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V —O contrato didatico Guy Brousseau introduziu a nogdo de contrato didatico para ana- lisar as relagdes que se estabelecem (explicita e implicitamente) entre o professor e seus alunos, ¢ sua influéncia sobre o ensino-aprendizagem da matematica. Neste texto, analisamos os fundamentos tedricos e os diferentes efeitos do contrato didatico. 1. O que é contrato didatico? Guy Brousseau (1980) define 0 contrato diddtico como 0 conjunto de comportamentos especificos do professor esperado pelos alunos, ¢ 0 conjunto de comportamentos dos alunos esperado pelo professor. Esse contrato é uma relagio que determina — explicitamente em pequena par- te, mas sobretudo implicitamente ~ aquilo que cada parceiro, professor ¢ aluno, tem a responsabilidade de gerir ¢ pelo qual ser, de uma maneira ou de outra, responsavel perante 0 outro (BROUSSEAU, 1986, p. 51). Anogio de contrato didatico permite distinguir a situagao didatica da situagdo-problema: na primeira, manifesta-se 0 desejo de ensinar que envolve, pelo menos, uma situagao-problema e um contrato didatico. A significactio do problema e do conceito para 0 aluno depende do contra- to didatico estabelecido; é 0 que permitird a negociagAo do sentido das atividades em jogo. A definigdo de contrato didatico acima diz respeito a certa situagao dada. Contudo, ele pode, também, se estabelecer em relagaio a um conjunto de situagdes em certo nivel de ensino; ele é, ainda, um meio para gerenciar 0 tempo didatico em sala de aula. Ja em 1982, Guy Brousseau escrevia: 89 Savpo Ac ALMoULOUD. © contrato fixa papel convencional do conhecimento, da apren- dizagem, da meméria ¢ transmite uma espécie de “teoria” do conhecimento, “teoria” que se chama “epistemologia escolar” € que tem como fungiio permitir a comunicagdo didatica (apud PERRIN-GLORIAN, 1994, p. 124, tradugiio nossa). E também por meio do contrato didatico que se busca © que impede ou favorece 0 acesso dos alunos ao conhecimento, © que bloqueia a entrada de certas criangas no processo da Pois os contratos, sua realizagao e seus sucessos que os professores ¢ os alunos tém da matematica ede seu funcionamento, das condigdes de sua criagao e, portanto, de seu interesse. Sao as circunstdncias nas quais a matemitica esta empregada que Ihe dao sua significag’o (BROUSSEAU, 1979, apud PERRIN-GLORIAN, 1994, p. 125, tradugdo nossa). Podemos destacar nas afirmagées de Brousseau trés observagdes importantes: a)As relagdes entre 0 professor e 0 aluno dependem de um pro- jeto social que se impde a todos e sao regidas por varias regras € convenc¢ées que, em sua maioria, nao colocam em jogo, de forma sistematica, o saber, que ¢ 0 terceiro parceiro da relagao didatica. Este aspecto é 0 que distingue contrato didatico de contrato pedagogico, ja que este ultimo privilegia sociais, atitudes, regras e convengées, 1 em jogo o saber. Além disso, como 0 contrato didatico & especifico dos conhecimentos em jogo, cle pode ser mudado, tendo em vista que os conhecimentos ¢ os saberes evoluem e se transformam, enquanto o contrato pedagdégico permanece estavel; b)O funcionamento do contrato didatico depende de diferentes contextos de ensino e de aprendizagem. As escolhas pedagd- gicas, 0 tipo de trabalho proposto para os alunos, os objetivos de formagio, a epistemologia do professor, as condigdes da avaliagao etc., fazem parte dos determinantes essenciais do contrato didatico; c)O contrato didatico tem por objetivo, fundamentalmente, a aquisic¢ao de saberes pelos alunos; d)Um contrato didatico mal administrado, por parte do professor ou do aluno, pode ser a fonte de dificuldades para a aprendizagem de novos conhecimentos matematicos. Geralmente, o contrato FUNDAMENTOS DA DIDATICA DA MATEMATICA, didatico vem 4 tona e é motivo de renegociagao quando nao € respeitado por qualquer um dos parceiros da relagao didatic professor ou aluno. 