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Aula 2 de Contemporânea III

Semana passada: apresentação geral do trajeto a ser seguido durante esse curso.
Eu procurei, em primeiro lugar, delimitar o problema que está no centro da filosofia de
Husserl. Para fazer isso, eu retomei a oposição que corta a obra de Husserl como um
todo, a oposição entre orientação natural e orientação fenomenológica.

A orientação natural é não apenas aquela de nossa vida prática, mas também
aquela que rege a ciência, enquanto esta se dedica a conhecer objetos. Enquanto que a
fenomenológica longe de se preocupar em conhecer objetos, ela investiga a
possibilidade do conhecimento em geral. E essa investigação de crítica do
conhecimento, inaugurada por Descartes e prosseguida por Kant, ela vai tentar
estabelecer graças a que a nossa subjetividade tem acesso a objetos transcendentes, e
isso, em princípio, em relação a toda e qualquer região objetiva, a começar verificando,
o que foi o que Husserl fez a maioria das vezes, o plano da experiência pré-científica, já
no plano da percepção, o plano dos juízos a posteriori em linguagem kantiana, como se
dá que essa percepção seja percepção de objetos.

Dada tal pergunta, como o território que essa pergunta deve receber sua resposta
é aquele a que Husserl chama de intencionalidade, eu procurei fazer uma primeira
aproximação ainda apenas negativa do que tá se querendo se indicar com essa
intencionalidade, em outras palavras, eu tentei indicar a afirmação aparentemente
anódina segundo a qual toda consciência é consciência de alguma coisa, ela visa antes
de tudo afastar a doutrina clássica cartesiana ou lockiana da representação, aquela
doutrina segundo a qual nossa consciência só se relaciona diretamente a idéias interiores
a essa própria consciência, quando se trata de afirmar que essa consciência se relaciona
diretamente ao mundo, aos objetos e não a idéias que representam esses objetos em
nossa interioridade.

E eu procurei sublinhar que as várias figuras dessa intencionalidade como


percepção, memória, imaginação e outras pelas quais nós passaremos, entre elas,
evidentemente, a linguagem. Elas são todas comparadas, são comentadas a partir de
uma oposição bem precisa e uma oposição que será central para a fenomenologia. A
oposição entre intenções intuitivas que nos trazem a presença do objeto, como a
percepção, a memória, ou a consciência de imagem, e intenções vazias, aquelas que
visam um objeto, mas não o trazem a nossa presença. Para Husserl, a nossa linguagem
visa sempre no vazio e, se ao mesmo tempo, eu tenho a percepção do objeto significado
pela linguagem, isso não é constitutivo para o sentido dessa linguagem, essa linguagem
permanece operando e visando na ausência de toda e qualquer intuição. Ora, pro
Husserl, aquilo que nós entendemos por conhecimento é uma relação entre o vazio e o
pleno, uma relação entre o domínio da linguagem e o domínio da intuição, uma variante
portanto daquilo que já era a relação entre conceito e intuição em Kant. Isso, como já
lhes disse, prescrevia o roteiro que nós precisaríamos seguir, quer dizer, começar pela
doutrina husserliana da linguagem, da intenção significativa, da representação
essencialmente vazia, para caminhar depois para o plano dos atos intuitivos, dos atos
que tem alguma plenitude dada pelo objeto. E é nesse momento precisamente que vai
surgir o problema husserliano, a saber, como essas intuições são possíveis, como é
possível o acesso da subjetividade ao mundo que é transcendente a ela. É aqui nesse
plano que se formulará a questão de crítica do conhecimento. E por fim, eu retomei os
traços principais da doutrina husserliana dos todos e das partes que, como nós
veremos, fornecerá uma espécie de lógica subjacente às descrições fenomenológicas,
quer dizer, teoria das partes independentes entre si de um todo, aquelas que são
separáveis e que existem ou podem existir umas sem as outras. Por outro lugar, doutrina
das partes dependentes de um todo, aquelas que não podem ser nem representadas por
nós como separadas e nem podem existir separadamente, como o exemplo recorrente do
todo expresso por extensão colorida.

