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Princeton University Library

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EDITORA GETULIO COSTA


Caixa Postal n .° 1829
RIO DE JANEIRO
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CAPÍTULO I
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Princípios sociais
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CAPITULO I

PRINCÍPIOS SOCIAIS
SUMÁRIO : § 1.º – Ciência e filosofia social;
§ 2 .° — Sociologia determinista e sociolo
gia finalista ; § 3 .0 — Posição da ciência so
cial no quadro geral das ciências ; 4 .° —
Postulados da sociologia .

§ 1.º – Ciência e filosofia social

Se quisesse começar por um paradoxo, diria que a


sociologia é uma ciência que sempre existiu e que entre
tanto ainda não existe.
Sempre existiu , porque já se foi o tempo em que se
afirmava ter sido Augusto Comte o seu fundador. Se
é certo que ele a colocou no ápice das ciências, antes que
a moral fosse definitivamente construida, dando-lhe uma
importância que até então não possuia e lhe pôs o nome
que fez fortuna e tão bem lhe cabe, apesar do seu hibri
dismo etimológico, – tambem é certo que muito antes :
dêle já era a sociedade objeto de estudo e que Platão e
Aristóteles foram , em nossa civilização ocidental, os ver
dadeiros fundadores da ciência social. Muito antes dêles,
porém , vamos encontrar toda a sorte de observações
TRISTÃO DE ATHAYDE

sociais entre os mais remotos documentos escritos conhe


cidos :: — os livros sagrados da India ou da China. E se
alguem já se ocupou com a Economia da Biblia, não
tardará muito que alguem estude a Sociologia da Bibila,
pois o problema social nasceu no dia em que, segundo
a revelação biblica, Adão se encontrou desamparado em
face do mundo, tendo de ganhar o pão com o suor do seu
rosto.
Podemos , portanto , afirmar, sem forçar demais a
realidade, que a sociologia sempre existiu.
Mas, por outro lado, não é menos certo dizer que ela
ainda não existe. Ciência em ser, em via de formação,
oscilando até hoje no meio das mais variadas interpreta
ções , recebendo da realidade histórica , cada dia , não só
novas experiências, mas ainda novos desmentidos – não
ha dúvida que a sociologia é até agora uma ciência in
forme, cuja legitimidade ainda é discutida e cujas con
clusões são ainda mais do que discutiveis. .
Essa condição precária da ciência social é que nos
leva a observar a seguinte situação de facto : ao passo
que os sociólogos afirmam que a sociologia é realmente
uma ciência, os não sociólogos, e o público em geral, per
guntam , com certo ceticismo, quais as leis seguras que
essa ciência já formulou e quais os resultados benéficos
que já trouxe à sociedade.
Entre o excessivo otimismo daqueles e o pessimismo
exagerado destes, procuremos a via média que coloque a
sociologia no posto que lhe convem .
Nem devemos esperar dela a solução de todos os
problemas da sociedade, pois — “ não é a uma filosofia
prática e sim à parte prática da teologia que de facto
compete regular nossas ações” ( 1 ), nem julgar que se
( 1) JACQUES MARITAIN - Saint Jean de la Croix , pra
ticien de la contemplation in “ Etudes Carmelitaines ” .
Abril, 1931.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

trata de uma simples elocubração pedante de doutrinários


de gabinete, sem contacto com a realidade da vida.
. Haverá, porém , uma sociologia como ha uma física
ou uma biologia ? Ou haverá , ao contrário , tantas socio
logias quantos sociólogos ?
A obra considerável de Augusto Comte foi, justa
mente , tentar a monopolização da sociologia , se é possivel
assim dizer. Da mesma forma que a matemática ou a
biologia existem como ciência das relações numéricas ou
como ciência das relações vitais — assim tambem a socio
logia vinha coroar toda a poderosa sistematização cientí
fica que ele tentara , como sendo a ciência das relações
sociais. E sendo a sociedade um objeto a estudar, como
o número ou a vida, nada tolhia a equiparação da ciência
da sociedade às demais ciências exatas, dentro da hierar
quia de complexidade crescente é generalização decres
cente.
Augusto Comte tentava assim , seguindo as pégadas
de seu mestre Saint Simon, levar o estudo da sociedade
do empirismo à ciência. Êles vinham reagir contra o
individualismo social que triunfara com a Revolução de
89, e tentavam estudar e organizar a sociedade em bases
científicas e não mais “ metafísicas” , como diziam ao
referir -se ao individualismo do século XVIII.
Encontramo-nos hoje em face da sociologia corrente
na mesma posição em que Augusto Comte se encontrava
em face dos estudos sociais que o precederam . Comte,
desejando constituir uma ciência da sociedade, lançava -se
contra a metafísica individualista dos seus antecessores .
Hoje em dia , se quisermos tambem construir uma
ciência da sociedade — - como até aqui ainda não foi cons
truida -- o primeiro passo tem de ser uma reação, não
contra a metafísica pura , pois é o contrário que desejamos
fazer, e sim contra as varias metafísicas impuras, sobre
E
TÃO AYD
20 TRIS DE ATH

tudo naturalistas, agora existentes, do mesmo modo que a


sociologia positiva começou por se lançar contra a metafí
sica social individualista .
E por isso é que se torna tão necessária a distinção
entre empirismo e filosofia (ou ciência ) social. A ciência
social completa se baseará na observação empírica dos
fenômenos sociais e na interpretação filosófica dêsses
fenômenos. E se nós observarmos com um pouco de
atenção quasi tudo o que hoje corre mundo como sendo
ciência social, veremos que não é mais do que empirismo
social puro ou pura metafísica social, quasi sempre natu
ralista. É preciso reagir contra essa dissociação. Compor
se-á portanto a ciência social de três partes fundamentais :
a sociologia (ou filosofia social), a sociografia (ou empi
rismo social) e a socioprudência (ou ação social). A
ciência social por conseguinte, que é um todo em três
partes, pode ser estudada — ou à luz dos princípios filo
sóficos e morais ; ou à luz dos factos sociais ; ou à luz das
necessidades de progresso social. Ou como metafísica
social, isto é, como doutrina da sociedade em suas relações
com os demais ramos do saber humano, e portanto como
concepção geral da vida. Ou como observação social posi
tiva, isto é, como conhecimento da sociedade em sua
existência objetiva , de facto, histórica, preliminar a
qualquer interpretação ou aplicação. E finalmente como
ação social que é propriamente a aplicação prática , a
tradução em termos concretos, em leis, em regulamentos,
em obras de tudo o que foi observado empiricamente e
especulado filosoficamente para constituir uma verda
deira ciência social. Quando, portanto , me refiro à socio
logia como ciência social, não o faço no mesmo sentido
daqueles que só julgam conhecimento certo o conheci
mento “ científico ” , isto é, aquele que é baseado no método
de observação e experimentação.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 11

Essa concepção positivista do termo ciência é que


confunde terrivelmente as coisas, quando nós as queremos
considerar à luz de uma concepção integral da realidade.
E o que chamo “ concepção integral da realidade” é aquela
que não limita o conhecimento ao âmbito das realidades
sensíveis, tal como se vem fazendo desde que o mundo
moderno, a partir de Kant, perdeu a fé na inteligência.
A concepção cristã da vida está nessas condições.
O cristianismo não é apenas uma moral, como muito
frequentemente se julga, especialmente depois que o pro
testantismo vai lentamente resvalando para um puro
racionalismo. O cristianismo tem uma moral, isto é, afir
ma com autoridade o que deve ser , — mas é uma filosofia
e uma religião, isto é, afirma o que é não só na ordem
natural pela razão, mas ainda e sobretudo na ordem
sobrenatural, pela revelação.
E o que distingue fundamentalmente a concepção
cristã da vida, em face da concepção agnóstica ou mate
rialista, é justamente o séu totalismo, a incorporação
completa da realidade. E temos aí dois sistemas filosóficos
que se defrontam .
Segundo o sistema totalista , isto é, o que julga a
inteligência capaz de apreender toda a riqueza do ser,
se bem que de um modo variado e equilibrado, (o que
levou essa teoria do conhecimento a ser chamada de
" realismo moderado ” ) , segundo esse modo de ver, —
“ ha nos objetos da experiência uma diversidade pro
" funda e uma completa heterogeneidade. Existem , de um
" lado, substâncias, seres reais permanentes, sujeitos de
“ qualidades e fenômenos diversos ; e de outro lado fenô
“ menos, que são as modificações sucessivas e fluentes das
“ substâncias. Entre as substâncias e os fenômenos se
“ colocam as qualidades, propriedades e potências, perma
“ nentes como “ substâncias mas apoiando-se sôbre estas.
TRISTÃO DE ATHAYDE

" Ligados assim às substâncias, prendem -se tambem


“ os fenômenos, mas por uma relação diferente da pri
" meira , a causas, isto é, a outras substâncias que as de
“ terminam e as produzem . Considerados assim , tomam
“ os fenômenos o nome de efeitos. As leis não são mais do
“ que a generalização das relações que existem entre os
“ efeitos e as suas causas.
“ Temos, portanto , seis noções diferentes que se pren
“ dem umas às outras — substâncias, fenômeno, proprie
“ dade, causa , efeito, lei.
" Essas noções são irredutiveis ; cada uma dessas
“ palavras tem um sentido. Mas no estudo do mundo,
" os seres e os objetos aos quais se aplicam essas noções
“ são, muitas vezes , os mesmos e sempre unidos entre si,
“ de modo que o estudo de uma dessas noções é insepa
“ rável do estudo das outras” (1 ). .
Esta é, portanto, a concepção totalitária do mundo.
“ Segundo a doutrina positivista , ao contrário, só
“ ha um objeto de observação, os factos, e uma noção
" deduzida da observação, as leis, que são apenas coleções
" de factos ; as causas ou são idênticas com as leis ou estão
“ fora dos limites do conhecimento humano" (2 ).
Estamos, portanto, em face de duas concepções da
ciência e da realidade. Uma que reduz todo o conheci
mento da realidade ao facto e à lei — e outra que respeita
toda a variedade concreta, toda a riqueza e a complexi
dade do real, dos seres individuais e distintos, adaptando
o conhecimento de cada um dêles à sua realidade especí

' ( 1) A . DE BROGLIE - Le positivisme et la science expe


rimentale , ed. Soc. Gén . Lib . Catholique Paris , 1881 -
vol. II, pag. 523 -524 .
(2 ) Ib . loc. cit.
13
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA
fica, da mesma forma que se toca piano com os dedos e
se escuta com os ouvidos. No primeiro caso , isto é, na
concepção naturalista, torna-se o homem a medida das
coisas, colocando-se no centro do universo e modelando
a realidade dos seres pela forma do seu entendimento
individual, (é o sistema do racionalismo filosófico ) ; no
segundo caso , isto é, na concepção integral, as coisas é que
são a medida do homem e este aplica a sua inteligência ao
universo , adaptando-a à variedade dos objetos aos quais
ela se aplica.
A primeira atitude é a do subjetivismo kantiano e
post-kantiano, inclusive positivista e naturalista.
A segunda é a do objetivismo aristotelico -tomista ,
pre-cartesiano e post-naturalista , pois dominou a filosofia
grega e medieval, nos seus maiores cultores , e tende, hoje
em dia , a renascer , depois de alguns séculos de ostracismo,
sôbre os destroços da anarquia individualista em que de
generou o abuso do subjetivismo filosófico cartesiano.
Um fenômeno curioso ocorreu com esse desequilíbrio
do pensamento moderno, que fez da inteligência humana
o centro do universo e reduziu , portanto, o conhecimento
das coisas à medida da mesquinha inteligência do homem ,
quando essa inteligência é apenas uma forma inferior da
inteligência, a mais baixa das formas intelectuais. Essa
inteligência se anuncia no animal como ápice do instinto ,
desabrocha no homem como luz de equação às realidades
IMPERFEITAS, abre-se de todo no anjo , inteligência perfeita
que vê a realidade perfeita dos seres, e finalmente se
realiza em sua plenitude em Deus, que é a Inteligência
em si, fonte e meta de toda a ordenação intelectual dos
seres.
Podemos dizer que a concepção naturalista da inte
ligência é talhada apenas pelas medidas do homem . Ao
passo que a concepção integral da inteligência é talhada
TRISTÃO DE ATHAYDE

pela medida de todos os seres em que a inteligência reluz,


desde os rudimentos animais até o puro foco divino. A
inteligência não é privilégio do homem .
Esse é um dos pontos cardiais para compreendermos,
em sociologia , a distinção entre sociologia determinista,
feita apenas também à medida do homem natural, - é
a sociologia finalista , concepção talhada segundo a me
dida do homem completo, do homem todo, do homem como
elemento composto de transição entre o mundo natural e
o mundo sobrenatural.
O fenômeno curioso a que desejava aludir ha pouco ,
é que, justamente na hora em que Copernico e Gallileu
mostravam , na cosmologia , que a terra não era o centro
do universo , no sentiddo empírico em que fôra por muitos
considerada até então (mas não por todos, como hoje
está fartamente demonstrado) – começava na filosofia
uma tendência crescente a fazer do homem o centro dos
conhecimentos reais. De modo que, à medida que a cosmo
logia se desgeocentrava, a filosofia se antropocentrava . O
homem começava a fazer-se o centro de todas as coisas. E
quanto mais alargava o âmbito das ciências, mais dimi
nuia o da filosofia, pois considerava a natureza como
infinita , mas a sua própria inteligência como finita ,
exatamente ao contrário da concepção integral da ver
dade, segundo a qual a natureza é que é finita e a inte
ligência é que é infinita. Esta participa direta ou indi
retamente de Deus, ao passo que aquela apenas indireta
mente participa de Deus. Pois é a inteligência que repre
senta, em nós, a presença direta de Deus e a natureza em
si não conhece a luz da inteligência .
Isso que se dá com a vida individual, tambem se dá
com a vida coletiva . Pois a sociedade não altera a natu
reza da vida . Ao contrário do que ocorre entre a vida
animal e a vida humana, entre as quais ha uma dife
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 15

rença de natureza e não apenas de grau, — entre a vida


individual e a vida social não ha uma diferença de natu
reza e sim apenas de grau. A vida social é quantitativa
mente diversa da vida individual e não qualitativamente.
Ela possue uma realidade própria , mas não um modo
de ser essencialmente distinto. O que vale, portanto, para
o indivíduo, vale para a sociedade, e se nós em filosofia
ou em pedagogia procuramos o homem todo e não apenas
o homem natural, o homem material, — assim tambem na
sociedade devemos procurar a sociedade toda, em sua
individual não se esgota com o simples fenomenismo psi
cológico . E o mesmo se dá com a verdade social. O fenô
meno social é apenas uma parte da substância social
completa. Quando em um ser qualquer , isolamos o acci
dental do essencial, estamos mutilando êsse ser. A socie

e de matéria , de substância e de fenômeno. E uma con


cepção integral da sociologia, como toda concepção com
pleta da pedagogia ou da psicologia , não pode contentar
se apenas com o fenomenismo sociológico, como se a apa
rência das coisas exgotasse a sua essência .
O que ha um século vemos em sociologia é primeira
mente a ilusão de se fazer ciência social positiva quando
se está fazendo filosofia social, naturalista ou racionalista ,
de todo substancialismo sociológico . .
Eis porque a sociologia cristă se encontra hoje, em
face da sociologia naturalista , em situação semelhante à
dos fundadores da sociologia científica, biológica ou ma
temática, em face do individualismo ou empirismo social.
Desejamos, primeiro, separar provisoriamente o
campo do empirismo do campo da filosofia social, mos
trando que o empirismo social é objetivo e não positivista,
16
TRISTÃO DE ATHAYDE
comunista ou católico. A parte positiva da sociologia, de
observação ou de estatística, é um terreno neutro e fa
zemos questão de defender essa neutralidade, como fun
damental ao equilibrio das ciências. Os comunistas querem
uma ciência de classe; os positivistas, uma ciência anti
teológica e anti-metafísica. Os católicos, enquanto afir
mam o caracter científico da filosofia e a subordinação ,
em princípio, das ciências particulares ou analíticas (e
entre elas a sociologia ) à metafísica ou ciência dos pri
meiros princípios, — o que mostra o caracter universalista
da concepção cotólica de ciência — esses defendem a
neutralidade do domínio positivo ou factual da sociologia ,
ciência dos factos sociais. Contra factum non valet argu
mentum - é um princípio da filosofia da Escola. E o
respeito pelo objeto é um postulado metodológico primor
dial de toda verdadeira filosofia cristã, e portanto de toda
a sociologia . Separado portanto (não ontológica mas
metodologicamente ) o campo da observação do da inter
pretação social e denunciados os postulados filosóficos
implícitos que se contêm no amago de quasi toda a so
ciologia que se julga apenas científica no sentido anti
metafísico da palavra, como a de Durkheim , por exemplo,
e a da grande maioria dos sociólogos norte-americanos
modernos — feita essa separação, a que só nos é dado
aludir em princípio, passamos então a mostrar como na
interpretação dos fenômenos sociais duas concepções
filosóficas gerais se defrontam – o fenomenismo e o
substancialismo. Da primeira é que participa a sociologia
determinista , cuja expressão mais completa é o marxismo,
implícito ou explícito. Da segunda deriva a sociologia
finalista, ou integral, cuja expressão mais completa é o
cristianismo social. Na realidade social de nossos dias,
bem como na doutrina sociológica, os dois grandes polos
humanos são Roma e Moscou , o Vaticano e o Kremlin .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 17

$ 2.° — Sociologia determinista e Sociologia finalista


A concepção naturalista da vida, — com a sua ex
clusão de todos os valores finais, com a sua omissão de
toda a realidade espiritual autônoma, com a sua supressão
de toda vida ultra -terrena, com a sua redação da comple
xidade do real à simplicidade superficial dos fenômenos
aparentes, com a sua subordinação dos fenômenos a uma
causalidade puramente relativa, com a sua negação de
toda liberdade na sucessão total e inflexivel da cadeia
mecânica dos factos, – essa concepção naturalista ou
determinista da vida dominou a sociologia moderna, como
dominou a literatura e a filosofia , a psicologia ou a
pedagogia . .
O naturalismo literário , que sobrepairou às decadas .
centrais do século passado e hoje volta a predominar :
sistematicamente nas civilizações pragmáticas e iliberais
como a Rússia , em que todas as manifestações individuais
tendem a um fim coletivo e' obedecem a uma concepção !
geral inflexivel, no caso o materialismo integral, – 0
naturalismo literário digo, reduziu tambem a literatura
à expressão dos factos. Suprimiu a idéia livre, roubou à
realidade íntima das coisas a riqueza dos seus desdobra
mentos ilimitados, escravizou a beleza à ciência , condenou .
a fantasia , sacrificou o fundo à forma, fez da arte uma ·
arma social, do homem um autômato e da natureza um :
despotismo. Eis o balanço triste do naturalismo literário .
E como a literatura é mais simples e mais acessível ao
público que as outras atividades do pensamento ; como por
isso mesmo ela não pode trair, por muito tempo, as
regras naturais do bom senso ; como é mais fácil descobrir
o erro literário que o filosófico ou o sociológico — foi no
campo da literatura que primeiro se desenvolveu a reação
anti-naturalista . No próprio século do naturalismo lite
rário surgia o simbolismo como uma reação de desagravo
18 TRISTÃO DE ATHAYDE

contra a mutilação que os naturalistas tinham imposto


à realidade completa. O simbolismo veio reivindicar os
direitos do invisível, que o naturalismo tinha sistemati
camente postergado. E toda a literatura moderna, quando
não influenciada por motivos políticos ou sociais , está
hoje curada do naturalismo literário , se bem que entregue
a outros erros, que não me cabe aqui examinar. Quero ·
apenas acentuar que o primeiro campo onde se fez a
reação antinaturalista foi no da literatura , porque era
mais simples ver logo ali as deformações que o natura
lismo literário impunha à riqueza indefinida das coisas e
dos homens em sua vida acidental e substancial, visível
e invisível.
Essa reação do invisível e da substância, contra a
tirania do visível e do acidente, é bem mais difícil em
filosofia , em pedagogia ou em sociologia, porque, sendo
mais fechado o seu campo de ação, é menos acessível à
crítica lúcida do bom sensq. Nem por isso, porém , devemos
deixar que o erro naturalista venha fazer nêsses terrenos
os mesmos estragos que causou no campo literário , apenas
acobertado aqui pela rede de arame farpado que defende
do grande público êsses sacrários temerosos que guardam
divindades de nomes difíceis, como : metafísica, cosmo
logia ou antropologia . São féras que o grande público
gosta de ver através das grades, mas em cujas jaulas
tem um receio muito justo de pôr os pés . E o. temor
imposto é o princípio da impunidade. O naturalismo se
perpetua fora do campo literário pelo medo que todos
temos de o denunciar à polícia das idéias, como de
nunciamos o naturalismo literário à polícia do bom gosto .
Tentemos aqui, timidamente, apontar de longe para
o grande e habilissimo malfeitor, em suas operações extra
literárias.
O naturalismo filosófico sacrificou a metafísica ,
mutilando a inteligência humana e julgando-a ineficaz
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

para ler no íntimo das coisas como o seu próprio destino


etimológico determina : - intelligere, intus legere, isto é,
ler dentro dos seres.
O naturalismo filosófico relegou a metafísica para o
campo da fantasia e arruinou assim todas as ciências do
espírito, entregando-nos à tirania das ciências da matéria .
E o espetáculo edificante que nos mostra o mundo mo
derno é o de um florescimento admirável das ciências do
mundo exterior e uma decadência lamentável das ciências
do mundo interior. Já sem falar no contraste entre os
progressos das ciências naturais e o abandono das ciências
sobrenaturais. A física venceu a teologia , no mundo
moderno, como a teologia vencera a física no mundo me
dieval. Tudo indica que a tarefa dos homens de amanhã,
que nós já devemos ir preparando, não será arruinar de
novo a física, mas restaurar a teologia para equilibrar o
mundo dos conhecimentos. A verdade total é essencial
mente harmonia e equilíbrio , física e metafísica. E o
naturalismo filosófico querendo reagir contra a hiper
trofia do abstrato , caiu na hipertrofia do concreto , que
já nos vai asfixiando.
O naturalismo psicológico fez o mesmo. O homem
perdeu o senso do equilíbrio interior, à medida que se
sentia cada vez mais escravo das fôrços exteriores. E isso
lhe veio através do naturalismo psicológico. Êste dissolveu
a alma, criou o paradoxo de uma psicologia sem psiquê,
como em biologia criou o paradoxo semelhante de uma
ciência da vida, bio -logia , sem vida, isto é, sem conceber
a vida como um fenômeno específico e apenas como uma
modalidade mecânica da matéria.
Ao passo que o naturalismo psicológico dissolvia
assim o próprio objeto da ciência psicológica, isto é, a
alma humana, como fenômeno específico no meio dos de
mais fenômenos biológicos — ao mesmo passo que se dava
essa dissolução do mundo interior, operava-se uma crista
20 TRISTÃO DE ATHAYD
E
lização (digamos assim ) cada vez maior do mundo ex
terior, um desenvolvimento cada vez mais extenso das
ciências da natureza. Demodo que o homem se encontrou
sem vida interior segura, e em face de uma vida exte
rior inflexivel e cada vez mais sistematicamente pene
trada. Desorientação completa dentro de si mesmo, e
subordinação completa fora de si. Demodo que, ao mesmo
tempo que a psicologia naturalista lhe dava uma liber
dade interior anárquica, escravizava -o a um mundo
mecanizado. Libertário por dentro, escravo por fora
- eis a condição a que o naturalismo psicológico
e científico reduziu o homem de nossos dias. Daí a sua
desorientação moral. Daí a decadência da psicologia ra
cional, daí o triunfo da eugenia , ciência do corpo humano,
sôbre a psicologia , ciência da alma humana. O homem
passa a ser um animal que quer embelezar-se, e não mais
uma alma que quer subir . A biologia naturalista fez o
homem provir do animal. A psicologia naturalista faz o
homem voltar para o animal. Freud é o sucessor lógico
de Haeckel.
Se passarmos à pedagogia naturalista, veremos um
resultado idêntico .
À medida que por meio de métodos os mais avançados
se pretende individualizar a educação, vai-se sacrificando
tudo ó que se ganha pedagogicamente com o que
se perde pela falsa concepção da vida, que o naturalismo
dissemina .
O naturalismo pedagógico esbarra na moral, desem
boca num simples solidarismo sem solidez , que não con
segue dar às conciências o fundamento ético necessário
às crises das paixões humanas. O naturalismo pedagógico
deforma a conciência infantil, estreita-lhe os horizontes,
não prepara o adolescente para nenhum dos embates das
idades de transição. E o resultado é que, quanto mais se
fala em escola nova, em escola ativa, em escola funcional,
reali
:ela
whe
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

como vindo revolucionar toda a pedagogia moderna –


vemos crescerem a desorientação educativa na mocidade,
a multiplicidade de idéias contraditórias, a proliferação
da mais estranha flora de paixões requintadas, o que em
geral assinala as eras de decadência das civilizações.
Não ha um mal orgânico , pelo contrário, em nenhum
dos métodos pedagógicos novos. Ha muito de útil e
e
ticiament na valorização
frutuoso em muitos deles, especialmente
uip a educar.mMas
arralma
a ecada atu
as oo nnatu
que se dá ao mérito de
ralismo pedagógico vem subrepticiamente inserir-se na
metodologia educativa e arruinar na sombra o que se
pretende construir na luz.
Rousseau, pretendendo desligar a criança dos laços
naturais que a prendiam a realidades substancialmente
superiores — chegou ao individualismo pedagógico, con- 31
tra o qual se formou exatamente o atual naturalismo
pedagógico. É o erro igual e contrário . É o desequilibrio ;
naturalista mutilando a educação e fazendo esquecer o
homem todo pelo homem animal, o homem que possue
uma realidade pessoal que excede de todo conformismo
social, pelo homem cujo máximo ideal é um aniquilamentos
deo
da personalidade, uma negação de sua liberdade de ser
diferente , uma mecanização coletiva em que a massa
anula a pessoa, e o homem passa a ser apenas um meio
direit
para a realização dos fins do Estado.
O naturalismo sociológico, enfim , criou para o homem
uma situação análoga à da filosofia , da psicologia e da
pedagogia naturalistas.
Negando toda realidade substancial e toda finalidade
seu

absoluta , o naturalismo sociológico fez da sociedade uma


encruzilhada, como a psicologia naturalista fizera do
homem um ponto de passagem . Nenhuma solidez , nenhu
ma estabilidade, nenhuma raiz .
o

A sociologia naturalista entregou a sociedade a si


mesma, fez da sociedade um fim em si, deificou -a. Limi
E
22 TRISTÃO DE ATHAYD

tando -se ao simples fenomenismo, vendo em todas as


relações sociais simples processos sem nenhuma substan
cialidade, — a sociologia naturalista pretendeu construir
sôbre a areia, converter o relativo em absoluto, levantar
uma sociedade estável sem lhe dar raizes estáveis. Foi
essa a ilusão da sociologia naturalista da burguesia , que
julgou fazer da sociedade um ambiente para o indiví
duo e com isso alcançar a plena expansão dêste último.
O resultado não se fez esperar. E o individualismo,
que a burguesia julgou defender, veio a ser escarnecido
pelo proletariado, que joga às urtigas todas as concepções,
tradições e interesses da burguesia naturalista e instala -se
pela fôrça , para realizar o seu individualismo proletário ,
que é uma negação do individualismo burguês e faz da
sociedade o fim do indivíduo e não mais o seu ambiente
de expansão, pois segundo o leninismo, não ha direitos
contra a massa e esta é que é a medida do indivíduo.
O naturalismo sociológico se realiza logicamente no
comunismo, que é a sua expressão integral e o termo de
sua evolução. A sociedade burguesa do naturalismo socio
lógico tende geralmente para o suicídio. E o espetáculo
da nossa civilização ocidental, que procura salvar o seu
individualismo fracassado por meio de um socialismo
inconfessado, pelo moderno predomínio do Estado, –
êsse espetáculo não é de molde a contestar a afirmação
que aí fica.
Contra essa hipertrofia da concepção naturalista da
vida, que nos vai levando inexoravelmente para a negação
de nós mesmos, — é que se levanta a concepção finalista
da vida, de que o cristianismo social é a forma mais
completa .
A sociologia finalista ou integral, como o seu nome
está indicando, pretende restabelecer o equilibrio perdido
na concepção da sociedade, como do indivíduo. Ela não
vem contrariar a natureza, e muito menos negar a ação,
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 23

das causas segundas. Ela mostra apenas, com simplici.


dade, que a natureza é insuficiente para explicar-se a si
mesma, que as causas segundas postulam uma causa pri
· meira , que ha em toda substância a tendência a um fim ,
que o absoluto e o relativo são irredutiveis entre si, que
a vida é infinitamente mais complexa do que os sistemas
com que pretendemos enfeixá -la , que a inteligência hu
mana é apenas uma forma elementar da inteligência
pura, que o homem é um ser que excede de si mesmo,
que a sociedade é um meio e não um fim , e que a ciência
da sociedade não possue uma autonomia completa , pois
o relativo não pode dominar o absoluto, nem o meio, o
fim , e a verdade total se manifesta pela harmonia e
pela hierarquia entre as ciências e as finalidades
parciais, coordenando- se todas para a Ciência e a Fina
lidade última que é Deus.
Eis o esquema imperfeito de alguns princípios e re
sultados da sociologia finalista. Ela vem reagir contra o
fenomenismo sociológico que fez da sociedade um simples
decurso de aparências. Ela vem restaurar o senso da
integridade, onde a face natural das coisas banira a face
sobrenatural. Ela vem arrancar a sociedade e a sociologia
ao império da causalidade mecânica e restaurar a liber
dade, sem sacrifício da necessidade, e apenas com a dis
criminação dos respectivos campos de ação. Ela vem dar
ao homem a sua dignidade perdida, que ele mantem
quando conhece o seu posto no universo e que perde
quando pretende deificar-se. Ela vem marcar o predo
mínio das causas finais, que restabelece o equilibrio entre
as finalidades imediatas e concretas, governadas e uni
ficadas pela atração da Finalidade integral e definitiva.
Ela vem colocar, enfim , a sociologia no quadro geral das
ciênciås, não como ciência última e medida das demais
ciências, como quer o naturalismo e especialmente o posi
tivismo, mas como ciência parcial e integrada no complexo
24
TRISTÃO DE ATHAYDE

geral dos conhecimentos humanos. E tudo isso, não para


alcançar uma harmonia puramente sedutora à nossa inte
ligência, mas para respeitar a realidade integral das
coisas, que o naturalismo mutilou . É o amor da verdade
que nos deve levar à sociologia completa e à repulsa das
sociologias unilaterais.
O que distingue, portanto, antes de tudo, uma socio
logia finalista de todas as sociologias deterministas que
hoje predominam , é que aquela pretende reagir contra
o parcialismo sociológico, não pela monopolização dos
conhecimentos, como em parte o fez Augusto Comte e
o fazem muitos modernos sociologistas, — mas ao con
trário , pela recusa de uma soberania que é a mais ilusória
das corôas. A sociologia não é a rainha das ciência . Eis o
que afirma uma sociologia sã . Vejamos então qual o seu
posto, na Côrte ou , para falar mais à moderna, na Secre
taria Geral das ciências. . .

§ 3.0 — Posição da Ciência Social no quadro


geral das ciências
O objeto de toda ciência é a ordem . Ora, se observar
mos esse fenômeno, vamos encontrar, nas coisas, duas
espécies de ordens :
a ) ou a ordem já existente nas coisas e que nós
apenas procuramos descobrir ;
b ) ou a ordem ainda não existente nas coisas e que
nós justamente procuramos nelas inserir.
Essa divisão do conceito de ordem vai servir-nos
para classificar as ciências do mundo natural, deixando
de fora as ciências do mundo sobrenatural, que aqui po
demos apenas mencionar para não complicar excessiva
mente as coisas.
Segundo o critério adotado, encontramos duas gran
des classes de ciência :
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

a) as ciências que procuram a ordem existente nas


coisas e são as chamadas ciências especulativas;
b ) e as ciências que inserem a ordem nas coisas e .
são as chamadas ciências práticas.
As primeiras buscam por natureza o que é; as se
gundas o que deve ser .
As ciências especulativas são, portanto, as ciências
que procuram conhecer para conhecer, que investigam o
que podemos chamar o conheimento puro. E se tentarmos
distinguir essas ciências- especulativas por um critério de
abstração crescente , que é o adotado na classificação aris
totélico-tomista, vamos encontrar três grandes ciências,
ou séries científicas — a física , a matemática e a meta
física .
As ciências físicas abstraem do individual e estudam
as relações gerais dos fenômenos naturais .
As ciências matemáticas abstraem do individual e
do concreto, estudando, entretanto , os seres em suas re
lações ainda quantitativas e numéricas.
As ciências metafísicas abstraem do individual, do
concreto e das relações quantitativas, estudando o ser
como tal, em si, em sua plena abstração de qualquer prin
cípio de individuação e de quantificação.
Eis o quadro das ciências especulativas, segundo o
grau de abstração, generalização e desmaterialização cres
cente .
Se passarmos agora ao das ciências práticas, podemos
encontrar tambem três grandes classes que assim seriam
distribuidas :
a ) a ética , que ordena os atos de nossa von
tade ;
b) a sociologia , que ordena os atos de nossa con
vivência social;
c ) a estética , que ordena os atos de nossa criação
artística .
TRISTÃO DE ATHAYDE

Entre as ciências especulativas e as ciências práticas


coloca- se a lógica como introdução a umas e outras, na
sua qualidade de arte especulativa , que ordena os atos
de nossa inteligência , tanto teórica como prática .
Teremos portanto o seguinte quadro geral:
| física
respeculativas matemática
| metafísica
Ciência do mundo natural į arte especulativa -lógica
ética
. ( práticas 3 sociologia
( estética

Essa distribuição sumária e elementar das ciências


exclue, para simplificação, todas as inúmeras subdivisões,
pois uma classificação integral das mesmas não tem a
rigidez de uma classificação positiva, de modo que, além
de fazer jogar a inteligência com todas as modalidades
do real, deixa campo a todos os enriquecimentos que
o tempo vier trazendo aos conhecimentos humanos, per
mitindo o desdobramento de certo modo ilimitado das
ciências.
Nessa classificação, vemos logo que a sociologia fica
como que inserida em um ramo da grande árvore dos
conhecimentos, cuja lei é a subordinação integral e múl
tipla a toda a realidade objetiva.
A sociologia é, portanto , uma ciência normativa e
prática, que conhece para agir e não apenas para conhe
cer. É a ciência, como vimos, que ordena os atos de
nossa convivência social. E nessas condições encontramo- la
desdobrada em várias outras, que se subordinam à Socio
logia , como esta se subordina à Ética .
Essas ciências sociais auxiliares da Sociologia são,
entre outras menores, o direito, a economia e a peda
gogia .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

O direito estuda e ordena as relações de justiça dos


indivíduos entre si ou com a sociedade e destas entre si.
A economia estuda e ordena o bem estar material
da sociedade doméstica e, como crematística, a formação
social da riqueza.
A pedagogia estuda e ordena a formação espiritual,
intelectual e corporal de ambos.
Vemos, portanto, como dizíamos a princípio, que a
sociologia apresenta uma tríplice face – filosófica , en
quanto se ordena às ciências que a excedem : a moral, a
metafísica, a teologia ; empírica , enquanto recolhe o ma
terial para suas induções e trabalha no campo da obser
vação social e histórica ; e finalmente pragmática ou
política , que visa diretamente a aplicação concreta à
sociedade dos seus estudos práticos e deduções teóricas,
tendo em vista diretamente o progresso social.
A sociologia , portanto, é ao mesmo tempo ciência
filosófica, positiva e prática, não sendo por natureza nem
puramente especulativa, nem puramente de observação,
pois não tem por fim apenas conhecer, -- nem um puro
pragmatismo sem relações com as ciências do mundo
moral e das abstrações metafísicas. Ela é ao mesmo tempo,
e sob aspectos diversos, sociologia, sociografia e sociopru
dência .
A sociologia é, por conseguinte, uma ciência prática
pelo seu objeto (os atos e factos sociais),mas especulativa
pelo seu método, " pois opera por meio da análise, ex
plicando e prendendo os factos aos princípios, os quais
na ordem prática são os fins” ( 1). A sociologia aplicada,
ou política, será então uma ciência prática , tanto no
objeto como no método, pois visa apenas realizar e não
— conhecer .

( 1) JACQUES MARITAIN , carta ao A . 10-12 -29 .


