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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA (UEPB)


CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO
COMPONENTE CURRICULAR: DIREITO CIVIL I
PROFESSORA MESTRE RAISSA DE LIMA E MELO

ADPF 54: FICHAMENTO ANALÍTICO DO VOTO DA MINISTRA CARMÉN LÚCIA.

Thiago Boezio de Souto Santos1


Victor França Alves2
Victória Alencar Noronha3

RESUMO

O presente fichamento tem por objetivo apresentar, de maneira analítica, a posição da


Ministra Carmén Lúcia Antunes Rocha sobre a pauta da Arguição de descumprimento de
preceito fundamental 54, a qual trata da possibilidade de interrupção da gravidez de feto
anencéfalo. O julgamento da ADPF 54 foi realizado em 2012, em Brasília, no Supremo
Tribunal Federal, e teve como resultado o reconhecimento do direito da mulher de
interromper a gravidez em caso de feto anencéfalo. A decisão foi tomada por maioria de
votos, com 8 votos favoráveis e 2 votos contrários.

Palavras-Chave: Anencefalia, Dignidade humana, Aborto.

ANÁLISE DO VOTO DA MINISTRA

De início, faz-se necessário destacar a forma como está segmentado esse tópico: Após
uma análise do voto da ministra pelos discentes, percebe-se que ela trata de 3 aspectos
principalmente, os quais serão desenvolvidos a seguir:

1. DIGNIDADE HUMANA DA MULHER


- “O útero é o primeiro berço de todo ser humano”. Faz-se uma relação direta entre o berço e
sua transformação em esquife diante da conjuntura de vida incerta do bebê. A ministra traz à
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tona o sofrimento materno e, dessa forma, o ferimento ao princípio constitucional da


dignidade humana, perante um cenário de luto e solidão.
- “Por isso, às vezes, o luto pelo qual a mãe passa - e se puder optar pela interrupção da
gravidez, é luto e libertação, porque é a possibilidade de ela continuar a vida, tocar a vida num
momento em que há continuidade, sem aquele luto momentâneo - seria a perspectiva de um
luto que se prolonga muito além do que é humanamente ponderável ou possível de se exigir de
qualquer pessoa”. Na fala apresentada a ministra declara o luto como um sentimento profundo
causado na mãe, que traz graves ameaças a sua saúde física e emocional. Tendo, pois, a
possibilidade de ser decidida da melhor forma por aquela que gera o feto anencefálico, com a
finalidade de provocar menos prejuízos à sua dignidade humana.
- Referência literária: “Quem tiver tido a oportunidade de ler "Manuelzão e Miguilim", de
Guimarães Rosa, haverá de saber que talvez o grande exemplo de dignidade humana que Deus
tenha deixado tenha sido exatamente o da mãe”. Faz-se uma série de narrações acerca do
tratamento materno em relação à um filho, mesmo depois de morto, para sustentar o
argumento de que é necessário uma maior sensibilidade analítica sobre o trauma psicológico
gerado tanto pelo aborto do filho quanto pela possível morte do bebê anencefalo. Cabendo,
pois, à mãe julgar como necessário o caso, fazendo sua escolha.
- “Por isso acho que, exatamente fundado na dignidade da vida, é que neste caso essa
interrupção não é criminalizável, como posto nos votos que me antecederam.”

2. DIGNIDADE HUMANA DO HOMEM

- ”Quando falamos em dignidade, estamos falando de todos: do feto, da mulher, do pai, do que
seria o irmãozinho mais velho [...]” . Nesse trecho de seu discurso, a ministra Cármen Lúcia
chama atenção para o fato de que a gestação de um feto anencéfalo apresenta uma
complexidade socioemocional muito mais complexa e profunda do que aparenta possuir. Em
um primeiro momento, é natural atentar-se apenas aos direitos e às perspectivas da mãe e do
feto mas, no entanto, pode haver muitos outros envolvidos e afetados nessa conjuntura, como
o pai da criança.

- Nesse sentido, a ministra argumenta que “o direito do pai também precisa ser contado nessa
discussão (…) esse homem também precisa participar e ser levado em consideração na sua
dignidade.” Não é uma decisão do tipo individualista, envolve uma ampla esfera de fatores a
serem levados em consideração, não apenas a vontade de um indivíduo. Essa perspectiva da
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Cármen Lúcia a respeito da decisão de interromper a gravidez de feto anencéfalo é bastante


interessante, haja vista que geralmente não é levado em consideração esse aspecto da opinião
coletiva, como a do marido, por exemplo, apesar de afetá-lo diretamente.

