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Marilyn Strathern e a possibilidade de uma “Antropologia Feminista”1

Felipe Paes Piva2

Segundo Donna Haraway (2004), as teorias feministas de gênero, em todas as suas


versões, tentam articular a especificidade da opressão das mulheres no contexto de culturas nas
quais as distinções entre sexo e gênero são marcantes. Portanto, o quão marcantes essas
distinções são depende de um sistema relacionado de significados reunido em torno de uma
família de pares de oposição: natureza/cultura, indivíduo/sociedade, doméstico/político. Gênero é
um conceito desenvolvido para contestar a naturalização da diferença sexual em múltiplas arenas
de luta. A teoria e a prática feminista em torno de gênero buscam explicar e transformar sistemas
históricos de diferença sexual nos quais “homens” e “mulheres” são socialmente constituídos e
posicionados em relações de hierarquia e antagonismo.
Em “O Gênero da Dádiva”, Marilyn Strathern (2006) aponta que nas ilhas da Melanésia o
simbolismo de gênero exerce um papel importante na conceituação das pessoas sobre a vida
social. Contudo, tais categorizações não devem ser tomadas como sendo meramente “sobre”
homens e mulheres, pois suas possibilidades inventivas não podem ser apreciadas enquanto não
se atente para a maneira pela qual relações são construídas por meio delas. A autora postula que
o seu uso retórico de “gênero” se refere à categorizações de pessoas, artefatos, eventos,
sequências etc. que se fundamentam em imagens sexuais, ou seja, nas maneiras pelas quais a
nitidez das características masculinas e femininas torna concretas as ideias das pessoas sobre a
natureza das relações sociais. Entender como as as relações de gênero são vistas pelos
melanésios não é algo que deva ser separado da compreensão de como se apresenta para eles a
socialidade. De modo que, tomar o gênero como objeto teoricamente distinto requer, portanto,
abordar os princípios sobre os quais essas categorizações se baseiam e questionar sobre sua
generalidade através das sociedades dessa região.
O saber feminista e a ciência social compartilham uma estrutura similar, suas premissas
manifestas não são as noções axiomáticas sobre o mundo que informam os paradigmas à maneira
da ciência natural. Elas se fundam em competição. É comum tanto encontrar pontos de vista
coexistindo abertamente como encontrar pontos de vista que se substituem uns aos outros.

1
Ensaio final para a disciplina “FLA0380 - Tópicos em Teoria Antropológica: Antropologia de Marilyn Strathern”
ministrada na FFLCH-USP.
2
Graduando em Ciências Sociais - FFLCH-USP
Todavia, a pesquisa feminista tem muito menos interesse na relatividade dos pontos de vista da
ciência social. Sendo assim, ela não busca continuamente novas conceitualizações sobre a vida
social, busca apenas uma: todas as maneiras pelas quais, para os mundos que conhecemos, faria
diferença reconhecer tanto as perspectivas das mulheres como a dos homens. O conhecimento é,
portanto, concebido num conflito perpétuo.
Não se pode falar no “feminismo” como um fenômeno unitário. Como alerta a autora,
enquanto muitas feministas admitem que, em toda parte, as mulheres ocupam posições
comparáveis - de modo ou de outro, são oprimidas -, no entanto, em sua própria prática
intelectual sustentam uma diferenciação das posições. Tais posições são criadas como
reciprocamente dependentes, pois, o saber feminista se mostra pleno de perspectivas. Embora a
base múltipla de seus debates é criada através de sua deliberada abertura interdisciplinar e da
competitividade entre suas próprias abordagens internas - liberais, radicais, marxistas - as
feministas falam se referindo-se umas às outras. Por mais que uma posição evoca outras, elas não
se juntam como partes de um todo, mas são mantidas como presenças coevas no interior da
discussão. Cada qual possuindo sua própria proximidade com a experiência.