28 TRISTÃO DE ATHAYDE

Em uma tal concepção sociológica, que se opõe à


determinista, nós vemos que a sociologia faz parte das
ciências morais e não das ciências naturais. A base da
sociologia não é mais a biologia, como era na classificação
de Augusto Comte – e sim a ética. Seus princípios se
encontram nas ciências que excedem o homem , – isto é,
a moral, que indica o dever da vontade, a filosofia , que
especula o ser puro – e não nas ciências que precedem
o homem como se dá na concepção naturalista . .
A sociologia passa a ser, assim , uma ciência do
homem e não da natureza . Uma Geistwissenschaft , como
dizia Dilthey, e não uma Naturwissenschaft. E tudo nela,
como ciência , se subordina a êsse seu caracter essencial.
As certezas a que chegarmos, por meio dela , não são
as certezas a que chegam as ciências naturais e sim as
das ciências morais. Os métodos que empregamos não são
apenas a experimentação e a observação, isto é , os métodos
básicos das ciências naturais e sim tanto os indutivos
como os dedutivos, empregados nas ciências morais. O fim
imediato que visamos é um fim prático, isto é, o progresso
social e não apenas um fim doutrinário, como é o caso
das ciências naturais em si mesmas. E finalmente, o
princípio fundamental que domina essa concepção fina
lista da sociologia — " é que as coisas sociais, políticas,
econômicas, etc . são coisas humanas, cuja verdade não
pode ser conhecida se não a referirmos à verdade da vida
humana ” , e como, segundo afirma a filosofia tomista, —
" na ordem prática os fins desempenham o mesmo papel
que os princípios na ordem especulativa, é impossivel
ter uma ciência prática propriamente dita sem
a prendermos ao fim último, e impossivel ainda regular a
ação, ( isto é, a ordem pragmática ) sem levar em conta
tudo o que interessa ao bem dessa ação, isto é, o empírico
como o metafísico ” (1 ).
(1) JACQUES MARITAIN — Ibid.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 29

A sociologia, portanto, só se torna ciência completa


quando ordena, de um lado à ordem pragmática, e de
outro à ordem metafísica, o empirismo das suas obser
vações científicas.
Eis, muito rapidamente, a súmula da posição da
sociologia no quadro geral das ciências, numa concepção
nitidamente integral da realidade e dos conhecimentos
humanos .
Vejamos, enfim , quais os postulados da sociologia
naturalista, implícitos em quase toda a sociologia que
se julga neutra e quais os postulados filosóficos e teoló
gicos, que a filosofia social cristã , sem dúvida a forma
mais completa da sociologia finalista, lhe opõe explici
tamente.

4 .° — Postulados da sociologia
As hipóteses, que encontramos implicitamente no
ámago de toda a sociologia moderna não finalista ou
anti-cristã, são as seguintes :

a ) inexistência do sobrenatural ;
b ) materialidade da alma humana ;
c ) determinismo da vontade;
d) evolucionismo progressivo e mecânico .

Não cabe, neste espaço, desenvolver cada um dêsses


itens, nem mostrar, nos autores competentes, a prova
material da existência desses postulados naturalistas, que
se contêm , por vezes explicita , mas em regra, implicita
mente, em toda a massa da sociologia moderna derivada
dos grandes antepassados Comte e Spencer.
30 TRISTÃO DE ATHAYDE

Tratar-se-ia , porém , de um simples esforço de eru


dição, facilitado aliás por autores que já se deram a
êsse trabalho ( 1) .
Em contraposição a essas hipóteses filosóficas ou
científicas materialistas, que os sociólogos em geral não
confessam , — nós, partidários de uma sociologia finalista
e integral, apresentamos explicitamente quais os postula
dos da sociologia cristã , não a priori,mas a posteriori, isto
é, quais as verdade filosóficas ou teológicas, que já supo
mos demonstradas em outras ciências, superiores à socio
logia , pelo seu objeto ou sua finalidade. Esses postulados,
são :
a) a existência de Deus ;
b ) a imortalidade da alma;
c) a liberdade da vontade ;
d ) a encarnação de Cristo (2 ).
Se confrontarmos uns e outros postulados, estes con
fessados, – se bem que nem sempre expressos nessa fórmu
la , que me parece clara e explícita,mas que absolutamente
não é a única nem será a definitiva — e aqueles quasi
sempre inconfessados, vemos bem nítida a diferença entre
uma sociologia como esta, que visa uma finalidade trans
.cendental que completa a realidade imanente, e a socio
logia naturalista, em suas inúmeras modalidades que se
satisfaz com o fenomenismo materialista ou agnóstico .
Toda a sociologia cristã se baseia , portanto numa
observação científica neutra, isto é , comum a todas as
escolas sociológicas, pois é governada pelo facto e nada
mais , e numa concepção filosófica naturalista ou deter
minista, da maioria dos sociólogos modernos não-cristãos.
( 1) THEODOR M . HEMLET. Final Moral Valeus in So
ciology, ed. Cath. Univ. of America , 2.a ed., 1930, passim .
(2 ) ALBERT MUNTSCH and HENRI SPALDING - Intro
ductory Sociology – O . V . Hearth & Cº New York , 1920 ,
página 94 .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 31

A concepção cristã de sociologia , portanto, tendo


uma base científica tão sólida quanto as demais ( na
melhor das hipóteses para estas), tendo a mesma nobreza
de intenção temporal, que é o progresso social, como
veremos no próximo capítulo , – excede entretanto , de
muito , a todas as demais no âmbito da sua concepção filo
sófica, que vence o unilateralismo que só vê uma face
da realidade, e restaura a verdade em toda a sua pleni
tude.
Eis porque motivo não hesito em proclamar que a
sociologia cristã é a mais elevada, a mais científica e a
mais completa das concepções sociológicas.
O que não evita que ela tambem participe da preca
riedade de toda a ciência social contemporânea, contra a
qual as paixões humanas criam um ambiente quasi insus
tentável. Isso não é surpresa alguma para a sociologia
cristã , pois esta coloca o homem no centro de toda a sua
concepção social e tanto a psicologia experimental como
a teologia dogmática nos ensinam que o homem é um
ente decaido, e que em sua alma se contêm tanto o germen
de todas as grandezas, como a semente de todas as mi
sérias.
A sociologia cristã não desespera de melhorar a
sociedade, governando-a cada vez mais pelas regras do
bom senso, da razão e da fé — nem alimenta, por outro
lado, ilusões sobre a possibilidade de se alcançar o paraiso
na terra .
Ela sabe que a sociedade de hoje vive corroida de
misérias e injustiças e julga possivel melhorá -la. Mas
sabe tambem que o homem é um ser radicalmente imper
feito e que a felicidade não é dêste mundo. E por isso .
reanima os céticos, que não acham nada possivel, e corrige
a audácia dos orgulhosos que julgam tudo possivel.
CAPÍTULO II

Progresso social
CAPÍTULO II

PROGRESSO SOCIAL

SUMÁRIO : § 1.° - Natureza do progresso ;


§ 2.° – Concepções do progresso ; § 3 .°
- Limites do progresso.

O problema do progresso é dêsses que se encontram


no fundo de todos os movimentos, de todas as concepções,
de todas as tendências sociais do mundo moderno. Isto
não quer dizer que haja conformidade nas soluções que
lhe dão. Muito pelo contrário. O problema se tem tornado
tão complexo, que por saturação já readquire, por vezes ,
novos aspectos de simplicidade, para recomeçar nova
mente a complicar-se com a grande experiência da
realidade a que vem sendo submetido, desde que passou
da cabeça dos utopistas para o arsenal dos lugares comuns
da demagogia parlamentar ou jornalística.
Vamos tentar analisá -lo rapidamente, não na ilusão
de impormos qualquer uniformidade de opinião, mas para
ao menos mostrar as razões da diversidade de concepções ,
que em torno dêle enxameam .
36 TRISTÃ DE ATHAY
O DE
§ 1.° — Natureza do progresso
Consideremos o termo nás duas acepções gerais que
pode assumir, como progresso individual e como pro
resso social.
Progredir é tender à perfeição. Todos os seres vivos
progridem , portanto , todos eles tendem a realizar a sua
própria perfeição. Podemos dizer que um animal pro
gride na medida em que se aproxima do tipo ideal de
sua espécie.
No homem , entretanto, é que a noção de progresso
alcança a sua verdadeira significação. Pois o homem é
o ser essencialmente insatisfeito e cuja natureza não se
explica apenas pelos elementos naturais que a compõem .
O homem tende à perfeição, como todos os seres
criados, mas tende livremente a essa perfeição, quando
os demais tendem necessariamente . Dadas as condições
normais para o desenvolvimento de uma planta , ela
chegará fatalmente à perfeição do seu tipo. Desde que
nada tolha a evolução natural de um mamífero , ele virá
a realizar a finalidade contida no seu germen. São seres
que progridem necessariamente, pelos simples jogo dos
fatores naturais que os determinam .
O homem não. O homem é o ser que pode não pro
gredir , apezar de realizadas todas as condições naturais
para o seu progresso. Como pode progredir a des
peito de todos impecilhos naturais que lhe forem
opostos. A história humana é uma ilustração viva
dessas observações. Não ha, portanto, no homem
o progresso necessário. Fatores imprevistos concorrem
com os fatores naturais para que a sua evolução não
possa ser predeterminada. E o seu progresso é sempre
cortado de surpresas.
O segundo facto que distingue o progresso individual
humano, daquele que os demais seres vivos realizam –
é a sua espiritualidade.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 37

A planta tende à perfeição da vida vegetativa e o.


seu progresso se caracteriza pela perfeição das formas
exteriores .
O animal tende à perfeição da vida instintiva e o
seu progresso se realiza na medida em que desenvolve
êsses instintos, rudimento de toda vida interior.
No homem , o progresso é a perfeição dessa vida
interior, pelo desenvolvimento de sua racionalidade e pela
eclosão de uma vida superior.
Ao longo, portanto, das três grandes ordens de seres
vivos, acompanhamos a realização de um movimento de
progresso, que vai da vida exterior nas plantas aos rudi
mentos de vida interior nos animais, e da plenitude dessa
vida interior nos homens aos rudimentos de uma vida
superior , que é a verdadeira finalidade do ser humano
que por si mesma excede à própria natureza : a vida
sobrenatural.
Vida exterior, vida interior, vida superior – eis o
itinerário do progresso individual nos seres vivos.
Liberdade e espiritualidade são, portanto , os dois
elementos que caracterizam o progresso individual hu
mano. E desde já podemos fazer uma distinção primor
dial, cujo desconhecimento tem levado a grandes confusões
em torno do problema. Quero referir-me à diferença
radical que ha entre progresso e evolução (1).
Progresso é o movimento de ascensão dos seres
vivos .
Evolução é o movimento de transformação dos seres
animados ou inanimados.

(1 ) “ O facto de que uma coisa está evolvendo não é


prova alguma de que seja boa ; o fato de que a sociedade
evolveu não é prova de que tenha progredido. O ponto é
importante porque, sob a influência de concepções biológi
cas, as duas idéias são muitas vezes confundidas e o facto
de que certos seres humanos evolveram sob certas condições
38 TRISTÃO DE ATHAYDE

Como se vê pelas definições, se todo.progresso signi


fica evolução, nem toda evolução implica progresso. Mo
dernamente os dois termos têm sido confundidos, de
modo que ao progresso humano se dá comumente um
sentido cronológico , em prejuizo do seu verdadeiro sen
tido ético .
Para compreendermos a verdadeira natureza do
progresso, não é à idéia de sucessão que devemos recorrer
e sim à finalidade. E isso no homem adquire toda a sua
importância , pois toda a nossa concepção do progresso
individual depende da concepção que tivermos da finali
dade individual.
Esse é o ponto capital a determinar. Dêle depende
tudo mais.
Que é o homem ? Qual a sua natureza ? Qual a sua
finalidade ? .
Em torno à solução que dermos a essas interrogações
é que vai girar a nossa concepção do progresso, como em
geral tudo o que se refere à vida individual e social. O
fim é que especifica os meios, e faz o papel de princípios
em toda a ordem das ciências e das atividades práticas.
Vimos, pela observação da natureza e dos seres vivos,
como uma concepção integral (e não parcial, como as
concepções que reduzem o ser humano à categoria e à
finalidade de simples ser animal) , como uma concepção
verdadeiramente integral do universo nos leva natural
mente a ver no homem uma finalidade superior que
transcende à ordem natural.

ou talvez mesmo como comprovando a 'futilidade de certos


ideais éticos que opõem a processos evolucionistas” .
(LEONARD T. HOBHOUSE - Social Evolution and Poli
tical Theory, p. 8-12, cit. por C . M . CASE . Outlines of in
troductory Sociology. Harcourt, Brace & C.9, New York ,
1924, p . 930) .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 39

espiritualidade é que está realmente a verdadeira natu


reza do progresso individual ( 1 ) .
Progredir é subir . E subir é passar da ordem ma
terial à ordem intelectual, e da ordem intelectual à ordem
moral. A ascensão à vida sobrenatural não é essa pas
sagem brusca que a morte provoca
cade, ide uma a outra vida,
segundo a concepção
a vulgar
boria no penAas dvida dos que rantaceitam
idoestá a alma
ee aa imortalidade. o quesobrenatural ao atcontida
na própria vida natural e começa a realizar-se desde o
início desta. É apenas um desdobramento dela, não é
uma inovação. De modo que a finalidade sobrenatural
do homem , que explica a sua verdadeira natureza , governa
toda a sua vida natural e explica o sentido do seu pro
presso individual. Sobrenatural não significa apenas o
que está acima da natureza e sim tudo o que dentro da
natureza prepara essa tendência à perfeição que trans
cende a natureza .
O progresso individual de cada homem , portanto, é
o verdadeiro sentido da sua vida .
Hoje em dia, nesta era de cisão entre a ordem natural
e a ordem sobrenatural em que vivemos, — abandonaram
perderam o sentido da vida.
Tende cada vez mais a prevalecer uma concepção
geral da vida que se limita ao imediatismo, aos fins
próximos e especializados. E essa absorção da vida pelos
sentidos é propriamente a negação do verdadeiro sentido
( 1) “ Essa marcha para a perfeição é o que chama
mos o progresso . O sentido da vida humana só pode estar
na luta pelo progresso. Se o homem está sobre a terra para
tender à sua finalidade, o progresso será a fórmula mais exata
do dever humano” .
( A . JACQUES LECLERC – Leçons de Droit Naturel. A .
Dewitt ed . Bruxellas, 1927, vol. I, p . 105 ).
TRISTÃO DE ATHAYDE

da existência . Mesmo naqueles que reagem contra essa


sensualização, alás perfeitamente explicável e mesmo ló
gica, da vida moderna, – não chegamos a encontrar .
o esforço de lhe restaurar o sentido total.
Esse significado total da vida só pode ser a reinte
gração da ordem sobrenatural na ordem natural, a íntima
união entre ambas, sem essa sucessão brusca, que uma
concepção insuficiente da imortalidade supõe; sem essa
cisão entre os duas, que é a triste herança do cartesia
nismo; e muito menos sem a supressão do sobrenatural
que desequilibra todo o sentido do progresso individual
e humano.
Determinado assim o sentido do progresso individual,
procuremos qual seja o do progresso social, que é o outro
aspecto geral por que podemos encarar a tendência do
gênero humano à perfeição.
A vida social não se confunde com a vida individual.
A sociologia não se reduz a uma interpsicologia. Demodo
que o progresso social não se reduz apenas à soma dos
progressos individuais. Ha um progresso social por si.
E a esse é que chamamos comumente — civilização.
Entre os modernos sociólogos ha a tendência a dis
tinguir nitidamente “ cultura ” e “ civilização” . O último
e magistral capítulo da filosofia da história de Berdiaeff
é dedicado à análise dessa oposição, pois ele vê na civi
lização a negação e a morte da cultura (1).
( 1) “ A civilização é a morte do espírito de cultura. . .
A cultura deriva do culto, ela se desenvolve a partir do culto
religioso . .. Cada cultura (mesmo a cultura materialista ) é
uma cultura do espírito .. . Na civilização domina sem res
trições o economismo ; a civilização é por sua natureza técni
ca . . . A civilização despersonaliza . .. O princípio da perso
nalidade só aparece nas culturas. . . A civilização é futu
rista . A cultura procura sempre contemplar a eternidade . . .
O capitalismo industrial da civilização foi o negador do es
pírito de eternidade, o negador das sacralidades .. . O siste
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 41
Spengler chega tambem à conclusão de que as civi
lizações upendo ndegradações
lizas Outrsãoos aapenas aqueial(3)deadoculturas
s esses (2 ).
Outros autores, ao contrário , subordinam a cultura
à civilização, vendo naquela os elementos de passividade
e nesta os de atividade social (3).
Por aí se vê quanto são delicados esses domínios dos
estudos sociais, em que ainda não encontramos nem
mesmo uma uniformidade terminológica, o que sucede,
hoje em dia , em grau ainda mais acentuado com todas
as ciências do espírito, entregues cada vez mais ao arbítrio
subjetivista.
ma industrial-capitalista da civilização, destróe os fundamentos
espirituais da economia e prepara assim a sua própria de
cadência ” .
(NIKOLAUS BERDJAJEW - Der Sinn der Geschichte,
Otto Reichl Verl. Darmstadt, 1925, p. 286-300).
“ Eu não me limito a ligar espírito e cultura ; eu os iden
tifico, porquanto a cultura é por natureza espiritual, ao pas
so que só a civilização pode ser a negação da espiritualidade
(ungeistig kann nur die Zivilisation sein ) ” .
(N . BERDJAJEW - Die Weltanschauung Dostoiewskis .
C . H . Becksche Verl. München , 1925, p . 157) .
(2) “ Civilização é o estado extremo e mais artificial a
que pode chegar uma espécie superior de homens. E ' um
remate .. . E ' um final irrevogável, a que se chega sempre
de novo , com íntima necessidade . . . A civilização pura , como
processo histórico, consiste em uma dissolução gradual de
formas já mortas, de formas que se tornarão inorgânicas” .
(O . SPENGLER – La decadencia del Occidente, trad. esp .
Calpe ed. Madrid. 1923, vol. I, p. 54-55 ) .
( 3) E ' fácil agora vermos em que medida são anti
téticos a sociedade de civilização e os meios culturais nacio
nais. A primeira tem por princípio a pessoa humana, inte
ligente e dominadora , — os segundos têm por origem os
agentes - alguns dos quais materiais e físicos que inter
vêm na formação humana . .. Na primeira o homem modela
o mundo, nos segundos o mundo é que forma o indivíduo .. .
TRISTÃO DE ATHAYDE
Conservemos aqui, ao termo civilização, o seu sentido
clássico, aquele mesmo em que o empregou Toniolo
quando definiu a sociologia como sendo a ciência da
civilização (1) .
. O que expresamente caracteriza essa concepção é o
seu sentido absoluto e não relativo. Do mesmo modo que
ha um progresso individual absoluto, que não se confunde
com a relatividade de cada esforço individual nesse
sentido, - ha tambem um progresso social absoluto, cujo
modo de ser domina todas as modalidades de civilizações
particulares.
E o sentido dêsse progresso coletivo não difere do
sentido do progresso individual: ambos significam uma
ascenção no rumo da racionalidade. O progresso social,
como individual, é uma marcha à perfeição, à integração
dos bens em seu Princípio. E o princípio de espirituali
zação é que depura e eleva, tanto o ser humano individual
como o ser social. “ Civiliser c'est spiritualiser” , escreve
Maritain (1 ) .
Uma atesta a independência do homem , os outros suas de
pendências. A sociedade civilizada é una, unificadora ; 08
meios culturais são múltiplos, diversos, irredutíveis. Só ha
uma civilização humana, mas ha numerosas culturas. .. 0
homem se cultiva afim de adquirir o poder de levantar-se à
civilização. . . A ação dos meios culturais é um intermediário
que conduz o indivíduo à civilização ” .
( J. T. DELOS – L ' internationalisme, in “ Revue des sci
ences philosophiques et théologiques”. Out. 1928, p. 671-75 ).
(1) “ Acima dos grupos hierárquicos de ciências sociais
positivas, se desenvolve uma ciência compreensiva ou sinté
tica , que é a sociologia , ou seja a doutrina geral da sociedade
e da civilização"
(GIUSEPPE TONIOLO - Trattato di Economia Sociale.
Lib . Fiorentina, 2.a ed., 1906, vol. I, p . 5 ).
( 1 ) “ Todos os nossos valores dependem da natureza
de nosso Deus. Ora , Deus é espírito. Progredir - O que
significa para toda natureza , tender ao Princípio - é pag
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 43
É preciso ficar bem nítida essa idéia da hierarquia
ascensional do progresso humano, tanto em sua modali
dade individual como social. Ela visa claramente corrigir
um dos graves erros que, nesse sentido, a desintegralização
do pensamento moderno tem cometido. O progresso tem
sido frequentemente confundido com hipertrofia . Quando
é indispensável que lhe conservemos, escrupulosamente,
o seu sentido nitidamente hierárquico e qualitativo.
Progredir é tender ao espírito . E isso tanto na
ordem individual como na ordem coletiva.
Fixados assim os traços comuns às duas formas de
progresso , vejamos em que se distinquem .
A diferença principal está em que o homem é um
fim e a sociedade um meio . O progresso, para o homem
individual, é portanto uma finalidade em si. Ao passo
que o progresso social visa apenas uma finalidade ad
alterum . A sociedade progride para fornecer aos homens
as condições indispensáveis ao seu progresso individual.
Nenhum progresso social, portanto , se pode buscar, com
qualquer sacrifício de um progresso individual. Ao passo
que o progresso de um ser humano não pode ser tolhido
em nada pelas necessidades do progresso coletivo.
Nesse sentido, é que Charles Journet , escreveu com
toda a razão, que — “ O indivíduo se subordina à socie
dade e a sociedade à pessoa” . O progresso social é um
fim subordinado ao progresso individual. O homem é
a medida da sociedade e não a sociedade a do homem .
Isso não implica de modo algum qualquer afirmação
de individualismo, que é a própria negação do progresso ,
şar do sensível ao racional e do racional ao espiritual e do
menos espiritual ao mais espiritual; civilizar é espiritualizar.
O progresso material pode concorrer para ele, enquanto per
mite ao homem o repouso da alma” .
(JACQUES MARITAIN – Art. et Scolastique. L . Bouart,
ed. 1927, p. 129-130) .
TRISTÃO DE ATHAYDE

no sentido em que o vimos expondo, essencialmente har


monioso e limitado por sua natureza e complexidade. O
homem , para realizar o seu progresso individual, como
veremos no próximo capítulo , precisa necessariamente
dos vários grupos em que desenvolve a sua ativi
dade : a família , a classe, o sindicato , a nação, o Estado,
a Igreja, etc . Não o pode fazer em oposição ou repulsa
a êsses grupos naturais que permitem a expansão plena
de sua natureza de ser social. O erro do individualismo
é não levar em conta essas modalidades de agrupamento,
que são a própria condição da existência normal do
homem . O erro do grupalismo exagerado é só levar em
conta essa necessidade de socialização, de modo a subor
dinar a finalidade individual à coletiva .
Temos, portanto, no progresso individual uma fina
lidade em si.
E no progresso social uma finalidade para
outrem .
Essa é a distinção principal que os separa. A outra
é que o progresso individual tem uma finalidade trans
cendental e o progresso social, ou civilização, uma fina
lidade temporal.
Não ha, portanto, uma civilização universal, como
fazia crer o evolucionismo naturalista, que via no pro
gresso social uma lenta eclosão da matéria à inteligência ,
da barbaria à civilização, da guerra à paz, da animalidade
à humanidade, segundo um monolinearismo predetermi
nado pelo esquema a prori em que Spencer procurou
sintetizar todos os conhecimentos humanos.
Ha tantas civilizações - ( ou o que Delos chama
- culturas) quantas forem as modalidades dos fatores
secundários e primários que as afetem . O tempo, o meio
físico , a raça, a economia , a técnica , o estágio de cultura
intelectual, as formas religiosas, tudo são fatores dife
renciadores das civilizações.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 45

O progresso social absoluto é apenas a finalidade,


atingida ou não, da sociedade em seus diversos grupos ;
o progresso social relativo é o grau real de ascensão alcan
çada por uma determinada civilização. As civilizações
(ou culturas no sentido de Delos ) de caracter e evolução
diferentes se sucedem progredindo e regredindo, dentro
de uma finalidade temporal e efêmera. Elas devem visar
a criação de um ambiente cada vez mais favorável à
plena expansão da personalidade humana. E serão tanto
mais perfeitas quanto mais se aproximarem dêsse seu
objetivo.
Três condições primordiais são necessárias para o
desenvolvimento dêsse. progresso social: a cooperação, a
ordem e a continuidade.
A primeira , isto é, a cooperação, requer a colaboração
de muitos num objetivo .comum . A unidade é portanto a
primeira condição de sociabilidade progressiva.
A segunda obriga a coordenação de todos os esforços
individuais em um todo único ou antes harmoniosamente
diversificado.
A autoridade é a segunda condição de sociabilidade
progressiva . nes ho
A terceira exige a permanência de certos fatores
e da idealidade comum através de um tempo suficiente
à fusão de todos esses elementos. A vitalidade é a terceira
condição de sociabilidade progresiva .
Pela unidade, o progresso social desenvolve as con
dições espontâneas de colaboração, que vencem as diversi
dades excessivas e impedem a ação patogênica dos fatores
constantes de dissociação que toda sociedade leva neces
sariamente consigo.
Pela autoridade, o progresso social cria a estrutura
exterior e objetiva, necessária a manter aquela unidade
através das vicissitudes dos tempos.
46 TRISTÃO DE ATHAYDE

Pela vitalidade, o progresso social demonstra si uma


sociedade possue realmente elementos de permanência,
de renovação e de futuro, que justificam e caracterizam
as civilizações ascendentes.
Todo progresso social visa criar essas condições em
cada civilização de modo a tornar a existência em comum
cada vez mais fecunda para a vida individual.
Eis, portanto, em traços rápidos, quais parecem
sér os fatores que determinam a natureza do progresso ,
tanto em sua forma individual, como em sua forma
coletiva .
O progresso individual tende à formação da perso
nalidade humana .
O progresso social visa a formação da civilização
humana .

§ 2 .° - Concepções do progresso
A idéia de progresso, se bem que possa ser encontrada
em todos os tempos, só modernamente é que adquiriu
uma importância fundamental na história .
Foi uma das grandes consequências do fenômeno que
marcou , no mundo ocidental, o início da idade moderna :
a rutura da unidade medieval.
A Idade Média conheceu perfeitamente a noção de
progresso moral, de progresso ascendente como razão de
ser e caminho de toda a vida humana. A noção de pro
gresso social, porém , que é o aspecto sob o qual se apre
senta desde então a idéia de progresso, nasceu com o
Renascimento.
Não podemos, portanto , afirmar que a idéia de pro
gresso só então surgiu. Não seria exato .
O que devemos afirmar é que a idéia de progresso
tomou , desde então, um rumo inteiramente diverso .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 47

A concepção clássica do progresso era uma concepção


vertical do progresso. A moderna veio a ser, desde então,
uma concepção horizontal do progresso .
Essa me parece a diferenciação nítida que, a êsse
respeito, notamos entre a concepção tradicional e a que
se desenvolveu desde o século XVI. Pois desde aí podemos
observar a marcha que veio seguindo essa nova concepção
do progresso no espaço , se é possivel dizer.
O Renascimento foi essencialmente um redescobri
mento da terra e do homem . As grandes restaurações da
arte e das letras greco-romanas, as descobertas geográ
ficas, os primeiros albores da ciência positiva, o início
da técnica moderna (nitidamente apreciável em homens
como Leonardo da Vinci, por exemplo ) – tudo isso foi
o sinal de uma radical mudança no significado da civi
lização. Ao sentido do céu , como orientação final de todo
o movimento histórico e social que vinha crescentemente
dominando desde o advento do cristianismo e já antes
elaborado nas grandes metafísicas gregas e helenísticas
- veio suceder o sentido do mundo, como orientador e
interpretador de toda a vida individual ou social.
Ora , essa mudança de orientação vinha afetar fun
damentalmente a concepção do progresso, trocando o
sentido da perfeição pelo da evolução. A uma elevação
constante em todas as suas partes essenciais , veio subs
tituir -se uma elevação crescente do homem sobre a natu
reza , num universo que se ia realizando gradativamente .
A idéia de progresso no século XVIII marcou viva
mente essa nova orientação sôbre a concepção do progresso
ainda de certo modo dominante no século XVII. Basta
comparar as duas concepções de progresso histórico que
tiveram como intérpretes o gênio fundamentalmente
cristão de Bossuet e a figura essencialmente anti-cristã
de Turgot. O “ Discurso sốbre a história universal” de
Bossuet é de 1681; o discurso de Turgot na Sorbonne,
TRISTÃO DE ATHAYDE

no qual ele deu o primeiro esboço de sua teoria do pro


gresso, é de 1750.
Nesses 70 anos se processou uma evolução profunda
na sociedade. Bossuet fôra a grande voz da concepção
diciele mostrara os Providênciara . com
tradicional do progresso , que o século XVII ainda acei
tava. Ele mostrara os grandes impérios se sucedendo sob
a ação invisível da Providência , por maneira que nem
sempre correspondia à verdadeira concepção cristã do
progresso, pois o apresentava em formas excessivamente
subordinadas ao fim a que se destinava a sua obra : a
uma concepção monolinear do progresso, em que a religião
desempenhava o papel de fôrça dinâmica da história . E
por isso mesmo se cercava esta de mistério . O providen
cialismo de Bossuet tem sido uma presa fácil demais para
os críticos da nossa era anti-providencialista , que nunca
o leram . Pois o “ Discurso sôbre a história universal” é
das tais obras que todo mundo critica, mas que ninguem
se dá ao trabalho de ler. Mas ha nêsse providencialismo
cada vez mais ensinando : o imprevisto. “ Todos aqueles
que governam sentem -se subordinados a uma fôrça maior.
Êles fazem mais ou menos do que pensam e os seus
conselhos nunca deixaram de ter efeitos imprevistos.
Nem são eles senhores das orientações que os séculos
passados deram aos acontecimentos, nem podem prever
o curso que tomarão no futuro, quanto mais forçá -lo ” (1).
Turgot, em 1750, vinha expressamente retomar o
problema de Bossuet, que era afinal o do progresso atra
vés da evolução histórica.. E vinha retomá-lo para dar-lhe
a nova orientação que o racionalismo do século XVIII
lançava contra a interpretação cristã da história.
(1 ) BOSSUET – Diſcours sur l'Histoire universelle -
Hachette ed, in fine.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

Nos ensaios de Turgot, que iam marcar a concepção


do século XVIII quanto ao progresso e que Condorcet
apenas desenvolveu e sistematizou no seu " Tableau histo
rique des progrès de l'esprit humain ” em 1794, duas
idéias novas se introduziam : a supressão das causas so
brenaturais, na evolução do gênero humano, e a marcha
necessária a seu aperfeiçoamento contínuo (2 ).
Foram essas as grandes inovações que o século XVIII
vinha trazer à idéia de progresso. O sentido da perfeição
mudava-se inteiramente. Suprimida a ação sobrenatural,
desdenhados os fatores religiosos, reduzidas as causas
morais à ação racional e subjetiva dos indivíduos, –
tornava-se o progresso uma simples dominação progres
siva da natureza, uma organização crescente da sociedade,
um desenvolvimento gradativo do indivíduo, tudo sob a
ação de causas naturais, em um plano natural, sem
nenhuma finalidade transcendental.
Estava mudado o sentido tradicional do progresso
e mutilada a harmonia completa do universo. Começava
a tirania da visibilidade. E com ela o predomínio cres
cente dos valores econômicos sôbre os valores espirituais.
O progresso vinha cada vez mais perder a sua significação
qualitativa, para assumir um aspecto quantitativo.
Se em França era a ideologia do progresso que
mudava no século XVIII, – na Inglaterra era a própria
prática do progresso que assumia um novo aspecto.
( 2 ) “ Desvendar a influência das cousas gerais e ne
cessárias, a das causas particulares e das ações livres
dos grandes homens e a relação de tudo isso à própria consti
tuição do homem ; mostrar a mola e a mecânica das causas
morais pelos seus efeitos: eis o que é a história aos olhos
de um filósofo " .
( TURGOT - Oeuvres. t. II, p . 626 -627 - cf. GEORGES
SOREL — Les illusions du progrès. M . Rivière, ed. 4 .4 ed .
1927, p. 222 ).
50 - TRISTÃO DE ATHAYDE

À revolução social que se processava no Continente,


correspondia nas ilhas Britânicas — de onde aliás tinham
partido os germens daquela revolução social, com espíritos
como Hobbes (1651), Locke (1690 ) ou Hume (1740 ) –
a Revolução Industrial. A introdução da máquina ia ser
o fenômeno central do mundo moderno. E a concepção
de progresso não podia deixar de ser radicalmente in
fluenciada por esse fator essencialmente novo, que vinha
revolucionar toda a ordem de valores sociais. Teorica
mente, o progresso já deixara de ser uma ascenção ao
mundo dos valores absolutos, para ser uma elevação no
próprio mundo dos valores relativos. Praticamente, vinha
o progresso significar sobretudo um aperfeiçoamento
técnico, uma dominação crescente do homem sobre a
natureza.
Essa noção relativista e temporal que sucedeu no
século XVIII à anterior concepção transcendental, veio
encontrar em Condorcet, como dissemos, o seu sistema
tizador e na Revolução Francesa os realizadores do tra
balho de destruição que essa idéia causara na estrutura
social do Antigo Regime.
O otimismo progressista , contido na concepção de
Turgot e desenvolvido por Condorcet, encontraria no
século XIX a sua plena expansão.
Duas correntes principais iam apoderar-se do novo
mito : a corrente idealista , na Alemanha , com Kant,
Fichte , Schelling, e sobretudo Hegel. E a corrente natu
ralista, que veio a predominar com Augusto Comte,
Spencer e Marx .
Ambas representavam o imanentismo da nova fór
anterior. E ambas partiam do postulado do progresso
necessário .
O sentido da vida humana, da história , da civilização
passava a ser essa realização necessária , ao longo do
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 51

tempo, de um aperfeiçoamento natural e gradativo da


sociedade .
E alguns chegaram mesmo a elaborar a teoria do
aperfeiçoamento biológico e mental indefinido da espécie
humana. Foimesmo isso uma das increpações de Spencer
ao progressismo insuficiente de Comte. Êste aceitava o
progresso social como a própria lei do dinamismo histó
rico. Mas recusava -se a ver no ser humano uma capaci
dade biológica e psicológica indefinida de progredir (1 ) .
Spencer vinha dar um passo avante na teoria natu
ralista do progresso, submetendo a própria espécie
humana à lei de evolução indefinida. O homem era um
animal capaz de progredir fisiológica e psicologicamente,
sem limites, de modo a realizar um dia a própria perfeição
na terra . Era a teoria do progressismo absoluto, dentro
aliás de todos os dogmas do spencerismo: o evolucionismo,
o industrialismo, o individualismo, o liberalismo, o agnos
ticismo, o naturalismo, etc.
De tudo isso resultava a própria imagem do otimismo
social, que era o figura típica do século XIX .
As outras três grandes teorias do progresso no século
XIX – as de Hegel, Comte e Marx, se bem que inteira
mente diversas entre si, não deixam tambem de seguir
o mesmo rítmo otimista de progresso natural e necessário ,
que o século XVIII legara ao século XIX e que este
sistematizou nos grandes sistemas filosóficos e procurou
realizar nos progressos do liberalismo econômico e po
lítico, – no capitalismo e na democracia .
(1 ) “ Negando, como o faz, que a espécie seja indefi
nidamente modificável, (COMTE ) mostra ignorar uma das
verdades capitais que a biologia fornece à sociologia, uma
verdade cujo esquecimento enche de erros todas as explica
ções sociológicas” .
(H . SPENCER — Introduction à la Science Sociale , trad.
fr. Alcan , ed., p . 353).
TRISTÃO DE ATHAYDE

Hegel via a história como a realização do Espírito


através de um processo dialético , a tese, a antítese e a
síntese, que era a lei metafísica dos três estados em opo
sição à lei positivista dos três estados de Comte: o teoló
gico , o metafísico e o positivo.
Tanto um como outro, porém , concebiam o progresso
como natural e necessário , no ambiente do otimismo e
do naturalismo dominantes. O progresso imanente era
a própria lei da história , tanto para Hegel como para
Comte, ou para Spencer. As modalidades sob as quais
cada um deles via a realização da lei eram secundárias
em face do próprio fenômeno do progresso . O progresso
emi si era a finalidade das civilizações.
Marx apesar de partir de postulados opostos , de
recusar todo dogmatismo filosófico, de construir sôbre
o puro pragmatismo social, segundo a hipostase que
fez do conceito de classe, — chegou no fundo a resul
tado idêntico , vendo no progresso dos métodos de pro
dução o determinismo imanente da elevação da humani
dade em bem estar e perfeição. O progresso ainda aí era
a lei de todo a evolução , progresso natural e necessário
tambem , ainda que subordinado a outros rítmos. À lei le
evolução adaptativa e interior de Spencer, à lei de contra
revolução intelectual e positiva de Comte, à lei de domina
ção crescente e fatal do Estado, de Hegel, — Marx opunha
a lei da revolução necessária pela vitória sucessiva de uma
classe sôbre outra : dos nobres sôbre o clero, dos burgueses
sôbre os nobres, dos proletários sôbre os burgueses. O
progresso é, segundo essa concepção, a realização suces
siva dessas vitórias das classes dominadas sôbre as classes
dominantes . O progresso é a passagem do empirismo eco
nômico ao capitalismo e do capitalismo ao comunismo. O
progresso é uma marcha necessária e constante ao pre
domínio organizado do econômico, pela supressão das ideo
logias desnaturadoras do materialismo social. À lei me
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

tafísica dos três estados de Hegel : tese, antítese,


síntese ; — à lei positivista dos três estados de Comte:
teológico, metafísico e positivo ; - Marx opunha a lei
econômica dos três estados : feudalismo, burguesia , pro
letariado.
Em todas essas teorias naturalistas do progresso
no século XIX nós vamos encontrar o mesmo traço
dominante : o otimismo. O progresso é uma marcha
necessária e natural da humanidade, que passa sempre de
um estágio inferior a um estágio superior, à custa de
simples adaptações naturais, como queria Spencer, à custa
de uma passagem fatal do teológico ao positivo, como
queria Comte, à custa da subordinação do indivíduo ao
Estado, como queria Hegel, à custa de revoluções suces
sivas, como queria Marx, — mas sempre subindo, no
plano da própria natureza, já se vê.
Êsse, creio eu , é o traço dominante da concepção do
progresso no século XIX .
Mas o século XX parece querer mostrar-nos uma
concepção diametralmente oposta. A guerra e a revolu
ção foram os dois gritos de alarme que vieram despertar
a muitos ingênuos da euforia periclitante dos vagos spen
cerismos do século passado.
E ao passo que na Rússia ou nos Estados Unidos,
( antes da última crise econômica, ao menos) o babittismo
triunfa ( 1). — nos espíritos mais lúcidos ou mais trágicos
vemos uma reação que atinge por vezes o extremo oposto
ao otimismo progressista do século XIX .
O caso de Spengler é conhecido demais para que seja
necessário chamar a atenção para a sua “ Decadência do
Ocidente” . Procuro, em outros autores, alemães contem
(1) cf. SINCEAIR LEWIS - Babbitt. trad . fr. Stock .
ed . 1930. “ Na América, Babbit se escreve hoje babitt” , do
pref. de Paul Morand.
54 TRISTÃO DE ATHAYDE

porâneos, a expressão de uma idéia de progresso diame


tralmente oposta à de Spencer ou Hegel, e antes derivada
(se lhe quisermos encontrar raízes ) da de Tolstoi, Scho
penhauer ou Nietzche no século XIX , Quero referir -me
a êsse grupo de Ludwig Klages, Edgar Dacqué e Theodor
Lessing, para apenas mencionar os mais famosos, que
inverteram categoricamente o progressismo otimista do
século XX, chegando a um verdadeiro regressismo
absoluto.
Na impossibilidade de mostrar as concepções de
todos eles, limito-me ao núcleo das idéias de Lessing (não
confundir com o seu predecessor do mesmo nome, que,
em 1780, publicava uma “ Erziehung des Menschenges
chlechts” , que era a verdadeira precursora do quadro
de Condorcet ).
O Lessing pessimista de hoje comenta como os gran
des progressistas dos séculos XVIII e XIX – Vico
( 1725) , Voltaire (1756 ), Lessing ( 1780) , Herder
(1784), Condorcet ( 1794 ), Comte (1847), Darwin
( 1859), Spencer (1860), Buckle (1860 ), Lecky (1865 ) —
comenta como julgaram todos eles criar uma nova teoria
do progresso , sôbre as ruinas da concepção cristã. No seu
entender , porém , nada mais fizeram do que prolongar
o Cristianismo. “ Com êles assistimos no mundo ocidental
à mascarada de uma necessidade de fé, fantasiada em
ciência do progresso e da evolução” ( 1) . .
E para impressionar melhor os leitores com essa
apresentação inesperada da idéia de progresso no mundo
moderno, serve-se de uma comparação de grande feli
cidade, em que se vê a passagem do catolicismo ao pro
testantismo e dêste ao naturalismo moderno, como sendo

( 1) THEODOR LESSING – Untergang der Erde am Geist .