Mas então vamos começar por nos dirigir à doutrina husserliana da linguagem
da intenção significativa, nos atendo por enquanto apenas à Primeira Investigação
Lógica, subtítulo “Expressão e Significação”. Vocês podem notar que Husserl abre essa
Investigação acentuando enfaticamente uma oposição de dois tipos daquilo que é
universo dos signos, dado aquilo que é um signo em geral, eles se dividem em signos
indicativos e signos expressivos. Comecemos por verificar o que H. entende por signo
indicativo para ver depois o sentido dessa oposição entre dois tipos de signos no interior
da filosofia husserliana. Então, vamos começar por nos ater aos §1-4 dessa
Investigação. E que nós comecemos pela tese geral que abre essa Investigação, a saber,
todo signo, diz Husserl, é signo de algo, mas não todo signo tem significação. Todo
signo é signo de algo, quer dizer, se reporta a um objeto, mas nem todo signo tem
significação, os signos indicativos são signos de algo, eles designam alguma coisa, mas
eles não significam. Por outro lado, os signos expressivos também são signos de algo,
eles também designam coisas, mas esses signos expressivos também têm significação.
Designar, meramente designar, apontar para algo, é algo distinto de significar. Se os
signos expressivos também designam, resta que apenas eles têm significação. Designar
é diferente de significar. Em que sentido? Comecemos a proceder por exemplos, como
H. faz de maneira irritantemente frequente nessa primeira Investigação. A palavra “5”,
ou o algarismo “5”, ele é signo indicativo de uma determinada entidade aritmética, esse
algarismo, ele designa, ele aponta para algo, mas ele se esgota nisso e não significa
nada. Vamos considerar também o nome próprio, o nome próprio H. oscilou durante
bom período de sua vida em caracterizar ora como signo indicativo, ora como signo
significativo, em benefício do exemplo que será dado que nós consideramos aqui que o
nome próprio pode funcionar como signo indicativo. Assim, “Napoleão” é signo
indicativo de determinada pessoa, ao ouvir a palavra eu me reporto a uma determinada
pessoa. Todavia, se eu compreendo a palavra “Napoleão” como signo indicativo, ele
não significa nada, apenas aponta. Mas se eu considerar agora as expressões “O
vencedor de Iena” e “O vencido de Waterloo”, estas duas expressões designam o
mesmo Napoleão, só que elas significam, e elas significam diferentemente – cada uma
delas me dá uma apresentação distinta deste personagem “Napoleão”. O signo
indicativo apenas designa, o signo expressivo, ou a expressão, ela designa por meio de
uma significação. E Husserl fará questão de sublinhar que esses dois universos em que
ele divide o nosso mundo dos signos, eles são essencialmente distintos entre si. Quer
dizer, como se a palavra signo aqui empregada fosse um termo absolutamente equívoco,
uma coisa é signo indicativo, outra coisa essencialmente diferente é o signo expressivo.
E, como H. fará questão de sublinhar, se na nossa vida comunicativa, o signo expressivo
pode exercer também a função de um signo indicativo, a saber, quando indica ao meu
interlocutor quais são os meus pensamentos, essa função indicativa que o signo
expressivo adquire na vida comunicativa, ela não define a essência desse signo, donde
as páginas do H. lá no início da Primeira Investigação é dizer que se na vida
comunicativa o signo expressivo também indica, na nossa vida solitária ele significa
sem indicar, quer dizer, essa função indicativa é extrínseca ao signo expressivo
enquanto tal.
Que nós nos detenhamos nesses signos indicativos ou sinais. Mais uma vez, H.
dará vários exemplos distintos desses signos indicativos para assinalar que em todas
essas variantes, por mais diferentes que elas pareçam, elas possuem todas uma essência
comum. Assim, dirá H., o estigma é signo indicativo do escravo e também a bandeira é
signo indicativo do país. E um signo arbitrário como o “x” que aparece como uma
incógnita em uma equação algébrica, ele também pode ser e é um signo indicativo. O
signo indicativo sempre serve de sinal de algo, quer dizer, ao ver “a”, esse signo motiva
a passar para “b”, ao ver a bandeira, eu penso no país. O sinal motiva a passagem ao
sinalizado. E H. dirá que é precisamente essa motivação que é a essência comum a
todos os signos indicativos. Ora, essa motivação será descrita por ele de uma maneira
bem particular, a saber, essa motivação que me leva a passar do sinal ao sinalizado, ela
não se confunde com nenhuma evidência racional, ou ainda, não existe qualquer
conexão necessária entre o sinal e o sinalizado. Em termos da doutrina dos todos e das
partes, o sinal e o sinalizado são independentes entre si. Eu posso me representar um
sem representar o outro, e cada um deles pode existir independentemente do outro. E se
é assim, o H. situará na mera associação de idéias a origem dos signos indicativos em
geral. Se ao ver o sinal, eu me dirijo ao sinalizado, é apenas por uma associação de
idéias habitual. De onde vem exatamente essa insistência de H. em frisar essa diferença
de essência entre signos indicativos e expressivos? Quer dizer, quem desconhecia essa
diferença, para que se reafirme com tanta veemência a diferença de essência entre
expressão e mera indicação? Quem? Antes de tudo o próprio H. nos textos que vão de
1890 (época em que ele publica “A filosofia da Aritmética”) até 1894 (“Estudos
Psicológicos sobre a Lógica Elementar”). Qual era o regime husserliano do signo
lingüístico nos textos desse primeiro período, de 1890-1894? Podem se reportar a um
texto chamado “Semiótica ou Lógica dos Signos”, texto que H. publica, que é de 1890,
ele tá publicado nas Obras Completas, que tem o nickname de Husserliana, v.12, é o
texto que tem como adendo esse ensaio sobre a semiótica. Vocês encontram também em
francês, no vol. intitulado “Artigo sobre a Lógica”, edição da Puf. Vocês sabem que
naquele segundo texto do H. já maduro, o segundo texto sobre a linguagem, que eu
tinha indicado semana passada, “Lições sobre a doutrina da significação”, do ano 1908,
sete anos posterior à Primeira Investigação, nessas Lições, H. censurará a lógica antiga,
uma lógica que só conhecia nomes, censurará por identificar apressadamente as
significações da linguagem aos objetos significados, desconhecendo então a diferença
entre objeto e significação; fazendo tabula rasa da distancia evidente entre o objeto que
é significado – Napoleão – e o modo como é significado – “Vencedor de Iena” ou
“Vencido de Waterloo”. Basta ver os textos para ver que essa mesma reprimenda é
trivialmente válida para a Primeira Doutrina husserliana do signo lingüístico. Como
nessa primeira doutrina, tanto nos “Estudos Psicológicos” quanto da “Semiótica...”,
como nessa doutrina H. entendia o signo, nessa primeira H. compreende o signo como
um conceito de relação, a saber, o signo é um conteúdo que dirige a nossa representação
a algo de outro. O que é esse algo de outro? É o designado, quer dizer, o objeto. E essa
relação pela qual o signo se define é descrita por H. como sendo uma relação clara. Qual
é essa relação clara? Ora, na passagem de um termo a outro termo, existe, diz H., apenas
uma associação habitual. E se um signo exterior, como ele chama, é aquele signo que
não tem nada a ver com o conceito particular do designado, objeto particular para o qual
esse signo exterior aponta sem, contudo, caracterizar – assim como ‘x’ em uma equação
aponta para a incógnita, mas não a caracteriza – se esse signo exterior aponta para o
designado, mas não tem nada a ver com o conceito particular desse designado, aquilo
que H. chamará ‘esses anos de signo’ no sentido estrito, é sempre dizer o signo
conceitual, por oposição ao signo meramente exterior. O que é um signo conceitual?
No plano do signo conceitual, nós temos uma marca distintiva do próprio objeto que
serve de signo desse objeto e o caracteriza. Assim, por exemplo, se nós entendemos por
triangulo uma figura formada por três retas, então qualquer propriedade do triangulo
serve de signo conceitual desse triângulo, por exemplo, figura que tem a soma de seus
ângulos iguais a dois retos. Uma marca distintiva é uma propriedade do objeto que
serve para mim de signo desse objeto, e um signo que agora o caracteriza, já que a
propriedade é da coisa funcionando como signo dessa coisa. Quer dizer, uma marca
distintiva, essa expressão aparece traduzida diferentemente..., mas a palavra marca
distintiva é a mais adequada na exata medida em que essa marca é uma característica do
próprio objeto, distingue dos outros objetos. A marca distintiva é sempre um conteúdo
parcial que, por sua relação ao todo, serve para sinalizar esse todo e determina esse
todo. Logo, é no mesmo sentido que um conceito é signo do seu objeto e que a “Torre
Eiffel” simboliza Paris. Uma parte da coisa servindo de símbolo do todo em que ela se
insere. E H. não acha nada estranho que seja no mesmo sentido que um conceito é signo
de seu objeto e que a “Torre Eiffel” simbolize Paris. C’est tout la même chose. Assim, a
significação de um nome próprio que é o signo direto de um objeto, como Napoleão, a
significação desse nome próprio consiste em que ele nomeia um objeto determinado, o
próprio Napoleão, mas no caso dos nomes gerais, esses são signos indiretos de seus
objetos visto que eles designam esses objetos pela mediação de marcas distintivas
conceituais. E se nesse caso é preciso separar o que os signos significam, essas marcas
distintivas, e o que esse signo designa, seus objetos, é apenas porque o nome geral
refere-se a uma pluralidade de objetos. Assim, através dessa mediação pelas marcas
distintivas, todo nome geral é signo de cada um dos objetos que ele envolve. E, como
nesses signos conceituais, as marcas distintivas que constituem o conteúdo desses
signos estão também inscritas nos objetos designados por esses signos, aqui é o
semelhante que serve para representar o semelhante. Com a marca distintiva está aqui
no conceito “pela soma de dois ângulos iguais a dois retos” e como ela está aqui no
objeto, no próprio “triângulo”, cuja soma dos ângulos é igual a dois retos, aqui, a
relação de semelhança, eu associo por semelhança e, nesse momento, eu entendo esse
conceito como sendo uma espécie de imagem do seu objeto. Claro, ele é uma marca
distintiva, uma propriedade do objeto, signo para esse objeto. Essa marca distintiva está
no conceito e na coisa, logo, esse conceito é uma espécie de imagem dos seus objetos.
Aquilo que H. também precisará recusar expressamente ali na Primeira Investigação.
Quer dizer, formulado no léxico da Primeira Investigação, o H. desses anos que vão de
1890-94, ele não conhecia signos expressivos, ele só conhecia signos indicativos,
aqueles que na própria linguagem da Primeira Investigação são apresentados por ele
como signos que designam, mas não significam. E vocês sabem que é exatamente nesse
domínio do mero reenvio em associativo de algo presente a algo ausente, é nesse
domínio que a Primeira Investigação alojará explicitamente aquela marca distintiva que
constitui o conceito, o conteúdo do conceito, do signo no sentido próprio da palavra,
aquilo que é o conceitual. Logo na 1ª Investigação, H. dará exemplos do que serão
signos indicativos – “a fumaça indica o fogo”. Ele está acertando contas com seu
próprio passado.