O que estaria em jogo para a intelectual feminista, por oposição a outros intelectuais, é a
promoção dos interesses das mulheres, ou seja, a promoção de uma única perspectiva. Os
“interesses”, afinal, não são tantos os interesses internos à construção do conhecimento, mas
interesses externos a ela. Provêm do mundo social do qual também somos parte. As
preocupações teóricas do feminismo focalizam a maneira pela qual certas estruturas são
perpetuadas com vantagem para os homens, a proporção em que as mulheres sofrem injustiça
social sistêmica em virtude de seu “sexo”. Homens e mulheres, como seres caracterizados por
gênero, estão sempre diferentemente situados. Assim, as feministas aplicam seu saber a
conceitos e ideias cujas origens se situam num mundo de conflito, em que as pessoas são
induzidas à ação por categorias como “mulheres” e “relações homem-mulher”. Ademais, o
conceito de “sociedade” tem uma posição duplamente problemática no discurso feminista: ou a
“sociedade” é assumida como um dado, como um sistema que está além dos interesses da
pesquisa feminista; e/ou é atacada como o lócus de uma ideologia masculina que não consegue
reconhecer o caráter plural do mundo real. Mas esse mundo é mais do que plural, é também um
mundo de conflito. Tal percepção sobre as outras mulheres toma a categoria “mulheres” como
um dado, logo, o ponto de partida da teoria feminista faz com que a teoria se precipite na
experiência.
As desigualdades entre os sexos têm sido interpretadas como um fenômeno universal por
parte da teoria feminista. Em contraste, quando voltamos nossa atenção para os relatos
etnográficos de outras sociedades, não devemos os ver simplesmente como elucidações mais ou
menos imparciais a respeito da subordinação ou liberdade das mulheres. Sendo assim, eles
dividem o campo entre os que consideram a desigualdade como universal nas relações entre os
sexos e os que veem como um produto de formas sociais particulares. Com efeito, no interior da
antropologia feminista, há um intenso debate sobre o status desse pressuposto. Tais premissas
provêm da localização tanto do saber feminista quanto da antropologia no interior da cultura
ocidental com suas obsessões metafísicas a respeito da relação entre indivíduo e sociedade. É um
pressuposto da equivalência entre membros de um mesmo sexo independentemente de onde
vivam, uma presunção que deriva seu peso simbólico da ostensiva similaridade corporal.
Nisso, o feminismo objeta a comparação entre culturas, propondo, em vez disso, uma
tautologia de que as relações entre os sexos devem ser explicadas por outras relações. Isso se
deve a uma visão da constituição da sociedade que a toma meramente como um contexto para
essas relações. Como observa Wagner (2017), os ocidentais estão prontos a reconhecer
criatividade e inventividade na maneira pela qual outras culturas elaboram a vida social, mas
imaginam que elas assim o fazem em referência aos mesmos fatos da natureza nos quais se
baseia a inventividade ocidental. Portanto, as sociedades não são simplesmente mecanismos de
solução de problemas: são também mecanismos de criação de problemas. Esta é a outra face do
modelo que vê as pessoas individuais como tendo que resolver os problemas apresentados por
seu envolvimento num contexto particular. As convenções sociais são vistas como muito
impregnadas pelos valores apropriados e criados mais propriamente por um sexo que pelo outro,
revelando uma dupla arbitrariedade: a sociedade é convenção, e é convencional que os homens
nela sejam proeminentes. Espera-se da antropologia que, através da comparação das culturas,
forneça evidências para ambos aspectos.
Com vistas a não pressupor que as relações sejam apreendidas como algo que ocorre em
toda parte contra o mesmo pano de fundo natural, entre as mesmas “coisas” ou nos mesmos
“contextos”, Strathern procura evitar deliberadamente uma comparação implícita entre a vida
coletiva das Terras Altas e a ideia ocidental de sociedade. Intelectuais formados na tradição
ocidental não podem realmente esperar encontrar nos outros a solução para os problemas
metafísicos do pensamento do Ocidente, ou mesmo, esperar que os que não participam dessa
tradição irão de alguma forma focalizar suas energias filosóficas sobre questões da “relação”
entre sociedade e o indivíduo Com isso, a autora também pretende deixar claro que os
pressupostos da diferença natural que os ocidentais situam na constituição corporal dos homens e
das mulheres não constituem uma orientação mais útil para a compreensão da imaginação
melanésia do que o privilegiamento ocidental das relações entre os indivíduos como lócus da
sociedade.
A “antropologia feminista” seria pensar que essas duas correntes sejam inspiradas por
interesses que não pertencem a nenhuma delas, sendo distinta de ambas. Tal prática ocuparia a
posição especial de contextualizar tanto as premissas antropológicas como as feministas.
