Você está na página 1de 4

Fichamento 5 – Arthur Megiani Carvalho

Delírio e crença
Antes de definirmos o que particularmente é delírio, devemos entender o que é possível
denominar como realidade. Esta é admitida a partir de uma crença ou um sistema dessas,
pelas quais o indivíduo se insere em um discurso que, por sua vez, o coloca em
conformidade com aquilo que se entende por realidade. Dessa maneira, aquele que se
encontra presente na realidade nada mais está do que inserido em um discurso criado por
uma crença vigente, assim, o sujeito assente a uma crença preestabelecida que ordena sua
percepção da realidade. O assentimento é definido pela tomada de uma afirmação como
verdadeira sem que seja questionada a sua verdadeira validade lógica, como que em um
caráter de fé, ou seja, para que seja possível a inserção na realidade não se pode questionar
o discurso ordenador desta, deve-se submetê-lo a ele e aceitá-lo como verdade universal.
A partir desse entendimento do assentimento como caráter primário do enquadramento
na realidade é que se torna possível o estudo do delírio e dos indivíduos delirantes.
Inicialmente, não podemos tomar o delírio como falso por não se enquadrar ao discurso
da realidade, pelo contrário, para o indivíduo delirante, aquilo que é percebido no
processo é extremamente real e significativo, de modo que o delírio possui sua própria
articulação discursiva, sendo assim entendido como uma percepção particular da
realidade, que não se encaixa no processo discursivo ao qual as percepções dos demais
indivíduos se encontram.
Ao entender o discurso como o ordenador da realidade, é possível inferir que este possua
determinadas regras as quais os indivíduos devem se submeter sem qualquer tipo de
questionamento, tais regras dizem respeito justamente ao campo daquilo que pode ou não
pode ser dito, do que é ou não pertinente para aquela comunidade discursiva. Isso se
relaciona especificamente à subtração do objeto de gozo dos indivíduos, de modo que
para que estes se insiram no discurso e, consequentemente, na realidade, é necessário que
se enquadrem nas regras discursivas e, por sua vez, subtraiam o gozo destinado ao objeto.
Nos indivíduos delirantes essa subtração não ocorre e o sujeito em questão ignora as
premissas do discurso, entendendo que seu objeto de gozo se encontra na realidade e que,
portanto, pode ser percebido a partir de uma inundação de signos que produzem um
significado particular e diferente daquele existente na comunidade discursiva.

A vivência delirante primária


É por meio desse processo que se mostra possível o entendimento de como o delírio se
inicia no individuo, a partir do momento em que o objeto de gozo não se insere na cadeia
discursiva, ou seja, não é subtraído da percepção, a ruptura com a realidade ocorre e o
indivíduo passa a entrar em um estado inicial de delírio, o qual apresenta diversos nomes,
porém utilizaremos aquele proposto por Conrad, o estado de trema. Nesse estágio
específico, o indivíduo passa a admitir significações próprias para os objetos percebidos,
as quais funcionam como uma espécie de alívio perante a angústia do delírio que está
para iniciar (o indivíduo acaba por se encontrar em uma tensão pré-delirante), assim, é
possível entender que esse estágio seria uma tentativa de dizer algo (produzir significado)
mesmo sem saber o que (percepção do signo que não possui significação de acordo como
a cadeia discursiva).