Mas então onde está o problema? Quer dizer, de onde surgiu a necessidade de se
fazer essa distinção entre signos indicativos e signos expressivos, signos que não tem
significação e signos que a tem, uma distinção que o próprio H. não fazia em seu início.
Que se marque a pergunta de onde nasceu a necessidade de fazer essa separação que
antes não era feita, de se inventar essa idéia de expressivo com significação, e essa
noção muito precisa de significação. Que vocês anotem a pergunta, mas antes de
responder a ela vale a pena avançar um pouco mais na delimitação desses signos
expressivos, na delimitação da própria noção de significação para que essa pergunta que
foi aqui formulada adquira, por assim se dizer, seu sentido pleno. Tanto mais que essa
noção de significação que começa a entrar em cena na 1ª Investigação, restrita ainda ao
domínio de nossa linguagem. Será ela também que estará no centro mesmo daquilo que
será a noção de fenômeno, tal como ela é entendida no interior da fenomenologia. Quer
dizer, a bem da verdade, se nós estamos aqui ainda tratando ainda do plano das
significações na linguagem, nós veremos logo depois que já no domínio de nossa vida
perceptiva, existe um equivalente dessas significações da linguagem – aquilo que nos é
intuitivamente dado, por exemplo, na percepção comum. É sempre dado segundo uma
certa significação, ou seja, se eu vejo ali adiante uma cerejeira em flor e a reconheço
enquanto tal, isso antes de qualquer expressão verbal é porque a percepção já traz em si
essa significação. Como dizia Kant, não são só os conceitos sem intuição que são
vazios, as intuições sem conceito são cegas; ou como dirá Heidegger, nós não falamos o
que nós vemos, nós vemos o que nós falamos: vejo uma cerejeira em flor – há sempre
uma certa generalidade conceitual ou de significação no interior de qualquer percepção.
“Vejo ‘x’ como cerejeira, e não como laranjeira”. E nós veremos depois que a noção de
fenômeno enquanto objeto no modo como ele é dado responderá à mesma exigência
inscrita em nossa linguagem da significação como um certo modo de doação de algum
objeto, ou “o vencedor de Iena” ou “o vencido de Waterloo”, assim como no plano da
linguagem os objetos nos são dados em modos distintos de apresentação, também na
nossa vida perceptiva, os objetos são sempre dados em modos distintos de apresentação.
Mas então voltemos para a Primeira Investigação.