Feministas e antropólogas constituem comunidades diferentes de intelectuais, como resultado da
junção a imagem de Haraway (2009), de meio-animal, meio-máquina, capta sua
incompatibilidade. Muito do embaraço no relacionamento entre o feminismo e a antropologia
reside na estrutura de seus estilos epistemológicos. Isso não significa que elas não possam ser
combinadas ou que não se comuniquem, mas que a sua combinação não produz o holismo de um
organismo ou de um mecanismo. Juntas, elas não formam um todo. Sua relação é híbrida.
Os pensamentos feminista e antropológico defendem diferentes abordagens da natureza e
do mundo a ser investigado, abordagens que não podem ser misturadas ou unificadas. Seus
pressupostos não coexistem numa relação entre parte e todo, de modo que um não pode ser
absorvido pelo outro, assim como seus objetivos não são comuns de forma a permitir um mútuo
intercâmbio entre eles: um não é substituto para o outro. Ainda assim, as antropólogas que são
também intelectuais feministas encontram-se numa situação embaraçosa. Uma parece ser o
contexto para pensar sobre diferença que a outra faria. Entrementes, pondera Haraway, os
ciborgues poderiam considerar o aspecto parcial e algumas vezes fluido do sexo e da
corporificação sexual. Por gênero, Haraway se refere à identidade sexual, a uma natureza
dicotômica concebida biologicamente. E acrescenta, gênero, afinal de contas, pode não ser uma
identidade global. As Terras Altas da Papua-Nova Guiné foi por muito tempo considerada como
um paraíso experimental, pois acreditava-se que a estreita justaposição de sociedades numerosas
e diferenciadas poderia registrar o efeito cambiante de variáveis como uma gradação de
adaptações. Contudo, poucos escritores tentaram individualmente uma comparação sistemática
que ultrapasse o âmbito de um conjunto de casos. Por causa disso, Strathern advoga como
enfoque a maneira pela qual se pode manter a análise como uma espécie de ficção conveniente
ou controlada baseando-se em Wagner (2017). Segundo ele, aplicamos ordens e regularidades
convencionais de nossa ciência ao mundo fenomênico, “natureza”, com vistas a racionalizá-lo e
compreendê-lo. Entretanto, ao simplificar a natureza, nós admitimos que ela é complexa, e essa
complexidade aparece como uma resistência interna à nossa intenção.
Ao decorrer de sua análise, Strathern pretende mostrar a natureza contextualizada dos
construtos analíticos, pois o procedimento comparativo de traçar relações e oposições entre
diferentes sistemas sociais não pode ser tido como um fim em si mesmo. Os contextos devem ser
contrastados, não confundidos. As negatividades se fazem presentes ao mostrar que este ou
aquele conjunto de conceitos não se aplica ao material etnográfico tratado. Tal como, os nativos
de Hagen não imaginam nada comparável ao que chamaríamos de relação entre natureza e
cultura. Por isso, é importante mostrar que a inaplicabilidade não é apenas um resultado de
tradução inadequada. Nossas próprias metáforas refletem uma metafísica ocidental
profundamente enraizada. Portanto, é preciso deixar de pensar que no coração dessas culturas há
uma antinomia entre “sociedade” e o “indivíduo”.
Sociedade e indivíduo constituem um par terminológico intrigante porque nos convida a
imaginar que a socialidade é uma questão de coletividade, que ela é generalizante porque a vida
coletiva é de caráter intrinsecamente plural. A “sociedade” é vista como aquilo que conecta os
indivíduos entre si, as relações entre eles. Por consequência, concebemos a sociedade como uma
força unificadora que reúne pessoas que, de outra forma, se apresentariam como irredutivelmente
singulares. As pessoas recebem a marca da sociedade ou, alternativamente, podem ser vistas
como transformando e alterando o caráter daquelas conexões e relações. Mas, como indivíduos,
são imaginadas como conceitualmente distintas das relações que as unem.
Ainda assim, o conceito de socialidade é produtivo para referir-se à criação e manutenção
de relações, no que diz respeito à contextualização das concepções melanésias, que postula
socialidade tanto no singular como no plural. Longe de serem vistas como entidades singulares,
as pessoas melanésias são concebidas tanto como dividual como individualmente, contendo
dentro de si uma socialidade generalizada. As pessoas são frequentemente construídas como o
lócus plural e compósito das relações que as produzem. Dizer que a pessoa singular é imaginada
como um microcosmo é perceber que o corpo é um microcosmo social na medida em que toma a
forma singular, essa forma apresenta a imagem de uma entidade simultaneamente como um todo
e como holística, pois ela contém dentro de si relações diversas e plurais.
