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PONTO 45

Choque
David Ferez
Professor adjunto doutor da disciplina de anestesiologista, dor e
medicina Intensiva da Escola Paulista de Medicina – Unifesp;
Chefe da disciplina de anestesiologista, dor e medicina intensiva da Escola Paulista de Medicina – Unifesp.
Choque
45.1. Conceito
45.2. Classificação
45.3. Fisiopatologia
45.4. Monitorização
45.5. Tratamento
45.6. Síndrome da resposta inflamatória sistêmica
45.7. Síndrome da falência de múltiplos órgãos

INTRODUÇÃO
O choque é, em essência, uma história de sobrevivência, uma luta do organismo em um meio adverso
para preservar a vitalidade de seus tecidos mais essenciais. É uma história de ataque e defesa, de ganho e
perda, em um caleidoscópio de manobras defensivas para preservar a sobrevivência dos órgãos. Como tal,
o choque é virtualmente estudado em todas as disciplinas clínicas e cirúrgicas e, para o seu tratamento,
é necessária a compreensão da dinâmica circulatória e da fisiologia celular.
O termo “choque” foi aplicado por mais de dois séculos a muitas condições em que os ferimentos das
batalhas pareciam desproporcionalmente e misteriosamente pequenos quando comparados com o colapso
imediato ou gradual dos processos vitais. O enigma foi muito bem colocado por Sir Astley Cooper em seu
“Comentário sobre os ferimentos de guerra” quando chamou a atenção para o fato de que muitos soldados
haviam morrido sem perda significante de sangue, dor intensa ou ferimento grave1.
Naquela época, o termo foi aplicado sem critério a uma grande variedade de condições em que havia
ameaça à vida, e nas quais os achados anatomopatológicos foram incapazes de fornecer uma “causa mor-
tis” razoável.
Contudo, o termo “choque” com o sentido médico foi usado pela primeira vez na língua inglesa em
1743 em uma tradução da segunda edição francesa do livro de Henri François Le Dranem Um tratado de
reflexões provenientes da experiência por ferimento por arma de fogo. O tradutor usou a palavra para
transmitir a impressão de uma pancada ou um golpe seguido por deterioração progressiva, perda de
consciência e morte. Para John Collins Warren, o choque era “uma pausa momentânea no ato da morte”.
Este conceito compreende muito do que atualmente é aceito na atualidade, particularmente a noção de
que o choque não é uma única entidade, mas, na realidade, uma resposta adaptativa aos ferimentos que
ameaçam a vida, provenientes de origens variadas, e caracterizadas por lesão permanente ou temporária
às funções vitais dos órgãos2,3.
O trabalho de Thomas Latta em 1831 descrevendo o seu tratamento do estado hipovolêmico na cólera,
é um clássico em terapêutica. Não havendo precedente para orientá-lo agiu cautelosamente infundindo
330 onças de salina intravenosamente em um paciente, durante um período de 12 horas, obtendo uma
melhoria clínica importante4.
Com o advento da era da fisiologia experimental no século XIX, medidas da resposta da pressão san-
guínea média aos vários estímulos foram registradas continuamente no quimógrafo. O efeito inibidor do
nervo vago sobre o coração foi descrito e a existência de um centro vasomotor que controlava o sistema
circulatório através do sistema nervoso autônomo foi estabelecido. Experimentos demonstrando a inibi-
ção reflexa da ação cardíaca através de estímulos periféricos, tais como pancadas no abdômen do sapo,
ou a produção abrupta de modificações gravitacionais no rato sugeriram que uma analogia experimental
do choque poderia ser desenvolvida. Como resultado desses estudos estabeleceu-se o conceito de que o
choque era o resultado da inibição do centro vasomotor que produzia enfraquecimento dos batimentos
cardíacos e uma mistura periférica do sangue. Este conceito neurogênico do choque foi desenvolvido du-
rante a era em que o interesse na neurologia experimental e clínica floresciam sob o estímulo de Claude
Bernard, Brown-Sequard, e Charcot3,5.
George W. Crile, que trabalhou originalmente no laboratório de Victor Horseley no University College,
Londres, contribuiu posteriormente com uma monografia detalhada, publicada em 1889, descrevendo o
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primeiro estudo experimental extenso do choque. G. W. Crile usou manômetros e quimógrafos usados em
fisiologia para medir reações a ferimentos, em um grande número de experimentações animais. Muitas de
suas observações têm considerável relação com o conceito atual do choque. Ele salientou a relação entre
o aumento da duração da cirurgia e a possibilidade de ocorrer o choque circulatório. Notou ainda que uma
pequena hemorragia que precede uma operação reduzia a capacidade do animal a resistir aos ferimentos
e lesões, e definiu o papel da hipotermia, da anestesia, em particular da perda de sangue e fluidos. Ba-
seado nesses conhecimentos G. W. Crile idealizou as calças militares antichoque6.
G. W. Crile delineou também a aceleração e aprofundamento da respiração após a hemorragia e a
hipertensão venosa associadas com uma queda da pressão venosa central. Ao descrever a resposta do
animal em choque a uma infusão de salina morna ele salientou: “o que foi feito pela salina? Ela aumentou
a pressão venosa fazendo com que o coração se enchesse e esse, por sua vez, passou a bater mais forte
e enviar maiores quantidades de sangue com salina que vieram alimentar os centros exauridos e necessi-
tados de nutrição e, além disso, promoveu a passagem desse sangue sobrecarregado pelos pulmões para
incentivar as trocas respiratórias”. A resposta do coração à infusão de salina levou G. W. Crile a concluir
que a ação cardíaca era a última das funções vitais a se tornar insuficiente7.
Esses conceitos da importância da pressão venosa como um determinante do débito cardíaco (DC),
o reconhecimento de que a pressão venosa no choque hemorrágico está reduzida e que ela pode ser
elevada pela infusão de salina morna, e de que o coração responde com aumento de débito, são ideias
altamente aceitáveis para o clínico moderno. Ele atribuiu o determinante final do choque à exaustão do
centro vasomotor. Mais tarde um bom número de evidências sugeriu que, muito pelo contrário o centro
vasomotor estava hiperativo e que a desnervação de um órgão resultava em um aumento imediato do
fluxo sanguíneo7.
Nove anos mais tarde, Yandell Henderson também salientou a importância do retorno venoso para o
coração. “A pressão venosa é, por assim dizer, o ponto de apoio da circulação. O choque, conforme o ci-
rurgião usa a palavra, é devido à falha deste ponto de apoio. Devido à redução do suprimento venoso o
coração não se distende adequadamente e de maneira concreta durante a diástole”8. Interessantemente
os efeitos deletérios da hipocapnia salientados por Henderson estão novamente em voga, ainda que Hen-
derson tenha sido o centro de uma controvérsia, como resultado da sua sugestão de que a hipocapnia era
“mecanismo causador” mais do que um resultado do choque.
O interesse nos mecanismos de tratamento do choque foi sempre estimulado pelas guerras9. A Primeira
Guerra Mundial levou pela primeira vez os fisiologistas a estabelecerem contato com os campos de bata-
lha. Em 1917, Edward W. Archibald e Walter S. McLean depois de considerável experiência direta no tra-
tamento do choque em indivíduos feridos resumiram suas opiniões com relação ao valor das medidas de
pressão sanguínea: “enquanto uma redução da pressão sanguínea é um dos sinais mais constantes do cho-
que ela não é o aspecto essencial e muito menos a causa dele, concentra-se a atenção na pressão arterial
sanguínea de uma maneira excessiva”10. O trabalho de G. W. Crile, em particular, e o de L. J. Henderson
apoiam o conceito de que a falha do retorno venoso era o determinante primário no choque e de que o
coração conservava a sua habilidade de bombear até as fases terminais do choque. Em consequência di-
rigiu-se muita atenção aos pequenos vasos periféricos. A experiência dos tempos de guerra não foi muito
esclarecedora em vista das controvérsias correntes como a relação ao uso dos vasoconstritores e vasodi-
latadores11. Naquele tempo o debate era entre aqueles que acreditavam que a exaustão vasomotora com
mistura periférica do sangue e nos grandes vasos era causa do choque, e aqueles que acreditavam que a
vasoconstrição era a causa da deterioração. Ao tratar dos acidentes de guerra os cirurgiões observaram
a palidez dos tecidos dos pacientes em choque, o desaparecimento do pulso periférico, em um momento
em que os pulsos femorais e carotídeos eram palpáveis, e observava-se a constrição das veias periféricas9.
Posteriormente houveram evidências adicionais da vasoconstrição no choque, quando observou que os
pulsos periféricos se tornavam palpáveis após o uso do vasodilatador nitrito de amilo12.
Os esforços, em colaboração, dos fisiologistas americanos e ingleses juntamente com os clínicos, lide-
rados por W. Cannon e W. Bayliss, criaram um precedente importante para os futuros estudos no cam-
po de batalha por grupos de investigação, especialmente no campo da reposição volêmica13. As amplas
perspectivas de seu estudo as descrições clínicas por oficiais médicos da linha de frente, e as medidas
dos fenômenos fisiológicos e bioquímicos em pacientes em choque paralelamente aos estudos em animais

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estabeleceram um padrão para unidades semelhantes de investigação. A partir destas observações no
campo e no laboratório, Cannon tentou explicar a hipotensão em termos de insuficiência cardíaca, perda
do tônus vasomotor, queda nos volumes sanguíneos, ou estagnação nos reservatórios venosos9.
No verão de 1917, em Bethune, W. Cannon usou, para a época, o novo aparelho de Van-Slyke e docu-
mentou uma correlação entre a queda da pressão sanguínea e uma redução na reserva alcalina. Ele con-
cluiu que a queda da reserva alcalina era causada por um acúmulo de ácidos fixos, como o ácido lático,
resultado da insuficiência no transporte de oxigênio.
Ele reconheceu a acidose como um fenômeno secundário e notou a melhoria marcante nos pacientes
em choque após a administração do buffer bicarbonato de sódio14.
Durante esse mesmo período, N. Keith estudou o volume sanguíneo em feridos de guerra, por méto-
dos de diluição de corantes, e demonstrou que a gravidade do choque se correlacionava com a redução
da volemia. W. Cannon em consequência definiu o indivíduo ferido em choque como o resultado de uma
discrepância entre o volume sanguíneo e a capacidade vascular5.
A observação de uma redução da volemia sem evidência externa de sangramento necessitava de uma
explicação. Ao mesmo tempo muitas observações interessantes foram feitas com relação à natureza dos
ferimentos por esmagamento entre os feridos de guerra. Havia muitas descrições de soldados feridos que
se mantinham deitados, aparentemente em boas condições, com suas pernas esmagadas sob pedaços de
madeira ou detritos. Poucos minutos após a remoção, todavia, observava-se uma deterioração rápida nas
condições do paciente. De maneira semelhante remoção de torniquetes que tinham isolado pernas esma-
gadas era frequentemente seguida por todos os sinais de um choque progressivo que levava à morte. Por
outro lado, a amputação da perna antes da remoção do torniquete resultava, muitas vezes, em sobre-
vivência. Essa observação levou ao conceito da toxemia traumática e estimulou W. Cannon e W. Bayliss
a criarem um modelo experimental no laboratório. A questão que eles procuravam responder era se a
morte posterior à lesão por esmagamento era causada por agentes tóxicos liberados por tecidos lesados,
ou era devido à perda de fluido no local da lesão13.
Os experimentos de W. Cannon e W. Bayliss, interpretados de acordo com o trabalho de H. H. Dale e
A. N. Richards sobre os efeitos tóxicos da histamina, levaram à conclusão de que o fator dominante no
choque traumático era a liberação de material tóxico na circulação sistêmica. Substâncias como a hista-
mina pareciam suprir a base para a perda do tônus vasomotor ocasionando o sequestro do sangue e a in-
suficiência de retorno venoso para o coração15. Enquanto essas conclusões eram seriamente questionadas
mais tarde, W Cannon documentava claramente que os fenômenos mais importantes no choque traumáti-
co eram a perda do volume circulante de sangue e a insuficiência subsequente de retorno venoso; a este
fenômeno ele aplicou o termo exemia.
Em 1934, D. B. Phemister e H. Livingstone, trabalhando independentemente, desafiaram o conceito de
W. Cannon de uma lesão vascular generalizada e perda do tônus vasomotor. Eles demonstraram conclu-
sivamente que o sangue e o plasma perdidos se acumulavam em torno do ferimento e se infiltravam nos
espaços teciduais, muito distantes da área de lesão local16.
Durante a Segunda Guerra Mundial, unidades foram estabelecidas pelos Estados Unidos e Inglaterra
para estudar os problemas médicos, durante as batalhas e as vítimas de bombardeios aéreos. Um comitê
liderado por H. K. Beecher foi formado para o estudo dos feridos graves nos teatros mediterrâneos de
operação do exército norte-americano. Esse comitê levou o laboratório próximo da linha de batalha e
foi capaz de obter os primeiros estudos bioquímicos dos feridos de guerra. Seus estudos indicaram que a
causa principal do choque era a hemorragia e perda de fluidos, que levam à acidose metabólica quando
a condição se torna grave e prolongada.
Muitos dos conceitos de W. Cannon que não possuíam a documentação da tecnologia moderna foram
posteriormente confirmados por A. Cournand e A. N. Richards entre outros, que realizaram as primeiras
medidas imunológicas e bioquímicas17 e do DC18 durante o choque.
As experiências das duas guerras mundiais foram aumentadas pela informação obtida durante o conflito
coreano, quando os padrões da assistência médica eram sem dúvida excepcionalmente bons. Durante esta
campanha grupos especializados de pesquisa realizaram estudos que levaram não somente ao melhor aten-
dimento das ocorrências do campo de batalha, mas também à aplicação subsequente desse atendimento ao

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trabalho médico civil. Equipes de cirurgia torácica, unidade de atendimento renal, e grupos de cirurgiões
vasculares altamente treinados, estavam à disposição para o tratamento precoce das ocorrências médicas
de batalha. Posteriormente, o interesse da investigação do choque em civis foi mantida e estimulada pelo
comitê de choque da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Como resultados do trabalho des-
se grupo existiam planos para incrementar o desenvolvimento das unidades de choque em várias partes do
país. Desses estudos, se obtiveram as primeiras medidas amplas de alterações hemodinâmicas, bioquímicas
e clínicas, nas várias formas de choque não relacionado com eventos médicos de guerra3,5.
O conflito do Vietnã e a experiência civil salientaram a importância de uma forma peculiar de lesão
pulmonar que acompanha o choque e as lesões extensas de tecido, levando a uma insuficiência progressi-
va de oxigenação. O pulmão traumatizado, o pulmão úmido pós-traumático, e um grupo de outras desig-
nações foram usados para identificar esta síndrome, mas as suas origens patogênicas são ainda largamente
obscuras19. Alterações funcionais semelhantes, e observações citológicas comparáveis, ocorrem após uma
variedade de lesões, tais como queimaduras, lesões por estilhaços, politransfusões, embolia gordurosa,
toxicidade do oxigênio e lesões traumáticas da cabeça3,5.
Independentemente da sua origem, essas alterações severas da função pulmonar são atualmente um
dos maiores problemas na recuperação de pacientes com enfermidade aguda. O interesse recente em
propiciar uma assistência ventilatória apropriada resultou numa incapacidade de obter oxigenação quando
outras indicações clínicas apontam para a possibilidade de sobrevivência.
No final do século XX e início do XXI os conflitos no Iraque, Afeganistão e Israel voltam seu foco não
apenas para as alterações da hemodinâmica sistêmica, mas para a hemodinâmica regional e liberação de
substâncias inflamatórias3,5.
Atualmente, um grande número de evidências tem-se apresentado sobre o papel das substâncias pró-
-inflamatórias no choque, especialmente o choque de origem infecciosa.
Ainda que muitas investigações devam ser feitas no laboratório e na cabeceira do leito para elucidar
esses mistérios, o estudo científico do choque modificou o atendimento do paciente criticamente enfer-
mo, de uma abordagem empírica para outra, baseada no conhecimento das avaliações fisiológicas corre-
tas e das melhores evidências clínicas.

45.1. CONCEITO
Baseado nas evidências construídas através de décadas, como foi apresentado anteriormente, o con-
ceito de choque evoluiu e vem evoluindo. C. Ince, em 2016, conceituou choque como um comprometi-
mento circulatório que resulta em uma incapacidade de assegurar a perfusão adequada para os tecidos,
comprometendo a oferta de oxigênio para as células. Não é devido apenas às alterações das variáveis
hemodinâmicas sistêmicas, mas essencialmente pelo fracasso da microcirculação assegurar a oferta e/ou
das mitocôndrias em utilizar o oxigênio de modo adequado20.
O choque é tipicamente associado com a evidência clínica de perfusão tecidual inadequada ao exame
físico. Os três órgãos facilmente acessíveis à avaliação clínica da perfusão tecidual são a: pele (grau de
perfusão cutânea comprometido – teste do refil capilar); rins (produção de urina diminuída); e cérebro
(estado mental afetado).

45.2. CLASSIFICAÇÃO
A tarefa de classificar os estados de choque segue objetivos didáticos. Independente da etiologia, o
evento fisiopatológico primário no choque, como visto em seu conceito, é a hipoperfusão tecidual, levan-
do à hipóxia, à acidose e à disfunção orgânica. Desta maneira, é útil considerar o choque como um efeito
direto do evento precipitante nas variáveis de perfusão tecidual e hipóxia celular (pressão arterial média,
pressões de enchimento, transporte de oxigênio aos tecidos etc.), bem como a doença resultante dessa
hipoperfusão causadora deste insulto, como uma síndrome.
Deve-se salientar a impossibilidade de qualquer divisão classificatória fornecer uma definição fisiopato-
lógica totalmente adequada, estanque e definitiva para os diversos quadros de choque.
Embora seja possível classificar-se o choque pelo evento inicial que o desencadeia, seus diferentes ti-
pos podem coexistir em uma mesma situação clínica devido a uma variedade de complicações possíveis,
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tais como isquemia esplâncnica, permeabilidade capilar alterada, vasodilatação, hipoperfusão coronaria-
na, depressão miocárdica e produção e liberação de substâncias vasoativas etc.
A. Thal, em 1967, classificou o choque, de maneira etiológica e pouco se modificou desde então21.
Assim, tradicionalmente, levando em consideração a doença, a etiologia que resultou na síndrome do
choque, ele pode ser classificado em seis categorias principais: hipovolêmico, obstrutivo extracardíaco,
cardiogênico, séptico, anafilático e neurogênico22.
Como foi visto, o choque pode ser também categorizado pelo seu impacto nas variáveis de perfusão do
paciente. Essa classificação não é tão categórica como a etiológica, que qualifica o choque em defeitos
quantitativos nas variáveis hemodinâmicas. Defeitos quantitativos são aqueles que reduzem (hipodinâmi-
cos) ou elevam (hiperdinâmicos) a perfusão tecidual em grande parte do tecido corporal.
Os choques hipodinâmicos caracterizam-se por um defeito direto por redução do fluxo sanguíneo.
Portanto, seria representado pelo choque cardiogênico, hipovolêmico e obstrutivo. São caraterizados por
comprometimento da função ventricular (queda do DC), aumento da resistência vascular periférica e a
taquicardia é comum.
Os choques hiperdinâmicos são caracterizados por taquicardia (bradicardia no neurogênico), função
ventricular normal ou pouco deprimida e diminuição da resistência vascular periférica.
As causas de choque hiperdinâmico são a sepse e a anafilaxia.
Classificação dos estados de choque22

Hipovolêmico

Choques hipodinâmicos Cardiogênico

Obstrutivo extracardíaco

Séptico

Choques hiperdinâmicos Anafilático

Neurogênico (?)

45.3. FISIOPATOLOGIA
Apesar do resultado final comum, que são a hipoperfusão tecidual e a hipóxia celular, cada choque tem
sua fisiopatologia específica.
O choque hipovolêmico, como o nome sugere, é consequência de depleção do volume intravascular.
Os sinais clínicos começam a ocorrer quando a depleção sobrevém em pelo menos 20%, o que resulta em
redução no retorno venoso e comprometimento direto da pré-carga do coração impactando o volume sis-
tólico. Com a diminuição no DC e pressão arterial observa-se a ativação do sistema nervoso através de
barorreceptores que utilizam vias dos nervos glossofaríngeo e vago, que inibem núcleos cerebrais e ativam
o centro vasomotor e simpático. O resultado é um aumento de 20 a 200 vezes na concentração sérica de
adrenalina e noradrenalina. As catecolaminas circulantes em excesso levam a um aumento compensatório
na frequência cardíaca e na resistência vascular sistêmica. Além disso, a concentração de angiotensina II
eleva-se em cerca de quatro vezes.
A resposta catecolaminérgica leva ao desvio de sangue dos órgãos menos nobres (rins, pulmões, in-
testinos, fígado, pele e tecido celular subcutâneo etc.) em detrimento aos órgãos considerados nobres
(cérebro e coração).
Essa resposta catecolaminérgica também induz a desvios metabólicos, especialmente no fígado
e nos músculos. Nestes tecidos leva à glicogenólise e neoglicogênese, o que permite a elevação dos
níveis de glicose.
Observa-se concomitantemente aumento dos hormônios contrainsulinares como glucagon, glicocorti-
costeroides, mineralocorticoides e de mediadores inflamatórios23-25.(Figura- 45.1).

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Figura 45. 1 – Reposta endócrino-metabólica e inflamatória ao estresse (adaptado de Ball, D. (2015). Meta-
bolic and endocrine response to exercise: sympathoadrenal integration with skeletal muscle. J Endocrinol
224(2): R79-95)
A velocidade de instalação da síndrome tem relação direta com a perda volêmica. A frequência cardía-
ca prevê grosseiramente o grau de perda de volume. Por exemplo, uma FC acima de 150 bpm está associa-
da a perdas de até 40% da volemia e alta mortalidade. Os exemplos típicos são sangramentos volumosos,
diarreia e vômitos copiosos ou poliúria por diabetes insipidus não tratado. O organismo reage com essa
resposta homeostática preservando ao máximo o fluxo aos órgãos vitais, como o cérebro e coração, porém
os fenômenos deletérios continuam na microcirculação. (Figura-45.2)

Figura 45.2 – Fisiopatologia do choque hipovolêmico (adaptado de Baskett, P. J. (1990). ABC of major trauma.
Management of hypovolaemic shock. BMJ 300(6737):1453-1457)

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P. J. Basket, em 1990, popularizou a estimativa da perda sanguínea, em pacientes adultos, posterior-
mente adotada pelo curso Advanced Trauma Life Support (ATLS)23. Quadro 45.1.
Quadro 45.1 – Avaliação da perda sanguínea (adaptado de Baskett, P. J. (1990). ABC of major trauma. Mana-
gement of hypovolaemic shock. BMJ 300(6737): 1453-145723)

As apresentações hemodinâmicas importantes de um estado de choque, e, portanto, que devem ser


inicialmente avaliadas seriam: o débito cardíaco (DC), pressão arterial média sistêmica (PAS ou PAM – pres-
são arterial média), pressão da artéria pulmonar (PAP), resistência vascular sistêmica (RVS), resistência
vascular pulmonar (RVP), pressão de enchimento do ventrículo direito (PVC – pressão venosa central),
pressão de enchimento do ventrículo esquerdo (PCP – pressão capilar pulmonar).(Figura-45.3) 26

Figura 45.3 – Esquemas das principais variáveis da hemodinâmica que são analisadas no estado de choque:
DC, PAS, PAP, RVS, RVP, PVC, PCP. No polígono (estrela) o centro corresponde a 0% e a ponta, a 100% da
variável hemodinâmica em tela (adaptado de De Andrade, J. S. A. e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos
estados de choque. Choque. C. Gallucci. Rio de Janeiro: Publicações Médicas, p. 17-26)

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O quadro hemodinâmico de um choque hipovolêmico pode ser resumido como: pressões de enchimento
direita e esquerda baixas (PVC e PCP – baixas), pressão arterial sistêmica baixa (PAS baixa), pressão arte-
rial pulmonar baixa (PAP baixa), DC baixo (DC baixo), resistência vascular sistêmica elevada (RVS elevada)
e resistência vascular pulmonar usualmente baixa (RVP usualmente baixa) (Figura 45.426).

Figura 45.4 – Quadro hemodinâmico de um choque hemorrágico, em que se observam DC baixo, PAS baixa,
PAP baixa, RVS elevada, RVP usualmente baixa, PVC baixa, PCP baixa (adaptado de De Andrade, J. S. A. e
Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C. Gallucci. Rio de Janeiro: Publicações
Médicas, p. 17-26)

O choque cardiogênico resulta de uma deficiência primária da bomba cardíaca. A diminuição na con-
tratilidade do músculo cardíaco (inotropismo) leva à redução primária do fluxo sanguíneo (DC) e conse-
quente aumento nas pressões de enchimento do mesmo devido à retenção ao fluxo. Após estes eventos,
a resposta da homeostase do organismo é semelhante à do choque hipovolêmico. A diminuição no DC e
pressão arterial sistêmica induz a ativação do sistema nervoso. A resposta simpática prioriza o fluxo para
os órgãos nobres (cérebro e coração) em detrimento dos menos nobres (rins, pulmões, intestinos, múscu-
los etc.) com aumento da resistência vascular sistêmica.
Os quadros cardiogênicos podem ser também decorrentes de falhas de cronotropismo (bradicar-
dia intensa) e não apenas no inotropismo, ou em ambos. As causas mais prevalentes do choque car-
diogênico são: insuficiência coronariana, bradiarritmias cardíacas, valvulopatias graves e os estados
terminais da sepse27. O quadro hemodinâmico do choque cardiogênico é: pressões de enchimento
direita e esquerda elevadas (PVC e PCP – elevadas), pressão arterial sistêmica baixa (PAS baixa),
pressão arterial pulmonar elevada (PAP elevada), DC baixo (DC baixo), resistência vascular sistê-
mica elevada (RVS elevada) e resistência vascular pulmonar usualmente elevada (RVP usualmente
elevada) (Figura-45.526).
A mortalidade geral em síndrome coronariana aguda (SCA) caiu significativamente nas últimas décadas,
de 10,4% em 1990 para 6,3% em 200628. A melhoria na sobrevida dos pacientes com síndrome coronária
aguda pode ser atribuída, em parte, aos avanços na farmacologia e intervenções mecânicas. Em muitas
dessas terapias o alvo é a prevenção do choque cardiogênico, uma complicação relativamente comum de
SCA, com uma taxa de mortalidade associada entre 50% a 80%27.
Os distúrbios obstrutivos resultam de um bloqueio mecânico ao fluxo sanguíneo na circulação pulmonar
ou sistêmica. Este tipo de choque também é chamado, erroneamente, de obstrutivo extra cardíaco, teria
como objetivo diferenciá-lo da falência do músculo cardíaco uma vez que o perfil hemodinâmico é muito
semelhante entre ambos.
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Figura 45.5 – Quadro hemodinâmico do choque cardiogênico, em que se observam DC baixo, PAS baixa, PAP
elevada, RVS elevada, RVP usualmente elevada, PVC elevada, PCP elevada (adaptado de De Andrade, J. S. A.
e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C. Gallucci. Rio de Janeiro: Publica-
ções Médicas, p. 17-26)
Uma das causas mais comuns é a embolia pulmonar maciça ou submaciça. Estas produzem um bloqueio
significativo da circulação pulmonar, através da formação de coágulos nas artérias pulmonares e, indire-
tamente, pela liberação de agentes vasoconstritores, em que se destaca o tromboxane A2. Outras cau-
sas seriam o tamponamento cardíaco e o pneumotórax hipertensivo, nessas situações existe importante
restrição mecânica à pré-carga ventricular direita, causando uma acentuada redução do fluxo sanguíneo.
O quadro hemodinâmico do choque cardiogênico é: pressões de enchimento direita e esquerda eleva-
das (PVC e PCP – elevadas), pressão arterial sistêmica baixa (PAS baixa), pressão arterial pulmonar eleva-
da (PAP elevada), DC baixo (DC baixo), resistência vascular sistêmica elevada (RVS elevada) e resistência
vascular pulmonar usualmente elevada (RVP usualmente elevada) (Figura 45.626).

Figura 45.6 – Quadro hemodinâmico do choque obstrutivo semelhante ao cardiogênico, em que se observam
DC baixo, PAS baixa, PAP elevada, RVS elevada, RVP usualmente elevada, PVC elevada, PCP elevada (adapta-
do de De Andrade, J. S. A. e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C. Gallucci.
Rio de Janeiro: Publicações Médicas, p. 17-26)

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O choque cardiogênico pode ser definido também conforme as variáveis hemodinâmicas sumarizadas
no Quadro 45.227.
Quadro 45.2 – Variáveis hemodinâmicas que definem um choque cardiogênico

O choque hiperdinâmico, também chamado de distributivo, frequentemente é observado como conse-


quência da sepse ou da anafilaxia.
A apresentação do quadro séptico é complexa pois envolve um entendimento temporal. No paciente
séptico em uma fase precoce, devido à febre, vasodilatação com o aumento da permeabilidade capilar,
observa-se uma diminuição absoluta e/ou relativa do volume intravascular. Então observa-se um quadro
importante de hipovolemia, que muitas vezes mascara o quadro hiperdinâmico da sepse, apresentando-
-se, portanto, com uma face hipodinâmica.
Com a infusão de líquidos, pode-se então ser observada com mais certeza a fase hiperdinâmica. Nessa
etapa a depressão miocárdica é mascarada pela acentuada diminuição na resistência vascular sistêmi-
ca, permitindo uma performance elevada do coração. Contudo, se a pré-carga for restaurada de forma
inadequada, o decréscimo no DC, ocasionado pela disfunção miocárdica da sepse, resultará na piora da
perfusão tecidual. É comum neste estágio uma inadequação entre a necessidade (demanda) tecidual de
oxigênio e a oferta local do mesmo. Dessa forma, observa-se o tecido com fluxo sanguíneo elevado em
termos numéricos, porém insuficientes para a demanda metabólica, o que causa um metabolismo anaeró-
bio e piora da disfunção tecidual.
Nas fases finais do choque séptico, a depressão miocárdica é intensa, o quadro hemodinâmico é então
de um choque cardiogênico (Figura 45.726).

Figura 45.7 – Quadro hemodinâmico do choque distributivo (séptico após a reanimação volêmica ou anafiláti-
co), em que se observam DC elevado, PAS baixa, PAP variada, RVS baixa, RVP variada, PVC baixa, PCP baixa
(adaptado de De Andrade, J. S. A. e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C.
Gallucci. Rio de Janeiro: Publicações Médicas, p. 17-26)

Ponto 45 - Choque | 1003


Na anafilaxia (choque anafilático) ocorre liberação intensa de um grande número de substâncias vasoa-
tivas, fenômeno secundário à reação antígeno-anticorpo tipo I com ativação de células com papel impor-
tante na inflamação, como os mastócitos e basófilos, mediada pela imunoglobulina E (IgE). Na sequência
ocorre a liberação de uma quantidade desproporcional de citocinas e de outros mediadores, incluindo
histamina, substância P, fator ativador de plaquetas, fator de necrose tumoral alfa, interleucina-1, prosta-
glandina D2 e leucotrienos C4 e D4. Cada um destes contribui para a vasodilatação, aumento da permea-
bilidade vascular, e inflamação aguda que conduz à urticária29.
No choque anafilático, após a exposição ao gatilho, ocorre o seu desenvolvimento dentro de minutos a ho-
ras. Causa o envolvimento da pele e mucosas (por exemplo, erupções cutâneas, urticária generalizada, pruri-
do, rubor, angioedema e edema de laringe). Pelo menos um dos seguintes sintomas ou sinais estão presentes:
evidência de comprometimento respiratório (por exemplo, dispneia, tosse, dificuldade respiratória, chiado,
estridor); hipotensão arterial ou evidência de disfunção orgânica final (por exemplo, síncope, hipotonia, incon-
tinência urinária). A hipotensão arterial relaciona-se com a intensa vasodilatação arteriolar e venular, quando
se observa importante diminuição da resistência vascular sistêmica e diminuição no retorno venoso.
Nas fases precoces, usualmente o débito encontra-se elevado, contudo pode-se associar o componente
hipovolêmico devido à perda intensa de líquidos para o espaço intersticial (edema) e diminuição no retor-
no venoso.
O exame físico de um paciente em choque, assim como a anamnese, pode revelar a causa deste em
muitos casos.
O paciente pode encontrar-se agitado como no estado de coma, ficando na dependência da intensi-
dade do hipofluxo cerebral. A piora da consciência ou sua melhora pode ser utilizada como um método
de acompanhamento.
Achados associados como febre ou hipotermia podem indicar choque séptico, ou efeito de alguma
substância que cause distermia. Bradicardia sugere intoxicação por drogas, bloqueio cardíaco, infarto do
miocárdio ou estado agonal do choque. Taquicardia sustentada com sudorese fria e pele pálida, devido à
extrema atividade simpática, sugerem choque hemorrágico ou cardiogênico. A existência ou não de sinais
congestivos pulmonares ou periféricos pode auxiliar na diferenciação entre os dois casos. Na presença de
um choque obstrutivo pode-se também encontrar sinais específicos de represamento sanguíneo ao nível
da obstrução e redução do fluxo a montante. Cianose sugere obstrução cardiovascular ou choque cardio-
gênico. Taquipneia ocorre cedo no choque já que os quimiorreceptores são estimulados pela queda do
pH, ocorrendo hiperventilação em uma tentativa de diminuir a PaCO2. Após a verificação dos sinais vitais
e exame do paciente e de se obter os dados de anamnese, é realizado um exame físico detalhado. Evi-
dências de trauma, odor de álcool ou outras toxinas, assim como sinais de infecção devem ser particular-
mente procurados. No exame cardiovascular se deve estar atento para o abafamento de bulhas, sugerindo
tamponamento cardíaco e para os sopros cardíacos, sugestivos de etiologia cardíaca. A ausculta pulmonar
pode revelar edema pulmonar por disfunção ventricular esquerda.
Murmúrio vesicular diminuído pode ser a única manifestação de um pneumotórax hipertensivo. Sibilos po-
dem ser manifestações de obstrução de via aérea como causa de choque anafilático. Crepitações localizadas
podem indicar a possibilidade de um processo infeccioso pulmonar como causa de um choque séptico. O ab-
dome pode revelar especificamente a presença de peritonite ou evidências de aneurisma de aorta. O exame
neurológico pode auxiliar na avaliação do comprometimento neurológico decorrente do estado de choque.
Todas essas alterações clínicas podem auxiliar no diagnóstico da causa do choque e na sua conse-
quente classificação, estas classificações são particularmente importantes na definição do subsequente
tratamento indicado.

45.4. MONITORIZAÇÃO
A monitorização de um paciente crítico, como no choque, envolve a monitorização clínica, o uso de
determinados dispositivos minimamente invasivos, cateteres invasivos e marcadores bioquímicos.
Monitorização Clínica do Paciente
Na monitorização clínica, recomenda-se a medição repetida da frequência cardíaca, pressão arterial,
temperatura corporal e variáveis do exame físico como: sinais de vasoconstrição da pele (presente ou
1004 | Bases do Ensino da Anestesiologia
ausente), produção de urina (normal ou diminuída) e estado mental (normal, agitado, confuso, obnubila-
do ou comatoso). É importante não usar uma única variável (para o diagnóstico, a monitorização e/ou o
tratamento do choque).
Esforços devem ser feitos para identificar o tipo de choque, através de uma adequada história clínica
e exame físico e para direcionar a terapia de suporte focada em protocolos definidos. Mesmo a presença
de hipotensão arterial (definida como PAS < 90 mmHg, PAM de < 70 mmHg [65 mmHg como consideram
outros autores] ou diminuição de > 40 mmHg a partir da linha de base), comumente presente, não devem
ser empregada como monitorização única. As alterações dessas pressões são tardias e pouca relação têm
com o prognóstico (Figura 45.8).

Figura 45.8 – Monitorização clínica do paciente em choque

Monitorização Hemodinâmica
A monitorização hemodinâmica é capital para o cuidado da maioria dos pacientes em choque.
Tornou-se fundamental e onipresente na prática da medicina intensiva. As técnicas de monitoriza-
ção moderna são capazes de identificar padrões fisiológicos distintos e específicos para cada estado
de choque, como já foi apresentado, e também podem monitorar a resposta a terapias destinadas a
reverter essas anormalidades. A meta primária da monitorização hemodinâmica é avaliar a função
cardiopulmonar, a reserva cardiovascular, a adequação do fluxo sanguíneo e, por fim, o fornecimento
de oxigênio para os tecidos e, se este for considerado inadequado, monitorar o impacto de terapias
dirigidas a restaurar as insuficiências.