A expressão diz algo sobre algo. Traduzindo isso em jargão fenomenológico: a


expressão visa algo e, neste visar, ela se refere a algo de objetivo. E o importante, é
nunca confundir o sentido ou a significação com a referência objetiva, com os objetos
significados. H. insiste nessa diferença nos §12 e 13 da 1ª Investigação, a diferença
essencial entre significação e objeto, sentido e referência. A expressão diz algo sobre
algo, enquanto ela diz algo ela significa, o sobre algo é aquilo ao qual ela se refere.
Nunca coincidem o objeto e a significação (na Primeira Investigação) e H. dirá no
próprio §12, ele dirá que essa distinção entre significação e objeto é uma distinção
necessária, porque, de maneira aparentemente surpreendente, ali H. prosseguirá
novamente apenas por exemplos, como se bastasse elencar exemplos para se estabelecer
a necessidade de uma distinção que, se é necessária, vale para todos, e não pode ser
estabelecida apenas apontando-se alguns casos. Eu já tive um colega que acreditava em
indução a partir de um só caso, mas no caso você generaliza e diz “vale para todos”. Eu
acho que isso é contra alguns casos da lógica elementar, e mesmo que não seja um caso,
sejam 3 ou 4, de qualquer forma, nenhum procedimento indutivo pode permitir a
afirmação de uma necessidade. Mas é o que H. afirma a partir de uma análise exclusiva
de exemplos. Mas então, vamos começar por seguir H. nesses exemplos para verificar
depois porque existe realmente a necessidade dessa distinção entre significação e objeto,
que será a mesma necessidade da distinção posterior entre fenômeno e objeto no plano
de nossa experiência intuitiva.