A vida social melanésia consiste num constante movimento de um estado para outro, de
um tipo de socialidade para outro, de uma unidade (manifestada coletiva ou singularmente) para
aquela unidade dividida ou constituída como par respeito a outra. Essa alternância é replicada
através de numerosas formas culturais, desde a maneira pela qual as plantações são vistas como
algo que cresce no solo até uma dicotomia entre domínios político e doméstico. O gênero é a
forma principal por meio da qual a alternação é conceitualizada. Coletivo neste contexto se
refere à formas de atividade nas quais as pessoas se relacionam com base em características
compartilhadas. O que elas possuem em comum é encarado como fundamento lógico de sua ação
conjunta, é usualmente a afiliação ao grupo ou o gênero. Nesses debates a ascendência masculina
é assumida como a dominação dos homens sobre as mulheres.
Por um lado, para a visão europeia ocidental, a cultura é produção, ela faz coisas; é um
artifício, uma construção que se faz sobre uma natureza subjacente; é um agente, uma
manifestação de poder e eficácia. A superioridade masculina tem o status de uma manifestação
de comportamento “cultural”. Tanto aos olhos dos agentes como dos observadores, as mulheres
representam para os homens um problema de “natureza”. Por outro, as interpretações sobre o
antagonismo sexual nas Terras Altas de Papua-Nova Guiné nunca aceitaram as afirmações dos
homens como autoevidentes porque elas são vistas como expressão das ansiedades masculinas
sobre seu controle “real” dos poderes femininos e, portanto, indicativas tanto da extensão do
desafio representado por esses poderes quanto da extensão da incapacidade das instituições
sociais masculinas em reconhecerem sua dependência, em última instância, das mulheres.
Recolher-se às atividades exclusivamente masculinas, supõe-se, mostra, pela negação, o poder
do sexo excluído. Tais explicações produzem a perspectiva de que as energias dos homens são
dedicadas para controlar algo que está além deles. No caso das atividades inteiramente
masculinas, o que está além devem ser as mulheres ou algo que elas representam.
O “antagonismo” e o sentido da relação é visto como surgindo da necessidade de cada
sexo em esculpir uma definição antitética; os homens, especialmente, esculpem sua
masculinidade a partir da identidade “natural” das mulheres, colocando as mulheres e os próprios
processos naturais sob seu controle. Por mais inadequada que seja como linguagem analítica, a
imagem de “domínios” capta em parte uma categorização global que, no caso dos povos das
Terras Altas, estende uma diferença entre os sexos para diferenças no âmbito de suas ações
sociais.. Precisamos saber de que forma “homens” e “mulheres” são tão categoricamente e tão
diferentemente situados uns em relação aos outros.
Enquanto num momento pré-feminista, as relações masculino-feminino compreendiam
atitudes e estereótipos sobre os sexos, mas referiam-se também ao simbolismo da própria vida
comunitária, que seria masculina. As relações entre os sexos eram imagens para organização de
ideias sobre outras coisas, sobre forças vitais ou valores gerais. As categorias constituíam uma
classificação social, e a modelagem da relação entre o masculino e feminino estava lá para ser
decodificada. A preocupação era com processos de significação e com relações entre termos. Já a
teoria feminista dos anos 1970, ao ingressar na antropologia, não tomou essas classificações ao
pé da letra, mas as encararam como parte das posições de poder dos sexos um em relação ao
outro. Tomou, portanto, como axiomática a referência do simbolismo masculino/feminino para
as questões de homens e mulheres. Os então estudos de simbolismo de gênero foram dominados
pelo conceito de gênero como uma construção social ou cultural, isto é, “simbólica” dos próprios
papéis sexuais e, do mesmo modo, o mundo cotidiano que os normaliza, como imagens ideais ou
estereotipadas das relações entre os sexos. Como um termo categórico para explorar o estudo
dessas relações, “gênero”, em seu sentido moderno, veio abarcar mais do que a estereotipagem
sexual. Essa crítica foi particularmente pertinente quando uma separação entre os domínios
público e privado, político e doméstico, foi representado através da polarização
masculino/feminino. A pertinência da teoria feminista, para a autora, reside em suas implicações
para a definição da sociedade como de alguma forma estruturada primordialmente como o
mundo social dos homens.