3. VIDA DIGNA

- A ministra Cármen Lúcia enfatizou a necessidade de considerar o feto e a gestante ao tratar


do direito à saúde de forma constitucional. Nesse contexto, a não punição do aborto, desde que
seja a única alternativa para preservar a vida da gestante, está intrinsecamente relacionada à
noção de vida digna. Essa perspectiva não se limita apenas à saúde física, mas abarca também
a saúde mental e psíquica. De acordo com o renomado filósofo do direito Herbert Hart, a vida
digna se apresenta como uma textura aberta, revelando que a saúde, tanto física quanto
psíquica, constitui um componente fundamental desse conceito. Portanto, a abordagem da
ministra ressalta a importância de reconhecer que a vida digna engloba tanto o bem-estar físico
quanto o emocional, conferindo maior profundidade à discussão sobre a preservação dos
direitos das gestantes em situações de interrupção da gravidez.

- Na sua explanação, a ministra Cármen Lúcia destacou com sensibilidade a interconexão


entre medo e vergonha como expressões de fragilidade humana diante da impossibilidade de
escolher sobre a interrupção da gravidez. Ao mencionar o caso de uma mulher que, ao
descobrir a anencefalia de seu feto, se isolou por cinco meses em sua casa (pois as pessoas
sempre perguntavam algo sobre o bebê que praticamente não tem expectativa de vida por sua
condição), Cármen Lúcia evidenciou o impacto profundo da vergonha, a qual a fez se
esconder de uma sociedade que deveria ser democrática e garantir liberdade a todos. A
ministra também enfatiza, implicitamente, a necessidade de assegurar a dignidade de uma vida
em que o livre arbítrio da mulher seja respeitado e que ela possa tomar decisões sem ser
submetida a julgamentos ou estigmas sociais.

- Além disso, para fundamentar sua perspectiva, a ministra Carmén Lúcia discorre: “Acho
também que não se pune aborto praticado, senão como salvar a vida da gestante, como diz o
Código Penal, mas a vida saudável, e aqui a saúde psíquica está incluída. Ademais, tenho ser
suporte para uma decisão no sentido de não se considerar punível o aborto nesses casos o
artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (atual LINDB) ao afirmar que o juiz, ao aplicar
a lei, haverá de considerar os fins a que ela se destina. E todas e quaisquer leis no sistema
brasileiro haverão de garantir a dignidade da pessoa humana ou do ser humano. “. Ou seja,
defendeu que, caso o feto seja anencéfalo (sem perspectiva de vida), seria melhor interromper
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a gravidez pois teria um impacto menor sobre a dignidade humana, isto é, em seu pensamento,
a saúde física e mental dos indivíduos no geral.

FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO

Entre as páginas 178 e 236 do arquivo em formato PDF da ADPF 54, a ministra
Carmén Lúcia traz vários fundamentos legítimos, pertinentes e produtivos para fortalecer a
sua decisão, os quais estão apresentados a seguir:

Entretanto, pelo motivo da finalidade da atividade (resumo), destacam-se as seguintes


fundamentações:

● Código de Ética Médica (Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.246, de


8.1.88, artigo 56): é vedado ao médico “desrespeitar o direito do paciente de decidir
livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de
iminente perigo de vida".

● Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial, de 1948: promessa de não


permitir que “concepções religiosas, nacionais, raciais, partidárias ou sociais
intervenham entre [seu] dever e seus pacientes, [além de manter] o mais alto respeito
pela vida humana, desde sua concepção".
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● Código Brasileiro de Ética Médica (Resolução n. 1.248/88, do Conselho Federal de


Medicina), art. 62: "o médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana,
atuando sempre em benefício do paciente" e, ainda, no § 22 do seu art. 61, dever o
médico assistir ao paciente "ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou
psíquico", vedado a ele "realizar experiências com novos tratamentos clínicos ou
cirúrgicos em paciente com afecção incurável ou terminal sem que haja esperança
razoável de utilidade para o mesmo, não lhe impondo sofrimentos adicionais" (art.
130).

● "0 argumento de que todos somos seres potencialmente mortos, pois 'nascemos para
morrer', é uma forma metafisicamente estreita de entender a gravidade da anencefalia
em um feto. A ausência de cérebro é uma malformação irreversível e letal para a qual
a medicina não apresenta qualquer alternativa paliativa ou de sobrevida. Um feto com
anencefalia que alcance parto é um sobrevivente agonizante à espera da morte
instantânea. Assumir a finitude humana não significa adotar o postulado cristão de que
a vida é uma passagem para a morte e, por isso, indiferente à extensão da vida, se 70
anos ou 7 minutos, seríamos todos seres-para-a-morte. 0 princípio constitucional do
direito à vida protege o direito das pessoas a se manterem vivas e poderem viver a
vida. Ou seja, ter a capacidade e a potencialidade de viver a vida é algo fundamental
para se imputar a alguém o direito à vida. Nesse sentido, o direito à vida como um
princípio constitucional é uma expressão da crença de que somos seres-para-a-vida e
que a morte é uma expressão da finitude humana, mas não a razão de nossa existência.
(…)” - Débora Diniz e de Ana Cristina Gonzalez Vélez.