Segundo H. da Primeira Invest., a necessidade de distinguir entre significação e


objeto se tornará para nós clara quando pela comparação de exemplos nós nos
convencermos de duas coisas: em primeiro lugar, nos convencermos de que várias
expressões podem ter a mesma significação e se referirem contudo a objetos diferentes;
em segundo lugar, várias expressões podem ter significações distintas e se referirem ao
mesmo objeto. E, em termos de exemplos, aqueles que o H. considerará como os mais
claros para que se perceba essa diferença são os nomes. Assim, por exemplo, nomes
podem ter significações distintas e se referirem ao mesmo objeto, “o vencendor de Iena”
e o “vencido de Waterloo” são dois nomes de significações distintas que se referem ao
mesmo objeto “Napoleão”. Segundo caso, nomes podem ter a mesma significação e
distintas referencias objetivas, assim, o nome “cachorro”, quando eu falo que ‘Pluto’ é
um ‘cachorro’ ou quando um herói da minha infância ‘Rintintin’ era um cachorro, em
cada um dos casos, a significação do nome cachorro é a mesma, mas seus objetos são
distintos. As referências objetivas são distintas. H. dirá que bastam esses exemplos para
assegurar a diferença entre significação e objeto, a diferença entre significação e
referência objetiva. Esses dois aspectos – significação e referência objetiva – eles são
dois aspectos distintos da expressão, mas aspectos evidentemente conexos entre si, visto
que uma expressão só adquire referência objetiva se ela significa. É porque a
significação significa que ela adquire referência a um objeto, ou, como dirá H., a
expressão nomeia o objeto por meio da significação. O que é esse ato de significar, o
que é essa significação? Esse ato é um modo determinado de visar o objeto, um modo
de visar que pode variar permanecendo idêntico o objeto. Em outras palavras, distintas
significações são distintos modos de apresentação ou de doação do objeto: “O vencedor
de Iena” e “O vencido de Waterloo” são distintos modos de apresentação ou de doação
de “Napoleão”.
Mas então quais são para o H. dessa P. I., quais são para eles os componentes
essenciais de uma expressão? É claro que qualquer expressão tem um lado físico e um
lado, grosso modo, espiritual. Um lado físico de uma expressão exige um som
articulado ou uma voz articulada ou um grafismo no papel, exige aqui um signo
sensível; e ela tem um lado espiritual que é a sua significação. E quando H. for
circunscrever os componentes essenciais da expressão, ele apontará precisamente o
fenômeno físico e a intenção significativa, ali também apresentada por ele como ato
doador de sentido. Quer dizer, as únicas essenciais à expressão são esse fenômeno
físico, ou som articulado ou grafismo no papel, e essa intenção significativa também
chamada de ato doador de sentido. Se por acaso um ato intuitivo pode acompanhar a
expressão – eu falo cachorro e vejo Pluto aqui na minha frente – esse ato intuitivo não é
essencial à expressão. O ato intuitivo não é constitutivo da operação expressiva. É claro
que essa expressão que H. utiliza ali na P.I, ato doador de sentido, é uma expressão um
tanto infeliz. Ele levou vários intérpretes do H. a contrasensos patentes, como se nesse
jogo entre a intenção significativa e o mero fenômeno físico, aquilo que sustenta, o
suporte sensível da expressão, como se nesse fenômeno expressivo estaria diante de um
certo conteúdo físico opaco ao qual se acrescentaria um ato doador de sentido que
atribuiria sentido a esse suporte sensível, transformando-o em expressão. Como se
estivesse aqui um fenômeno sem sentido e um ato que atribui ou acrescenta sentido a
esse fenômeno físico, transformando isso, portanto, em expressão. São inúmeras as
interpretações de H. que partem dessa suposta evidência cochichada apenas pela
expressão ato doador de sentido. E que as coisas não se passam assim é algo patente,
seja por evidências históricas, seja pela própria letra das Investigações. Em primeiro
lugar, por evidências históricas, H. descobre a novidade de um certo comportamento de
nossa consciência, um comportamento que depois receberá o nome de intenção
significativa. Ele descobre isso nesses “Estudos Psicológicos” de 1894. O que H. se
preocupa em fazer nesses Estudos, dentre outras coisas, ele se preocupa em discernir a
diferença para ele patente no âmbito de nossas representações, essas traduzindo a
palavra Vorstellung. Quer dizer, quando eu tomo consciência de alguma coisa no
sentido mais amplo, se eu vejo a mesa, eu tomo consciência de alguma coisa,
representações enquanto intuições enquanto re-traço representações (ou re-
representações - ?) – eu reconheço que é de mau gosto, mas utilizado pelos tradutores
dado a pobreza da língua latina em relação às demais línguas – isso aqui traduz
représentation do alemão. Quer dizer, a gente tem uma palavra só para Vorstellung e
para essa outra Representação. Grosso modo, a diferença entre elas está no sentido em
que aqui nesse representar é tomar consciência de alguma coisa e representação nesse
segundo sentido, grosso modo, como eu digo que o embaixador representa seu país.
Entre esses dois modos de consciência, a intuição e a representação, H. vê entre eles
dois modos de consciência inteiramente distintos, dois estados de espírito, como diz ele,
inteiramente distintos, dois modos diferentes de uma participação que ele chama ainda
de psíquica de nossa consciência. Quando é que nós temos intuição?, simplesmente
quando nós vemos um objeto aqui diante de nós, em que uma representação se
diferencia de uma intuição? A diferença se torna clara para H. de então quando nós
comparamos certos casos limite, como quando nós temos a mera intuição de arabesco e
subitamente tomamos consciência de que se trata na verdade de um signo. Um mero
arabesco que eu intuo como um mero arabesco e subitamente tomo consciência de que
trata de um signo, a saber, um signo que aponta para a operação aritmética da subtração.
No primeiro caso, quando eu intuo o arabesco, eu simplesmente vejo aquele traço. No
segundo caso, quando eu vejo aquilo como signo da operação matemática, eu tomo
aquele mesmo conteúdo como representação de outra coisa que ele mesmo,
representante da operação de subtrair. Onde está a diferença nos dois casos? Em ambos,
a diferença não está aqui no conteúdo material, já que ele é o mesmo, se eu vejo como
arabesco ou como signo, a diferença não pode nem estar nem no conteúdo material que
é dado, só pode estar no modo de recepção desse conteúdo pela consciência. A
diferença só pode estar no modo de ocupação psíquica que eu exerço sobre esse
conteúdo. No momento em que o mero arabesco passa ao estado de signo e se torna o
representante de outra coisa, a situação psíquica se alterou, o que acontece nessa
passagem? Agora nós vemos o signo, mas não visamos esse signo, visamos a operação
de subtração. E nessas páginas H. considerará notável esse domínio das representações.
É notável que um ato psíquico possa re-enviar de algo dado a algo que não está dado
como presente à consciência de maneira alguma e que, todavia, coisa da qual parece que
temos consciência de alguma maneira. E também é notável, dirá H., que ao nos
ocuparmos com o representante, nós acreditemos nos ocupar com os próprios objetos
representados. O que está em jogo nesse domínio das representações? É a idéia mesma
de intencionalidade, tal como H. a descreve nesses Estudos 1894. O que é simplesmente
intencionar, resposta: simplesmente intencionar é tender por meio de não importa quais
conteúdos dados à consciência, tender para outros conteúdos que não estão dados.
Reenviar a eles de maneira compreensiva, utilizar um como representando do outro.
Como aquele mero traço é para mim o representante de algo que não está diante de mim
– a operação aritmética de subtração. Mas então, nessa passagem da consciência do
arabesco à consciência do signo, nessa passagem da intuição à representação, H. está
insinuando que somos nós que atribuímos um sentido a um material opaco e
transformamos esse material opaco em signo. Não! É claro que não! Nós simplesmente
tomamos consciência da existência de um signo, nós apreendemos o signo enquanto
signo, nada mais. Da mesma forma, quando as I.L. falam em ato doador de sentido,
ninguém pode interpretar isso como uma atribuição de sentido feito pela consciência a
algo em si sem sentido, ou material opaco que então se tornaria signo. Se existe doação
de sentido, é para consciência, consciência para que esse sentido é pura e simplesmente
apresentado. Afinal de contas, H. não é tão biruta quando seus comentadores. E no
próprio texto das I.L. se atesta isso: tanto pro Husserl, quanto para o Frege, as
significações de nossa linguagem são públicas e evidentemente nós estaríamos na mais
perfeita Babel se cada um conferisse sentido às expressões. Mais ainda, nesse todo que é
a expressão, as partes desse todo que são o fenômeno físico por um lado e a significação
por outro, elas são partes dependentes entre si, quer dizer, uma significação precisa
sempre do suporte sensível para aparecer a nós e o fenômeno físico, o suporte sensível,
precisa da significação, caso contrário ele nem seria expressão. Se no caso dos signos
indicativos, a relação entre o sinal e o sinalizado se dá entre duas partes independentes
entre si, no plano dos signos expressivos, o fenômeno físico e a significação são duas
partes dependentes entre si de um mesmo todo. E como que antevendo os maluquetes
que o comentariam, H. foi até literal, o que eu devo confessar que não ajudou. Lá no
§10 ele dirá uma coisa tão óbvia que você fica pensando porque ele faria isso, mas é
claro, ele devia estar antevendo o resultado. E lá no §11 ele é literal, ele dirá o seguinte:
nós não introduzimos caprichosamente a segunda indicação nos enunciados, mas a
encontramos neles.