Os relatos do mesmo período tratavam a separação público/doméstico como uma
ferramenta de discriminação analítica com potencial universalizador. Para as feministas, o
domínio político-jurídico constituía o lócus de poder onde se promulgavam os valores sociais, o
lugar do qual se exercia o poder. Uma separação em instâncias, de caráter ideológico, na medida
em que a própria modelagem de uma separação perpetua a presunção de que certas áreas da vida
social subsumem necessariamente outras, que são por elas reguladas ou por não terem interesses
próprios independentes. Essa crítica levou a tentativas de reescrever uma dimensão política na
própria política, do slogan feminista de que o privado também é político. Só que a política
melanésia não foi domesticada dessa forma, pelo contrário, os homens veem suas atividades
como evidência contínua de sua eficácia pública.
As presunções ocidentais com respeito à domesticidade tem como base a noção de que a
domesticidade transforma as mulheres em menos do que uma pessoa completa. Para ser uma
pessoa completa é preciso ser culturalmente criativo. Contudo, tais noções foram concebidas no
interior de uma formação político-econômica que atribui autonomia ao local de trabalho, a uma
esfera pública distante do lar infantilizador contrastante. Para ser adulto, é preciso romper com o
círculo doméstico. Em oposição, a identidade das mulheres melanésias como pessoas não se
apoia na prova de que elas são poderosas em algum domínio criado por elas, nem numa
capacidade para libertar-se dos limites domésticos construídos pelos homens. O fato de que seus
afazeres sejam assim denegridos não afeta a estrutura dessas mulheres como pessoas sociais.
Em Hagen, os relacionamentos assumem sempre uma forma específica. Apresentam-se
inicialmente num contexto doméstico. Um aspecto de reciprocidade se sobrepõe ao
relacionamento desigual, assimétrico. Como adultos, marido e mulher são tratados como
mutuamente dependentes, inclusive pela diferença entre eles. Marido e mulher contribuem
ambos com seu trabalho e esforço em prol da família. Cada trabalho é peculiar ao
relacionamento e não se pauta por uma medida dada pelo mundo exterior. Portanto, o ambiente
doméstico é, em contraste com os valores ocidentais, o lugar em que as pessoas se mostram
pessoas respeitáveis empenhadas em transações recíprocas. Quaisquer que seja o uso de
masculinidade e feminilidade para hierarquizar atividade de um tipo ou de outro, para os Hagen
não é necessário exigir um modelo de pessoalidade baseado seja em domínios de poder
extradomésticos, seja numa politização da domesticidade, como ocorre no ocidente. Desse modo,
não podemos afirmar que os homens hagen reivindicam dominar sejam elementos femininos
conceitualizados em termos extra-sociais. Um desejo de dominação institucionalizado implica a
construção de conceitos que articulem a dominação a um benefício percebido.
A poderosa imagem ocidental sobre o controle depende de conceitos de posse e de
propriedade. Na visão positivista, o poder é conhecido por sua ligação, como um recurso, ao seu
possuidor, que “o” explicita na interação com os outros, itens singulares são vistos como
vinculados a donos singulares. O fato da posse constrói o dono como uma entidade social
unitária, esteja o dono agindo como um indivíduo ou uma corporação. O poder é visto como
vinculado a uma pessoa de tal modo a definir a identidade da pessoa. Tal modo aparece nas
construções de gênero ocidentais.
Por sua vez, as percepções melanésias sobre o poder são explicitadas nos métodos pelos
quais as pessoas chegam ao seu autoconhecimento e ao conhecimento dos outros, já que os
corpos das pessoas são registros significativos de seus encontros uns com os outros. Tendo que
as pessoas impactam umas às outras de maneira diferenciada, e imaginar âmbitos de eficácia
“masculinos” e “femininos” torna-se uma maneira de trazer à tona esses diversos tipos. Por um
lado, a eficácia deriva da ação coletiva, baseada no compartilhamento de identidade, por outro,
de relações particulares, baseadas na interdependência e na diferença entre pessoas. Assim, as
imagens de gênero diferenciam a socialidade que é concebida como assumindo sempre uma
dessas duas formas. Relações que se apóiam na particularidade diferenciada de identidades,
como entre homens e mulheres, implicam que a distância dos participantes nunca desaparece.