● “Podemos afirmar que 'el derecho a la vida' está indisolublemente unido al hecho
biológico de la existência humana, la cual constituye el presupuesto de tal derecho.
Por ello es posible afirmar que se tiene derecho a viver, porque ya se vive. En otros
términos, la existência biológica constituye la carta de naturalización dei derecho a la
vida' (VALLE, Rubén Hernández. Livro colectivo de la Asociación Costarricense pro
Naciones Unidas, Editorial Juricentro, S.A., San José de Costa Rica: 1979, p. 31)”.

● “No Direito Penal brasileiro, a interrupção da gravidez ou o aborto integra o capítulo


"Dos crimes contra a vida" (arts. 124 e 125 do Código Penal). Apenas duas situações
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são insuscetíveis de punição da prática: I - se não há outra forma viável de salvar a


vida da gestante; II - se a gravidez decorre de estupro e a interrupção da gravidez é
precedida da anuência da gestante ou, se essa for incapaz, de seu representante legal
(art. 128 do Código Penal)”.

● “Luiz Flávio Gomes sustenta também incongruência na impossibilidade do aborto do


feto anencéfalo porque "em jogo está a vida ou a qualidade de vida de todas as pessoas
envolvidas com o feto malformado. Se até em caso de estupro, em que o feto está bem
formado, nosso Direito autoriza o aborto, nada justifica que idêntica regra não seja
estentida para o aborto anencefálico. Lógico que a gestante, por suas convicções
religiosas, pode não querer o aborto. Mas isso constitui uma decisão eminentemente
pessoal (que deve ser respeitada). De qualquer maneira, não pode impedir o exercício
do direito ao abortamento para aquelas que não querem padecer tanto sofrimento"
(Nem todo aborto é criminoso. Revista Jurídica Consulex, n. 191, dez-2004, p.
36-37)”.

● “(...) Por outra parte, toda norma jurídica es una estructura de finalidad y quiere ser
expresión de una valoración. (...). El Derecho positivo formulado, a su vez, se propone
servir a las exigências de justicia. En efecto, (...) todo Derecho positivo es um
popósito, um ensayo de traducir en normas las exigencias de la justicia - y de otros
valores con ella conectados - respecto a una determinada situación social de um lugar
y de una época. (...)" (Ciência dei Derecho y Filosofia, México: Fondo de Cultura
Econômica, 1963, p. 21- 23). - Recasens Siches.

● Artigo 1° do Código Civil: "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil",
dispondo o art. 22 que "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com
vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

● "(...) a opinião contrária, que recorre à idéia da 'morte total', não é realizável de modo
conseqüente. Segundo ela, ter-se-ia de manter os mortos cerebrais respirando
artificialmente, até que sua última célula tivesse morrido. E transplantes de órgãos não
poderiam jamais ocorrer, uma vez que eles pressuporiam matar pessoas ainda vivas. A
maior parte dos defensores da concepção da 'morte total' não extrai estas
conseqüências, mas deseja permitir, após a morte encefálica, a suspensão do ulterior
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tratamento médico intensivo, bem como o transplante de órgãos. Com isso, eles se
colocam, primeiramente, em dificuldades quase insolúveis - pois têm de tornar a vida
humana objeto de uma ponderação de valores - e reconhecem, em segundo lugar, a
morte encefálica como o instante decisivo, com o que acabam por aceitar, de facto, a
posição que situa aqui o momento da morte (...)" (A proteção da vida humana através
do Direito Penal. Conferência realizada em 7.3.2002, no encerramento do Congresso
de Direito Penal em Homenagem a Claus Roxin, Rio de Janeiro. Fonte:
http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=134).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ministra Cármen Lúcia, ao proferir seu voto acerca da interrupção da gravidez de feto
anencéfalo, buscou fundamentar sua decisão em extensas bases de natureza ética, tal qual a
dignidade humana - seja pela perspectiva da mãe, do pai ou de demais familiares/entes
próximos -, além de constantemente recorrer a repertórios da área médica, como o Código de
Ética de Medicina, e demais artigos e citações que reforçam seu posicionamento perante a
pauta.
Dessa forma, a ministra, ao lado de sete demais ministros, fez-se estabelecer pelo
Supremo Tribunal Federal que é inconstitucional a interpretação segundo a qual a interrupção
da gravidez de feto anencéfalo constitui aborto. Assim, as gestantes têm a liberdade de
escolher o que se deve proceder em casos desse tipo, constituindo um verdadeiro avanço no
respeito à dignidade humana pela óptica legal.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54


(ADPF 54), 2012. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp>.
Acesso em: 13 de maio de 2023.

PLENO - Julgamento da ADPF 54 sobre interrupção de gravidez de feto anencéfalo (2/5).


STF, 12/04/2012. Vídeo do Youtube (2:19:27). Disponível em:
https://youtu.be/E2js96aasjY?t=7587. Acesso em 13 de agosto de 2023.

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