Monitorização Hemodinâmica Básica


A monitorização hemodinâmica básica necessária para identificação, monitorização e tratamento do
choque inclui a monitorização clínica do paciente como: história clínica e exame físico, em especial os
sinais vitais, tais como: frequência cardíaca (FC); pressão arterial não invasiva (PNI); frequência respirató-
ria (FR); temperatura da pele (T); refil capilar e estado da consciência (escala de Glasgow). Esses dados
clínicos devem ser associados com monitores não invasivos, como débito urinário, cardioscopia, oximetria
de pulso (SaO2) e de marcadores bioquímicos, como o nível de lactato no sangue, acidose metabólica,
consumo de bases etc.30.
No entanto, essa abordagem anterior, hemodinâmica básica, vem sendo repetidamente apontada como
insuficiente e imprecisa para a avaliação correta e identificação de choque oculto ou compensado, espe-
cialmente no paciente saudável ou quando o status cardiopulmonar muda rapidamente.

Ponto 45 - Choque | 1005


Marcadores bioquímicos de hipoperfusão tecidual (por exemplo, lactato, acidose metabólica, que-
da da SvcO2) podem ser facilmente obtidos e estão comprometidos no choque, indicando hipoperfusão
tecidual, mesmo nos pacientes com choque oculto, sem hipotensão arterial definida ou outros sinais
clínicos evidentes30,31.
Apesar da interpretação da lactatemia ser dificultosa e controversa, inúmeras evidências têm aponta-
do nitidamente aumento na mortalidade e complicações nos pacientes politraumatizados, em choque e
sépticos na presença de lactato elevado (hiperlactatemia).
A hiperlactatemia pode sinalizar perfusão inadequada ou indicar mau prognóstico. A etiologia da hi-
perlactatemia é multifatorial:
• aumento da glicólise anaeróbia (disóxia celular);
• aumento da glicólise aeróbia (estados hipermetabólicos);
• uso de catecolaminas, como na reanimação cardiopulmonar.
Na glicólise, que ocorre em todos os tecidos, a glicose é oxidada em piruvato ou lactato. No fígado e
nos rins, ocorrem a captação do lactato e sua conversão à glicose no ciclo de Cori (gliconeogênese). Em
condições normais, são produzidos 0,8 a 1 mmol de lactato.kg-1.h-1. A concentração sérica normal varia de
0,75 a 1 mmol.L-1. O aumento do lactato sanguíneo pode ocorrer com ou sem acidose metabólica conco-
mitante. A hiperlactatemia aparece nas situações nas quais a produção excede a utilização.
Pode-se classificar os estados de hiperlactatemia em:
Tipo A – associada à má perfusão tecidual
• Choque.
• Isquemia mesentérica.
• Intoxicação por monóxido de carbono.
• Anemia ou hipoxemia grave com disfunção cardiovascular.
Tipo B – não associada à má perfusão tecidual
• Sepse.
• Insuficiência renal.
• Insuficiência hepática.
• Malária.
• Cólera.
• Neoplasia maligna.
• Exercício físico intenso.
• Convulsões.
• Hipoglicemia.

Nos estados de choque, o clareamento do ácido láctico é mais demorado (vida média de 18 horas),
enquanto nos estados onde há aumento da demanda de oxigênio (exercício intenso, convulsões) o clarea-
mento é rápido.
No choque hipovolêmico e cardiogênico, em decorrência das lesões isquêmicas do fígado e dos rins, o
clareamento do lactato é menor que no choque séptico.
No choque, a quantidade de lactato produzida correlaciona-se com a magnitude da hipoperfusão, ou
seja, com o tamanho da dívida de oxigênio acumulada. Há correlação entre níveis de lactato permanente-
mente acima de 2 mmol.L-1 e aumento da mortalidade. A tendência do nível do lactato é melhor indicador
que os níveis absolutos isolados. Deve-se monitorar o nível sérico, com várias medidas nas primeiras 24 ou
48 horas. Se a tendência for decrescente, o tratamento está sendo efetivo; caso contrário, novas estra-
tégias devem ser consideradas.
Destaca-se que o lactato sérico maior do que 4 mmol.L-1, mesmo na ausência de hipotensão declarada,
reflete hipoperfusão tecidual ou inflamação esmagadora e é um mau sinal prognóstico32-35.

1006 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Monitorização Hemodinâmica Avançada
A monitorização hemodinâmica tem avançado a partir do exame físico e dessas variáveis hemodinâmicas
primárias. Medidas contínuas de pressão arterial (PAI) e de sua variação com a ventilação mecânica (va-
riação da pressão de pulso – VPP); do DC invasivo (DC por termodiluição obtido pelo CAP) ou minimamente
invasivo (DC obtido pelo contorno da onda de pulso); da oxigenação do sangue arterial e venoso misto (SaO2
e SvcO2) e de muitos outros são usados para monitorar melhor o paciente criticamente enfermo. As rápi-
das mudanças na estabilidade hemodinâmica do paciente em choque são mais facilmente reconhecidas e
tratadas mais precocemente com a monitorização avançada. É importante ressaltar que o monitoramento
contínuo dessas variáveis propostas tem permitido o desenvolvimento da hemodinâmica dirigida a um alvo
definido de reanimação e tratamento do choque (hemodynamic goal – directed resuscitation).
No entanto, a transição da monitorização hemodinâmica básica para a hemodinâmica avançada é arti-
ficial na melhor das hipóteses. Uma vez que muitos valores hemodinâmicos importantes, como a medição
contínua de formas de ondas arteriais e DC, são agora estimadas potencialmente com precisão utilizando
metodologias completamente ou pouco invasivas. Assim, separar a monitorização hemodinâmica básica
da avançada baseado unicamente na invasibilidade é enganosa.
Contudo, deve-se recordar que algumas ressalvas continuam verdadeiras. A mais importante é que, no
cenário de um choque grave, as medidas minimamente invasivas (alguns autores descrevem como não in-
vasivas31) da hemodinâmica podem ser menos precisas ou não apresentar mudanças rápidas na tendência
dinâmica como as medidas invasivas apresentam. Ainda assim, com a melhoria dos sistemas minimamente
invasivos, a capacidade de conhecer rapidamente a pressão arterial média sistêmica em tempo real e a
sua forma de onda, e calcular o DC e as suas variáveis derivadas, vem melhorando grandemente e abrindo
novas vanguardas nas possibilidades de diagnóstico e terapêuticas para o médico de cabeceira.
W. C. Shoemaker, em 1988, desenvolveu protocolos de reanimação dos pacientes gravemente enfermos
dirigidos ao fornecimento adequado ou acima do normal de oxigênio (transporte de oxigênio – DO2) para
sustentar o seu consumo pelas células em sofrimento (consumo de oxigênio – VO2)36, através da obtenção
de níveis de hemoglobina e do DC. O mesmo autor definiu as bases da interpretação da hemodinâmica dos
vários tipos de choque utilizando-se de polígonos.
Assim, na monitorização hemodinâmica avançada são necessários dispositivos invasivos que podem
medir esses parâmetros, especificamente, o cateter de artéria pulmonar (CAP) idealizado em 1970 por H.
J. Swan e W. Ganz37. O uso do CAP tem sido questionado desde sua introdução38 e estudos observacionais
têm rendido resultados conflitantes, através de vários pesquisadores proeminentes39 (Figura 45.9).

Figura 45.9 – Cateter de Swan-Ganz básico

A proposta mais comum é limitar o CAP para os pacientes de alto risco, como é o caso dos pacientes
em choque, especialmente os pacientes criticamente doentes para quem os dados mudarão a terapia ou
contribuirão para algoritmos protocolizados de tratamento com benefícios claros na literatura.

Ponto 45 - Choque | 1007


W. C. Shoemaker e cols.40, usando dados do CAP e seus elementos derivados, realizaram um marco
de estudo controlado e randomizado, comparando transporte de oxigênio aos tecidos (DO2) “supranor-
mal” com índice cardíaco elevado (IC > 4,5 L.min-1.m-2) com o tratamento padrão (sem CAP) em pacien-
tes de alto risco cirúrgico. Nos pacientes do grupo supranormal os objetivos idealizados foram atingidos
imediatamente no pré-operatório, utilizando infusões intravenosas de fluidos, transfusão de glóbulos
vermelhos e vasopressores/inotrópicos, e em seguida foram mantidos durante todo o período periope-
ratório. Essa meta dirigida de intervenção foi, portanto, “mais cedo” do que o “insulto fisiopatológi-
co”, que era a cirurgia em si. Notavelmente, os doentes do grupo supranormal diminuíram as taxas de
mortalidade, mas também diminuíram as complicações, tempo de permanência na UTI e hospital, como
também os custos.
Embora os resultados de W. C. Shoemaker tenham sido replicados em pacientes cirúrgicos de alto risco,
que eram “pré-otimizados” utilizando o estado “supranormal”40, uma série de testes posteriores falhou
em mostrar benefício e até alguns danos foram identificados quando aplicados após a expressão de insu-
ficiência dos órgãos estar presente pelo choque.
Esse sistema de monitorização, idealizado por Swan e Ganz, possibilita a medida direta e indireta de
inúmeras variáveis.
São medidas diretamente pelo CAP: pressão da artéria pulmonar (PAP), pressão venosa central (PVC),
pressão de oclusão da artéria pulmonar (POAP) e DC pelo método da termodiluição. Pode-se também
avaliar a pressão do átrio direito (PAD) e a pressão do ventrículo direito (PVD) através da manipulação
do cateter (introdução e recuo). As medidas indiretas são: a resistência vascular sistêmica (RVS), a re-
sistência vascular pulmonar (RVP), o volume sistólico dos ventrículos (VS), trabalho sistólico dos ventrí-
culos direito e esquerdo (TSVD, TSVE). Essas medidas são obtidas através de cálculo matemático. Cabe
ressaltar que os respectivos índices (variável indexada) correspondem a estas medidas corrigidas pela
superfície corpórea.
Pressões avaliadas pelo CAP são as que s seguem:
• Pressão venosa central (PVC)
É medida através do lúmen proximal do CAP, quando este se encontra localizado na veia cava. O signifi-
cado clínico representa a intensidade do retorno venoso, portanto, semelhante à pressão atrial direita.
• Pressão do átrio direito (PAD)
É medida através do lúmen proximal do CAP, quando localizado no átrio direito; na ausência de esteno-
se ou regurgitação tricúspide a PAD é uma estimativa da pressão diastólica final do ventrículo direito,
portanto da pré-carga (retorno venoso).
Em corações normais, a PAD é de 2 a 10 mmHg e sugere um volume intravascular adequado. Deve-se
considerar, no entanto, que em situações onde há alteração cardiorrespiratória, a relação entre vole-
mia e a PAD (PVC) é modesta.
Em corações normais a PAD é menor que POAP, mas em algumas situações clínicas podem ocorrer dis-
crepância entre elas; é o caso dos pacientes com isquemia ou hipertrofia do ventrículo esquerdo que
desenvolvem edema pulmonar cardiogênico e apresentam uma POAP acentuadamente alta e uma PAD
habitualmente normal.
Ao contrário, a PAD pode exceder a POAP no tromboembolismo de pulmão grave, infarto do ventrículo
direito ou regurgitação tricúspide.
• Pressão da artéria pulmonar (PAP)
A PAP é gerada pela contração ventricular direita e é dependente do volume de sangue ejetado na ar-
téria pulmonar durante a sístole ventricular e da resistência vascular pulmonar. A PAP é medida pelo
lúmen distal do CAP.
Como o fluxo através da artéria pulmonar é quase completo ao final da diástole, a PAP é normalmente
apenas de 1 a 4 mmHg maior que a POAP. O valor normal da PAP sistólica varia de 15 a 25 mmHg, que
é aproximadamente a mesma pressão do ventrículo direito. O valor normal da PAP diastólica é de 8 a
15 mmHg.

1008 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Quando a PAP está elevada é útil calcular o gradiente PAPd-POAP, que se for maior que 5 mmHg é
indicativo de aumento da resistência vascular pulmonar, situação em que pode ocorrer insulto pul-
monar agudo, sepse, tromboembolismo pulmonar, PEEP elevada e doença pulmonar obstrutiva crô-
nica preexistente.
• Pressão de oclusão da artéria pulmonar (POAP) ou pressão capilar pulmonar (PCP)
É obtida quando o CAP insuflado obstrui um ramo da artéria pulmonar, interrompendo o fluxo anteró-
grado, seu valor normal é de 6 a 12 mmHg.
A POAP, em corações normais, tem correlação direta com a pressão diastólica final do átrio esquerdo,
em última análise, uma estimativa da pressão diastólica final do ventrículo esquerdo (PDFVE).
Por outro lado, uma queda na complacência miocárdica, secundária à isquemia ou hipertrofia pode
levar a uma discrepância entre a POAP e a PDFVE.
Quando há estenose mitral, por sua vez, a POAP superestima a PDFVE.
Os dois fatores, que mais profundamente afetam a relação entre a POAP e o volume diastólico
final do VE (VDFVE) são a redução na complacência ventricular esquerda e o aumento na pres-
são justacardíaca.
Individualmente, a POAP que representa a pré-carga ideal (POAP ~ PDFVE ~ VDFVE) é mais bem defini-
da pela avaliação da resposta hemodinâmica ao desafio de volume; após obtenção da primeira medida
é administrado bolus de cristaloide até um aumento na POAP de 3 a 5 mmHg, na sequência são reali-
zadas novas medidas das variáveis hemodinâmicas.
A POAP ideal pode ser definida como aquela onde já não houve alteração ou a alteração foi mínima no
volume sistólico/trabalho sistólico do VE, após a infusão de volume.
Em indivíduos normais, o enchimento ótimo ocorre com uma POAP em tomo de 10 a 12 mmHg.
Similarmente, durante a reanimação volêmica no choque séptico ou hipovolêmico a POAP ideal é fre-
quentemente maior ou igual a 14 mmHg. Em pacientes com infarto agudo do miocárdio a POAP deverá
ser mantida menor ou igual a 18 mmHg.
Devido ao fato de que inúmeros fatores podem afetar a relação entre a POAP e a pré-carga não se deve
eleger um determinado valor isolado como meta terapêutica para reanimação volêmica. Por exemplo,
quando o maior problema clínico é hipotensão e/ou oligúria, a resposta hemodinâmica à infusão de lí-
quidos deve sempre ser realizada, a despeito de uma POAP inicial normal ou alta, logicamente afastada
a presença de congestão pulmonar.
Por outro lado, em pacientes com injúria pulmonar aguda, sem hipotensão arterial sistêmica ou oligú-
ria, uma POAP normal/baixa poderá trazer benefício para a troca gasosa, sem necessariamente trazer
prejuízo para o desempenho cardíaco.
Formas das ondas de pressões avaliadas pelo CAP são as que se seguem.
A tomada de decisões à beira do leito, baseada apenas no número/valor isolado das pressões, é incom-
pleta e, muitas vezes, precipitada. A avaliação da forma das ondas de pressão é vital para o diagnóstico
e consequentemente o manejo adequado de várias situações clínicas subjacentes.
• Ondas da PAD
As ondas de PAD são caracterizadas por duas ondas positivas maiores (“a” “c” e “v”) e duas descen-
dentes negativas (“x” e “y”). A análise da forma da onda atrial começa com a identificação da onda P
no eletrocardiograma.
A primeira onda positiva na sequência da onda P do ECG é a onda “a” (atrial), que é resultado da sístole
atrial e é vista, usualmente, no início do complexo QRS. Após a onda “a” ocorre uma pequena elevação
pressórica conhecida como onda “c” a qual corresponde à sístole ventricular que promove o refluxo
fisiológico da válvula atrioventricular e seu abaulamento para o átrio. A onda “c” é seguida pelo des-
censo “x”, que representa o relaxamento atrial pós-sistólico.
Após o descenso “x” observa-se a onda “v” (ventricular) é resultado do enchimento passivo do átrio
durante a sístole ventricular e ocorre simultaneamente à onda T no ECG. Por fim, a redução na pressão
atrial, com a abertura da válvula tricúspide produz o descenso “y” (Figura-45.10).

Ponto 45 - Choque | 1009


Figura 45.10 – Ciclo cardíaco e as curvas de pressão do AD “a”, “c”, “x”, “v” e “y”

• Ondas de PAP
A onda de PAP é similar à onda de pressão arterial sistêmica, dividida em duas fases: sistólica e dias-
tólica. A sístole começa com a abertura da válvula pulmonar, resultando em rápida ejeção do sangue
dentro da artéria pulmonar. Na forma da onda isto é visualizado como um pico de aumento na pressão,
seguido por um decréscimo, quando o volume de sangue ejetado diminui.
Quando a pressão do ventrículo direito cai, a válvula pulmonar rapidamente se fecha, o que produz
um pequeno “nó” no alto da curva de pressão, chamado de nó dicrótico. O valor sistólico referido é do
pico de pressão (Figura 45.10).
A diástole segue-se ao fechamento da válvula pulmonar, durante este período não há nenhum fluxo do
ventrículo direito para o sistema pulmonar até a próxima sístole; o valor da pressão diastólica (PAPd)
medido, refere-se, dessa forma, à pressão diastólica final do ventrículo esquerdo, na ausência de doen-
ça pulmonar ou lesão mitral. A fase sistólica da PAP segue-se à despolarização ventricular e geralmente
a pressão sistólica ocorre junto com a onda T do ECG e a diastólica junto com o QRS.
• Ondas de POAP
O traçado da onda de pressão da POAP contém a mesma sequência de ondas e descensos do traçado
de onda de átrio direito, apenas ocorrendo mais tardiamente a relação ondas e traçado de ECG.
A onda “a” da pressão da POAP é produzida pela contração do átrio esquerdo e é seguida pelo descenso
“x” que reflete o relaxamento do átrio esquerdo após a sístole.
A onda “v” é produzida pelo enchimento final do átrio esquerdo; o declínio que sucede a onda “v” é o
descenso “y”, que representa a abertura da válvula mitral (Figura 45.10).
Como já exposto o CAP também fornece o DC pelo método da termodiluição.
O transporte de sangue oxigenado para os tecidos e a remoção dos produtos resultantes dos processos
metabólicos celulares dependem de uma complexa interação dos sistemas pulmonar e cardiovascular.
1010 | Bases do Ensino da Anestesiologia
O DC é a quantidade de sangue ejetado pelo coração por unidade de tempo, é reportado em litros/mi-
nuto e é produto da frequência cardíaca e do volume sistólico. O valor normal do débito para a média
dos adultos ao repouso é de 5 a 8 L.min-1.
DC = VS x FC
As variáveis que afetam o DC incluem idade, demanda de oxigênio, taxa metabólica, superfície corpo-
ral, gênero e postura.
O mais potente determinante do débito é a demanda metabólica de oxigênio. Quando a demanda au-
menta, o débito deve aumentar de forma a compensar a exigência fisiológica, assim como há queda no
débito quando a demanda diminui.
Sepse, trauma, cirurgias de grande porte e exercício, por exemplo, aumentam o metabolismo e con-
sequentemente o DC.
Pacientes criticamente doentes, geralmente necessitam de um débito 50% maior que o normal devido
ao aumento da necessidade metabólica.
Mulheres, habitualmente têm uma massa muscular menor e mais tecido gorduroso que os homens. O
tecido adiposo é menos vascularizado e metabolicamente menos ativo que o tecido esquelético, con-
sequentemente, o DC nas mulheres é em torno de 10% menor que nos homens.
O DC é maior na criança e diminui com a progressão da idade, assim como o DC medido na posição su-
pina é em torno de 20% menor que na posição ereta.
Quanto maior a massa muscular, maior será o DC necessário para perfundi-la, portanto, varia conside-
ravelmente de acordo com a superfície corporal.
Os determinantes primários do DC são: inotropismo, pré-carga, pós-carga e ritmo cardíaco.
Dividir o DC pela área de superfície corporal é a maneira de ajustar o DC à variação individual do ta-
manho corporal, o índice cardíaco (IC) é o DC indexado.
IC = DC/ASC
A área de superfície corporal é obtida utilizando-se a tabela de Dubois, que considera a altura e o peso
ideal ou usual do indivíduo. O valor normal do IC é 3 a 3,5 L.min-1.m-2.
O IC é, provavelmente, a medida mais importante para avaliar o estado hemodinâmico/perfusional, por
sua participação no cálculo de outras variáveis hemodinâmicas e de oxigenação (resistência vascular
sistêmica, resistência vascular pulmonar, oferta de oxigênio etc.).
O IC pode diminuir aproximadamente 30% antes de uma queda na pressão arterial sistêmica (PA) ser
detectada, desta forma a monitorização invasiva possibilita ao clínico prevenir a queda acentuada da
pressão, evitando hipoperfusão de órgãos.
Geralmente, uma queda súbita no IC menor que a metade do valor normal é passível de sobrevida e
um índice abaixo de 1 L.min-1.m-2 não é compatível com a vida.
Pacientes com shunts intracardíacos têm diferença nos volumes de fluxo sanguíneo pulmonar e sistê-
mico e na saturação de oxigênio nas câmaras cardíacas, portanto, apresentam efeitos de refluxo na
medida do DC e, assim, do IC.
A presença de shunt da esquerda para direita, por defeito atrial ou ventricular acarreta uma sobrecar-
ga de fluxo para o ventrículo direito; o fluxo sanguíneo pulmonar torna-se maior que o sistêmico, ocor-
rendo também mistura de sangue oxigenado e não oxigenado no coração direito. Como consequência
a amostra de sangue venoso misto obtido da artéria pulmonar tem uma saturação de oxigênio acima
da esperada.
Shunts da direita para esquerda são associados à queda de fluxo sanguíneo pulmonar e saturação ar-
terial de oxigênio subnormal, devido à mistura de sangue venoso e arterial no coração esquerdo que é
clinicamente evidenciada pela cianose central.
Qualquer método invasivo da medida do débito através de fluxo pela circulação pulmonar tem sua in-
terpretação baseada no pressuposto de que o fluxo sistêmico e pulmonar é igual. A presença do shunt
toma os dois fluxos desiguais, invalidando o método.
Ponto 45 - Choque | 1011
A medida do DC pode não ser representativa do fluxo através do sistema cardiovascular em pacientes
portadores de lesões valvulares insuficientes, porque o fluxo regurgitado é imensurável.
A insuficiência tricúspide é associada com recirculação sanguínea significativa nas câmaras cardíacas
direitas, portanto, o método de termodiluição é completamente invalidado.
Em pacientes com insuficiência mitral grave, o fluxo regurgitado pode contaminar a amostra de sangue
obtida da artéria pulmonar e invalidar o método também.
Variáveis hemodinâmicas indiretas (calculadas):
• Volume sistólico (VS) e índice sistólico (IS)
O VS é a quantidade de sangue ejetado pelo coração a cada batimento cardíaco e varia de 60 a 100
mL. Uma redução no VS é o defeito fundamental na falência sistólica (alteração na contratilidade) se-
cundária à doença isquêmica miocárdica, miocardiopatia ou depressão miocárdica relacionada a drogas
ou outros depressores.
O VS é obtido à beira do leito, de forma indireta, utilizando-se o DC como base e dividindo-se o mesmo
pela frequência cardíaca.
VS = DC/FC
É determinado pelo grau de encurtamento da fibra miocárdica e da redução da circunferência do tama-
nho ventricular; o VS, portanto é afetado pela pré-carga, pós-carga e contratilidade miocárdica, como
já foi apresentado.
O índice sistólico é obtido pela substituição do DC pelo IC, na fórmula descrita acima. Seu valor normal
é de aproximadamente 38 a 50 mL.bat-1.m-².
IS = IC/FC
• Trabalho sistólico do ventrículo esquerdo (TSVE) e índice de trabalho sistólico do ventrículo
esquerdo (ITSVE).
• Trabalho sistólico do ventrículo direito (TSVD) e índice de trabalho sistólico do ventrículo di-
reito (ITSVD).
A contratilidade miocárdica é calculada através do TSVE e do TSVD. A contratilidade refere-se ao esta-
do inotrópico do miocárdio ou mais especificamente à velocidade de encurtamento da fibra miocárdica
durante a sístole. O TSVE reflete o desempenho do VE, através do cálculo da quantidade de trabalho
realizado pelo ventrículo.
TSVE = (PAM – PAE) x VSVE x 0,00136
Quando se aplica na fórmula o IVSVE no local do VSVE, tem-se o índice de trabalho sistólico do VE (ITSVE).
ITSVE = (PAM – PAE) x IVSVE x 0,00136
Os valores normais do TSVE e ITSVE são respectivamente de 60 a 100 g.m.bat-1 e 50 a 80 g.m.m-².bat-1.
A redução da contratilidade é associada com redução da ejeção e diminuição do trabalho sistólico do
VE, pode ocorrer por hipovolemia, isquemia miocárdica, infarto do miocárdio, sepse, choque cardiogê-
nico, estenose aórtica, após uso de anestésicos ou drogas cardiodepressoras.
O mesmo raciocínio aplica-se ao trabalho sistólico do ventrículo direito (TSVD).
TSVD = (PAP – PVC) x VSVD x 0,00136
Quando se aplica na fórmula o IVSVD no local do VSVD tem-se o índice de trabalho sistólico do VD (ITSVD).
ITSVD = (PAP – PVC) x IVSVD x 0,00136
Os valores normais do TSVD e ITSVD são respectivamente de 8 a 16 g.m.bat-1 e 5 a 10 g.m.m-².bat-1.
São fatores que aumentam o trabalho sistólico do VD, a hipervolemia e o tromboembolismo pulmonar
com cor pulmonale.
Defeitos no septo ventricular, infarto do ventrículo direito e cor pulmonale grave, por sua vez, dimi-
nuem o TSVD.

1012 | Bases do Ensino da Anestesiologia


• Resistência vascular sistêmica (RVS) e o índice de resistência vascular sistêmica (IRVS).
• Resistência vascular pulmonar (RVP) e o índice de resistência vascular pulmonar (IRVP).
A resistência ao fluxo através da circulação pulmonar ou sistêmica é o resultado do atrito entre o san-
gue e a parede vascular. O diâmetro dos vasos sanguíneos e é o principal fator determinante da resis-
tência ao fluxo.
Se há vasoconstrição das artérias pulmonares ou sistêmicas, a pressão arterial média deve aumentar
para manter o fluxo, desta forma o volume de fluxo sanguíneo distal a uma circulação em vasoconstri-
ção pode diminuir por basicamente dois mecanismos. No primeiro, o ventrículo envolvido não consegue
aumentar a pressão sistólica, proporcionalmente ao aumento da resistência vascular, com desenvolvi-
mento de falência circulatória. No segundo a resistência vascular está localmente aumentada (espas-
mo coronariano, vasoespasmo cerebral e periférico), neste caso apenas o tecido distal à artéria com
vasoconstrição estará com a perfusão comprometida.
A RVS representa a média das resistências ao fluxo sanguíneo através de toda a circulação sistêmica. É
obtida de forma indireta, ela é calculada através da fórmula que se segue.
RVS = [(PAM – PVC) x 80]/DC
A RVS é expressa em unidade métrica: dinas.s-1.cm-5 e 80 é o fator de conversão de mmHg (relativo às pres-
sões) e L.m-1 (relativo ao DC). O seu valor normal é de aproximadamente 800 a 1.200 dinas.s-1.cm-5.
Se utilizar o IC, no lugar do DC, teremos o IRVS. O seu valor normal é perto de 1.900 a 2.400 dinas.s-1.cm-5.m-2.
IRVS = [(PAM – PVC) x 80]/IC
O cálculo da resistência tem valor diagnóstico, na identificação do tipo de choque e valor terapêutico,
como linha guia na administração de drogas vasoativas.
Situações clínicas que diminuem a resistência incluem a terapia vasodilatadora, sepse, cirrose hepáti-
ca, anemia, choque anafilático e neurogênico.
O aumento da RVS é observado na hipovolemia, hipotermia, síndromes de baixo DC e secreção aumen-
tada de catecolaminas.
Ao calcular-se a resistência vascular é importante considerar que o valor obtido representa a média das
várias resistências da totalidade da circulação sistêmica, portanto não reflete as diferenças regionais
de fluxo e resistência.
A RVP representa a média das resistências ao fluxo sanguíneo através da circulação pulmonar. É obtida
de forma indireta pelo cálculo da fórmula a seguir.
RVP = [(PAP – POAP) x 80]/DC

A RVP é expressa em unidade métrica: dinas.s-1.cm-5 e 80 é o fator de conversão de mmHg (relativo às


pressões) e L.m-1 (relativo ao DC). O seu valor normal é menor que 250 dinas.s-1.cm-5.
Se utilizar o IC, no lugar do DC, teremos o IRVP. O seu valor normal é perto de 240 a 280 dinas.s-1.cm-5.m-2.
IRVP = [(PAP – POAP) x 80]/IC

A circulação pulmonar é caracteristicamente de baixa resistência e grande complacência.


Situações clínicas que podem aumentar a RVP, e por sua vez a pós-carga do ventrículo direito são o
tromboembolismo de pulmão maciço, edema pulmonar cardiogênico ou não, sepse, hipóxia, hiperten-
são pulmonar primária e algumas doenças cardíacas valvulares e congênitas.
O uso de fármacos vasodilatadores e a correção da hipoxemia podem ser fatores que reduzem a resis-
tência vascular pulmonar.
Por fim, cabe ressaltar que a utilidade do CAP vem diminuindo à medida que a saturação de oxigênio no
sangue venoso central (SvcO2) pode ser obtida continuamente a partir de meios menos invasivos como
os cateteres jugulares internos ou subclávia, desenvolvidos mais recentemente. Além disso, a introdu-
ção de técnicas “minimamente invasivas” dos monitores do DC também diminuiu a necessidade do CAP,
esse cateter é agora relativamente raro fora dos hospitais de ensino.
Ponto 45 - Choque | 1013
A necessidade de monitoramento contínuo da pressão da artéria pulmonar, da pressão capilar pulmo-
nar, SvO2 e DC, juntamente com a medida de volumes do ventrículo direito, ainda está indicada em
condições específicas, mas o uso genérico do CAP na monitorização de rotina do doente em choque é
mais raro nos dias de hoje.
Outra grande limitação do emprego do CAP é que embora as medidas das pressões possam oferecer
consideráveis informações que facilitam o atendimento destes pacientes, devido a grandes alterações
na fisiologia cardiorrespiratória desta população de doentes, a interpretação destas variáveis torna-se
problemática e frequentemente responsável por erros de decisão clínica.

Monitorização do Metabolismo do Oxigênio


A monitorização das variáveis de oxigenação tecidual é importante, pois é o foco central de insufi-
ciência no choque. A função primária dos pulmões e coração é gerar um fluxo de sangue oxigenado que
permita aos tecidos sustentarem o metabolismo aeróbico.
• Saturação venosa mista de oxigênio (SVcO2)
A SVcO2 é extremamente útil como um indicador da perfusão tecidual e permite uma referência indire-
ta do DC. A SVcO2 pode ser obtida de amostras de sangue repetidamente colhidas da porção distal do
CAP, ou alternativamente pode ser continuamente monitorizada através de cateteres modificados com
adição de fibra óptica, com capacidade de avaliar a SVcO2 continuamente.
Com o cateter colocado no lado arterial da circulação pulmonar, a SVcO2 representa a saturação de
oxigênio do sangue que retoma ao coração das veias sistêmicas: cava superior e inferior e seio corona-
riano. Sob condições de consumo de oxigênio habitual pelos tecidos e hemoglobina estável, uma queda
no débito cardíaco produzirá um aumento na extração de oxigênio nos tecidos e consequentemente
ocorrerá uma queda na saturação de oxigênio no sangue que retoma ao coração. O valor normal da
SVcO2 vai de 70% a 75%.
A queda na SVcO2 ocorre comumente durante a aspiração traqueal, por exemplo, além disto, aumenta
a demanda de oxigênio, principalmente se houver agitação, tosse ou resistência à aspiração. Eventos
pulmonares agudos, como pneumotórax ou tromboembolismo pulmonar, baixo DC, hemoglobina ou sa-
turação arterial baixas, também são responsáveis por queda na SVcO2.
São quatro as razões principais para medidas de SVcO2 acima do normal: primeiramente os tecidos não
são expostos ao fluxo de sangue devido à presença de shunt sistêmico ou intracardíaco; a hemoglobina
falha em descarregar o oxigênio em resposta a uma queda na SaO2; a distância entre capilares e células
aumentada por edema intersticial, o que prejudica a difusão do oxigênio e finalmente as células estão
mortas ou em sofrimento intenso, incapazes de utilizarem o oxigênio ofertado.
A SVcO2 aumentada é característica de paciente com choque séptico após a reanimação volêmica das
fases iniciais. As possíveis causas desta SVcO2 elevada incluem a presença de shunt arteriovenoso peri-
férico com vasodilatação periférica acentuada e, principalmente, defeito no nível celular da captação
e utilização de oxigênio (bloqueio mitocondrial).
Os pacientes em choque séptico que, após a reanimação volêmica inicial, apresentam-se com SVcO2
baixa (< 70%) já nas fases iniciais têm prognóstico pior com relação aos que apresentam SVcO2 mais
elevada (> 70%). Todos os esforços devem ser realizados para alcançar a SVcO2 maior que 70% (Early
Goal-Directed Therapy – EGDT)
• Conteúdo arterial de oxigênio (CaO2) e conteúdo venoso de oxigênio (CvO2)(41)
O conteúdo ou quantidade de oxigênio carreado pelo sangue arterial é a soma do O2 ligado à hemoglo-
bina com o O2 dissolvido no plasma. A quantidade de oxigênio ligada à hemoglobina é determinada pela
concentração total da hemoglobina no sangue e a percentagem de hemoglobina total combinada com
o oxigênio (SaO2), portanto, o conteúdo de oxigênio pode ser calculado através da fórmula a seguir:
CaO2 = Hb x 1,34 x SaO2 + PaO2 x 0,0031
CaO2 - conteúdo arterial de oxigênio (mg.dL-1)
Hg - concentração de hemoglobina no sangue (mg.dL-1)
1014 | Bases do Ensino da Anestesiologia
1,31 - constante de mL de oxigênio carreado por cada grama de Hb
SaO2 - saturação parcial de oxigênio da hemoglobina no sangue arterial (%)
PaO2 - pressão parcial de oxigênio no sangue arterial (mmHg)
0,0031 - constante de mL de oxigênio carreado por mL de plasma
O valor normal do CaO2 é 17 a 20 mg.dL-1 de sangue.
Caso seja utilizada amostra de sangue venoso da artéria pulmonar, calcula-se o conteúdo venoso de O2
aplicando a fórmula correspondente.
CvO2 = Hb x 1,34 x SvO2 + PvO2 x 0,0031
CvO2 - conteúdo venoso de oxigênio (mg.dL-1)
Hg - concentração de hemoglobina no sangue (mg.dL-1)
1,34 - constante de mL de oxigênio carreado por cada grama de Hb
SvO2 - saturação parcial de oxigênio da hemoglobina no sangue venoso (%)
PvO2 - pressão parcial de oxigênio no sangue venoso (mmHg)
0,0031 - constante de mL de oxigênio carreado por mL de plasma
O valor normal do CvO2 é de 12 a 15 mL.dL-1 de sangue.
A diferença entre os dois conteúdos de O2 (C(a-v)O2) é conhecida como diferença arteriovenosa de oxi-
gênio, é frequentemente utilizada como um indicador global de perfusão. O valor normal da C(a-v)O2
é de 4 a 6 mL.dL-1.
Mais importante que o valor absoluto da C(a-v)O2 são as direções das mudanças ocorridas nesta variável
durante o tratamento do paciente em choque.
Nos estados de sepse e choque séptico, devido ao consumo deficiente de oxigênio pelas células, obser-
va-se uma queda na C(a-v)O2 (shunt da microcirculação) com a SVcO2 elevada. No choque cardiogênico,
por outro lado, observa-se aumento nessa diferença, pois o baixo débito leva as células a extraírem ao
máximo o O2 oferecido.
• Transporte de O2 aos tecidos (DO2)41
O CaO2 de forma isolada não representa necessariamente a capacidade do sangue transportá-lo aos te-
cidos. É indispensável para uma avaliação mais adequada o acoplamento ao DC. O DO2 é obtido através
de cálculo a seguir.
DO2 = CaO2 x DC x 10
DO2 - transporte de O2 aos tecidos (mL.min-1)
CaO2 - conteúdo arterial de oxigênio (mL.dL-1)
DC - débito cardíaco (L.min-1)
10 - constante das unidades empregadas
Os valores normais do DO2 são de 950 a 1.150 mL.min-1. Quando se aplica na equação o IC no local do
DC, obtém-se o IDO2, cujos valores normais são de 500 a 600 mL.min-1.m-2.
A oferta de oxigênio do ar alveolar para a mitocôndria requer transporte através da membrana alvéo-
lo-capilar, transporte pelo sangue, difusão dos capilares para os tecidos e captação pelas células. Esse
processo requer a integração de coração, pulmão e microcirculação.
Portanto, o sistema de transporte deve incorporar mecanismos eficientes para manter suprimento de
oxigênio estável, apesar da grande flutuação na demanda de consumo e mecanismos adaptativos para
corrigir a falência eventual de algum componente do sistema.
No nível celular, um suplemento contínuo de oxigênio é necessário para o metabolismo aeróbico, para
a manutenção da integridade da membrana e das funções bioquímicas.
Exceto pela oxi-hemoglobina encontrada nas células musculares, o oxigênio não é armazenado nos
tecidos corporais. Quando a oferta de oxigênio é reduzida ou a energia utilizada pela célula (consu-
mo) excede a taxa de produção de ATP, o tecido passa a depender da via metabólica anaeróbica para
Ponto 45 - Choque | 1015
a produção de energia. Infelizmente, tal mecanismo resulta em acidose celular, através da produção
de ácido lático.
• Consumo de oxigênio (VO2)(41)
O VO2 é a quantidade de O2 necessária para que os tecidos mantenham o metabolismo aeróbico. O VO2
pode ser calculado a partir da equação que se segue:
VO2 = C(a – v)O2 x DC x 10
VO2 - consumo de O2 dos tecidos (mL.min-1)
C(a – v)O2 - diferença arteriovenosa de oxigênio (mL.dL-1)
DC - débito cardíaco (L.min-1)
10 - constante das unidades empregadas
Os valores normais do VO2 são de 200 a 250 mL.min-1. Quando se aplica na equação o IC no local do DC
obtém-se o IVO2, cujos valores normais são de 120 a 160 mL.min-1.m-2.
Normalmente ao repouso, o tecido consome aproximadamente 25% do oxigênio disponível. Durante
exercício ou outras formas de estresse, o consumo de O2 pode aumentar até a utilização de 75% do
oxigênio disponível (Figura 45.11)

Figura 45.11 – Dependência do VO2 diante do DO2


O consumo de oxigênio aumenta em inúmeras situações clínicas, intervenções terapêuticas e vários
outros estresses impostos aos pacientes hospitalizados, como infecção, febre, aumento do trabalho
respiratório etc.
O fato de o VO2 não aumentar, ante a demanda metabólica ou uma queda persistente no consumo, está
associado com o prognóstico reservado.
• Taxa de extração de oxigênio (TEO2)41
A taxa de extração de oxigênio é a fração da oferta de O2 que é utilizada e consumida, expressa pela
equação que se segue.
TEO2 = VO2/DO2 x 100

A TEO2 é expressa em % e o seu valor normal vai de 22% a 30%.