Cada um é conhecido por sua separação do outro. Por contraste, o caráter coletivo das relações é
criado pela replicação - a união de pessoas do mesmo sexo. Cada um, ou cada uma, se reconhece
na imagem de outros semelhantes. Então, o corpo individual é percebido, ao mesmo tempo,
como singular e momentaneamente total em sua identidade, a replicação de corpos do mesmo
tipo multiplica esse efeito, mas não o modifica, pois as modificações ocorrem internamente. Se
as capacidades do corpo é que se tornam conhecidas, a evidência delas devem estar na eficácia
da ação, em termos melanésios, isso implica interação.
Um dos axiomas melanésios mais conhecidos seria o que diz que as aparências enganam,
e a identidade unitária prepara a cena para a revelação de que ela encobre ou que contém em si
outras identidade. Em certos momentos, nos tipos de sequências reveladoras, pode ser observada
uma separação entre a pele que recobre o corpo e suas substâncias internas. Sendo assim, um
corpo masculino também engloba partes femininas. A presença do outro sexo permanece crucial,
não apenas como uma possibilidade cognitiva, de que o que é masculino é definido pelo que é
feminino, mas em termos de uma demonstração de eficácia externa, ao mesmo tempo, da
capacidade interna. Assim, essa proposição sugere a conceitualização de partes femininas
tomando uma forma masculina, contínuas ao corpo masculino englobante, ao invés de serem
descontinuidades dele. Para nós, pode parecer um paradoxo que os homens devem exaltar sua
masculinidade revelando que contêm em si algo que é também feminino. Isso parece uma
confusão de propriedades. A formulação ocidental da identidade de um tipo unitário levaria a
esperar que os homens se tornassem mais masculinos associando-se a coisas definidas como
exclusivamente masculinas, um atributo intrínseco da masculinidade seria ampliado com
atributos extras da mesma natureza.
Em suma, como aponta Strathern, o material melanésico, pelo menos, não nos
proporciona uma imagem dos homens promovendo valores masculinos que se tornam também
valores da sociedade como um todo e, em consequência, usando os valores femininos em
contraponto a seus esforços. Não se deve, portanto, entender a vida coletiva dos homens como
uma socialidade aumentada ou intensificada que pudesse ser a fonte de valores hegemônicos
simultaneamente masculinos e sociais. As formas da vida coletiva na melanésia não são
adequadamente descritas através do modelo ocidental de sociedade e que, qualquer que seja a
representação que se faça sobre os homens, estes não podem ser descritos como autores de tal
entidade. Antes, as ações coletivas deveriam ser vistas como um tipo de socialidade que, como
tal, coexiste com outros, a saber, a socialidade manifesta nas relações domésticas, particulares. A
relação entre as duas é de alternância, não de hierarquia. Os valores de um estão sempre em
contraposição aos da outra. Uma só pode ser conhecida como uma transformação da outra.
Sendo assim, a criatividade social melanésia não se baseia numa visão hierárquica de um mundo
de objetos criados por um processo natural sobre o qual se construiriam as relações sociais. A
socialidade não deve, pois, ser visualizada como uma elaboração superestrutural de outras forças.
e a vida coletiva não evidencia a socialidade numa forma intensificada, hegemônica.
As atividades políticas e rituais melanésias não constituem um lócus privilegiado para
comentar sobre o “resto da sociedade”, os valores que elas promovem também não podem ser
entendidos como extensíveis para além delas simplesmente em virtude de seu caráter coletivo.
Por conseguinte, a ação coletiva não significa uma sistematização superior, tanto no que diz
respeito às relações sociais quanto no que tange às relações entre diferentes valores ou itens de
conhecimento. No mundo ocidental, as pessoas imaginam que exista um sistema ou uma
organização de relações que constitui uma fonte de valores dominantes, que “impõe” tais valores
aos indivíduos. A visão construcionista das relações de gênero implica exatamente isso. A fonte
pode ser igualmente vista como a sociedade ou a cultura. Essa entidade abstrata está investida de
uma vida própria, suas convenções têm vida, por isso, é possível atribuir intenções aos próprios
sistemas.