1,1 Exemplo de ruptura de contrato didatico O ensino da geometria no primeiro grau (caso da Franca) O reconhecimento de figuras e de configuragées ¢ o enfoque utilizado para o trabalho com Geometria nas quintas ¢ sextas séries do Ensino Fundamental francés, e o aluno deve também aprender a usar 0 instrumentos de desenho para desenvolver aptiddes graficas. As figuras sdo consideradas, nestes niveis de escolaridade, como objetos geomé- tricos concretos, sobre os quais se pode agir diretamente. Neste nivel, 0s alunos trabalham no que Henry (1997) chama de modelo pseudocon- creto: 0 objeto abstrato ¢ designado pelo sujeito como se fosse objeto da realidade. Por exemplo, o cubo perfeito, modelo abstrato, é designado em associagao ao cubo real, manipulado concretamente pelo aluno (por exemplo, um dado de seis faces). O processo de abstragao da figura ainda nao atinge o nivel de formalizagio. Nas sétimas e oitavas séries, os alunos devem avangar nesse processo, dando as figuras o status de objetos ideais e abstratos, distinguindo-os de suas representagdes (as figuras desenhadas), que tomam o sfatus de significando. Ainda no ensino francés, do inicio do Ensino Fundamental até a 5." série, geralmente, os problemas ¢ exercicios de matematica s&io numéricos e/ou geométricos. Contudo, a partir da 6.* série, comega-se a operar com letras e ntimeros: o que era feito apenas com ntimeros comega a ser feito com letras também, o que pode ser identificado como uma quebra no contrato didatico e gerador de dificuldades nestas séries, Muitos alunos tém dificuldade em adaptar-se a essa ruptura de contrato. No jogo de interagdes aluno-saber-professor, a ruptura de con- trato diddtico e sua renegociagao podem provocar a entrada em cena de fatores positivos ou negativos para a aprendizagem. 1.2 Algumas regras de contrato didatico em vigor no Ensino Fundamental Em geral, os problemas de matematica costumam ter em seus enunciados somente os dados necessarios para sua solugao e ter sempre uma tinica resposta, obtida pelo uso de operagdes numéricas. Com isso, OL 92 Sappo Ac ALMouLouD quando os alunos tém um problema para resolver, € muito comum que procurem os niimeros.contidos no enunciado do problema e fagam ope- ragdes mateméticas para encontrar a resposta. De qualquer modo, para estes alunos, hé sempre uma resposta para uma questao matematica e 0 professor a conhece, o que significa que se deve, sempre, encontrar uma solugio e esta pode ser corrigida. Se 0 professor oferece aos alunos somente problemas deste tipo, quando se depararem com problemas que nao tém solugao ou que tém mais de uma solugao possivel, ou que tém excesso de dados ou nfo sio resolvidos com opera¢des numéricas, certamente cometerfio erros ou nao saberao respondé-los. O fato de professor mudar o tipo de problema utilizado pode ser considerado uma ruptura no contrato didatico. Vejamos alguns exemplos de problemas que provocam esse tipo de ruptura: O custo de uma festa: Numa festa notamos a presenga de 350 homens e 473 mulheres. Quanto custou a festa? A idade da professora: Em uma sala de aula temos 15 meninos e 17 meninas. Qual é a idade da professora? Nos dois casos, € muito comum encontrar alunos que adicionam os valores identificados no texto para obter uma resposta (a soma en- contrada). Poucos respondem que é impossivel resolver tais problemas com as informagées que foram dadas. Outros exemplos (MOREIRA, 1993, p. 38, anexos, tradugio nossa): 1. Aos dez anos uma crianga tinha 115 cm (de altura). Qual seré sua altura quando tiver 20 anos? 2. Um motorista leva 3 dias para percorrer a estrada entre Sto Paulo e Recife. Quais os tempos de cada um de 3 motoristas para fazer esse percurso, se andarem na mesma velocidade e partirem de Séo Paulo na mesma hora? 3.Dois trabalhadores levaram 4 dias para cavar uma fossa. Quanto tempo levariam 4 trabalhadores para cavar a tal fossa, trabalhando no mesmo ritmo? FUNDAMENTOS DA DIDATICA DA MATEMATICA 2. Os efeitos do contrato didatico O conceito de contrato didatico permite analisar e interpretar os fendmenos nio evidentes que interferem no processo de ensino e de aprendizagem. Seu estudo permite identificar paradoxos ligados ao processo esperado pelo professor, quando organiza o ensino visando 4 produgéo auténoma, pelo aluno, do conhecimento pretendido. Anegociagao continua do