A célula requer um suprimento contínuo de energia para realizar suas funções como um órgão e manter
um adequado controle da permeabilidade da membrana.
Uma falência no suprimento de energia resulta em disfunção de órgão e morte celular, com consequen-
te perda de soluto e produtos do metabolismo através da membrana celular. A produção de energia é
o resultado final do metabolismo de vários nutrientes como glicose, gorduras e proteínas, sendo que
o consumo destes substratos resulta em fosforilação do difosfato de adenosina (ADP) em trifosfato de
adenosina (ATP), fosfato de alta energia. A geração de ATP ocorre na presença ou ausência de oxigênio,
1016 | Bases do Ensino da Anestesiologia
mas o metabolismo aeróbico é o método preferido para a obtenção de energia, uma vez que a quanti-
dade de ATP produzido é muito maior.
Na presença adequada de oxigênio na mitocôndria, energia é estocada sob a forma de ATP, que é pri-
mariamente formado por processo aeróbico. Este processo é responsável por 90% do consumo de oxi-
gênio e resulta em grande produção de ATP.
Durante a hipóxia, as células utilizam-se da glicólise para produzir ATP, a partir da glicose e do glico-
gênio, que são vias pouco eficientes, quanto à quantidade de trifosfato produzido; a glicose é metabo-
lizada anerobicamente a piruvato, com uma produção de apenas duas moléculas de ATP. Infelizmente
tal mecanismo resulta em acidose celular, através da produção de ácido láctico (Figura 45.12).

Figura 45.12 – VO2 e TEO2 em relação ao DO2 e suas consequências metabólicas

• Relação entre a oferta e o consumo de oxigênio41


O VO2 é determinado pelo requerimento celular e é considerado independente da oferta (DO2), ou seja,
ofertas de oxigênio acima das necessidades celulares não são acompanhadas de aumento concomitante
do consumo – relação não linear. Por outro lado, o VO2 mantém-se constante, quando há diminuições
progressivas da DO2, à custa de aumentos progressivos da extração de oxigênio alcançados por redistri-
buição de fluxo sanguíneo e abertura de novas redes capilares. A partir de certo momento a extração
não consegue manter o consumo e este passa a ser dependente da oferta (DO2). O nível de DO2, abaixo
do qual o VO2 passa a ser dependente da DO2, é chamado de DO2 crítico (Figura 45.12).
A medida das alterações no VO2 em resposta a mudanças na DO2 tem sido sugerida como um método sensí-
vel em determinar a existência da hipóxia tissular. A hipótese subjacente seria que sempre que houver uma
intervenção, no sentido de tentar aumentar a oferta e esta for acompanhada de incrementos no consumo
seria um sinal de que haveria déficit de O2. Essa abordagem é altamente controversa, visto que há neces-
sidade de estabilidade do paciente durante o procedimento, fato difícil de ocorrer no paciente em choque.
Obter um aumento do VO2 subsequente ao aumento da DO2 é insuficiente para indicar a presença de
hipoxemia, principalmente se considerarmos a possível presença da dependência patológica do VO2
frente à DO2 (Figura 45.13).

Figura 45.13 – Dependência patológica do VO2 diante do DO2 nos estados de sepse

Ponto 45 - Choque | 1017


• Evidência da presença da dependência patológica no suprimento de oxigênio41,42
Diversos estudos relataram que a sepse e o choque séptico são responsáveis por um padrão anormal
de utilização do oxigênio. Observa-se que na sepse e no choque séptico o VO2 torna-se dependente do
suprimento de O2 com altos níveis de DO2 quando comparados com pacientes não sépticos. No valor crí-
tico de DO2, a taxa de extração de oxigênio no paciente séptico é menor que no paciente não séptico.
A dependência do VO2, com valores mais elevados de DO2, é conhecida como dependência patológica.
O exato mecanismo deste desarranjo na microcirculação permanece desconhecido, ainda que diversas
hipóteses tenham sido propostas. Deve-se ressaltar que este fenômeno não é uniforme entre os órgãos.
Aparentemente, o defeito na extração de oxigênio durante choque séptico está relacionado a uma má
distribuição do fluxo sanguíneo em um determinado órgão, como também entre os diversos órgãos. A
alteração na distribuição do fluxo sanguíneo acarreta hipoperfusão relativa à demanda metabólica em
alguns órgãos ou tecidos uma dependência patológica do consumo em relação ao transporte.

45.5. TRATAMENTO
O tratamento do choque, como uma síndrome, tem como fundamento o controle da doença de base.
Como medidas de suporte deve-se controlar de forma efetiva a hemodinâmica do paciente e seu DO2 e VO2.

Adequação da PAM
A hipotensão arterial sistêmica (PAM) é geralmente considerada como uma pressão arterial sistólica
inferior a 90 mmHg ou uma PAM a menor de 70 mmHg (65 mmHg como consideram outros autores). Res-
taurar a pressão de perfusão utilizando fluidos e/ou vasopressores é um dos principais aspectos da gestão
do choque de qualquer origem, embora os valores ideais possam variar de paciente para paciente, depen-
dendo da idade e história prévia de hipertensão, insuficiência cardíaca, entre outros fatores. Além disso,
o aumento da pressão arterial além do valor “ideal” será associado com outras intervenções que podem
ser prejudiciais. Para cada paciente, um equilíbrio precisa ser estabelecido entre alcançar uma pressão
arterial adequada e limitar os efeitos adversos associados com a administração de fluidos e vasopressor.
Identificar esse equilíbrio se torna mais difícil pela falta de uma medida global ou regional clara de ade-
quação da pressão arterial.
Correa e cols., em 2013, demonstraram em um modelo experimental de sepse induzida que uma PAM mais
baixa (50-60 mmHg) foi associada a um aumento da incidência de lesão renal aguda (LRA), mas uma PAM mais
elevada (75-85 mmHg) foi associada a um equilíbrio de fluidos mais positivo e maior caga de vasopressor43.
Vasopressores inevitavelmente podem causar vasoconstrição, e vasoconstrição excessiva tem dois pro-
blemas: um é que ela pode alterar a microcirculação e interferir com os mecanismos básicos que regulam
a distribuição do fluxo sanguíneo na periferia. O segundo problema é que a vasoconstrição pode aumentar
a pós-carga ventricular direita e esquerda e resultar no prejuízo da função ventricular esquerda.
Um dos problemas-chave na definição da pressão arterial “ideal” em pacientes críticos é que as me-
didas globais de adequação (DC, SVcO2, DO2 etc.) são inadequadas e a perfusão da microcirculação pode
ficar prejudicada apesar da restauração destes parâmetros globais para valores aparentemente “normais”.
Técnicas de avaliação e controle da microcirculação podem ajudar na determinação da pressão arterial
“ideal” no futuro, mas estas permanecem experimentais. A. Thooft e cols., em 2011, relataram que o
uso da noradrenalina para aumentar PAM de 65 mmHg até 85 mmHg foi associado com melhora do débito
cardíaco, melhora da função microvascular e diminuição do lactato sanguíneo44. A resposta microvascu-
lar diante das alterações na PAM variou entre os pacientes e ao longo do tempo, este dado suporta uma
abordagem mais individual para alvos PAM.
Cada vasopressor tem um perfil específico para a atuação hemodinâmica, metabólica e efeitos imuno-
moduladores (adversos), mas poucos estudos têm comparado diretamente os efeitos de diferentes agentes
vasopressores em pacientes com choque, em especial o choque séptico.
A influência desses fármacos sobre a perfusão de vários órgãos depende do grau de hipotensão. Assim,
a norepinefrina que é conhecida por diminuir o fluxo esplâncnico nos pacientes ligeiramente hipotensos,
nos pacientes em choque grave, onde a perfusão dos tecidos é mínima, pode até melhorar o fluxo devido
à melhora hemodinâmica que pode induzir.

1018 | Bases do Ensino da Anestesiologia


A noradrenalina deve, portanto, ser utilizada para aumentar a pressão arterial em todos os estados de
choque, incluindo choque séptico. O nível ideal de pressão arterial deve ser considerado em cada indiví-
duo, com base no histórico passado (idade avançada, arteriosclerose, histórico de hipertensão apoiar um
alto alvo) e avaliação clínica (perfusão da pele, a produção de urina, estado mental). A hipotensão deve
ser corrigida o mais rapidamente possível em todos os casos (Quadro 45.3 e Quadro 45.4).
Quadro 45.3 – Perfil hemodinâmico das principais catecolaminas utilizadas no choque

Quadro 45.4 – Perfil hemodinâmico da dopamina, dobutamina e noradrenalina

Otimização do DC
Os agentes inotrópicos são utilizados para melhorar a contratilidade do miocárdio e, portanto, para
tentar melhorar o débito cardíaco, especialmente quando os fluidos por si só não puderam restaurar a
perfusão tecidual adequada. No entanto, a administração demasiada de um agente inotrópico, tal como
dobutamina, pode aumentar o risco de isquemia do miocárdio.
O emprego de um inotrópico é essencial no controle do choque cardiogênico, mas deve ser usado com
cautela, uma vez que uma das causas mais prevalentes de choque cardiogênico é a isquemia coronariana.
Outros agentes inotrópicos podem ser considerados se a resposta à dobutamina é insuficiente. Novos
agentes inotrópicos, tais como os inibidores da fosfodiesterase ou levosimendan, têm algumas proprie-
dades vasodilatadoras, que podem causar redução da pressão de enchimento ventricular e da RVP. Es-
ses agentes podem, por conseguinte, não ser adequados em doentes com choque séptico, nos quais a
Ponto 45 - Choque | 1019
resistência vascular sistêmica já é frequentemente reduzida. Além disso, esses agentes possuem uma
meia-vida de eliminação prolongada, o que torna a sua utilização bastante complicada em pacientes com
doença aguda. Existem poucos estudos de alta qualidade comparando esses agentes e até mesmo o uso
de dobutamina é controverso. No entanto, mais uma vez, a abordagem do “melhor” agente inotrópico
é claramente uma falácia. Uma abordagem personalizada, com um agente selecionado de acordo com o
estado hemodinâmico do paciente e da sua resposta é o mais adequado.
Os vasodilatadores podem ajudar quando se está frente a uma elevada RVP, mas são de uso limitado
na presença de hipotensão significativa. A nitroglicerina poderia ser considerada no choque cardiogênico,
quando a origem do mesmo é a isquemia coronariana. A vasodilatação pode, teoricamente, diminuir a va-
soconstrição profunda, abrindo a microcirculação. No entanto, estudos randomizados controlados usando
nitroglicerina neste cenário têm apresentado resultados conflitantes. Isto se deve possivelmente a inten-
sidades diferentes de hipotensão arterial em que foi utilizada.
A administração de fluidos pode ser menos prejudicial para o miocárdio do que os agentes vasoconstritores
e inotrópicos, contudo pode induzir edema importante. O excesso de fluido pode resultar em edema periférico
e sistêmico, especialmente se houver insuficiência renal ou hepática associada que impeçam a eliminação de
fluidos pelos rins. Edema pulmonar pode alterar as trocas gasosas, e edema sistêmico pode alterar a função
do órgão. Assim, fluidos podem ser bons para os rins, mas ruins para os pulmões. Um balanço hídrico positivo
tem sido associado com piores resultados em diferentes grupos de pacientes críticos45. Mais recentemente, Vi-
laça de Oliveira e cols., em 2015, demonstraram em nossa unidade de terapia intensiva que a persistência de
um balanço hídrico positivo ao longo do tempo foi fortemente associada a uma maior taxa de mortalidade em
pacientes sépticos e não foi capaz de diminuir o risco de insuficiência renal nos pacientes sépticos46.
Contudo, é importante ressaltar que as estratégias de administração de fluidos devem variar de acor-
do com a fase de gestão: inicialmente, a administração de fluidos deve ser generosa e pode melhorar a
microcirculação, isto se deve ao forte componente hipovolêmico inicial. Porém, com a evolução as ne-
cessidades de líquidos devem ser avaliadas através da técnica do desafio fluido e melhora hemodinâmica.
O balanço hídrico positivo em fases posteriores é prejudicial e deve ser evitado, os diferentes graus de
administração de fluidos de acordo com a fase da doença podem ser resumidos em: reanimação volêmica,
otimização volêmica, estabilização volêmica e, finalmente, de escalonamento volêmico.
Tem existido um debate considerável ao longo dos anos sobre a escolha do tipo de fluído a ser utilizado
nos pacientes criticamente doentes, incluindo aqueles com sepse, SIRS e choque séptico. É importante
ressaltar que todos os tipos de fluidos têm seus efeitos adversos. A infusão de grandes volumes de solução
salina isotônica (SF a 0,9%) pode levar à hipercloremia e isso pode aumentar o risco de lesão renal aguda
(LRA) e acidose hiperclorêmica. O Ringer 3 (Ringer sem lactato) apresenta os mesmos efeitos adversos
potenciais da salina isotônica.
Soluções cristaloides equilibradas também têm as suas limitações, o Ringer com lactato (solução de
Hartmann) é uma solução hipotônica, contudo, pode estar associada com níveis aumentados de lactato.
O plasma Lyte, é também uma solução cristaloide bem equilibrada e pode ser utilizada nos estados de
choque com segurança e sem efeitos adversos, contudo seu custo deve ser considerado.
Soluções coloidais podem estar associadas com menos edema de tecido, isto se deve ao fato que o vo-
lume infundido é mantido mais tempo no espaço intravascular, portanto menor quantidade é necessária
para se alcançar os mesmos objetivos hemodinâmicos que uma solução cristaloide. A administração do
coloide natural, a albumina humana, pode ser indicada em certos subgrupos de pacientes graves, espe-
cialmente aqueles com hipovolemia e/ou hipoalbuminemia demonstrada, mas não é universalmente aceita
em todos os pacientes criticamente enfermos.
Outras soluções coloides não naturais disponíveis são: gelatina e hidroxietilamido (Hidroxi Ethil Starch –
HES). Cada coloide tem seu perfil farmacocinético e farmacodinâmico diferenciado, assim como também
seus efeitos adversos. Os efeitos adversos relacionados aos coloides são: anafilaxia, insuficiência renal,
interferência na atividade das plaquetas (volume dependente) e interferência com tipagem sanguínea e
reações cruzadas.
As soluções de HES não são recomendadas em pacientes inflamados (SIRS), sepse e choque séptico, pois
os resultados de vários estudos randomizados controlados indicam um aumento do risco de insuficiência
renal aguda e piores resultados.

1020 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Quase todos os pacientes com choque séptico irão necessitar de administração de fluido. Para equili-
brar adequadamente a segurança contra a eficácia nestes doentes, a mensagem, mais uma vez, é que as
escolhas de fluidos devam ser feitas numa base individual, de acordo com fatores específicos do pacien-
te, necessidades hídricas em curso e processos de doenças concomitantes e tratamentos prévios. Usando
uma combinação de vários fluidos, em vez de quantidades excessivas de qualquer um, irá ajudar a limitar
os efeitos adversos. As soluções cristaloides são o tipo de fluido de primeira linha, mas soluções coloides
devem ser consideradas em certos grupos de doentes, incluindo aqueles que provavelmente necessitam
de grandes volumes de fluidos.
Contudo, o mais importante é individualizar a quantidade de volume que deve ser administrado
conforme a fase em que se encontra o paciente através da prova de desafio de volume e mantendo a
sequência, ROED: reanimação volêmica, otimização volêmica, estabilização volêmica e, finalmente, de
escalonamento volêmico.

Transporte de Oxigênio Ótimo aos Tecidos (DO2)


O fornecimento de oxigênio é determinado, como visto anteriormente, não só pelo débito cardíaco, mas
também pela concentração de hemoglobina e sua saturação de oxigênio. É importante ressaltar que as ten-
tativas de aumentar a oferta de oxigênio global para os valores supranormais, após o insulto do choque, re-
sultaram em taxas de mortalidade mais elevadas47 ou sem resultados melhores48. Esta abordagem pode ser
benéfica para alguns pacientes, mas pode ser perigosa em outros. Estamos novamente limitados em nossa
capacidade de monitorar a entrega de oxigênio regional e, assim, adaptar-se à terapia de forma otimizada.
Embora a anemia esteja associada com piores resultados, especialmente nos pacientes em choque hi-
povolêmico vítimas de trauma49, transfusões de sangue também podem ser prejudiciais, especialmente
em outros subgrupos de pacientes elevando as complicações e mortalidade50. Na verdade, além de preo-
cupações de infecção, reações hemolíticas, imunomodulação relacionada à transfusão (TRIM), lesão pul-
monar aguda (TRALI) e sobrecarga cardíaca relacionada à transfusão (TACO)51. Ressalta-se que as concen-
trações mais elevadas de hemoglobina podem aumentar a viscosidade do sangue ao ponto em que diminui
o débito cardíaco e a entrega de oxigênio realmente diminui (DO2 = CaO2 x DC). Várias evidências têm
apontado que a transfusão rotineira e, muitas vezes excessiva, de sangue, associa-se a maiores complica-
ções e mortalidade, ou é indiferente. Em geral, tentamos evitar transfusões, mas, novamente, o saldo de
danos contra os benefícios irá mudar em diferentes subgrupos de pacientes como: pacientes portadores
de isquemia coronariana, idosos (> 60 anos), diabéticos etc. Esses subgrupos não toleram níveis de hemo-
globina muito baixos, pois estão associados a maiores complicações52.
A hipóxia hipoxêmica é conhecida por ser prejudicial, mas os valores de PaO2 que são demasiado ele-
vados, também não são adequados, transportando riscos de alterações microvasculares com vasocons-
trição excessiva. Em voluntários, Orbegozo Cortes e cols. demonstraram que a hiperóxia normobárica
foi associada com diminuição da perfusão capilar e consumo de oxigênio muscular (VO2) e aumento da
heterogeneidade da perfusão da microcirculação 53. Além disso, níveis excessivos de pressão expiratória
final positiva (PEEP), na tentativa de adequar a oxigenação sanguínea, também podem ter efeitos hemo-
dinâmicos adversos.

45.6. SÍNDROME DA RESPOSTA INFLAMATÓRIA SISTÊMICA


Inúmeros quadros clínicos denominados “sepse ou síndrome séptica”, “sepse grave”, “choque séptico”,
“falência de múltiplos órgãos”, “falência de múltiplos órgãos e sistemas” etc. são responsáveis por apro-
ximadamente 80% de todas as mortes nas Unidades de Tratamento Intensivo. Essas denominações descre-
vem, na realidade, grupos altamente diferentes de doenças, com causas e prognóstico distintos.
A síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) é uma resposta fisiopatológica imune complexa a
um insulto variado, como infecção, trauma, queimaduras, pancreatite ou a uma variedade de outras lesões.
Os conceitos de SIRS, sepse, sepse grave e choque séptico surgiram no seio da conferência sobre sepse do
American College of Chest Physicians/Society of Critical Care Medicine em 199254. Os participantes desse
encontro foram encarregados da tarefa de definir aqueles estados médicos, através de um conjunto de pa-
râmetros clínicos, para identificar de forma fácil e precoce os pacientes potenciais para serem alocados em
ensaios clínicos, com o objetivo de investigar novas estratégias de tratamento para a sepse.
Ponto 45 - Choque | 1021
Foram definidos os seguintes termos55:
• Síndrome da resposta inflamatória. É a resposta inflamatória do organismo a um insulto variado
(trauma, pancreatite, grande queimado, infecção sistêmica), com a presença de pelo menos dois
dos critérios abaixo:
1. Febre-temperatura corporal > 38oC ou hipotermia temperatura corporal < 36oC.
2. Taquicardia – frequência cardíaca > 90 bpm.
3. Taquipneia – frequência respiratória > 20 irpm ou PaCO2 < 32 mmHg.
4. Leucocitose ou leucopenia – leucócitos > 12.000 cels.mm-3 ou < 4.000 cels.mm-3, ou a presença
de > 10% de formas jovens (bastões).
• Sepse – é definida quando existe a SIRS e é decorrência de um processo infeccioso comprovado.
• Sepse grave – quando a sepse está associada a manifestações de hipoperfusão tecidual e disfun-
ção orgânica, caracterizada por acidose láctica, oligúria ou alteração do nível de consciência, ou
hipotensão arterial com pressão sistólica menor do que 90 mmHg. Porém, sem a necessidade de
agentes vasopressores.
• Choque séptico – quando a hipotensão ou hipoperfusão induzida pela sepse é refratária à reanimação
volêmica adequada, e com subsequente necessidade de administração de agentes vasopressores.
• Falência de múltiplos órgãos – alteração na função orgânica de forma que a homeostasia não possa
ser mantida sem intervenção terapêutica. Não deve ser considerado como fenômeno tudo ou nada,
isto é, a falência orgânica é um processo contínuo e dinâmico, que pode variar desde disfunção leve
até falência total do órgão.
Geralmente são utilizados parâmetros de seis órgãos-chave: pulmonar, cardiovascular, renal, hepático,
neurológico e coagulação.
A resposta do paciente envolve centenas de mediadores e moléculas individuais, muitos delas têm sido
propostas como biomarcadores. A discriminação de sepse por causas não infecciosas de inflamação (SIRS
não infeciosa) pode ser difícil, a dificuldade reside na falta de um biomarcador simples, mas confiável e
com acurácia diagnóstica elevada. Biomarcadores têm sido sugeridos para ajudar os médicos que cuidam
de pacientes graves com potencial desenvolvimento de SIRS e sepse.
No tratamento de pacientes não submetidos à cirurgia, os biomarcadores como contagem de glóbulos
brancos no sangue, a proteína C-reativa (CRP) e a procalcitonina (PCT) provaram ser úteis. Sua principal
vantagem é que eles podem ser medidos rapidamente nos analisadores automáticos com ensaios confiáveis.
Na suspeita de sepse após a cirurgia, que é ainda mais crucial, a interpretação desses biomarcadores
é complexa, já que estes na sepse podem ter valores elevados.
A PCT é agora amplamente utilizada para diagnóstico presumível de infecção bacteriana grave e sepse. De
forma ubíqua é produzido o precursor do hormônio calcitonina (PCT), este é libertado pelo organismo após a
exposição ao antigênico bacteriano, e demonstrou boa precisão do diagnóstico para a infecção bacteriana gra-
ve, incluindo a sepse. Além disso, permite monitoramento do sucesso ou fracasso das terapias contra a sepse.
No entanto, os dois (PCR e PCT) podem estar elevados em doentes com doença autoimune, neoplasias,
necrose dos tecidos após um ataque cardíaco isquêmico, e viroses graves etc. Assim a avaliação da história
clínica e exame físico é crucial para a interpretação da PCR e PCT.
No futuro, muitos outros biomarcadores, que vêm sendo estudados, poderão auxiliar o médico no diag-
nóstico e tratamento da SIRS não infecciosa e sepse.

45.7. SÍNDROME DA FALÊNCIA DE MÚLTIPLOS ÓRGÃOS


Os primeiros relatos de formas individuais de disfunção orgânica foram realizados durante a Segunda
Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, quando a melhoria das técnicas de reanimação permitiu aos solda-
dos sobreviverem ao estado de choque inicial, porém passaram a falecer de insuficiência renal, insuficiên-
cia respiratória etc. posteriormente. Mais recentemente, em 1969, ocorreu o relato de múltiplas disfun-
ções orgânicas simultâneas (síndrome da disfunção múltipla de órgãos e sistemas – SDMOS) que foi descrita
pela primeira vez em oito pessoas com úlceras gástricas agudas e sepses. Estes pacientes desenvolveram
uma síndrome clínica associada à insuficiência respiratória, hipotensão e icterícia56.

1022 | Bases do Ensino da Anestesiologia


45.7.1. Mecanismos
Os primeiros relatos de formas individuais de disfunção orgânica foram realizados durante a Segunda
Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã, quando a melhoria das técnicas de reanimação permitiu aos sol-
dados sobreviverem ao estado de choque inicial, porém, passaram a falecer de insuficiência renal, in-
suficiência respiratória etc. posteriormente. Mais recentemente, em 1969, ocorreu o relato de múltiplas
disfunções orgânicas simultâneas (síndrome da disfunção múltipla de órgãos e sistemas – SDMOS), que foi
descrita pela primeira vez em oito pessoas com úlceras gástricas agudas e sepses. Esses pacientes desen-
volveram uma síndrome clínica associada com insuficiência respiratória, hipotensão e icterícia56.
A SDMOS é uma síndrome clínica que, em muitos aspectos, é um produto dos avanços tecnológicos de-
senvolvidos nos últimos anos para tratar pacientes críticos. De forma frequente, ocorre um desarranjo dos
sistemas respiratório, renal, cardiovascular e hepático habitualmente encontrado, com a sepse, a nutrição
deficiente e distúrbios metabólicos também observados. Porém, deve-se ressaltar que outros sistemas de
órgãos que suportam funções vitais (por exemplo, gastrointestinais, neurológicos, endoteliais e da coa-
gulação) tornam-se importantes componentes adicionais da SDMOS. A etiologia dessa entidade é multifa-
torial e difícil determinar com clareza. Os pacientes de risco são geralmente portadores de uma doença
grave, comumente a sepse, internados em uma UTI e são fáceis de identificar. Por não existir nenhum tra-
tamento específico, a prevenção é de extrema importância. Quando a SDMOS ocorre, a correção imediata
do problema de saúde básico é óbvia, o apoio ativo dos sistemas que ameaçam sucumbir e a prevenção de
outros sistemas que ainda estão em funcionamento são a chave para a sobrevivência57.
Como foi dito, muitos casos de SDMOS são precipitados pela sepse, entretanto, alguns pacientes com
MODS que falecem, muitas vezes, não têm infecção ativa demonstrável no exame post-mortem58. Doenças
graves ou lesão, como choque prolongado; síndrome da isquemia e reperfusão; queimaduras; pancreatite;
aspiração de conteúdo gástrico, podem ativar a SIRS. Essa resposta inflamatória maciça está bem carac-
terizada, porém, a resposta contrarreguladora anti-inflamatória continua a lograr as descrições clínicas.
Alternativamente, um desequilíbrio de citocinas pró-inflamatórias e respostas compensatórias anti-infla-
matórias têm sido, hipoteticamente, responsáveis pela SDMOS59.
Na evolução temporal da SDMOS, a magnitude do insulto ou insultos pode influenciar na sua apresenta-
ção e gravidade. Um insulto inicial pode ser intenso o suficiente para desencadear, de forma expressiva,
o sistema de inflamação e a sua resposta compensatória, de tal forma que a MODS se desenvolve como
um resultado direto único (modelo hit one)3. Em contraste, o modelo hit two envolve insultos sequenciais,
quando um insulto inicial funciona como gatilho, seguido por um segundo evento de ativação, que pode
gerar a resposta amplificada e descontrolada da inflamação e da contrainflamação60.
P. Khilnani e cols., em 2006, estudaram um total de 1.722 crianças (1 mês a 16 anos) internadas em UTI
pediátrica. De todos os pacientes internados nessa unidade, 184 (10,6%) tinham SDMOS. Durante o período
de estudo, 136 mortes (7,9%) ocorreram na UTI. A SDMOS foi associada com quase metade dessas mortes
(49,2%). A sobrevida global de todos os pacientes com SDMOS foi de 64%. Além de sepse, várias outras
causas foram apontadas61.

45.7.2. Tratamento
Os pacientes de risco são geralmente portadores de uma doença grave, comumente a sepse, internados
em uma UTI e são fáceis de identificar. Por não existir nenhum tratamento específico, a prevenção é de
extrema importância. Quando SDMOS ocorre, a correção imediata do problema de saúde básico é óbvia,
apoio ativo dos sistemas que ameaçam sucumbir, e a prevenção de outros sistemas que ainda estão em
funcionamento, é a chave para a sobrevivência.
Em pacientes graves com SDMOS, o número de sistemas de órgãos disfuncionais correlaciona com a
mortalidade evidentemente. O paciente portador de sepse grave e SDMOS tem 2,2 vezes mais probabi-
lidade de morrer do que os pacientes com sepse grave e disfunção de um único órgão. Pacientes com ≥
quatro órgãos disfuncionais têm quatro vezes mais probabilidade de morrer do que aqueles com disfunção
única de um órgão.
Como foi exposto, o choque é, em essência, uma história de sobrevivência, uma luta do organismo em
um meio adverso para preservar a vitalidade de seus tecidos mais essenciais. É uma história de ataque e
defesa, de ganho e perda, em um caleidoscópio de manobras defensivas para preservar a sobrevivência

Ponto 45 - Choque | 1023


dos órgãos. Como tal o choque é virtualmente estudado em todas as disciplinas clínicas e cirúrgicas e,
para o seu tratamento, é necessária a compreensão da dinâmica circulatória e da fisiologia celular.
O choque é tipicamente associado com a evidência clínica de perfusão tecidual inadequada ao exame
físico. Os três órgãos facilmente acessíveis à avaliação clínica da perfusão tecidual são a: pele (grau de
perfusão cutânea comprometido – teste do refil capilar); rins (produção de urina diminuída); e cérebro
(estado mental afetado). Mas essencialmente pelo o fracasso da microcirculação assegurar a oferta e/ou
das mitocôndrias em utilizar o oxigênio de modo apropriado.
Tradicionalmente, levando em consideração a doença, a etiologia que resultou na síndrome do choque,
ele pode ser classificado em seis categorias principais: hipovolêmico, obstrutivo extracardíaco, cardiogê-
nico, séptico, anafilático e neurogênico.
Apesar do resultado final comum, que é a hipoperfusão tecidual e a hipóxia celular, cada choque tem
sua fisiopatologia específica.

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1026 | Bases do Ensino da Anestesiologia


ME3
PONTO 46

Anestesia em Geriatria
Yara Marcondes Machado Castiglia
Professora titular do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP;
Supervisora da residência médica do CET/SBA do Departamento de Anestesiologia da
Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP.

Leandro Gobbo Braz


Professor assistente doutor do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP;
Membro do Núcleo de Ressuscitação Cardiopulmonar da Sociedade de
Anestesiologia do Estado de São Paulo, SAESP;
Membro da Comissão Científica da Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo, SAESP.

Leopoldo Muniz da Silva


Coordenador científico de Anestesia e Dor do Hospital São Luiz – Rede D’Or.
Doutor em anestesiologia pelo Programa de Pós-graduação em Anestesiologia da
Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP.
Anestesia em Geriatria
46.1. Fisiologia do envelhecimento
46.2. Avaliação e preparo pré-operatório do paciente idoso
46.3. Farmacologia dos agentes anestésicos no paciente idoso
46.4. Disfunção cognitiva pós-operatória

INTRODUÇÃO
O envelhecimento é um processo de perda de função do organismo dependente do tempo e de uma
combinação de fatores genéticos e ambientais. Não existe uma rota única para o envelhecimento das célu-
las, mas, sim, a sinergia ou o antagonismo de vários mecanismos. As alterações fisiológicas intrínsecas do
envelhecimento são sutis e dinâmicas, embora, com o passar dos anos, venham a causar níveis crescentes
de limitações no desempenho de atividades cotidianas e ocasionar repercussões orgânicas que fazem da
anestesia no idoso algo peculiar1.

46.1. FISIOLOGIA DO ENVELHECIMENTO


Composição Corporal
Com o envelhecimento, há diminuição da água corporal e maior quantidade de gordura. O tecido que
sofre muitas perdas é o muscular (acima de 40% aos 80 anos), e, assim, a força muscular tem declínio
importante. Acredita-se que as alterações no metabolismo do hormônio de crescimento estejam implica-
das nessa diminuição da massa muscular, uma vez que há alterações na secreção androgênica. O tecido
intersticial também está alterado2.
O gasto energético diário diminui, e o de repouso cai cerca de 15%. Esse decréscimo é devido às meno-
res massa muscular e atividade física. Após uma lesão ou doença aguda, o gasto da energia de repouso e
o consumo de oxigênio, que aumentam no adulto não idoso para apoio ao trabalho cardíaco e ao processo
de reparo tecidual, no idoso, aumentam menos3.
Durante o processo de uma doença, lesão, infecção ou mesmo cirurgia, a má nutrição desenvolve-se
rapidamente. A resposta metabólica à liberação de citocinas e hormônios caracteriza-se por aumento das
necessidades de energia e proteínas. O catabolismo aumentado, entretanto, não é decorrente de maior
quantidade de ingesta em razão de anorexia ou outras limitações advindas da própria doença em curso.
Quando energia externa não é providenciada, os estoques proteicos endógenos são mobilizados e depleta-
dos para ir ao encontro da demanda metabólica. Caem as concentrações de albumina e a função hepática,
o que vai diminuir a síntese proteica necessária1,2.
A temperatura corporal é mais baixa e suas respostas regulatórias estão suprimidas4.