A pessoa ocidental não é um microcosmo de relações sociais, mas de convenções. A
expressão microcosmo pode ser substituída pela expressão culturalmente mais apropriada de que
as pessoas possuem convenções sociais e estas as possuem. Os ocidentais imaginam-se como
duplamente proprietários: por um lado, possuem-se naturalmente a si próprios e aos seus
atributos pessoais, aí incluídos seus gêneros; por outro, sua capacidade de comunicação uns com
os outros se baseia na propriedade comum de uma cultura. Analogamente, se possuem cultura,
esta também os possui. A propriedade introduz, pois, uma relação sujeito-objeto, na qual cada
coisa pode tornar-se uma coisa nas mãos de outro. É através disso que se tece uma visão
contratualista da cultura, como valores coletivos da vida social aos quais os indivíduos se
submetem reciprocamente. Isso implica que a cultura se apresente numa forma específica,
reificada. Ela representa uma coisa que está acima e além deles.
Se os sistemas melanésios de conhecimento não levam a essa conclusão, eles não devem,
então, ter nome para o ordenamento convencional da espécie humana. Eles não têm nome para a
origem daquilo que nós veríamos como imposições culturais sobre a maneira pela qual as
pessoas se comportam, visto não personificarem tal origem origem como esta ou aquela
categoria de pessoas que “fazem” a cultura. Contudo, isso não significa que não haja convenções
ou imposições, mas que a convenção não é vista como tendo uma autoria e, assim, não é
percebida como um sistema funcionando no interesse de uns mais propriamente que de outros.
De mesmo modo, em termos abstratos, o gênero também não é construído como um papel
“imposto pela cultura” aos indivíduos. Em suma, as imposições descritas para a Melanésia
devem ser entendidas como imposições estéticas. Sendo o gênero é uma forma concreta que os
eventos devem assumir. Tal estética básica e limitante responde pela ausência de modos que
fornecerão a evidência peculiar para a objetificação. Ao mesmo tempo, como tudo precisa
assumir duas formas de um par, essa estética é condição que possibilita uma infinita reduplicação
dos próprios pares.
Assim, o gênero evidencia através do que os melanésios percebem como as aptidões dos
corpos e mente das pessoas, o que estes contêm dentro de si e os seus efeitos sobre os outros. As
capacidade tornam-se manifestas por meio de uma diferenciação interna entre macho e fêmea. É
a capacidade ou aptidão aquilo que surge como preocupação das pessoas: a base convencional
através da qual são estabelecidos os atributos de masculinidade ou feminilidade, no entanto, não
é apreendida como uma prática simbólica, artificial. Dado que todas as pessoas são definidas em
termos de suas aptidões ou capacidades, segue-se que as pessoas só podem ser compreendidas
numa forma marcada pelo gênero, logo, as pessoas não podem evitar demonstrar o gênero
naquilo que elas fazem. Um agente pode optar por agir, mas, ao agir, só pode fazê-lo de uma
determinada maneira. Por isso, na visão melanésia, ser um agente é mobilizar sua capacidade
generalizada para uma finalidade específica.
A dominação, ao contrário da lógica ocidental, não pode basear-se nas estruturas de
hierarquia e controle familiar, na organização de relações, ou na ideia de que o que está em jogo
é a criação da sociedade ou a exploração de um domínio natural e que, no processo, certas
pessoas perdem seu direito à auto-expressão. A dominação na Melanésia não representa a
dominação da cultura sobre a natureza, e não deve ocupar nossa atenção com se representasse.
Correlatamente, a vantagem dos homens por si só não reside na constituição da ação; homens e
mulheres agem com igual assertividade, pois, os homens e as mulheres melanésios não se
encontram numa relação irredutivelmente ativa e passiva uns em face dos outros. Portanto, seria
um erro ver certas pessoas como sendo sempre objetos das transações dos outros, ou supor que
sua forma “livre”, natural, seja a de sujeitos ou agentes. Pode-se dizer que a pessoa não existe
num estado permanente, seja de subjetividade ou de objetividade. Um agente, sujeito que age, é
construído como um pivô de relações.
O agente é quem, a partir do seu próprio ponto de vista, age tendo em mente um outrem.
