezes non querem guardar 0 Direito Canonico>, disseram os representantes do clero ao referirem-se aos oficiais do principe, «o que todo o Chrisptado devia guardar, porque era feito polo Padre Santo, que tinha as vezes de Jesu Chrispto, e era mais razom de © guardarem em todo o nosso Senhorio pola dita razom, que as Sete Partidas feitas per ElRey de Castella, ao qual o Regno de Portugal nom era sobgetto, mas bem livre, e izento de toda» (OA., II, 5, 24)'. Sendo 0 texto claro pela contraposigao feita entre o direito canénico ¢ 0 direito castelhano, diga-se, s6 para a intelis bilidade das razdes fundamentadoras do dever de respeito pela norma canénica, que a referéncia a qualidade do Papa como sucessor de Cristo consistia numa formula tradicional sintetizante de grande parte da argumentagao a favor da guctoritas pontificia’, Respondeu o soberano a quanto os prelados Ihe expunham, mandando observar a excepgiio de excomunhio. Escusou, porém, qualquer tomada de posigo telativamente ao seu dever de acatar o direito can6énico enquanto ordenamento global. Sem o negar, a politica dos monarcas foi a de se pronunciar sobre os casos concretos que Ihe eram apresentados pelo clero, dando-lhes satisfacao conforme as circunstancias. Desta forma, no campo dos factos o principe tornava-se 0 garante do direito canénico, arbitrando as contestagdes que The opunham. So, a tal respeito, sintomdticas duas conhe- cidas queixas do clero relativamente a atitude das autori- dades laicas. Na Ciiria de Guimaraes de 1250, agravaram-se os eclesiasticos de que «meirini et alli homines nostri dicunt 1. Or supra, n? 56.2. Che tga, no 122, 409 quod non darent pro excommunicatione paleam unam» (PMH., Leges, I) ¢ em 1361, nas Cortes de Elvas, os prela- dos imputavam as justicas do principe 0 asseverarem «que esctmunhom nom brita asso, e que 0 vinho nom amarga go esctmungado» (OA.,, II, 5, 31). Eram «palavras de desfaziamento», tanto mais que se referiam a hipéteses nas quais por édireito» (entenda-se, can6nico) as «Justigas» estavam obrigadas a guardar, contrariamente ao que fuziam, as sentengas eclesidsticas!. Em alguns documentos a atitude régia ultrapassa quanto antes fica descrito. Determinava-se neles que os comandos do monarca valeriam mesmo em caso de conflito com a norma canénica — «non embarguando quaaesquer (...) degretaaes», nao «embargando (...) qudaesquer direitos (...) canonjcos» (Baquero Moreno, 1966, 82 ¢ 1967, 237). Assim sucede em cartas de tegitimagio de adopeio e de doagao emitidas por D, Pedro, D, Fernando e D. Joao I. A seu respeito deve notar~se, nfo s6 serem tais fontes relativamente tardias (1365 a 1397), como nao se reportarem @ casos que pela sua amplitude se apresentassem com um matiz politico susceptivel de pér em causa os interesses fundamentais do clero ou os méximos prinefpios do estatuto pontificio. Em todo o caso — que largo caminho o andado desde proclamagdo, em 1211, da superioridade do direito can6nico relativamente a lei civil?! E em todo o caso — que contraste, também, com os preceitos daquele outro ordenamento que de si préprios dispunham a invalidade da norma civil a eles contréria, salvo, naturalmente, quando uma justa causa a legitimasse! E que tal excepgio nao LV. infra, 2. V, supra, a" 43 © 46, bem coma o que escrevemos no inicio deste ndimero, 410 diminufa o conflito, pois na légica canénica caberia, em tiltima andlise, 4 Igreja a competéncia para se pronunciar relativamente 2 tal factor, conforme decorre, nomeada- mente, do juizo de Alvaro Pais sobre algumas hipéteses concretas. Na esteira de Inocéncio ¢ Hostiense, © bispo de Silves proclamou a nulidade da lei publicada pelo impe- rador ou por outro principe quando falecesse uma justa causa (SR., I, 244; CF, I, 104), assim como admitiu a pos- sibilidade de mobilizagio dos clérigos em caso de guerra justa — visto nas demais hipéteses estarem eles isentos da obrigagdo de combaterem (SR., I, 248). 