Sistema Cardiovascular
Há declínio progressivo do número de miócitos, e como o colágeno aumenta, naturalmente, a com-
placência do ventrículo deve diminuir. O sistema nervoso autônomo é substituído por tecido conjuntivo
e gordura e, assim, aparecem alterações no funcionamento do nó sinusal, disritmias atriais e bloqueios
de ramo. O endurecimento da parede dos grandes vasos trará aumento da pressão arterial sistólica e da
resistência ao esvaziamento ventricular, ocorrendo hipertrofia ventricular compensatória2.
O débito cardíaco de repouso e a fração de ejeção mantêm-se, apesar da maior pós-carga imposta
pelo endurecimento das grandes artérias. Diferentemente do adulto não idoso, no qual o débito cardíaco
aumenta pelo aumento da frequência cardíaca, no idoso, quando há maior demanda cardíaca, o débito
cardíaco eleva-se em decorrência de maior enchimento ventricular (pré-carga) e maior volume sistólico
(ele usa, portanto, o mecanismo de Frank Starling). Por causa dessa dependência da pré-carga, mesmo as
hipovolemias pouco significativas comprometerão a função cardíaca2.
O relaxamento ventricular é mais dependente de energia que a contração ventricular e, então, requer
mais oxigênio, estando mais afetado no idoso. Mesmo as hipoxemias pouco significativas, que são conse-

1028 | Bases do Ensino da Anestesiologia


quentes às alterações pulmonares observadas nos pacientes geriátricos, podem provocar prolongamento
desse relaxamento ventricular, aumento das pressões diastólicas e congestão pulmonar, levando, assim,
à disfunção diastólica. Porque o enchimento diastólico inicial está diminuído no idoso, a manutenção da
pré-carga torna-se mais dependente da contração atrial no fim da diástole. Perda da contribuição atrial
para a pré-carga pode, em seguida, enfraquecer a função do coração. A fisiopatologia da disfunção dias-
tólica pode variar, mas normalmente envolve o menor relaxamento do ventrículo e/ou o endurecimento
de sua parede (hipertrofia), os dois relacionados às alterações do envelhecimento5. A disfunção diastólica
é responsável por mais de 50% de casos de falência cardíaca em pacientes com mais de 80 anos2,5.
Os receptores vasculares do sistema nervoso simpático respondem menos a estímulos, resultando em
tendência a hipotensão postural. A frequência cardíaca máxima diminui e a de repouso está mais lenta,
provavelmente pela diminuição na resposta dos receptores β1-adrenérgicos. A modulação compensatória
da frequência cardíaca em resposta a estímulos estressantes externos é reduzida4.
A doença cardíaca é comum no idoso, o que é muito importante funcionalmente, principalmente por-
que sua apresentação é atípica, não específica. Por exemplo, o infarto do miocárdio não é diagnosticado
ou é silencioso em mais de 40% dos indivíduos com idade entre 74 e 84 anos, enquanto naqueles com idade
entre 45 e 54 anos, é de menos de 20%6. Embora a dor no peito seja o sintoma mais comum de infarto do
miocárdio, os pacientes geriátricos frequentemente apresentam outros sintomas, como respiração curta,
síncope, confusão aguda ou ataque súbito2.

Sistema Respiratório
A performance respiratória começa a declinar após os 30 anos4. No idoso, são muitas as alterações
morfológicas que reduzem a eficiência respiratória. O decréscimo progressivo na complacência da parede
torácica ocorre por causa de cifose, colapso vertebral por estreitamento dos espaços dos discos interver-
tebrais e calcificação da cartilagem costal, com diminuição na mobilidade costal2,7,8.
Há diminuição da massa e da força dos músculos respiratórios e deterioração das junções neuromuscu-
lares, o que contribuirá para a redução da complacência torácica e trará declínio nas forças inspiratória
e expiratória máximas8.
As fibras de elastina nos bronquíolos rompem-se e se perdem, ocorrendo perda da elasticidade pul-
monar; os poros de Kohn coalescem e os alvéolos se alargam e se achatam internamente, de modo que
o pulmão ainda perde mais em recolhimento elástico, e os ductos alveolares se dilatam. O conteúdo de
surfactante e suas propriedades, entretanto, não é afetado9. Desse modo, haverá aumento da compla-
cência alveolar e do colapso das pequenas vias aéreas, com subsequente ventilação alveolar irregular e
aprisionamento de ar. A ventilação alveolar irregular leva à alteração da relação ventilação-perfusão, que
determinará diminuição na pressão parcial de oxigênio arterial – aproximadamente 0,3 a 0,4 mmHg por
ano. A pressão parcial de CO2 permanece inalterada, apesar do maior espaço morto, em parte pelo de-
créscimo na produção de CO2 que acompanha a menor taxa de metabolismo basal2.
Entre os volumes e as capacidades pulmonares: aumentam o volume corrente (pouco), o volume de re-
serva inspiratório (pouco), a capacidade inspiratória, o volume de reserva expiratório, o volume residual
e a capacidade residual funcional, bem como a complacência pulmonar à capacidade residual funcional
e a resistência das vias aéreas; diminuem a capacidade vital, a capacidade vital forçada, o volume expi-
ratório forçado em um segundo (VEF1), o índice de Tiffeneau e o pico de fluxo expiratório, bem como a
complacência da parede torácica à capacidade residual funcional; não se alteram a pressão pleural média
e a capacidade pulmonar total4.
O controle da ventilação também está alterado, tanto a resposta à hipercapnia (40%) quanto à hipóxia
(50%), podendo ser por declínio na função dos quimiorreceptores centrais e periféricos2.
Há declínio na habilidade de proteção do sistema respiratório contra as agressões do meio ambiente e,
assim, as infecções surgem. A função das células T decresce gradualmente, o clearance mucociliar está
diminuído, assim como a função de deglutir (músculo esquelético da garganta enfraquecido), o que predis-
põe o idoso à aspiração para o pulmão de conteúdo alimentar ou de água e, inclusive, de vômito10. É desse
modo que o idoso apresenta aumento de frequência e de gravidade de pneumonias, embora também pelo
aumento da colonização orofaríngea de organismos Gram-negativos. Má conservação da dentição e má
higiene oral seriam fatores que contribuiriam para esse quadro.
Ponto 46 - Anestesia em Geriatria | 1029
Sistema Renal
Os néfrons esclerosam-se a partir dos anos 40, e aos 85 anos aproximadamente 40% já não funcionam
mais, ocorrendo atrofia das arteríolas aferentes e eferentes e decréscimo no número de células dos túbu-
los renais. Como consequência, o fluxo sanguíneo renal cai em aproximadamente 50%. Do ponto de vista
funcional, o ritmo de filtração glomerular (RFG) também deve estar diminuído em 45% aos 80 anos. A
creatinina sérica, entretanto, não deve se alterar, uma vez que sua produção está diminuída em razão da
menor massa muscular do idoso. A função tubular renal também é menor no idoso.
Caem a habilidade de conservar íon sódio e excretar íon hidrogênio e a regulação dos fluidos e do equi-
líbrio ácido-base. Como o rim do idoso não consegue compensar as perdas de fora dos rins de sódio e água
pelo mecanismo de sempre, de retenção renal de sódio, maior concentração urinária e sede, pode ocor-
rer desidratação. As alterações seriam devidas à diminuição da atividade do sistema renina-angiotensina
e da resposta ao hormônio antidiurético. A menor sensação de sede pode ser por alterações da função
dos osmorreceptores do hipotálamo. A hipervolemia também seria observada no idoso em decorrência do
menor RFG e da menor função do segmento do néfron responsável pela diluição. Esse fato exacerba-se no
pós-operatório, com maior liberação do hormônio antidiurético2.
Para a avaliação laboratorial do RFG, realiza-se o clearance de creatinina, que não é exame de rotina. Pode-se
estimar a função renal no pré-operatório pelo clearance de creatinina obtido pela fórmula de Cockroft e Gault11:
140 – idade (em anos) x peso (em kg)
RGF =
72 x (creatinina sérica (em mg/dL)
Na bexiga, há maior conteúdo de colágeno e, portanto, menor distensão e dificuldade no enchimen-
to. Na mulher, haverá incontinência urinária por diminuição nos níveis de estrogênio, com redução da
resposta tecidual a esse hormônio, ocorrendo alterações no esfíncter uretral. No homem, a hipertrofia
prostática dificulta o esvaziamento da bexiga. Todos esses fatores determinam incontinência urinária
em aproximadamente 10% a 15% de idosos da população geral e em 50% daqueles institucionalizados. Há
maior prevalência de bacteriúria assintomática (10% a 50%), dependendo do sexo, do nível de atividade,
de doenças concomitantes e local da residência. Desse modo, passa a ter importância o exame de urina
dessa população no pré-operatório2.

Sistema Gastrintestinal
Esse sistema está bem preservado na população idosa saudável. O esvaziamento gástrico pode estar retar-
dado, mas, clinicamente, não tem importância. No pós-operatório, pode ser importante se houver vômitos,
porque, então, não é incomum a aspiração secundária à atonia que passa despercebida. Subnutrição e má
nutrição são problemas comuns, porém, a motilidade intestinal e a absorção de muitos nutrientes não estão
alteradas. Apenas a absorção do cálcio cai significativamente porque o rim produz menos 1,25-hidroxicolecal-
ciferol e porque há diminuição na quantidade ou sensibilidade das proteínas que se ligam ao cálcio na mucosa
intestinal. Pode ocorrer má absorção secundária a maior crescimento bacteriano. A constipação intestinal é
comum e é de causas múltiplas: estilo sedentário de vida; dieta pobre (o que também diminui as proteínas
sanguíneas); desidratação; doença do cólon ou anorretal; doenças sistêmicas; múltiplas medicações2,12.

Sistema Hepatobiliar
Há diminuição do número de hepatócitos, peso e tamanho do fígado. Ocorre aumento compensatório
no tamanho celular. O fluxo sanguíneo hepático também diminui. A partir dos 60 anos, ele está perto de
40% dos valores do adulto não idoso. Os agentes que requerem oxidação microssomal (reações da fase I)
antes da conjugação (reações da fase II) são metabolizados mais lentamente, enquanto aqueles que reque-
rem apenas conjugação não são muito afetados. Agentes que agem diretamente nos hepatócitos, como
a warfarina, produzem seu efeito desejado com menor dose. Situação muito importante nos idosos é a
maior incidência de pedras na vesícula biliar e as complicações relacionadas a essa situação2,13.

Sistema Nervoso
Entre 45 e 50 anos, aproximadamente, começa a ser observado declínio progressivo do peso cerebral,
o que atinge o máximo por volta dos 85 anos14. O decréscimo no volume cerebral, tanto da substância
cinzenta quanto da branca, tem etiologia multifatorial15.

1030 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Com o envelhecimento, a barreira hematoencefálica diminui em densidade da microvasculatura e do
tamanho do lúmen capilar. O número de mitocôndrias por célula endotelial está reduzido, afetando a per-
meabilidade dessa barreira. Essas alterações determinam consequência na resposta à isquemia e entrada
de fármacos no sistema nervoso central (SNC)16.
Neurogênese no giro denteado pode provocar uma forma única de plasticidade neural, que está envol-
vida com as funções cognitiva e emocional. No envelhecimento, há redução gradual na neurogênese, o
que limita a habilidade de aprendizado e contribui com o declínio cognitivo17.
O declínio da função cerebral e cerebrovascular relacionado com o envelhecimento contribui para o
delírio e a disfunção cognitiva do pós-operatório, de alta prevalência, que os idosos apresentam, o que
retarda a alta e a evolução da recuperação funcional18.

46.2. AVALIAÇÃO E PREPARO PRÉ-OPERATÓRIO DO PACIENTE IDOSO


Extrema variabilidade de sinais, sintomas e apresentações clínicas faz dos idosos um grupo bastante
heterogêneo do ponto de vista fisiológico, tornando a avaliação pré-operatória essencial para o melhor
planejamento anestésico e a diminuição do risco anestésico-cirúrgico. A avaliação da reserva funcional do
idoso, ou seja, da capacidade de seus órgãos suprirem as demandas adicionais que podem vir a ocorrer
em momentos de estresse orgânico, em decorrência de ato anestésico-cirúrgico, é mais importante para
caracterizar a condição fisiológica do indivíduo do que um simples marcador cronológico, como a idade.
A avaliação do risco operatório mais utilizada pode ser baseada na classificação da Associação Ameri-
cana de Anestesiologistas (ASA), que leva em conta o estado físico do paciente e as doenças associadas
(Quadro 46.1). Os exames laboratoriais devem ser solicitados de forma individual e baseados no estado
do paciente, no tipo de cirurgia e nos achados de história clínica e exame físico. Solicitação indiscrimina-
da de exames laboratoriais detecta número pequeno de doenças, pode resultar em falsos positivos, além
de ocasionar gastos adicionais desnecessários e riscos para o paciente. Esses exames têm validade de seis
meses, com exceção do eletrocardiograma (ECG), que tem validade de um ano.
Quadro 46.1 – Solicitação de exames pré-operatórios
Pacientes assintomáticos – ASA I Condições
Hemograma • Cirurgias de grande porte
• Todos os pacientes acima de 60 anos
• Todos os pacientes submetidos a cirurgias que envol-
vam grandes perdas sanguíneas
Concentração sanguínea de glicose, ureia e creatinina • Todos os pacientes acima de 60 anos
ECG • Homens acima de 40 anos
• Mulheres acima de 50 anos
Radiografia de tórax (RXT) • Homens e mulheres acima de 60 anos
Pacientes com doenças associadas – ASA II, III, IV Nesse caso, a solicitação será baseada no tipo de doença
Doenças cardiovasculares
• ECG, RXT, dosagem sérica de creatinina e ecocardiograma, que permitirão avaliar a função cardíaca, a contrati-
lidade global e segmentar e a funcionalidade das válvulas
• Em casos de coronariopatia – teste de esforço, cineangiocoronariografia e ecocardiograma de estresse, que per-
mitirão avaliar a anatomia e o desempenho diante de uma situação de estresse da circulação coronariana
Diabetes
• ECG, eletrólitos, creatinina e hemoglobina (Hb)
Doenças hematológicas
• Hb, tempo de protrombina (TP), tempo de tromboplastina parcial (PTT), contagem de plaquetas e tempo de
sangramento
Doenças renais
• Hb, eletrólitos, creatinina e ECG
Tabagista > 20 maços/ano
• Hb e RXT
Doenças pulmonares
• RXT, Hb, prova de função pulmonar e ECG
Doenças hepáticas
• Hb, transaminases (TGO/TGP), albumina, TP e PTT

Ponto 46 - Anestesia em Geriatria | 1031


A prova de função pulmonar não deverá ser solicitada rotineiramente em pacientes tabagistas ou com
doença pulmonar. No entanto, será útil quando os pacientes forem submetidos a cirurgias torácicas, de
abdômen superior ou prolongadas. Testes de laboratório para quantificar a reserva funcional pulmonar
são utilizados na avaliação pré-operatória de idosos, como a espirometria e as medidas de impedância
respiratória, sendo estas mais usadas naqueles com déficit cognitivo. No entanto, a avaliação da capa-
cidade para subir vários degraus de escada ou exercitar-se em esteira ergométrica pode ser tão valiosa
quanto os testes laboratoriais, exceto nos casos de claudicação, que limita tal tipo de avaliação funcional.
A possibilidade de realizar exercícios de esforço prediz quais pacientes têm alto risco para complicações
pulmonares. A incapacidade para desenvolver exercícios aeróbicos leves aumenta as taxas de morbidade
e mortalidade de idosos submetidos a procedimentos cirúrgicos eletivos do tipo abdominal ou torácico
não cardíaco. Os portadores de doença pulmonar obstrutiva crônica grave, com VEF1 abaixo de dois litros,
geralmente têm risco de complicações pulmonares pós-operatórias. Na avaliação pré-operatória, exames
como gasometria arterial e RXT não têm valor específico para essa identificação19,20.

Risco Cirúrgico
Durante a anamnese e o exame físico, devem-se identificar os preditores clínicos de risco cardio-
vascular, divididos em maiores (síndromes coronarianas instáveis; insuficiência cardíaca descompensada;
disritmias significativas e valvopatias graves), intermediários (angina estável; infarto agudo do miocárdio
prévio; insuficiência cardíaca compensada; diabetes mellitus, história de acidente vascular cerebral e
insuficiência renal) e menores (idade avançada – acima de 70 anos; ECG anormal; baixa capacidade fun-
cional; hipertensão arterial sistêmica mal controlada e ritmo não sinusal). Tais preditores orientam a rea-
lização de testes adicionais durante a avaliação pré-operatória21.
Na presença de preditores que oferecem maiores de risco, a cirurgia deve ser adiada, se possível, até
que tais fatores sejam compensados. Nos pacientes com preditores intermediários, mas com boa capacida-
de funcional, o risco de complicações é pequeno. Um teste não invasivo para isquemia é recomendado para
pacientes com capacidade funcional comprometida e que serão submetidos a cirurgias de maior risco. Em
pacientes com preditores menores e boa capacidade funcional, a cirurgia não cardíaca é segura21,22.
A capacidade funcional é um dos melhores preditores de risco operatório e é mensurada em equiva-
lentes metabólicos (METs). Algumas informações, de maneira indireta, podem indicar uma boa capacida-
de funcional e, quanto mais alta ela for, menor a probabilidade de complicações cardiovasculares. Entre
essas informações, destacam-se: subir um lance de escada ou uma ladeira (4 METs); realizar trabalhos
domésticos mais intensos, como lavar o chão, ou fazer caminhadas longas (4 a 10 METs); praticar esportes
(10 METs). Com relação ao método para a estratificação coronariana, além da cintilografia miocárdica com
tálio-dipiridamol, o ecocardiograma de estresse com dobutamina pode ser uma opção21-24.
No idoso, a perda da elasticidade tecidual afeta não somente o miocárdio, como todo o sistema vascu-
lar. Essa perda da elasticidade, na aorta, aumenta a impedância vascular à contração cardíaca, a pós-car-
ga e as tensões na parede ventricular. Calcificação degenerativa e degeneração mixomatosa (que pode
levar à insuficiência) afetam as válvulas mitral e aórtica. Essas alterações podem evoluir a ponto de com-
prometerem a função das válvulas cardíacas. A frequência de estenose aórtica aumenta com a idade, e é
lesão clinicamente significativa no idoso. Calcificação degenerativa progressiva é causa mais comum, em
oposição à doença reumática. A calcificação ocorre ao longo das margens do folheto da válvula, diferente
da fusão de comissuras, que ocorre na febre reumática. Por causa do enrijecimento arterial, o pulso ca-
rotídeo pode ser normal, mesmo na presença de estenose aórtica significativa, e a intensidade do sopro
não se correlaciona com a gravidade da estenose. Portanto, uma avaliação cardiológica pré-operatória
é essencial para o diagnóstico ou a avaliação do idoso doente sintomático ou com sopro sistólico aórtico
ainda não previamente avaliado. O ecocardiograma Doppler é o exame de eleição para a confirmação
diagnóstica e orientação do tratamento a ser instituído5,25,26.

Cuidados Pré-operatórios
Como regra geral, a maioria das medicações pode ser mantida durante a anestesia/cirurgia, se não
interferir na anestesia e no procedimento cirúrgico. Caso interfira, deverá ser avaliado o risco-benefício
de sua retirada.

1032 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Recomenda-se que diuréticos sejam suspensos toda vez que a cirurgia envolver risco ou previsão de perda
sanguínea considerável, pois podem alterar a capacidade renal de concentrar a urina, prejudicando a resposta
à hipovolemia. Existe benefício na manutenção perioperatória de betabloqueadores. Esses fármacos parecem
reduzir os efeitos cardiovasculares da descarga simpática da cirurgia, diminuindo o consumo de oxigênio pelo
miocárdio e, consequentemente, a chance de isquemia e disritmias. Os possíveis efeitos adversos seriam a bra-
dicardia e a hipotensão arterial. Demais anti-hipertensivos e estatinas também devem ser mantidos27.
Quanto aos glicocorticoides, manter a dose naqueles que usam menos de 20 mg de prednisona ou equi-
valente. Em doses maiores de 20 mg por, pelo menos, três semanas, e, no caso de procedimento cirúrgico
de grande porte, pode ser necessário aumentar a dose em 25% da basal.
Nos diabéticos que fazem tratamento com hipoglicemiantes orais, deve-se atentar para a suspensão
pré-operatória desses agentes e controle glicêmico com esquemas de insulina regular. A metformina deve
ser suspensa 48 horas antes do procedimento, pelo risco de acidose lática.
O clopidogrel e a ticlopidina são antagonistas do ADP (adenosina difosfato) e causam inibição irreversível da
capacidade de agregação plaquetária, devendo ser suspensos de 7 a 10 dias antes de procedimentos eletivos.
O uso de anticoagulantes orais merece atenção especial. São necessários aproximadamente cinco dias
para ocorrer normalização do coagulograma após a suspensão deles. Para diminuir o risco de eventos
tromboembólicos, pode-se utilizar heparina não fracionada (HNF) ou de baixo peso molecular (HBPM) após
a suspensão do anticoagulante. Entretanto, a HNF e a HBPM devem ser suspensas 4 horas e 24 horas antes
do procedimento, respectivamente. Para pacientes em uso dos novos anticoagulantes orais, como dabi-
gatran e rivaroxaban, recomenda-se suspensão de cinco e três dias, respectivamente, para a realização
segura de bloqueios do neuroeixo28.
O ginseng é usado como restaurador dos processos homeostáticos. Ele diminui os níveis plasmáticos
de glicose e pode aumentar o risco de sangramento, devendo ser suspenso pelo menos sete dias antes da
cirurgia. O ginkgo biloba também apresenta potencial para aumento do risco de sangramento e deve ser
suspenso 36 horas antes da cirurgia. O kava-kava é um popular ansiolítico que pode aumentar o efeito
sedativo dos fármacos anestésicos e deve ser suspenso 24 horas antes do procedimento21.
Os antiparkinsonianos dopaminérgicos podem apresentar interações importantes com a dopamina ou
outros adrenérgicos, devendo ter sua dose reduzida no pré-operatório e reestabelecida o mais precoce-
mente possível após a cirurgia. Não devem ser suspensos abruptamente, pois pode haver síndrome neu-
roléptica. Anticonvulsivantes não devem ser suspensos. Os antidepressivos tricíclicos podem ser mantidos
durante a cirurgia, principalmente nos doentes que fazem uso crônico desses fármacos em altas doses.
Contudo, o uso de tais medicamentos aumenta o risco de disritmias no intraoperatório.
Os inibidores da monoamino-oxidase são os antidepressivos de maior destaque no que tange a compli-
cações perioperatórias. Podem interagir com agentes adrenérgicos ou anticolinérgicos, causando hiper-
tensão grave. A regra geral é suspender esses agentes pelo menos duas semanas antes da cirurgia, caso
o quadro psiquiátrico permita.

46.3. FARMACOLOGIA DOS AGENTES ANESTÉSICOS NO PACIENTE IDOSO


A diminuição do conteúdo de água corporal e o aumento do volume de gordura com a idade resultam
em menor volume de distribuição para fármacos hidrossolúveis e, assim, maior concentração plasmática
desses agentes. Por outro lado, com o aumento do volume de distribuição para agentes lipossolúveis, sua
concentração plasmática é menor. Com a diminuição da função hepática e renal, pode haver maior dura-
ção de ação dos fármacos eliminados por essas vias, retardando a recuperação pós-anestésica29.
A distribuição e eliminação dos fármacos podem ser afetadas por alteração na ligação proteica. A al-
bumina, que pode estar diminuída, liga-se a agentes ácidos, como o tiopental, os benzodiazepínicos e os
opioides; a glicoproteína ácida, que está aumentada, liga-se a agentes básicos, como os anestésicos locais.
Dessa forma, maior quantidade de fármaco livre pode ser disponibilizada nos sítios efetores na indução
anestésica em idosos e reforçar possíveis efeitos colaterais, se a dose não for adequadamente ajustada.
Pelas alterações que o envelhecimento traz ao sistema cardiovascular, os idosos são mais suscetíveis
de apresentarem hipotensão acentuada e refratária na indução anestésica, principalmente se já mostram
algum grau de comprometimento da função cardiovascular ou disritmias prévias não diagnosticadas.

Ponto 46 - Anestesia em Geriatria | 1033


A idade acarreta redução nas necessidades anestésicas para agentes inalatórios e intravenosos. Os idosos
geralmente necessitam de dose menor de barbitúricos, opioides e benzodiazepínicos por causa das altera-
ções farmacocinéticas, assim como farmacodinâmicas. Esses fármacos apresentam meia-vida de eliminação
prolongada e distribuição mais lenta do compartimento central para os outros compartimentos corporais.
A administração de barbitúricos intravenosos geralmente produz vasodilatação periférica com redu-
ção moderada da pressão arterial. Em paciente idoso com diminuição dos reflexos dos barorreceptores e
aumento da rigidez das paredes vasculares, os barbitúricos causariam diminuição acentuada da pressão
arterial. Portanto, a dose desses agentes para indução anestésica é 25% a 75% menor, levando, contudo,
maior tempo para induzir inconsciência. O etomidato é excelente escolha para a indução de idosos debi-
litados e hemodinamicamente comprometidos, por ocasionar menor depressão cardiovascular. O propofol
é de ação rápida, com poucos efeitos colaterais. A indução com 1,2 a 1,7 mg.kg-1 nos idosos (versus 2,0-2,5
mg.kg-1 em pacientes mais jovens) produz início rápido de inconsciência (menos de um minuto), com du-
ração de 5 a 10 minutos. Há diminuição, relacionada com a idade, da depuração do propofol, resultando
em menor exigência de manutenção da anestesia com a idade. O propofol produz depressão cardiovas-
cular dose-dependente e ocasiona hipotensão importante na indução de idosos. Esses efeitos podem ser
minimizados pela administração lenta, proporcionando tempo suficiente para alcançar o efeito total da
dose, diminuindo, assim, a dose total. A administração de opioides também deve ser lenta na indução
anestésica para não acentuar o efeito hipotensor dos agentes indutores30-32.
Os mecanismos homeostáticos que mantêm a estabilidade cardiovascular e metabólica em idosos po-
dem não responder adequadamente em situações de estresse orgânico. Isso é exemplificado pela maior in-
cidência de hipotensão arterial após indução anestésica e hipovolemia. A resposta dos barorreceptores, a
vasoconstrição ao frio e a estabilidade cardiovascular após alteração postural tornam-se progressivamente
lentas. Técnicas anestésicas que bloqueiam completamente o sistema nervoso simpático, como anestesia
peridural ou subaracnóidea, podem provocar grave hipotensão nos idosos, principalmente quando associa-
das à anestesia geral, que induz vasodilatação sistêmica, aumentando os riscos de isquemia coronariana
e cerebral.
A consequência fisiológica das alterações pulmonares no idoso é diminuição da tensão de oxigênio
arterial; aumento do gradiente alvéolo-arterial de oxigênio; desequilíbrio da relação entre ventilação
e perfusão e aumento do efeito shunt33-35. A vasoconstrição pulmonar hipóxica regula o ajuste da resis-
tência vascular pulmonar necessário para manter o equilíbrio na relação ventilação-perfusão. Durante
a anestesia, esse equilíbrio pode ser alterado por agentes inalatórios em concentrações acima de uma
concentração alveolar mínima. Efeito semelhante é observado em resposta a altas concentrações inspi-
radas de oxigênio20,34,35.
Idosos têm maior risco para desenvolver hipoxemia no período pós-operatório. Cuidados respiratórios
após cirurgias devem sempre incluir: fisioterapia respiratória; mobilização precoce; titulação adequada
de analgésicos opioides; oxigenação suplementar e monitorização contínua. Como os reflexos protetores
das vias aéreas estão diminuídos, bem como o movimento ciliar e a tosse, há maior sensibilidade ao efeito
depressor respiratório dos opioides e outros agentes anestésicos hipnóticos.
Os agentes anestésicos trabalham com número relativamente pequeno de alvos do SNC e muitos desses
são canais iônicos pós-sinápticos. Alguns fármacos agem em receptores excitatórios, enquanto outros po-
tencializam receptores sinápticos inibitórios, como os receptores do ácido gama-aminobutírico (GABA)36.
Os anestésicos venosos podem ter efeitos nos receptores α2 (dexmedetomidina), de GABA (propofol, eto-
midato), N-metil-ᴅ-aspartato (cetamina), acetilcolina, adenosina e dopamina (opioides)37.
Os anestésicos inalatórios afetam múltiplos receptores de canal iônico, incluindo os de GABA, acetilco-
lina, glicina38, glutamato e serotonina39.
A variedade e complexidade das interações entre o agente anestésico e o canal iônico ressaltam os
problemas cognitivos pós-operatórios que podem ocorrer no idoso. As interações entre os agentes anesté-
sicos e o sistema colinérgico do SNC podem ser de particular importância em razão da estreita correlação
entre a acetilcolina e a cognição40.
O declínio dos neurônios colinérgicos pré-frontais relacionado com o envelhecimento faz com que o
idoso seja mais suscetível à depressão da neurotransmissão colinérgica do SNC mediada pela anestesia41,42.

1034 | Bases do Ensino da Anestesiologia


46.4. DISFUNÇÃO COGNITIVA PÓS-OPERATÓRIA
A população idosa está aumentando rapidamente, mais do que qualquer outro grupo etário43. Glo-
balmente, estima-se ser de aproximadamente 650 milhões e que até 2050 chegará a 2 bilhões de indiví-
duos idosos, a maioria residente em países desenvolvidos44. Assim, a inversão da pirâmide populacional
com o envelhecimento, especialmente nos países desenvolvidos, condiciona o aumento de um grupo
especialmente vulnerável ao desenvolvimento de disfunções cognitivas, e pacientes idosos estão mais
sujeitos a apresentar disfunção cognitiva pós-operatória (DCPO). Contudo, o delírio pós-operatório deve
ser sempre diferenciado18.
O delírio pós-operatório é definido como uma alteração aguda em estado mental, com desatenção e ní-
veis de consciência que tendem a flutuar no decorrer do dia, sendo observado apenas nos primeiros dias do
pós-operatório e com incidência de 10% a 45% nos pacientes idosos18,45. Já a DCPO no idoso pode ser definida
como uma síndrome de deficiência prolongada da função cognitiva com limitações na memória, capacidade
intelectual e também nas funções executivas que geralmente tem duração de semanas até vários meses.
A incidência de DCPO varia de 10% a 80% nos pacientes idosos e leva em conta o tipo de cirurgia45. A DCPO
está diretamente relacionada a maior morbimortalidade dos pacientes com maior permanência hospitalar,
submetendo esses pacientes a riscos de infecção e também aumentando o custo na saúde36.
São exemplos de DCPO pacientes idosos que, após cirurgia e anestesia, manifestam incapacidade em rea-
lizar tarefas cognitivas simples, como deslocar-se em casa e não conseguir lembrar-se do motivo que o levou
a esse local, ou efetuar tarefas mentais, como completar palavras cruzadas que, anteriormente, constituíam
tarefas facilmente realizáveis. Desorientação; dificuldade na linguagem; prejuízo no aprendizado e na memó-
ria; ansiedade; medo; irritabilidade; raiva e depressão são sintomas que podem colaborar com o diagnóstico46.
A incidência de DCPO aumenta com o avançar da idade, variando de 12,5% a 20,5% na faixa dos 61 a
70 anos, podendo chegar a 50% na faixa dos 71 a 80 anos. Após três meses de recuperação, a incidência
de DCPO foi de 7% nos pacientes de 60 a 69 anos e de 14% nos pacientes com mais de 69 anos. As cau-
sas de DCPO são multifatoriais45. Os fatores de risco relativos ao paciente para ocorrência de DCPO são:
idade avançada; baixo nível educacional; comorbidades, como câncer e doenças neurovasculares e neu-
rodegenerativas; disritmia; abuso de álcool; estado cognitivo prévio já comprometido; demência prévia e
deficiência nutricional47-49. Outros fatores de risco, agora relativos ao período perioperatório, podem ser
cirurgia cardíaca com utilização de circulação extracorpórea (alta incidência); resposta ao estresse cirúr-
gico; uso de fármacos com atividade anticolinérgica; complicações respiratórias; complicações infecciosas
pós-operatórias; anestesia geral e duração do ato anestésico/cirúrgico50-52.
O mecanismo de DCPO ainda está pouco elucidado. Beta-amiloide (βA) é um péptido naturalmente pre-
sente no SNC com os níveis mais elevados nos idosos. Existe especulação de que essas concentrações mais
elevadas de βA no envelhecimento do cérebro estão disponíveis para interagir com os anestésicos gerais
e outros fatores perioperatórios que conduzem a efeitos deletérios sobre a cérebro, aumentando o risco
para o DCPO53. Outra hipótese estudada para a ocorrência de DCPO é a deficiência dos níveis de acetilco-
lina e desregulação da via colinérgica anti-inflamatória37. Os receptores muscarínicos estão implicados na
regulação do sistema nervoso e no equilíbrio do sistema circulatório, estando envolvidos na regulação da
consciência, da função cognitiva e do mecanismo de dor. A supressão das células colinérgicas é, em par-
te, um dos mecanismos responsáveis pela anestesia, por isso, a anestesia geral tem sido implicada como
fator de risco para a DCPO por causa da relação importante entre a acetilcolina e a cognição18. O declínio
na atividade dos neurônios colinérgicos pré-frontais pode levar os idosos a serem mais suscetíveis, em re-
lação aos jovens pacientes, à depressão de neurotransmissores colinérgicos do SNC por via anestésica45.
Outra teoria é que a DCPO seja ocasionada pela desregulação do equilíbrio entre os níveis de dopamina,
que aumentam, e de acetilcolina, que diminuem no pós-operatório54-55. Os anestésicos são fatores de risco
diretamente relacionados à DCPO, pois inibem os receptores colinérgicos. A morfina antagoniza os recep-
tores muscarínicos M1, M2 e M3 e o fentanil é um antagonista competitivo de M355.
Um estudo recente mostrou que os níveis séricos de adiponectina (hormônio peptídico com funções de con-
trole do aumento da sensibilidade à insulina) diminuíram e aumentaram os de metaloproteinase matriz (protease)
em pacientes idosos após anestesia geral, podendo estar envolvidos no processo fisiopatológico da DCPO56.
O estresse endócrino-metabólico decorrente do trauma cirúrgico leva a distúrbios neuroendócrinos, com
liberação de cortisol e citocinas inflamatórias, como fatores de necrose tumoral-α, interleucina-1β, inter-

Ponto 46 - Anestesia em Geriatria | 1035


leucina-6 e interleucina-8. A elevação dos níveis de cortisol e ativação da cascata inflamatória pode estar
associada à ocorrência de DCPO por alteração na concentração de aminoácidos neurotransmissores40.
O primeiro passo na avaliação inicial do paciente suspeito de apresentar DCPO deve centrar-se na
anamnese. Parentes ou outros informadores que conheçam muito bem o doente representam fonte impor-
tante para um histórico das mudanças cognitivas e comportamentais dele. A história clínica deve ser com-
plementada com exames físicos e a solicitação de exames complementares, para a exclusão das causas
associadas a doenças e intoxicação medicamentosa, e com as escalas para a verificação do estado cogni-
tivo. Sintomas subjetivos de mudanças comportamentais observadas antes e após a cirurgia podem levan-
tar suspeitas, mas testes neuropsicológicos são extremamente necessários para diagnosticar a DCPO18. O
Mini-Mental State Examination (MMSE) é um teste de grande importância no rastreio dessa doença – uma
classificação inferior a 24 pontos é sugestiva de DCPO. Utilizando o cut-off de 24 pontos, o MMSE tem uma
sensibilidade de 87% e especificidade de 82%57.
As recomendações gerais para os cuidados perioperatórios em idosos incluem evitar fármacos que pos-
sam aumentar o risco de disfunção cognitiva; assegurar adequado aporte calórico e de fluidos; fazer com
que os pacientes idosos iniciem a mobilidade de maneira precoce e que tenham alta o mais precocemente
possível, com retorno a suas atividades cotidianas no convívio familiar. São recomendadas reuniões com
os familiares de forma a transmitir os desafios e as múltiplas questões que uma cirurgia num paciente
idoso apresenta. Os fundamentos da estratégia de prevenção são: avaliar e tratar doenças associadas; ter
a história detalhada do uso de medicações e do uso pregresso de álcool e outros fármacos; não utilizar
no pré-operatório e no intraoperatório fármacos com ação anticolinérgica; evitar desidratação; manter o
equilíbrio eletrolítico; evitar dor e estimular a mobilidade precoce (Quadro 46.2)58.
Quadro 46.2 – Medidas preventivas para a DCPO
Técnicas cirúrgicas menos invasivas
Utilização de fármacos de ação mais curta e com doses ajustadas em função da idade
Anestesia guiada com monitorização cerebral (BIS)
Redução do tempo cirúrgico e do tempo anestésico
Retorno precoce às atividades cotidianas no convívio familiar
Balanço hídrico e estabelecimento medicamentoso adequado no pós-operatório

Ainda não está claro se a escolha do agente anestésico na anestesia geral é importante, mas estudos
sugerem que agentes anestésicos inalatórios associam-se a menor prevalência de DCPO em relação ao
propofol59,60. Não há nenhuma evidência convincente que sugira que a anestesia geral provoque a DCPO. A
incidência de DCPO é equivalente entre os pacientes que recebem anestesia geral e regional45.
A utilização do índice biespectral (BIS) na monitorização de pacientes idosos submetidos à anestesia
tem se mostrado uma ferramenta útil na redução da incidência de DCPO. A monitorização com BIS, com
manutenção do índice entre 40 e 60, é capaz de reduzir a dose da infusão de propofol em até 21% e dos
agentes anestésicos inalatórios em até 30%, o que resulta em menor incidência de DCPO, mesmo após três
meses de pós-operatório61. Em outro estudo, um nível mais profundo de anestesia geral, com BIS de 39
em comparação com o BIS de 51, associou-se a melhor desempenho cognitivo de quatro a seis semanas no
pós-operatório, particularmente no que diz respeito à capacidade de processar informação62.
O tratamento da DCPO deve ser iniciado pelo conhecimento das causas possivelmente envolvidas no
processo. Exames de triagem inicial devem ser solicitados, como glicemia; eletrólitos sanguíneos; ga-
sometria arterial; RXT; hemograma e hemocultura. Avaliar e tratar a dor adequadamente e suspender
medicamentos potencialmente implicados, atentando para o estabelecimento medicamentoso adequado
no pós-operatório imediato. O haloperidol, na dose de 0,5 a 1 mg por via venosa a cada 15 minutos ou
2 a 10 mg por via intramuscular, pode ser empregado no caso de agitação psicomotora. Atentar para a
ocorrência de sedação excessiva com necessidade de suporte respiratório. A meia-vida de eliminação do
haloperidol no idoso pode chegar a 72 horas63.
Anestesiar pacientes idosos é tarefa que exige conhecimento de suas alterações fisiológicas, além de suas
doenças, e avaliação pré-anestésica completa. A indicação da técnica anestésica a ser utilizada não difere
daquela para indivíduos mais jovens, porém, a seleção de fármacos e a adequação de doses são fundamen-
tais. Outros cuidados, como hidratação equilibrada, posicionamento adequado na mesa cirúrgica e preven-

1036 | Bases do Ensino da Anestesiologia


ção de hipotermia e hipotensão, além de manutenção de diurese adequada, são essenciais para o sucesso
do procedimento. Na unidade de recuperação pós-anestésica, atenção especial deve ser dada ao risco de
depressão respiratória; hipotensão arterial; retardo na recuperação da consciência; dor e manutenção da
temperatura corporal. A incidência de DCPO é maior nos pacientes idosos, e as estratégias de prevenção
devem ser utilizadas para a redução da mortalidade associada a essa complicação anestésico-cirúrgica.