Ele surge como um ponto de inflexão de relações, capaz de metamorfosear um tipo de pessoa em
outro, um transformador. Se na cultura ocidental, uma pessoa pode ser levada a agir de maneira
tal a negar sua subjetividade, um sujeito transformado em objeto. Na cultura malinésia ninguém
pode agir por alguém, pois não se trata de “sujeitos” agindo sobre “objetos”. A intenção do ato é
estabelecer a própria relação em si. Um agente é levado a agir não para expressar a subjetividade
dominante de outro, ao contrário, é porque os fundamentos e as razões para empreender a ação,
os outros que ele leva em conta, encontram-se sempre para além do momento da própria ação.
Essas razões aparecem, pois, como atos de outras pessoas. Mas, visto que essas pessoas não
podem agir por ela, apenas ela pode assumir sua própria ação. Nesse sentido, é somente a sua
própria vontade que ela pode exercer.
Em síntese, o debate aqui apresentado tentou tratar da possibilidade da prática de uma
“antropologia feminista” como uma criatura híbrida que, derivada de um mito ciborgue
(Haraway, 2009), faz junção entre realidade social e a ficção. Ao introduzir o debate feminista,
Strathern apontou para uma crítica contemporânea e autônoma à cultura ocidental. Tal crítica
trata-se tanto da ficção que mapeia nossa realidade social e corporal como um recurso
imaginativo que pode sugerir alguns frutíferos acoplamentos. Com o ciborgue, a natureza e a
cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação
pela outra. Para que a antropologia seja levada tão a sério quanto o feminismo, não se deve
simplesmente discutir de maneira superficial pontos escolhidos da fantasia polêmica ou teórica
de alguém. Pelo contrário, isso requer referência retrospectiva aos dados sociais e culturais
através dos quais a antropologia se produz. Pela explicitação da natureza contextualizada dos
construtos analíticos exigindo que os próprios construtos analíticos sejam situados na sociedade
que os produziu. As negatividades se fazem presentes ao mostrar que este ou aquele conjunto de
conceitos não se aplica ao material etnográfico tratado. Enfim, os contextos devem ser
contrastados, não confundidos.
Criar um espaço para a mulher, como aponta Haraway (1995), se converteu em um
espaço para o eu, e a experiência se converteu em um instrumento para o conhecimento do eu. O
eu cognoscente é parcial em todas as suas formas, nunca acabado, completo, dado ou original; é
sempre construído e alinhavado de maneira imperfeita e, portanto, capaz de juntar-se a outro, de
ver junto sem pretender ser outro. Um conhecedor científico não procura a posição de identidade
com o objeto, mas de objetividade, isto é, de conexão parcial. Não há maneira de “estar”
simultaneamente em todas, ou inteiramente em uma, das posições privilegiadas estruturadas por
gênero. Os saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator
e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso.
As taxonomias do feminismo produzem epistemologias que acabam por policiar qualquer
posição que se desvie da experiência oficial das mulheres (Haraway, 2004). Segundo Haraway
(2009), o gênero pode não ser, afinal de contas, a identidade global, embora tenha uma imensa
profundidade e amplitude históricas. Fronteiras são desenhadas através de práticas de
mapeamento; “objetos” não pré-existem enquanto tais. Objetos são projetos de fronteiras. Elas
oscilam desde dentro, são muito enganosas. O que as fronteiras contêm provisoriamente
permanece gerativo, produtor de significados e de corpos. O mito ciborgue significa fronteiras
transgredidas, potentes fusões e perigosas possibilidades. São guerras de fronteiras. As coisas
que estão em jogo nelas são os territórios de produção, da reprodução e da imaginação.

Referências Bibliográficas
HARAWAY, Donna. ​"Gênero" para um dicionário marxista: a política sexual de uma
palavra.​ Cad. Pagu​ [online]. 2004, n.22, pp.201-246.
________________. “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo socialista na
década de 80” In; TADEU, Thomaz (org.). Antropologia do ciborgue: vertigens do pós-humano.
Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
________________. ​Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o
privilégio da perspectiva parcial.Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 5, p. 7-41, jan. 1995.
STRATHERN, Marilyn. O Gênero da Dádiva: problemas com mulheres e problemas
com a sociedade na Melanésia. Campinas: Ed. da Unicamp, 2006.
WAGNER, Roy. A Invenção da Cultura. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

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