contrato didatico tem por consequéncia, as vezes, a descaracterizagao dos conteiidos matematicos e dos objetivos de aprendizagem, pois o professor, querendo que seus alunos acertem, tende a facilitar a tarefa de diferentes maneiras: varias explicagées, pro- posta de problemas decompostos em subquestées, ensino de algoritmos etc. Pesquisadores em didatica da matematica identificaram diversas atitudes ou praticas que so verdadeiras rupturas de contrato por parte do professor, aqui designadas pelo termo “efeito de contrato”. Segundo Ricardo, Slongo e Pietrocola (2003), Brousseau faz alusao 4 dimensio paradoxal que permeia o contrato didatico, principalmente em fungio dos papéis atribuidos ao professor e ao aluno no processo de apropriacao do conhecimento, Ele parte do pressuposto de que o professor tem responsabilidades distintas do aluno e, como responsdvel por administrar 0 contrato no sistema didatico, deve proceder de modo a respeitar o papel do aluno no processo de ensino-aprendizagem, bus- cando compatibilidade com o seu desenvolvimento cognitivo. Assim, a situago paradoxal reside no fato de que tudo o que o professor ensina ou explicita ao aluno tira deste a oportunidade de aprender. Ou seja, ao mesmo tempo em que a mediagdo do professor na relacdo didatica se faz necesséria, ela nao pode solapar do aluno as condigdes imprescin- diveis para 0 processo de apropriagao do conhecimento. O professor procura reestruturar o problema, devolvendo-o ao educando; entretanto, essa “proximidade provoca a constante tentacao de ajudar o aluno a ser bem-sucedido, quando se trata de aprender” (PERRENOUD, 1999, p. 66, apud RICARDO; SLONGO; PIETROCOLA, 2003). 2.1 Efeito “pigmaleao” O contrato didatico depende das expectativas do professor em relagao aos alunos ou de um aluno em particular. Pode-se observar que, em alguns casos, um aluno ou um grupo de alunos tem sempre 0 mesmo rendimento nas avaliagdes aplicadas pelo professor por causa de um 93 Sappo Ac ALMoULOUD acordo tacito estabelecido. Tal acordo faz com que 0 professor, em alguns momentos, limite seu nivel de exigéncias em fungdo da imagem que faz desse(s) aluno(s). O mito que se estabelece entre as partes envolvidas ilustra o que os psicélogos chamam de fendmeno das expectativas. 2.2 Efeito “Topaze” e a comprovacio da incerteza Quando um aluno encontra uma dificuldade, o professor pode criar condigdes para que o aluno supere essa dificuldade sem um verdadeiro engajamento pessoal do discente. Tal procedimento docente é chamado de efeito “Topaze”. Esse fenémeno aparece nas situagdes didaticas em que o professor se encarrega de uma parte substantiva, essencial do trabalho, que deveria ser de responsabilidade do aluno. A resposta que 0 aluno deve dar € deter- minada de antemio e 0 professor escolhe as questdes para as quais essa resposta pode ser dada ou que podem provocar as respostas esperadas, facilitando as estratégias dos alunos e maximizando a significagao dessas respostas. Se os conhecimentos visados desaparecerem neste processo, teremos 0 efeito “Topaze”. 2.3 O efeito “Jourdain” ou 0 equivoco fundamental Este tipo de efeito se caracteriza quando um comportamento co- mum do aluno ¢ interpretado pelo professor como uma manifestag&o de um saber cientifico. Para evitar 0 debate de conhecimento com 0 aluno e, eventualmente, a aparigdo de um fracasso, o professor admite reco- nhecer o indice de um conhecimento cientifico nos comportamentos ou nas respostas dos alunos, no momento em que sao, de fato, motivados por outros fatores e por significagdes triviais. Um exemplo desse tipo de efeito é 0 aluno responder a uma questo colocada pelo professor com uma expressio do senso comum, a qual esse professor interpreta como resposta correta dando um sentido cientifico A resposta do aluno, Vamos supor que a atividade seja a resolugao de uma equaciio de primeiro grau, e o aluno usa, de forma sistematica, 0 “passar para o outro lado com sinal trocado” como regra para encontrar a resposta procurada. O professor ent&o passa a apresentar prioritariamente equagées do tipo a + x = b, para que o aluno obtenha a resposta correta, mesmo usando uma estratégia falsa. Segundo Brousseau (1986), alguns métodos pedagdgicos com base nas preocupagées das criangas provocam muitas vezes esse efeito. 