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1038 | Bases do Ensino da Anestesiologia


ME3
PONTO 47

ATUALIZADO EM SETEMBRO DE 2017

Anestesia em Pediatria
Luciana Cavalcanti Lima
Doutora em anestesiologia – UNESP;
Professora do Curso de Medicina da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS);
Anestesiologista do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP - PE).

Débora de Oliveira Cumino


Doutora em pesquisa em cirurgia pela Faculdade de Ciências Médicas
da Santa Casa de São Paulo – FCM - SCSP;
Membro da Comissão de Ensino e Treinamento da SBA;
Diretora do Serviço de Anestesiologia Pediátrica do Hospital Infantil Sabará.
Anestesia em Pediatria
47.1. Peculiaridades anatômicas e fisiológicas do recém-nascido e da criança
47.2. Fisiopatologia fetal e neonatal. Equilíbrio acidobásico e hidroeletrolítico fetal e neonatal
47.3. Reanimação neonatal
47.4. Avaliação e preparo pré-anestésico
47.5. Monitorização e ventilação
47.6. Anestesia geral e regional. Técnicas e farmacologia
47.7. Hidratação e reposição
47.8. Anestesia para as principais malformações e doenças da criança e do neonato
47.9. Analgesia pós-operatória

INTRODUÇÃO
O objetivo deste tópico é descrever as peculiaridades da anatomia e da fisiologia do recém-nascido
(RN) e da criança, evidenciando que as crianças não são adultos pequenos. Na faixa etária pediátri-
ca, existem diferenças importantes. É marcante o contraste entre um RN que pesa 1 kg e um ado-
lescente obeso com peso superior a 100 kg. Menos óbvias, no entanto, são as diferenças em termos
de proporção.

47.1. PECULIARIDADES ANATÔMICAS E FISIOLÓGICAS DO RECÉM-NASCIDO E


DA CRIANÇA
Sob um simples olhar, sem qualquer análise ou interpretação científica, é fácil perceber características
anatômicas relevantes da criança, principalmente nos neonatos e lactentes em relação aos adultos. Crian-
ças menores de 2 anos apresentam uma cabeça relativamente grande em relação ao tórax. A maior proe-
minência da região occipital favorece a flexão do pescoço sobre o tórax na posição supina, dificultando o
alinhamento dos eixos das vias aéreas e a visualização dessas estruturas, propiciando obstrução das vias
aéreas superiores1. Esse grande perímetro cefálico também contribui para o aumento da área de superfície
corpórea, sendo responsável por grande parte da área de troca de calor. A relação tórax/abdome também
difere do adulto. A criança tem abdome mais proeminente, implicando alterações ventilatórias. Os membros
são curtos e representam pequeno território de capacitância venosa.
Sob um olhar mais acurado, notam-se outras diferenças anatomofisiológicas nessa população, que se-
rão discutidas mais detalhadamente.
Os períodos do desenvolvimento das crianças são agrupados conforme a faixa etária, sendo assim, re-
cém-nascido/neonato corresponde à idade de 0 a 30 dias; lactentes, de 1 mês a 2 anos; pré-escolar, de 2
a 7 anos; escolar, acima de 7 anos. As diferenças anatômicas são mais marcantes nos períodos iniciais, nos
recém-nascidos (RN) e lactentes, porém, podem persistir até a idade escolar. Essas alterações ocorrem
em praticamente todos os órgãos e sistemas, determinam diferenças fisiológicas, afetam a termogênese
e a farmacologia e interferem no manejo anestésico2.
Utilizando peso corporal, estatura ou área de superfície corpórea (ASC) para comparação entre tama-
nhos, nota-se diferenças significativas entre as faixas etárias (Figura 47.1). Um RN normal que pesa 3 kg
tem um terço do tamanho de um adulto em estatura, mas tem um nono do tamanho do adulto em ASC
e 1/21 do peso do adulto. Dessas medidas do corpo, a ASC é provavelmente a mais importante, porque
aproxima bastante as variações na taxa metabólica basal medida em kg.h-1. (m2)-1. Por essa razão, seria
um critério melhor que idade ou peso para o cálculo da quantidade basal de líquido e das exigências nutri-
cionais. Porém, para uso clínico, é difícil determinar a ASC (fórmulas complexas), além disso, atualmente,
a maioria das doses sugeridas dos fármacos está relacionada com o peso2.
Tabelas que correlacionam peso, altura e ASC são úteis, mas para a avaliação do crescimento, habitualmen-
te, são utilizadas variações no peso, na altura e no perímetro cefálico. Gráficos de percentis (Figura 47.2) são
valiosos para o monitoramento do crescimento e desenvolvimento da criança. O anestesiologista deve ter em
1040 | Bases do Ensino da Anestesiologia
mãos o peso da criança não apenas para o cálculo de doses dos fármacos, mas reconhecer o RN ou a criança
cujo peso desvia do normal é importante na avaliação pré-anestésica2.

Figura 47.1 - Comparação entre tamanhos

Figura 47.2 - Gráficos de desenvolvimento


Desvios do crescimento dentro do mesmo percentil para uma criança de qualquer idade é de maior
significância do que qualquer outra medida isolada. O peso é um índice mais sensível de bem-estar,
doença ou má nutrição do que a altura ou o perímetro cefálico, sendo o mais comumente utilizado
para a avaliação do crescimento. Mudanças no peso refletem alterações na massa muscular, no tecido
adiposo, no esqueleto e na água corporal e, portanto, é uma medida não específica de crescimento. A
mensuração de altura fornece o melhor indicador do crescimento do esqueleto porque não é afetada
por mudanças no tecido adiposo ou conteúdo de água. Neonatos a termo podem perder 5% a 10% do
seu peso corporal durante as primeiras 24 a 72 horas de vida devido à perda de água corporal. O peso
do nascimento é geralmente recuperado em 7 a 10 dias. Um aumento diário de 30 g (210 g.semana-1) é
satisfatório para os primeiros 3 meses. A partir daí, o ganho de peso diminui de modo que, com 10 a 12
meses de idade, é de 70 g a cada semana. Para as crianças nascidas a termo, é esperado que o peso,
ao nascer, duplique em seis meses e triplique em até 1 ano. Prematuros podem perder até 15% do seu
peso corporal durante os primeiros 7 a 10 dias de vida, pois os prematuros têm maior porcentagem de
água corporal total por unidade de peso do que o RN nascido a termo. Embora um RN com baixo peso
ao nascer, porém, saudável possa recuperar o peso de nascimento em 10 a 14 dias, os de muito baixo
peso ao nascer e as crianças menores podem demorar até 3-4 semanas. O ganho de peso nos prematuros
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1041
é mais lento (20 g.dia-1) do que no RN a termo, mas é comum que eles tenham surtos significativos de
crescimento durante o primeiro ano de vida2.
O conhecimento do peso médio em várias idades é útil ao julgar se uma criança tem uma doença que
possivelmente limita o crescimento. Déficit de crescimento pode indicar a presença de um distúrbio sub-
jacente grave e afetar significativamente o procedimento anestésico. Causas de déficit de crescimento
podem ser genéticas (alterações cromossômicas); nutricionais (ingestão inadequada ou inapropriada, má
absorção, vômito, diarreia, fibrose cística, doença celíaca, intolerância a carboidratos, alergia à proteína
do leite); malformações (trato urinário, cardíaca); infecções (pulmonar, hepática, renal, enteral, congêni-
ta); distúrbios endócrino/metabólico (hipotireoidismo, acidose tubular renal); crianças pré-termos e pe-
quenos para a idade gestacional (PIG), malignidade e broncodisplasia, entre outras2.
A medida comum de sobrepeso e obesidade para adultos é o índice de massa corpórea (IMC). Há li-
mitações do IMC como medida de obesidade, pois não considera, por exemplo, a variação individual na
distribuição de gordura e músculo. Também não leva em consideração a densidade óssea, a composição
corporal ou diferenças raciais. Esse cálculo também é útil em crianças, mas como o IMC em crianças varia
com a idade e o gênero, um valor absoluto não pode significar que determinado paciente está com sobre-
peso ou é obeso. É necessário utilizar uma ferramenta adicional, um cartão com o IMC para cada idade
do gráfico de crescimento, específico para o gênero, como os publicados pelo Center for Disease Control
(CDC)3, para fazer a determinação do grau de obesidade. Logo, em contraste com os adultos, o número
do IMC não é o determinante, mas sim o percentil em que a criança se encontra para o gênero e a idade.
Crianças com o mesmo IMC podem não ter obesidade se as idades são diferentes. Para as crianças e os
adolescentes (com idades entre 2-19 anos), o excesso de peso é definido como um IMC igual ou acima do
percentil 85 e inferior ao percentil 95. A obesidade é definida como um IMC igual ou acima do percentil
95 para crianças da mesma idade e gênero.
Compartimentos Corporais e Distribuição de Água e Eletrólitos
A água corporal total (ACT) é composta pelo líquido intracelular (LIC) e extracelular (LEC), separados
pela membrana celular. O LEC está distribuído em diversos compartimentos (Tabela 47.1), volume plas-
mático (intravascular ou sanguíneo), líquido intersticial (extravascular) separados anatomicamente pelo
endotélio capilar4.
Quanto mais imatura a criança, maior o conteúdo relativo de água (Figura 47.3). Medidas seriadas do
líquido extracelular (LEC) em RN prematuros de baixo peso (< 32 semanas de idade gestacional) demons-
tram redução pós-natal do LEC, por meio da diurese nas duas primeiras semanas de vida, representando
a redução fisiológica do LEC expandido do feto. Hiponatremia, que ocorre após as primeiras duas sema-
nas de vida, pode indicar perda excessiva de Na+ e depleção do LEC. A água corporal total (ACT) diminui
à custa do LEC, atingindo os níveis do adulto em torno de 1 ano de idade. Esse achado tem implicações
nas doses dos fármacos e na sua distribuição. Meninos têm um percentual maior de água que meninas,
que têm maior percentual de gordura. A diminuição percentual no LEC é maior do que na ACT devido ao
aumento simultâneo no líquido intracelular (LIC)4.

Figura 47.3 - Comparação da água corporal total

1042 | Bases do Ensino da Anestesiologia


O volume intravascular efetivo é o volume sanguíneo que perfunde os tecidos e encontra-se em contato
direto com receptores de pressão e volume. Em condições normais, o volume plasmático circulante varia
de acordo com as alterações do LEC. O volume extravascular é constituído por linfa, líquido do interstício
celular da pele e tecidos conectivos e líquidos transcelulares, compostos pelos líquidos cerebroespinhal,
pleural, peritoneal, sinovial, das glândulas salivares, do pâncreas, do fígado, da árvore biliar e também
pelo líquido intraluminal do trato gastrintestinal5.
Tabela 47.1 - Distribuição do líquido extracelular (LEC)

Sistema Lactentes Adulto

Plasma e linfa (mL.Kg-1) 60 55

Músculo e órgãos (mL.Kg-1) 80 85

Pele e tecido conectivo (mL.Kg-1) 160 130

Líquido extracelular total (mL.Kg-1) 300 270

(Adaptado de Holliday MA. Fluid therapy for children: facts, fashions and questions5.)

A água é o componente mais importante do corpo, constituindo 70% do peso corpóreo do RN a termo e
80% do peso do pré-termo, variando inversamente com o conteúdo de gordura corporal. A composição da
água, assim como, a sua proporção nos compartimentos (Tabela 47.2), varia conforme o desenvolvimento
da criança. Mas a osmolaridade (concentração de soluto por unidade de solvente) de cada compartimento,
independentemente da idade, é constante em torno de 280-300 mOsm.L-1 4.
Tabela 47.2 - Composição corporal nas diversas faixas etárias

Prematuro Neonato 1 ano 3 anos Adultos

Peso (kg) 1,5 3 10 15 70

ASC (m2) 0,15 0,2 0,5 0,6 1,7

ASC/Peso 0,1 0,07 0,05 0,04 0,02

ACT (% peso) 80 78 65 60 60

LEC (% peso) 50 45 25 20 20

LIC (% peso) 30 35 40 40 40
ASC = área de superfície corporal; ASC/Peso = relação da área de superfície corporal e peso; ACT = água corporal total; LEC =
líquido extracelular; LIC = líquido intracelular.
(Adaptado de Cunlife M. Fluid and electrolyte management in children4.)

Sistema Cardiovascular
O coração da criança tem pouco tecido muscular (apenas 30% de tecido contrátil) e muito tecido co-
nectivo. Os miócitos e as miofribrilas são desorganizadas, as proteínas contráteis (actina e miosina), ima-
turas e as organelas possuem baixas reservas de cálcio, determinando um coração menos complascente
com contração menos eficiente. No período neonatal, o coração trabalha no limite superior da Lei de
Frank-Starling, ou seja, o aumento da pressão intracardíaca não determina aumento na contratilidade ou
no volume de ejeção. O débito cardíaco depende mais da frequência cardíaca do que do volume sistólico,
pois o volume de ejeção é limitado pela baixa complascência do miocárdio. Dessa forma, elevações da
pré-carga decorrentes de sobrecarga hídrica não são bem toleradas, podendo ocasionar falência biventri-
cular, insuficiência cardíaca congestiva e parada cardíaca6,7. A Tabela 47.3 apresenta as diferenças fisio-
lógicas cardiovasculares de acordo com a faixa etária.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1043


Tabela 47.3 - Diferenças fisiológicas conforme faixa etária em crianças

Parâmetros Prematuro Neonato a termo Lactentes > 3 anos

FC (bpm) 140 - 150 140 120 100

PA (mmHg) 55 x 40 65 x 40 95 x 65 100 x 70

Volemia (mL.kg-1) 80 - 90 80 75 - 80 70 - 75

DC (mL.kg-1.min-1) 150 100 - 150 100 80 - 100

IC (L.min-1.m2 -1) - 2,6 3,2 4


DC = débito cardíaco; FC = frequência cardíaca; IC = índice cardíaco; PA = pressão arterial; RN = recém-nascido.

Vias Aéreas
Durante o desenvolvimento do neonato até por volta dos 10 anos, as vias aéreas sofrem diversas modi-
ficações com relação a tamanho, forma, posição e consistência. O conhecimento dessas particularidades
é essencial para uma correta avaliação, maior segurança e adequado manuseio da via aérea pediátrica
pelo anestesiologista.
O posicionamento da cabeça é extremamente importante durante o manejo das vias aéreas. O ideal é
obtido com o pescoço em posição neutra ou em leve extensão. Devido ao grande tamanho da cabeça e à
proeminência occipital, principalmente em prematuros, neonatos e lactentes, a utilização de um pequeno
coxim sob os ombros ou rodilha para acomodar o crânio evita a flexão do pescoço, melhorando a ventila-
ção sob máscara facial e a visualização da via aérea durante a laringoscopia8.
Na criança, o nariz possui relativamente maior quantidade de mucosa e tecido linfoide do que no adulto e
as narinas apresentam diâmetros menores. Durante o desenvolvimento, a remodelação do palato e as altera-
ções na base do crânio aumentam a profundidade da nasofaringe, produzindo alargamento da via aérea na-
sal na idade adulta. Dessa forma, a população pediátrica apresenta maior resistência ao fluxo de ar e maior
predisposição à obstrução das vias aéreas superiores (VAS) na presença de secreções, edema ou sangue. Até
os 4 meses de vida, a distância entre a úvula e a epiglote é pequena, tornando a criança um respirador nasal
obrigatório. Isso ocorre, em parte também, pela menor resistência ao fluxo de ar quando comparada com a
via oral. A habilidade para respirar através da boca é dependente da idade e ocorre por volta do terceiro ao
quinto mês de vida. A adenoide, localizada no teto e na parede posterior da nasofaringe, é uma estrutura
hipertrofiada na primeira infância que, muitas vezes, causa obstrução à passagem do ar pela via nasal, além
de sangramento, edema e fragmentação quando manipulada durante a intubação nasal8.
A inervação sensorial da orofaringe é derivada dos nervos glossofaríngeo e laríngeo superior, ramo do
vago, transmitindo impulsos aferentes a partir da base da língua e da valécula. Crianças abaixo dos 2 anos
apresentam o sistema nervoso simpático pouco desenvolvido, com predominância do tônus parassimpá-
tico, sendo mais propensas a bradicardia reflexa à estimulação da faringe durante a laringoscopia direta
(LD) ou intubação traqueal (IT) através das cordas vocais8.
Nas crianças, tanto a mucosa como a submucosa da laringe são estruturas ricamente vascularizadas
com abundante tecido linfático, o que torna a fossa laríngea, a epiglote e a glote mais suscetíveis a edema
e sangramentos durante a manipulação das vias aéreas. Nos neonatos, a epiglote é estreita, mais longa,
menos tônica, apresenta a forma de ômega (Ω) e localiza-se mais angulada ao eixo da traqueia. Todas
essas características dificultam a elevação da epiglote durante a LD quando se utilizam lâminas curvas. A
utilização de lâminas retas facilita a elevação da epiglote e a visualização da abertura glótica. É somente
por volta dos 4 ou 5 anos que a epiglote torna-se firme o suficiente para permitir uma adequada visuali-
zação das cordas vocais com a utilização de lâminas curvas8.
As cordas vocais verdadeiras inserem-se mais anteriormente na criança quando comparada com os
adultos e apresentam fechamento mais inferior que no adulto, portanto, a ponta do tubo traqueal (TT)
deve prosseguir no alto da comissura anterior das pregas vocais9.
A mandíbula é relativamente hipoplásica e a língua é grande em relação à cavidade oral e ao espaço
mandibular anterior, local onde ela se acomoda durante a LD, favorecendo a obstrução da via aérea e

1044 | Bases do Ensino da Anestesiologia


dificultando a visualização das estruturas glóticas em neonatos e lactentes. Essas características também
justificam a utilização de lâminas retas para LD nessa faixa etária, permitindo adequada acomodação da
língua no espaço submandibular. Além disso, a tonicidade do músculo genioglosso é menor e sua inserção
mais posterior, o que também contribui para a obstrução passiva das VAS, principalmente quando a crian-
ça se encontra em decúbito dorsal8.
Em adultos, a laringe situa-se anteriormente aos corpos de C4, C5, C6. Nos neonatos e nos lactentes, até
aos 2 anos, a laringe localiza-se em posição mais cefálica (C3-C4), o que torna a distância entre a língua, o
osso hioide, a epiglote e a rima bucal menor. A posição mais cefálica da laringe também empurra mais a
língua para a cavidade oral, causando maior grau de obstrução comparado com o adulto. Além disso, for-
ma um ângulo mais agudo entre a base da língua e a fenda glótica, o que dificulta a visualização direta das
estruturas. A relação entre a laringe da criança e a cartilagem cricoide tem sido descrita como de aspecto
afunilado com a porção mais estreita na região da cricoide. Esse dado se baseia em estudos post-mortem.
No entanto, novos estudos são necessários para determinar o quanto essas medidas estáticas nas crianças
anestesiadas refletem as características dinâmicas da glote e da cricoide8.
Até os 10-12 anos, a cartilagem cricoide é o ponto de maior estreitamento da laringe (Figura 47.4),
dando um aspecto cônico à laringe da criança. Muitas vezes, o TT passa facilmente pela fenda das cordas
vocais, mas não necessariamente pela região subglótica. Sendo assim, as crianças estão sob maior risco
de adquirir estenose subglótica quando expostas à IT prolongada ou a tubos traqueais com diâmetros
inadequados, causando edema e resultando em diminuição do diâmetro da luz traqueal com aumento da
resistência das vias aéreas no momento da extubação10.

Figura 47.4 – Conformação da laringe – comparação entre adultos e crianças


A traqueia tem aproximadamente 5 cm de profundidade até perto dos 18 meses de vida e se divide
em ângulos iguais, o que favorece a IT seletiva não preferencial. Além disso, ela é menor em diâmetro
comparada com o adulto. Isso significa que, em contraste aos 12 mm de diâmetro interno do adulto, o
diâmetro de 3-6 mm da traqueia na criança resulta em maior resistência à passagem de ar e maior risco
de obstrução quando na vigência de edema, corpo estranho ou secreções. Esse conhecimento é impor-
tante para guiar o médico anestesista na seleção dos tubos traqueais apropriados para a situação clínica,
a idade e o peso do paciente. O tamanho estimado do TT, assim como a profundidade de inserção, pode
ser calculado através de fórmulas10 (Tabela 47.4).
Tabela 47.4 – Tamanho e profundidade do tubo traqueal por faixa etária
Diâmetro interno (mm) Distância rima labial/carina (cm)
Prematuro 2,5 8
RN a termo 3 9
Lactentes 3,5 10
1 a 2 anos 4 11
(idade/4) + 4*
> 2 anos (idade/2) + 12
(idade/4) + 3,5**
*Cálculo para o tubo traqueal sem balonete.
**Cálculo para o tubo traqueal com balonete.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1045


Sistema respiratório
A partir da 16ª semana de gestação, os bronquíolos terminais estão completamente formados, porém,
a formação alveolar só se inicia a partir da 36ª semana de gestação. Ao nascimento, o neonato a termo
possui 20 a 50 milhões de sáculos aéreos terminais, a partir dos quais desenvolvem-se os alvéolos. O cres-
cimento e desenvolvimento pulmonar refletem o aumento no número e no tamanho dos alvéolos, assim
como a ramificação acinar que se torna mais extensa e complexa. Aos 6 anos, o número de alvéolos alcan-
ça os padrões do adulto por volta dos 300 milhões de unidades respiratórias. A ventilação colateral entre
as vias aéreas (canais de Lambert) e entre os alvéolos (poros de Kohn) não estão presentes ao nascimento,
mas desenvolvem-se a partir dos 8 anos11.
No desenvolvimento pulmonar, a partir da 24ª semana de gestação, existem dois tipos celulares no epi-
télio alveolar: os pneumócitos tipo I, que alinham e sustentam as células alveolares, e as grandes células
tipo II, que produzem e estocam surfactante. A maturação do sistema surfactante é controlada parcial-
mente pelo sistema neuroendócrino e ocorre por volta da 36ª semana de gestação. Mesmo o neonato a
termo, com quantidade suficiente de surfactante, deve realizar uma grande pressão negativa, por volta
de 80 cmH2O, para superar a retração pulmonar e criar capacidade residual funcional (CRF), que permite
menores pressões nas inspirações seguintes. O surfactante exerce papel fundamental em equilibrar as
tensões parietais intra-alveolares que, associado ao bloqueio laríngeo fisiológico, resulta no fenômeno de
auto-PEEP, que mantém os alvéolos parcialmente abertos ao final da expiração11.
A complacência pulmonar se altera conforme a idade, sendo resultante das alterações da estrutura
alveolar e da quantidade de elastina e surfactante. Ao nascimento, a complacência pulmonar é baixa, de-
vido à fina parede alveolar, e contém pequena quantidade de elastina, tornando o tecido pulmonar mais
denso. A deficiência de surfactante, como na doença da membrana hialina, favorece a diminuição da com-
placência. A parede torácica, em contrapartida, tem alta complacência devido às costelas cartilaginosas e
a ausência de arcabouço ósseo. Os arcos costais são horizontalizados ocasionando menor expansibilidade
torácica e menor variação de volume durante os ciclos inspiratórios e expiratórios11.
O RN possui pouca massa muscular; o diafragma e a musculatura intercostal do RN possuem baixa
quantidade de fibras musculares do tipo I (contração lenta e alto metabolismo oxidativo), responsá-
veis pela atividade muscular mantida, gerando, então, propensão à fadiga. O RN prematuro possui
em torno de 10% de fibras tipo I diafragmáticas e 20% intercostais, e o neonato a termo, 25% e 46%
respectivamente. A quantidade dessas fibras aumenta após o nascimento, chegando a 50% a 65% aos
8 meses de vida11.
A variação de volume durante a inspiração é dependente do movimento diafragmático. A musculatura
intercostal tem como principal função a estabilização das costelas, impedindo a retração da caixa torácica
durante a inspiração. Dessa forma, fica evidente que, na vigência de obstrução respiratória alta, devido à
pressão exercida pelo diafragma, rapidamente ocorrem fadiga respiratória e instabilidade da caixa toráci-
ca com movimentos paradoxais de retração da parede torácica11.
A necessidade ventilatória do neonato é significativamente maior, desencadeando altas frequências
respiratórias devido às altas taxas metabólicas. Tanto o consumo de oxigênio quanto a produção de CO2
por unidade de peso são o dobro do adulto.
No período pós-natal precoce, o volume pulmonar é desproporcionalmente pequeno em relação ao ta-
manho e peso do neonato. O diafragma encontra-se deslocado cefalicamente em virtude do maior volume
das vísceras abdominais, diminuindo a CRF e aumentando o volume de fechamento (VO), que se encontra
dentro do volume corrente (V T) nas crianças (Figura 47.5). A CRF no adulto é determinada pelo equilíbrio
entre as forças elásticas pulmonares contra a tensão da parede torácica. Na criança, esse mecanismo
ainda não existe pela imaturidade muscular, sendo então determinada pelo bloqueio laríngeo, que é o
fechamento da glote ao final da expiração. Durante a anestesia, esse mecanismo é perdido, determinan-
do maior redução na CRF. O volume de espaço morto (VD), apesar de ser igual ao do adulto em relação
ao peso, representa um terço do V T, dessa forma, incrementos no VD por meio da utilização de extensões
e circuitos inadequados do respirador, levam a graves repercussões no neonato, com diminuição da ven-
tilação alveolar (VA). A relação da VA/CRF é três vezes maior na criança, resultando em rápido aumento
nas frações alveolares dos gases inspirados. Todos esses fatores associados predispõem o neonato à maior
depressão respiratória e tendência à hipoxemia. Além disso, os pacientes pediátricos pertencem a uma

1046 | Bases do Ensino da Anestesiologia


ampla faixa etária, determinando grandes variações no volume e na capacidade pulmonar ao longo do
desenvolvimento (Tabelas 47.5 e 47.6)11,12.

Figura 47.5 - Relações entre capacidade e volume pulmonar


CPT = capacidade pulmonar total; CV = capacidade vital; CRF = capacidade residual funcional; VRI = volume de reserva inspi-
ratório; V T = volume corrente; VRE = volume de reserva expiratório; VR = volume residual; VO = volume de oclusão ou volume
de fechamento.

Tabela 47.5 - Volumes e capacidades pulmonares

Neonato Adulto

V T (mL.kg-1) 6 6

VD (mL.kg-1) 2 2

VA (mL.kg-1.min-1) 100 – 150 60

VO (mL.kg-1) 12 7

CPT (mL.kg-1) 62 80

CRF (mL.kg-1) 30 30

VA:CRF 5:1 1,5:1

DO2 (mL.kg-1) 6-8 3


V T = volume corrente; VD = volume de espaço morto; VA = ventilação alveolar; VO = volume de oclusão; CPT = capacidade pul-
monar total; CRF = capacidade residual funcional; VA: CRF = relação ventilação alveolar/capacidade residual funcional; DO2 =
consumo de oxigênio.

Tabela 47.6 - Variações das funções pulmonares nas diversas faixas etárias

1 sem. 1 ano 3 anos 5 anos 8 anos 12 anos 21 anos

Peso (kg) 3,3 10 15 18 26 39 73

FR (ipm) 40 30 25 20 18 16 12

CV (mL) 100 475 910 1.100 1.855 2.830 4.620

CRF (mL) 75 263 532 660 1.174 1.855 3.030

V T (mL) 17 78 112 130 180 260 500

VA (mL.
385 1.245 1.760 1.800 2.195 2.790 4.140
min-1)

VD (mL) 7,5 21 37 49 75 91 163


FR = frequência respiratória; CV = capacidade vital; CRF = capacidade residual funcional; V T = volume corrente; VA = ventilação
alveolar; VD = volume de espaço morto.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1047


Controle Respiratório
O desenvolvimento do controle respiratório inicia-se durante a gestação, mas continua a amadurecer
semanas ou meses após o nascimento a termo. O padrão respiratório dos neonatos, muitas vezes, é irre-
gular e periódico, ou seja, pode associar-se com períodos de apneia, refletindo a imaturidade dos centros
de controle respiratório. Todos os níveis dos centros de controle respiratório são imaturos, incluindo o
tronco cerebral, a ritmogênese respiratória, as respostas quimiorreceptoras periféricas e centrais e tam-
bém outras partes da rede. A resposta ventilatória à hipercapnia e hipóxia é prejudicada nos neonatos.
A hipercapnia aumenta o volume corrente e a frequência respiratória em neonatos a termo, crianças e
adultos, porém, em RN prematuros, essa resposta é atenuada. Os prematuros apresentam resposta bifá-
sica em condições de hipóxia. Após aumento inicial da ventilação, durante aproximadamente 1 minuto, a
ventilação diminui drasticamente com o potencial de apneia13.
As medicações anestésicas alteram ainda mais o controle respiratório, predispondo a hipóxia e hiper-
capnia. Outro mecanismo importante que contribui para o surgimento de apneia em neonatos, é a res-
posta exagerada à estimulação aferente da laringe ou à inibição ventilatória diante do estiramento do
parênquima pulmonar, esse último conhecido como reflexo de Hering-Breuer, que é mais pronunciado em
neonatos do que em crianças mais velhas. Entretanto, esses reflexos são favoráveis em algumas situações.
Quando se ventila um neonato, devido ao reflexo de estiramento, é possível instituir ventilação controlada
sem a necessidade do uso de bloqueadores neuromusculares, fato muito frequente na prática pediátrica13.
Define-se apneia como ausência do fluxo de ar por mais de 20 segundos, podendo classificar como
apneia central, na ausência de esforços respiratórios, ou apneia obstrutiva, que ocorre na presença de
esforços respiratório. Clinicamente, a maioria dos episódios de apneia ocorre de forma mista, isto é, uma
combinação da diminuição do drive respiratório (apneia central) e da incapacidade de manter a patência
da via aérea (apneia obstrutiva). Apneias centrais resultam da imaturidade dos centros de controle res-
piratório com diminuição da frequência, enquanto a apneia obstrutiva, muitas vezes, ocorre durante o
sono REM (movimento rápido dos olhos). A faringe é o local predominante de obstrução da VAS devido à
diminuição do tônus muscular nesse local.
Função Renal
No recém-nascido, a função renal é imatura e o fluxo sanguíneo renal, baixo, aumentando após o nas-
cimento pela elevação do débito cardíaco, da pressão arterial média e da resistência vascular renal. Po-
rém, com 1 mês de vida, a maturidade renal alcança 90% da função, atingindo valores semelhantes aos do
adulto por volta do primeiro ou segundo ano de vida. A taxa de filtração glomerular (TFG) ao nascimento
representa 25% a 30% do adulto, isso se deve a maior resistência renovascular e menores superfície de
filtração glomerular, permeabilidade vascular e pressão de ultrafiltração. A função tubular do recém-nas-
cido também é limitada, ocorrendo maior perda urinária de sódio por apresentar resposta inadequada à
aldosterona e imaturidade da bomba de sódio-potássio, predispondo à hiponatremia6.
O rim do neonato possui também baixa capacidade de concentração da urina pela menor concentração
de ureia no interstício medular; pequeno tamanho das alças de Henle, níveis aumentados de prostaglandi-
nas e resposta inadequada ao ADH, o que causa maiores perdas hídricas. Portanto, neonatos não toleram
estados de desidratação. Desta forma, os rins apresentam dificuldade de eliminar volume e eletrólitos
durante uma sobrecarga, assim como, de retê-los em um estado de depleção. Entretanto, a capacidade
de diluir a urina é maior que a capacidade de concentrá-la. Sendo assim, o recém-nascido saudável tem
maior capacidade de excretar água livre e aumentar o volume urinário, tolerando melhor sobrecarga hí-
drica moderada à desidratação6.
Portanto, devemos ter em mente que os RN têm dificuldade de manipular cargas excessivas de Na+, o
que gera hipernatremia, que pode ocasionar hemorragia intracraniana, com dano cerebral e retenção de
líquido; que a hiper-hidratação pode levar a abertura do canal arterial, broncodisplasia pulmonar e ente-
rocolite necrotizante; e a hiponatremia pode gerar convulsões com Na+ abaixo de 120 mEq.L-1 6.
Sistema Digestivo
A deglutição é um procedimento complexo que está sob controle central e periférico. O reflexo inicia na
medula, via nervos cranianos, para os músculos que controlam a passagem do alimento através do esfíncter
esofagiano superior. No processo, a língua, o palato mole e a faringe são todos suavemente coordenados.

1048 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Qualquer condição patológica em uma dessas estruturas pode interferir na deglutição normal. Incoorde-
nações neuromusculares, contudo, são mais prováveis de se relacionarem com qualquer disfunção. Isso é
particularmente importante quando o sistema nervoso central sofre lesão antes ou após o nascimento. Com
a deglutição, a pressão na faringe aumenta, o esfíncter esofageano superior abre e as ondas peristálticas
do esôfago levam o alimento adiante. Ondas peristálticas estão ausentes na porção inferior do esôfago em
crianças, embora presentes em adultos. Com a imaturidade do esfíncter esofageano superior, regurgitação
é frequente e a “expectoração” do conteúdo gástrico é comum, até mesmo em crianças saudáveis6.
Aproximadamente 40% dos RN regurgitam seu alimento nos primeiros dias de vida. As pressões no esô-
fago inferior são mais baixas ao nascimento e atingem os mesmos níveis que do adulto somente após 3 a 6
semanas de vida. Os sintomas de refluxo incluem vômitos persistentes, déficit de crescimento e, em casos
graves, hematêmese e anemia. O refluxo gastroesofágico é uma das condições associadas com a apneia e
bradicardia em RN pré-termo6.
O fígado é o local de síntese proteica, processo este já ativo na vida fetal e neonatal. A principal pro-
teína sérica é a alfafetoproteína, que aparece inicialmente por volta da sexta semana de gestação e alcan-
ça o pico na 13a semana. A síntese de albumina inicia no terceiro a quarto mês de gestação e se aproxima
dos valores do adulto ao nascimento. Nos pré-termos, seu nível é mais baixo. As proteínas envolvidas na
coagulação também são sintetizadas no fígado e têm níveis abaixo do normal em RN pré-termos e a ter-
mo nos primeiros dias de vida. A hematopoiese ocorre no fígado, com pico de atividade no sétimo mês
de gestação. Após 6 semanas de vida, está confinada a medula óssea, exceto em condições patológicas,
como na anemia hemolítica6,15.
A capacidade de as enzimas quebrarem as proteínas está reduzida ao nascimento. Isso é particular-
mente importante em RN pré-termos, em que uma alta ingesta proteica pode determinar níveis séricos
perigosos de aminoácidos. Na primeira semana de vida, o metabolismo das drogas é menos eficiente do
que mais tardiamente. Adicionalmente, uma alteração da combinação de drogas às proteínas séricas e
uma função renal imatura contribuem para o problema6,15.