W . A ., Adam . ed . Hannover, 1924, p. 310 .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 55

uma diluição cada vez mais insossa das grandes e fortes


verdades primitivas (1).
Apenas , Lessing não consegue vencer o seu desespero
nietzcheano, e a sua atração pelo panteismo, e termina o
seu quadro impressionante da decadência do mundo
ocidental exclamando : “ É possivel que a vida não tenha
objetivo algum . E se o tiver só pode ser um fim negativo
(p . 315 ). Porquanto o Espírito, ou Deus, é ao mesmo
tempo a Morte ou o Demônio, da mesma forma que o
Inferno (Hölle ) é apenas uma outra palavra para Luz
(Helle)" (2).
Mas não é só na Alemanha vencida que encontramos
essa filosofia do progresso em termos perfeitamente anta
França vencedora, o estado de reação contra a concepção
cientificista do progresso, tão bem representada pelo
(1) “ Desejo (para explicar a idéia de decadência cres
cente em espírito ) introduzir uma comparação que impres
sione o leitor. Uma forte folhada de chá ( Theeblüte ), nas
cida no Oriente, é preparada na Europa. O cristianismo
paulínico é a primeira e mais forte bebida. A Reforma,
uma segunda preparação mais aguada e mais fraca. A ciên
cia moderna e a sua formação de seitas . (como o monismo,
o pragmatismo, o agnosticismo, o ficcionalismo, o criticis
mo, etc. ) são o último cozimento já muito aguado e sem
gôsto daquelas velhas flores do Assam . Aos olhos prejudi
cados pela excessiva proximidade parecem as três idades :
católica, protestante e positivista, como se opondo radical
mente. Os olhos da posteridade, porém , que só consideram
as grandes linhas, hão de ver que se trata de três formas
diversas e decadentes, e porisso mesmo adversárias entre si,
do mesmo espírito . . . O perfume das flores do chá , isto é
a sua vida cósmica metafísica, se torna cada vez mais evapo
rado . E cada vez maior a diluição aguada do espírito oci.
dental, isto é, a lógica e a ética humanas" . (Th . LESSING
- op . cit., p . 311) .
(2 ) TH . LESSING — ib . p. 460.
56 TRIST
ÃO DE ATHAYDE

Renan do " Avenir de la Science" (1848), é expresso em


seus melhores espíritos.
Não tenho espaço senão para mencionar duas obras
recentes, ambas da major repercussão filosófica e social,
e ambas pregando, com intenção aliás radicalmente dis
tinta , a mesma filosofia do progresso negativo : a “ Tra
hison des Clercs” ou a " Fin de l'Eternel ” de Julien Benda,
e a “ Mort de la Pensée Borgeoise" de Emmanuel Berl.
Que me seja permitido citar, como resumo de toda essa
nova concepção pessimista do progresso, tão categorica
mente antagônica à do século XIX , os períodos finais e
proféticas dessa tão poderosa quanto sofistica " Trahison
des Clercs " : = " Diziamos acima que o fim lógico desse
realismo integral, professado pela humanidade de hoje,
era a entre-destruição organizada das nações e das clas
ses. Podemos conceber outro (fim ), que seria ao contrário
a sua reconciliação . . . Unificada em um exército nume
roso , em uma imensa usina, só conhecendo heroismos,
disciplinas, invenções, verberando contra toda atividade
livre e desinteressada, bem desiludida de colocar qualquer
Bem fora do mundo real e só tendo por deus a si mesma
e aos seus desejos, a humanidade atingirá a coisas bem
grandes, quero dizer, a uma vitória realmente grandiosa
sôbre a matéria que a cerca, a uma conciência realmente
satisfeita de sua potência e de sua grandeza. E a história
ha de sorrir pensando que Sócrates e Jesus Cristo mor
reram por essa espécie ” ( 1) .
Página sombria , imagem do nosso trágico século XX
que por ironia desejo aproximar das palavras de Turgot,
em 1750, quando o mito naturalista do progresso real
se movia em seu berço : “ A massa total do gênero humano,
por alternativas de calma e de agitações, de bens e de
( 1 ) JULIEN BENDA — La trahison des clercs. Grasset ed.
1927, p. 247.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 57
57

males, marcha continuamente, se bem que a passos lentos,


para uma perfeição cada vez maior ...” (1).
O irracionalismo histórico de Julien Benda está no
polo oposto ao racionalismo dos enciclopedistas. E a com
preensão do que seja progresso, nêsses dois séculos,
tambem passou de polo a polo . .
Mesmo que tomemos espírito menos extremados que
Lessing, Benda ou Berl, mas de facto representativos do
pensamento do século XX em duas correntes bem diver
sas, tais como Bergson e Maritain, encontramos em ambos
a repulsa ao dogma do progresso necessário . Maritaino
diz explicitamente , ao fixar em páginas admiráveis, qual
o verdadeiro sentido dessa idéia , que é uma daquelas
“ idéias loucas”, que Chesterton vê divagarem pelo mundo
moderno (2).
Bergson o deixa entender implicitamente, se bem
que ainda não tenha publicado, nem a sua teodicéia nem
a sua sociologia (3).
E mesmo aqueles que aceitam a idéia de progresso
incessante, como sendo a própria condição da vida, pro

( 1 ) cf. GEORGES SOREL – op. cit., p . 223.


( 2 ) JACQUES MARITAIN — Theonas — Nonv. Lib . Nat., ed .
1925 . Caps. VII a X passim .
. ( 3) “ O que parece resultar expressamente dos princípios
fixados na “ Evolution Créatrice” é que o progresso, embora
dependente do ambiente material, limitado e canalizado a cada
um de seus momentos pelo meio, pelas circunstâncias e por todo
o trabalho anterior da vida, é tambem a cada momento um ato de
vontade e uma intensificação da consciência , uma luta, um risco
ousado e um obstaculo transposto . . . Em uma tal doutrina , o
progresso é possivel, mas nada tem de fatal” .
LOUIS WEBER - 'Le rithme du progrès. Alcan ed 1913, p.
48 -49.
· 58 TRISTÃO DE ATHAYDE

curam toda sorte de atenuantes e contrapesos, caindo


mais num movimento pendular, do que numa ascensão
contínua , como se dá, por exemplo , com a “ lei dos dois
estados” de Weber, que ele opõe à fracassada “ lei dos
três estados” de Comte ( 1) .
A América, e especialmente a América do Norte, que
parecendo o continente do futuro é muitas vezes o conti
nente do passado, ainda é hoje a grande herdeira do
progressismo otimista do século XIX . Mesmo aí, porém ,
ha toda uma série de espíritos como H . L . Mencken ,
Hartley Wickham , Paul Elmer More, Waldo Frank , J.
Wood Krutch e outros que consideram a América civi
lizada demais para que o mito do progresso possa ainda -
ai fazer escola e designam os novos bárbaros da Rússia
soviética , como os verdadeiros representantes , hoje em
dia, da ideologia progressista do século XVIII.
Como se vê a concepção do progresso , desde que
rompeu com o sentido da elevação ao sobrenatural, no
início da idade moderna, — traçou uma curva de elevação
e decadência, tendo passado do extremo otimista no
século passado ao extremo pessimista em nossos dias. Foi
o veneno naturalista que desnorteou essa idéia , megalo

(1 ) “ A ' lei dos três estados, que o positivismo pensou poder


deduzir de uma documentação insuficiente , e da história limitada
às civilizações mediterrânea e ' ocidental, eu proponho substituir
uma fórmula que resumiria esquemáticamente o ritmo evolutivo e
que seria a lei dos dois estados. A inteligência técnica se desen
volve em certas épocas até que exgote a sua capacidade de invenção
e penetração prática do mundo, compativel com uma certa base
ideológica anteriormente constituida. Por sua vez a inteligência
reflexiva se apodera dos resultados da técnica e serve-se indireta
mente para se elevar a uma visão mais alta e a uma consciência
mais completa das coisas, apoiando-se sôbre os dados da consciência
social” .
(LOUIS WEBER — op. cit., p. 301-303).
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

manizou-a, se é possivel dizer, arrancando-a da sua inser


ção harmoniosa no complexo das realidades humanas e
sociais , em que tem e terá sempre o seu posto necessário
e limitado.
§ 3.° – Limites do progresso
Para terminar, vejamos como se deve reintegrar a
a idéia de progresso em nossa vida psicológica e social,
sem dar -lhe a autonomia que os racionalistas do século
XVIII lhe atribuiam , nem eliminá -la como o fazem os
irracionalistas de nossos dias.
Para isso, o necessário é reconhecermos que a idéia
de progresso , como todas as que se aplicam a valores
históricos e sociais , está intimamente subordinada às
nossas concepções filosóficas. Ela será o que estas forem .
Uma vez que o século XVIII pretendeu eliminar a tra
dição e a autoridade como elementos do conhecimento, e
quis reconstruir o universo baseado na fragilima base da
razão individual, — todas as idéias sociais deviam sentir
as oscilações que as idéias filosóficas iam sofrer. E por
mais que quisessem evitar o desastre, substituindo a me
tafísica pela física, – a tentativa era utópica. Pois as
ciências naturais ( tipo dessa ciência nova que se opunha
à metafísica tradicional) não podiam ter aplicação in
tegral e básica na ordem dos valores, que era a das
ciências sociais e antropológicas. O resultado foi essa
oscilação constante que vimos, entre as variadissimas
concepções naturalistas do progresso, de que apenas apre
sentamos um pálido esboço .
Só ha um remédio para essa situação : a restauração
de uma metafísica sadia , que venha restabelecer o equi
líbrio, entre essa massa de ciências dissociadas e sem dono
que hoje vivem a multiplicar-se cegamente pelo mundo.
TRISTÃO DE ATHAYDE

A idéia de progresso é uma das muitas que só po


derão encontrar uma apreciação justa de seu valor rela
tivo, quando o homem se compenetrar de novo da
hierarquia essencial dos valores naturais e sobrenatu
rais (1).
fazermos as distinções necessárias. O progresso se trans
formou em mito , quando quiz fazer de si mesmo a
própria finalidade da vida. Ou pelo menos pretendendo
ser uma lei geral e uniforme, quando não passava de um
com as três grandes modalidades por que o podemos en
carar na ordem individual e na ordem social : o progresso
material, o progresso intelectual e o progresso moral.
a ) O progresso material é o verdadeiro domínio do
progresso indefinido. A mutabilidade natural da matéria
torna-a praticamente capaz de ser melhorada incessante
mente, ou pelo menos em limites extremamente dila
tados (2).
Essa capacidade excessivamente ampla do progresso
mateiral é que tem dado ao mundo moderno a concepção
otimista do progresso necessário e indefinido, em todos
os domínios. Foi o progresso industrial da Inglaterra que
impressionou fortemente a imaginação de Spencer e fê -lo
o teorista do progresso indefinido do gênero humano.
Como hoje em dia é o progresso econômico espantoso da
América do Norte que faz dos seus sociólogos, discípulos
de Giddings e Ward, os continuadores do otimismo evo
lucionista de Spencer.
( 1 ) “ A noção de progresso só tem sentido se a fundarmos
sôbre uma metafísica, sôbre uma concepção geral do mundo e do
homem , que marque uma finalidade ao homem ” .
( J. LECLERC — Leçons de Droit Naturel, op. cit., I, p. 138 ) .
(2) JACQUES MARITAIN — Theonas, op. cit., p . 165.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

Essa capacidade indefinida do progresso material


não deve aliás ser entendida em termos absolutos. A
civilização material segue as vicissitudes de todo ciclo
cultural e ha mesmo progressos materiais que se perdem ,
como certos processos de fabricação dos egípcios ou mesmo
de povos primitivos, que não são conservados pela tradição.
Hoje em dia , entretanto, o fenômeno é mais raro e todo
progresso material pode sofrer eclipses, mas propriamente
não se perde. O que ha é que a hipertrofia do progresso
material é um dos fenômenos mais perigosos do mundo
moderno. Toda civilização só pode esperar equilíbrio e
elevação real da coincidência hierarquizada das 3 formas
apontadas de progresso . Ora, a hipertrofia do progresso
material tem sido em outras civilizações um sintoma pre
cursor de catástrofes formidáveis . E é o que se está
dando hoje em dia , quando a máquina prolongou indefi
nidamente os membros operadores do homem , sem que as
suas faculdades morais e especulativas possam acompa
nhar esse progresso exagerado na capacidade de mani
pulação e frutificação da matéria .
Ha portanto um desequilíbrio grave. O progresso
material moderno está levando a uma multiplicação ar
tificial da matéria (superprodução) que está trazendo à
harmonia do mundo as mais graves ameaças.
b) O progresso intelectual é mais lento e menos
visível que o progresso material. “ Não se trata aí de
operar sobre a matéria e sim de trazer a verdade à alma”
( 1 ) . A lei do progresso está aí fortemente presa a uma
outra, de permanência , pois o desenvolvimento das
ciências não é uma mutabilidade incessante, como é o
progresso da técnica , e sim uma construção sôbre as bases
do já adquirido. Nêsse sentido, pode-se tambem falar de
um progresso incessante dos conhecimentos, como dizia
(1 ) JACQUES MARITAIN – Theonas, op. cit., p. 173.
TRISTÃO DE ATHAYDE
admiravelmente S. Thomaz, ao exprimir essa colaboração
que as gerações e as culturas sucessivas devem prestar
umas às outras na lenta aquisição da verdade:
" É natural à inteligência humana elevar-se gradual
mente do imperfeito ao perfeito. Vemos assim , nas
ciências especulativas, que os primeiros filósofos nos
deixaram obras imperfeitas, que foram em seguida aper
feiçoadas por seus sucessores. E assim tambem nas ciências
operativas: os primeiros que se ensaiaram em invenções
úteis à comunhão humana, não estavam em condições de
tudo ver por si mesmos ; estabeleceram assim instituições
imperfeitas e cheias de defeitos que os seus sucessores
modificaram aperfeiçoando” (1).
Tanto as ciências práticas como as doutrinárias são
capazes, portanto , de um progresso incessante. E esse
progresso intelectual deve dominar o material. E ' na
esfera daquele que este se deve operar, afim de ser evitado
o desequilíbrio que hoje se nota, como acima apontamos.
Dentro, porém , do ciclo do progresso intelectual,
as duas ordens de ciências — práticas e especulativas —
devem estar presas tambem por um nexo de hierarquia
íntima, para que, como se está dando tambem em nossa
civilização naturalista, — o progresso das ciências físicas
e matemáticas não venha a fazer-se desligado das ciências
metafísicas, creando a situação perniciosa em que nos
encontramos : desenvolvimento excepcional das ciências
da matéria e abandono crescente das ciências do espírito
ao puro arbitrio individual. Daí o facto de termos uma
física ou uma biologia universalmente aceitas, nas pos
suirmos tantas psicologias quantos psicólogos, e tantas
filosofias quantos filósofos.
c) O progresso moral, ao qual podemos acrescentar
o progresso artístico, é aquele em que o desenvolvimento
(1) Sum . Theol. 1.", II.a , 2, 97, art. 1.º.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

em linha horizontal é mínimo ou nulo e só podemos falar


propriamente em progresso no sentido vertical.
A arte não conhece um progresso gradativo ao longo
do tempo. Pode atingir à culminância no início de uma
civilização e não voltar mais a ela em seguida, como pode
sofrer as mais variadas vicissitudes, pois que está inti
mamente subordinada à lei individual.
A moral, por sua vez, no sentido em que a enten
demos, segundo uma filosofia integral da realidade, não
depende tambem do progresso material e intelectual e ao
contrário deve ser a medida de ambos. As regras morais
fundamentais são poucas e extremamente simples. E são
indissoluvelmente ligadas à própria natureza das coisas,
ao próprio Princípio Absoluto , que é a Origem e a
Finalidade de todo o criado e portanto de todas as formas
do progresso .
A condição do desenvolvimento justo das outras duas
formas de progresso é a sua subordinação ao progresso
moral. Isto é, o progresso horizontal da humanidade, de
uma cultura, de um povo, ou mesmo de um só indivíduo,
deve estar por natureza subordinado ao progresso ascen
sional dessa humanidade, dessa cultura, dêsse povo ou
desse indivíduo.
Esta é a conclusão a que chegamos, ao procurar no
progresso o sentido profundo da vida e não a sua efêmera
evolução pela superfície das coisas, na ordem individual
e na ordem social.
A

Ha portanto duas ciências do progresso, no sentido


em que tentamos restabelecer o equilíbrio dêsse conceito :
a moral e a sociologia
A Moral é a ciência que tem por objeto os atos hu- :
manos e por fim o progresso individual.
A Sociologia é a ciência que tem por objeto os factos
sociais e por fim o progresso coletivo.
CAPÍTULO III

Estrutura social
CAPITULO III

ESTRUTURA SOCIAL
SUMÁRIO : $ 1.° - A estrutura geral da so
ciedade cristã ; § 2 .° - O meio ; § 3.° - 0
homem ; § 4 .° — A família ; § 5 .° — O gru .
po ; § 6 .° - O Estado ; § 7 .º – A Igreja .

§ 1.° — A estrutura geral da sociedade cristã

Vimos, no capítulo primeiro, quais os princípios que


guiam a sociologia finalista e informam a sociedade cristã .
Examinemos agora quais as linhas gerais dessa sociedade.
A orientação que nos vai guiar continúa a ser a mesma: 0
senso da totalidade. Do mesmo modo que a sociologia, isto
é, o conhecimento da sociedade, deve procurar alargar-se
o mais possivel, de forma a conter em si toda a riqueza ,
todo o âmbito , toda a complexidade da vida social em
sua integridade, — assim tambem o objeto dessa socio
logia , que é a sociedade, precisa desdobrar-se em todas as
suas possibilidades. A estrutura da sociedade, portanto ,
na .concepção integral que aqui desenvolvemos, compre
ende todos os círculos de formação e expansão do homem ,
desde a vida física da natureza, até a vida sobrenatural,
68 TRIST DE ATHA
ÃO Y DE
finalidade última do ser humano, e que por isso mesmo
domina e governa não só a sociologia como toda a socie
dade cristã. O campo dos nossos estudos sociais portanto
abrange :
: a ) a vida natural,
b ) a vida individual,
c ) a vida doméstica ,
d) a vida econômica,
e) a vida cívica
f) a vida internacional,
g) a vida sobrenatural ( 1 ).
Cada uma dessas modalidades da vida representa
um modo de formação ou de expansão necessária ao ser
humano. E cada uma delas possue a sua expressão con
creta, cujo conjunto forma exatamente a construção da
estrutura social completa :
a) a expressão concreta da vida natural é o
meio ;
b ) a da vida individual é o homem ; ..
c ) a da vida doméstica é a família ;
d ) a da vida econômica é o grupo profissional;
e) a da vida cívica é o Estado ;
f) a da vida internacional é a Sociedade das
Nações;
g) a da vida sobrenatural é a Igreja .
Vemos como tudo se desenvolve harmoniosamente
numa concepção integral da sociedade cristã.

(1) Codice Sociale – Schema d 'una sintesi sociale catolica .


Instituto Veneto di Arti Grafiche, Rovigno. 1927, passim .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 69

Se quisessemos agora fazer uma redução de todos


êsses círculos de expansão crescente, que formam o homem
e depois se alargam harmoniosamente em torno dêle, tal
como se atirassemos uma pedra na superfície de um lago
sereno - se quisessemos reduzir essas ondas concêntricas,
em outro plano, a um triângulo fundamental, poderia
mos chegar a três elementos básicos: a natureza, o hontem
e a sociedade.
Ésses três elementos formam , em seu conjunto , o
facto social tal como o deve compreender uma sociologia
finalista . A concepção social naturalista dá ao facto social
um significado excessivamente objetivo, suprimindo-lhe
todo carácter humano, para atribuir -lhe apenas uma
tipologia estatística, confundindo- o com o facto físico ou
biológico, objeto das ciências experimentais. Se o estudo
da sociedade, antes de Comte e Le Play, não possuia do
facto social senão uma concepção muito larga demais, po
demos dizer que a concepção naturalista do facto social
lhe deu um âmbito excessivamente estreito .
No facto social, objetivamente considerado, sem a
deformação de escolas, nós vamos encontrar elementos de
necessidade e de liberdade, porque é um facto eminente
mente huntano. E é preciso que o seu carácter social não
o deshumanize. Facto social é, portanto, tudo aquilo que
surge ou se reflete na sociedade, como causa ou ofeito, de
todos os fenômenos de convivência humana . E ' a mani
festação pública dêsses fenômenos, estudados em suas
reações recíprocas. E podem ser considerados, do modo
mais geral, ou como realizados ou como em ser. Isto é, ou
como instituições sociais ou como movimentos sociais, como
estática ou dinâmica social. Os factos sociais, portanto,
não devem prescindir de sua face e de sua origem humana .
E qualquer classificação que se tente dêsses factos , não
pode deixar de atender àqueles elementos que entram na
sua elaboração e na sua constituição profunda : a natu
70 TRISTÃO DE ATHAYD
E

reza, a sociedade e o homem . E a sociologia afinal não é


mais do que o estudo dêsse triângulo em todas as moda
lidades, desdobramentos e relações que ocorrem entre esses
três elementos básicos da estrutura social. Pois êles agem
e reagem entre si. Entre a sociedade, o homem e a natu
reza ha um grau de independência crescente.
a) A natureza não depende de nenhum dos outros
dois elementos e por isso age necessariamente sôbre ambos.
b) O homem , como ser material, não prescinde
de nenhum dos outros dois elementos, mas, como ser
espiritual, pode prescindir, em parte, da sociedade e
mesmo da natureza, pois tem um destino que transcende
tanto a um como a outro.
c) A sociedade, enfim , é o menos independente dos
três elementos, não podendo existir sem nenhum dos
outros dois e agindo, portanto , sôbre ambos apenas quando
por êles provocada. A sociedade só pode agir através do
homem e da natureza . A sociedade não existe em si, como
o homem pode existir e como a natureza existe.
Comecemos, portanto, o estudo da estrutura social
cristã , pela ação inicial da natureza.
§ 2.° - O meio
O meio age direta ou indiretamente, tanto sôbre o
homem como sôbre a sociedade. E para melhor apreciar
mos a ação concreta dessa influência , vamos dar suces
sivamente alguns exemplos que fixem bem vivamente as
várias modalidades dessa influência da natureza.
a ) Vejamos, em primeiro lugar, um caso de ação
direta da natureza sôbre o homem e indireta sôbre a
sociedade. É o exemplo do nosso clima. Dada a variedade
dos nossos climas, que vão do equatorial ao temperado,
o homem é afetado de modo variável e daí os reflexos
indiretos na organização social em nossas várias regiões .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 71

0 individualismo aventureiro do gaucho sob a impulsão


do clima frio é um reflexo social diverso do grupalismo
conservador e doméstico do nordestino ou do amazonense,
sob a ação do clima tropical. Eis aí um caso de ação direta
da natureza sôbre o homem e indireta sôbre a sociedade.
b) Vejamos agora um exemplo de ação simultânea
da natureza sobre ambos. Podemos encontrá - lo , digamos,
no terremoto que abalou o Japão ha poucos anos. A ação
direta do fenômeno císmico sôbre os homens, se traduziu
por uma mortalidade espantosa e sofrimentos inenarrá
veis. Quanto à ação direta sôbre a sociedade se traduziu
na mudança imediata da política japonesa, que de impe
rialista se tornou internalista, trocando a sua rivalidade
perigosa com os Estados Unidos e à sua expansão sôbre
a China , em alguns anos, por uma política de reergui
mento interior.
Eis, portanto, um caso típico de ação direta e si
multânea da natureza sôbre o homem e a sociedade.
c ) Mas temos ainda uma terceira modalidade, que
é a ação direta da natureza sôbre a sociedade e indireta
sôbre o homem .
Será, por exemplo, o caso da Inglaterra. O insula
mento britânico agiu diretamente sôbre a sociedade in
glesa , exigindo uma política comercial colonial. Por sua
vez, essa política colonial reage sôbre a família inglesa,
espalhando-a pelos quatro cantos do mundo, sem que
entretanto à esfacele, pois eu creio até que o afastamento
da mãe pátria tem sido, para os ingleses, o maior dos
laços de união, tanto a pátria se torna sedutora quando
estamos longe de suas mazelas.
Eis aí um caso típico de ação da natureza sôbre a
sociedade, e indiretamente sôbre o homem . A vida par
ticular de cada inglês é afetada pela política colonial
do Império , que depende, em grande parte , da posição
geográfica da Inglaterra, como ilha.
TRISTÃO DE ATHAYDE

A natureza, portanto , isto é, o meio físico e a raça ,


isto é, o meio etnico se é possivel dizer, têm uma ação
sensível sôbre a sociedade e o homem , constituindo um
dos elementos básicos do triângulo social fundamental.
A sociologia naturalista exagera essa influência , divi
dindo-se os seus adeptos em dois grandes grupos, que são:
a ) os mesologistas,
b) os hereditaristas.
Os primeiros se fundam na ação primordial do meio
físico e social sôbre o homem . Era, por exemplo, o pensa
mento dominante nos meios governamentais norte - ameri
canos, até a guerra. Julgava -se que o meio, segundo as
teorias dos Buckles no século XIX ou dos Hutchinsons
em nossos dias, fosse todo poderoso. De modo que a
política imigratória dos Estados Unidos era livre, con
fiante na ação assimiladora do meio norte-americano.
Depois da guerra, porém , deslocou -se o eixo dos mesolo
gistas para os hereditaristas, segundo certas concepções
biológicas modernas, que mostram a vida independente
do meio e mantendo-se, apesar da ação deste último. Do
minada por essas teorias biológicas, evolveu a mentalidade
dos governos norte-americanos depois da guerra ; e os
hereditaristas fizeram votar a lei de restrições à imi
gração, pois a ação do meio , segundo eles, passou a ser
incapaz de reagir contra a potência das fôrças heredi
tárias.
A sociologia naturalista concede, portanto, uma im
portância fundamental e decisiva à ação da natureza
sôbre a sociedade e o homem .
A sociologia finalista é muito mais moderada e
realista . Ela se distribue por aquilo que poderiamos cha
mar a ação decrescente do meio natural à medida que os
fenômenos sociais se desmaterializam . Podemos distribuir
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

êsses fenômenos, do homem e da sociedade, por várias


espécies, segundo esse critério de desmaterialização cres
cente.

a ) fenômenos fisiológicos,
b ) fenômenos tecnológicos ,
c) fenômenos econômico-sociais,
d ) fenômenos político-históricos.
Os primeiros são propriamente as necessidades
materiais e fundamentais da vida, que Brunhes reduz
a três :
a ) a alimentação,
b ) a habitação,
c ) o vestuário ( 1).
Em todos eles, o homem depende absolutamente do
meio físico, e Brunhes fala , com razão, na “ tirania da
água ” (2) pois os desertos aniquilam ou impedem as
civilizações . .
Os fenômenos tecnológicos são os da exploração da
terra e os econômico-sociais são os da convivência humana.
A ação da natureza, nesses fenômenos, vai lentamente
decaindo, à medida que vão crescendo outros fatores,
políticos, históricos, psicológicos, ou morais.
· Os fenômenos politico-históricos, enfim , só muito in
diretamente se deixam influir pelo meio em que se desen
volvem e a medida que nos aproximamos dos fenômenos
propriamente espirituais, essa influência vai gradativa
mente diminuindo, até tornar-se praticamente nula nos
fenômenos da ciência mística, da ascética .
(1) JEAN BRUNHES — La Géographie Humaine. F . Alcan.
3. ed . 1925. vol. I, ps. 77 e segg.
(2) Ibid . p. 48.
74 TRISTÃO DE ATHAYDE