Mas então que nós voltemos à relação entre significação e objeto. Como a
significação significa o objeto? Ali na P.I. H. fará questão de afastar a idéia de que a
significação das expressões tenha algo a ver com uma imagem dos objetos. É o que ele
enuncia logo no início do §17, chegou o momento, diz ele, de discutir a concepção
segundo a qual o que torna uma expressão significativa é despertar em nós certas
imagens que lhe estão constantemente coordenadas. Ora, pra onde apontará essa
distancia incisiva que H. quer fazer entre significação e imagem, e pra onde apontará
também a necessidade de se fazer todas essas distinções que, como eu disse, são
estranhamente apresentadas apenas por exemplos, mas onde a verdadeira figura da
necessidade está lá, na P.I, talvez de maneira apenas pouco perceptiva a uma primeira
leitura.

INTERVALO

Pra retomar eu dizia que na P.I. quando H. começa a se perguntar qual seria a
relação entre significação e objeto, como a significação significa o objeto, a sua
primeira preocupação será a de afastar a idéia de que a significação das expressões
tenha algo a ver com uma imagem do objeto. É exatamente isso que ele enuncia logo no
início do §17: chegou o momento, diz ele, de discutir a concepção segundo a qual o que
torna uma expressão significativa é despertar em nós certas imagens que estariam
constantemente coordenadas a essas expressões. Segundo essa concepção, entender uma
expressão significaria encontrar em si mesmo a imagem que correspondem a essa
expressão. Se essas imagens não existem, a expressão será sem sentido. Essas imagens
seriam a própria significação das palavras. Que concepção é essa? Uma clássica, em
Locke, no “Ensaio sobre o entendimento humano”, e vão reencontrá-la também em
Hobbes, logo no início do “De corpore”. Hobbes se inicia com uma espécie de lógica,
onde é exatamente essa mesma concepção lockiana que é apresentada. Em suma, uma
coisa de inglês. Quer dizer, os signos lingüísticos remetem a idéias em nós, idéias que
são como imagens das coisas, e essas idéias são as significações das palavras. Aquilo
mesmo que o Wittgenstein vai censurar como sendo uma concepção de imagem privada
e que ele vai indicar ser impossível. O que H. pensa dessa doutrina lockiana ou
hobbesiana? Se é certo, diz H., que por vezes nossa compreensão de uma expressão vem
acompanhada por imagens de nossa imaginação, resta aqui essas concomitâncias, não
são necessárias para a compreensão da expressão. Ou seja, a existência dessas imagens
não pode constituir a significação da expressão. Ausência dessas imagens não pode ser
ausência de significação. E, além dos mais, diz H., quando existe essa concomitância
expressão-imagem, essas imagens variam muito de um para outro, em cada pessoa
durante o tempo. Imagens variam enquanto a significação é idêntica, logo essas imagens
não podem se confundir com a significação. Mais ainda, é só ler um livro de álgebra
para verificar que existe entendimento sem imagem possível. Mais ainda, que imagem
sensível se pode associar a termos como cultura, religião, arte, cálculo diferencial. E ele
evocará também o exemplo que Descartes dava no momento em que ele opunha o
entendimento à imaginação, eu entendo o que é um polígono de mil lados, eu não
imagino esse polígono. Essa é uma coisa interessante na história da filosofia que sempre
me causou perplexidade, todos eles limitam ao número 12 a capacidade da nossa
imaginação, tanto Descartes quanto Husserl. Sempre 12. Nunca entendi essa constância
como determinação do 12 como número limite à imaginação.

Mas o que vale frisar é que mais uma vez nessa separação entre significação e
imagem, H. procedo por exemplos pra indicar a necessidade de não confundir a
significação das expressões com imagens sensíveis, apenas exemplos são evocados. Ele
só evocava exemplos para apontar a necessidade de se distinguir entre significação e
objeto. Circunscrever a raiz mesma dessa necessidade que não é de forma alguma
demonstrada ali pelos exemplos. A raiz dessa necessidade está presente ali na P.I., mas
presente através de certas considerações que podem torná-la pouco reconhecível, como
eu disse, a uma primeira leitura. Digamos que por um e o mesmo motivo que nós
precisamos separar significação de objeto e que nós não podemos pensar essa
significação como imagem do objeto. A mesma razão que me leva a fazer a separação
me levará a reconhecer que significação nunca é imagem do objeto. Em que sentido?
Que nós voltemos para trás.