Termogênese
Prevenir a hipotermia é crucial para oferecer segurança e qualidade em anestesia pediátrica, além de
exigir conhecimento e atenção especial. Os pacientes pediátricos são particularmente suscetíveis à hipoter-
mia, principalmente, os neonatos e lactentes, devido à combinação de perda excessiva, resposta termor-
reguladora ineficiente e menor capacidade de gerar calor. Em condições ambientais similares, os neonatos
perdem mais calor através da pele que os adultos devido a desvantagens anatômicas, como maior relação
superfície/massa corporal (razão de 0,4 no adulto x 1 no neonato); panículo adiposo delgado, menor conteú-
do de queratina na pele e cabeça grande. O maior segmento cefálico representa 20% da superfície corpórea,
além disso, a cabeça é desprotegida, com pouca cobertura capilar e ossos delgados, sendo responsável por
85% das perdas de calor, evidenciando a necessidade de proteção da cabeça no intraoperatório16.
A resposta termorregulatória é limitada em neonatos e lactentes, e essa menor eficiência diminui a ha-
bilidade dessa população de gerar calor com maior risco de hipotermia. O limite inferior de temperatura
crítica no adulto é em torno de 28 °C, enquanto no RN é de 32-35°C, dependendo de seu peso16.
As perdas de calor nas crianças submetidas a procedimentos anestésico-cirúrgicos ocorrem por uma
série de razões, como exposição das cavidades e dos órgãos às baixas temperaturas da sala operatória,
infusão de fluidos frios, ventilação com gases frios e não umidificados e consequências diretas da aneste-
sia sobre a resposta termorregulatória. De maneira geral, a radiação é o principal mecanismo de perda de
calor tanto na criança acordada ou sob anestesia. Em ambiente termoneutro, 39% das perdas de calor no
neonato ocorrem por radiação. Numa sala operatória (SO) a 22°C, 70% das perdas ocorrem por radiação.
Portanto, o aquecimento da SO reduz significativamente o gradiente de temperatura entre o ambiente e
o paciente, diminuindo as perdas por radiação.
As perdas por evaporação tendem a ser mais significativas na criança devido à alta ventilação minuto
(VM), chegando a um terço das perdas no perioperatório nessa população, principalmente quando exposta
a ventilação com ar frio e não umidificado16.
A temperatura central é um dos parâmetros fisiológicos mais rigorosamente controlados, mantida den-
tro de uma estreita variação. No indivíduo acordado, essa variação é de apenas 0,4°C, porém, esse con-

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1049


trole central é alterado no neonato e inibido pela anestesia, aumentando a variação da temperatura para
3,5°C, para desencadear resposta termorregulatória. A anestesia interfere na termorregulação, diminuin-
do o tônus vasomotor e determinando a redistribuição interna de calor entre os compartimentos central
e periférico. Além disso, os anestésicos diminuem o limiar de vasoconstrição e tremor, fazendo com que
esses mecanismos de defesa sejam desencadeados tardiamente, com a hipotermia já instalada16.
A temperatura corporal média abaixo desse limiar desencadeia respostas autonômicas termorregulado-
ras. A primeira resposta à hipotermia é a vasoconstrição cutânea, que reduz o fluxo sanguíneo periférico,
concentrando o calor no compartimento central, reduzindo as perdas em até 25%. Se o controle da tempe-
ratura não for obtido com vasoconstrição, outras respostas geradoras de calor serão desencadeadas, como
tremor e termogênese da gordura marrom, com papel relevante até 1-2 anos de idade, período após o qual
os tremores passam a ter papel mais significativo. Alterações comportamentais muito sensíveis às altera-
ções da temperatura cutânea, como a atividade muscular voluntária, com encolhimento dos membros, são
importantes para manter a temperatura do neonato e lactente, porém, pouco efetivas, principalmente no
intraoperatório16. A perda do tônus vasomotor determina a redistribuição interna de calor entre os comparti-
mentos e queda de 1-3°C na temperatura central, proporcional ao gradiente entre os dois compartimentos16.
Na criança anestesiada, vasoconstrição e termogênese sem tremor são as únicas respostas termorregula-
tórias disponíveis. A redução no limiar de vasoconstrição pelos agentes inalatórios varia com a concentração
utilizada. Da mesma forma, agentes venosos também diminuem o limiar das respostas termorreguladoras16.
A gordura marron corresponde a 2-6% do peso e se distribui em 6 locais principais: entre as escápulas,
em torno dos grandes vasos do pescoço, depósitos na axila, mediastino, vasos intermamários e em torno
das adrenais e rim. A produção de calor pelo metabolismo da gordura marrom envolve ativação do sistema
nervoso simpático (SNS) e liberação de norepinefrina (NE) que ativa a lipase. Esse mecanismo de produção
de calor já está presente nas primeiras horas após o nascimento, porém, com capacidade limitada, dimi-
nuindo sua função gradativamente após o primeiro ano de vida16.
Na anestesia, a inibição da termogênese sem tremor ocorre 5 minutos após a indução inalatória, retor-
nando 15 minutos depois da descontinuação. Propofol e fentanil também ocasionam essa inibição17.
Durante a anestesia, a hipotermia se desenvolve em três fases. A primeira consiste na redistribuição
interna do calor, que ocorre na primeira hora de anestesia, sendo responsável por 80% da queda rápida
da temperatura central, contudo, o calor está praticamente mantido, mas se redistribui entre os com-
partimentos central e periférico. Na segunda fase, a diminuição do metabolismo é somada ao aumento
das perdas, resultando em queda linear de 0,5-1°C por hora. A dissipação do calor será proporcional à
diferença de temperatura entre a superfície corporal e o ambiente e diminuirá à medida que o paciente
se torna hipotérmico, até que se estabeleça o equilíbrio. Na terceira fase, ocorre o platô, no qual a pro-
dução metabólica se iguala às perdas, mantendo a temperatura central constante, entretanto, num valor
mais baixo, em torno de 34,5 – 35,5°C. Em contraste com adultos e crianças acima de 30 kg, a resposta
termorreguladora dos RN e lactentes é mais efetiva, provavelmente por desencadear vasoconstricção sig-
nificativa, restringindo o compartimento central o suficiente para aumentar sua temperatura17.
Entre os fatores de risco para o desenvolvimento da hipotermia perioperatória, podem ser citados:
idade (idosos e neonatos); peso corpóreo (IMC < 20); tipo e duração do procedimento cirúrgico e tempe-
ratura ambiente18.
Além do desconforto dos tremores, a hipotermia desencadeia vasoconstrição, particularmente intensa
em neonatos e lactentes, associada com a liberação de NE, aumento do consumo de O2 e produção de CO2,
impondo estresse fisiológico significativo em neonatos e lactentes. O aumento da demanda de oxigênio
pode gerar ou exacerbar a insuficiência cardiopulmonar preexistente. A NE liberada, além da vasocons-
trição, contribui para o desenvolvimento de acidose e hipóxia, propiciando o surgimento de shunts D-E e
hipertensão pulmonar, principalmente em neonatos e prematuros. Desse modo, instala-se um ciclo vicioso
da hipotermia em neonatos e lactentes, com hipoventilação ou apneia e diminuição do metabolismo dos
fármacos, potencializando seus efeitos. Observam-se menores necessidades dos bloqueadores neuromus-
culares, diminuição da CAM e aumento da solubilidade dos agentes inalatórios19.
A hipotermia também interfere nos fatores de coagulação, aumenta a TP e TTPA e inibe a agregação
plaquetária, sendo causa de maiores perdas sanguíneas e necessidade de transfusão. A vasoconstrição e a
diminuição da PaO2 aumentam a incidência de infecção e retardam a cicatrização na ferida operatória16.

1050 | Bases do Ensino da Anestesiologia


A manutenção da temperatura corpórea ou prevenção da hipotermia é obtida por diversas estratégias
de aquecimento, por meio do controle da temperatura da sala cirúrgica, restringindo as perdas por radia-
ção. A temperatura ambiente recomendada para lactentes, neonatos e prematuros é de 23o, 27o e 29oC,
respectivamente, embora essa medida isolada não resulte em manutenção da temperatura corpórea nes-
sa faixa etária. A administração de fluidos intravenosos aquecidos e cobertura do paciente reduzem as
perdas por radiação e convecção em até 30%. A proteção oferecida pela cobertura independe do material
utilizado, porém, é função direta da área coberta. Entre os dispositivos de aquecimento ativo, os sistemas
de manta com ar forçado são os mais eficazes, úteis tanto na prevenção como no tratamento da hipo-
termia. Os colchões térmicos utilizados no dorso do paciente têm menor efeito, pois atuam numa região
em que as perdas são menores. A associação de ambos é superior ao uso isolado de um dos sistemas. No
entanto, em cirurgias prolongadas, o colchão térmico pode representar risco para o desenvolvimento de
úlceras de compressão. A escolha da modalidade é responsabilidade do anestesiologista, que considera
as condições do paciente e sua segurança. A Sociedade Americana de Anestesiologistas (ASA) propõe que
pacientes submetidos a procedimentos anestésico-cirúrgicos com duração superior a 60 minutos tenham
sua temperatura corporal mantida superior a 36oC no pós-operatório imediato, sendo medida segura e
benéfica aos pacientes pediátricos16,20.
Sistema Nervoso
O tecido cerebral recebe maior porcentagem do DC que, associado com a imaturidade da barreira he-
matoencefálica, apresenta rápido equilíbrio dos agentes lipofílicos no sítio efetor.
O cone medular em neonatos e lactentes está localizado ao nível de L2-L3, sendo mais caudal que nos
adultos (L1), assim como as meninges estão localizadas em S3-S4. Entretanto, a partir de um ano de idade,
essas estruturas localizam-se em L1 e S1, respectivamente (Figura 47.6). O sacro é mais delgado e estreito
e o hiato sacral é facilmente identificado, permitindo acesso direto ao espaço peridural e subaracnóideo21.

Figura 47.6 - Diferenças anatômicas do SNC no adulto e na criança

A anestesia espinhal, em adultos, é realizada frequentemente no interespaço L3-L4, localizado entre


a linha imaginária que se estende de uma crista ilíaca à outra, linha de Truffier. Os RN e lactentes têm a
pélvis proporcionalmente menor que os adultos e o sacro está localizado mais cefálico. Logo, a linha de
Truffier cruza a linha média da coluna vertebral no interespaço L4-L5 ou L5-S1, abaixo da medula espi-
nhal, tornando-a referência apropriada para os bloqueios espinhais nos pacientes pediátricos. Em crianças
pequenas, o final do saco dural pode estar a apenas poucos milímetros do local de punção. A terminação
mais caudal do saco dural propicia a punção inadvertida do espaço subaracnóideo durante a realização do
bloqueio caudal. Portanto, deve-se progredir e direcionar a agulha cuidadosamente21.
Entre as particularidades fisiológicas no sistema nervoso central (SNC), a menor espessura dos nervos e
o processo de mielinização incompleto, até em torno dos 18 meses de vida, promovem inespecificidade de
resposta aos estímulos nervosos. A menor distância entre os nodos de Ranvier e a frouxa bainha perineu-
rovascular permite uma comunicação livre entre os espaços perineurais, com maior difusão dos anestésicos
locais e, consequentemente, maior área de analgesia após injeção única do anestésico. O volume do líquido
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1051
cefalorraquidiano (LCR), relativo ao peso, é maior em RN e lactentes (4 mL.kg-1) quando comparados com
os adultos (2 mL.kg-1), o que explica parcialmente as maiores doses de anestésico local e a menor duração
da raquianestesia nessa população. Outros fatores que determinam menor duração de ação e maiores doses
do anestésico local são alto índice cardíaco, maior fluxo sanguíneo regional espinal/epidural e maior área de
exposição dos tecidos neurais, todos promovendo maior captação do anestésico local21.
A configuração anatômica da coluna vertebral é plana em crianças pequenas e, consequentemente, o
anestésico injetado no espaço subaracnoide é distribuído uniformemente, resultando em bloqueio médio
torácico. Todos esses fatores contribuem para a grande eficácia dos bloqueios nervosos na população pe-
diátrica, promovendo anestesia de boa qualidade com menores concentrações de anestésico local21.
As alterações hemodinâmicas decorrentes dos bloqueios de neuroeixo são raras na criança devido à ima-
turidade do sistema nervoso simpático (SNS) e menor capacitância do sistema venoso em crianças menores
de 8 anos. Isso minimiza a necessidade de aumento da pré-carga com volume ou com o uso de vasoconstrito-
res. No entanto, pacientes individuais, especialmente recém-nascidos e lactentes pequenos, com anestesia
caudal e geral combinada, podem experimentar profunda hipotensão após um bloqueio caudal21.
A diferença mais importante na farmacodinâmica da criança consiste no risco aumentado de toxicidade
pelos anestésicos locais, ocasionado pelo elevado débito cardíaco e imaturidade do metabolismo hepáti-
co. As menores concentrações de albumina e de alfa 1-glicoproteína plasmática resultam em aumento da
fração livre do anestésico local. Todos esses fatores associados fazem com que a latência e duração dos
bloqueios regionais, nos neonatos e lactentes, sejam menores quando comparadas aos adultos21.

47.2. FISIOPATOLOGIA FETAL E NEONATAL. EQUILÍBRIO ACIDOBÁSICO E


HIDROELETROLÍTICO FETAL E NEONATAL
A transição entre a vida intraútero e extraútero impõe profundas alterações fisiológicas. As modifica-
ções no sistema cardiovascular e respiratório são as mais importantes e acontecem para garantir a per-
feita adaptação do neonato à respiração em ar ambiente3. É de suma importância conhecer o mecanismo
normal de transição das funções fisiológicas do período fetal para o neonatal, para a adequada avaliação
e diagnóstico diferencial de quadros de cianose ou deterioração hemodinâmica nos neonatos22,23.

Circulação Fetal
A placenta é o órgão respiratório no período fetal. Ela possui PaO2 de 30 mmHg, substitui os pulmões
e supre as coronárias, o sistema nervoso central e os membros superiores. Os pulmões, no período fetal,
estão repletos de líquido, possuindo alta resistência vascular e recebendo apenas 10% do débito cardíaco.
A circulação fetal possui um débito cardíaco combinado, ou seja, tanto o ventrículo direito (VD) como o
ventrículo esquerdo (VE) ejetam sangue para a circulação sistêmica, através do forame oval (FO) e canal
arterial (CA). O ventrículo direito é responsável por dois terços do débito cardíaco, desse modo, o miocár-
dio do VD é tão ou mais espesso que o do VE antes do nascimento. Ao contrário da resistência vascular
pulmonar, a circulação sistêmica possui baixa resistência vascular devido a placenta, propiciando o shunt
direita-esquerda através do FO e CA22,23.

Circulação Pós-natal
Ao nascimento, a interrupção da circulação placentária e a expansão pulmonar desencadeiam impor-
tantes alterações circulatórias. A insuflação pulmonar desloca o líquido intra-alveolar para a circulação,
gerando um incremento na volemia do neonato. Além disso, a expansão do parênquima pulmonar aumenta
a tensão alveolar de oxigênio, diminui a resistência vascular pulmonar (RVP), aumenta o fluxo sanguíneo
pulmonar e, consequentemente, diminui a pressão nas câmaras direitas do coração. Porém, se após o
nascimento a RVP não se normaliza, é possível a persistência dos shunts D-E intracardíacos ou extracar-
díacos com consequente cianose. A ligadura do cordão umbilical leva ao aumento da resistência vascular
sistêmica (RVS), da pressão aórtica e da pressão nas câmaras cardíacas esquerdas. Tanto o aumento do
retorno venoso pulmonar como a pressão no átrio esquerdo contribuem para o fechamento fisiológico do
forame oval. O sangue ejetado na aorta, rico em oxigênio (PaO2 > 50 mmHg) e com baixa pressão parcial
de CO2, leva à contração da musculatura vascular do CA, fechando também, de forma fisiológica, esse
shunt. Durante a gestação, a manutenção do canal arterial pérvio é controlada pelo baixo nível de oxigê-

1052 | Bases do Ensino da Anestesiologia


nio no sangue e pela produção de prostaglandinas. Após o nascimento, o oxigênio constitui o fator mais
importante no controle do fechamento do CA22,23 (Gráfico 47.1).
Gráfico 47.1 – Alterações na pressão de artéria pulmonar, no fluxo sanguíneo e na resistência vascular pulmo-
nar no final da gestação até o período neonatal

(Adaptado de Rudolph AM. Prenatal and postnatal


pulmonar circulation. In: Rudolph AM (editor).
Congenital disease of the heart. 2nd ed. Armonk:
Futura, 2001.)

Esse padrão de circulação no neonato é conhecido como circulação transicional. Algumas mudanças
ocorrem ao primeiro movimento respiratório, enquanto outras levam horas ou dias. Até o terceiro mês de
vida, qualquer fator que leve ao aumento da RVP pode desencadear a abertura dessa comunicação, com
reaparecimento do shunt D-E através do forame oval com o retorno ao padrão fetal de circulação. Os fa-
tores que predispõem à reversão da circulação transicional para o padrão fetal são comuns em neonatos
críticos, como prematuridade; hipóxia e hipercarbia; aumento da pressão intratorácica; acidose metabó-
lica; hipotermia; hipervolemia; sepse e estresse7.
Equilíbrio Acidobásico e Hidroeletrolítico Fetal e Neonatal
À medida que ocorrem o crescimento e desenvolvimento do organismo, há aumento progressivo da
quantidade de células e, consequentemente, do LIC como um todo. O intracelular é composto principal-
mente de potássio (k+), fosfatos orgânicos e proteínas e, o extracelular, de sódio (Na+), cálcio (Ca+2), mag-
nésio (Mg+), cloreto (Cl-), bicarbonato (bic) e ácidos orgânicos25 (Tabela 47.7).
Tabela 47.7 - Composição dos líquidos corporais
Líquido extracelular (LEC) Líquido intracelular (LIC)
Osmolalidade (mOsm) 290 - 310 290 - 310
Cátions (mEq/L) 155 155
Na +
138 - 142 10
K+
4,0 – 4,5 110
Ca+2 4,5 – 5,0 -
Mg +2
3 40
Ânions (mEq/L) 155 155
Cl -
103 -
HCO3 -
27 -
HPO4 -2
- 10
SO4 -2
- 110
PO4- 2 3 -
Ácidos orgânicos 6 -
Proteínas 16 40
(Adaptado de McClain CD. Fluid management. In: Coté CJ .)
6

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1053


Distúrbios Hidroeletrolíticos
Os distúrbios hidroeletrolíticos constituem-se em eventos extremamente comuns na prática médica
pediátrica, principalmente em situações de emergência, quando, dependendo da magnitude, podem re-
presentar risco de vida ou de sequelas para o paciente. A desidratação, independentemente da etiologia,
tem sua importância definida pela intensidade das perdas líquidas (leve, moderada e grave) e pela pro-
porção de perdas salinas em relação à perda de água (isotônica, hipotônica e hipertônica), devendo ser
corretamente caracterizada, de modo a orientar um tratamento adequado. Os distúrbios do sódio carac-
terizam-se, principalmente, pelo risco de comprometimento do sistema nervoso central, e os distúrbios
do potássio, pelo risco de arritmias cardíacas, merecendo sempre atenção especial e tratamento cuidado-
so. Já os distúrbios do cálcio, magnésio e fósforo estão mais relacionados ao comprometimento da função
neuromuscular e, embora menos ameaçadores, precisam ser adequadamente reconhecidos e tratados25.
Desidratação
É a redução do volume extracelular secundária às perdas hidroeletrolíticas, a qual depende da gravi-
dade do déficit em relação às reservas corpóreas e da relação entre o déficit de água e de eletrólitos,
principalmente o Na+. Sendo classificada de acordo com o déficit de água e, clinicamente estimada por
meio de sinais clínicos e peso ponderal.
Nos neonatos e lactentes, a avaliação do turgor das fontanelas pela palpação é uma técnica elucidati-
va, capaz de fornecer dados sobre o estado de hidratação. Na vigência de hipovolemia ou em estados de
desidratação, a fontanela encontra-se deprimida, e em estados de hiper-hidratação ou hipertensão intra-
craniana, túrgida25,26 (Tabela 47.8).
Um bom parâmetro para avaliar o balanço hídrico em crianças pequenas é a análise do peso pré
e pós-operatório.
O grau de hipovolemia pode ser acessado usando uma combinação de sinais clínicos e fisiológicos. Neo-
natos e lactentes apresentam, como resposta compensatória à hipovolemia, aumento da frequência car-
díaca e vasoconstrição periférica. Entretanto, a habilidade para elevar o débito cardíaco só ocorre com o
desenvolvimento e avanço da idade, sendo a hipotensão arterial um sinal tardio, sugerindo deterioração
iminente e necessitando de intervenção imediata25,26.
Tabela 47.8 - Avaliação clínica da desidratação

Sinais e sintomas Leve Moderada Grave

Perda de peso (%) 2,5 - 5 5 - 10 > 10

Déficit (mL/kg) 25 - 50 50 -100 > 100

Enchimento capilar (s) até 3 3 a 10 > 10

Aparência - Palidez Hipotermia e sudorese

Turgor da pele Normal Diminuído Muito diminuído

Mucosa Úmida Seca Muito seca

Fontanela Normal Deprimida Muito deprimida

Pulso Normal Rápido Rápido e filiforme

Pressão arterial Normal Normal ou diminuída Diminuída

Respiração Normal Profunda Profunda e rápida

Diurese (ml/kg/h) <2 <1 < 0,5

A desidratação é classificada conforme o nível sérico de Na+, resultante destas perdas:


• Desidratação hipotônica ou hiponatrêmica (Na+ < 130 mEq.L-1) - ocorre depleção de sódio e água,
porém com maior perda proporcional de Na+ em relação à perda hídrica. Os sinais e sintomas da
desidratação são mais acentuados24.
1054 | Bases do Ensino da Anestesiologia
• Desidratação isotônica ou isonatrêmica (Na+ = 135 a 150 mEq.L-1) - é o tipo mais frequente de
desidratação, na qual ocorre depleção de sódio e água, com perda proporcional à concentração do
fluido extracelular24.
• Desidratação hipertônica ou hipernatrêmica (Na+ > 150 mEq.L-1) - há depleção de sódio e água,
porém, com perda proporcional maior de água, levando à desidratação celular com graves sintomas
secundários, principalmente o comprometimento do SNC, mais comum no lactente24.
Independentemente da etiologia da desidratação, devem-se considerar o grau de perda de água e o
nível de sódio; outros distúrbios eletrolíticos e metabólicos poderão estar presentes, merecendo atenção
especial o equilíbrio ácido-base e os níveis de potássio24.
Crianças com doenças abdominais, em geral, apresentam desequilíbrio no balanço hidroeletrolítico
causado por vômitos, edema de alças intestinais, formação do terceiro espaço, evaporação ou sangra-
mento. O desequilíbrio hidroeletrolítico e a volemia devem ser corrigidos previamente à indução anesté-
sica, no entanto, nem sempre é possível. Pacientes hipovolêmicos podem desenvolver grave hipotensão
arterial na indução anestésica, devido à vasodilatação periférica e ao bloqueio dos reflexos autonômicos
ocasionado pelos agentes anestésicos. Durante a cirurgia, são necessários líquidos para a reposição das
perdas básicas (líquidos de manutenção) e as demais perdas, inclusive de sangue (líquidos de reposição).
A solução fisiológica e a solução de ringer com lactato são adequadas, tanto para a manutenção quanto
para a reposição, por serem soluções isosmolares em relação ao plasma25 (ver tópico 47.7. Hidratação e
Reposição e a Tabela 47.8).

Distúrbios do sódio
Hiponatremia: caracterizada por Na+ sérico < 130 mEq.L-1, apresenta maior gravidade com níveis de
sódio abaixo de 120 mEq.L-1, necessitando correção imediata e cautelosa. É o distúrbio mais comum en-
contrado em pacientes instáveis, decorrendo de uma diversidade de condições clínicas.
A hiponatremia causa diminuição da osmolaridade do espaço extracelular, com movimento de líqui-
dos do extracelular para o intracelular, ocasionando edema celular. O edema no SNC é responsável pela
maioria dos sintomas da hiponatremia, que incluem: anorexia; náuseas e vômitos; mal-estar; letargia;
confusão; agitação; cefaleia; crises convulsivas; coma e diminuição de reflexos24,26.
Correção excessivamente rápida da natremia pode desencadear mielinólise central pontina. Portanto,
recomenda-se aumentar o sódio sérico em 10 a 12 mEq.L-1 a cada 24 horas, evitando-se bolus de sódio.
Exceção nos casos sintomáticos de hiponatremia aguda, cursando com crise convulsiva; nestes, recomen-
da-se administrar NaCl 3% (1 mL = 0,5 mEq); geralmente há melhora após a infusão de 4 a 6 mL.kg-1.
Em hiponatremia com Na+ sérico < 120 mEq.L-1, existe risco iminente de sintomatologia grave; recomen-
da-se utilizar a fórmula a seguir para correções mais rápidas:
Reposição Na+ (mEq) = ([Na+] desejado – [Na+] encontrado) x 0,6 x peso (kg)
Para correções seguras, o sódio desejado deve ser 125 mEq.L-1 e a infusão realizada em 4 horas, respei-
tando a velocidade máxima de infusão de sódio de 5 mEq.kg-1.h-1.
Hipernatremia: é definida por sódio sérico acima de 145 mEq.L-1, embora, às vezes, seja definida por
sódio acima de 150 mEq.L-1. Resulta da interação de três mecanismos: aporte deficiente de água, aporte
excessivo de sal e existência de perdas diluídas em relação ao plasma24,26.
O quadro clínico, na maioria das crianças, inclui o quadro típico de desidratação. Como há desvio de
água para o intravascular, o quadro de desidratação se instala mais tardiamente e a criança mantém a diu-
rese. Devido às alterações no SNC, as crianças podem apresentar irritabilidade; letargia; fraqueza; coma;
hipertonia muscular, hiperreflexia e convulsões. Pode ocorrer hemorragia cerebral por diminuição do vo-
lume encefálico e estiramento de vasos intracerebrais (ocorre na instalação aguda) e, ainda, complicações
trombóticas devido à hipercoagulabilidade sanguínea24,26.
O tratamento visa à restauração da volemia e da osmolaridade dos líquidos corporais; a diminuição do
sódio não deve ultrapassar 10 mEq.L-1 por dia. Exceção nos casos em que houve hipernatremia sabidamen-
te aguda (menor que 12 horas). Mensuração frequente de sódio sérico está indicada para ajustar a terapia
endovenosa. Se ocorrer crise convulsiva na evolução, provavelmente houve edema cerebral por queda
inadvertidamente rápida do Na+, tratado com infusão de NaCl a 3% 1 a 2 mL/kg em bolus25,27.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1055


Deve-se fazer a correção calculando o déficit de água e repondo como água livre (SG 5%)
Déficit de água = peso (kg) x 0,6 x (1 – 145/sódio encontrado)
Isso equivale a reposição de 3 a 4 mL.kg-1 para cada 1 mEq.L-1 de Na+ acima de 145 mEq.L-1. A oferta de
líquido deve ser feita em 48 horas, associada com a reposição do volume de manutenção, com fluido que
contenha concentrações de sódio de cerca de 20 a 30 mEq.L-1. Não se esquecer de ofertar a necessidade ba-
sal de sódio e potássio (importante para manter o volume celular), se diurese estiver presente e potássio for
normal. Caso ocorra hiperglicemia concomitante, não administrar insulina, pois esta pode reduzir muito rapi-
damente a osmolaridade plasmática. O tratamento inclui a redução de concentração de glicose no soro24,26.
Distúrbio do Potássio
O potássio é o principal eletrólito intracelular, e a relação entre seus níveis intracelular e extracelular
é o principal determinante do potencial elétrico transmembrana. Portanto, qualquer alteração significati-
va na concentração extracelular pode ter sérios efeitos na função metabólica, na condução nervosa e no
ritmo cardíaco, predispondo a arritmias cardíacas nos casos graves24,26.
Hipopotassemia: caracterizada por K+ < 3,5 mEq.L-1, geralmente assintomática, nos casos graves, po-
dem surgir arritmias cardíacas. Sempre que possível, procurar identificar e corrigir a causa básica que
está determinando o distúrbio eletrolítico. Para K+< 2,5 mEq.L-1, administrar 0,5 mEq.kg-1.h-1 com monito-
rização do eletrocardiograma (ECG), até que ocorra aumento da frequência cardíaca e despareça a onda
U no ECG em 4 horas. Não usar solução com concentração > 80 mEq.L-1. Nos casos leves, com K+ entre 2,5
e 3,5 mEq.L-1, administrar 3 a 5 mEq.kg-1.dia-1; nos casos de uso de diurético expoliador de potássio (furo-
semida), substituir por diurético poupador de K+ (espironolactona)24,26.
Hiperpotassemia: caracterizada por K+ > 5,0 mEq.L-1, geralmente assintomática, embora nos casos gra-
ves possa cursar com alterações da função muscular e do ritmo cardíaco. Classificada de acordo com a
gravidade em: leve (K+ < 6 mEq.L-1), com ECG normal ou apenas com onda T apiculada; moderada (K+ entre
6 e 8 mEq.L-1), com ECG com onda T apiculada; grave (K+ > 8 mEq.L-1), com ECG com onda P ausente, QRS
alargado ou arritmias atriais e/ou ventriculares24,26.
O tratamento da hiperpotassemia vai depender da gravidade do quadro. Em todos os casos, vale res-
tringir ou suspender a administração de potássio e corrigir as causas de base. Nos quadros leves, essas
medidas bastam, e é possível associar furosemida. Nos casos moderados e graves (K+ > 6 mEq.L-1), segue-se
o esquema a seguir26 (Tabela 47.9).
Tabela 47.9 - Correção de hiperpotassemia

Fármaco Dose e Via


Gluconato de cálcio 10% 0,5-1 mEq.kg (1-2 mL.kg-1) EV
-1

Bicarbonato de sódio 8,4% 1 - 2 mEq.kg-1 EV


Glicose 50% 0,5 - 1 g.kg-1 (1-2 mL.kg-1) EV
Insulina simples 1UI para cada 5 g de glicose EV

Distúrbios Ácido-base
Acidose metabólica: é um distúrbio do metabolismo acidobásico caracterizado por acúmulo de radi-
cais ácidos (H+) de origem endógena ou exógena com consumo de bases (HCO3) e diminuição do pH sanguí-
neo. Diagnóstico laboratorial consiste em pH < 7,4; Bic < 24 e PCO2 > 40 mmHg; AG = Na+ – (Bic + Cl-) = 12
± 2. O tratamento está fundamentado na hidratação e correção do bicarbonato de sódio, indicado quando
pH < 7,2; Bic < 12; usando a fórmula:
Bic (mEq) = peso x BE x 0,3
Corrigir em 3-4 horas, se pH < 7,0: corrigir a metade na primeira hora e o restante em 3 horas. Evitar
o uso de bicarbonato em bolus. Lembrar que o aumento de 0,1 no pH pode levar à diminuição de 0,3 a
0,5 mEq.L-1 de potássio24,26.
Alcalose metabólica: geralmente ocorre com outras alterações de fluidos e eletrólitos (potássio). O
diagnóstico laboratorial revela pH > 7,4, Bic > 24 e PCO2 < 40 mmHg. O tratamento consiste em eliminar a

1056 | Bases do Ensino da Anestesiologia


causa, exemplo antieméticos e reposição volêmica no caso de vômitos e, quando associado à hipopotas-
semia, corrigir o déficit de potássio24,26.

47.3. REANIMAÇÃO NEONATAL


A parada cardiorrespiratória (PCR) neonatal ocorre predominantemente por asfixia. A clipagem retar-
dada do cordão após 30 segundos é indicada para RN prematuros e nascidos a termo que não necessitam
de reanimação cardiorrespiratória (RCP) ao nascimento. Não há evidências suficientes para recomendar o
pinçamento do cordão em crianças que necessitam de RCP27,28.
Imediatamente após o nascimento, a avaliação de três situações determina a necessidade ou não de
reanimação: 1) Gestação a termo? 2) Bom tônus? 3) Respira ou chora? Resposta sim a todas as perguntas
acima: o RN não necessita de reanimação, permanecendo com a mãe e para ser estimulado à sucção
ao seio materno. Resposta não a qualquer uma das perguntas, realizar, em sequência, as manobras
de reanimação:
1. Básicas:
A. Fornecer calor.
B. Posicionar a cabeça, objetivando manter as vias aéreas pérvias.
C. Aspirar boca e narinas (evitar a introdução da sonda de aspiração de maneira brusca ou na farin-
ge posterior, devido ao risco de resposta vagal, laringoespasmo, apneia e bradicardia).
D. Secar e remover os campos úmidos.
E. Estimulação tátil, se necessário.
F. Oferta de oxigênio, para reverter a cianose central.
2. Avançadas: para reverter depressão respiratória e instabilidade hemodinâmica.
A. Ventilação com pressão positiva.
B. Intubação traqueal.
C. Massagem cardíaca externa.
D. Medicações e fluidos.
O quadro 47.1 mostra a aspiração do RN em caso de líquido meconial após parto.
Quadro 47.1 - Aspiração do RN em caso de líquido meconial após o parto

RN Não Deprimido RN Deprimido


(bom tônus, respirando ou choran- (hipotônico, apneia, FC < 100 bpm)
do, FC > 100 bpm)
Aspirar vias aéreas, boca e faringe Laringoscopia e aspiração de boca e faringe posterior, facilitando a visuali-
zação da glote
Lembre-se: a qualquer momento,
A intubação de rotina para aspiração traqueal nesse cenário não é indicada,
o RN pode necessitar de ventila-
pois não há evidências suficientes que justifiquem recomendar essa prática.
ção com pressão positiva (VPP),
No entanto, um time que inclua profissional especializado em intubação de
devendo ser intubado para aspi-
RN deve permanecer presente na sala de parto
rar a traqueia antes de se iniciar
a VPP Aspirar lentamente a cânula traqueal, repetir o procedimento, cessar a
saída de mecônio ou até a FC, indicar que a reanimação deve prosseguir
sem demora
Administrar O2 inalatório durante todo o procedimento de aspiração traqueal

A marca do minuto de ouro (60 segundos) para concluir os passos iniciais, reavaliar e iniciar a ventilação
(se necessária) está mantida para enfatizar a importância de evitar atrasos desnecessários no inicio da ven-
tilação; é o passo mais importante para o sucesso da RCP do RN que não responder aos passos iniciais27,28.
Avaliação Periódica em Intervalos de 30 Segundos
As manobras de RCP, conforme preconizado, são guiadas pela avaliação simultânea da respiração, FC e
cor, mantendo reavaliações frequentes a cada 30 segundos27,28.
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1057
1- Respiração: observar os movimentos respiratórios e a expansão torácica.
2- Frequência cardíaca (FC): A avaliação é fundamental durante o primeiro minuto da RCP. O uso do
ECG de três derivações é aconselhável, pois os profissionais podem não conseguir avaliar com precisão a
FC por ausculta ou palpação e a oximetria de pulso pode subestimar a FC. A utilização do ECG não elimina
a necessidade de oximetria de pulso para avaliar a oxigenação do recém-nascido. A palpação do cordão
umbilical e/ou a ausculta dos batimentos cardíacos devem ser superiores a 100 bpm.
3- Cor: neonatos com boa vitalidade são róseos ou têm cianose de extremidades (acrocianose). A cia-
nose central é determinada pelo exame da face, do tronco e das membranas mucosas. A palidez pode
refletir diminuição do débito cardíaco, anemia grave, hipovolemia, acidose e/ou hipotermia.
Todas as manobras de reanimação neonatal levam em consideração os seguintes preceitos básicos:
• A (airways) - manter vias aéreas pérvias; posicionamento da cabeça e do pescoço; aspiração de via
aérea superior e, se necessário, da traqueia.
• B (breathing) - garantir a respiração por meio da ventilação com pressão positiva.
• C (circulation) - manter a circulação com massagem cardíaca e/ou uso de medicações ou fluidos.
Independentemente do sinal vital alterado, deve-se priorizar a oxigenação com estabelecimento de
adequada ventilação pulmonar.