• No estudo da ação do meio sôbre o homem e a so


ciedade, portanto, o que a sociologia cristã observa é
uma influência decrescente dos fatores exteriores à me
dida que se espiritualizam os fenômenos sociais .
§ 3.° — O Homem
O átomo da estrutura social é, sem dúvida, o facto
social. E do mesmo modo que o átomo da estrutura
material é composto de vários elementos, núcleo e eletrô
nios, — assim tambem o átomo social se divide em três
elementos primordiais — a natureza , o homem , a socie
dade, – considerando a sociologia integral o homem
como sendo o núcleo dêsse átomo da estrutura social. O
facto social é a base da estrutura social, e o homem é o
núcleo do facto social – eis a concepção nuclear da
sociedade, segundo a sociologia cristã.
Outras concepções filosóficas da sociedade encaram
diversamente o fenômeno, considerando umas a natureza
e outras a sociedade como núcleo do facto social.
Segundo os biologistas sociais ou os mesologistas, é
a natureza que é o núcleo do facto social, e tanto o
homem como a sociedade não são mais do que expressões
do meio ou da raça. Existe, hoje em dia , toda uma escola
de geografismo sociológico , que atribue toda a causalidade
social ao meio físico. E ao seu lado se ergue toda uma
escola de antropologismo sociológico que atribue toda
essa causalidade à raça. Para os primeiros, a
ciência básica para a sociologia é a geografia . Para os
segundos, — que são os que agora se encontram em plena
ascensão, pois datam relativamente de pouco e ainda estão
em pleno idílio da moda científica , — para êsses a ciência
básica é a eugenia . A sociedade, para eles , é um produto
de seleção sexual. Tudo mais depende disso .
Eis, em resumo, as principais escolas (pois na reali
dade se desdobram em numerosas outras), que fazem da
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 75

natureza o núcleo do facto social, seja a natureza física


(mesologistas), seja a natureza animal (hereditaristas
ou eugenistas ).
Vejamos, em seguida, as escolas que fazem da socie
dade, o núcleo do facto social. Dois grandes ramos cultu
rais encontramos sustentando esse ponto de vista.
a ) Os sociologistas, que deificam a sociedade e dis
solvem o homem , como individualidade à parte, no ·
processo social. Foi essa a concepção fundamental de
Augusto Comte , para quem a psicologia não era uma
ciência à parte, porque o homem não tinha uma existência
em si, sendo apenas o objeto de duas ciências : a biologia ,
que estudava o que havia ainda nêle de animal, e a
sociologia, que nêle observava o que já havia de social.
A realidade do ser humano, para Comte e para todo o
pensamento sociológico dêle derivado, estava apenas nas
raízes que o prendiam à vida somática, de um lado, e
à vida social, de outro. Em si, o homem nada é, para
a sociologia naturalista, derivada de Comte e Durkheim ,
e que hoje encontra numerosissimos adeptos. O sociolo
gismo contemporâneo, em suas numerosas modalidades,
parte implícita ou explicitamente dessa concepção : 0
homem só é alguma coisa pelo que conhece de animal e
de social. Para a sociologia naturalista em geral, ele é
apenas um ponto de passagem . A única existência real é
a da sociedade. Essa é a concepção sociológica que domina
a fase atual da civilização burguesa ocidental, especial
mente nos Estados Unidos.
b) O segundo ramo cultural que fez da sociedade
o núcleo do facto-social, é o dos socialistas. Saint-Simon
pode ser considerado como a fonte comum dessas duas
correntes sociológicas contemporâneas. Augusto Comte,
discípulo imediato de Saint- Simon , é o patriarca do ramo
76 TRISTÃO DE ATHAYDE

sociologista, que acentua na sociedade o elemento conser


vador, mas de solidariedade, de altruismo, de subordina
ção do indivíduo à sociedade em geral. Karl Marx,
discípulo indireto de Saint-Simon, através de Bazard, é
o patriarca do ramo socialista, que acentua na sociedade
o elemento revolucionador, hipertrofiando o fator econô
mico em prejuizo de todos os demais e pregando a subor
dinação do indivíduo, não mais à sociedade em geral,
mas a uma classe determinada, ao proletariado, que deve
representar o Estado. Marx, que combateu o monismo
do Estado monárquico ou democrático, fez do Estado
proletário um absoluto , subordinando -lhe a autonomia
individual.
De um lado, portanto , os naturalistas, fazendo da
natureza o núcleo da estrutura social; de outro, os socio
logistas e socialistas, fazendo da sociedade propriamente
dita êsse núcleo.
Resta o terceiro elemento do facto -social: 0
homem . .
Ainda aí não ha unanimidade entre as concepções.
Os próprios hereditaristas, que atribuem à raça o fator
primordial da sociedade, tambem se chamam por vezes
de humanistas, colocando o homem no centro da socie
dade. Mas se o fazem é por um abuso da terminologia ,
pois o que eles vêem . no homem são apenas os fatores
biológicos e portanto de natureza exterior à psicologia
humana propriamente dita. Ha, porém , um ramo socio
lógico que teve o seu momento áureo no século passado
e que conta ainda hoje alguns adeptos, se bem que
em franca decadência , ramo esse que faz tambem do
homem o centro da sociedade, sem se prender ao fator
raça. Quero referir-me ao individualismo.
Se os socialistas puros derivam de Marx (ha entre
05 socialistas tambem numerosas escolas, que variam em
espírito , como o provam as 3 Internacionais socialistas
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

já existentes, e a 4.a, em elaboração, sob a orientação de


Trotzki, (ao que parece ) e se os sociologistas puros pro
vêm de Comte, — os individualistas derivam de Spencer.
E o individualismo, que florescera doutrinariamente no
século XVIII, entre os enciclopedistas, e praticamente na
Revolução norte-americana de 1776 , na Revolução fran
cesa de 1789 e nas Constituições da libertação íbero
americana do começo do século XIX , — esse individua
lismo ia encontrar o seu sistematizador em Spencer , fa
zendo do indivíduo o fim da sociedade e do Estado.
Segundo a sociologia finalista e cristã , o homem é
que é o núcleo do facto social e portanto de toda a socie
dade.
Mas o humanismo cristão é muito diverso dêsse indi
vidualismo spenceriano e racionalista , como é tambem di
verso do pseudo-humanismo materialista .
A concepção cristã distingue nitidamente, no homem ,
o indivíduo e a personalidade.
“ O nome de pessoa”, escreve Maritain, “ é reservado
às substâncias que possuem essa coisa divina, o espírito,
e que por esse motivo constitue, cada uma delas, um
mundo superior a toda a ordem dos corpos, um mundo
espiritual e moral que, para falar com propriedade, não é
uma parte do universo . .. O que faz a sua dignidade,
o que faz a sua personalidade, é precisamente a subsis
tência da alma espiritual e imortal e sua independencia
dominadora em face de todas as imagens fugazes e de
todo o maquinismo dos fenômenos sensíveis. . . O nome
de indivíduo, ao contrário , é comum ao homem , ao ani
mal, à planta, ao micróbio e ao átomo . . . de modo que,
na qualidade de indivíduos, nós não somos senão um
fragmento de matéria , uma parte dêsse universo , sem
dúvida, mas sempre uma parte apenas, um ponto dessa
rêde imensa de fôrças e influências, físicas e cósmicas,
vegetativas e animais , étnicas, atávicas, hereditárias,
econômicas e históricas, a cujas leis estamos sub
E
TÃO AYD
78 TRIS DE ATH
metidos. Como indivíduos, somos subordinados aos astros.
Como pessoas, nós os dominamos” ( 1 ) .
Segundo a concepção social cristã, portanto, é pre
ciso distinguir no homem os dois aspectos psíquicos que
nêle se revelam : o indivíduo, objeto das leis da necessi
dade social, e a pessoa, sujeito das fôrças de liberdade
social. Êle é destarte uma soma de elementos opostos, de
necessidade e de liberdade, que situam num posto de
absoluta exceção no todo natural e social. E sendo assim ,
a concepção cristã nem afirma, como os socialistas, que
o homem é feito para a sociedade, nem diz , como os
individualistas, que a sociedade existe para o homem .
O que a concepção social cristã proclama é que —
“ em cada um de nós o indivíduo existe para a sociedade.
e deve, havendo necessidade, sacrificar-se por ela, como
no caso da guerra justa .Mas a pessoa existe para Deus e
a sociedade existe para a pessoa, isto é, para facilitar a
sua acessão à vida moral e espiritual e aos bens divinos,
que são o próprio destino e a razão final da personali
dade” (2 ).
Eis aí, em termos inequívocos, qual o sentido em
que a sociologia cristã coloca o homem no centro da so
ciedade e faz dêle o núcleo de toda a estrutura social. O
indivíduo existe para a sociedade, a sociedade existe para
a pessoa, a pessoa existe para Deus – eis a hierarquia
social completa, que defendemos.
$ 4.° – A Familia
A família é o primeiro círculo de expansão da vida
humana social.
Vimos o homem existindo dentro da natureza e sub
metido a numerosos fatores somáticos hereditários. Vimos,
( 1) JACQUES MARITAIN — Trois Réformateurs. Plon. Paris.
1925. ps. 28-29.
(2) JACQUES MARITAIN — ib . p. 31.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 79

em seguida, o homem emergindo dessas influências estra


nhas e distinguindo nitidamente em si o fator individual,
que subordina e o fator pessoal que o liberta.
Agora começaremos a ver o homem expandir-se por
meio de vários círculos sucessivos, de âmbito crescente,
numa socialização gradativa de sua vida que o leva ao
seu destino supremo. Várias são as sociedades parciais
através das quais o homem segue à procura de sua
finalidade.
a ) Na sociedade doméstica, o homem recebe a vida
e a educação. É o que podemos chamar a base bio -peda
gógica da sociedade.
b ) Na sociedade profissional, o homem sustenta ma
terialmente a sua vida. É a base econômica da sociedade.
c) Na sociedade civil, o homem desenvolve a sua
vida, dentro das fronteiras de sua nação, sob um go
vêrno comum , em união com os seus compatriotas. É
a base política da sociedade.
d ) Na sociedade internacional, o homem expande
a sua vida política nacional, entrando em relações com
outros grupos análogos aos seus, cooperando com eles ou
lutando com eles, universalizando-se por meio de uma
- sociedade de nações. É a base hwntanista da sociedade.
e) E finalmente na sociedade sobrenatural, o ho
mem realiza o seu destino final, chegando à plenitude
de sua vida. É a base moral e religiosa da sociedade.
O homem atinge à sua finalidade por meio de socie
dades parciais e sucessivas: eis o que nos ensina uma
concepção integral da sociologia .
Vimos, no capítulo primeiro, como a filosofia cristã
procura respeitar toda a variedade das coisas naturais,
distinguindo na natureza uma série de noções irredutiveis
entre si — substância , fenômeno, propriedade, causa ,
efeito, lei — cada uma das quais representa um elemento
individualizado e que não pode ser dissolvido em outro.
TRISTÃO DE ATHAYDE

A doutrina positivista, ao contrário , só vê na natureza


dois elementos — o facto e a lei - e tudo mais perde a
sua autonomia e individualidade.
Qualquer coisa de semelhante ocorre na realidade
social. A sociologia naturalista acabou reduzindo a so
ciedade praticamente a dois elementos únicos : 0 Indivi
duo e o Estado. São duas fôrças que se defrontam , que
se opõem , e que entram em conflitos frequentes e o pro
blema social se torna uma questão de pacificação entre
os dois fatores.
Ora, a sociologia finalista faz aí, com a sociedade,
o mesmo que a filosofia finalista fizera com a natureza.
Para respeitar a riqueza de suas modalidades, ela se
recusa a reduzir tudo na natureza , ao facto e à lei, acei
tando com um espírito de absoluto objetivismo todas
aquelas noções que acima vimos — a substância , o fenô
meno, a causa , etc.
A sociologia cristã tambem se recusa a ver na socie- . .
dade um duelo entre o indivíduo e o Estado, e coloca
entre um e outro todos esses grupos que ela descobre na
realidade social – a família , a escola, o sindicato, a
Igreja , etc. — possuindo cada qual a sua autonomia e
representando a sociedade em sua verdade complexa e
variada.
E a família é o primeiro , o mais importante, o mais
fundamental de todos esses grupos que constituem o
corpo real da sociedade e amortecem consideravelmente
o choque entre o indivíduo e o Estado.
Numa concepção individualista da sociedade, o Es
tado existe para o indivíduo .
Numa concepção socialista, é o indivíduo que deve
existir para o Estado .
- Numa concepção cristã da sociedade tanto o indi
víduo como o Estado existem para a família e os três
para Deus. Aquela é realmente o grupo básico, a pequena
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 81

sociedade fundamental dentro das três grandes socie


dades sucessivas nacional, universal e sobrenatural.
A família, portanto, na sociologia integral e na estru
tura social cristã, não é uma aproximação do acaso, não
é uma conjunção meramente biológica. Ela constitue uma
realidade social básica . É o primeiro círculo de expansão
do homem na sociedade. É o grupo em que ele recebe a
yida e a educação. Donoso Cortés , em um trecho de suas
obras, dá bem a idéia do que seja a importância da
concepção que a sociologia cristã tem da família , como
grupo fundamental da sociedade.
" A história da família ” - escreve ele — " pode
encerrar-se em poucas linhas. A Família divina , exem
plar e modelo da família humana , é eterna em todos os
seus indivíduos. A família humana espiritual (isto é,
a dos claustros) que depois da divina é a mais perfeita
de todas, dura em todos os seus indivíduos o que dura
o tempo ; a família humana natural, entre o pai e a mãe,
dura o que dura a vida e entre os pais e os filhos : largos
anos. A família humana anti-católica dura entre o pai
e a mãe alguns anos e entre os pais e os filhos alguns
meses. A família artificial dos clubs dura um dia , a do
casino um instante. A duração é aqui, como em muitas
outras coisas, a medida das perfeições ” (1 ).
O problema da indissolubilidade do vínculo conjugal,
que é absolutamente fundamental na concepção cristã da
família , adquire uma grande eloquência quando assim
encarado numa vista completa das várias modalidades
possiveis de família , que podem ir desde a aproximação
efêmera de um capricho físico até a sua plena cspiritua
lidade. A família, como célula da sociedade cristã , como
(1 ) Donoso CORTÉS. Ensayo sobre el Catolicismo, el libera
lismo y el socialismo., ed. Casa Ed. S . Francisco de Sales. Madrid .
1903 t. I. p. 34 -35 .
82 TRISTÃO DE ATHAYDE

grupo autônomo com direitos civís e políticos, nem é pura


mente biológico, nem puramente espiritual. É a família
sacramental, que participa da dupla natureza de todas as
realidades vivas, a material, como base biológica da vida
humana, e a espiritual, como base pedagógica da vida
humana. E aí voltamos ao que de início afirmamos. Numa
sociedade cristã , a família é a base bio -pedagógica da
vida social humana, pois é nela que o homem recebe vida
e educação.
E daí a sua importância na vida social, a sua auto
nomia em face do indivíduo e do Estado, os seus direitos
civis e políticos, tão pouco reconhecidos nas constituições
individualistas como a nossa, em que ainda nem existe
o voto familiar e tão completamente desconhecidos nas
legislações socialistas, como se dá hoje na Rússia , em que
a família está em plena dissolução moral e legal.
Numa sociedade cristã , a organização da família, se
cabe primordialmente à Igreja , cabe tambem de modo
eminente ao Estado. À Igreja compete defender na fa
mília :
a) a sacramentalidade,
b ) a unidade,
c) a estabilidade,
d ) a fecundidade.
Ao Estado compete dar-lhe uma proteção toda
especial :
a ) na vida moral, pela sua defesa contra tudo o
que concorra para a decadência familiar, na legislação,
. nos costumes, na literatura, etc.
b ) na vida econômica, estabelecendo uma legislação
de salários familiares, de leis protetoras da Infância , a
da maternidade, de amparo à pequena propriedade, de
uma política familiar de imigração, etc .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 83
c) na vida política, enfim , introduzindo, entre
outras garantias, a do voto familiar, a dos conselhos fa
miliares, a da consulta pedagógica, etc.
da vida individual e o círculo social fundamental.

§ 5.° - O grupo profissional

Depois da sociedade doméstica, base biológica e


pedagógica da sociedade, encontramos a sociedade pro
fissional, que é a sua base econômica .
O grupo profissional, e os que com ele se relacionam ,
a classe e a nação, são orgãos sociais que se inserem ' entre
indivíduo e os grupos.
O grupo é a associação que reune pessoas ligadas
por um laço comum e constante , seja de vizinhança , seja
de ocupação, seja de ideal.
A classe é o conjunto dos grupos aproximados por
interesses, tradições, costumes e aspirações idênticas.
A nação é o conjunto das classes, num território
e sob uma autoridade comum . As nações e as raças, que
se poderiam definir talvez nações biológicas ou étnicas,
são orgãos sociais extensivos, ao passo que as classes são
orgãos sociais intensivos. Aquelas representam uma ex
pansão das populações no espaço. As classes representam
uma graduação vertical da sociedade.
A sociedade cristã e a sociologia finalista vêem , na
distinção das classes, a multiplicidade dos fins sociais
concretos. Duas grandes distinções gerais encontramos
nas classes, segundo os seus fins espirituais ou temporais:
a ) as classes de finalidade espiritual são as da
vida jurídico -política, cultural, ética ou religiosa.
84 TRISTÃO DE ATHAYDE
b ) as classes de finalidade temporal são as de fins
econômicos, trabalhando para a aquisição dos meios ma
teriais de subsistência e convivência humana.
Temos portanto, entre outras menores, quatro gran
des classes sociais , cujo conjunto ergue as paredes da
estrutura social como a família lhe assenta os alicerces :
a ) as classes agrícolas, cuja vida se passa em con
tacto com a terra e que encarnam em regra na sociedade
o espírito de autoridade e de tradição.
b ) as classes industrias e comerciais, que organizam
e dirigem a atividade econômica da nação e que repre
sentam , em geral, o espírito de progresso civil e de liber
dade política.
c) as classes proletárias, que constituem a estrutura
econômico-profissional da nação, a fôrça técnica da pro
dução industrial, e que se identificam na sociedade com
o espírito de justiça social.
d ) Finalmente , as classes espirituais ou culturais,
no mais amplo sentido do termo, que representam o
espírito de elevação da personalidade.
A têmpera de um povo vale pelo que valem as suas
quatro grandes classes fundamentais. E ainda nêsse ponto,
a sociologia cristã se distingue nitidamente do indivi
dualismo e do socialismo, que são as duas faces principais
do naturalismo sociológico anti-cristão ou não-cristão.
: 0 individualismo defende a concorrência das
classes.
Isto é, reconhece a variedade das classes em que se
divide uma sociedade mas, partindo do seu dogma fun
damental da liberdade franca (pelo que é tambem co
nhecido como liberalismo, deixa que da expansão livre
das classes nasça a harmonia entre elas. É a concepção
que ainda domina, em geral, nas sociedades democráticas
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 85
política, aceita a concorrência livre entre elas, procu
rando intervir o menos possivel e acreditando que a
harmonia social surja espontaneamente dessa competição.
O espetáculo do mundo atual não é de molde a con
firmar as esperanças da política individualista liberal,
de concorrência livre entre as classes.
Em reação contra os malefícios da exploração de
umas classes por outras é que nasceu o socialismo. E a
concepção socialista das classes é a luta entre as classes .
As classes se sucedem na sociedade como camadas
de escamas que se vão gastando. O corpo social elimina
as classes gastas, como o corpo animal elimina a pele
velha. As classes se entredevoram . Procuram dominar-se
reciprocamente. E segundo o conceito de Darwin , triunfa
a seleção das mais fortes. Numa sociedade aristocrática
dominaram as classes nobres. Nas sociedades democráticas
dominam as classes burguesas. Nas sociedades socialistas
dominarão as classes proletárias.
Eis a evolução inflexivel da sociedade segundo a
ideologia marxista . A luta é a condição normal entre
as classes. E a vitória do mais forte será sempre a vitória
do mais justo .
A sociologia cristã rejeita essas duas concepções das
relações normais entre as classes. Nem aceita o pluralismo
de classes , do individualismo liberal, que vê na concor
rência livre a lei normal de convivência entre elas.
Nem aceita o monismo socialista, que vê na plura
lidade das classes um mal, que só a luta e a vitória da
classe proletária poderá corrigir . .
A concepção da sociologia integral é que a lei de
convivência das classes é a cooperação.
A pluralidade de classes é um bem . Deve persistir .
Corresponde à própria natureza das coisas. Não pode ser
negada nem deve ser contrariada.
86 TRISTÃO DE ATHAYDE

Mas por outro lado, dada a índole do homem , é im


possivel uma concorrência livre entre as classes, que não
degenere numa exploração dos mais fracos pelos mais
poderosos.
De modo que uma sociedade cristã se deve basear
numa multiplicidade de classes, na variação e graduação
entre elas, mas regulamentada por um poder superior
a todas que é — o Estado.
Se as classes são os grandes grupos naturais que
aproximam as famílias em sua convivência propriamente
social e cultural, — os sindicatos ou corporações são os
pequenos grupos contratuais, que aproximam os indi
víduos em sua atividade profissional. O sindicalismo é a
base econômica de toda a ordem social cristã. Mas o que
distingue nitidamente o sindicalismo cristão é que nêle
se manifesta, como em tudo mais, a subordinação natural
da ordem da natureza à ordem da graça . Do mesmo modo
que a família cristã é uma união biológica sacramentada
pela sua ordenação à vida sobrenatural, — assim tambem
o sindicato cristão é uma união profissional, cuja fina
lidade econômica imediata se harmoniza naturalmente
com outra, espiritual e mediata. Não devem , portanto,
os sindicatos profissionais – sejam operários, sejam
patronais — ser neutros religiosamente. A sociologia
cristã desconhece essa dissociação artificial de atividades ,
que a sociologia naturalista criou entre interesses tempo
rais e espirituais. A economia e a religião são os dois
interesses primordiais da vida de cada homem . A primeira
lhe permite alimentar o corpo. A segunda lhe faculta
alimentar a alma. São as duas atividades sociais básicas.
Se os comunistas afirmam que — " a religião é ópio do
povo ”, nós, cristãos, afirmamos que a religião é o fer
mento do povo. Pois só ela permite que a preocupação
dos interesses materiais não subrepuje a tudo mais no
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA
homem . Só ela faz com que a vida cultural não seja
apenas um artifício e um adorno.
O Sindicalismo, portanto, é a cristalização profis
sional das classes. E a harmonia social se obtem , como
vimos, não pela livre concorrência nem pela luta e sim
pela colaboração .
Praticamente, essa colaboração se processa por meio
do acionato do trabalho, da participação nos lucros, dos
conselhos técnicos operários que cooperam na administra
ção pública e privada. Toda essa colaboração é muito
delicada e só pode ser atuada pela intervenção direta
do Estado, elemento capital na vida social, que passamos
agora a considerar .

§ 6 .° - O Estado
Depois da sociedade doméstica , a familia , na qual
o homem recebe a vida e educação ; depois da sociedade
profissional, que é a classe em seu âmbito maior e o sin
dicato em seu âmbito menor, em que o homem encontra a
base econômica de sua manutenção e a base social de
sua convivência, — chegamos agora à sociedade civil que
é o âmbito nacional de desenvolvimento da vida social
e cuja expressão unitária é precisamente – o Estado.
O Estado é portanto o grupo nacional, por excelência ,
que congrega todos os grupos parciais , familiares, sindi. .
cais, de classe, etc., em um dado território , sob uma
autoridade comum .
O Estado é uma peça mestra na estrutura social
cristã , mas não a peça final. A família e o sindicato são
os elementos básicos da ordem social cristã. As classes
constituem , como disse acima, as paredes de toda a estru
tura social. E o Estado enfim é que equilibra todo esse -
conjunto de grupos parciais autônomos, mas limitados.
TRISTÃO DE ATHAYDE

Segundo a sociologia naturalista , em suas duas for


mas extremas – 0 individualismo e o socialismo ' - as
funções do Estado se reduzem ao mínimo ou se elevam
ao máximo.
Das quatro grandes Revoluções políticas modernas,
a inglesa de 1649, a americana de 1776 , a francesa de 1789
e a russa de 1917, as três primeiras foram individualistas
e só a última iniciou a era das revoluções socializantes,
pois tanto o facismo italiano como o hitlerismo alemão
têm um carácter nitidamente socializante, estatista e anti
individualista.
riores, pone elaboradan da, em frente,a intervendividuo
. Segundo a concepção dominante nas três revoluções
anteriores, porém , que formaram a atmosfera política
na qual foram elaboradas quasi todas as nossas leis e
constituições e na qual ainda, em grande parte, vivemos
- segundo a concepção individualista , a intervenção do
Estado se reduzia ao mínimo. Dava-se entre o indivíduo
e o Estado o mesmo fenômeno que se dera entre o Estado
e a Igreja. Essas três grandes revoluções políticas mo
dernas separavam o Estado da Igreja e em seguida o
Estado do Indivíduo. Foram três revoluções nitidamente
dissociadoras. O espiritual, o econômico e o político cons
tituiram ordens separadas, núcleos à parte , com uma
autonomia plena e com relações as mais sumárias que
era possivel. “ A Igreja livre no Estado livre” , clamava
Cavour, em nome do liberalismo italiano, mas expri
mindo de facto a concepção dissociada de todo o indi
vidualismo do século XIX . “ O indivíduo livre perante
o Estado” , clamava Spencer, em nome do individualismo
britânico, mas exprimindo toda a dissociação moderna
e liberal entre o poder político e o poder econômico . As
três grandes revoluções políticas dos séculos XVII e
XVIII, que formaram a estrutura da civilização ocidental .
do século XIX , que foi a nossa em grande parte no
Império e totalmente na 1.a República, sob o regime da
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA
Constituição de 1891, - essas revoluções individualistas
dissociaram a sociedade ocidental em três poderes rivais
- o político, o econômico e o religioso . A história de
nossa civilização nêsses três séculos é a história dessa se
paração e das lutas entre os três poderes. E o poder
político , o Estado, segundo essa concepção, devia resignar
se ao simples papel de guarda civil, de “ état gendarme”.
como diziam os liberais franceses, impedindo que o poder
econômico e o poder religioso exorbitassem demais.
Dentro do regime dêsse individualismo, porém , foi
lentamente se processando uma tendência oposta . E a
doutrina do absolutismo estatista, representada teorica
mente por Hegel e praticamente pelo Estado Prussiano
na pessoa de Bismack , bem como as doutrinas socialistas,
representadas especialmente por Marx e Engels — foram
trabalhando intensamente, umas para o predomínio
do poder político, outras para o predomínio do
poder econômico. Era uma negação inexorável do indi
vidualismo, que o próprio individualismo suscitava com
o seu erro desintegrador da unidade e da harmonia dos
três poderes básicos de toda sociedade – o político , o
econômico e o religioso.
E o resultado foi a revolução comunista de 1917,
dando a supremacia ao poder econômico, que absorveu
os dois outros em si, e foi a revolução fascista de 1921,
que salvou a Itália , sem dúvida, mas dando a vitória ao
poder político, que dominou em parte o econômico e
tentou a princípio, comode novo o está tentando, dominar
o religioso .
As revoluções do século XX, portanto , ao contrário
das anteriores, se fazem no sentido da predominância
absoluta ou relativa do Estado, seja como poder político ,
como se dá na Itália , seja como poder econômico, tal
qual se dá na Rússia .
90 TRISTÃ DE ATHAY
O DE

Segundo a concepção social cristã , nem é o Estado


que existe para o indivíduo, como queriam as revoluções
inglesa , norte-americana e francesa e, – nem o indi
víduo que existe para o Estado segundo a revolução russa
e , no fundo, a italiana . Conforme a nossa concepção
sociológica o Estado e o indivíduo existem para os grupos
intermediários que constituem os orgãos do corpo social.
A autonomia dêsses grupos é postulado essencial de uma
ordem social cristã . O sindicato profissional faz parte do
Estado, é um orgão do Estado, tem funções públicas e
não apenas particulares a preencher . A família tem di
reitos contra o Estado e tem reivindicações a exigir na
ordem civil. A Igreja possue o direito de intervenção
na vida pública , em tudo aquilo que se referir aos pro
blemas da família , da educação, do culto .
Destacam -se, portanto, praticamente os grupos bio
lógicos, econômicos ou morais, constituindo propriamente
o tronco da vida social cristã .
Nessa vida, porém , compete ao Estado uma função
muito mais eminente que na concepção abstencionista em
que se arrastou por muito tempo a nossa civilização.
Na sociedade cristã e na sociologia integral que re
presentamos — a função primordial do Estado é a de
coordenador das classes sociais.
Estas devem colaborar entre si, nem se devorando
reciprocamente , como querem os socialistas, nem concor
rendo extenuadamente entre si, como desejam os liberais.
E a cooperação das classes, axioma da sociologia cristã ,
só pode ser operada pela intervenção do Estado.
Essa é a função positiva , intervencionista, ativa do
Estado na vida normal da sociedade. A sociologia finalista
é contra o monismo do Estado, mas não contra a inter
venção direta do Estado em toda a vida social.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 91

A sociologia cristã condena a dissociação dos três


poderes — econômico , político e religioso — que as re
voluções individualistas provocaram .
E nesse sentido as revoluções socialistas ou sociali
zantes atuais significam uma volta a certa tendência
mais sadia, se bem que representem ainda, por vezes, o
erro da absorção de uns poderes pelos outros e conse- .
quentemente o desenvolvimento funesto do absolutismo
do Estado, do estatismo.
A harmonia social, para nós, só pode vir da coopera
ração e da aliança entre os três poderes. Isto é, da incor
poração das classes e dos sindicatos técnicos e proletários,
expressão do poder econômico, como orgãos políticos da
sociedade e da íntima cooperação entre o Estado e a
Igreja , como expressões dos outros dois poderes, o polí
tico e o religioso.
No plano da vida internacional, ainda é a idéia de
cooperação e de aliança que domina toda a sociologia
cristã .
As nações se organizam em Estados independentes
entre si. Mas essa soberania não é absoluta. O direito
das gentes deve ter a mesma eficácia e a mesma sanção
que o direito civil, de modo a organizar a vida inter
nacional em bases jurídicas tão sadias e estáveis quanto
a vida nacional. O direito internacional é uma das obras
primas do cristianismo social. E tudo o que modernamente
se tem tentado nesse sentido é uma reprodução do que
já foi feito, ou iniciado, pela Igreja na Idade Média e no
Renascimento, e que só o schisma protestante e o laicismo
moderno vieram dilacerar.
A sociedade das nações, portanto, é o complemento
necessário das várias sociedades parciais, em cujo âmbito
se desenvolve a vida social cristã .
. 92 TRISTÃO DE ATHAYDE

$ 7 . — A Igreja
E assim chegamos naturalmente, numa ascensão que
poderia ter sido sem esfôrço , se o guia fosse outro, acom
panhando apenas o desdobramento natural da vida, ao
último dos ciclos concêntricos de que falamos ao iniciar
êste terceiro capítulo : a vida sobrenatural.
Vida doméstica, vida profissional, vida civil, vida
internacional, vida sobrenatural, – eis os planos suces
sivos a que fomos subindo para ter uma idéia geral e
compreensiva de uma sociologia integral e de uma estru
tura social cristã.
A Igreja , e o Estado são os dois grandes organiza
dores da vida social, aquela representando as fôrças
morais e religiosas, este representando as fôrças econô
da sociedade.
micas e políticas da sociedade. .
Se a família e o sindicato são as pedras angulares
da ordem social, se as classes são os muros da construção,
- a Igreja e o Estado são o teto de todo o edifício, como
o Homem é o seu morador, a alma que tudo anima à
luz de Deus, destino e finalidade do monumento e do
seu morador, pois tanto a vida individual como a vida
social estão naturalmente ordenadas à vida da graça e
da glória em Deus.
A Igreja e o Estado, portanto, são duas sociedades
perfeitas e autônomas, visando fins diferentes : aquela,
o fim sobrenatural da graça e da glória dos homens indi
vidualmente ; éste, a paz e a prosperidade dos homens
socialmente .
Ha assim , na vida social corrente, matérias pura
mente espirituais, como os sacramentos, a vida monástica ,
a liturgia, etc., que tocam exclusivamente à Igreja .
Ha, por outro lado, matérias puramente temporais,
como a segurança pública, os problemas técnicos, a orga
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

nização administrativa, os assuntos financeiros, que to


cam exclusivamente ao Estado .
Mas ha tambem matérias chamadas mixtas, como
seja a da organização civil da família , a do ensino, a
da propriedade eclesiástica, etc., que põem a cada mo
mento em contacto os dois grandes poderes sociais.
As relações entre eles, portanto, constituem um dos
pontos cruciais para uma bôa organização social. Há
vários modos de resolver essas relações.
a ) Segundo o sistema que chamariamos de oposição
ou de absorção , o Estado se arroga direitos absolutos
tanto sôbre matérias temporais como espirituais, desco
nhecendo à Igreja autonomia. A Rússia é a terra típica
dêsse sistema, em sua dupla modalidade. O sistema de
absorção era o empregado pelo Tzarismo, que fazia da
Igreja uma arma de governo, absorvendo -lhe toda a
independência. O sistema de oposição é o empregado pelo
comunismo, que tambem se arroga o direito de intervir
nas conciências e passa logicamente da oposição teórica
à perseguição e eliminação sistemática e efetiva. O Co
munismo, aliás, é mais do que um desdobramento lógico
do Tzarismo. E ' apenas uma nova modalidade de abso
lutismo do Estado : o monismo de classe.
b ) O segundo sistema é o da separação.
O Estado, nesse caso, dissocia o poder religioso do
poder político. E na mais favorável das hipóteses — como
foi a da nossa lei de separação que, incorporada à Cons
tituição, regulou as relações da Igreja e do Estado durante
toda a primeira República — nessa hipótese reconhece
à Igreja os mesmos poderes e liberdades das associações
de direito comum . Não a persegue, mas tambem não a
conhece, fora das relações que o direito comum deter
mina. É uma instituição de ordem privada, que ele tolera,
contanto que não exorbite do seu campo particular de
ação. É o regime do laicismo do Estado.
94 TRISTÃO DE ATHAYDE

c) O terceiro sistema é o da colaboração. O Estado


deixa de ser sectário . Entra em relações com a Igreja
por meio de concordatas, reconhecendo-a como uma po
tência soberana e como um poder real que ele não tem o
direito de desconhecer. É o sistema atualmente seguido
nos paises de realismo político e em regra nos de duali
dade confessional, como na Holanda ou na Rumânia .
d ) Existe finalmente o regime de união. É o regime
em que o Estado faz profissão pública de fé católica ,
reconhece à Igreja a soberania dos interesses espirituais,
associa -se com ela no regulamento dos temas mixtos e
ordena toda a sua atividade por princípios morais e
religiosos. É o que se estava praticando na Itália, por
obra da revolução fascista que foi obrigada por um
esfôrço de realismo político, a recuar de algumas de suas
tendências estatistas, que parecem infelizmente ressurgir,
com a tendência monopolizadora do Estado fascista , cujo
Duce, infelizmente , está parecendo querer trilhar o mes
mo caminho errado de Napoleão ou de Bismarck , que é
o caminho mais seguro do suicídio político.
Os dois primeiros sistemas são filhos das três revo
luções individualistas e da revolução socialista russa . A
sociologia naturalista os endossa de bom grado.
São sistemas, porém , radicalmente contrários a uma
sociologia e muito especialmente a uma ordem cristã .
Só os dois últimos, o de cooperação e o de união,
podem satisfazer a quem não se resigne à mutilação natu
ralista da sociedade, à dissociação burguesa dos três po
deres ou à absorção que o Estado tente fazer de todas as
atividades sociais.
A Igreja e o Estado representam , socialmente, as
relações que individualmente existem entre corpo e alma.
Q Estado, que absorve ou que persegue a Igreja , é o
corpo que desconhece os direitos do espírito.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 95

O Estado que se separa da Igreja desconhecendo- a


na vida pública da nação, é como o indivíduo que permite
à “ lei dos membros” , como dizia S . Paulo, governar-se
alheia à lei do espírito . É a condição desesperadora de
inúmeros corações de nsosos dias, que perderam a noção
da harmonia entre a alma e o corpo, como os Estados
liberais e burgueses perderam o senso de sua harmonia
necessária com a Igreja .
Seja por meio de uma cooperação inteligente, seja
por meio de uma união substancial, como se dá efeti
vamente nos espíritos equilibrados e sadios, – o único
modo de uma sociedade alcançar os seus fins temporais
e espirituais é partir da colaboração íntima entre a Igreja
e o Estado. Nas nações que sofreram o schisma religioso,
a colaboração resolve o problema do equilíbrio.
Nas nações que tiveram a sorte de não sofrer o
schisma, só a união íntima dos dois poderes pode conser
var êsse bem que estamos arriscando sem pensar, — a
unidade espiritual.
Tanto a teocracia como o ateismo são os grandes
inimigos dessa unidade espiritual, – eis a lição que nos
transmite uma' sã sociologia . E só assim teremos a vida
sobrenatural naturalmente incorporada aos outros cír
culos vitais para dar à sociedade humana a finalidade
transcendental que é a sua marca e será sempre a sua
salvação.
CAPÍTULO IV

Elementos sociais
CAPITULO IV

ELEMENTOS SOCIAIS

SUMÁRIO : § 1.° - Harmonia dos três pode.


res sociais ; $ 2." - A crise do poder eco
nômico ; § 3.° - A humanização da econo
mia ; § 4 .° – Normas da economia finalista .