Nós tínhamos visto que lá na sua juventude, H. só conhecia signos indicativos e


vimos também que se um signo, no sentido próprio, era para o H. de então uma marca
distintiva do objeto operando como signo deste objeto, como essa marca está lá no
conteúdo do conceito, está também no objeto para o qual esse objeto aponta. Essa
relação de semelhança faz do conceito algo assim como uma imagem do seu objeto.
Nesse momento, 1890-94, H. desconhecia a noção de significação e concebia o objeto
como aquilo que está sendo significado pelo nome e significado através de uma relação
imagética – é o semelhante que representa o semelhante. Se considerarmos os textos de
H. até hoje publicados, é nas suas “Lições de Lógica” de 1896 que as coisas começam a
mudar. O primeiro período de H. em que só existiam signos indicativos vai de 1890-94,
nesse curso de lógica de 1896, as coisas mudam. H. reconhecerá pela primeira vez no
interior da obra publicada a necessidade imperiosa de se distinguir entre o que ele
chama de conteúdo de significação de um conceito e o objeto desse conceito. Estou me
referindo ao §4 desse texto. Se, à primeira vista, diz H., a significação da expressão “o
mais sábio dos atenienses” parece ser Sócrates, quer dizer, o objeto. Essa interpretação
da vida dos signos será apresentada agora como sendo trivialmente incorreta. O algo de
objetivo que é expresso e que permanece idêntico não é de forma alguma esse objeto
real que é Sócrates. O que é expresso é apenas a representação de Sócrates no seu
sentido objetivo, quer dizer, a sua significação. As nossas representações não se
diferenciam segundo seus objetos, e basta considerar a expressão “O professor de
Platão” para reconhecer a diferença entre significação e objeto e reconhecer a existência
de uma pluralidade de significações referidas a um mesmo objeto. O que motivou essa
transição aparentemente abrupta dos signos indicativos aos signos expressivos? A
transição que se dá entre 1894 e 1896, o que é que motivou essa transição e de onde
brotou a evidência que levará H. a formular a tese segundo a qual no plano de nossa
linguagem, se um objeto deve ser significado, então ele precisa ser significado em
algum modo determinado. Se Napoleão precisa ser significado em nossa linguagem, ele
deve ser significado de algum modo determinado – ou o “vencedor de Iena” ou o
“vencido de Waterloo” – tantas significações referidas ao mesmo objeto.

O que aconteceu? Digamos que foi no próprio ano de 1894 que H. leu o texto de
Podolski “Sobre o conteúdo e objeto de nossas representações”. Esse texto foi publicado
no próprio ano de 1894, depois da publicação dos “Estudos psicológicos” do Husserl,
que ele redigiu em 1893 e foi publicado no ano posterior. Podolski foi um lógico
filósofo polonês que foi aluno do Brentano assim como H. E apesar das várias restrições
que H. externou a esse ensaio do Podolski, restrições condensadas em uma resenha do
livro que H. publica em 1896, os textos mostram claramente que H. herdou dali algumas
idéias nucleares que na verdade já rascunhadas pelo X. O que estava no centro desse
trabalho, aquilo que existe de categorial na nossa experiência, bem como as
conseqüências disso para a expressão dessa experiência no plano da nossa representação
no plano da nossa própria linguagem. Pra onde aponta essa noção de categorial que vai
freqüentar boa parte das I.L. do H. O categorial é aquilo que em nossa experiência se
refere principalmente às relações inscritas nessa experiência. Aquilo que se reporta às
relações, quer dizer, aquilo que tá inscrito na experiência, mas nunca se reduz ao que é o
sensível nessa experiência e que, por isso mesmo, não pode nos ser dado em imagem.
Precisamente aquilo que é expresso na nossa linguagem pelo que não é nominal. O
exemplo de H. na VI Invest., a proposição “este tinteiro é verde”, essa simples frase
inclui elementos formais que estão na linguagem, estão na nossa experiência, mas não
são sensivelmente representados. Supondo que haja um tinteiro verde aqui, eu vejo
tinteiro, eu vejo verde, eu não vejo nada que corresponda ao verbo “ser” dessa
experiência sensível, nem “este” e não vejo também as formas implicitamente
embutidas aqui, a saber, a forma substrato em que o tinteiro é firmado e a forma atributo
em que o verde é afirmado. Se eu tenho experiência sensível dos conteúdos, eu não
tenho experiência sensível daquilo que é o formal de nossa experiência e daquilo que
exprime esse formal em nossa linguagem. Vocês lembram que H. retomava que a lógica
antiga só conhecia ‘nomes’, ele também antes só conhecia ‘nomes’, nomes próprios,
nomes gerais, nunca se considerava os componentes formais do enunciado que se refere
à experiência, mas não são sensivelmente dados a essa experiência. Uma das fontes da
oposição heideggeriana de ser e ente vem exatamente dessas páginas da Sexta
Investigação, em que no ser eu não tenho nenhum referente dado na experiência.
Voltamos lá ao Podolski, nesse ensaio sobre o conteúdo do objeto de nossa
representação, ele observava que nenhum objeto se reduz às suas partes materiais. Todo
o objeto inclui além de suas partes materiais, certas partes formais, e essas apontam para
relações, que são tanto as relações de cada parte singular do objeto ao objeto como um
todo, quanto as relações dessas partes entre si. E se os objetos envolvem partes formais,
pensar que o trajeto entre o conteúdo representante à nossa linguagem e o objeto
representado é algo assim como uma semelhança fotográfica, isso é coisa que só pode
ser de se atribuir a uma psicologia bem primitiva, como nesse caso eu posso ter a
imagem fotográfica de tinteiro, eu não tenho imagem nenhum do que é verbo ser, ou
partícula este. Só uma psicologia primitiva poderia pensar isso, e mais ainda, conclui
ele, é inevitável que exista uma pluralidade de representações para cada objeto, afinal de
contas, como nenhum objeto é simples no sentido estrito da palavra, visto que todo
objeto entra em relações com outros objetos, relações que são constituintes de cada
objeto, e como elas são de número ilimitado, então nenhuma representação expõe todos
os constituintes de seus objetos. Todas as representações estão condenadas à
parcialidade, à inadequação, à convivência inevitável com inúmeras outras
representações do mesmo objeto. Sendo assim, é por princípio que cada objeto é
representável por múltiplos conteúdos, conteúdos que ele já identificava às
significações. Nas suas lições de lógica de 1896, as quais eu me referi a pouco, já era
essa evidência que levava o H. a considerar Sócrates segundo suas diferentes relações,
ora como o mais sábio dos atenienses, ora como o professor de Platão, distinguindo
então a significação e o objeto, e reconhecendo a existência de uma pluralidade de
significações referidas a um mesmo objeto. É a tese de Podolski trabalhando no cerne
da doutrina husserliana.