4 FUNDAMENTOS DA DIDATICA DA MATEMATICA 2.4 O deslize metacognitivo ; Este fenémeno ocorre quando o professor considera uma técnica, util para resolver um problema, como objeto do estudo, e perde de vista o verdadeiro saber a desenvolver. Como exemplos, podemos citar: ea utilizagao de diagramas de fiechas utilizados para estudar a teoria dos conjuntos; * a utilizagao das tabelas de variacdo para dominar 0 conceito de fungao; © utilizagao da arvore de possibilidades para resolver problemas de contagem; © utilizagao de suas préprias palavras e de suas heuristicas como objetos de estudo, no lugar do verdadeiro conhecimento mate- matico, na ocasiaio de um fracasso de uma atividade previamente proposta. 2.5 O uso abusivo da analogia As analogias sao, as vezes, titeis para fazer compreender o signi- ficado de um conceito. No entanto, sua utilizagao abusiva pode desca- racteriz4-lo. Tais analogias sto produtoras do efeito “Topaze”. Segundo Brousseau (1990), esse tipo de didatica é independente dos contetidos e pode levar o professor a dar importancia a varidveis nao pertinentes A situagiio, deixando de lado as mais especificas. A aprendizagem por analogia é um método de apresentagao do saber que s6 favorece a sua memoriza¢io. Se os alunos fracassam em suas aprendizagens, 0 professor, muitas vezes, lhes oferece uma chance sobre o mesmo assunto, evocando-o por ‘meio de analogias. Desta forma, a solugao dos alunos é obtida por efeito da leitura das indicagdes didéticas, e nao de uma releitura do problema em questdo. No jogo do professor com 0 sistema aluno-meio, o contrato didatico permite estabelecer as regras € estratégias basicas que podem evoluir-e sofrer as adaptagdes necessirias, consequéncia das renegociagdes do contrato e que caracterizam mudangas do jogo do aluno, Para cada conhecimento e, talvez, para cada fungao de um conhe- cimento, devem corresponder situag6es (problemas) especificas e prova- velmente diferentes contratos didaticos. A evolugao dos jogadores e do jogo pode levar & rejeigdo de certos conhecimentos julgados ineficientes, bem como do contrato didatico previamente estabelecido. 95 96 Sappo Ac ALMOULOUD O professor tem obrigagao social de ensinar tudo o que for ne- cessario para a aquisigao do saber. E uma cobranga do aluno, sobretudo quando esta em dificuldade. Sob a pressio do aluno e 0 desejo de fazé-lo adquirir bastante conhecimento, 0 professor facilita demais as tarefas e, por isso, As vezes, perde as chances de obter ¢ constatar, objetivamente, a aprendizagem visada. Analisando esses efeitos, percebe-se que 0 professor se encontra muitas vezes numa situagao dificil, pode-se dizer que se encontra num paradoxo: ele deve criar condig6es para a aprendizagem dos alunos, mas quase tudo que ele faz para conseguir uma resposta satisfat6ria pode estar prejudicando a aprendizagem, por nao permitir que os alunos che- guem sozinhos a resposta esperada. O aluno também fica numa posi¢ao paradoxal, pois nao constréi, por conta propria, o saber que o professor quer lhe ensinar. Brousseau (1990) faz a seguinte hipdtese: a fase de devolugio apresenta grandes dificuldades, que tradicionalmente sto analisadas em termos de motivacao do aluno; as solugdes preconizadas sao, entao, de natureza psicolégica, psicoafetiva ou pedagégica. Sabemos que o conhe- cimento com significado e a situagao proposta para a sua aquisi¢o so fundamentais no proceso de ensino ¢ aprendizagem; a didatica propée meios especificos para que esse objetivo seja alcangado. O autor sugere um método para alcancar esses meios: modelar, sob a forma de “jogos” formais, as condigdes de funcionamento, de produgio eda génese do conhecimento escolhido de antemio ou cuja manifestagao foi observada. O objetivo dessa modelagem pode ser a construgdo de uma engenhgria didatica ou, ainda, a explicacdo ou previsdio dos com- portamentos dos protagonistas da relagdo didatica.

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