Possuem os ingleses uma locução proverbial que diz :


“ first principles first ” . É preciso começar pelos primeiros
princípios . Ou, mais familiarmente, é preciso começar pelo
princípio. Foi o que fizemos ao iniciar esta exposição de
uma sociologia finalista, em contraposição à sociologia
determinista hoje dominante. Vimos quais os princípios
fundamentais de tal sociologia , tais como expressamente
os formulamos e quais os princípios implícitos numa so
ciologia naturalista . Estudamos, em seguida, o próprio
conceito de finalidade social, isto é, de progresso, em
uma e outra concepção sociológica. Passamos, depois, a
estudar qual a estrutura geral de uma sociedade fundada
em tais princípios e quais os orgãos que supõe. Vejamos
agora o modo como funcionam esses orgãos e quais as
relações que mantêm entre si, normal e anormalmente.
TRISTÃO DE ATHAYDE

§ 1.° — Harmonia dos três poderes sociais


Êsses orgãos ou poderes sociais, numa concepção
integral da sociedade humana, podem ser reduzidos a
três : o poder político, o poder esconômico e o poder espi
ritual. São êsses os três poderes fundamentais da ordem
social finalista ou cristã .
Vemos, desde logo, como a sociedade em que vivemos “
está longe de uma tal concepção social. Deu -se lentamente
uma absorção de poderes em benefício do civil ou político ,
que tende cada vez mais a concentrar em si a soberania
e mesmo o monopólio de todos os demais. E , no entanto,
cada um deles corresponde a uma atividade social dife
rente e deve, portanto , possuir uma autonomia corres
pondente.
Ao poder civil ou político , representado socialmente
pelo Estado, cabe a coordenação das atividades sociais e
muito especialmente a harmonização e cooperação das
várias classes entre si.
Ao poder econômico, representado socialmente pelos
Sindicatos ou Conselhos, profissionais e corporativos,
cabe a organização da vida econômica da nação, em sen
tido lato, e a inserção na atividade geral do Estado.
Ao poder espiritual, representado socialmente pela
Igreja , cabe a direção da vida moral e religiosa e a sua
coordenação no funcionamento geral da sociedade.
Vê-se logo, num esboço rápido como esse, qual a
relação íntima que possuem entre si èsses três poderes
fundamentais da nação. Desde Montesquieu , que a nossa
inteligência , ao ouvir falar em três poderes , evoca logo
- o legislativo, o executivo e o judiciário. Mas esse já
é um fenômeno da monopolização política do Estado.
Encontramo-nos hoje em estado de dissociação entre
aqueles três poderes --- o político, o econômico, e o espi
ritual, em virtude justamente da falsa concepção indi

- - -
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 101

vidualista, que colocou o indivíduo em face do Estado,


com a supressão de todos os grupos intermediários, fa
mília , escola , sindicato, etc . que representam exatamente
a múltipla expansão da personalidade humana e a varie
dade do funcionamento da vida social. O liberalismo fez
do Estado um orgão estritamente político, entregando
a vida econômica e a vida espiritual da nação ao puro
arbítrio individual, certo de que a harmonia nasceria
necessariamente da ação livre dessas atividades. O resul
tado foi uma desconexão de atividades que quebrou toda
unidade social. Pois o poder econômico se desenvolveu
de modo considerável mas anárquico, governado apenas
pelo interesse individual do momento. E o espiritual, por
seu lado, expandiu -se sem contacto com a vida pública,
e relegado ao domínio quasi que exclusivo das conciências.
A crise social em que nos encontramos, em todo o
mundo moderno, não é apenas econômica ou moral. É
de desequilíbrio social. E o núcleo dessa crise é sem
dúvida a exclusão do senso da finalidade na organização
da sociedade. A concepção do Estado neutro foi uma
concepção de falso otimismo. A filosofia burguesa e indi
vidualista da sociedade nasceu de uma falsa prosperidade
momentânea , provinda especialmente da introdução da
máquina na economia social, que por algum tempo obnu
bilou as conciências quanto ao verdadeiro carácter da
vida em si e da vida social em particular. O Estado foi
reduzido ao mínimo em suas funções e a sociedade consi
derada um mero ambiente para o desenvolvimento livre
e autônomo do indivíduo. Essa é a compreensão da vida
que domina a nossa sociedade burguesa ha dois séculos
e contra a qual se embatem , de um lado a concepção
socialista e de outro lado a concepção cristã da sociedade.
Êste é sempre o quadro que se nos depara ao consi
derarmos, em síntese, as nossas sociedades contemporâ
neas. No centro, a situação liberal dominante, filha do
102 TRISTÃO DE ATHAYDE

individualismo das três revoluções dos séculos XVII e


XVIII, a inglesa de 1649, a americana de 1776 e a
francesa de 1789. É a concepção da máxima neutralidade
política do Estado e da expansão livre e franca da vida
econômica e da vida espiritual: É nitidamente uma orien
tação nascida de um êxito momentâneo que se julgou
eterno. A sociedade passava a ser uma simples convi
vência e a civilização representava apenas um máximo
de variedade harmoniosa, de coexistência de contrários,
sem nenhuma finalidade comum . .
Êsse é ainda o bloco central da sociedade ocidental
contemporânea . Contra ele é que se jogam , de lados opos
tos, as duas concepções contrárias, do socialismo e do
cristianismo social, entre as quais podemos encontrar ao
menos um laço comum que é o da necessidade de um
sentido geral da vida , de uma filosofia da sociedade,
em suma. O socialismo possue uma filosofia materialista
da sociedade. O cristianismo defende uma filosofia espiri
tualista da sociedade. Mas ambos julgam impossivel a
ordem social sem a conciência de uma finalidade coletiva .
Temos portanto o liberalismo individualista permi
tindo a expansão livre e independente dos três poderes
- o político, o econômico e o religioso, — com o mono
pólio representativo, administrativo e público do poder
político, isto é, do Estado. A tendência atual dessa con
cepção é a de um desenvolvimento cada vez mais intenso
dêsse poder político, com absorção crescente dos demais.
O laicismo educativo , por exemplo , que visava a princípio
ser apenas uma neutralidade pedagógica , está cada vez
mais exibindo as suas tendências anti-finalistas e especial
mente anti-cristãs.
Contra o liberalismo individualista, que dá aos três
poderes sociais plena liberdade de expansão, partindo
de uma neutralidade preliminar, mas tendendo à hiper
trofia política - é que se levantou o socialismo cada
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 103

vez mais coletivista, suprimindo totalmente essa neutra


lidade e deslocando o eixo da orientação social do poder
político para o poder econômico. O Estado nessa con
cepção, torna-se a expressão dêsse poder econômico, que
representa a única manifestação viva e real da sociedade.
A idéia de liberdade desaparece, fundida na de necessi
dade social. E tanto o poder político como o poder espi
ritual são absorvidos pelo Estado econômico ou proletário .
É uma nova forma, e mesmo mais completa , do monismo
político , em que todos os poderes da nação ficam absor
vidos pelo econômico , que se erige em absoluto, creando-se
a forma mais moderna de absolutismo, que é o de classe ,
e no caso presente — a ditadura do proletariado pela
violência .
A sociologia finalista enfim rejeita todo monismo
social. Repele o monismo político das democracias agnós
ticas e burguesas em que vivemos. Refuga o monismo eco
nômico do absolutismo proletário que hoje começa a ven
cer. E rejeitaria tambem o monismo religioso de uma
teocracia , que pretendesse absorver o poder político e o
econômico no poder religioso, como se deu por longo
tempo entre os hebreus, cujo Templo era o Estado e como
voltou a dar-se em Bysâncio com o cesaro-papismo e em
Genebra com o calvinismo. A sociologia finalista, como
vimos, é tão anti-ateista como anti-teocrática.
A sociologia finalista cristã é essencialmente plura
lista. Ela concebe os três poderes fundamentais da
sociedade — o político, o econômico, o espiritual — como
três fôrças autônomas, de campos de ação distintos mas
fundamentalmente associadas entre si e todas com função
pública social. Já o vimos no capítulo anterior, mas não
é demais a repetição para que se grave bem uma con
cepção que é primordial na sociologia da finalidade.
O funcionamento normal, portanto, dos elementos de
uma estrutura social cristã é o da cooperação íntima e .
104 TRISTÃO DE ATHAYDE

constante dos três poderes que representam o organismo


social completo — o poder do Estado, o poder das
Corporações Econômicas e o poder da Igreja ou das
Igrejas, naquelas nações que tenham sofrido a desgraça
de perder a sua unidade espiritual cristã. A crise social
moderna é consequência da desharmonia funcional entre
êsses três poderes. Essa é, a meu ver, a sua causa inicial.
Se investigarmos, porém , as causas imediatas da crise
que hoje está no ambiente social de todo o universo , ve
remos que a essa crise geral de dissociação dos três po
deres, vem somar-se uma crise aguda no funcionamento
de um dos três — o poder econômico .
É certo que cada um deles tem os seus problemas
próprios e que em torno do poder político e em torno do
poder espiritual enxameam as discussões.
É incontestável, porém , que o problema econômico
supera no momento a todos os demais e que, sem a sua
solução, não é possivel a paz e a prosperidade social, fi
nalidade imediata de toda vida em sociedade. Não nos
cabe aqui estudar êsse problema do ponto de vista técnico,
nem apresentar sugestões para a sua solução. Estamos
apenas fazendo, ou tentando fazer um pouco de filosofia
social e não de ação social. E são os princípios gerais
que nos interessam , pois nada é possivel crear, na prática ,
com eficiência sem nos reportarmos sempre a êsses prin
cípios. A metafísica não é esse mundo remoto e arbitrário
com que o positivismo corrompeu a nossa noção intelectual
da totalidade da vida. Quando investigamos a natureza
das coisas em sua objetividade integral, vamos elimi
nando, pouco a pouco, por abstração tudo o que seja
ser composto para chegar ao ser puro. Pois bem , ainda
aí não é a um monismo e sim a um dualismo que chega
mos. E essas duas espécies de ser puro que encontramos
são, de um lado, o ser matemático (a que tambem se
· reduz o ser físico ) ente de razão, subjetivo, e de outro
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 105
lado, o ser metafísico, ente real, ontológico, objetivo. O
ser matemático é o embrião imaginário de toda a face
quantitativa do universo. O ser metafísico é o núcleo
real de toda a face qualitativa do universo. Aquele , isto
é, o ser matemático é que guia o estudo das chamadas
ciências naturais. Éste, isto é, o ser metafísico, fará o
objeto das chamadas ciências morais. E as ciências na
turais são aquelas que tendem à matemática, isso é, a
uma expressão numérica e quantitativa. E as ciências
morais são todas aquelas que tendem à metafísica, isto é,
a uma expressão intuitiva e qualitativa. Não se pode
reduzir uma coisa à outra sem falsear a realidade. E
ambas vivem latentes em todas as nossas atividades
empíricas, e patentes em nossas atividades científicas. A
vida é uma qualidade do universo , a matéria é uma quan
tidade. Vida e matéria são substâncias irredutiveis
entre si.
A metafísica está , dessa forma, tão próxima de nós,
quanto a matemática . A dificuldade no estudo de ambas
pouco importa. Nas suas manifestações concretas — qua
litativas ou quantitativas — ambas podem assumir o aspe
cto mais simples e banal. Quando dizemos — “ dois e dois
são quatro ” – ou quando afirmamos que — “ o que é, é"
- estamos fazendo ali matemática e aqui metafísica, do
modo mais simples, mas tambem capaz de todos os desen
volvimentos mais transcendentais . E tambem , estamos
afirmando a irredutibilidade, entre si, dos dois modos
de ser da realidade e dos modos de conhecer da nossa
inteligência .
Se me acusassem , portanto, de fazer metafísica social
no momento em que só a física social pode interessar
aos homens que estão morrendo à fome, sem trabalho, —
eu diria que a justiça social prática é sem dúvida o
primeiro objetivo a visar. E que é preciso socorrer e
alimentar os homens antes de debater a estrutura ou
106 TRISTÃO DE ATHAYDE

o dinamismo da sociedade. Mas afirmaria tambem que


os males econômicos concretos, contra os quais é preciso
aplicar os remédios concretos imediatos, são apenas con
sequências de erros abstratos mais remotos. Um desvio na
metafísica social vai traduzir-se fatalmente num desequi
líbrio da física social. E bem razão têm os socialistas
científicos quando avançam que é preciso descer à raiz
dos problemas e não ficar, com paliativos efêmeros, na
sua superfície.
Foi o excessivo prolongamento da neutralidade social
do liberalismo agnóstico e individualista , que nos trouxe
a êste estado de insegurança generalizada em que vivemos.
É preciso portanto, reagir pelo restabelecimento de uma
filosofia social sadia . E o meu objetivo aqui é indicar êsse
caminho, a todos os que estão sentindo o esfacelamento
moral e material da burguesia , que perdeu em grande
parte o senso dos seus deveres e possue demais o amor dos
seus direitos, Indicá-lo a todos aqueles que possuam uma
concepção integral da realidade, àqueles que procuram
uma finalidade coordenadora transcendental, especial
mente que conhecem o Cristo , que crêem em sua Palavra
e vêem quanto a sociedade contemporânea se vai cada
vez mais afastando da concepção de vida que Êle nos
trouxe.
Dirijo-me, destarte, não só aos cristãos mas a todos os
que não se satisfaçam com uma concepção unilateral da
verdade, a todos os que aceitarem a autonomia do espírito
contra a ditadura da matéria , a todos os que consideram
que a nossa civilização deve ser melhorada mas não ani
quilada . E a todos eles, a primeira tarefa é mostrar quais
as raizes filosóficas dos males sociais de que sofremos.
E qual a necessidade de revermos os primeiros princípios
de tudo, ao examinarmos as suas mais remotas e con
cretas consequências. A metafísica social, portanto , é o
fundamento indispensável de uma boa física social e foi
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 107

um erro, que estamos pagando caro , a dissociação pro


longada entre o tronco e as raizes da economia moderna
e da ciência da sociedade.
Quando estudamos , então, a crise do poder econô
mico, desejamos apenas mostrar ainda aí, como a nor
malidade social se transformou numa anormalidade or
gânica, por assim dizer, em virtude dos falsos princípios
assumidos, no início da fase de civilização atual.
§ 2.° - A crise do poder econômico
A crise do poder econômico , em que hoje nos deba
temos, poderia resumir -se numa frase : o divórcio dos
dois elementos fundamentais da economia – o trabalho
e o capital.
Podemos adeantar ainda que esse fenômeno é uma
repercussão parcial de um estado de facto, que atinge a
toda a sociedade e ao espírito moderno . E ainda
aí podemos verificar como os fenômenos sociais estão inti
mamente ligados aos fenômenos filosóficos. Pois a origem
do estado em que nos encontramos, cultural e socialmente,
hoje em dia - e que se pode definir como sendo um
estado de dissociação generalizada , — remonta ao fim da
Idade Média , com a decadência da escolástica, já prepa
rada , aliás pelo nominalismo. Esse nominalismo foi o
primeiro clarão do subjetivismo filosófico moderno. E
a sua primeira expressão filosófica genial ia dar-se com
Descartes. Poderiamos resumir a reforma filosófica car
tesiana, dizendo que — Descartes substituiu o senso co
mum pelo senso próprio. Até então a filosofia procurava
os seus primeiros princípios , isto é, os axiomas evidentes
que lhe davam a segurança de fundamentação indiscu
tível; — até então a filosofia procurava êsses primeiros
princípios em sentenças comuns a todo o gênero humano,
que representassem justamente o senso comum da huma
108 TRISTÃO DE ATHAYDE

nidade, como a afirmação, por exemplo, de que uma coisa


não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo, sob a mesma
relação, o que é o chamado princípio de não contradição.
Descartes abandonou esse caminho e procurou a
evidência do raciocínio filosófico em si mesmo, ou seja ,
no senso próprio. “ Cogito ergo sum ”, penso logo existo ,
- eis a certeza única a que ficou reduzido depois da
hecatombe de evidências que a sua dúvida sistemática
provocou .
O nominalismo medieval encontrava aí a sua expres
são mais simples e genial que ia dominar, de então em
deante, as grandes correntes do pensamento filosófico.
Dava- se, portanto , no campo do pensamento especu
lativo uma verdadeira deslocação do senso comum para
o senso próprio e, como na antiguidade o dissera Protá
goras, o homem voltava a ser a medida de todas as
coisas.
Ora, se passarmos do campo da metafísica para o
da sociologia , nessa interdependência que a cada momento
se manifesta entre os dois — vamos ver que no início
da era sociológica moderna, que começou propriamente
depois do mercantilismo e muito especialmente com a
Revolução Industrial inglesa do século XVIII, - nessa
aurora da economia e da sociologia modernas deu -se um
fenômeno semelhante ao que se viu no terreno filosófico.
Neste, a filosofia passou do senso comum ao senso
próprio. No terreno social, a sociologia econômica — que foi
a primeira expressão da sociologia moderna e continúa
até hoje a ser a dominante entre os sociólogos socialistas
— no terreno social, a sociologia econômica passou do bem
comum ao bem próprio.
O fundamento da sociologia e da economia nos gran
des sistemas filosóficos medievais, especialmente no to
mismo, é sempre o mesmo — o bem comum . É a equiva
lência social do senso comum , base da filosofia medieval e
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 109

cristã . A medida das regras econômicas, como das regras


políticas, é sempre êsse bem comum . É uma sentença que
encontramos a cada passo entre todos os que, na era me
dieval, se ocupavam com problemas sociais. O que governa
a filosofia da sociedade e a organização política dos
Estados é o bem de todos, o bem coletivo, o bem comum ,
e não o bem de um só, o bem individual, o bem próprio .
É uma sociologia absolutamente anti-individualista, que
começa por dizer ao soberano que a sua permanência no
poder só se justifica enquanto bem proceder quanto à
finalidade da sua função, que é o benefício da coletivi
dade – e termina por exigir sempre do indivíduo o
cumprimento do seu dever social. A economia medieval é
governada pelo mesmo princípio do bem comum e o seu
funcionamento está cuidadosamente subordinado a toda
a sorte de princípios morais e de regras corporativas.
Citarei três normas de ordenação econômica, que até
hoje constituem o triângulo básico da economia finalista
cristã :
a ) a proibição da usura,
b) o salário justo,
c) o justo preço .
Esses princípios governam toda a economia medieval,
subordinando-a sempre ao bem comum e creando toda
a sorte de limitações ao bem próprio, aliás em seu próprio
benefício .
Distingue-se, portanto, a filosofia finalista e cristã ,
baseada no senso comum - e a sociologia finalista e
cristã, baseada no bem comum .
Vem a decadência medieval. Vem o ressurgimento
da antiguidade pagã. Vem a expansão horizontal da vida,
em contraposição à expansão vertical, até então domi
nante. Vêm as novas descobertas geográficas, a revelação
de continentes novos, de civilizações diferentes, de homens
110 TRISTÃO DE ATHAYDE
misteriosos. Vem o alargamnto do universo conhecido . A
nova cosmologia desgeocentrada. As ciências naturais em
marcha . O absolutismo das monarquias nacionais . O luxo
das côrtes. O humanismo das artes e das letras. O surto
do progresso econômico . A descoberta das minas de ouro
e prata da América e o derrame dêsses metais pela
Europa. Vem tudo enfim o que cria no homem um novo
senso do bem estar da vida e um gôsto de não pensar na
morte, o que será talvez a essência de toda a civilização
moderna. E a sociedade vai procurar novas bases de
organização, nas quais o sentido dos direitos humanos
venha a predominar sobre o sentido dos deveres humanos
até então dominante.
Se foi só dois outros séculos mais tarde, com a Revo
lução Francesa, que essa acentuação dos direitos do
homem , em oposição aos seus deveres, – veio a concre
tizar-se e a espalhar-se por toda a sociedade, — foi sobre
tudo, com a revolução industrial inglesa e com a escola
econômica de Manchester, que a nova base da sociologia
ia finalmente estabelecer-se, como se afirmara com Des
cartes a nova base da filosofia.
E essa nova base era – o bem próprio, como centro
da vida econômica e social. O que ficou , na história
social e econômica, como sendo o liberalismo econômico,
— foi exatamente essa deslocação do núcleo sociológico,
do bem comum para o bem próprio.
O indivíduo passava a ser tambem , em sociologia
e não apenas em filosofia , a “ medida de todas as coisas” .
Estava-se na aurora do subjetivismo econômico, que veio
a ser a semente do capitalismo moderno, - como já tinha
raiado a aurora do subjetivismo filosófico. Êste veio por
seu lado a ser a semente do naturalismo moderno, base
filosófica do capitalismo, como o materialismo, (que é o
naturalismo levado às suas consequências extremas e
lógicas ) é a base filosófica do socialismo integral.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 111

0 .mercantilismo começara a revolução sociológica


e econômica moderna. Foi o primeiro assalto que sofreu
a sociologia finalista e cristã , que se esboçara na Idade
Média .
O mercantilismo começara a desespiritualizar a eco
nomia . Enquanto a razão de ser da economia medieval
fôra a manutenção material da vida humana , subordinada
sempre à finalidade espiritual dêsse mesmo homem — a
economia mercantilista tomou a riqueza como fim a al
cançar e não como meio a utilizar. Foi o início da ruina
da economia e da sociologia cristã .
Quando veio o liberalismo, como progresso sôbre o
mercantilismo, que ainda fazia do Estado o monopoli
zador da vida econômica, e da riqueza pública o termô
metro da prosperidade coletiva, — quando veio o libe
ralismo, o Estado cedeu ao indivíduo a preponderância
na vida econômica, e o bem próprio começou a ser consi
derado o próprio núcleo do progresso social. Era a pro
cura do interesse individual que havia de terminar neces
sariamente no bem coletivo . O bem comum não desa
parecia da cogitação dos pensadores, como o senso comum
não fugia das locubrações dos filósofos. Passavam apenas
a ser subordinados.
Só a procura de si mesmo, só a introspecção, só a
auto-psicologia , podia chegar às verdades objetivas –
diziam os subjetivistas cartesianos.
Ao que os subjetivistas manchesterianos, isto é, do
campo sociológico e econômico, repondiam confirmando
que só o interesse individual, livremente procurado,
só o estímulo de enriquecer, só a busca do bem pró
prio enfim , podiam chegar à verdade econômica, isto é,
ao bem estar geral.
Eis, a meu ver, o desvio inicial que vamos encontrar
na origem da crise econômica e filosófica dos nossos dias.
O individualismo social foi um derivado do individua
112 TRISTÃO DE ATHAYDE

lismo filosófico . E os falsos princípios que iam provocar


toda a crise posterior foram , como vimos, em filosofia , o
senso próprio substituindo o senso comum e em sociolo
gia econômica , o bem próprio substituindo o bem comum .
A crise do poder econômico de hoje em dia tem as
suas raizes remotas nêsse falso princípio que presidiu
ao progresso social do ocidente nêsses últimos tempos e
que levou à situação de facto que hoje observamos — a
dissociação completa entre o capital e o trabalho.
Vimos que a instabilidade social de nossos dias pro
vinha de um desequilibrio entre os três poderes funda
mentais da sociedade – o político, o econômico e o
espiritual.
a ) Hipertrofia do poder político,
b ) Repúdio do poder espiritual,
c) Anarquia do poder econômico,
eis o quadro da sociedade contemporânea que se desen
volveu à sombra do falso princípio filosófico do senso
próprio e do falso princípio sociológico do bem próprio .
O remédio deve estar num processo oposto aos erros
a que chegaram os três poderes. O equilíbrio social só
poderá vir portanto da :
a ) proporcionalidade do poder político ;
b ) reintegração do poder espiritual;
c) racionalização do poder econômico.
O que a proporcionalidade política deve visar, não
é a volta do Estado à falsa teoria da não intervenção,
mas ao contrário a uma regulamentação mais sistemática
da sua intervenção positiva, não apenas como policiador
e arrecadador de impostos, condição do Estado liberal e
agnóstico, mas como coordenador positivo das várias ati
vidades sociais, e muito principalmente econômicas e es
pirituais.
O que a reintegração espiritual deve visar é o reco
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 113

nhecimento de uma finalidade espiritual, tanto individual


como coletiva, superior a todas as finalidades temporais,
e da autonomia da Igreja em assuntos religiosos, morais
e educativos, estes últimos em ligação íntima com a Fa
mília , grupo social básico e com o Estado. .
O que a racionalização econômica deve visar enfim ,
não é apenas a fecnicização da economia como hoje em dia
se entende o termo, e sim a sua humanização. A incor
poração do poder econômico ao governo público da nação
é, sem dúvida, o primeiro passo para o equilíbrio social
almejado. Mas ha qualquer coisa de muito mais vasto a
fazer, à luz de uma sociologia integralista, como esta
cujos contornos mais gerais vamos tentando expor, em
face de outros esquemas sociológicos e da situação de
facto, com que nos defrontamos. E esse ideal mais vasto,
que deve completar a obra de incorporação do poder
econômico ao governo da nação juntamente com o poder
político e o poder espiritual, — essa obra realmente de
finitiva e informadora é, como dissemos, - a humani
zação da economia .
§ 3.0 — A humanização da economia
Não se trata de uma frase, nem de uma fórmula
de efeito apenas. Trata -se do que ha de mais central, de
mais eficaz e de mais prático na sociologia finalista. Toda
a economia cristã se baseia no homem . E já vimos que
êsse carácter lhe vem da ciência de que depende a ciência
econômica, que é — a Sociologia. E que à sociologia lhe
vem de sua subordinação à Ética, na classificação geral
das ciências (1). A sociologia é uma ciência moral e não
uma ciência natural e o seu fundamento é o homem e
não a natureza .

(1) Vede o 1.º cap. em que o problema é tratado mais em


pormenor.
114 TRISTÃO DE ATHAYDE

O falso princípio sociológico e econômico do bem pró


prio superando de início o bene comum , que presidiu à
formação da sociologia e da economia individualistas, –
levou logicamente à deshumanização da economia e da
sociologia . A Economia medieval existia com grande atra
zo material sôbre a economia moderna, mas com grande
vantagem moral, quanto à vida humana, às necessidades
humanas, à finalidade humana.
Nenhum documento será talvez mais ilustrativo dessa
deshumanização inicial da economia moderna, do que o
famoso 24.º capítulo do 1.º livro da grande obra de Karl
Marx, sôbre o capitalismo. “ Na Inglaterra ”, escreve
Marx, “ a servidão pessoal estava quasi que suprimida
na última parte do século XIV . A maioria absoluta da
população já se compunha então, e principalmente no
século XV, de camponeses livres e economicamente inde
pendentes... Em todos os paises da Europa a produção
feudal se caracterizava pela divisão do solo entre o maior
número de ocupantes . . . (p . 648 ) . Como Thornton o diz
com razão, os trabalhodores ingleses foram precipitados,
sem transição, da sua idade de ouro na idade de ferro
(p. 650 ). . .
. “ A supressão da propriedade que os camponeses ti
nham de seu campo e da sua casa fez dêles proletários,
isto é, pobres (p. 653, nota ) .. . No século XVI a situação
dos trabalhadores tinha piorado muito (p . 669) ”. (1).
Todo esse processo gerador do capitalismo moderno,
que Marx descreve como sendo o da “ ursprungliche
Akkumulation ” , é o que a nossos olhos representa exa
tamente - a deshumanização da economia .

(1) KARL MARX – Das Kapital, Kritik der politischen


oekonomic., ed. Kautsky, Dietz, Nachf. Berlin , 1938. Vol. 1 , p.
644 et passim .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA * 115

A economia medieval, baseada, em parte , nos prin


cípios da sociologia cristã , tendia sempre à liberdade
individual justa, ao valor do salário justo , ao preço da
mercadoria justo. As regras da justiça e da caridade,
isto é, regras morais presidiam à organização econômica .
E o resultado, como vimos pelo texto do mais insuspeito
dos historiadores pois é o profeta do materialismo socio
lógico de nossos dias, – o resultado foi que no fim da
Idade Média não só a escravidão, como a própria servidão
estavam praticamente abolidas e a vida social e econômica
se fundava numa classe agrícola livre e proprietária dos
seus instrumentos de produção.
Eis o resultado socialmente fecundo a que tinha che
gado a sociologia cristã informando a economia rudi
mentar da época. Eis a lição formidável que nos dá uma
era histórica, caluniada por todos os primários da incul
tura contemporânea , mas à qual soube fazer um pouco
de justiça um adversário genial como Marx.
Voltando, porém , à origem remota da economia
moderna, eis que surge no plano invisivel mas todo pode
roso das idéias uma desastrada deslocação de princípios,
que julgando valorizar o homem ia iniciar o processo de
sua desvalorização. Eis que o senso próprio vence o senso
comum . E pouco a pouco a noção social e econômica do
bem próprio começa tambem a vencer a noção do bem
comum . E é em pleno calor dessa transição filosófica , que
no campo da natureza e da luta do homem por dominá-la ,
surge um elemento praticamente novo e que ia operar a
mais formidável revolução econômica, social e talvez
mental dos tempos modernos — a máquina.
Não sei se será exagero dizer o que vou dizer. Mas
eu, pessoalmente , considero a invenção da máquina mo
derna, como sendo o maior acontecimento social de todos
os tempos, depois da Encarnação do Verbo Divino.
116 TRISTÃO DE ATHAYDE

Se não fosse temer o julgamento daqueles que não


estão preparados para combinar a solidez das ciências
físicas à solidez das ciências teológicas e dos conhecimen
tos satânicos, eu faria uma pequena digressão para mos
trar como o anti-cristianismo moderno, que hoje pela
primeira vez se revela em todo o seu horrivel esplendor
na Rússia , nasceu com o espírito da máquina, - como
o espiritualismo integral nasceu com o espirito do Cristo
e a Sua Revelação.
Mas eu sei que os molhos teológicos são fortes demais
para o nosso paladar efeminado, e deixo de lado a sedu
ção dêste desvio na floresta para continuar no caminho
sêco de terra batida, dos argumentos racionais e dos
fatos hitóricos.
A invenção da máquina, portanto, coincidiu com a
deslocação de princípios sociológicos – do bem comum
para o bem próprio . Foi esse bem próprio que presidiu
àquela acumulação originaria de capitais, que ia provocar
uma segunda deslocação desastrosa no campo da socio
logia econômica — o predomínio do capital sôbre o tra
balho .
O capitalismo, que nasceu com o princípio do bem
próprio , como elemento formal e com a máquina, como
elemento material, — foi o regimenovo, o sinal dos novos
tempos. E foi êle que presidiu ao processo da deshumani
zação da economia , que caracteriza o descalabro da socio
logia econômica finalista e cristã .
O capital tornava-se o eixo da produção e o homem ,
isto é, o trabalho, passava a ser apenas um instrumento
nas mãos do capital. A sociologia deslocava, por sua vez,
o seu eixo do homem para a sociedade, do ser de corpo
e alma, para o fato social impessoal. A lei do homem
passava a ser uma lei de imprecisão e de anarquia, inca
paz de servir como base de uma ciência. E no dia em que
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 117

Comte afirmou a sistematização definitiva da nova ciência


da sociedade, baseou -a na negação do homem individual.
“ O homem é uma abstração, só a sociedade é real” , es
creveu Comte . Êsse é o núcleo de todo o sociologismo
positivista , que Spencer tentou repudiar com o seu indi
vidualismo, mas que venceu todos os obstáculos e ainda
é raiz de toda a sociologia naturalista , que é a domi
nante em nossos dias.
E o fenômeno se dava, não só no campo capitalista,
como no próprio campo socialista que veio a formar-se e a
crescer ao longo do século XIX , e começa a oficializar-se e
a dominar no século XX .
No capitalismo, essa negação do homem como reali
dade social se dava pelo despotismo do capital sôbre o
trabalho. O liberalismo econômico representava a disso
ciação definitiva entre o capital e o trabalho, que vimos
ser a característica da crise do mundo econômico mo
derno. O trabalho que fôra na economia medieval, como
o será sempre na sociologia cristã, a medida do capital.
passava a ser, ao contrário , um meio de enriquecimento
nas mãos dêste.

§ 4 .° - Normas da economia finalista


Vimos, pouco antes, que três normas gerais dominam
a economia finalista : .
a ) a proibição da usura ,
b ) 0 salário justo,
c) o justo preço .
A proibição da usura não é apenas, como os termos
parecem indicar, uma limitação dos juros cobrados. É
qualquer coisa de infinitamente mais complexo e que
um economista moderno define como sendo, " a fecun
118 TRISTÃO DE ATHAYDE
TRIS E ATHAYDE

didade apenas do trabalho” , no complexo dos bens eco


nômicos ( 1).
O problema é muito complexo e tem sido interpre
tado de modo diferente pelos sociólogos mais ortodoxos
em doutrina cristã . Pretendendo estudá-lo em trabalho
especial, limito-me aqui a mencioná-lo. Segundo Orel,
que é o mais recente dos exegetas e o iniciador de uma
sistematização da sociologia econômica cristã , como até
hoje ainda não fôra tentada, o sentido da doutrina me
dieval anti-usurária é o da exclusão completa do capital
puro do direito à reprodução remunerativa em juros e
interesses. “ Só o trabalho”, escreve ele, “ e de acordo com
a medida de sua produção e com a sua necessidade pro
fissional tem direito a uma remuneração (" nahrung”,
não propriamente no sentido de alimentação, mas de
frutificação) a uma participação nos bens tirados da
natureza e no valor da troca (“ tauchwert” ), — nunca
porém a simples posse, a propriedade sem trabalho, por
mais produtiva que fosse (2 ).
E um comentador muito equilibrado como Valensin ,
por exemplo , se bem que mostrando o carácter muito
mais complexo do problema, e permitindo uma adaptação
mais objetiva às realidades econômicas, – conclue que
- " à luz dos princípios .. . diremos que, em teoria ,
o valor de uso de uma coisa só podendo ser reivindicado
se essa coisa tem um valor intrínseco, e o dinheiro, como
tal, não o possuindo, quando esse dinheiro é emprestado,
só dá direito a quem empresta a receber o equivalente
da soma que emprestou ” (3 ).
(1 ) ANTON OREL - Oekonomia Perennis., ed. Mathias
Grunnewald ., 5 vol., (dos quais só fora'm publicados até agora o
1. e o 2 .0) MAINZ 1930, passim .
(2) A. OREL — Ob. cit., p. 320.
( 3 ) - AUGUSTE VALENSIN -- Traité de Droit Naturel., ed.
Spes., 1925 , II, 320.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 119

Não posso entrar aqui, como disse, na apreciação


do problema, que é um dos mais intrincados da econo
mia finalista. Só quero acentuar como ha sociólogos
cristãos que negam ao capital puro todo direito à remu
neração pelo seu uso. Só o trabalho ou o capital explo
rado pelo seu proprietário e ao qual ele liga, portanto,
o trabalho única atividade fecunda, é que tem direito
aos frutos que possa dar e portanto ao lucro.
Mesmo, porém , sem interpretar a lei de usura, em
sociologia , com esse rigor sistemático, é fato indiscutível
que a proibição da usura, em sociologia cristã, é a ex
pressão doutrinária do predomínio justo que o trabalho
tem sôbre o capital, na justa distribuição dos bens
terrenos.
Vem talvez aqui a propósito mencionar a fórmula
com que Toniolo resume a teoria da produção, numa
economia social “ ético-jurídica ”, como ele diz :
-- " O trabalho cada vez mais dominante, a natureza
cada vez mais dominada, e o capital cada vez mais pro
porcionado” (1).
Essa é a própria fórmula da sociologia cristã , no
equilíbrio entre os três elementos básicos da produção
e portanto da vida econômica — a natureza , o capital
e o trabalho .
O trabalho tende a ser cada vez mais dominante,
isto é, os seus direitos devem ser cada vez mais garantidos,
a sua participação nas vantagens e responsabilidades
das empresas cada vez maior, a sua associação cada
vez mais organizada. É o trabalho que domina a economia
finalista, porque ele é o elemento puramente humano da
produção. E o que distingue nitidamente a economia
capitalista da economia finalista , é que “ a produção
(1 ) GIUSEPPE TONIOLO — Trattato di Economia Sociale, lib .
ed . Fiorentina, Firenze., 1921, II, 43-49.
120 TRISTÃO DE ATHAYDE

existe para o homem e não o homem para a produção” ,


como dizia
como dizia um o de Feconomista
uninvelho lorença.cor doscadfins nato Média,
a vdaez Idade , num
Santo Antonino de Florença.
A natureza tende a ser cada vez mais domi
nada , prossegue a fórmula de Toniolo . De fato, numa
economia cțistã , a afirmação de domínio do homem sobre
a natureza é fundamental. A sociologia socialista fez
disso um cavalo de batalha, como se esse tema fosse um
privilégio do materialismo histórico . Longe disso , o que
vemos, é que a sociologia finalista defende tambem a
todo transe a humanização da terra, isto é, a adaptação
dos recursos materiais e animais às necessidades do ho
mem . Do mesmo modo que essa sociologia considera o
homem como subordinado a uma providência Divina,
tambem considera a terra e todos os seres sub-humanos
que a habitam como subordinados a uma providência
humana . Os direitos do homem sôbre a terra são um
reflexo dos direitos de Deus sobre o homem . A humani
zação da natureza, portanto, a sua modificação por meio
do maquinismo mais moderno, a sua exploração mais
intensiva, tudo isso é um elemento central da economia
finalista. .
E , finalmente, a fórmula tão feliz de Toniolo termina
dizendo que o capital deve ser cada vez mais proporcio
nado. Isto é, a tendência à hipertrofia capitalista que foi a
consequência desastrosa dos falsos princípios da economia
moderna em sua fonte, precisa ser corrigida por meio
de uma distribuição mais justa dos capitais e por meio
de uma aplicação mais eficaz e extensa da lei de usura,
completamente esquecida, numa sociedade capitalista, or
ganizada sôbre os alicerces do interesse econômico indi
vidual em vez de o ser sôbre as necessidades naturais do
homem e à luz de princípios morais imutáveis. .
Eis portanto o significado do primeiro princípio
da economia finalista que vimos ser a iliceidade da usura .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 121