Controle da Temperatura Corporal


Durante toda a RCP deve-se evitar a perda de calor, pois o estresse pelo frio aumenta o consumo
de O2 e dificulta a efetividade da reanimação. É fator de previsão dos desfechos e indicador de quali-
dade. A temperatura do RN não asfixiado deve ser mantida entre 36,5°C e 37,5°C após o nascimento,
desde a admissão até a estabilização. A hipertermia (> 38°C) deve ser evitada, pois apresenta possí-
veis riscos associados27,28.

Administração de O2 Suplementar
A adaptação neonatal é um processo gradativo. RN saudáveis a termo levam mais de 10 minutos para
atingir uma saturação de oxigênio pré-ductal > 95% e aproximadamente uma hora para que a saturação
pós-ductal seja > 95%. A cianose central (lábios, língua e região central do tronco), mesmo na vigência de
respiração espontânea e FC > 100 bpm, indica a necessidade de administração de O2 suplementar, umidi-
ficado e aquecido. A saturação de O2 entre 80% e 90% nas primeiras horas de vida é fisiológica; recomen-
da-se maior tolerância à cianose central no RN que mantém respiração, frequência cardíaca e tônus mus-
cular adequados, na sala de parto. Inicie a RCP dos RN prematuros < 35 semanas de gestação com frações
inspiradas de O2 entre 21% a 30%. Titule o O2 até atingir a saturação de O2 pré-ductal e se aproximar do
intervalo alcançado por RN saudáveis nascidos a termo.
Não é recomendado iniciar a RCP de RN prematuros com alta taxa de O2 (≥ 65%) para não expor os RN
prematuros a O2 adicional, sem que os dados demonstrem um benefício comprovado. Pode-se conside-
rar o uso de uma máscara laríngea como alternativa à intubação traqueal, caso não se obtenha êxito na
ventilação com máscara facial. A máscara laríngea é recomendada durante a ressuscitação de RN com 34
semanas ou mais de gestação, quando a intubação traqueal é inviável28,29.
Ventilação com Pressão Positiva (VPP)
A ventilação pulmonar é o procedimento mais simples, importante e efetivo na reanimação do RN na
sala de parto. A reversão da hipoxemia, acidose e bradicardia depende da insuflação adequada dos pul-
mões após o nascimento. Após os passos iniciais, se o RN não respira ou o faz de maneira irregular, a ven-
tilação pulmonar deve ser priorizada. A recomendação é iniciar a VPP acompanhada de oxigênio a 100%.
As indicações de VPP incluem apneia ou respirações irregulares, FC < 100 bpm, mesmo se o RN estiver
respirando e houver cianose central persistente apesar de O2 inalatório.
Em termos da adequação da VPP, a elevação da FC é o desfecho mais importante, seguida de melhora
da coloração e do tônus muscular, para posteriormente ocorrer o reestabelecimento da respiração es-
pontânea. Caso não haja recuperação do neonato, verifique todos os passos realizados; ajuste a máscara
facial; adapte a pressão de insuflação; veja o funcionamento da unidade ventilatória, a oferta de oxigênio,
se há obstrução das vias aéreas por posicionamento inadequado ou secreção e a presença de distensão
1058 | Bases do Ensino da Anestesiologia
gástrica que possa estar interferindo com a ventilação. Se o neonato mantém FC < 100 bpm, está indicada
a intubação traqueal. RN prematuros que respiram espontaneamente com desconforto respiratório podem
ser inicialmente auxiliados, com pressão positiva contínua nas vias aéreas em vez de intubação de rotina
para a administração de VPP28,29.
Intubação
As indicações de intubação traqueal são para líquido amniótico meconial; RN deprimido; ventilação
bolsa/máscara ineficaz; ausência de respiração espontânea efetiva; administração endotraqueal de fár-
macos e prolongamento das manobras de reanimação. Em algumas situações especiais, recomenda-se
intubação traqueal precoce, como em RN portadores de hérnia diafragmática que necessitem de VPP, pre-
maturidade extrema (idade gestacional < 30 semanas) para a administração de surfactante e neonatos de
extremo baixo peso (< 1.000 g). Em situações de emergência, a via de intubação indicada é a orotraqueal,
e o tempo máximo para cada tentativa de intubação é de 20 segundos.
Ao ventilar prematuros, devem-se evitar insuflações pulmonares profundas que possam gerar grandes
volumes, devido ao risco de lesão pulmonar, recomendando-se a instituição de baixos níveis de PEEP, prin-
cipalmente em ventilações prolongadas. Na vigência de VPP através de bolsa-tubo traqueal, se o neonato
não recuperar os sinais vitais, outras intercorrências clínicas devem ser consideradas, como pneumotórax.
Havendo deterioração do estado geral e manutenção de baixas frequências cardíacas (< 60 bpm), após 30
segundos de ventilação efetiva, o próximo passo será iniciar a massagem cardíaca27,28.
Massagem Cardíaca
A massagem cardíaca externa (MCE) diminui a eficácia da ventilação, devendo somente ser iniciada
quando a expansão e ventilação pulmonar estiverem bem estabelecidas. As indicações para iniciar a MCE
são: FC < 60 bpm, após ventilação adequada com O2 suplementar por 30 segundos e assistolia. Nessas si-
tuações, sempre considerar a intubação do RN. Para assegurar uma ventilação efetiva e facilitar a coor-
denação entre a ventilação e a massagem cardíaca, a relação ventilação/massagem preconizada é de 1
ventilação para 3 massagens, realizando um total de 30 ventilações e 90 compressões por minuto. Para
adequada MCE no neonato, recomenda-se a técnica de polegares (preferível) ou de dois dedos (aceitável).
A compressão deve ser exercida de forma vertical ao terço inferior do esterno, sendo suficiente para de-
primir o tórax a uma profundidade de quase um terço do diâmetro anteroposterior da caixa torácica. Para
garantir um DC adequado, a duração da fase de compressão torácica deve ser ligeiramente menor que a
duração da descompressão.
Após 30 segundos de MCE e ventilação adequadamente coordenadas, avalie a FC; se for > 60 bpm,
interrompa a massagem cardíaca, mantendo a VPP até que a FC seja > 100 bpm e o RN apresente respi-
ração espontânea. Caso o RN não apresente melhora, reavalie todo o procedimento: movimento torácico
durante a ventilação; intubação traqueal; administração de O2 a 100%; profundidade da compressão torá-
cica e coordenação massagem/ventilação. Havendo deterioração do neonato e manutenção de baixas FC
(< 60 bpm), após 30 segundos de MCE e VPP com O2 a 100%, o próximo passo será iniciar a administração
de epinefrina (adrenalina). Os socorristas podem considerar relações mais altas (por exemplo, 15:2), caso
acreditem que a parada tenha origem cardíaca. Embora não existam estudos clínicos disponíveis sobre o
uso de O2 durante a RCP, o grupo de redação das diretrizes neonatais continua a endossar o uso de O2 a
100% sempre que forem aplicadas compressões torácicas. É aconselhável reduzir gradativamente a con-
centração de O2 logo que a FC se recuperar27,28.
Medicações e Fluidos
Entre as opções de vias para a administração de drogas no neonato, podemos considerar: a) cânula tra-
queal, porém, a absorção no parênquima pulmonar é lenta e imprevisível; recomenda-se usar a dose máxima;
b) a veia umbilical é a via preferencial na sala de parto, devido a facilidade de acesso; c) a via intraóssea no
neonato pode ser eventualmente empregada como via alternativa ao acesso venoso direto; d) as veias perifé-
ricas não são boas opções para o acesso venoso, devido à dificuldade de visualização no RN bradicárdico27,28.
1. Epinefrina (adrenalina)
A principal indicação é FC < 60 bpm, após 30 segundos de ventilação e MCE adequadas (Classe I). Dose:
0,01-0,03 mg.kg-1, a cada 3 a 5 min, por via venosa, acompanhada de um “bolus” de 1 a 2 mL de soro
fisiológico. Enquanto o acesso venoso é obtido, dose elevada (0,03 até 0,1 mg.kg-1), através do tubo en-
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1059
dotraqueal (ET), pode ser considerada, seguida de “bolus” de 0,5 a 1,0 mL de soro fisiológico e VPP para
que o fármaco alcance os pulmões (Classe Indeterminada). Vale lembrar que, quando não há reversão da
bradicardia com o uso da adrenalina, antes de repetir ou administrar outras medicações, é importante
verificar a efetividade de VPP e MCE, o coração em hipóxia responde mal à adrenalina.
2. Bicarbonato de Na+ a 8,4%
Somente indicado na acidose metabólica confirmada (Classe II a) em dose de 2 mEq.Kg-1 (4 ml.kg-1 da
solução 4,2%), EV lento, 1 mEq.Kg-1.min-1. O bicarbonato de sódio é indicado de modo excepcional (Classe
IIb), na suspeita de acidose metabólica grave durante a reanimação prolongada, quando não houver res-
posta às outras medidas terapêuticas e com a segurança de que a ventilação e a massagem estão sendo
aplicadas com a técnica correta. Lembrar que a hiperosmolaridade e a geração de gás carbônico promo-
vidas pelo bicarbonato podem ser deletérias às funções miocárdica e cerebral do neonato.
3. Expansores de volume
Os expansores de volume estão indicados na reanimação do RN com perda sanguínea comprovada du-
rante o parto ou em neonatos com sinais evidentes de choque hipovolêmico como palidez, má perfusão e
pulsos fracos. O expansor de escolha é a solução cristaloide isotônica (soro fisiológico 0,9% ou Ringer com
lactato), na dose de 10 ml.kg-1, por via venosa rápido, em 10 minutos.
4. Naloxona
A naloxona está formalmente indicada em neonatos com depressão respiratória decorrente do uso de
opioides materno, em até 4 horas antes do início do trabalho de parto.
5. ABC da Cianose
Hipoxemia transitória e acidose são bem toleradas por neonatos normais e a termo, entretanto, a ma-
nutenção de hipoxemia e acidose impede a transição fisiológica entre o período fetal e neonatal. Não
havendo sucesso na reanimação, após verificação da efetividade de todas as manobras, devem-se somar
esforços, objetivando o estabelecimento do diagnóstico das possíveis causas de cianose. Recomenda-se
estratégia de avaliação baseada no suporte avançado de vida em neonatologia, que preconiza o ABC da
cianose (Quadro 47.2)27,28.
Quadro 47.2 – ABC da cianose

A - Via aérea B - Respiração C - Circulação


Atresia de coanas Depressão central Diminuição do transporte de O2
Micrognatia Hérnia diafragmática congênita Policitemia
Pierre Robin Malformação adenomatosa cística Anemia
Laringomalácia Sequestro pulmonar Meta-hemoglobinemia
Paralisia das cordas vocais Enfisema lobar congênito Cardiopatias congênitas
Diminuição do fluxo sanguíneo pul-
Estenose de traqueia Hipoplasia pulmonar
monar
Anéis vasculares Paralisia do nervo frênico Shunt D-E
Hipoventilação por depressão medi-
Higroma cístico
camentosa
Hemangioma
Tumores cervicais
(Adaptado de Steinhorn RH. Evaluation and management of the cyanotic neonate.)

47.4. AVALIAÇÃO E PREPARO PRÉ-ANESTÉSICO


A história clínica e o exame físico devem ser direcionados para as condições que mais afetam as crian-
ças e que interferem na anestesia. Ela se inicia na investigação das intercorrências durante a gestação e
o nascimento.
1060 | Bases do Ensino da Anestesiologia
Gestação e Período Neonatal
História cuidadosa sobre os antecedentes maternos e neonatais fornece subsídios sobre problemas po-
tencialmente graves e que podem interferir com a anestesia (Tabela 47.10).
Tabela 47.10 - Problemas neonatais associados com problemas gestacionais

História materna Problemas neonatais associados

Incompatibilidade Rh-ABO Anemia hemolítica, hiperbilirrubinemia e Kernicterus

Pré-eclampsia e eclampsia PIG*

Drogadição PIG*, síndrome de abstinência

Infecção Sepse, trombocitopenia, infecção viral

Hemorragia Anemia, choque

Diabetes PIG*, GIG**, hipoglicemia, trauma de parto

Polidrâmnio Fístula traqueoesofágica, anencefalia, anomalias congênitas múltiplas

Oligodrâmnio Hipoplasia renal e/ou pulmonar

Desproporção cefalopélvica Trauma de parto, hiperbilirrubinemia, fraturas

Alcoolismo PIG*, hipoglicemia, malformações congênitas, sd alcoólica fetal


*PIG = pequeno para a idade gestacional; **GIG = grande para a idade gestacional.

Prematuridade
RN prematuros podem ser classificados em: limítrofes (entre 36 e 37 semanas); moderados (entre 31 e
35 semanas) e graves (entre 24 e 30 semanas). Estes apresentam maior suscetibilidade à apneia devido à
menor resposta do centro respiratório à hipercarbia e hipoxemia e menor capacidade de manter a tempe-
ratura. Outros fatores aumentam o risco, como maior propensão à insuficiência respiratória por causa da
pequena quantidade de fibras resistentes à fadiga; instabilidade da caixa torácica pela alta complacência
e baixo volume de fechamento, que leva ao colapso alveolar na expiração, predispondo os alvéolos à hi-
poxemia e atelectasia.
Entre os fatores de risco para apneia pós-operatória, os mais enfatizados são idade gestacional; idade
pós-conceptual (gestacional + pós-natal = idade pós-conceptual em semanas); anemia; presença de bron-
codisplasia e técnica anestésica29.

Sistema hematopoético
Anemia
É controversa a realização de cirurgias eletivas em crianças anêmicas. Deve-se considerar o tipo e o
porte cirúrgico e os procedimento de emergência. Muitos anestesistas pediátricos recomendam hemató-
crito > 25%, mas em algumas circunstâncias especiais (anemia fisiológica entre o segundo e quarto mês de
vida) hematócrito mais baixo é aceitável se neonatos a termo e adequados para a idade gestacional (AIG).
Se existe perspectiva de sangramento intraoperatório, a causa de anemia deve ser investigada e tratada,
e o procedimento cirúrgico eletivo deve ser postergado até o restabelecimento do hematócrito30.
Anemia Falciforme
A anemia falciforme acomete mais crianças da raça negra, que requerem avaliação e preparação es-
pecial. A presença de anemia falciforme (HbSS), ou traço falcêmico (HbSs), exige alterações do manejo
anestésico. É importante obter uma história completa sobre a incidência familiar, crises de falcização e
exames para caracterizar a gravidade da hemoglobinopatia, como a eletroforese de hemoglobina. Crian-
ças portadoras de HbSC (duplo heterozigoto) são potencialmente mais vulneráveis aos efeitos da hipoxe-
mia. Sugere-se que crianças com HbSC que se submetem a procedimentos abdominais ou de grande porte
se beneficiem de transfusão pré-operatória, entretanto, procedimentos de pequeno porte não necessitam
desse tipo de manuseio30.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1061


Sistema Respiratório
Os fatores que aumentam o risco de complicações respiratórias devem ser avaliados no pré-operatório.
Broncodisplasia Pulmonar
A broncodisplasia pulmonar é uma lesão pulmonar grave que pode persistir por toda a vida, decor-
rente de assistência ventilatória prolongada (barotrauma) e de elevadas concentrações de O2. Acomete
principalmente neonatos prematuros com doença da membrana hialina. Apresentam hipoxemia crônica;
hipercarbia; anormalidades funcionais das vias aéreas, como traqueomalácia; propensão a atelectasias;
pneumonias; alterações da parede torácica e podem evoluir com cor pulmonale e insuficiência cardíaca
congestiva, aumentando o risco de falência respiratória.
Muitas vezes apresentam alterações neurológicas, com crises convulsivas, alterações do desenvolvi-
mento neuropsicomotor decorrentes de hemorragias intraventriculares e lesões hipóxicas. Essas crianças
requerem avaliação e preparo pré-operatório, para otimizar a função cardíaca e pulmonar. Apresentam
alterações hidroeletrolíticas decorrentes da terapia diurética, miocardiopatia por causa da corticoterapia
no período neonatal e hipertensão sistêmica, necessitando, no pré-operatório, de dosagem de eletrólitos
e, na suspeita de comprometimento cardiológico, ecocardiograma29.
Infecções das Vias Aéreas Superiores (IVAS)
As infecções das vias aéreas superiores têm alta incidência e prevalência nas crianças abaixo de 2 anos
(5 a 10 episódios por ano). É importante diferenciar os processos virais dos de etiologia não infecciosa,
como as rinites alérgicas ou vasomotora. A história clínica é o elemento mais importante. Usualmente, os
pais informam sobre a rinorreia, se é algo habitual ou parte de um quadro infeccioso que necessite pos-
tergar o procedimento eletivo. Sinais e sintomas como fadiga; apatia; diminuição do apetite; alterações do
sono; presença de secreção purulenta nas vias aéreas superiores; broncoespasmo; estertores pulmonares;
temperatura acima de 38o ajudam a diferenciar um quadro agudo de uma condição crônica.
Apesar da designação de IVAS, esse processo acarreta várias alterações da função pulmonar; diminuição
da capacidade vital e da capacidade residual funcional; aumento dos shunts intrapulmonares, predispondo a
criança à dessaturação e hipoxemia. A IVAS de etiologia viral é autolimitada, porém, a hiperreatividade das
vias aéreas pode permanecer por até seis semanas, gerando, nesse período, maior risco de laringoespasmo,
broncoespasmo, atelectasias e dessaturação, mediados quimicamente pela liberação de substâncias infla-
matórias diretamente nas mucosas. O Gráfico 47.2 sugere a conduta em criança com IVAS31.
Gráfico 47.2 - Condutas nos pacientes com IVAS

1062 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Doença Reacional das Vias Respiratórias (Asma Brônquica)
A hiperreatividade brônquica persiste por várias semanas após o episódio agudo de broncoespasmo,
com risco de broncoespasmo no intraoperatório. A asma na criança é notoriamente de difícil diagnós-
tico, pois não existem exames confirmatórios. Frequentemente, cursa com tosse, estridor e sibilos,
característicos de obstrução respiratória. A decisão de proceder com uma cirurgia eletiva depende-
rá da gravidade e frequência dos sintomas e da adequação do controle com terapia farmacológica. A
associação de asma e atopia, mediada por IgE, é especificamente forte, implicando na associação de
asma grave e reações alérgicas como rinite, dermatite atópica, anafilaxia precipitada por medicações,
agentes anestésicos e látex33.
Tabagismo Passivo
É um importante fator de risco para complicações respiratórias, principalmente quando a mãe é fu-
mante. O nível de carboxi-hemoglobina induzido pelo tabagismo passivo pode retornar ao normal após
cessar o hábito por 48 horas antes da cirurgia. Deve-se, portanto, orientar os familiares que não fumem
na presença da criança por esse período33.
Apneia Obstrutiva do Sono (AOS)
Habitualmente, as crianças com AOS apresentam pequena cavidade na via aérea superior; hipertro-
fia adenoamigdaliana; palato mole redundante e/ou obesidade, gerando restrição das vias respiratórias.
Crianças não diagnosticadas e tratadas podem evoluir a longo prazo, com hipertensão pulmonar e cor pul-
monale. Na história clínica, os pais referem sonolência diurna; eventos de apneia e, às vezes, cianose de
extremidades durante o sono; irritabilidade; diminuição do crescimento e, nos casos de longa evolução,
sintomas cardiopulmonares30.
Via Aérea Difícil
A via aérea difícil é facilmente predita na presença de anomalias craniofaciais, tumores ou síndromes
como Pierre-Robin, Goldenhar, Cornelia-de-Lange, Mucopolissacaridose, Klippel-Feil e síndrome de Down.
E também nos quadros decorrentes de processos infecciosos (abscesso retrofaríngeo e periamigdalia-
no), problemas musculoesqueléticos (anquilose mandibular, cervical ou instabilidade atlanto-occipital) ou
trauma. É necessário avaliar a via aérea da criança, observando instabilidade; redução da extensão ou
flexão da articulação atlantoaxial; aumento da circunferência da cabeça; diminuição do espaço mandibu-
lar com hipoplasia mandibular ou maxilar e língua grande, sinais associados à via aérea difícil34.
Sistema imunológico
Alergias, Anafilaxias e Reações adversas
Aproximadamente um terço das crianças atendidas no consultório de pré-anestésica apresentam
alguma história de reação alérgica, como febre do feno, rinite, asma, alergia a medicação ou alimen-
tos. A história de atopia generalizada ou específica a alimentos como kiwi, abacate, banana e mamão
é reconhecidamente um fator predisponente às reações ao látex, assim como crianças submetidas
a múltiplos procedimentos, portadoras de mielomeningocele e/ou alterações urogenitais. Quando
necessário, indicar testes cutâneos, testes de provocação, dosagem de triptase e IgE específica ao
látex; utilizar técnicas alternativas, evitando o uso das medicações em questão. O pré-tratamento
com antagonistas H1, H2 e corticoides não é mandatório. Não existem estudos que demonstrem efe-
tividade no que se refere às reações anafiláticas; parece ser benéfico em pacientes com história pré-
via de reações aos radiocontrastes, reações por mecanismos não imunológicos, atenuando a resposta
quimicamente mediada35,36.
Febre
É muito comum crianças que apresentam febre no pré-operatório imediato, com aumento de tempe-
ratura de 0,5° a 1°C, o que gera o dilema sobre postergar ou não o procedimento. Esse pequeno aumento
na temperatura, quando não acompanhado de nenhum outro sintoma, não é fator impeditivo para a anes-
tesia geral, pode até ser decorrente do jejum prolongado em lactentes e crianças menores, sendo muito
frequente nos portadores de síndrome de Down. Porém, se a febre estiver associada a outros sintomas,
como apatia, quadros infecciosos ou desidratação, o procedimento eletivo deverá ser postergado até o
diagnóstico e a completa recuperação da criança.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1063


Imunização
Observando o período de incubação, a raridade das reações graves, é apropriado postergar a anestesia
e cirurgia por três semanas após a imunização com vacinas de vírus atenuado. Após as vacinas acelulares
ou inativas, pode-se considerar o adiamento anestésico-cirúrgico por apenas uma semana. Para a imuni-
zação após a anestesia, não existem grandes evidências sobre alterações da soroconversão ou quanto às
reações adversas. Devido à grande variedade de respostas, muitos preconizam aguardar de 7 a 30 dias
após o procedimento anestésico-cirúrgico até a completa recuperação da criança37.

Metabolismo
Diabetes Mellitus
A conduta perioperatória depende do tipo, da extensão e da urgência da cirurgia. Em caso de cirurgias
eletivas, recomenda-se que a avaliação deva ser feita com no mínimo 10 dias de antecedência para oti-
mização glicêmica e metabólica, devendo ser retardada até que esse objetivo seja atingido. A avaliação
requer dosagens de glicemia, eletrólitos e hemoglobina glicosilada (HbA1c). Eletrocardiograma, raios x de
tórax e função renal serão solicitados de acordo com a suspeita clínica e em cirurgias de maior porte.
Atenção especial deverá ser dada ao grau de controle glicêmico, regime e tipo de medicamento em uso.
A insulina regular por via venosa geralmente é preferida no intraoperatório, já que a absorção subcutânea
depende do fluxo tissular, imprevisível nesse período. O uso de hipoglicemiantes orais é raro em pediatria.
Assim como no adulto, devem ser descontinuados no dia da cirurgia.
A metformina oferece risco de acidose lática, sendo interrompida 24h antes e reiniciada 48-72 horas
após, quando a função renal já estiver normalizada. Admissão hospitalar na manhã da cirurgia é frequente,
entretanto, internamento prévio é recomendável em cirurgias de maior porte. Anestesia ambulatorial po-
derá ser considerada em pacientes mais velhos, bem controlados e em procedimentos de pequeno porte. O
jejum deve ser minimizado, com a seleção para o primeiro horário cirúrgico do dia. Na véspera, o paciente
deverá receber dose usual de insulina e, no dia, a insulina só será administrada após a checagem da glicemia
e o estabelecimento do acesso venoso38.
Tratamento Crônico com Corticosteroides
Pacientes até 1 ano após uso prolongado de corticosteroides (> 2 meses) apresentam supressão do eixo
hipotálamo-hipófise-adrenal, perdendo a capacidade de responder adequadamente ao estresse periope-
ratório. Mesmo na ausência de forte evidência científica, endocrinologistas recomendam perioperatoria-
mente uma dose de estresse (2,5 – 5 mg.m²-1) de prednisona oral na noite anterior e 50 mg.m² -1 de hidro-
cortisona venosa antes ou após a indução anestésica.

Sistema Cardiovascular
A incidência de cardiopatias congênitas (CC) é menor que 1%, ocorrendo em 8-12:1000 nascidos vivos,
exceto prematuros. As mais frequentes são as acianóticas (CIV 15-20%, PCA 5-10% e CIA 5-10%) e que são
menos sintomáticas e de diagnóstico mais difícil. As alterações anatômicas mais comuns são a comunica-
ção entre as circulações sistêmica e pulmonar, ou a obstrução parcial ou total à circulação do sangue nas
câmaras cardíacas ou grandes artérias7.
O shunt é a alteração funcional mais comum nas CC e consiste no desvio de parte do sangue da circulação
sistêmica para a pulmonar (shunt E-D) ou inverso (shunt D-E). Com frequência, shunt e obstrução coexistem
em uma mesma doença. As cadiopatias adquiridas têm ocorrência variável, de acordo com a população
estudada, e doenças como febre reumática, miocardites, endocardites e outras têm maior incidência, à
medida que a criança é mais exposta aos agentes infecciosos. O anestesiologista deverá estar atento para
suspeitar, pois as CC podem permanecer assintomáticas por vários anos. A investigação é mandatória em
casos de síndromes genéticas ou malformações congênitas em outros sistemas, pela forte associação com
as alterações cardiovasculares (25%) (Tabela 47.11). Associam-se a risco cardiovascular aumentado condi-
ções gestacionais como diabetes; doenças do colágeno; lúpus eritematoso sistêmico; infecções no primeiro
trimestre de gravidez e uso de anfetaminas, lítio, álcool, progesterona e estrógeno. Antecedente de CC nos
pais e irmãos eleva o risco em 3,4 ou até 10 vezes, principalmente se a mãe e/ou mais de um familiar forem
acometidos. História de morte súbita na infância deve ser valorizada, já que a miocardiopatia hipertrófica
tem herança genética em 20% a 60% dos casos e pode cursar assintomática por anos7.
1064 | Bases do Ensino da Anestesiologia
Tabela 47.11 - Síndromes genéticas, malformações congênitas e frequência das cardiopatias congênitas

Condição %CC Problema mais comum


Trissomia 13 90% CIV, PCA, dextrocardia
Trissomia 18 95% CIV, PCA, estenose pulmonar
Trissomia 21 (Down) 50% CIV, DSAV
Síndrome de Turner (XO) 35% EA, CIA, COA
Síndrome de Pierre-Robin 30% CIV, PCA, CIA, coarctação de aorta
Assoc. VACTERL 50% CIV
Assoc. CHARGE 65% TOF, anormalidades do arco aórtico
Hérnia diafragmática 25% CIV, TOF
Anomalidades anorretais 20% CIV, TOF
Onfalocele/gastrosquise 20% Não específica
Rim em ferradura 40% Não específica
Adaptado por J Pediatr 2003; 79(Supl.1):S87-S96.
CIV = comunicação interventricular; PCA = persistência do canal arterial; DSAV = defeitos do septo atrioventricular; EA = este-
nose aórtica;
CIA = comunicação interatrial; COA = coarctação da aorta; TOF = Tetralogia de Fallot.

A principal alteração que auxilia o diagnóstico de CC é a presença de sopro, que deve ser dife-
renciado em patológico ou inocente. O inocente ocorre na ausência de anormalidade anatômica e/
ou funcional do sistema cardiovascular, presente em 50-70% das crianças, principalmente em idade
escolar. Suas características são: mais facilmente audíveis em estados hipercinéticos; são sistólicos
ou contínuos; seguidos por uma segunda bulha normal com seus dois componentes; nunca ocorrem
isoladamente na diástole; geralmente suave, não rude, e de curta duração; não se associam a frêmito
ou ruídos acessórios (estalidos ou cliques). O sopro tende a ser patológico quando de ocorrência iso-
lada na diástole ou contínuo, com maior intensidade, com irradiação nítida ou fixa para outras áreas
e com associação com outros sons cardíacos anormais; é recomendável que a ausculta seja feita com
a criança calma39.
A detecção de terceira e quarta bulhas (galope) é sugestiva de cardiopatia. Outros dados do exame
físico chamam atenção de anormalidades: frequência respiratória em repouso maior que 60; palidez e
sudorese fria em polo cefálico sugerem insuficiência cardíaca e estase jugular e hepatomegalia, descom-
pensação direita. Assimetria de pulso ou diferença de pressão maior que 20 mmHg entre os membros
superiores e inferiores sugere coarctação da aorta. Cianose; baqueteamento digital; circulação colateral
e alteração da perfusão sugerem hipoxemia. Alteração do padrão de crescimento; sibilância pulmonar crô-
nica e pneumonia de repetição são inespecíficos, mas comuns nas cardiopatias com hiperfluxo pulmonar.
Sintomatologia que se correlaciona fortemente com a doença cardiovascular e que deve ser valorizada na
criança com sopro são: arritmias cardíacas; cianose; crises hipoxêmicas; síncope; dor torácica; intolerân-
cia aos exercícios; taquidispneia; edema e hepatoesplenomegalia.
Alteração da ausculta no RN ou nos primeiros 6-12 meses necessita de investigação mais detalhada com
especialista. A sintomatologia da insuficiência cardíaca costuma ser pouco específica nessa faixa etária
(sudorese de polo cefálico e dificuldade durante a amamentação; icterícia prolongada e desconforto res-
piratório). Comunicação entre as circulações sistêmica e pulmonar nem sempre resulta em sopros (resis-
tência pulmonar ainda elevada), contribuindo para a dificuldade de avaliação39.

Sistema Nervoso
Crianças com risco de hipertensão intracraniana devem ser identificadas, e a patência da derivação
deve ser avaliada antes da cirurgia. Pacientes com doenças degenerativa e neuromusculares apresentam
risco de fadiga e podem requerer ventilação mecânica prolongada. Crianças com miopatia deverão ter
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1065
avaliação cardiológica cuidadosa pela possibilidade de miocardiopatia associada e que pode se apresen-
tar como alterações do ritmo, prolapso de válvula mitral e hipocinesia ventricular. Pacientes em terapia
anticonvulsivante podem requerer administração venosa perioperatória para manter o nível terapêutico.
Entretanto, a maioria dos anticonvulsivantes tem longa meia-vida e a omissão de uma dose não implica
queda significativa do nível plasmático40.
Medicamentos em Uso
É essencial obter história medicamentosa completa. Crianças com doença oncológica prévia ou atual
devem ter toda a quimioterapia bem documentada. Terapias alternativas e suplementos dietéticos devem
ser especificamente questionados, já que 70% dos pacientes e responsáveis não costumam relatar espon-
taneamente na avaliação pré-operatória41.
Exames Laboratoriais
Os exames laboratoriais, na maioria das vezes, são invasivos ou representam um potencial aumento da
ansiedade, e somente devem ser solicitados quando podem modificar positivamente o curso e o manejo
da anestesia sem acrescentar riscos desnecessários para a criança, ou seja, com indicação clínica ou nas
cirurgias de maior porte cirúrgico42.
Jejum
Período jejum de acordo com a idade e o tipo de alimentação podem ser observados no Quadro 47.343.
Quadro 47.3 - Orientações de jejum

Alimentos Neonatos, lactentes, > 36 meses (tempo em h)

Líquido sem resíduo 2h

Leite materno 4h

Fórmula infantil 6h

Leite não humano 6h

Refeição leve 6h

Refeição completa 8h

Ansiedade Pré-operatória
É comum a presença, em grau variado, de ansiedade devido à separação dos pais no momento de ad-
missão no centro cirúrgico e por medo do desconhecido. Pais ansiosos podem tornar suas crianças tam-
bém ansiosas, com repercussões durante e após o período de internação hospitalar. Algumas estratégias
podem ser úteis quando empregadas para diminuir a ansiedade do binômio pais-criança. Entre elas, po-
demos citar: consultório de anestesia; cartilha com explicações; vídeo com conteúdo explicativo; presen-
ça dos pais no momento da indução; jogos e dispositivos eletrônicos, além de estratégia farmacológica.
Quando empregadas separadamente, a eficácia dessas estratégias diminui quando comparada com a as-
sociação de duas ou mais44.
Estratégia Farmacológica: Medicação Pré-anestésica (MPA)
A MPA é uma ferramenta muito utilizada para atenuar a ansiedade e promover a sedação da criança.
Os < 6 meses de idade não se beneficiarão dessa estratégia, já que é muito fácil separá-los dos pais
usando palavras carinhosas e afagos. Para as crianças maiores, o midazolam é o agente padrão, pois
produz sedação e ansiólise sem retardar o tempo de alta da SRPA. A cetamina pode ser utilizada iso-
lada ou associada ao midazolam. Os agonistas alfa 2 adrenérgicos possuem efeito sedativo; analgésico;
ansiolítico; atenuam os efeitos da ativação simpática ante o estresse anestésico-cirúrgico; diminuem
a necessidade de anestésicos e analgésicos no intraoperatório e pós-operatório e exibem estabilidade
cardiovascular durante o procedimento quando utilizados por via oral na criança45,46. Agentes e doses
estão descritos na Tabela 47.12.

1066 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Tabela 47.12 - Agentes, dose, via de administração e horário de administração

Agentes Dose Via Administração Horário Administração


Midazolam 0,5 mg.kg-1 VO 30’ antes
Cetamina 3- 5 mg.kg -1
VO 30’ antes
Clonidina 4 µg.kg-1 VO 60-90’ antes

47.5. MONITORIZAÇÃO E VENTILAÇÃO


Monitorização
Também na anestesia pediátrica a monitorização minima é necessária para a realização de qualquer
procedimento anestésico. São obrigatórios a monitorização contínua da circulação (PA e cardioscópio);
oxigenação arterial (oxímetro de pulso) e ventilação (capnografia na anestesia sob via aérea e/ou ventila-
ção artificiais, e/ou exposição a agentes capazes de desencadear hipertermia maligna). A monitorização
hemodinâmica não invasiva, principalmente pressão arterial, oximetria de pulso e a capnografia, mensura
de forma indireta o débito cardíaco (DC) e, consequentemente, o estado volêmico. Em procedimentos de
maior porte, a monitorização invasiva tem como vantagem fornecer dados mais objetivos e em tempo
real. A utilização de pressão arterial média invasiva (PAMI); pressão venosa central (PVC); pressão de átrio
esquerdo (PAE) e a pressão de artéria pulmonar (PAP) é muito útil na avaliação do DC, propiciando melhor
adequação na reposição volêmica. A utilização da PAMI provê mensuração direta e em tempo real das va-
riações pressóricas e ainda possibilita a coleta de gasometrias arteriais, que trazem informações sobre o
equilíbrio hidroeletrolítico e acidobásico que indiretamente avaliam a perfusão tecidual.