111. Direito régio, foros e posturas — Se do plano da conjugagao da norma canénica (suprapolitica) com a lei vil, mais ou menos identificada com a vontade régia, passarmos para o da conjugagao desta com as outras fontes correspondentes ao direito da comunidade politi- camente organizada, veremos, igualmente, ter constituido orientagao dos principes a progressiva afirmagao da norma deles promanante face as restantes. Sio numerosas, j4 no século XIV, as cartas régias declarando sobrepor-se a injungao nelas afirmada a quaisquer foros que porventura lhes fossem contrérios: «nom embargando (...) costumes e foros»; «nom embargando (...) foros faganhas», «ssem enbargo (...) doutras ordinhagdes ou posturas que per nbs ou pellos congelhos em contrairo sejam ffeitas»; etc. (Gav., VIII, 321; Baquero Moreno, 1966, 82; Pimenta Ferro, 1970, 305). Era um come¢o de superamento da tensio entre o direito régio ¢ 0 dircito foralciro, que, vistvel nesses prdprios textos — € em tantos outros semethantes —, se pode aperceber 4il com superior nitidez em monumentos no juridicos. Com efeito, neles se espelba a prépria convicgdo do vulgo sobre 0 pluralismo das fontes juridicas e a diversidade dos comandos respectivos — convicedo que 86 se pode ter formado a custa de multiplicados exemplos ¢ ao longo de dilatados anos. Tal hos aparece 0 caso de uma composigio das Cantigas de Santa Maria, talvez dos finais do século XL, de certeza nao Posterior a i284 —, portanto, muito anterior aos documentos 48 referidos, Ela traduz a concorréncia entre as duas ordens juridicas, ao necessitar de reportar certo acto ao direito e ao foro, a fim de lhe atribuir um valor juridico incontroverso: «{..) 0 castello Wentregasse, que per direit’ e per foro, non devia a seer», (345, 43-44), Embora aqueles documentos nfo possam tomar-se como atestantes de um poder ilimitado ou discticionario por parte dos monarcas, visto 0 facto de em m proprios principes a declararem-se obrigados ao respeito dos foros € privilégios dos vassalos (oft. ng. CP,, Af IV, 27 et passim) e ndo faltarem iguais afirmagdes oriundas destes tiltimos, eles sdo suficientemente elucidativos de uma tendéncia por parte dos soberanos para definirem quando se Ihes impunha respeitar tais normas ou quando havia razdes suficientes para ditarem orientagdo diversa. 112. Direito régio, faganhas e estilos — Na mesma €poca encontra-se também repetidamente exarada a res- salva feita quando da emissao de preceitos de que Ihes no 8&0 oponiveis faganhas ou estilos!: «nem faganha (. «nom embargando (...) faganhas», (SDA., I, 480, 481); 1 Che, supra, n.* 68 € 69, 412 «nom embargando stilos» (SDA., 1, 480); «fasafia o (...) estilo general o particular (...) nos tollemos et rrevocamos et cassamos et enricamos (...)» (Idem, 322); «nom embar- gando (...) costumes (...) faganhas e outras gquaéésquer cousas», (Desc. Port., 1, Sup., 302). A forma ampla de tais declaragdes poderia inculcar ao observador, que se Testringisse a ponderé-las, levarem os principes a sua vontade ao ponto de a norma dela corporizante anular os casos julgados. Teré eventualmente sido assim em hip6- teses de abuso, mas impede coneluir que fosse esse o di- teito coevo ndo sé a existéncia de 6rgdos para julgamento de feitos entre os monarcas € os stibditos! como, sobretudo, a pratica de, frequentemente, estes oporem aqueles deci- s6es judiciais muito anteriores, Conhecem-se, com efeito, casos de agravo contra medidas régias, eventualmente contrarias a direitos reconhecidos em sentengas, man- dando os soberanos que se produzisse perante eles o docu- mento comprovante do aresto, Estes factos persuadem de um valor incontroverso do caso julgado, atestado também pela circunstincia de os particulares guardarem religio- samente, durante decénios e até séculos, os titulos das decisdes judiciais, dos quais muitas vezes se vao tirando traslados ao longo dos anos. Interessante é ainda quanto se escreve na concérdia entre D. Afonso IV e o infante D. Pedro: «o Iffante Ihy fosse [a0 Rei] obediente como filho (...) e fezesse (...) 0 que filho € vassalo he theuto (...) per dyreyto e per bonns cusiumes e boas faganhas» (Doc. CML, Livro de Rs., 1, 119). A nosso ver, quanto os comandos determinantes da sobreposigaio da vontade régia as faganhas e estilos con- 1.Cir. infra, n° 142, 413

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