O segundo princípio moral que governa a economia


finalista é o do justo salário.
E nesse ponto é que vemos ao vivo o desvio desas
troso da economia capitalista, que tinha fatalmente de
degenerar nessa instabilidade completa da nossa civili
zação periclitante , senão provocar o advento da economia
socialista pura, que vem corrigir alguns males da eco
nomia capitalista e agravar outros, pois o comunismo
nada mais é do que o capitalismo integral (1).
O erro fatal da economia liberal foi o de transformar
o trabalho em mercadoria . Foi um processo concomitante
ao da acumulação dos capitais e ao da desapropriação
das classes agrícolas no início da época moderna. O
trabalho tambem seguiu o mesmo processo de deshuma
nização. Passou a ser um apêndice da máquina e não
mais uma capacidade humana. E sendo assim , subordi
nou- se ao mais cruel dos falsos princípios da economia
clássica — á lei da oferta e da procura.
A deshumanização do trabalho, a sua conversão em
mercadoria , proletarizou o homem , desorganizou a fa
mília , criou o pauperrismo e modernamente o problema
atroz dos sem trabalho. .
Ora, na sociologia econômica cristã, que a Idade
Média começou a organizar, o trabalho é uma parte do
homem e não da máquina ou do capital. Não é uma
mercadoria , mas uma faculdade e uma propriedade
( 1 ) " O imperialismo (capitalismo financeiro ) levou as forças
produtoras do capitalismo mundial a um alto grau de desenvolvi
mento. Ele terminou o preparo das condições materiais para a
organização socialista da sociedade . .. A revolução proletaria
internacional decorre assim das condições de desenvolvimento do
capitalismo em geral e de sua fase imperialista em particular” .
Programa da Internacional Comunista. Adotado pelo 6 .º Congresso
Mundial de 1.° Set. 1928 . Moscou, in “ La Correspondance Inter
nationale ” . 23 -11-1928, 1,4.
122 TRISTÃO DE ATHAYDE

humana. De modo que o salário, retribuição do


trabalho, tem de ser medido pelas necessidades do
homem que trabalha e não pelo interesse do que fornece
o trabalho. E por aí se vê quanto é necessário a inter
venção do Estado para efetivar um princípio como esse ,
que não pode ser levado a efeito senão numa economia
racionalizada pela intervenção do Estado e humanizada
pela volta ao domínio dos princípios morais que a devem
informar.
O terceiro princípio moral que governa a economia
finalista é o justo preço .
Ainda aí tocamos de perto todo o erro do natura
lismo sociológico , que subtraiu a ciência social ao âmbito
das ciências morais para incluí-la no das ciências natu
rais. Praticamente esse erro doutrinário se traduziu pela
eliminação do princípio de justiça da organização econô
mica da sociedade e pela eliminação da caridade na
ordem prática das relações econômicas entre os homens.
O problema do justo preço foi um dos que mais
sofreram desse deslocamento desastroso. Sendo o preço
das mercadorias uma pura função da mesma lei inhumana
da oferta e da procura e de outras leis econômicas igual
mente inevitáveis, ao ver da economia clássica, – não
era cabível a intervenção do Estado ou das Corporações
para a fixação dêsse preço, ao contrário do que se fazia
na Idade Média , sob o influxo da sociologia cristã. O
preço passava a ser uma função variável da lei constante
da oferta e da procura . E os interesses privados de
vendedores e de compradores é que o deviam fixar a
cada momento.
O conceito de preço justo das mercadorias, porém ,
que é um dos três princípios básicos da economia sã ,
não entrega o preço a essas flutuações da especulação
comercial. Fixa- o de acordo com os elementos em apreço,
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 123

isto é, o justo interesse do vendedor e as necessidades do


consumidor. É nêsse sentido que se pode dizer que a
economia medieval foi uma economia de consumo, ao
passo que a economia moderna é uma economia de pro
dução. Isso não quer dizer que a economia medieval
fosse uma economia de desperdício , em que o interesse
do produtor fosse desdenhado, como o entendeu um
crítico , ao ler essa afirmação em um trabalho meu. Eco
nomia de consumo quer dizer – economia em que o
interesse do consumidor regulava o preço do produto,
ao menos tanto quanto o do produtor. Economia de pro
dução é aquela em que se julga que ao produtor compete
fixar o lucro que entenda, deante do trabalhador explo
rado e do consumidor desarmado.
Proibição da usura, e, portanto, predomínio absoluto
do trabalho sôbre o capital ; salário justo, e portanto
fixado por orgãos do poder público tendo em vista as
necessidades do homem e de sua família ; e preço justo,
isto é, valor da mercadoria fixado por equidade e não
por especulação lucrativa apenas, industrial ou bancária ,
pois hoje é o banco que governa a indústria ; - eis os
princípios básicos de uma economia sadia que procura
manter a união do trabalho com o capital, impedir a
exploração dos fracos pelos fortes e racionalizar a vida
econômica, tendo em vista os interesses humanos a ela
ligados.
A economia capitalista abandonou tudo isso. Negou
a legitimidade de princípios morais em matéria econô
mica. Criou uma classe plutocrática dominante em face
de uma classe proletária dominada, cindindo os dois ele
mentos básicos da vida econômica das nações. Entregou
a evolução dessa vida econômica à flutuação livre dos
preços e à iniciativa livre dos indivíduos. E desequilibrou ,
portanto , toda a harmonia social, levando a sociedade
burguesa a um bem estar excessivo e falso, em face de
124 TRISTÃO DE ATHAYDE
uma sociedade proletária desamparada e portanto dis
posta a conquistar pela fôrça o que não obtem pela
justiça e pela lei. .
Eis o resultado da grande anomalia social que se
processou ao longo da era econômica moderna e que hoje
nos leva a essa crise do poder econômico que ameaça
arrastar à ruina toda a estrutura do Estado burguês
moderno.
O funcionamento normal da estrutura que estuda
mos, em suas linhas mestras, no capítulo anterior depende
portanto de um equilibrio funcional dos três poderes
públicos — o político , o espiritual e o econômico, e neste
último da associação funcional dos dois elementos-capital
e trabalho, que, juntamente com a direção técnica, cons
tituem os fatores básicos da produção . Falando recente
mente a uma Associação Francesa de engenheiros cató
licos e a uma Associação Operária tambem francesa,
o Santo Padre Pio XI definiu os três fatores da produção
como sendo : — " o poder do espírito, a fôrça física e a
fôrça financeira” que ele tambem designou em outros
termos por — " ação produtora, habilidade executiva e
capital” ( 1) .
Nenhum dos elementos é redutivel aos demais, e
todos três cooperam harmoniosamente para uma vida
econômica fundada em princípios morais sadios.
O capitalismo sacrificou o “ poder do espírito ” e a
“ fôrça física", isto é, o fator trabalho e o fator técnica
à “ fôrça financeira”, isto é, ao capital.
O socialismo, que é o capitalismo do proletariado,
sacrifica a “ fôrça financeira” e o " poder do espírito ” à
( 1) SIGISMUNDO WAITZ - The Church and the Social
Question . In “ Central Blatt and Social Justice " . Louis. U . S . A .
Dez. 930 .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 125

“ fôrça física ”, isto é, inverte a ordem de subordinação


dos fatores, chegando a um desequilíbrio oposto .
A sociologia finalista e cristã procura respeitar o
equilíbrio dos três fatores, dando a cada um o que lhe
é devido, mas não mais do que lhe é devido.
uo .
E na recente e magnifica Encíclica social “ Quadra
gésimo Ano ” que veio completar a doutrina da “ Rerum
Novarum ”, teve mais uma vez ocasião S. S . Pio XI de
afirmar a unidade essencial dos fatores de produção.
“ É de todo falso atribuir ou apenas ao capital ou apenas
ao trabalho o que só se obtem pela ação conjunta de um
e outro ; e é de facto injusto que cada um atribua todo
valor a si negando o outro” ( 1 ).
Poderiamos talvez resumir os termos do problema
. a dois : variedade e justiça . Na ordem capitalista em que
vivemos existe a variedade mas falta a justiça social.
Na ordem socialista que está substituindo a ordem atual,
existirá a justiça, no melhor dos casos, mas com sacri
fício da variedade. Na ordem cristã , por que nos esfor
çamos, o ideal deve ser a justiça sem o sacrifício da
variedade.
É possivel que o espetáculo do mundo moderno não
seja muito de molde a animar-nos nessa tentativa de
espiritualização da vida econômica e social que ha quatro
séculos começou a perder o senso da finalidade trans
cendental de todas as coisas humanas. Mas uma grande
esperança nos resta, mesmo no âmbito dessas coisas ape
nas humanas. E essa esperança é que a história só conhece
uma lei verdadeiramente ' irredutivel : - o imprevisto.

( 1) Encyel. “ Quadragesimo Anno” . 15 -5 -31.


126 TRISTÃO DE ATHAYDE

E por outro lado, no campo das previsões históricas possi


veis , o que vemos é que a Igreja de Cristo já viu nascer
e morrer a sociedade feudal. Já viu nascer e começa a
ver morrer a sociedade burguesa . Tudo indica , portanto,
que verá nascer como já está vendo, e verá morrer, a
sociedade proletária, como viu o início e o fim de todas
as outras anteriores.
A sociologia finalista e cristã é a própria sociologia
perene. Seus princípios são eternos e imutáveis, trans
cendendo de muito os princípios e interesses efêmeros
e temporais que organizaram e economia feudal e a
economia burguesa e começam a organizar a economia
proletária . Eis porque, muito acima das lutas entre o
capitalismo moribundo e o socialismo ambicioso, pairam
as esperanças futuras da sociologia finalista e cristã, que
é a própria sociologia perene. "
Cristo verá mais uma vez por terra o orgulho insen
sato dos anti-cristos. E a revolução espiritual cristã será
sempre nova e atual, para os homens, mesmo no dia
longínquo em que a revolução social comunista já fôr
apenas um éco remoto do passado.
Isto não é apenas o que a esperança nos promete.
É tambem o que a história nos ensina.
CAPÍTULO V

Anomalias sociais
CAPITULO V

ANOMALIAS SOCIAIS
SUMÁRIO : $ 1.° – Normalidade e anormali
dade social; § 2.° — Espécies gerais de ano
malias; § 3.0 — Anomalias periódicas: guer.
ra e revolução ; § 4 .° — Anomalias periódi
cas : crises econômicas e trabalhistas ; §. 5 .º
Anomalias constantes ; § 6 .° - Fragilidades
sociais.

8 1.° - Normalidade e anormalidade social

A Sociologia está para a Psicologia , como a Física 1


para a Química . O primeiro grupo estuda fenômenos
do espírito e o segundo fenômenos da matéria . Mas si
a Sociologia analisa a face quantitativa dos fenômenos
do espírito , a Psicologia examina a sua face qualitativa ,
do mesmo modo que a Física estuda a face quantitativa
dos fenômenos da matéria e a Química a sua face qua
litativa.
A Sociologia, portanto, é a ciência que observa a
ação do meio social sôbre as conciências individuais e o
facto social é o objeto específico da Sociologia , não como
simples facto sinter-psicológico , mas como facto novo,
130 TRISTÃO DE ATHAYDE

diferente dos fatores psicológicos que o constituem e


que permitem ao seu estudo formar uma ciência verda
carater próprio à Sociologia . E esse carater é o de

Da íntima ligação da Psicologia e da Sociologia


derivam varias consequências. Entre outras a analogia
de um duplo estado do espírito individual ou do espírito
social, a saber — o estado normal e o estado anormal.
Do mesmo modo que a Psiquiatria é a psicologia dos
espíritos anormais, a Sociatria é a Sociologia das ano
malias sociais.
Não basta estudar a sociedade em um estado teórico
de repouso , como não basta examiná -la tambem em um
Comte. Ambos exprimem o estado normal das sociedades,
o qual não esgota os aspectos que a sociedade pode
assumir. Antes pelo contrário. Da mesma forma que só
por abstração se pode conceber uma estática social ab
soluta – assim tambem só por abstração é possivel
pressupor uma absoluta normalidade social.
Toda coletividade reflete a natureza de suas partes.
E a sociedade, si bem que possua traços característicos
que não são apenas um produto da soma de suas parcelas
componentes, — não escapa à regra. A sociedade só pode
ser conhecida pelo conhecimento prévio da natureza dos
homens. E muitos dos característicos humanos se vão
encontrar de novo no corpo social.
E um dêles, um dos mais importantes, é justamente
essa imperfeição fundamental da natureza humana. O
homem nunca é perfeito. A normalidade humana é sem
pre um estado de equilibrio precário . A sombra do mal
nunca deixa de acompanhar a criatura e a sociedade. E ,
por isso mesmo, é que esta tambem desconhece, pratica
131
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA

mente, todo estado de anormalidade absoluta. Da mesma


forma que a virtude é uma defesa constante contra o
vício , e que a saude é uma reação contínua contra a
moléstia e a morte, — assim tambem a normalidade social
é uma vitória incessante sõbre as anomalias sociais. A
sociedade, como todo que é, reflete as imperfeições
essenciais dos seres humanos que a constituem . E provoca
novas anomalias pelo simples facto de possuir uma indi
vidualidade própria , distinta até certo ponto da de seus
membros. A repercussão que é o método por excelência
da vida social, não se dá apenas com a norma, com o
bem social, dá-se tambem com a irregularidade, com o
sequências assume em sociedade uma importância con
sideravelmente maior em virtude da mesma referida re
percussão. Um suicídio pode criar uma epidemia de
suicídios. A publicidade do crime cria , quasi sempre, a
proliferação do crime, pois ha um exibicionismo do mal
que é uma perversão, tanto individual como social.
As anomalias sociais constituem , portanto , pode-se
quasi dizer , uma parte importante da normalidade social.
As sociedades são mais ou menos anómalas, mais ou menos
perfeitas, mas levam sempre consigo esse estigma da
desordem , que impede o seu preciso funcionamento . Faz
se mistér assim contar com essas anomalias sociais com
tanta ou mais precaução do que contamos com as ano
malias individuais ou naturais. E o critério de julga
mento dos governos está no grau de previsão e profi
laxia dessas anomalias sociais . A previdência é a quali
dade talvez mestra dos estadistas. O verdadeiro homem
de governo é aquele que prevê, mais do que aquele que
vê. E a organização da defesa social é tão capital para
uma sociedade como a organização da defesa nacional
ou civil.
132 TRISTÃO DE ATHAYDE

§ 2.° — Espécies gerais de anomalias


Podem ser , em suma, de três espécies as anomalias
contra as quais as sociedade têm de precaver -se :
a ) anomalias físicas,
b) anomalias individuais,
c ) anomalias sociais .
a ) As anomalias físicas são aquelas que provêm
de uma desordem na natureza . São os terremotos, as
sêcas, as geadas, a periodicidade de colheitas deficientes
e fartas, enfim tudo aquilo que influe anormalmente,
como fator geográfico , e que se distingue dos fatores
geográficos normais. As anomalias naturais são essas
variações físicas inesperadas, tufões, tempestades, en
chentes , etc ., que alteram bruscamente as condições de
vida de uma região .
b ) As anomalias individuais são as moléstias, as de
ficiências mentais, os acidentes, os vícios, as degeneres
cências, todos esses fatores de desorganização social de
ordem individual ou moral. A sociedade, como vimos,
participa diretamente do caráter de seus membros e todos
os males individuais repercutem imediatamente na estru
tura social.
c) As anomalias sociais, enfim , são os fatores de
desordem do próprio corpo social, em seu funcionamento .
Para restringir a matéria , vamos aqui prescindir
das anomalias físicas e individuais, para apenas nos
ocuparmos com a terceira espécie : as anomalias pro
priamente sociais.
Em duas classes podemos dividir essas anomalias
propriamente sociais : as constantes e as periódicas.
Anomalias constantes são aquelas que ocorrem se
guidamente em todas as sociedades, como consequências
de sua natureza . Podemos incluir entre elas, os fenômenos
permanentes do pauperrismo, da degenerescência , do
crime, do alcoolismo, do jogo, da prostituição, etc.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 133

Anomalias periódicas são aquelas que se verificam


com intermitência , e entre as quais podemos incluir como
principais : a guerra, a revolução e as crises econômicas
e trabalhistas.
Essa enumeração é apenas exemplificativa e não de
sejo senão apontar aqui os marcos mais gerais do domínio
da patologia social.
Comecemos pelas anomalias periódicas.
§ . 3.° — Guerra e Revolução
A primeira é uma anomalia internacional periódica,
uma desordem que surge nas relações normais entre os
núcleos nacionais, e à qual corresponde na sociedade
um aparelhamento de resistência normal: a defesa mi
litar. É tudo o que numa nação se refere ao
Exército e à Marinha, às fronteiras, às fortalezas e por
extensão, à própria diplomacia . Clausevitz dizia que a
guerra era um prolongamento da diplomacia nos campos
de batalha. Quem encara a realidade, sem óculos côr de
rosa , sabe muito bem que, apesar de todo idealismo paci
fista contemporâneo, a frase do estrategista alemão não
perdeu ainda a sua atualidade. As guerras são como os
incêndios. Por algum tempo, depois delas, tomamos todas
as precauções para que não se reproduzam . Mas à medida
que os tempos de paz vão se sucedendo, voltam a reformar
se os seus germes, pelo relaxamento da profilaxia e pela
impossibilidade orgânica de impedir a regeneração dessses
germes de morte . Constitue a guerra uma das mais gra
ves e patentes anomalias de que sofrem todas as socie
dades humanas. A defesa nacional é portanto o específico
contra essa anomalia .
A defesa civil é a da sociedade contra as forças de
subversão interna. Pois, da mesma forma que a guerra
é uma dissociação violenta nas relações normais entre as
134 TRISTÃO DE ATHAYDE

nações, – a revolução é uma dissociação violenta no


corpo de uma nação. É a guerra interior. É a solução de
continuidade brusca que se faz no tecido nacional, como
a guerra o faz no internacional. As revoluções são fenô
menos de anormalidade social tão normais, digamos assim ,
quanto as guerras. Ha hoje uma ciência das revoluções,
uma história das revoluções, uma sociologia das revo
luções, e até cadeiras universitárias sôbre o tema (como
em Angora, na Turquia , em Moscou , na Rússia e mesmo
na Sorbonne, com a sua cadeira de História da Revolução
Francesa ). O exercício da autoridade, indispensável a -
toda ordem social, gera necessariamente o descontenta
mento . As falhas no exercício dessa autoridade agra
vam -no .
As falhas na escolha da autoridade concorrem muito
para espalhá-lo. A luta dos partidos acirra as dissociações
do povo. Essas e outras são anomalias políticas que muito
concorrem para produzir o fenômeno revolucionário. E
a elas vêm somar-se as causas sociais e sobretudo econô
micas, que vão engrossar a onda da causalidade política .
Uma revolução como a russa , que é a grande revolução de
nossos dias, tem causas internas e externas ; anomalias
militares, como a guerra, anomalias econômicas, como
a fome, anomalias políticas, como a fraqueza dos homens
da Autoridade dominante, anomalias históricas, como
seja o asio -auropeanismo russo, ou mesmo anomalias re
ligiosas, como o schisma ortodoxo, que entregou a religião
ao cesaro-papismo desde Bysancio até o Tzarismo, impe
dindo o surto cultural e social da Igreja , livre do Estado
e dos seus fins temporais.
Se a guerra, portanto, é a grande anomalia externa
periódica das nações — a revolução é a sua grande ano
malia interna. E se contra aquela é que se arma a defesa
nacional, — contra esta cumpre aparelhar a defesa civil.
O dever dos governos concientes é estabelecer a profi
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 135

laxia da revolução como organizam a profilaxia das


moléstias contagiosas. Pois a revolução é a mais grave
das anomalias interiores de uma nação. E quando triunfa
e se firma é que havia defeitos na organização anterior
que não foram atendidos a tempo. Pode a revolução ser
uma revolução má, implantar um regime que traga em
si mais germes de novas revoluções , como têm sido as
européias de ha dois ou três séculos para cá , -- mas se
triunfaram é que havia males a corrigir.
Por isso mesmo é que a profilaxia da revolução está
mais no bom governo do que na boa defesa . Se esta não
deve nunca ser descurada, só se justifica quando comple
tada, ou antes, apoiada, pelo que se pode chamar a defesa
construtiva contra a revolução.
E a grande arma construtiva contra a revolução
está , sobretudo, em impedir que à causalidade revolucio
nária política , que é inevitável,mas que por si só não chega
às grandes subversões de regimes, – se venha somar
a fôrça invencível da grande causalidade revolucionária
social.
· E a maior dessas fôrças revolucionárias sociais é a
terceira das grandes anomalias periódicas que acima
consideramos : as crises econômicas e trabalhistas.
4.° -- Crises econômicas e trabalhistas
A grande falha inicial na organização do trabalho
moderno começou no dia em que o trabalho se transfor
mou em mercadoria . E essa época foi justamente a da
revolução industrial provocada pela introdução da má
quina na economia ocidental.
A vida econômica medieval tinha o seu centro no
homem . Toda organização econômica partia dêsse fator
inicial. Daí a subordinação da economia à moral. O que
as corporações significavam , o que representa a inter
136 TRISTÃO DE ATHAYDE

venção constante das autoridades municipais e dos tri


bunais eclesiásticos na fixação do preço e dos salários,
era justamente que a vida humana, as necessidades da
família é que regulavam o valor das mercadorias e da
remuneração do trabalho. O preço devia ser justo, isto é,
não exceder uma cifra que deixasse um lucro limitado ao
vendedor de modo a não consentir a exploração do con
sumidor. O salário tambem devia ser justo, isto é, fixado
de modo a permitir a manutenção do trabalhador e de
sua família . É preciso aliás ter sempre em conta que esses
princípios do cristianismo econômico só muito imper
feitamente chegaram a dominar a Idade Média . Não se
procure nesta uma imagem ideal da sociedade humana .
Havia , apenas, teoricamente, o respeito a uma ordem
universal mais justa e à luz de cujos princípios terão
de organizar-se todas as sociedades que visarem à justiça
social, – e praticamente alguns progressos sôbre o que
hoje possuimos depois da revolução anti-cristã e anti
medieval do industrialismo capitalista.
Mas é preciso distinguir medievalismo econômico
de cristianismo econômico. Éste é a súmula de princípios
cristãos que devem reger, sempre, todas as sociedades,
qualquer que seja a sua forma de cultura. O medievalismo
foi a aplicação desses princípios a uma determinada for
ma de cultura. O medievalismo foi a sua aplicação a uma
determinada forma social, caracterizada essencialmente
pelo feudalismo, no seu momento de maior esplendor.
O que distingue, porém , essencialmente a organização
da economia medieval da organização da economia capi
talista é que, como dizia Santo Antonino de Florença —
“ a produção existe para o homem e não o homem para
alternativas. O homem era realmente a medida da pro
dução. Hoje , porém , fez-se soberana a segunda : a pro
dução é que passou a ser a medida do homem .
137
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA
de mal quadan qumáquina
: Foi a introdução e é um beque romove essa
me ppromoveu
hipertrofia da produção, que é um bem até certo ponto,
mas um grande mal quando excede limites racionais.
A máquina é o problema central do mundo econô
mico moderno e grande parte das falhas da atual orga
nização do trabalho provém dela.
Em meiados do século passado um grande escritor
inglês, um dos príncipes do humour — Samuel Butler —
escreveu uma longa sátira à máquina, que, como todo
humour, é apenas a intensificação até o absurdo de gran
des verdades elementares. Butler previa uma época em
que a humanidade punisse com pena de morte a quem
ousasse reintroduzir a máquina na sociedade. Pois a his
tória dêsse povo que vivia no ano 3 .000 mostrava que a
hipertrofia da máquina chegou a tal ponto que esta se
convertera em uma espécie de dragão mecânico que de
vora os seus servidores . À vista disso tinha havido uma
verdadeira maquinoclastia e desde então o povo voltara
à sua felicidade nativa.
Como se vê é o paradoxo de uma verdade de obser
vação banal, se bem que cada vez mais obscurecida.
Hoje em dia , a fase em que nos encontramos ainda
é a de glorificação da máquina . E a grande ideologia
moderna por excelência é a do seu culto. O traço caracte
rístico da civilização moderna, tal como a encontramos
nos Estados Unidos e na Rússia , paises em que o moderno
é a medida de toda a verdade, — é o tecnicismo titanista .
E o que isso significa é exatamente a revolução da socie
dade pela máquina, a organização da sociedade partindo
da máquina como o meio mais elevado e útil de chegar
aos dois fins imediatos — a subordinação prática da
natureza ao homem e a insubordinação teórica do homem
contra todo impecilho à sua autonomia .
138 TRISTÃO DE ATHAYDE

A máquina dominou toda a civilização capitalista e


continúa a dominar a civilização socialista , que lhe está
sucedendo.
. As falhas na organização do trabalho provêm em
grande parte, do seu emprego excessivo. A introdução
ilimitada da máquina começa por produzir uma grande
prosperidade. As maiores nações industriais foram as
dominadoras da era moderna — a Inglaterra, a Alema
nha, os Estados Unidos. E hoje a única civilização co
munista que possuimos reduziu o seu ideal social a um
“ plano quinquenal” de industrialização intensiva, que
vai representar a maior arma de miséria social no dia em
que trabalhar em plena produtividade.
Por muito tempo dominaram essas grandes nações
industriais capitalistas os mercados do mundo, abarro
tando os mercados econômicos. Enriqueceram -se com o
progresso material de todas as nações. Quando percor
remos a nossa história , vemos que antes de sermos inde
pendentes, já a Inglaterra celebrava com Portugal um
tratado de comércio, o de 1810, que vinha regular a in
trodução de mercadorias inglesas no Brasil. E o século
passado foi o século em que a indústria inglesa dominou
o Brasil. À medida que nos aproximamos do fim do século ,
vemos dois fenômenos novos surgirem perturbando esse
predomínio : a concorrência das outras duas grandes na
ções industriais — a Alemanha e os Estados Unidos —
e o desenvolvimento da indústria local. Levantam -se bar
reiras protecionistas, introduz-se a máquina, cria -se uma
prosperidade artificial baseada no liberalismo e no pro
tecionismo. Cada vez mais a indústria substitue a agri
cultura e sobretudo impede a formação da pequena
agricultura . Os latifúndios agrícolas e a grande indústria,
apoiada no liberalismo e no protecionismo, tolhem a for
mação normal da pequena propriedade rural, base de
uma economia racional e harmônica.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 139

Começa a produzir -se o fenômeno que nos acom -


panha , como um rítmo de coração, e que Marx estudou
a fundo se bem que com espírito de sistematização
exagerado - - as crises. A história da economia moderna
é uma história de crises sucessivas, de altos e baixos, de
momentos de intensa prosperidade e de intensa depressão.
Não ha uma evolução serena e estável, o que é sinal de
que não ha saude econômica, pois a ordem é o sinal da
saude, e a ordem é incompatível com essas bruscas osci
lações.
A crise é um fenômeno. inevitável no regime do
liberalismo econômico em que não se corrijam racional
mente as oscilações naturais da produção e do consumo.
Não digo que uma regulamentação perfeita possa impedir
de todo a superveniência de crises. Anomalias econômicas
haverá sempre, como sempre as haverá fisiológicas ou
intelectuais e espirituais. A sociedade, como corpo e como
espírito, vive, por sua natureza , um regime de precari
dade. Não se pretenda a impossivel perfeição na Terra.

possivel a essas anomalias, de modo a tentar impedí- las


antes que curá-las. E a prevenção contra as crises está na
organização de um regime de trabalho mais sadio e hu
mano do que o que passou a vigorar desde o início da
revolução industrial.
O fenômeno típico, como vimos, dessa cisão entre
a ordem econômica e a ordem moral, que caracterizou o
Renascimento , foi a conversão do trabalho em nterca
doria. Um e outro passaram a ser governados por leis
inflexiveis, que não dependiam da vontade dos homens
e que levariam , fatalmente, à melhor das harmonias
sociais .
e do salário justo. Preço è salário constituiram -se, no
novo regime, a consequência matemática da concorrência
140 TRISTÃO DE ATHAYDE

livre e do jogo da lei de oferta e de procura. E o trabalho,


que era e é uma parte da personalidade humana, passou
a ser uma parte da mercadoria e a seguir os destinos da
produção.
Veremos como o pauperismo ou o proletismo nasce
ram com essa conversão do trabalho em mercadoria. A
uma prosperidade momentânea e excessiva, sucediam
períodos de depressão e desemprego. As indústrias
incipientes atraiam os homens do campo. Urbanizou -se
a civilização. E a produção começou a dominar o
homem , que julgara libertar-se dos laços tradicionais.
A morte das corporações em França é um caso
típico . Foi uma das obras capitais da Revolução
Francesa individualista . Procurava libertar-se o tra
balho, libertar-se o comércio , libertar-se a economia
enfim . Tanto patrões, como empregados adquiriam uma
autonomia muito maior. O progresso material e indus
trial passou a crescer desmedidamente. Mas acaso chegou
se a uma harmonia social maior ? De forma alguma. A
cisão na sociedade foi cada vez maior. Em vez de
tentar-se uma aproximação de classes por meio de um
jogo recíproco de direitos e deveres, — chegou -se a uma
divisão da sociedade em classes cada vez mais afastadas
uma da outra - - a burguesa e a proletária, cada uma
procurando apenas o seu interesse próprio. E como a
primeira dominou a segunda todo o tempo, os dois par
tidos econômicos — o capitalismo e o socialismo – se
afrontavam cada vez mais acirrados, suscitando toda a
sorte de anomalias sociais — as guerras econômicas, as
revoluções sociais, o pauperismo proletário, e tudo o
mais que a isso acompanha.
O capitalismo empírico não conseguiu organizar ó
trabalho. E o resultado é o que nós vemos hoje – guerra
e revolução por todo o mundo e sobretudo êsse fenômeno
novo de que ninguem pode ainda prever as consequências
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 141

exatas – o despertar da Ásia pelo tecnicismo ocidental.


0 Ocidente terá materializado o Oriente, tradicional
mente metafísico e religioso. E o Oriente passará a subor
dinar a si o Ocidente, pelo predomínio . crescente das
raças prolíficas — a amarela e a negra — sôbre a este
rilidade moderna da raça branca, devastada pelo anti
concepcionismo ? O futuro o dira.
O problema da crise e do desemprego, portanto, é
certamente a mais grave das anomalias econômicas do
mundo moderno. Inúmeros serão os seus fatores, desde
os puramente espirituais — como seja a apostasia do
mundo moderno, pelo abandono crescente dos valores
sobrenaturais, cada vez mais relegados ao culto de pe
quenas elites , sem contacto com a grande vida pública
e a organização social-econômica, – até os fatores pura
mente econômicos, como seja a super-produção.
E aqui voltamos à ação da máquina. A máquina
multiplicou sobremaneira a capacidade produtiva do ho- .
mem . E modelou toda a civilização moderna, de modo
que o resultado paradoxal a que chega, quem procura
ter do homem moderno uma visão de conjunto, é que
ele é um ser que produz como uma máquina, isto é, ilimi
tadamente, e consome como um homem , isto é, limitada
mente.
Este desequilíbrio entre a produção ilimitada e o
consumo limitado é, a meu ver, uma das causas principais
do desequilíbrio no trabalho que se traduz pelas crises e
pelo desemprego.
As crises acompanharam a civilização capitalista em
todo o seu curso . O desemprego , a que Marx chamava o
exército de reserva industrial, é o fenômeno típico da
indústria moderna. Está se dando hoje exatamente o
oposto do que previa Malthus. Êste predizia o esfomea
mento da humanidade por falta de produção suficiente
para uma população multiplicada . Nós assistimos a um
142 TRISTÃO DE ATHAYDE

fenômeno semelhante, isto é, o do esfomeamento de gran


de parte da humanidade, mas em virtude da causa exa
tamente oposta — o excesso de produção em face de um
decréscimo de população. Éste último, aliás, não é geral.
É especialmente típico da raça branca e de certas nações
excessivamente civilizadas do ocidente e sobretudo das
classes burguesas e liberais que já em outras eras se
suicidaram por fartura e egoismo como as de hoje . Nela ,
porém , já começa a ser sensível. E a criar uma diminuição
na capacidade de consumo dessas populações.
Ora, o fenômeno da super-produção é geral, é mun
dial. A máquina varreu o mundo. O industrialismo se
espalhou por toda a parte. A pátria -mater das indústrias,
a Grã-Bretanha, exportou os produtos dela e as próprias
máquinas. Consequência : a América e a Ásia se tornaram
independentes e hoje, de consumidoras, passaram a pro
dutoras para seu próprio consumo e já agora para expor- .
tação. A indústria brasileira está de olhos voltados para
os mercados do Prata . Porque só lá encontrará um escoa
douro para uma produção que cresceu em desproporção
absoluta com a capacidade aquisitiva da população na
tiva e o seu número.
Temos, portanto, o problema em termos opostos ao
de Malthus — excesso de produção, decréscimo de popu
lação. Ou, para parodiar o próprio Malthus — a produ
ção crescendo em proporção geométrica e o consumo
apenas em proporção aritmética. Resultado : - crise
econômica e financeira, paralisação da indústria , desem
prego.
Nos Estados Unidos, pátria do néo- industrialismo
moderno, havia antes da crise dos fins de 1928, segundo
o governo, 2 milhões de desempregados; segundo a opo
sição , 4 milhões. Tomemos 3 milhões. Hoje depois da
crise que arruninou parte da indústria e forçou a ela e
á agricultura a solicitarem um aumento de tarifas -
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 143
143

quantos haverá ! Mais de 5 milhões, informam as esta


tísticas.
Na própria terra do capitalismo científico, do tra
balho organizado tecnicamente, da produção eficiente, do
salário alto , da prosperidade inconcebível, — 6 anos
depois das leis de restrição da imigração que limitou
uma fonte de superpopulação, — o que vemos é a popu
lação empobrecida e o pauperismo se alastrando como
moléstia tantálica , em face da indústria aniquilada ou
exhausta.
• Ha, em tudo isso, qualquer coisa de positivamente
falso. E esse artifício não será exatamente a inversão da
sentença de Santo Antonino de Florença ?
O homem hoje existe para a produção. E está sendo
vítima da sua própria subordinação à matéria .
Remédios contra a crise e o desemprego ? Imediatos ?
A intervenção do Estado. A abstenção governamental,
que o liberalismo proclama, é um desastre. A função do
governo não é simplesmente política . É tambem econô
mica, no mais alto grau. E se é nociva a supressão da
atividade privada, e do estímulo individual, como o pró
prio Stalin acaba de reconhecer, depois de vários anos de
coletivismo intensivo, – é indispensável a colaboração
íntima entre a política e a economia .
Tudo isso são paliativos, porém . Enquanto o mal
existir nas raizes, podemos tratar das folhas quanto qui
sermos que nada será feito.
: O mal da raiz é a inversão da finalidade do homem .
O homem não é um ser que tem apenas na terra o seu
destino, como pretende o ciclo de cultura ocidental desde
o Renascimento. O homem tem a sua finalidade em
Deus. Enquanto a Soberania de Deus não voltar a exercer
sôbre os homens uma ação de equilíbrio positivo, nada
se terá feito de radical. É um fato . É um fenômeno posi
144 TRISTÃO DE ATHAYDE

tivo . Nada de sentimentalismo ou ideologia . O homem


se deificou. Eis a raiz de todos os males.
Quanto à possibilidade de uma volta ao equilíbrio ,
à ordem de valores universal em que os direitos do
homem , da sociedade e de Deus, se regulem harmonio
samente, – não sei dizer quando será possivel. Estamos
em um período de trevas.
§ 5.° — Fatores constantes de anormalidade social
Estudados sumariamente, como nos permite o
âmbito dêste esboço de um tema que, como a princípio
dissemos, já hoje constitue matéria capaz de formar uma
ciência parcial da sociologia (a sociatria ) , assim como
a psiquiatria se emancipou da psicologia, – passemos
a considerar alguns dos fatores constantes de anorma
lidade social.
Como o seu próprio nome indica, e já apontamos, o
que distingue esses fatores é o seu carácter de perma
nência . O pauperismo, o alcoolismo, ou a prostituição,
devem ser combatidos mas ressurgem sempre normal
mente de modo que a organização da defesa deve cons
tituir um aparelho ainda mais permanente do que o de
preservação contra as anomalias periódicas.
Passemos os olhos por alguns dêsses fatores.
1) – O pauperismo.
Comecemos por distinguir pobreza de pauperismo.
Aquela é um fenômeno de carácter mais individual ·
que social e que assume muitas vezes a forma voluntária .
É a condição daqueles que, na sociedade, não têm o
Ssuficiente
toomida, capara
sa , romanter
upas im uma
fenômeficiência
eno mais, mfísica
ente completa
privados
O pauperismo é um fenômeno mais social que indi
vidual. É o estado daqueles que são totalmente privados
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 145
145

demeios de manutenção e que se transformam em encargo


para a sociedade.
Entre as muitas teorias explicativas do pauperismo,
podemos destacar três principais :
a ) a de Malthus, teoria da população,
b ) a de Marx, teoria do salário,
c ) a de Henry George, teoria da terra.
O primeiro via o pauperismo nascer da desproporção .
entre um excesso crescente de população e a insuficiência
dos meios de manutenção.
O segundo via o pauperismo, ou “ exército de re
serva ” como ele diz, surgir da livre concorrência e des
proteção do trabalhador em face dos proprietários
industriais. O trabalho submetido à lei da oferta e pro
cura tendia a baixar o salário a um nível que mantinha
sempre uma grande população em estado de pauperismo
crônico .
O terceiro via o pauperismo na sobrevalorização
das terras, cujo lucro ia apenas para os grandes proprie
tários, em prejuizo das populações, mantidas sempre em
dependência .
Historicamente, o fenômeno da pobreza e do paupe
rismo é de todos os tempos, e mesmo nas sociedades mais
primitivas havia certo desnivelamento de condições ma
teriais como é o caso das tribus do Alaska, por exemplo .
Modernamente , em nossa sociedade industrial, o paupe
rismo assumiu um carácter crônico desde o início da
Revolução agrária e industrial na Inglaterra, – nos
séculos XVI e XVII, provocando a urbanização forçada
de camponeses, acabando com a pequena propriedade
agrícola em grande escala e deixando sem sustento levas
inteiras de homens. Antes disso, porém , outro fenômeno
tinha iniciado a onda do pauperismo moderno. Podemos
146 TRISTÃO DE ATHAYDE

lê-lo , narrado ao vivo, no mais insuspeito dos autores,


nêsse ponto , Marx . É a descrição da expropriação que
Henrique VIII fez à Igreja e aos mosteiros, de suas
propriedades agrícolas e de suas rendas patrimoniais.
Todo o produto desses bens ia para a manutenção do
culto e dos necessitados.
Essa ruina foi tambem a das populações. E o início
do protestantismo na Inglaterra é marcado tambem pelo
do pauperismo como fenômeno social. Izabel se viu for
çada a intervir para a solução do problema, por meio
das chamadas poor-law's, que passavam para o Estado as
funções até então entregues à Igreja e que foram as
precursoras da legislação social de nossos dias.
O pauperismo desde então nunca mais deixou de
ser a primeira das chagas da civilização industrial. Du
rante todo o século XIX , ao mesmo tempo que o capita
lismo se desenvolvia brilhantemente, sendo o fator dos
grandes progressos materiais do século , — no reverso
da medalha, progredia assustadoramente o pauperismo,
que nas fímbrias dos grandes empórios industriais criava
focos tremendos de miséria e sofrimento, que era o preço
com que o capitalismo pagava o brilho da sua materiali
zação sociológica.
O desequilíbrio foi tal que, no fim do século , a co
meçar pela Alemanha em 1884, os governos capitalistas
se viram forçados a enveredar por uma política quasi
socialista, pois visava corrigir os males sociais de que
se alimentava o socialismo, no decorrer de sua formação
durante o século .
Se indagarmos quais as causas atuais do pauperismo
em nossa sociedade, veremos que se podem tambem re
duzir as mesmas três que explicam as várias anomalias
sociais :
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 147
147

a ) físicas ou naturais,
b ) individuais,
c ) sociais.
Quais sejam as causas físicas do pauperismo, já
examinamos.
As causas individuais são as moléstias, as epidemias,
os acidentes sérios, a intemperança, a debilidade mental,
a prodigalidade e extravagância , a degenerescência , o
crime.
Quanto às causas sociais : - um regime social im
perfeito, o salário baixo, o desemprego, más finanças
guerras, revoluções, etc .
Tudo isso reduz-se porém a causas e efeitos
concomitantes .
Historicamente o mesmo liberalismo econômico que
criou o pauperismo moderno ou proletismo, – criou a
degenerescência na sequência seguinte .
2) – A degenerescência .
O capitalismo criou historicamente o pauperismo
(como fenômeno social) ou proletismo; este o trabalho
de mulheres e crianças ; e este, por sua vez, a degene
rescência .
Nestes últimos decênios a defesa social contra a
degenerescência , isto é, a higiene (pois, a cada anomalia
social corresponde uma defesa social, teórica ou prática,
em potência ou em ato ) tem trabalhado amplamente para
corrigir a degenerescência , como a legislação social (ou
as revoluções) têm procurado corrigir o pauperismo. Mas
o facto é que o regime industrial empírico, fruto do
liberalismo econômico, leva a uma degenerescência da
raça . Ha livros , como os de Anthony Ludovici, cheios de
148 TŘISTÃO DE ATHAYDE

cifras com a documentação precisa dêsse fenômeno. Ha,


na Alemanha, teoristas que fizeram dessa degenerescência
gradativa do homem a base de toda uma teoria
do involucionismo. Isso, porém , são exageros doutrinários.
A degenerescência social pode ser completa e irreme
diável. Assim o atestam as nossas populações selvícolas,
que, segundo o testemunho dos observadores mais rigo
rosos, vão decaindo sempre, degenerando (cf. as observa
ções de Schonburgh e Koch -Grunberg , no alto Rio Branco
e Orenoco, com meio século de intervalo ). O mesmo se
dá com os pigmeus do coração da África , etc. As nacio
nalidades tambem são sujeitas a êsses fenômenos. Toda
a etnologia e daí toda a história moderna — a partir de
Frobenius e Ratzel até Spengler e Dempf — são fundadas
sôbre a formação e degenerescência das culturas. Spen
gler chega a um determinismo inflexivel nesse sentido.
O regime industrial empírico é um fator de degene
rescência . O capitalismo instintivo, levando ao conceito
de lucro ilimitado como base da vida econômica , é outro
grande fator de degenerescência . Por isso mesmo evolveu
no sentido racionalista, procurando um equilíbrio com
pensador. É o tecnicismo moderno, em que a higiene e
as leis sociais vêm corrigir os efeitos degenerativos que
a revolução industrial tinha trazido para a raça. Tratar
se -ia de estudar agora quais os efeitos degenerativos que
essa nova formação econômica ( tecnicismo capitalista ou
comunista, pouco importa ), vem infiltrar, não mais na
raça mas na inteligência . Se a máquina tende a ser
huntanizada, nessa nova fase de seu predomínio — pela
proteção do operário contra ela , etc. — a inteligência
tende a ser deshumanizada, pela decadência da espiri
tualidade pura como fator de civilização e o predomínio
de um titanismo materialista que mutila e desequilibra
o ser humano, feito para a liberdade e o Espírito e que
trái assim a sua finalidade própria .
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 149