A interpretação delirante
Inicialmente é necessário apresentar a diferenciação realizada por Jaspers daquilo que se
entende como ideias deliroides e ideias delirantes, para ele, o primeiro grupo se estabelece
a partir de um vínculo orgânico com outro processo psíquico relacionado à irrupção de
um trauma anterior, dessa maneira, é possível rastrear a origem do “delírio” e encontrar
sua causa. Já o segundo grupo, das ideias verdadeiramente delirantes, essa conexão não
se estabelece e, justamente por isso o indivíduo é levado a elaboração própria de
significado aos objetos da percepção, ou seja, o delírio propriamente dito é, para Jaspers,
uma justificação daquilo que se mostrara inicialmente incompreensível. Lacan se opõe a
Jaspers de modo que, para ele não é possível entender o delírio a partir de um processo
orgânico que promoveu uma ruptura na percepção de realidade do indivíduo e, portanto,
caracterizou a percepção delirante. Pelo contrário, para ele a própria experiência
desencadeadora do delírio já se mostra como ruptura da cadeia de sentido suportada pelo
discurso, assim, é preciso entender a causalidade da psicose como a perda (foraclusão) de
um significante primordial, entendido por Lacan como Nome-Do-Pai. Uma vez que este
se estabelece como suporte da cadeia de sentido ordenadora da realidade, a sua perda,
seria o desencadeamento do indivíduo perante o discurso e, também como o significante
responsável por limitar a presença do gozo no mundo (subtração do gozo).
Esse desencadeamento, portanto, seria o responsável pela percepção delirante, na qual o
indivíduo promove a sua própria interpretação da realidade, segundo sua particular
significação dada aos signos que atingem sua percepção. Tal interpretação apresenta um
caráter intimamente sexual, de modo que na falta do significante primordial (Nome-Do-
Pai) que restringe o gozo à comunidade discursiva, o indivíduo passa a elaborar um
cenário delirante, no qual ele reorganiza os desejos pulsionais referentes ao objeto a sua
maneira, promovendo o desencadeamento característico do estado delirante. Além disso,
o delírio permite o indivíduo sobreviver às imposições do real constantemente percebido,
por meio de sua inserção no simbólico, ou seja, a percepção completa e constante do
objeto de gozo promove nos sujeitos uma angústia incapaz de ser suportada, é por isso
que eles atribuem seus próprios significados a essa percepção, uma vez que não são
capazes de limitar esse objeto ao discurso o que os impediria de percebê-lo da maneira
mais pura e angustiante. Contudo, esta é uma solução categoricamente provisória e falha,
uma vez que a psicose constantemente é desencadeada nesses indivíduos, os quais se
encontram em um eterno processo de admitir significações provisórias e percepções
particulares da realidade.

Do juízo de realidade ao delírio universal


Freud ao analisar os indivíduos neuróticos entende que nestes se estabelece um princípio
de certa maneira semelhante ao delírio psicótico, a denominada fantasia. Segundo ele, o
aparelho psíquico dos indivíduos se sustenta a partir do princípio de prazer, o qual é
responsável pela ordenação dos comportamentos do indivíduo a partir de seus desejos
pulsionais, contudo, para que o indivíduo se insira na realidade, é necessário que ele não
se submeta a esses desejos inconscientes. Essa submissão é denominada por Freud como
princípio de realidade, o qual promove uma adaptação dos desejos pulsionais do
indivíduo à realidade em que este se insere, o desejo primordial não pode ser alcançado
tal qual em uma situação primária, portanto, o princípio de realidade promove uma
alteração dessa satisfação a partir da inserção de um objeto de desejo na realidade.
Entretanto, o próprio aparelho psíquico vai contra esse processo, ou seja, ele deseja
alcançar a satisfação tal qual a existente na cena primordial e, para isso, utiliza-se da
fantasia, um estado de percepção distinto da realidade e que se aproxima do princípio do
prazer.
A fantasia, por sua vez, pode ser entendida também como uma condição para o próprio
enquadramento na realidade, uma vez que para tal o indivíduo deve realizar a assunção
do princípio de realidade a partir da perda do gozo, assim, na medida que o sujeito realiza
a extração da fantasia desse princípio, ele também promove a perda do gozo, uma vez que
este se encontrará retido em sua maior parte ao âmbito da fantasia. Lacan irá afirmar que
é necessário neutralizar a presença excessiva de gozo na realidade, de modo a restringir
esse ao objeto característico da fantasia, denominado por ele de objeto a. é apenas por
meio da extração que o aparelho psíquico será capaz de diferenciar o objeto percebido na
realidade do objeto de desejo da fantasia.
Em contrapartida, Lacan define que naqueles indivíduos onde não ocorre a extração do
objeto a e, portanto, da fantasia, separando-a da realidade, se desencadeia a psicose, de
modo que nesses sujeitos o gozo não se encontra restrito ao campo da fantasia, tudo aquilo
que é percebido na realidade por eles pode ser entendido como objeto de desejo e, dessa
forma possui uma significação própria característica do delírio. O trabalho delirante seria,
então, uma forma de localizar e significar esse gozo excessivo a partir da elaboração de
um saber próprio, que não apresenta nenhum tipo de caráter ou conexão com a realidade.
Podemos diferenciar neurose e psicose a partir de seus pressupostos iniciais, de modo que
na neurose o indivíduo atua em favor do princípio de realidade, perdendo parte do gozo
derivado do princípio de prazer e o restringindo à fantasia, já na psicose ocorre o oposto,
o indivíduo atua em favor do princípio de prazer, negando o princípio discursivo da
realidade que se opõe ao objeto de desejo. Isso fica claro a partir da sintomatologia
característica das duas condições, enquanto na neurose o recalque característico do
princípio de realidade faz com que o investimento libidinal do indivíduo se dê sobre a
fantasia, produzindo o retorno do recalcado a partir da irrupção de sintomas, na psicose o
mesmo investimento atua na busca do objeto de desejo na realidade, de modo que a
medida que este não é encontrado, a própria realidade é alterada pelo indivíduo na sua
busca eterna.