Num trabalho X que H. publica, 1900, esse trabalho vai ecoar o Podolski de
maneira ainda mais branda, esse texto que H. publicou nos Estudos Brentanos vocês o
encontram em tradução francesa – Husserl: Objetos Intencionais. Esse texto ecoa de
forma ainda mais barulhenta, um objeto simples garante o H. ali tem ele também,
prossegue ele, tem relações infinitamente numerosas, portanto, propriedades externas
infinitamente numerosas, em que se fundam representações compostas, infinitamente
numerosas do mesmo objeto. E se agora dirá que se existem múltiplos pontos de vista
para apreender um mesmo objeto, é porque existem, diz H., numerosas espécies de
significações diferentes, relativas à mesma objetividade, que não exprimem nem uma
riqueza interna em momentos propriamente objetivos, mas apenas a riqueza em formas
de relação, em pontos de vista, em orientações de conhecimento. A matriz mesma da
tese que ressurgirá no primeiro livro de Idéias, a tese segundo a qual a doação adequada
de uma coisa só pode ser uma idéia no infinito, já que existem sempre infinitas relações,
infinitas representações dessa coisa. E agora, um conceito não pode mais ser visto como
uma imagem que copia seus objetos, já que não existe imagem do categorial, das
relações e se significações diferentes podem representar o mesmo objeto, elas
absolutamente não refletem esse objeto. E doravante, a exposição de um objeto em uma
significação não terá mais nada a ver com qualquer sensível, qualquer imagem. E já no
ano de 1898, o reconhecimento desse sistema, por parte do H., relacional em que cada
objeto se situa no interior de um mundo de objetos. Isso levará H. a formular uma tese
enunciada então com inconfundível sotaque leibniziano: uma tesa que já trazia em
germe aquilo que muitos anos depois ele desenvolverá como sendo a doutrina da
intencionalidade de horizonte. A tese seguinte, cito H. em Lição de objetos intencionais,
texto de 1900, eu cito, “o conhecimento absolutamente completo de não importa qual
coisa inclui o conhecimento do mundo inteiro e, respectivamente, cada coisa reflete do
seu ponto de vista um mundo inteiro” – uma conclusão inevitável dado esse sistema
relacional em que tudo se comunica com tudo e em que cada relação faz parte dos
constituintes de cada objeto, relações que são por princípio, infinitas. Será prenúncio
evidente da tese clássica da doutrina husserliana da intencionalidade de horizonte, a
saber, a tese segundo a qual a nossa consciência de cada objeto singular pressupõe
arqueologicamente a consciência de um mundo e de que esse mundo se expõe de
alguma maneira em cada um de seus fragmentos dados a nós. Mas voltemos lá para as
I.L.: as significações de nossa linguagem dizem respeito àquilo que existe de categorial
na nossa experiência, e é para esse universo do categorial que H. nos reporta de forma
precisa ali no §13 da P.I. Diferentes significações podem dizer respeito ao mesmo
objeto e a mesma intuição. A mesma intuição, mas concebida categorialmente de forma
distinta, quer dizer, o “vencedor de Iena” e o “vencido de Waterloo” apreendem
Napoleão segundo distintas relações, segundo distintas apreensões categoriais de
Napoleão. E se é assim, é inevitável separar significação e objeto, é inevitável
reconhecer que significação não é imagem, já que não existe imagem de componentes
categoriais. Mas então, a partir da próxima vez vamos verificarmos três coisas: em
primeiro lugar, o estatuto da significação ainda nas I.L.; em segundo lugar, como H.
pensa essa gramática que tá exprimindo o que existe de categorial na nossa experiência,
desde que, eu devia ter mencionado, não existe gramática no plano dos signos
indicativos, existe gramática apenas no plano dos signos expressivo. Essa gramática que
H. expõe lá na Quarta Investigação. E, por fim, a mudança do estatuto de significação
nas Lições sobre a significação – 1908 – onde aquilo que surgia aqui como estatuto da
significação nas I.L. vai sofrer uma alteração importante para a doutrina da significação,
para o trajeto da fenomenologia como um todo. Eu paro aqui hoje!

P.I.: Primeira Investigação Lógica

I.L.: Investigações Lógicas

H.: Husserl

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