A degenerescência física e moral costuma ser um


fenômeno típico das civilizações em decadência . Nossa
civilização naturalista, que se fundou sôbre a ciência
materializada , está talvez entrando em sua fase final.
E um fenômeno como esse da progressiva desnatalização
da raça brança talvez venha a ser o sintoma de uma
ascensão dos negros ou dos amarelos ao predomínio no
palco do mundo. Ha sinais disso. Entretanto, o que nos
importa é reconhecer aqui a degenerescência , como sendo
uma anomalia social considerável, em nossa civilização, e
que exige toda a atenção . Pois ela é, de fato, o fator ou
pelo menos um dos fatores primordiais da criminalidade.
3) - O crime. .
E aí tocamos outra das anomalias sociais cons
tantes.
O crime é um atentado individual conciente contra
os meios e a finalidade social. É uma desordem social. O
estado normal do homem , como da sociedade, é a ordem .
Toda anomalia social é uma desordem . O crime é uma
falta que causa um prejuizo por lezar um direto rigoroso .
O crime, portanto, se distingue de outras anomalias so
ciais por ser um ato moral produzido por uma vontade
livre e esclarecida.
O crime é portanto uma tentativa de destruição da
sociedade, pois interrompe a continuidade social que é a
condição de funcionamento da ordem .
Da mesma forma que à Autoridade social compete a
defesa contra as outras anomalias sociais, tambem lhe
compete, garantir a ordem social contra os ataques do
crime. Não ha, porém , no direito de punir, no direito
penal, o carácter de colisão entre a sociedade e o culpado .
Ha uma cooperação entre eles. A sociedade pune par
tindo, não do direito de repelir, mas do dever de bene
150 TRISTÃO DE ATHAYDE

ficiar. Ésse dever primordial ela o executa , perante a


ordem individual (a do criminoso ), a ordem social (a
da vitima e do bem comum ) e a ordem universal (a de
Deus) .
E cumpre-o , colaborando com o criminoso nesse sen
tido, em que lhe suprime um bem inferior para lhe dar
um bem superior. Priva- o dos bens sensiveis — especial
mente a liberdade — concedendo -lhe um bem superior —
a honestidade. Daí o caráter regenerativo que deve ter
toda penalidade.
O castigo é portanto uma tríplice reparação da ordem
moral e social violada pelo criminoso.
Quanto às causas da criminalidade podem ser tam
bem de ordem individual, social ou universal. E longe
nos levaria o estudo de todas elas. Aqui desejamos acen
tuar apenas a causalidade social do crime. A desordem
social é causada pelo crime. Ora, éste por sua vez pode
ser causado pela desordem social. E a degenerescência e
o pauperismo, o alcoollsmo ou a falta de trabalho, são
causas sociais que levam ao crime. O pauperismo, sobre
tudo, é a grande causa social da criminalidade. Daí a
necessidade de uma economia sadia como base de uma
profilaxia da criminalidade. Toda desordem social pode
levar ao crime, pois a desordem tende a gerar a desordem ,
como a ordem tende a gerar a ordem .
Tratemos, enfim , para abreviar, de um dos fatores
mais constantes da criminalidade e que é tambem um
elemento constante de anormalidade social.

4 ) – O alcoolismo.
O alcoolismo é uma intemperança como a glutoneria .
Abuso da bebida, abuso da comida . Mais grave talvez a
primeira forma porque mais profundas as suas conse
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 151

quências sociais imediatas e mais fácil o seu desenvol


vimento .
A glutoneria não tem o poder de irradiação que tem
o alcoolismo. Concentra mais os seus efeitos no próprio
· indivíduo e leva -o à apatia e à inércia .
O alcoolismo, ao contrário , estende os seus efeitos
e excita o indivíduo levando-o à perturbação da vontade
e à irresponsabilidade de seus atos. Daí a temibilidade
social maior do alcoólico, do que do glutão. Éste é um
valor social que degenera, aquele um fator de insociabi
lidade. Moralmente são ambos violadores da lei de tem
perança no mesmo grau . Alcoolismo e glutoneria não se
distinguem na ordem moral e apenas na ordem social.
O alcoolismo se desenvolve muitas vezes na base
de fatores naturais que o explicam . No caso da América
do Norte ou da Rússia é o frio o fator natural que leva
à intoxicação alcoólica. No caso do Brasil já é outro o
fator – é a deficiência de alimentação e sobretudo a
maleita. Tanto uma como outra são anomalias higiênicas
da nossa população e da nossa ordem social ainda tão
imperfeita. A consequência de ambas é reduzir a potên
cia calorífica do sangue, a atividade dos tecidos, criando
uma deficiência orgânica no metabolismo, que leva ao
frio interior, digamos assim . O frio meteorógico no caso
dos paises do norte ; o frio fisiológico no caso dos paises
atrasados, como o nosso, eis a causa natural mais fre
quente do alcoolismo.
No Brasil, portanto vemos o alcoolismo como o pro
duto de outra anomalia social e sobretudo higiênica — a
alimentação deficiente das populações e, ainda, o paupe
contra os mosquitos.
Os remédios contra o alcoolismo são econômicos e
morais. Uma vida econômica sadia é a supressão das
152 , TRISTÃO DE ATHAYDE

anomalias sociais que levam ao alcoolismo, como levam


ao crime. Uma vida moral sadia é a base de uma vida
temperante e portanto à fôrça de reação contra o al
coolismo que é uma intemperança e portanto uma viola
ção da ordem moral. Nêsse ponto é que se coloca o
delicado problema do proibicionismo. Não nos interessa
diretamente ; teoricamente, porém , nos interessa muito
por vermos em ação a usurpação crescente que o Estado
moderno vai fazendo de funções morais que lhe não
compete exercer diretamente . É uma consequência da
separação entre a Igreja e o Estado e da negação, que se
impõe à Igreja, de sua intervenção nos negócios públicos.
vamente na repressão pela força e que está provando, nos
Estados Unidos, ser inteiramente ineficaz ou mesmo con
traproducente , pela proliferação dos derivados do álcool.
Cabe, entretanto, ao Estado zelar pelos efeitos per
niciosos do alcoolismo, dificultar a sua difusão, proteger
o bem comum contra essa anomalia social — mas sem
passar da regulamentação justa a uma supressão -anti
natural.
Todas essas anomalias são condições constantes e
periódicas da vida social de qualquer civilização. Alguns
dêsses males adquiren , em nossos dias, proporções tão
desmedidas, -- como o problema dos desempregados que
já hoje somam cerca de quinze milhões de homens ragarnos
ttragaraosa
si agudo!s –sécuque
vários paises do aocidente los qameaçam
e
u ca g a m
nossa civilização. Ha quatro séculos que os erros filosć
ficos e sociais mais agudos se vêm acumulando. E a
situação em que nos encontramos, como acima ficou dito,
é uma situação de verdadeiras trevas, de que só nos pode
salvar uma intensa fé nas palavras eternas de Cristo,
conservadas e perpetuadas por sua Igreja , que é a única
fonte de esperanças e o único esteio de permanência , no
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 153

meio dos desenganos e da instabilidade dos dias que es


tamos vivendo .
Não devemos, entretanto, cruzar os braços, visto que
sabemos qual o mal profundo de nossa civilização. Ao
contrário . Temos de empregar todos os meios para que no
seio desta civilização viciada e desviada dos rumos da
normalidade, - possamos reintegrar lentamente a bộa
estrada ou pelo menos atenuar os perigos dos maus ca
minhos. E o dever, portanto , é defender a sociedade
contra todas as anomalias sociais. E tambem contra as
fragilidades sociais . Pois estas últimas são uma nova
face das anomalias sociais.

§ 6 .° — Fragilidades sociais
Os menores e os desvalidos não são propriamente
anomalias sociais. São fragilidades sociais. São elementos
fracos pelos quais a sociedade deve zelar.
Mas aqui se levanta logo um problema sério — o dos
limites da ação da sociedade e do seu representante
oficial — o Estado.
É preciso que tenhamos resolvido previamente os
problemas dos primeiros princípios sociais para darmos
solução ao do Estado, em sua ação de protetor dos meno
res e desvalidos.
Numa concepção naturalista da sociedade o indiví
duo existe para a coletividade, de modo que o Estado tem
a última palavra em problemas de educação, inválidos,
eugenia , etc., que afetam propriamente os direitos indi
viduais mais sérios.
Numa concepção finalista da sociedade, se o indi
víduo existe para a sociedade esta existe para a pessoa .
Isto é, ha direitos individuais inacessiveis à ação positiva,
do Estado. Perante a conciência individual o Estado não
154 TRISTÃO DE ATHAYDE
pode agir. O máximo que ele pode é impedir a ação
individual nociva à coletividade e desrespeitadora da lei
social. Na ordem moral, porém , o Estado não pode in
tervir . É a função do poder espiritual, quer esteja
organizado por uma instituição sobrenatural universal
e histórica como a Igreja , ou por uma religião natural
organizada em castas, etc., como nas civilizações do
Oriente, — quer entregue ao arbítrio individual como se
dá nas sociedades que rejeitam a Autoridade de uma
Instituição eclesiástica comum .
No Estado naturalista de nossos dias ha uma ten
dência a essa usurpação, quando é preciso que a ação
privada e a ação publica se conjuguem . A iniciativa pri
vada deve coordenar-se de modo a merecer o auxílio
público. Ainda é o melhor regime numa terra de buro
cracia inerte como a nossa . O governo subvenciona , os
particulares organizam . Mas é preciso que isso se faça
concientemente .
Ha uma grande tendência à inércia e à dispersão
de energias entre nós. O essencial é subordinar todas essas
obras a uma disciplina racional que congregue esforços
no sentido de amparar essas duas fragilidades sociais que
0 pauperismo, as crises, o desemprego, o alcoolismo,
todas as anomalias sociais trazem consigo - a infância
abandonada e a invalidez .
Esse problema da assistência social e da assistência
pedagógica ou de educação pública é fundamental na
organização do mundo econômico e social de nossos dias,
para atender às anomalias e fragilidades da vida social.
Por alguns séculos, como vimos, a tendência ao indi
vidualismo dominou. Deante da insegurança e da onar
quia a que a situação geral nos ia levando, a tendência
se modificou inteiramente. E hoje nota-se por toda a
parte uma volta ao organicismo medieval, sem que os
homens tenham a coragem de o confessar.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 155

A orientação, porém , é esta . E o seu primeiro passo


é justamente o da assistência social. Não a devemos com
preender apenas no sentido estrito do termo. A assis
tência social Aéutoa intervenção
n
focial eopública da coletividade por inter
médio da Autoridade cial e 1,884no7 sentido de criar
um equilibrio social melhor e combater as anomalias
sociais. A assistência social se traduz primordialmente
pela legislação social. Data de 1884, na Alemanha, o mo
vimento moderno no sentido de uma legislação efetiva.
Desde então se têm multiplicado os códigos de trabalho.
E a Sociedade das Nações, pelo Bureau Internacional,
visa exatamente desenvolver essa legislação protetora do
trabalho. Pela convenção de Washington se chegou a
alguns pontos essenciais, como seja o dia de oito horas,
a proteção à parturiente, aos menores, aos invalidos, a
aposentação, a assistência médica e higiênica, a fiscali
zação do trabalho, etc. Tudo isso constitue um movimento
altamente benéfico e necessário . E que tende a acentuar
se cada vez mais. As trade-unions, na Inglaterra , os sin
dicatos, em França, as corporações , na Itália , são o índice
da tendência organizadora do trabalho moderno , mesmo
nas nações sob o regime capitalista . A necessidade de uma
legislação protetora do trabalho é uma volta às concepções
orgânicas do trabalho e uma atenuação dos males que
o liberalismo econômico tinha desenvolvido. Ha paises,
como a Bélgica, em que êsse sistema funciona com a
máxima eficiência. E sendo a nação mais povoada do
mundo é também aquela em que ha menos perturbações
sociais.
Quanto ao problema da educação é de tal vulto que
só podemos aqui mencioná -lo , como fator fundamental
de normalidade social.
A educação compete à Família , à Igreja e ao Estado.
É da cooperação das três grandes fôrças coordenadoras
da sociedade, que podemos esperar a solução do problema
156 TRISTÃO DE ATHAYDE

educativo . Educar é preparar o homem para a vida, para


a vida integral, na ordem individual, na ordem social,
e na ordem universal. Por isso mesmo interessa a todos
os grandes elementos de vida completa com que o homem
deve contar e que constituem a plenitude de sua irra
diação pessoal: os três grandes círculos de expansão de
sua personalidade.
A anomalia social que a educação combate não é só
o analfabetismo. É a ignorância moral tambem , como a
ignorância física, que leva à degenerescência.
Portanto, a educação não é apenas a campanha con
tra o analfabetismo. É um tríplice combate à ignorância ,
na ordem física , intelectual e moral. Na ordem física a
educação visa -sanear o corpo — pela educação física, e
habilitá -lo pela educação técnica. Na ordem intelectual
tem em vista ensinar os fundamentos primários, secundá
rios e superiores das ciências necessárias a uma cultura .
geral de todos os conhecimentos e especializada de alguns
dêles.
Finalmente, a educação moral visa integrar o homem
na sua finalidade suprema e fundamental, sem sacri
fício de sua várias finalidades imediatas fornecendo-lhe
a disciplina, a regra de ação social, em conjunto com os
seus semelhantes. A subordinação racional à lei civil,
moral e religiosa, — eis o fim de toda educação moral
que completa a física e a intelectual.
Vê-se daí como é fundamental o assunto e como de
seu descuramento pela redução aos elementos intelectuais
ou físico-intelectuais, apenas, podem derivar os maiores
males sociais individuais. A educação abrange o homem
todo. É o único meio de agir eficazmente sôbre toda a
sociedade. E corrigir a proliferação das anomalias sociais.
CAPÍTULO VI

Ordem social
CAPITULO VI

ORDEM SOCIAL
SUMÁRIO : § 1.° — Tendências sociais moder
nas; § 2.° — Capitalismo e comunismo; $ 3.°
- Legitimidade e limites da intervenção da
Igreja ; § 4º – Distributismo. Solução ra
cional, nacional e cristã.

Estudado o problema dos princípios básicos da vida


social e da ciência da sociedade ; o do progresso ; o dos
orgãos da sociedade em sua estrutura geral; o dos ele
mentos essenciais dessa estrutura e do seu funcionamento
normal e anormal, — passemos agora, para terminar esta
pequena preparação elementar a uma filosofia socioló
gica, ao estudo da ordem social, em suas raizes econômicas
e metafísicas.

$ 1.° — Tendências sociais modernas

Ao encararmos o mundo moderno em sua assom


brosa complexidade, sem nenhum esquema preconcebido,
- o que logo se nos depara é a falta completa de unifor
midade aparente em sua linha de evolução. O século nos
legara , como norma do progresso humano, uma linha de
160 TRISTÃO DE ATHAYDE .

aspecto irregular mas de ascenção crescente. Hoje em


dia, como mostramos no capítulo segundo, vemos florescer
na Alemanha toda uma escola de sociólogos e filósofos,
Lessing, Klages, Dacqué, etc., que ao evolucionismo ascen
dente do século passado opõem , quasi que sistematica
mente, um involucionismo descendente . No tempo da
sociologia de Spencer e da etnologia de Morgan ou Bebel,
- o espetáculo da humanidade era o da passagem do
animal ao homem e do homem primitivo, bronco e semi
animalizado, ao homem progressivamente superior. Sua
civilização, segundo o esquema do progresso do positi
vismo comtista, passava necessariamente da idade pri
mária e efêmera da teologia à idade superior e definitiva
da ciência positiva ou então, segundo o esquema mar
xista , do feudalismo ao capitalismo, do capitalismo indus
trial ao capitalismo bancário ou imperialismo, dêste ao
socialismo democrático e do socialismo democrático ao
socialismo proletário ou comunismo, ponto de parada final
e necessário da humanidade.
Concebia-se o progresso, portanto, como uma supe
ração constante de épocas.
O involucionismo contemporâneo faz exatamente o
oposto e o esquema de evolução da humanidade, dêsses
filósofos alemães atualissimos que citei, é um esquema de
decadência constante do homem ao longo da história . No
campo da etnologia é que é patente a oposição franca de
tendências, do século XX em face do século XIX . Basta
tomar de dois representantes da ciência etnológica va
quela época e hoje, Morgan e Frobenius, por exemplo ,
para vermos como a concepção da evolução histórica é
completamente outra hoje, em alguns dos seus represen
tantes . Spencer, por exemplo, via , como aliás até hoje
vêem todos os seus adversários socialistas, a civilização
industrial como sendo o termo último do progresso. Fro
benius ao contrário, que é hoje em dia talvez a maior
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA - 161

autoridade no estudo dos povos primitivos, especialmente


africanos, saudou o advento da guerra européia em 1914,
como a única salvação possivel para uma civilização que
se vinha sistematicamente afastando da natureza e de
caindo por excesso de artificialização. Keiserling anteve
na América do Sul, o advento de uma nova forma de ci
vilização técnica norte-americana , e na qual os valores
espirituais voltarão a ter a mais completa ascêndência .
Outro fenômeno, dos nossos dias, o culto do nudismo na
Alemanha, por exemplo , se é por um lado a demonstração
prática do néo-paganismo de uma sociedade descristia
nizada, é, por outro lado, expressão da mesma filosofia
involucionista, que vê no afastamento moderno da natu
reza um sintoma grave da decadência contemporânea e
procura reagir caindo no excesso oposto. :
Nem por isso, porém , cessa o culto do progresso .
E se nos Estados Unidos, pátria clássica dêsse culto ha
um século, vemos hoje um certo arrefecimento na sua
concepção como elevação contínua, - por outro
lado vemos surgir na Rússia uma verdadeira religião do
progresso, que faz do sovietismo, nësse como em outros
pontos, um yankismo extremado, de bárbaros, que des
conhecem a saciedade, a ironia e o senso das coisas pre
cários ou das coisas invisiveis.
Entre essas duas linhas opostas, uma otimista , outra
pessimista, vemos a concepção cética e fatalista dos spen
glerianos, segundo a qual as culturas se sucedem ou
coexistem em forma circular e não linear, nascendo, vi
vendo e morrendo a geito de seres vivos.
Em tudo isso, o que se patenteia é a falta absoluta
de harmonia na sociedade, e de uniformidade no modo
de encarar a realidade social. Ouvimos como nunca falar
em classes que sobem e classes que descem , vemos regimes
que se quebram e revoluções que triunfam , notamos em
tudo o movimento ascendente e descendente, mas nunca
162 TRISTÃO DE ATHAYDE

a marcha equilibrada e plana, sôbre bases sólidas e para


finalidades conhecidas. O mundo está numa fase de dese
quilíbrio congênito, à procura de uma finalidade que só
não quer encontrar onde ela de fato existe, e cujas ten
dências se defrontam abruptamente para logo em seguida
se confundirem . E os traços de decadência e de rejuve
nescimento quasi que se sobrepõem , como vimos, por
exemplo , na Alemanha, que passa do espírito de derro
tismo spengleriano ao espírito de racialismo hitlerista,
sem transição de espécie alguma. Ha, por toda a parte,
uma louca efervescência da matéria, e das conquistas
materiais da vida. Mas por toda a parte tambem veri
ficamos pequenos núcleos de reação espiritualista intensa,
que concorrem para mostrar ao vivo o signo de contra
dição sob o qual vivemos atualmente.
• Êsse sinal de contradição é que nos faz colocar em
polos, aparentemente opostos, os dois grandes movimen
tos econômicos básicos da sociedade contemporânea - 0
capitalismo e o comunismo.
§ 2.° – Capitalismo e Comunismo
Parecem ser êstes, à primeira vista , como afirmam
os marxistas (1), os dois polos do mundo moderno. New
York e Moscou são as Meccas do pensamento contempo
râneo. Não é preciso ir buscar muito longe os exemplos
concretos dessa nova sedução do século XX . Aqui no
Brasil, por exemplo , se corrermos os olhos pela mocidade,
o que vemos é a atração pelos Estados Unidos ou pela
Rússia , quando ha 30 anos o que viamos era a imitação
( 1) “ Dois sistemas antagonistas se defrontam no quadro da
economia mundial, outrora único : capitalismo e socialismo. . . Em
face da coalição mundial do capital, precária e corroida anterior
mente, mas armada até os dentes, levanta -se a coalição mundial
única do trabalho ” . ( Programa da Internacional comunista , 1928,
art. cit. II, 4 ).
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 163

da Inglaterra, na vida política, e da França, na vida


literária .
Hoje, nenhuma dessas duas faces da vida interessa
muito à nossa mocidade. 0. que interessa sobretudo é a
vida econômica . A filosofia do economismo vai conquis
tando as gerações materializadas dos , nossos dias. E a
solução do problema econômico , — tanto para os parti
dários do economismo capitalista, como para os adeptos
do economismo comunista , – é o centro de toda a vida
moderna, pois tudo mais não passa para eles de conse
quência direta ou indireta do estado econômico da socie
dade.
O capitalismo e o comunismo, portanto, constituem
as duas tendências sociais contrárias e extremadas da
sociedade contemporânea, tal como a vemos no meio da
complexidade infinita dos fenômenos sociais modernos.
E ambos são produtos práticos da mesma sociologia natu
ralista que dominou o século passado. São ramos do
mesmo tronco, ou antes, etapas sucessivas da mesma ru
tura inicial com a finalidade transcendental da vida.
Vimos que a economia medieval, informada em parte
pelos princípios da sociologia cristã , subordinava a vida
econômica à vida moral e na prática, segundo o tes
temunho insuspeito de Karl Marx, tinha chegado a uma
libertação progressiva das classes trabalhadoras, pelo de
senvolvimento da propriedade agrícola disseminada.
Com a Revolução Industrial inglesa , que logo se
espalhou pelo continente, deslocando o eixo econômico da
agricultura para a indústria , voltou a dominar o conceito
romano de propriedade em oposição ao conceito cristão.
O predomínio crescente do direito romano, na Idade
Média, foi particularmente sensível nessa substituição do
conceito de propriedade, que passou a ser um direito
absoluto e individual, em lugar de direito relativo
e social que era.
164 TRISTÃO DE ATHAYDE

A propriedade, segundo o direito cristão, era


um direito relativo. Ao homem não cabia de forma al
guma o “ jus utendi et abutendi” , que aliás já em Roma
não recebia adesão de todos os juristas, mas veio a consti
tuir o conceito básico da propriedade do liberalismo econô
mico. Tanto é certo que o paganismo moderno, em sua
desespiritualização do mundo, vai muito mais longe do
que o paganismo antigo, que era profundamente pene
trado do sentimento da sacralidade de todas as coisas
humanas.
O conceito de propriedade, segundo o direito cristão,
era o de um usufruto dos bens. Só ha no mundo um pro
prietário absoluto — Deus. Nossa propriedade não é mais
do que uma administração dos bens terrenos para os fins
determinados por Deus. Logo, não ha direitos da pro
priedade contra os direitos da justiça distributiva . E os
teólogos distinguem nitidamente entre posse e uso, mos
trando que, se o uso da propriedade é individual, a posse
é social. Logo, o direito de propriedade além de relativo
. é social. Existe para o bem geral. O que equivale a dizer
que não ha direito de propriedade contra o bem comum ,
que é a medida dos bens próprios. Ora,nós já vimos como
essa deslocação do bem comum para o bem próprio , como
medida do bem coletivo, foi o grande desvio inicial da
economia moderna. E dêle ia nascer o capitalismo, isto
é, o predomínio dos direitos do capital sôbre os direitos
do trabalho.
Não se fez esperar, porém , a reação contra êsse dese
quilíbrio . Os direitos do trabalho foram imediatamente
reivindicados, a princípio como reação contra as máqui
nas que vinham arruinar o trabalho agrícola, a economia
doméstica individual, e em seguida como reação contra
todo o capital e os seus detentores e defensores. O socia
lismo nascia logo como a sombra do capitalismo ou antes,
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 165
como o filho que tudo fará por suceder ao pai, o que está
começando a fazer hoje em dia .
Tanto esse capitalismo inicial, como esse socialismo
nascente , que nós vemos a princípio reunidos por vezes
em uma só pessoa , como foi por exemplo o caso de Saint
Simon , provinham , portanto , da rutura que a economia
moderna fizera entre a atividade econômica e a ativi
dade moral. Esse é o primeiro passo e o mais importante
para se compreender todo o carácter da economia e
mesmo da civilização moderna em conjunto. A vida eco
nômica reivindicava para si uma autonomia absoluta . Era
uma das várias dissociações que essa aurora do mundo
novo presenciava e cujo resultado ia ser o estado de dis
seminação de idéias em que hoje nos encontramos, e que
nos leva ao extremo oposto de disciplinas inexoráveis e
coletivas que repudiam toda a liberdade individual como
perigosa para o bem social. As dissociações se sucediam
nësse período do Renascimento em deante . Eram os reis
que decretavam o absoluto dos seus direitos regalistas, con
tra a intromissão do poder espiritual. Eram os juristas que
estatuiam a existência de um direito desligado da moral,
ou antes, fundado apenas na razão humana e não nas
regras eternas e divinas de justiça. Eram os homens de
ciência que proclamavam a independência absoluta do
mundo da matéria em face do mundo do espírito, invo
cando, portanto, a autonomia absoluta das ciências na
turais . Eram , enfim , os economistas recusando subordi
nação aos moralistas e reivindicando a soberania sompleta
da ciência econômica e das atividades sociais. A socie
dade, que à luz da sociologia finalista é apenas um meio
para que o homem possa atingir a sua finalidade pró
pria , – à luz da sociologia anti-finalista que então
começou a se formar, passava a ser um fim em si, para
o qual tendia a atividade humana . Foi êsse o princípio
básico da reação socialista, contra o liberalismo econô
166 TRISTÃO DE ATHAYD
E
mico, que fazia do interesse individual a regra de toda
a vida econômica e do indivíduo o próprio fim da ativi
dade humana.
O capitalismo e o socialismo nasceram do mesmo
estado de espírito de autonomia econômica è da mesma
concepção anti-transcendental e puramente naturalista
da vida .
O carater, porém , que assumiram ambos, no início
de sua formação, não é propriamente o mesmo que hoje
lhes reconhecemos.
Ao socialismo dêsse início do século XIX , foi dado
o nome de “ socialismo utópico”. Era o socialismo de
Proudhon ou de Fourier (quaisquer que fossem as gran
des divergências entre eles), de Saint-Simon ou de seus
discípulos, ainda penetrado de um vago espiritualismo
cristão ou pseudo -cristão e reagindo contra a economia
liberal mais em nome do sentimento que da razão .
O capitalismo, por sua vez , — expressão econômica
do primado do indivíduo sôbre a sociedade quando o
socialismo era o primado da sociedade sôbre o indivíduo
— êsse capitalismo nascia anarquicamente, sem doutrina
certa, baseado apenas no êxito formidável que a intro
dução das máquinas mecânicas, em grande escala , tinha
trazido ao desenvolvimento econômico do Ocidente, e
principalmente da Inglaterra . A essa forma inicial do
capitalismo é que podemos dar o nome de capitalismo
empírico ou instintivo, governado apenas pelo instinto
do lucro e pelo desejo de elevação social.
A filosofia naturalista da vida vinha, portanto , co
locar a economia sôbre a base única do interesse. Vinha
dividir a sociedade em duas classes antagônicas e cada vez
mais afastadas entre si, pois a matéria é um princípio de
divisão e essa filosofia naturalista não podia confiar no
espírito, no qual não acreditava, e julgava encontrar na
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 167

matéria, na vida material, na própria vida econômica de


desfrutamento dos bens concretos, o laço de união entre
os homens. A filosofia naturalista da vida vinha excluir
os valores espirituais do plano da vida econômica. E
tanto o socialismo utópico como o capitalismo instintivo
seguiram uma marcha de desespiritualização crescente,
que traía a origem materialista de ambos. A história
econômica do século XIX é a luta nas trevas de dois ·
irmãos que se ignoram .
Fez-se, dessa maneira, ao longo do século XIX , e
concomitante à luta concreta entre o capitalismo domi
nante e otimista, que apontava para a riqueza crescente
das grandes nações industriais, e o socialismo dominado
e pessimista, que apontava para a miséria crescente das
populações proletárias — fez-se , ao par dessa oposição
concreta , umaoposição doutrinária.
Tanto o capitalismo como o socialismo procuraram
aprofundar as raizes de sua própria existência e ultra
passar a superfície de puro interesse financeiro (para o
capitalismo) ou de pura sentimentalidade justiceira
(para o socialismo). Ambos elaboraram a sua justificação
teórica e histórica, a sua razão de ser no plano das
idéias e no plano dos fatos. E se quisessemos mencionar
dois nomes que simbolizam a nova fase de cada um dos
dois grandes movimentos contraditórios, citariamos Karl
Marx, primeiro sistematizador do socialismo científico ,
e Vilfredo Pareto, primeiro sistematizador do capitalismo
científico e anti-plutocrático, e que já foi chamado o
Marx da burguesia.
Em ambos, os dois movimentos econômicos encon
traram sistematizadores geniais, que nos deram as razões
científicas e históricas para cada uma das suas concepções
econômicas e sociais. E o mais expressivo é que ambos se
confundem na mesma concepção naturalista da vida.
Tanto é certo que as raizes filosóficas lhes são idênticas.
168 TRISTÃO DE ATHAYDE

No campo da evolução concreta, os fatos tambem se en


carregam de fazer orientar cada uma dessas correntes
econômicas, — que alguns chamaram a filosofia econô
mica burguesa em face da filosofia econômica proletária
– no sentido da sua racionalização corrente. .
Hoje em dia, quando procuramos concretizar as
nações que representam bem vivamente aqueles dois mo
vimentos sociais que encheram o século XIX , e continuam
a centralizar todas as atenções no século XX – o capita
lismo e o socialismo — os dois grupos nacionais que
temos forçosamente de invocar são — os Estados Unidos
e a Rússia. Aqueles representam uma civilização baseada
no capitalismo, e esta uma outra baseada no socialismo,
São as duas expressões típicas do curso que tomaram os
dois grandes movimentos econômico- sociais e que hoje
se realizam nessas duas civilizações que se defrontam .
Que se defrontam , sim , pois, apesar de tudo, as
diferenciações persistem e não é possivel equiparar sem
mais nem menos os dois polos da economia moderna .
Basta apontar para estes pontos capitais :
a ) a liberdade religiosa,
b ) o direito de propriedade.
São dois pontos, entre outros, que distinguem essas
civilizações extremadas do momento que vivemos, e que
aliás representam apenas êsses extremos sem excluirem ,
de modo algum , os outros tipos de civilização que se des
dobram entre eles e no meio dos quais se distingue por
sua relativa originalidade e adoção de certos princípios
econômicos cristãos : 0 FACISMO.
A liberdade religiosa , símbolo e complemento de
outras liberdades, ainda distingue radicalmente a civili
zação do capitalismo científico norte-americano da civi
lização do socialismo científico russo.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 169

O Estado norte-americano conserva-se fiel a um acon


fessionalismo rigoroso, que não exclue a sua reverência
pelo menos oficial aos valores religiosos tradicionais, e
sobretudo, o seu pleno respeito à propaganda e à edu
cação religiosa. Se a civilização norte-americana, conta
minada pelo espírito anti-espiritual do capitalismo,
apresenta sistomas de economismo materialista, — não é
menos certo que vários movimentos de reação espiritual
e intelectual nela se fazem , entre os quais é indipensável
citar o movimento modernissimo de humanismo, de
espíritos como Irving Babitt, como Paul Elmer More e
outros, que indicam a persistência de um equilíbrio
cultural profundo e o respeito à liberdade de expansão
intelectual, bem como à liberdade de expansão espiritual
e religiosa, que não encontramos absolutamente no polo
oposto do economismo moderno – a Rússia . Nesta , o
conceito de neutralidade moral, que vimos ser um dos
tabús do liberalismo, não existe. O Estado impõe um
conceito de finalidade coletiva e nësse caminho não recua
deante dos atentados mais clamorosos contra as conciên
cias individuais, como se dá com ' a política de descristia
nização das massas levadas por Stalin, com tanta
ferocidade sistemática quanto a industrialização intensiva
da economia russa e a socialização completa das suas ati
vidades, de que, hoje em dia , aliás, já parece estar desi
ludido, como Lenin em 1920.
O socialismo científico impõe uma finalidade cole
tiva, que o capitalismo científico não procura realizar,
respeitando em tese a liberdade de expansão individual.
Quanto ao segundo ponto de diferenciação, o da
propriedade individual, ha tambem uma atitude nitida
mente distinta em ambas as civilizações e a propriedade
é legalmente respeitada, no capitalismo científico norte
americano e progressivamente proibida no socialismo
científico russo.
170 TRISTÃO DE ATHAYDE