Alucinação e delírio universal


Retomando Freud mais uma vez, é possível caracterizar a alucinação como o estado
referente à satisfação do desejo primordial, ocorrida em um primeiro momento da infância
ao qual não é possível retroceder nem recordar. Essa satisfação quase que mítica não é
capaz de ser alcançada pelo indivíduo em nenhum outro momento da vida que se segue,
dessa forma, qualquer satisfação a partir de um objeto de desejo estabelecido no futuro
será insuficiente, o que gera no sujeito uma decepção, sentimento caracterizado pela
imposição do princípio de realidade sobre o indivíduo. Dessa forma, a inserção na
realidade promove uma percepção no indivíduo de que a sua satisfação é agora
determinada a partir da inserção de um discurso específico, que ordena a própria obtenção
do objeto de desejo. Justamente por isso é que a realidade se apresenta de maneira precária
aos indivíduos, eles não conseguem obter o prazer tal qual no início de sua infância, de
modo que estão sempre fadados ao eterno conflito entre o desejo inconsciente do princípio
de prazer e a repressão discursiva característica do princípio de realidade.
É possível entender que o processo primordial que insere o indivíduo no discurso consiste
na sua vinculação com a linguagem e, a partir disso, é impossível entender o delírio como
um estado que não se relaciona de forma alguma com a realidade, uma vez que se a
própria linguagem é aquilo que insere o indivíduo na realidade, todo o indivíduo falante
então se torna delirante. Para evitar esse equívoco da generalização (delírio universal)
vale lembrar que a realidade se estabelece a partir de um discurso que não deve ser
questionado, isto é, todos os fatos percebidos estão relacionados a uma cadeia discursiva
específica, da qual diferentes indivíduos fazem parte, contudo, para fazerem parte dela,
eles não podem questionar as regras pelas quais ela se estabelece e se organiza. Assim,
não podemos classificar a psicose a partir da produção do delírio, uma vez que os
indivíduos neuróticos também apresentam esse estado, porém de modo distinto, inseridos
na realidade (o delírio dos neuróticos pode ser caracterizado pela sublimação ou pela
produção do Ideal de Eu). O psicótico se caracteriza como tal a partir da negação do
próprio discurso que produz a realidade, ele é em si um indivíduo que não possui crença
no princípio ordenador e, portanto, não produz o significado dos estímulos por meio de
sua inserção em uma cadeia significante ordenada pelo discurso, mas sim elabora seus
próprios significados para tudo aquilo que percebe, tendo, dessa forma, a certeza de que
tudo aquilo que ocorre em seu delírio é real, diferentemente do neurótico que é capaz de
remodelar a condição delirante para que esta se encaixe na realidade (fantasia).

Você também pode gostar