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Martha Medeiros.

Alguém encontrou esta pérola escrita numa placa em frente a um mercadinho de um morro
do Rio: "Vende frango-se". É poesia? Piada? Apenas mais um erro de português? É a vida e
ela é inventiva. Eu, que estou sempre correndo atrás de algum assunto para comentar, pensei:
isto dá samba, dá letra, dá crônica. Vende frango-se, compra casa-se, conserta sapato-se.
Prefiro isso aos "q tc cmg?" espalhados pelo mundo virtual, prefiro a ingenuidade de um
comerciante se comunicando do jeito que sabe, é o "beija eu" dele, o "qué vim aqui casa?" de
tantos.
Vende carne-se, vende carro-se, vende geleia-se. Não incentivo a ignorância, apenas concedo
um olhar mais adocicado ao que é estranho a tanta gente, o nosso idioma. Tão poucos
estudam, tão poucos leem, queremos o quê? Ao menos trabalham, negociam, vendem
frangos, ao menos alguns compram e comem e os dias seguem, não importa a localização do
sujeito indeterminado. Vive-se.
Talvez eu tenha é ficado agradecida por este senhor ou senhora que anunciou-se de forma
errônea, porém inocente, já que é do meu feitio também trocar algumas coisas de lugar, e
nem por isso mereço chicotadas, ao contrário: o comerciante do morro me incentivou a me
perdoar. Esquecer o nome de um conhecido, não reconhecer uma voz ao telefone, chamar
Gustavos de Olavos, confundir os verbos e embaralhar-se toda para falar: sou a rainha das
gafes, dos tropeços involuntários. Tento transformar em folclore, já que falta de educação não
é. Conserta destrambelhada-se. Eu me ofereço pro serviço. Quem não? Sabemos todos como
é constrangedor não acertar, mas lá do alto do seu boteco, ele nos absolve. Ele, o autor de um
absurdo, mas um absurdo muito delicado.
Vende frango-se, e eu acho graça. Achar graça é uma coisa boa, sinal de que ainda não
estamos tão secos, rudes e patrulheiros, ainda temos grandeza para promover o erro alheio a
uma inesperada recriação da gramática. E fica eleito o dono da placa o Guimarães Rosa do
morro! Vale o que está escrito, e do jeito que está escrito, uma vez que entender, todos
entenderam. Fica aqui minha homenagem à imperfeição."
disponível em : https://gauchazh.clicrbs.com.br/donna/colunistas/martha-
medeiros/noticia/2016/05/martha-medeiros-vende-frango-se-
cjpl72h6n00d8wscnqqeevgj5.html

O Homem Trocado- Luis Fernando Verissimo


O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma
enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem. - Tudo perfeito - diz a enfermeira,
sorrindo. - Eu estava com medo desta operação... - Por quê? Não havia risco nenhum. -
Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos... E conta que os
enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi
criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um
filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais.
Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera
explicar o nascimento de um bebê chinês. - E o meu nome? Outro engano. - Seu nome não é
Lírio? - Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e... Os enganos se sucediam. Na escola,
vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não
conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na
lista. - Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive
que pagar mais de R$ 3 mil. - O senhor não faz chamadas interurbanas? - Eu não tenho
telefone! Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes. -
Por quê? - Ela me enganava. Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para
pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico
dizer: - O senhor está desenganado. Mas também fora um engano do médico. Não era tão
grave assim. Uma simples apendicite. - Se você diz que a operação foi bem... A enfermeira
parou de sorrir. - Apendicite? - perguntou, hesitante. - É. A operação era para tirar o
apêndice. - Não era para trocar de sexo?
disponível em : https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2022/03/o-homem-trocado/

A Última Crônica- Fernando Sabino


A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na
realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar
inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no
cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao
circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer um flagrante de esquina,
quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e
perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café,
enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”.
Não sou poeta e Estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem
os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de
sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A
compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acentuar pela presença
de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se
instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de
curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno da mesa a instituição
tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que
matar a fome. Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente
retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um
pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa,
como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e
depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da
naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O
homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — um bolo
simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua
expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por
que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno da mesa um
pequeno ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O
pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um
animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas,
que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai
risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo
no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas,
muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: “parabéns
pra você, parabéns pra você...” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A
negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher
está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo, limpa o farelo de bolo que
lhe cai no colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
intimamente do sucesso da celebração. De súbito, dá comigo a observá-lo, nossos olhos se
encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba
sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria a minha última crônica:
que fosse pura como esse sorriso. (Fernando Sabino. In: Para gostar de ler. São Paulo: Ática,
1979-1980.)

LUTO DA FAMÍLIA SILVA -Rubem Braga


A assistência foi chamada. Veio tinindo. Um homem estava deitado na calçada. Uma poça de
sangue.
A Assistência voltou vazia. O homem estava morto. O cadáver foi removido para o
necrotério. Na seção dos "Fatos Diversos" do Diário de Pernambuco, leio o nome do sujeito:
João da Silva. Morava na Rua da Alegria. Morreu de hemoptise. João da Silva — Neste
momento em que seu corpo vai baixar à vala comum, nós, seus amigos e seus irmãos, vimos
lhe prestar esta homenagem. Nós somos os joões da silva. Nós somos os populares joões da
silva. Moramos em várias casas e em várias cidades. Moramos principalmente na rua. Nós
pertencemos, como você, à família Silva. Não é uma família ilustre; nós não temos avós na
história. Muitos de nós usamos outros nomes, para disfarce. No fundo, somos os Silva.
Quando o Brasil foi colonizado, nós éramos os degredados.
Depois fomos os índios. Depois fomos os negros. Depois fomos imigrantes, mestiços. Somos
os Silva. Algumas pessoas importantes usaram e usam nosso nome. É por engano. Os Silva
somos nós. Não temos a mínima importância. Trabalhamos, andamos pelas ruas e morremos.
Saímos da vala comum da vida para o mesmo local da morte. Às vezes, por modéstia, não
usamos nosso nome de família.
Usamos o sobrenome "de Tal". A família Silva e a família "de Tal" são a mesma família. E,
para falar a verdade, uma família que não pode ser considerada boa família. Até as mulheres
que não são de família pertencem à família Silva. João da Silva — Nunca nenhum de nós
esquecerá seu nome. Você não possuía sangue azul. O sangue que saía de sua boca era
vermelho — vermelhinho da silva.
Sangue de nossa família. Nossa família, João, vai mal em política. Sempre por baixo. Nossa
família, entretanto, é que trabalha para os homens importantes. A família Crespi, a família
Matarazzo, a família Guinle, a família Rocha Miranda, a família Pereira Carneiro, todas essas
famílias assim são sustentadas pela nossa família. Nós auxiliamos várias famílias importantes
na América do Norte, na Inglaterra, na França, no Japão. A gente de nossa família trabalha
nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas
minas, nos balcões, no mato, nas cozinhas, em todo lugar onde se trabalha. Nossa família
quebra pedra, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o
tapete do circo, enche os porões dos navios, conta o dinheiro dos Bancos, faz os jornais, serve
no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo. Apesar disso, João da
Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na
vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política...
Recife, junho, 1935. BRAGA, Rubem. O Conde e o passarinho e Morro do Isolamento. 5 ed. Rio de

Janeiro: Record, 1982. 194p.

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