Por maiores que sejam na prática as semelhanças


dos dois conceitos, levam , entretanto , a duas civilizações
de carater acentuadamente diverso.
A persistência , portanto, de valores fundamentais
de liberdade espiritual e de liberdade econômica distin
guem ainda bem vivamente essas faces do grande movi
mento econômico moderno.
Mas é inegável reconhecer que ha no fundo de ambos
três laços comuns, ao menos, um que vem do passado,
outro do presente, outro do futuro. Esses três pontos de
contacto profundo entre as duas grandes faces opostas
da ordem social moderna, parecem -me ser os seguintes :
a ) naturalismo de princípios,
b ) tecnicalismo de meios,
c) coletivismo de fins.
O naturalismo de princípios, já vimos, é comum a
todos dois. Isolados um do outro os dois elementos hu
manos da vida econômica - o capital e o trabalho — e
seccionados do laço moral comum que os unia, o resultado
foi uma dissociação completa entre ambos, com a hiper
trofia do capital, no capitalismo, e com a hipertrofia do
trabalho, no trabalhismo socialista.
A divisão, porém , se fez em virtude da filosofia
naturalista a que ambos devem a sua origem e de que
até hoje conservam um carater comum indelevel. Ambos
repudiam qualquer finalidade transcendental. Ambos re
cusam a incorporação do poder espiritual na vida pú
blica, relegando-o à vida particular ou perseguindo-o
deliberadamente. Ambos procuram criar uma civilização
baseada exclusivamente em fatores econômicos e em va
lores materiais ou de cultura meramente temporal.
O naturalismo de princípios das duas grandes civi
lizações, aparentemente opostas dos nossos dias, cria-lhes
uma base comum que detalhes de orientação não conse
guem abalar.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 171

O tecnicalismo de meios é o segundo grande ponto


de contacto entre as duas formas de civilizaçção moderna,
por excelência. .
A técnica é o cume de ambas. O conceito de civili
zação, para ambas, é o de um domínio cada vez mais
intenso da natureza para o bem estar material da vida
humana E . para isso, o nervo de toda a ação social é a
eficiência técnica. Como a expressão concreta dêsse tecni
calismo generalizado é — a máquina .
Já disse anteriormente como o espírito da máquina
me parece ser o verdadeiro animador de qualquer uma
dessas duas formas de economismo integral. A introdução
da máquina na vida individual e coletiva é o meio genera
lizado de ação civilizadora, para ambas essas formas
sociais, e a eficiência no manejo das máquinas, isto é, o
tecnicalismo, é o método por excelência do seu progresso
social.
Vemos aí como se desdobra logicamente até suas
últimas consequências o processo de — deshumanização
da economia – que fomos encontrar bem na fonte de
toda a economia moderna.
O tecnicalismo de meios, portanto, é o segundo gran
de elo que prende o capitalismo ao socialismo científico .
. Finalmente, o coletivismo de fins completa a relação
íntima em que se encontram as duas grandes economias
secularizadas dos nossos dias.
. É exato que nesse sentido, sofreu o capitalismo uma
revolução completa ao passar de empírico a científico.
Aquele processo de “ acumulação” e de “ concentração”,
que Marx já tinha observado nas origens do capitalismo,
veio realmente aglomerando cada vez mais a propriedade
e criando os grandes monopólios contemporâneos. Outro
processo, porém , que Marx não observou foi o da neces
sidade de uma justificação senão moral, ao menos política
172 TRISTÃO DE ATHAYDE

e humanitária , que se processou concomitante ao da acu


mulação e que veio a ser chamado de racionalização.
Verificou -se que o simples instinto de lucro, o mero inte
resse individual não chegava ao resultado de harmonia
social que prometera . E assim foi o liberalismo econô
mico cedendo a um racionalisnto econômico, que é hoje
o que distingue o capitalismo científico . O nervo da eco
nomia deixou de ser o lucro , como era no tempo do libe
ralismo econômico, para ser o serviço , como se diz hoje
em dia . Era o interesse social, prevalecendo sôbre
o interesse individual e um socialismo disfarçado
vinha lentamente tomando o posto do individualismo
fracassado. É a situação atual dos Estados Unidos
e que faz da coletividade e não do indivíduo 0
fim da vida social. O capitalismo,. que nascera de
uma hipertrofia do indivíduo, daquela “ autonomia
moral do indivíduo” que desde Kant dominou a
filosofia e a sociedade do Ocidente — passou a sacrificar
o ideal individualista a um ideal societista e o bem social
passou de novo a prevalecer sôbre o bem individual.
Era a negação de todo o espírito do liberalismo econô
mico, que dera início ao desenvolvimento livre e exage
rado do capital e o seu predomínio sobre o trabalho. E
Ford vem espantar todo o mundo capitalista com o que
até ontem parecia um paradoxo inofensivo, ou uma
heresia , dizendo que é preciso procurar o mínimo lucro
possivel e obter o menor número de dias de trabalho, com
o máximo de salário, para se chegar à prosperidade
econômica e à segurança social.
O primado da sociedade sôbre o indivíduo, pregado
pelo socialismo, vinha a ser aceito pelo capitalismo cien
tífico. E o coletivismo de fins vinha somar-se ao tecnica
lismo de meios e ao naturalismo de princípios — para
criar uma rede de laços íntimos entre as duas faces
opostas do mesmo economismo integral dos nossos dias.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 173 .

Não se pode, portanto, dizer que as duas concepções


sociais que hoje se defrontam sejam o capitalismo e o
comunismo. São tantos os laços que os ligam , ao menos
no espírito das duas economias em que se baseiam e se
concentram as duas civilizações, — que não podemos
opô- los mas completá -los, assegurando , sem medo de errar,
que o comunismo não é mais do que um capitalismo
integral.
o comunismo é o capitalismo do proletariado como o ·
capitalismo foi o comunismo da burguesia. A diferença
é muito maior entre classes que entre regimes.
O comunismo não vem negar os fundamentos do
capitalismo e sim apenas os seus métodos. Não vem
repudiar a obra de mecanização da vida moderna iniciada
pelo capitalismo e sim completá -la . Não vem negar que
a economia seja a base principal de todas as civilizações ,
mas ao contrário , sustentar que a economia é a base
única de todas as civilizações . Não vem reagir contra
aquele fenômeno de acumulação e concentração de ca
pitais que Karl Marx via como fonte de todo o capita
lismo moderno, mas ao contrário, apressar e universalizar
a obra de concentração, acumulando todo o capital exis
tente e concentrando toda a vida econômica nas mãos
do Estado. Não vem desconsiderar as atividades comer
ciais e industriais, mas ao contrário, declarar que são
elas as únicas produtivas, as únicas que devem constituir
a nova aristocracią do trabalho que virá substituir a aris
tocracia do sangue, do tempo feudal e a aristocracia do
dinheiro , do tempo burguês.
O comunismo é, portanto , um desdobramento lógico
do capitalismo. Uma vez aceitos os princípios básicos que
justifiquem a filosofia do capitalismo, nada mais, senão
o interesse, nos impede de justificar o comunismo. Pois
êste não é uma aurora , como pretende ser e sim um
meio dia . O sol do economismo integral se levantou com
174 TRISTÃO DE ATHAYDE

o liberalismo econômico . Foi então que a atividade eco


nômica se desligou de sua subordinação à atividade
moral, constituindo um campo autônomo em nossa vida
humana. O capitalismo, que formou a sociedade em que
vivemos, não exclusivamente, pois a sociedade nunca é
filha de um fator único , mas ao menos predominante, –
êsse capitalismo representou o primado relativo das fun
ções econômicas na vida de uma nação. Os problemas
de comércio, de indústria e de finanças passaram a ser
os fundamentais. As carreiras econômicas adquiriramo
lugar de prestígio que outrora gozavam as carreiras po
líticas. E ser industrial, numa sociedade capitalista como
a nossa , depois da República, — veio a ser tão honroso
como era ser político na sociedade pre-capitalista do
Império .
Pois bem , se o capitalismo representou o primado
relativo do economismo na vida pública e particular,
como vemos ao vivo na sociedade capitalista , tipo que é
a norte-americana , onde o espírito de iniciativa econô
mica é que dá direito à consideração pública , — o comu
nismo vem representar o primado absoluto do econo
mismo. Só as classes econômicas têm direito a governar,
e as militares , políticas e culturais só valem na medida
em que se subordinam àquelas.
O erro comunista, portanto, não é mais do que a
dedução lógica e necessária do erro capitalista. E ambos
se confundem na mesma linha de evolução do economismo
puro em sua marcha inexorável para a subordinação de
todos os valores do espírito aos elementos da matéria .
Como reagir ? Como ?
Hoje em dia , temos sempre o maior receio em res
ponder com precisão a uma pergunta qualquer . Pois as
respostas possiveis são tantas, e nós vivemos tanto no
mundo dos possiveis, que a solução em geral adotada é
deixar as perguntas sem resposta, pois se o homem algum
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 175

a.Nates de suintomas mais ceticismosmo,afirma


ipi,taemlisttempos
cdia passados, abusou do dogmatismo afirma
tivo, hoje em dia só sabe abusar do ceticismo dubitativo.
É esse mesmo um dos sintomas mais alarmantes de deca
dência , ou antes de suicídio , da civilização burguesa e
capitalista. Não ter mais a coragem de afirmar o prin
cípio de um suicídio , coletivo. E a nossa civilização que
se distrái em levantar perguntas a cada canto da reali
dade, sorri com superioridade para aqueles que têm
ainda a ingenuidade de responder.
E o resultado é que os novos bárbaros que se jogam
sem respeito algum contra o nosso excesso de civilização,
- chegam com as bocas recheiadas de afirmações as mais
categóricas, que brutalizam inexoravelmente o nosso
medo de ferir , com uma flor siquer, a cutis delicadissima
dos nossos ceticismos desiludidos.
O primeiro passo , portanto , para reagir contra a
destruição completa dos valores espirituais que repre
sentamos, o primeiro passo para defendermos o que ainda
resta de nobre e de elevado em nossa civilização peri
clitante — é ter a coragem de afrontar o sorriso dos
céticos, o desdem dos estoicos incrédulos, o comodismo
dos beneficiários do statu quo, e a angústia hesitante
dos inquietos.
Responderei, portanto, à pergunta acima formulada.
Como reagir contra essa onda de economismo avassa
lador que ha três séculos vem dominando as sociedades
ocidentais e de que o comunismo não é mais do que o
esplendor meridiano de um sol impiedoso ?
Só vejo uma resposta : a restauração integral dos
direitos do espírito . Ubi Spiritus, ibi libertas, dizia uma
sentença teológica . E quando falo em direitos do espí
rito , não me refiro apenas ao nosso espírito, às nossas
mentes humanas, cuja corrupção subjetivista foi o início
da decadência ocidental. Quero referir -me ao Espírito
em si, cuja realidade precisamos voltar a respeitar e
176
176 TRISTÃO DE ATHAYDE

a ter em conta, a cada momento de nossa vida , como a


cada momento contamos com a realidade das coisas tan
gíveis. Precisamos crer na existência real do espírito do
mesmo modo, com a mesma certeza com que cremos na
existência real da matéria. Eis o início da volta ao equi
librio e ao bom senso. E eis o que justifica a intervenção
da Igreja na solução do problema social moderno.
§ 3.° – Legitimidade e limites da intervenção
da Igreja
Estou firmemente convencido, mesmo como puro ob
servador imparcial dos fenômenos sociais modernos, –
que tudo depende da concepção geral que temos da vida,
da sua origem e do seu destino. E hoje em dia , mais do
que nunca, eu vejo o mundo dividir-se em dois grandes
campos : 0 daqueles que acreditam na existência real do
espírito e o dos que só crêem na existência real da ma
téria. Tudo volta a girar em torno do problema de Deus.
E a política anti-teista dos soviets é de um rigor lógico
que castiga a timidez das nossas conciências hesitantes.
Só a Igreja Católica representa, . em nossa 'civi
lização, o esfôrço incessante e sistemático de afirmar em
todas as coisas, das mais transcendentes às mais vulgares,
o primado constante do Espírito. Trata-se de um fato
de observação e não de um argumento apologético. Os
seus inimigos atribuirão esse fato às piores intenções, à
hipocrisia mais negra . Uma coisa , porém , não podem
negar se forem sinceros : a sua existência. A Igreja re
presenta, no mundo moderno, a afirmação até monotona
se quiserem , mas indiscutível, de que só o Espírito, só
a subordinação da ordem da natureza à ordem da graça,
pode resolver os problemas da matéria , as questões do
mundo social, as perplexidades concretas, econômicas,
financeiras, demográficas em que nos debatemos.
A Igreja é por essência a sobrenaturalizadora. Ela
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 177

vem a cada momento avisar aos homens de que ha um


outro mundo, de que a nossa vida é apenas a face baixa
da vida, de que a nossa alma é imortal, de que Deus
existe, como pessoa, no sentido mais puramente meta
físico do termo, mas sempre como Deus Vivo e não como
simples Alma do Mundo, como querem os panteistas, ou
como Categoria Ideal, como querem os céticos, — e final
mente de que Cristo é Deus e a Igreja é o prolongamento
de Cristo. A Igreja representa o sobrenatural. É o que
ela afirma de si. E é o que nós, católicos, acreditamos que
seja. Mas aqui, repito , falo apenas como observador, de
fora, como homem de ciência social, se quiserem , em
face de um fato e nada mais . E nestas condições é que
vejo a Igreja intervir na sociedade e a sociologia ter de
levá -la em conta, quer queira, quer não. A sociologia
finalista é justamente a. filosofia social que leva em
conta substancialmente todos êsses postulados sobrenatu
ralistas, que a moral, a filosofia e a teologia provam a
posteriori e que a sociologia recebe para com êles inter
pretar os fatos sociais e encaminhar os processos sociais .
Essa intervenção da Igreja , porém , é por natureza
linritada . Já tive ocasião de dizer anteriormente que a
sociologia cristã, em matéria política , é tão anti-ateista
como anti-teocrática. Nem Deus excluido da vida social,
nem Deus confundido com a autoridade social. É preciso
não confundir as causas segundas com a Causa Pri
meira, e sobretudo, não desatender à ação livre e cons
tante dessas causas segundas. “ Dai a Cesar o que é de
Cesar e a Deus o que é de Deus” , é a sentença de Cristo
que a sociologia cristã coloca na base de toda a ciência
política .
A intervenção da Igreja , portanto, é legítima no
problema social, que é eminentemente um problema mo
ral, pois está nêle envolvido o próprio destino do homem ,
no que tem de mais precioso o seu corpo e a sua alma.
178 TRISTÃO DE ATHAYDE

Mas é uma intervenção limitada , como vimos anterior


mente ao mostrar que a autonomia dos grupos secundá
rios, na sociedade, isto é , a família , o sindicato, o Estado,
a Sociedade das Nações, era tão fundamental para a so
ciologia finalista, quanto a autonomia das causas secun
dárias é para a filosofia finalista. Sociologia e filosofia
continuam sempre a denunciar os laços íntimos que as
ligam entre si.
A Igreja , portanto , intervém na ordem social como
elemento de sobrenaturalização, como advertência espi
ritualizadora. E se a sociologia da Igreja é uma
sociologia finalista, é porque esta coloca na base
das suas construções filosóficas a finalidade de todas
as substâncias e muito especialmente de toda a vida
humana, individual e social. O império dos fins é
reintegrado, pela filosofia social finalista como sendo a
própria natureza de todas as substâncias vivas. Nós
não consideramos o mundo como um jogo cego de ele
mentos, que formam por acaso a harmonia maravilhosa ,
se bem que imperfeita , dos seres visiveis. E assim tambem
não vemos a sociedade como um encontro ocasional de
seres vivos, que não sabem de onde vêm nem se preocu
pam para onde vão. Nós observamos o homem como um
viajante que acordasse em meio a uma viajem de trem .
E o seu primeiro cuidado, assim julgamos, deve ser in
dagar de que estação o trem partiu e para que destino
o trem vai. Tudo o que esse homem fizer, no seu vagon
de viagem , vai depender da resposta que se der à sua
indagação. Todas as resoluções práticas que tomar vão
ser função do conhecimento teórico que tiver do percurso
do trem que o conduz.
O homem na sociedade é como esse homem do trem .
Êle acorda de súbito em meio da viagem . Não sabe,
sózinho, dizer de onde veio nem para onde vai. Se a
conselho dos agnósticos não quiser indagar, será levado ,
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 179

ida,passará
vnão pade de deser uuma assi ia quisera
talvez, para bem longe de vonde
ma ppassividade ir, ou pelo menos
inerte, indigna da sua
qualidade de ser livre. Se quiser, porém , governar a sua
vida, precisa começar por saber de onde partiu o trem
e para onde se dirige. Só então poderá dizer se lhe convém
ficar ou descer na próxima estação.
E para este fim , não lhe basta a sua observação
individual, como lhe aconselhariam a fazer os materia
listas e racionalistas. Precisa recorrer a outro viajante
mais informado, ou , melhor ainda, ao chefe do trem .
É o que a filosofia sã aconselha, completando a razão pela
revelação, iluminando a inteligência das observações do
viajante, com a sua fé nas informações que o chefe do
trem lhe ministrar sôbre o seu destino.
A sociologia finalista, comométodo, não afirma mais
do que isso, o que vemos ser o próprio bom senso. É a
sociologia do bom senso , que se funda na filosofia do
senso comum e na economia do bem comum .
A intervenção da Igreja, na vida social, não invoca
outros princípios. Ela não quer o encargo das coisas
temporais senão para lhes apontar o seu destino intempo
ral. E isso não é um cuidado supérfluo, como possa parecer
aos que se contentam com o império das causas e das
coisas tangíveis . Ela não quer para si nenhum privilégio
no manejo dêsses sêres que o tempo respeita. Ela consi
dera os grupos sociais, biológicos ou econômicos, como
autônomos e o Estado político como o manipulador auto
rizado dêsses grupos secundários ou primordiais . Ela se
reserva apenas o direito de cantar a cada minuto , aos
viajantes extremunhados do meio da viagem , qual a es
tação de onde veio , o vagon que os leva e qual a estação
a que se dirige o comboio que os conduz. Nada mais .
E por isso mesmo, não procuremos na Igreja uma
filosofia exclusivamente católica nem uma sociologia ex
clusivamente católica. E num plano ainda mais concreto,
180 TRISTÃO DE ATHAYDE

não indaguemos qual o regime político que a Igreja


defende, nem qual o regime social que ela propugna. Ela
não é monarquista nem democrática por natureza, como
não é liberal ou socialista, capitalista ou comunista. Tudo
isso é ação das causas segundas, em que a liberdade
humana e as circunstâncias do meio e do momento têm
de ser rigorosamente respeitadas, em tudo o que não
afetar os direitos da Causa Primeira. A ordem social
pode ser obtida por vários modos, da mesma forma que
na ordem sobrenatural, como dizia o próprio Cristo, -
“ ha muitas moradas no coração de Meu Pai”.
. A Igreja sobrenaturaliza todos os regimes políticos
ou sociais . Ela condena apenas aqueles que negam a
essência de sua doutrina, isto é, a realidade substancial
de Deus, o destino sobrenatural do homem , a lei moral
absoluta que governa toda a vida social humana, em
suma, o direito primordial do Divino na manipulação
dos bens humanos. Essa é a tarefa da Igreja, esses os
seus limites de interferência na vida das sociedades.
O que não impede, que nós, como membros que somos
de Cristo, tenhamos o dever constante de vigilar sôbre
êste mundo do Anti-Cristo em que vivemos, afim de
denunciar tudo aquilo que nos leva à negação daquelas
verdades fundamentais.
E é, nesse sentido, que devemos encarar o capita
lismo e o comunismo, isto é, as duas faces opostas da
mesma negação do sobrenatural, como sendo um erro
comum e único que vai levando a sociedade humana à
ruina do que julgamos intangível na ordem integral das
coisas.
E é ainda nësse sentido que podemos afirmar não
serem esses dois movimentos econômicos modernos os
verdadeiros símbolos da contradição dos espíritos em
nossos dias. Êles têm , entre si, tanto de comum que as
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 181

suas dissidências desaparecem como manifestações apenas


secundárias.
Os verdadeiros campos de oposição, em nossos dias,
são divididos, não por um traço de demarcação econômica
e sim por uma linha de divisão religiosa . Não é o fator
político que separa rigorosamente os homens de hoje,
pois as monarquias se governam por ministros socialistas,
ado
e nos paisesm escandinavos
como se ilvê
eni. . estu reacionários,
Est
e as repúblicas se
spoj desministros
socorrem o os que em Por
. ccomo
tugal estão restaurando o Estado lusitano da ruina a que
o democratismo o levou . E na Itália ainda é um regime
filho remoto do estatismo absolutista de Machiavel,
que teve a genialidade política , (ao menos por algum
tempo, pois hoje parece querer trair a sua finalidade)
de reintegrar a Igreja em seus direitos sociais, realizando,
por sua vez , a obra econômica com que sonhavam os
socialistas com o espírito ou mesmo a letra das leis pre
paradas pelo partido católico.
Se na ordem política, os regimes se confundem , o
mesmo ocorre, como vimos, na ordem econômica ,em
que o capitalismo científico norte-americano, inglês ou
alemão, pratica medidas de puro socialismo de Estado,
negando a propriedade individual, e o socialismo mexi
cano distribue pelos camponeses a propriedade de suas
terras, defendendo a propriedade individual !
Na ordem econômica, portanto, os regimes tambem
se confundem .
É na ordem espiritual que os campos realmente se
dividem . E à medida que a luta se trava, no terreno da
mais concreta das ciências exatas, a fisiologia , entre
mecanicistas e vitalistas — o dissídio se alastra em todas
as direções , filosóficas ou sociais, estéticas ou pedagó
gicas. Tudo volta a girar em torno dos problemas funda
mentais, em torno daquelas Madres misteriosas que
Goethe colocava no centro do Universo. E a grande cisão
182 TRISTÃO DE ATHAYDE

contemporânea é realmente entre aqueles que aceitam


Deus como medida do homem , e aqueles que colocam o
Homem como medida de Deus. Eis , quem sabe, a fórmula
do grande dissídio que nos separa em todos os conheci
mentos e em todas as ações humanas. No campo das ciên
cias sociais, e da ordem social concreta , que é o que aqui
nos interessa, a linha de demarcação é nítida entre os
naturalistas e os sobrenaturalistas, entre os que reduzem
o problema social a um mero problema econômico (sejam
capitalistas, sejam socialistas) e os que nêle vêem tanto
um problema econômico imediato como um problema
teológico primordial.
E é nesse sentido que eu quisera ainda referir-me
para terminar, a uma solução econômica para o problema
social moderno, que não é uma solução economista, como
são o capitalismo ou o comunismo.
§ 4.° - Distributismo. Solução racional,
nacional e cristã

Fôra minha intenção, ao iniciar estes estudos, desen


volver mais detalhadamente a solução social distributista ,
como alternativa para escaparmos aos erros iguais e
contrários do capitalismo e do socialismo, que hoje em dia
absorvem todas as atenções do mundo.
No correr da exposição , entretanto, julguei mais
acertado mostrar o problema social e a ciência social em
suas raizes filosóficas, pois tudo depende da posição que
tomarmos em face dessas raizes filosóficas. Queiramos
ou não, como já dizia Aristóteles, tudo acaba em meta
física !
O distributismo, disse eu, é uma solução econômica
mas não economista do problema social. Pois o essencial
não é apresentar uma solução exterior e sim interior do
problema. O essencial é mudar o nosso estado de espírito
moderno em face do problema. Todos nós, católicos ou
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 183

não católicos, fomos naturalmente penetrados pelo am -,


biente de economismo em que sempre vivemos, fosse o
economismo capitalista da burguesia hoje moribunda,
fosse o economismo socialista do proletariado hoje ascen
dente.
O que a sociologia finalista e o que a doutrina social
cristã verdadeira almejam e devem almejar, é reagir
categoricamente contra êsse espírito dominante de eco
nomismo, seja capitalista, seja comunista, que ha três
séculos corrompe a nossa civilização.
O distributismo na sua base filosófica e psicológica
não é mais do que uma solução para o problema social,
partindo da existência de valores morais e humanos que
prevalecem sôbre os valores puramente econômicos. Ao
passo que o capitalismo e o socialismo consideram o ho
mem como um ser dominado apenas pelos seus interesses
materiais, - homo aeconomicus em toda a sua pureza
artificial, — o distributismo considera -o como um ser
composto , para o qual os interesses materiais e morais se
compenetram , se distribuem , dominam alternada ou con
juntamente.
Essa a concepção filosófica e psicológica essencial
que separa o distributismo das duas grandes soluções
economistas para o problema da sociedade.
E quanto aos fatores propriamente econômicos, o que
distingue nitidamente a solução distributista é que se
funda na disseminação intensiva da pequena proprie
dade, quer industrial, quer agrícola e comercial. Tanto
o capitalismo como o comunismo se fundam na concen
tração da propriedade. Naquele, a concentração em mãos
da plutocracia ; neste a concentração nas mãos do Estado
proletário . O distributismo, ao contrário , baseia -se na
disseminação da propriedade.
O capitalismo aboliu praticamente a propriedade,
pois o que a nossa própria sociedade brasileira nos mos
184 TRISTÃO DE ATHAYDE

tra, sendo embora uma sociedade de capitalismo empí


rico, é o espetáculo de maiorias absolutas de não-proprie
tários em face de uma minoria insignificante de proprie
tários. Para um regime que se alicerça doutrinariamente
na propriedade, como pretende fundar-se o capitalismo,
não pode haver melhor confissão do seu completo fra
casso.
O socialismo, por seu lado, aboliu doutrinariamente
a propriedade, e vai passando, legalmente , ao regime da
nacionalização integral dos bancos, das indústrias e do
comércio .
Pois bem , o distributismo o que quer é restaurar
a propriedade, não como direito individual, no sentido
jurídico romano, mas como função social, no sentido ju
rídico cristão .
Essa é a base econômica do distributismo, que re
presenta uma revolução completa , em suas consequências,
tanto em face do capitalismo como na do socialismo.
Não quero entrar mais avante na consideração con
creta do problema distributista. Considero, entretanto ,
a solução distributista, - inteligentemente realizada,
como sendo a que mais atende ao tríplice desideratum
de ser uma solução racional, nacional e cristã.
Racional, porque reage ao mesmo tempo contra a
anarquia do capitalismo empírico e contra a disciplina
inhumana do capitalismo científico ou do socialismo pro
letário , atendendo à natureza humana, antes de tudo, e
ao seu destino, repeitando o instinto de propriedade, que
não é mais do que uma extensão do senso da personali
dade, sinal básico do ser humano.
Nacional, por ser uma solução que respeita os ele
mentos de nossa tradição brasileira , especialmente nas
zonas rurais do interior, em que o espírito da pequena
propriedade está perfeitamente radicado, por natureza ,
nas populações tão adversas à exploração capitalista
quanto à militarização comunista, e ainda por já existir ,
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 185

especialmente nos Estados do Sul, toda uma organização


distributista espontânea que poderá ser a semente da
futura organisação brasileira.
Cristã , finalmente, porque respeita na economia
aquilo que tanto o capitalismo como o comunismo despre
zam — a família e a personalidade. O distributismo faz
do homem a medida da vida econômica , ao passo que o
capitalismo empírico encontra essa medida no lucro, o
capitalismo científico na produção e o socialismo pro
letário na massa . Todos três desconhecem o valor pri
mordial do homem , que a sociologia cristã coloca no
centro de todas as suas preocupações e de que o distri
butismo faz a medida da organização econômica dos
povos.
Ocupando-me aqui com o problema da ordem social,
em função apenas da filosofia social, julgo que são su
ficientes essas notas para se verem as razões principais
que militam em favor de uma solução anti-capitalista e
anti-socialista para o problema social moderno. E a so
lução distributista , combinada com o grupalismo a que
nos referimos anteriormente, é uma das que melhor
possam atender às exigências de uma sociologia sã , que
respeita a integridade da vida humana, individual e
social.
O essencial, porém , para a solução econômica e social,
de nossos dias, para o maior problema do momento trá
gico que vivemos, é saber remontar o curso dos erros
consentidos, nêsses últimos séculos de desvio naturalista
e que nos levaram inexoravelmente ao erro capitalista
que gera necessariamente o erro comunista .
Contra essa engrenagem fatídica que nos vai tri
turando, só ha um remédio possivel :
A VOLTA A DEUS
Não ha outro. Não ha dois. Ha esse e apenas esse,
que é a maior revolução a contrariar o curso da nossa
desespiritualização progressiva .
186 TRISTÃO DE ATHAYDE

Precisamos refazer o caminho já feito . Precisamos


colocar de novo o problema econômico no complexo da
realidade social e a realidade social no complexo da
verdade integral, natural e sobrenatural. O erro inicial
foi a cisão que ha três séculos se processou entre o
mundo natural e o mundo sobrenatural. O erro foi dar
à vida humana, individual e social, uma finalidade pura
mente temporal. O erro foi fazer do homem o fim do
homem , da sociedade, o fim da sociedade. E com isso
cometer qualquer coisa que é mais do que uma heresia ,
um absurdo : a eliminação de Deus no manejo das coisas
do homem . Mais do que erro, mais do que uma blasfemia ,
mais do que um suicídio – foi isso uma tolice.
E enquanto essa falha contra a inteligência não fôr
integralmente reparada, é inútil procurarmos um pouco
de equilíbrio sobre a face da terra. Nenhum processo
prático , econômico, político ou social será inútil, uma vez
que leve ainda remotamente a essa reparação . Desde os
atos mais concretos da vida quotidiana, às especulações
mais abstratas do pensamento filosófico, tudo em nós
deve tender a ésse ideal preciso e nítido e que é a chave
de todas as soluções .
O problema dos princípios sociais, o do progresso
social, o da estrutura social, o dos elementos dessa estru
tura .e finalmente o da ordem na sociedade, tudo depende
dessa restauração da finalidade transcendental da vida
humana, que deve governar os menores atos concretos
da economia ou da política, da sociologia prática ou
doutrinária.
Precisamos buscar, na vida individual de cada um de
nós, a consideração do problema espiritual, do problema
da realidade substancial de Deus, do problema do pri
mado do espírito , como sendo o problema dos problemas.
Precisamos buscar, na vida doméstica, a sacramenta
lização da família e a espiritualidade da educação.
PREPARAÇÃO À SOCIOLOGIA 187

Precisamos buscar, na vida profissional, a subordi


nação da economia à moral, e a cooperação íntima das
classes entre si, sob a égide do Estado.
Precisamos buscar, na vida cívica, o predomínio po
lítico dos grupos, e a reassociação dos três poderes básicos
dissociados : o político, o econômico e o religioso.
Precisamos buscar, na vida internacional, a paz uni
versal sob a égide do Príncipe da Paz, isto é, do próprio
Cristo , filho de Deus.
Precisamos buscar, enfim , na vida sobrenatural (que
é a própria vida natural, em seu estado de graça), pre
cisamos buscar a Deus, através do Cristo e de sua Igreja ,
mediadores necessários do homem em sua ascensão à
finalidade última de seu destino.
Eis o que nos ensina, em suma, uma sã sociologia fina
lista , que é por isso mesmo a mais realista das ciências
e das filosofias sociais.
O dilema é único e inexorável:
Ou queremos ser governados pela lei do amor, da
variedade e da justiça social verdadeira entre os homens,
e nos entregamos à soberania absoluta de Deus.
Ou desdenhamos do invisível, negamos o primado do
espírito, reduzimos a vida a uma luta implacável, e
aceitamos inexoravelmente a passagem lógica do capita
lismo ao comunismo, isto é, ao materialismo integral,
entregando-nos em definitivo à soberania absoluta da
Fôrça .
Soberania de Deus ou soberania da Força.
Eis o dilema trágico que se apresenta aos homens
desorientados de nossos dias.
INDICE DOS NOMES CITADOS
Α. Cristo , 56, 106, 116, 126 ,
Antonino de Florença, Sto ., 152, 177, 180, 187.
120, 163 e 143. Clausevitz, 133.
Aristoteles, 7 e 182 Comte, Augusto , 7, 9, 24, 28,
29, 50, 51, 52, 53, 54, 69,
в 75, 77, 117, e 130.
Babitt, Irving, 169. Copernico , 14.
Bazard , 76 . Condorcet, 49, 50 e 54.
Benda, Julien , 56 e 57. Cortés, Donoso , 81.
Berdjajew , Nikolaus, 41. D
Bergson , 57.
Berl, Emmanuel, 56 e 57 . Dacqué Edagard, 54 e 160.
Bismarck, 89 e 94. Darwin , 54 e 85.
Bossuet, 47 e 48. Delos, J . T., 42, 44 e 45.
Broglie, A . de, 12. Dempf, Aloys, 148. .
Brunhes, Jean, 73. Descartes , 107 e 108.
Buckle, 54. Dilthey, 28.
Butler Samuel, 137.
Durkheim , 16 e 75.
E
Case, C. M ., 38
Cavour, 88. Elisabeth, 146
Chesterton , 57. Engels, 89
190 INDICE DE NOMES CITADOS

Klages, Ludwig , 54 e 160.


Koch -Grunberg , 148.
Fichte , 50. Krutch , J. Wood , 58.
Fourier, 166.
Franck , Waldo, 58 .
Ford, 172. . L
Freud , 20. Le Play, F ., 69.
Frobenius, 148 e 160 Leclerc, A . Jacques, 39 e 60.
G Lecky, 54.
Lenin , 169.
Gallileu, 14. Lessing, 54, 55, 57 e 160.
George, Henry, 145 . Lewis, Sinclair , 53.
Giddings, 60 Locke, 50,
Goethe, 181. Ludovici, Anthony, 147.
Η M

Haeckel, 20. Machiavel, 181.


Howel 50 51 52 52 : 54 . 99 Malthus, 141, 142 e 145 .
Hemelt, Theodor M ., 30. Maritain , Jacques, 8, 27, 28,
Henrique VIII, 145 . 43, 57, 60, 61, 77 e 78 .
Herder , 54 . Marx, Karl, 50, 51, 52, 53,
Hobbes, 50 . 76, 89, 114, 115 , 139, 141,
Hobhouse, Leonard T., 38. 145 , 163, 167, 171, 173 .
Hume, 50. Menck en, H . L ., 58.
Montesquieu, 100.
J Morand, Paul, 53.
More, Paul Elmer, 58 e 169.
Journet, Charles, 43. Morgan, 160.
Muntsch, Albert, 30.
K
N
Kant, 11, 50 e 172.
Kautsky, 144. Napoleão, 94 .
Keiserling, 161. Nietzsche, 54.
INDICE DE NOMES CITADOS 191

O . . 51, 52, 53, 54, 60, 77, 117


e 160
Orel, Anton , 118. Spengler , 0 . 41, 53 e 148.
P Stalin , 143 e 169.
Pareto , Vilfredo, 167.
Pio XI, Santo Padre, 124 e
125 . Thomaz, Santo, 62.
Platão, 7. Thornton , 114.
Protágoras, 108. Tolstoy, 54
Proudhon , 166. Toniolo, Giuseppe 42, 119 e
120 .
R . Trotzki, 77
Ratzel, 148. Turgot, 47, 48, 49, 50, e 56.
Renan , 56 .
Valesin , Auguste, 118 .
Saint-Simon, 9, 57, 76 , 165, Vico, 54.
e 166 . Vinci, Leonardo da, 47.
Schelling, 50. Voltaire, 54.
Schounburgh, 148. W
Schopenhauer, 54.
Socrates, 56 . Ward , 60 .
Sorel, Georges, 49 e 57. Waitz, Sigismundo, 124.
Spalding, Henry, 30 . Weber, 57 e 58.
Spencer, Herbert, 29, 44, 50, Wickham , Hartley , 58.
I N D I C E

CAPITULO I. . . . . . . . . . . . . .
CAPITULO II . . . . . . . . . . . . . . .
: .
.

CAPITULO III . . . .
III. . . . . . . . . . . . . . . 65
CAPITULO IV . . .
.'

CAPITULO V . . . . . . . . . . . . . . .
CAPITULO VI . . . . . . . . . . . . . . .
COMPOSTO E IMPRESSO NAS
OFICINAS GRÁFICAS SIQUEIRA
SALLES OLIVEIRA & Cia. LTDA.
SÃO PAULO
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