Ventilação
Ventilação Espontânea
Nem mesmo os mais sofisticados ventiladores têm a capacidade de ajustar fluxo, pressão e distribui-
ção dos gases alveolares com a mesma eficácia que o funcionamento normal dos pulmões e do diafragma
durante a ventilação espontânea8. Entretanto, a manutenção dessa modalidade de ventilação no paciente
anestesiado nem sempre é possível. A anestesia promove uma série de alterações que prejudicam a fun-
ção respiratória, como diminuição dos volumes e da capacidade pulmonar, da resposta ventilatória ao CO2
e do tônus da musculatura orofaríngea e respiratória. Essas alterações acentuam a tendência à obstrução
e ao colapso alveolar, principalmente em neonatos e lactentes.
A manutenção da patência das vias aéreas em anestesia é um aspecto crítico na ventilação espontâ-
nea e, ao contrário da visão tradicional, a queda da língua não é a principal causa de obstrução. O ponto
de maior estreitamento faríngeo ocorre ao nível do palato mole, em lactentes, e ao nível da epiglote,
em crianças maiores9. Extensão da cabeça ao nível da articulação atlanto-occipital, com deslocamento
anterior da coluna cervical (sniffing position), melhora a patência da via aérea hipofaríngea, mas não ne-
cessariamente modifica a posição da língua. O aumento da profundidade anestésica determina a redução
progressiva do diâmetro anteroposterior da faringe por perda do tônus e efeito gravitacional. Essa altera-
ção da configuração da via aérea é mais acentuada em lactentes, sendo quase o dobro da observada em
crianças mais velhas48.
Clinicamente, medidas devem ser tomadas para antecipar e prevenir a obstrução. O posicionamento ade-
quado da cabeça, o uso de manobras de vias aéreas e a aplicação de pressão positiva contínua (CPAP) podem
auxiliar na manutenção da ventilação espontânea em crianças anestesiadas. O posicionamento adequado
da cabeça é um preceito básico nem sempre observado na prática. Em crianças pré-escolares e escolares,
submetidas a exame de ressonância sob sedação profunda com propofol, foi demonstrada a manutenção da
patência das vias aéreas com uma simples extensão leve da cabeça (110 graus entre o plano horizontal da
mesa do exame e a linha que conecta o olho ao trágus da orelha). Adicionalmente ao posicionamento, a ele-
vação do queixo promoveu o aumento do diâmetro transverso de toda a via aérea faríngea e do diâmetro an-
teroposterior, principalmente ao nível da epiglote. O fechamento da boca tensiona as estruturas anteriores
do pescoço, e a tensão e os movimentos dos músculos da mandíbula podem contribuir para o alargamento
mais pronunciado entre a ponta da epiglote e a parede posterior da faringe48.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1067


A elevação do queixo e a abertura da boca com protrusão mandibular (jaw thrust) são manobras de
vias aéreas também muito úteis. A posição lateral aumenta dramaticamente o benefício dessas manobras.
O deslocamento anterior da mandíbula determina o aumento da tensão muscular e o deslocamento ven-
tral do osso hioide contra a raiz da língua, anteriorizando a inserção do genioglosso e alargando a entrada
da laringe e da faringe. Essas manobras de vias aéreas, entretanto, nem sempre recuperam a patência
completa. A adição de CPAP melhora o efeito das manobras por funcionar como um suporte pneumático
que tensiona as paredes laterais da faringe, impedindo o colapso durante as pressões negativas inspirató-
rias, além de contribuir para a manutenção da CRF por prevenir o colapso alveolar expiratório.
Em lactentes, o aumento da profundidade anestésica com o propofol resulta em redução relativamente
uniforme do calibre da via aérea faríngea. A aplicação de 10 cmH2O de CPAP aumenta principalmente o
diâmetro transverso, determinando aumento da área de secção transversal em magnitude suficiente para
compensar a redução do diâmetro anteroposterior9. Em crianças mais velhas anestesiadas com halotano,
estudou-se o impacto das manobras das vias aéreas e da associação de 10 cmH2O de CPAP, utilizando um
escore de visualização da abertura glótica. A manutenção da cabeça em posição neutra impede a visua-
lização da abertura glótica em 96,6% das crianças, principalmente devido ao deslocamento posterior da
epiglote por ação da gravidade. A visualização de todos os limites da abertura glótica é obtida em 30,7%
das crianças com a elevação do queixo e em 31,4% com a elevação da mandíbula. A associação do CPAP
a essas manobras aumenta o percentual de visualização máxima para 65,7% e 57,5%, respectivamente49.
Ventilação Mecânica
A escolha entre ventilar pacientes pediátricos espontaneamente ou mecanicamente depende de vários
fatores, como duração e tipo do procedimento cirúrgico; condições clínicas do paciente e disponibilidade
de equipamentos adequados para a faixa etária. A ventilação mecânica, quando bem empregada, permite
a realização de procedimentos prolongados e complexos sem fadiga, diminuindo o trabalho respiratório
e com melhor preservação da superfície de troca gasosa e da função mucociliar. Assim como, permite a
monitorização da mecânica ventilatória e detecção precoce de alterações comuns na anestesia. Portanto,
a ventilação mecânica é a melhor opção em procedimentos com duração superior a 40 minutos, intra-
cavitários, em crianças abaixo de 2 anos e em portadores de doenças neuromusculares, pulmonares ou
alterações do drive respiratório.

Modos Ventilatórios
Estabelecer alvo de V T em anestesia pediátrica sempre esbarrou em dificuldades tecnológicas. Nos
antigos aparelhos de anestesia, o V T programado não era igual ao recebido pela criança. Os maiores obs-
táculos para a liberação acurada do V T eram complacência excessiva do sistema, com distensibilidade e
compressão do gás no circuito e interferência do fluxo de gás fresco (FGF)50.
Nos aparelhos pneumáticos ciclados a volume, era comum o ajuste fundamentado na expansibilidade
torácica, até que o volume liberado fosse “adequado”. No uso de sistemas respiratórios, a ventilação é es-
tabelecida por “mãos educadas”, promovendo, de forma empírica, a relação entre pressão e V T liberado6.
No passado, os ventiladores tradicionais não possuíam acurácia para liberar pequenos V T, e a ventilação
controlada a pressão (PCV) tornou-se o modo mais adotado em pediatria. Na PCV, o fluxo desacelerado
permite compensar a complacência do circuito e até mesmo pequenos vazamentos, como os que ocorrem
com o uso de tubos sem balonetes50.
Atualmente, os ventiladores modernos, pneumáticos ou elétricos movidos a pistão ou turbina, possuem FGF
dissociado do VT com sistemas de compensação de complacência. Não há estudos de performance compara-
tivos entre esses ventiladores, apenas especificações técnicas dos recursos disponíveis que, em sua maioria,
garantem a oferta confiável de VT mínimo de 20 ml. Na escolha de modos ventilatórios com alvo de volume,
nesses aparelhos modernos, é essencial a realização adequada dos testes de vazamento e de complacência,
estando todos os componentes do circuito previamente instalados. O aparelho calcula o fator de complacência
do sistema medindo o volume necessário para que uma pressão específica seja atingida. O desacoplamento
do FGF ocorre de forma diferente, a depender do fabricante. Em alguns, uma válvula de dissociação previne a
entrada do FGF durante a inspiração e em outros, um sensor de fluxo permite ajustar o VT51.
Com a evolução dos ventiladores e da monitorização, procura-se estabelecer qual a melhor forma de
ventilar uma criança de acordo com sua faixa etária, presença de comorbidades e necessidade de estraté-
1068 | Bases do Ensino da Anestesiologia
gia ventilatória protetora. Os recursos disponíveis permitem, ao fabricante, disponibilizar modos ventila-
tórios tão funcionais quanto os empregados em terapia intensiva. Poucos estudos em pediatria comparam
os modos ventilatórios e seus desfechos, não havendo estudos que demonstrem clara superioridade entre
modos ventilatórios controlados a pressão versus volume51. Cada modo apresenta vantagens e promove
suporte apropriado, desde que exista compreensão dos princípios básicos de funcionamento e que o ven-
tilador tenha os recursos necessários.
Frequentemente, os modos controlados a volume são utilizados para ventilar pacientes adultos ou
crianças acima de 20 kg de peso e os modos controlados a pressão são utilizados em neonatos e lactentes.
Entretanto, essa regra não é absoluta. Os aparelhos modernos, microprocessados, são capazes de ofere-
cer diferentes modos ventilatórios em todas as faixas etárias, produzindo grande variedade de formas de
onda de fluxo e de pressão.
Ajustes Iniciais do Ventilador
Após a programação inicial dos parâmetros do ventilador, o funcionamento do aparelho deve ser tes-
tado, conectando-se o circuito a um balão de testes ou a uma luva estéril. É importante salientar que
esses ajustes são apenas um ponto de partida antes da indução anestésica, devendo ser reajustado após
conectar-se ao paciente ou ao longo do intraopertório, havendo necessidade de se adequar às condi-
ções do paciente, de acordo com a monitorização e detecção de modificações na mecânica ventilatória
(Tabela 47.13).
Tabela 47.13 - Ajustes iniciais para a ventilação mecânica, de acordo com a faixa etária

Faixa etária Ppi (cmH2O) V T (mL/kg) PEEP (cmH2O) FR (ipm) TI (s)

Neonato (até 1 mês) 15-20 6-8 5 30-40 0,4-0,6

Lactentes (até 2 anos) 15-20 6-8 5 20-30 0,5-0,7

Pré-escolares (até 6
15-20 6-8 5 15-25 0,7-0,9
anos)

Escolares (até 10 nos) 15-20 6-8 5 12-20 0,8-1,0

Adolescentes (até 21
15-25 6-8 5 10-15 1,0-1,3
anos)

Adultos 20-25 6-8 5 8-10 1,2-1,5


Ppi = pressão de pico inspiratória; V T= volume corrente; PEEP = pressão positiva expiratória final; FR = frequência respiratória;
TI = tempo inspiratório.

1) Frequência respiratória e relação I:E – a FR deve ser ajustada de acordo com a idade do paciente.
A relação I:E deve ser ajustada para 1:2 ou menor (1:3 ou 1:4), certificando-se de que o TI corresponda a
pelo menos três constantes de tempo.
2) Volume corrente ou pressão inspiratória de pico – nos modos limitados a volume, deve-se ajustar
o VT para 6 a 8 mL.kg-1, desde que a pressão inspiratória de pico (Ppi) não ultrapasse 25 a 30 cm H2O. Nos
modos limitados a pressão, deve-se selecionar um valor de Ppi que produza expansão torácica adequada e
murmúrio vesicular bem audível à ausculta, geralmente entre 10 e 15 cm H2O. Nos ventiladores capazes de
medir o volume expirado, a Ppi deve ser ajustada para garantir V T de 6 e 8 mL.kg-1. Em alguns ventiladores,
não é possível regular diretamente a Ppi, mas sim a pressão motriz (ΔP), que é a pressão a ser aplicada aci-
ma da PEEP. Assim, com uma ΔP de 10 cm H2O e uma PEEP de 5 cm H2O, a Ppi gerada será de 15 cm H2O.
Lembrar que o volume corrente deve ser monitorado pelo volume expirado, muitas vezes, se faz necessário
acrescentar o volume de espaço morto acrescido por conexões ou fluxômetros, para garantir o VT alvo.
3) Pressão positiva expiratória final (PEEP) – essencial como forma de manter a CRF, restaurar a com-
placência pulmonar e prevenir a atelectasia na criança intubada, o que pode ser alcançado com o uso do
CPAP na ventilação espontânea, com ajuste da válvula APL entre 5 a 10 cmH2O. A análise da curva pressão
× volume pode ser útil na determinação da PEEP ideal. Esse valor deve ser ajustado de acordo com a pa-
tologia de base. Em geral, se utiliza a PEEP fisiológica de 3-5 cm H2O.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1069


4) Fração inspirada de oxigênio – a maior compreensão da fisiopatologia acarretou modificações
nas condutas clínicas em relação à oferta de oxigênio. Atualmente, sabe-se que a oferta excessiva de
oxigênio pode ocasionar diversas lesões em órgãos-alvo, principalmente na população de neonatos
prematuros e lactentes52. Alguns autores defendem que a administração de O2 deve-se alicerçar nas
medições de oximetria de pulso para evitar hipóxia. Porém, a oximetria apresenta limitações diante
da hiperóxia, não mensurando diferenças no platô da curva de saturação de oxigênio. Na população
de neonatos prematuros, a oferta excessiva de oxigênio aos tecidos promove a formação de radicais
livres de oxigênio devido à imaturidade dos sistemas antioxidantes52. Essas formas reativas de oxigê-
nio aumentam o risco de desenvolvimento de retinopatia da prematuridade, broncodisplasia pulmo-
nar e enterocolite necrotizante. Sendo assim, deve-se considerar oxigênio suplementar apenas para
crianças com cianose central. Em neonatos, recomenda-se que a fração inspirada de oxigênio (FiO2)
seja menor que 40%, com um alvo de oximetria entre 90-94%, PaO2 entre 50 e 70mmHg. Em lactentes
e crianças maiores, apesar da maturidade dos sistemas antioxidantes, ainda existe o risco de lesão
pulmonar ocasionada por altas FiO2, portanto, assim como na população de adultos, preconiza-se FiO2
abaixo de 50% durante a manutenção anestésica52.
5) Pressão de suporte – se o modo selecionado for SIMV+ PSV ou somente PSV, deve-se regular o va-
lor inicial para 10 cm H2O ou o mesmo valor da ΔP e, posteriormente, ajustar de acordo com o V T obtido.
Quanto mais jovem o paciente, maior a PSV necessária.
6) Sensibilidade ou trigger – parâmetro estabelecido nos modos assistidos. Isso significa determi-
nar a intensidade do esforço detectado pelo ventilador que será interpretado como esforço inspira-
tório do paciente. O esforço pode ser detectado através de variações na pressão da via aérea ou no
fluxo do circuito, sendo o trigger de fluxo mais sensível e recomendado para o paciente pediátrico.
Deve-se iniciar com o menor fluxo permitido como gatilho (0,2 L.min-1) e avaliar a ativação do ventila-
dor, até que desapareça o autodisparo. Nos casos em que o aparelho dispara na ausência de esforço
do paciente, deve-se reduzir a sensibilidade, ou seja, aumentar o fluxo em litros por minuto para a
ativação do ventilador.

47.6. ANESTESIA GERAL E REGIONAL. TÉCNICAS E FARMACOLOGIA


Anestesia Geral Inalatória
A farmacocinética é a análise quantitativa entre a dose de determinado fármaco e os processos
de absorção, captação, distribuição, metabolismo e excreção. Os fatores que influenciam a relação
temporal para o equilíbrio entre a concentração selecionada no vaporizador e no sítio efetor inter-
ferem na farmacocinética dos inalatórios. Os processos de absorção, distribuição, metabolismo e ex-
creção dos fármacos diferem significativamente, nas crianças, entre as diversas faixas etárias. Além
disso, existe considerável variabilidade interindividual sobre todos os aspectos de biodisponibilidade
dos fármacos53,54.
As doses dos inalatórios, para atingir e manter a concentração alvo-desejada, geralmente são menores
no neonato. No lactente ocorre aumento progressivo no volume de distribuição (Vd), rápida maturação
do metabolismo e do clearance. Essas características também são encontradas nas crianças desde a ida-
de pré-escolar à pré-puberal (dos 3 anos à puberdade), nas quais o Vd é duas vezes maior e o clearance
intercompartimental, 50% maior que em adultos. Após a puberdade, os valores se aproximam aos encon-
trados em adultos. Portanto, a farmacocinética e a farmacodinâmica dos inalatórios sofrem interferência
das variações fisiológicas dessa população, sendo fundamental o conhecimento dessas peculiaridades para
prever os efeitos desses fármacos nas crianças53,54.
O equilíbrio entre a pressão parcial inspirada e alveolar, conhecido como wash-in, é função da rela-
ção entre a fração inspirada (FI) e a fração alveolar (FA) nos pulmões. Entre os fatores que determinam
o equilíbrio FA/FI dos anestésicos inalatórios em crianças, as diferenças fisiológicas do sistema respira-
tório e cardiovascular são as mais importantes, propiciando rápida indução anestésica. Os fatores que
aumentam a FA, como a elevação da FI e da ventilação alveolar (VA), propiciam rápido equilíbrio FA/FI,
entretanto, os fatores que aumentam a captação pulmonar do anestésico tendem a postergar o equi-
líbrio; assim, conhecendo esses fatores é possível descrever a curva de velocidade de equilíbrio entre
FA/FI53,54 (Figura 47.7).

1070 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Figura 47.7 - Relação FA/FI e captação pulmonar
Nas crianças, a VA é maior e a capacidade residual funcional (CRF), menor, assim, a relação da CRF/
VA é muito menor no paciente pediátrico (1:5) quando comparado com o adulto (1:1,5). Essa diminuição da
CRF/VA determina menor constante tempo (CT) do compartimento pulmonar, favorecendo o rápido equi-
líbrio entre a concentração inspirada e a alveolar, proporcionando rápida indução inalatória53,54.
O maior determinante da distribuição dos fármacos é o débito cardíaco (DC), que, no neonato, é em
torno de 100 a 150 mL.kg-1min-1 e no adulto é de 70 a 80 mL.kg-1min-1. O índice cardíaco (IC) relaciona o DC
com a superfície corporal, sendo melhor indicador do fluxo sanguíneo tecidual; também demonstra gran-
de variabilidade nas crianças. No primeiro mês de vida, o IC é de 2,6 L.min-1.m2; no primeiro ano aumenta
para 3,2 L.min-1.m2 -1, atingindo 4 L.min-1.m2 -1 aos 10 anos de idade e, na idade adulta, retorna para 2,5 a
3,5 L.min-1.m2 -1 53,54.
No recém-nascido a termo, a água corporal total representa 70% do peso, significativamente maior
que em adultos, aumentando o volume de distribuição dos fármacos. Em contrapartida, a constitui-
ção corpórea do neonato tem menor quantidade de gorduras, 15% do peso, interferindo no volume
de distribuição de fármacos lipofílicos, não propiciando compartimento reservatório, restando maior
quantidade de anestésico para os tecidos do grupo ricamente vascularizados (GRV), como cérebro,
coração, fígado, rins e glândulas endócrinas. O GRV representa 22% do peso corpóreo nas crianças e
apenas 10% nos adultos e, ainda, recebe maior porcentagem do DC, em torno de 75% do DC nos neona-
tos (Tabela 47.14). Dessa forma, é previsível que quanto maior o DC maior a captação dos inalatórios,
postergando o equilíbrio FA/FI, entretanto, o maior fluxo sanguíneo para GRV favorece o equilíbrio
sangue/cérebro, ou seja, no sítio efetor. Em neonatos e lactentes, além do alto fluxo sanguíneo ce-
rebral, a barreira hematoencefálica é imatura, com alta permeabilidade aos fármacos, favorecendo
o equilíbrio sangue/cérebro dos inalatórios. A velocidade de elevação de FA/FI mantém uma relação
inversa com todos os fatores que interferem com a captação pulmonar, portanto, agentes pouco so-
lúveis, como o sevoflurano e o desflurano, apresentam rápida elevação da relação FA/FI, porque são
pouco captados53,54.
Tabela 47.14 - Distribuição da composição corporal conforme o grupo tecidual e o débito cardíaco
% Peso Corporal
Idade
GRV GM GG
Neonato 22 38,7 13,2
1 ano 17,3 38,7 25,4
4 anos 16,6 40,7 23,4
8 anos 13,2 44,8 21,4
Adulto 10,2 50,0 22,4
% Débito cardíaco em neonatos 75 18 5
GRV = grupo ricamente vascularizado; GM = grupo muscular; GG = grupo das gorduras.

Entre as diferenças farmacológicas, é importante ressaltar que a concentração alveolar mínima (CAM)
varia com a idade, dese modo, neonatos e prematuros possuem maior CAM quando comparados com
crianças maiores. Em geral, a CAM aumenta durante o período neonatal, atingindo valores máximos nos
lactentes, e, depois, apresenta diminuição ao longo da vida, atingindo os menores valores nos idosos.

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1071


Comparando-se os diversos agentes inalatórios, observa-se que o comportamento da CAM é semelhante e
todos apresentam altas CAMs abaixo de 1 ano de idade53-55 (Tabela 47.15).
Sevoflurano, desflurano e óxido nitroso, que possuem baixa solubilidade nos tecidos, apresentam rá-
pida saturação e eliminação, garantindo rápido início e término de ação. Inversamente, agentes com alta
solubilidade apresentam lento equilíbrio, por exemplo, o halotano, possui alta solubilidade nas gorduras,
jamais alcançando o equilíbrio, sendo constantemente captado nesse tecido.
A associação dos fatores fisiológicos e farmacocinéticos resulta em benefícios da técnica inalatória na
população pediátrica, principalmente com agentes de baixa solubilidade, como o sevoflurano, proporcio-
nando rápida indução anestésica, maior precisão do plano anestésico e rápido despertar53-55.
Tabela 47.15 - Variação da CAM conforme a faixa etária

Idade Isoflurano Sevoflurano Desflurano


Neonato 1,28 3,3 9,16

1 – 6 meses 1,6 3,2 9,42

6 – 12 meses 1,8 2,5 9,92

2 – 10 anos 1,6 2,3 7,98

Adulto 1,2 2,0 6,6

In vivo, o sevoflurano é metabolizado pela isoenzima microssômica CYP IIE1, no fígado e nos rins. A con-
centração plasmática máxima de fluoreto inorgânico é proporcional à duração da exposição ao sevoflurano
e ao fluxo de admissão utilizado. No entanto, não existem evidências de nefrotoxicidade induzida pelo sevo-
flurano, após vários milhões de procedimentos anestésicos. Duas explicações plausíveis para essa ausência
de nefrotoxicidade são a rápida eliminação e o baixo grau de metabolismo do sevoflurano. Apesar da falta
de evidência humana, algumas autoridades sugerem que o sevoflurano, quando utilizado em circuito fe-
chado com cal sodada, exibe potencial de metabolismo, gerando esta substância nefrotóxica, denominada
composto A. O reconhecimento dessa possibilidade resultou em algumas recomendações: evitar o fluxo de
gás fresco (FGF) menores que 1 L.min-1 durante a anestesia com sevoflurano; evitar o uso de sevoflurano por
períodos superiores a 2 horas, em concentrações acima de 1 CAM com FGF de 1 L.min-1 53-56.
Agitação ao despertar e risco para desencadear HM são efeitos comuns a todos os agentes inalatórios,
igualmente, a depressão respiratória e diminuição da resposta ventilatória ao CO2, porém, os efeitos sobre
a ventilação e a apneia são dose-dependentes, habitualmente previsíveis e evitáveis57.
A indução anestésica inalatória é muito utilizada na população pediátrica, por ser indolor, simples e de
boa aceitação para a maioria das crianças, que não toleram bem a punção venosa. Ainda como vantagem,
em crianças nas quais o acesso venoso é difícil, o efeito vasodilatador dos agentes inalatórios é muito
útil. O sevoflurano e o halotano são minimamente irritantes para as vias aéreas, conferindo um perfil de
segurança e qualidade desses agentes para a indução inalatória. Contudo, o isoflurano e, particularmente,
o desflurano são muito irritantes e pungentes, podendo desencadear respostas reflexas nas vias aéreas,
como tosse e laringoespasmo, durante a indução inalatória, não sendo recomendado o uso desses agentes
com essa finalidade. A indução com sevoflurano pode ser tranquila e agradável, utilizando incrementos
graduais na concentração inspirada. Nas técnicas de indução com altas concentrações, por exemplo, se-
voflurano em 6% a 8%, ocorre rápida passagem do inalatório do gás alveolar para a circulação arterial e o
cérebro, sendo especialmente rápida em neonatos e lactentes53-57.
A monitoração com analisador de gases permite avaliar a fração inspirada e expirada do inalatório em
tempo real, quantificando a profundidade do plano anestésico, por meio da mensuração direta da concen-
tração expirada, que retrata a pressão parcial do gás no cérebro durante o equilíbrio. Assim, à semelhança
da venosa, podemos considerar a técnica inalatória, alvo-controlada, permitindo inferir com precisão a
indução, manutenção e despertar anestésico53-57.
A técnica balanceada com associação de um agente inalatório a um anestésico opioide é a técnica de
anestesia geral mais utilizada na população pediátrica. Mais recentemente, no entanto, a anestesia veno-
sa total (AVT) tornou-se possível, graças ao surgimento de hipnóticos e opioides com perfis farmacociné-
1072 | Bases do Ensino da Anestesiologia
ticos favoráveis à infusão contínua. Contudo, as alterações fisiológicas que decorrem do desenvolvimento
das crianças ocasionam grande variabilidade interindividual na farmacocinética e farmacodinâmica, im-
possibilitando a utilização de modelos farmacocinéticos desenvolvidos para adultos na população pediá-
trica. Entretanto, existem estudos farmacocinéticos em crianças de diferentes idades (Marsh, Kataria) que
possibilitam o uso da AVT nesse grupo de pacientes.
Anestesia Regional
Atualmente, é possível utilizar técnicas de anestesia regional em mais de 80% dos procedimentos ci-
rúrgicos realizados em crianças. A abrangência do uso de técnicas regionais depende principalmente da
prática clínica de cada instituição58. Na escolha da técnica, os riscos e os benefícios devem ser pesados​​
e comparados com os de outras formas de analgesia. Influenciam na escolha idade e condição geral do
paciente; presença de comorbidades; local e intensidade do estímulo doloroso; habilidade do anestesis-
ta e presença ou não de alguma contraindicação à anestesia regional até o consentimento da criança ou
responsável. Ao fazer a escolha, o anestesista também deve levar em consideração a disponibilidade de
equipamentos e o nível de acompanhamento e cuidado da enfermagem disponível59.
Os bloqueios anestésicos permitem a redução da necessidade de anestésicos, analgésicos e bloquea-
dores neuromusculares; proporcionam despertar mais suave, confortável e rápido, alta precoce da SRPA,
alimentação precoce, redução de náuseas e vômitos, além da redução dos riscos associados com os planos
mais profundos de anestesia geral60.
Os bloqueios anestésicos são uma alternativa eficaz para os analgésicos sistêmicos, e isso é parti-
cularmente relevante quando os opioides são contraindicados ou quando as crianças tornaram-se to-
lerantes aos efeitos analgésicos. A anestesia regional é considerada mais eficaz contra a dor visceral,
espasmos da bexiga após a cirurgia genitourinária do que os opioides sistêmicos. A analgesia profunda
fornecida pelos bloqueios proporciona condições ideais para a recuperação da criança, do ponto de vis-
ta familiar e da enfermagem59.
Ainda em relação às vantagens dos bloqueios anestésicos, destacam-se o recente desenvolvimento e
a ampliação das indicações dos bloqueios nervosos periféricos e analgesia prolongada, por meio da utili-
zação de cateteres61. Um benefício adicional é a utilização dos bloqueios periféricos quando a anestesia
geral é contraindicada, considerada tecnicamente difícil ou associada com o aumento da morbimortali-
dade, como em ex-prematuros; nos portadores de doenças neuromusculares, metabólicas, pulmonares
ou cardíaca crônicas; quando há risco de hipertermia maligna ou em situações de emergência com risco
de broncoaspiração59.
É importante ressaltar que a analgesia profunda proporcionada pela anestesia regional pode ocasionar
ausência de sensibilidade e mobilidade em membros inferiores, determinando desconforto para algumas
crianças, aspecto esse que merece atenção62.
A anestesia regional em crianças é considerada segura, desde que cuidado e atenção adequados aos
detalhes sejam tomados. Crianças e recém-nascidos apresentam um risco ligeiramente maior de com-
plicações, e esses grupos etários devem, portanto, ser atendidos por profissionais experientes. Em ter-
mos gerais, um bloqueio do nervo periférico é considerado mais seguro do que um bloqueio neuraxial
em crianças59. Estudo multicêntrico, prospectivo e anônimo sobre segurança da anestesia regional em
crianças62 mostrou que os bloqueios centrais representaram 34% de todas as anestesias regionais reali-
zadas e os bloqueios periféricos abrangeram 66%, dos quais 29% foram bloqueios de membros superio-
res e inferiores, enquanto 71% corresponderam a bloqueios de face e tronco. Bloqueios faciais são uma
prática nova e amplamente utilizada para a cirurgia facial e reconstrutiva, particularmente na repa-
ração do lábio leporino. O estudo registra ainda o uso de um número significativo de cateteres, tanto
centrais como periféricos, sendo a maioria deles neuroaxiais. A taxa global de complicações foi muito
baixa, igual a 0,12%, seis vezes maior em bloqueios centrais comparados com os periféricos. Nenhuma
complicação resultou em sequela ou lesão grave após um ano. Como resultado do baixo índice de com-
plicações, os autores concluem que as técnicas de anestesia regional têm um bom perfil de segurança
e que podem ser usadas para oferecer analgesia pós-operatória em crianças e que as técnicas de blo-
queios periféricos devem ser estimuladas. Outros resultados interessantes foram que a frequência de
utilização de bloqueios, independentemente de qual, aumenta de acordo com a idade e que a incidên-
cia de complicações é significativamente mais elevada no grupo de menor faixa etária, 0,4% nos menores de
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1073
6 meses e 0,1% nos maiores de 6 meses. Esses resultados sugerem que crianças menores sejam assistidas
por anestesistas com experiência em anestesia pediátrica.
Um dos mais importantes avanços na tecnologia em anestesia pediátrica foi o desenvolvimento do co-
nhecimento anatômico baseado na USG, que facilita a localização de estruturas como nervos e vasos. A
utilização de USG na anestesia regional não só reduz a quantidade de AL, mas também sua concentração.
Ainda como vantagem, facilita a execução de bloqueios difíceis de ser realizados, utilizando-se apenas
referências anatômicas com potencial de injeção contígua em áreas sensíveis vasculares. Como uma fa-
cilitadora das técnicas de bloqueios regionais e centrais, assim como de acessos venosos, a USG aumenta
a segurança dessas técnicas por permitir identificar as relações anatômicas com estruturas críticas em
crianças, que, na maioria das vezes, estão sedadas ou sob anestesia geral, impossibilitadas de relatar
qualquer sinal potencial de complicações durante a realização dos bloqueios, como parestesias, dor ou
sinais de intoxicação pelo anestésico local63.
Bloqueios do Neuroeixo
Raquianestesia
A anestesia espinal ou subaracnóidea é uma das mais antigas modalidades para proporcionar alívio da
dor em pacientes submetidos à cirurgia64. Devido às características favoráveis, como rápido início de ação
e curta duração, esses bloqueios são utilizados para procedimentos de pequeno porte, abrangendo maior
faixa etária e permitindo alta hospitalar precoce. A duração do bloqueio sensitivo e motor é curta, em
razão do maior volume de liquor que dilui o anestésico local, maior velocidade de absorção do anestésico,
maior vascularização da região e menor diâmetro das fibras nervosas. Cirurgia da região inferior do corpo
são as principais indicações para a raquianestesia em crianças. Em recém-nascidos, ela é usada para a
correção de hérnia inguinal e cirurgia cardíaca. É particularmente útil em crianças nas quais o anestesista
deseja evitar anestesia geral e manipulação das vias aéreas. Pode ser usada também em crianças com vias
aéreas reconhecidamente difíceis, devendo haver um plano B caso seja necessária a sedação. Também é
uma técnica viável nas situações de estômago cheio, como em pacientes pediátricos com trauma de mem-
bro inferior e torção testicular e crianças com doença pulmonar ou neuromuscular nas quais a anestesia
geral pode piorar a função respiratória65. Um problema da raquianestesia é a taxa de insucesso, que pode
ser significativa (até 45%)66. Deve ser evitada em crianças com infecção no local da punção, doença dege-
nerativa axonal em curso, aumento da pressão intracraniana e hipovolemia grave. A avaliação dos sinais
e sintomas de complicação em lactentes e crianças pequenas não é tão fácil e simples como nas crianças
mais velhas e em adultos. A cefaleia pós-punção dural é rara em crianças67.
Em RN e lactentes, o espaço de escolha para a punção é L4-L5 ou L5-S1 e, em crianças mais velhas, po-
de-se optar pelo interespaço L3-L4. Recomenda-se abordagem na linha média, em RN e lactentes, devido à
calcificação incompleta das lâminas vertebrais. Utiliza-se agulha espinhal pediátrica 22, 25 ou 26 Gauge. O
método de barbotagem não é recomendado, podendo resultar em altos níveis de bloqueio ou bloqueio es-
pinal total. A raquianestesia na criança pode ser também realizada na posição sentada, porém, é mais fácil
e comumente feita na posição de decúbito lateral. O anestesiologista deve ter certeza, em ambas as posi-
ções, de que o pescoço não está fletido, que pode resultar em obstrução das vias aéreas. Após a injeção, a
criança é colocada em posição supina, evitando elevação dos membros inferiores, principalmente, quando
se utiliza anestésico hiperbárico. Tal conduta pode resultar em níveis altos de bloqueio ou raquianestesia
total, levando à depressão respiratória. As seringas (para a injeção do anestésico local) e agulhas devem ter
tamanhos apropriados. Devido aos pequenos volumes de anestésico local utilizados, deve-se acrescentar o
volume que ficará no espaço morto (canhão) da agulha para assegurar que a dose total de anestésico local
seja administrada. Antes da injeção do anestésico local, é importante garantir um fluxo livre de LCR. A in-
jeção deve ser realizada lentamente, > 20 segundos, para evitar a disseminação extensa do bloqueio. Após
a injeção do anestésico local, o mandril deve ser reinserido e a agulha pode ser deixado na posição durante
alguns segundos, para evitar que o medicamento escoe de volta para os tecidos no local de perfuração da
pele. Isso é especialmente sugerido em crianças pequenas, porque uma parte relativamente grande do ori-
fício na dura-máter promove o retorno do anestésico para o local de punção68.
Soluções de anestésicos hiperbáricos ou isobáricos têm similar qualidade e duração nos bloqueios. Doses
de 0,3 mg.kg-1 a 1 mg.kg-1 de bupivacaína são geralmente administradas. A morfina pode ser utilizada como
adjuvante nos bloqueios espinais, em doses que variam de 4 a 10 µg.kg-1, associada ao anestésico local.
1074 | Bases do Ensino da Anestesiologia
Porém, a morfina no neuroeixo não é desprovida de efeitos colaterais. Alguns autores relatam alta incidên-
cia de náusea, vômito e prurido, acometendo em torno de 30% das crianças que recebem a raquianestesia69.
A incidência de eventos adversos graves, como dessaturação e depressão respiratória, é menor, no
entanto, podem ser catastróficos, sendo recomendada vigilância em terapia intensiva com monitorização
adequada por no mínimo 12 horas após a administração da morfina no espaço subaracnóideo70.
O fentanil pode ser utilizado nas doses de 0,25 a 1 µg.kg-1. Novos adjuvantes, como a clonidina, na dose
de 1 µg.kg -1, prolongam a duração da analgesia espinal para o dobro da duração habitual em RN e lacten-
tes72. Notam-se diminuição transitória na pressão arterial e maior predisposição à sedação pós-operatória
com doses superiores a 2 µg.kg -1 de clonidina.
Peridural Sacral
A peridural caudal ou sacral apresenta como vantagens analgesia pós-operatória; bloqueio motor de
menor intensidade quando administradas baixas concentrações de anestésico local; possibilidade de in-
fusão contínua por meio da colocação de cateter no espaço peridural, além de fácil execução, segurança
e estabilidade hemodinâmica. Todas as cirurgias abaixo do umbigo podem ser realizadas com bloqueio
caudal. As principais indicações são cirurgias de membros inferiores; quadril; abdome inferior; hernior-
rafia inguinal; orquidopexia; hipospádia e cirurgia anal. As contraindicações são as mesmas que para o
bloqueio raquidiano, incluindo o cisto pilonidal; lesões sépticas ou distróficas que recobrem o hiato sacral;
meningite e malformações importantes do osso sacro. As complicações mais comuns são perfuração da
dura-máter; punção subcutânea; bloqueio de apenas uma raiz sacral; injeção intravascular ou intraóssea;
contaminação; altura inadequada do bloqueio e persistência de dermátomos não anestesiados (L5, S1, S2).
Raquianestesia total é possível e dor no local da injeção ou nas costas são discutidas, mas isso não é um
problema relevante na prática clínica72.
É clássico descrever a projeção cutânea do hiato sacro como o ângulo inferior de um triângulo equi-
látero, com os outros dois ângulos nas espinhas ilíacas posterossuperiores direita e esquerda (figura). O
hiato sacro está localizado na parte inferior do osso sacro. Nessa região, palpa-se, habitualmente, uma
depressão em forma de U ou V invertido, cujas margens laterais são constituídas pelos cornos sacrais
(resíduos embriológicos das apófises articulares inferiores da quinta vértebra sacral). É recoberto pela
membrana sacrococcígea (ligamentos sacrococcígeos superficiais e profundos) que possui consistência
elástica (Figuras 47.8 e 47.9).

Figura 47.8 - Projeção cutânea do hiato sacro

Figura 47.9 - Osso sacro

A técnica preconizada consiste em abordar o espaço epidural abaixo do cone medular e do saco dural, em
um nível onde o canal sacral praticamente não contém raízes espinhais. O posicionamento para a realização do
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1075
bloqueio pode ser decúbito ventral, com a pelve elevada por uma almofada, ou decúbito lateral, com os qua-
dris e os joelhos fletidos em 90 graus. As referências anatômicas utilizadas são a espinha ilíaca posterossuperior
e o hiato sacral, que formam as bordas de um triângulo equilátero. A punção peridural é conseguida na região
mais próxima do hiato sacral com a agulha inclinada de 45-60° em relação à pele. A agulha deve ser inserida
logo abaixo do processo espinhoso de S4. Após a perfuração da membrana, que obstrui o hiato sacro, a agulha
deve ser apenas minimamente avançada, não mais do que 1-3 mm, a fim de evitar uma punção com sangue ou
uma injeção subaracnóidea. A distância entre o saco dural e o local da punção pode ser extremamente curta e
uma injeção subaracnóidea acidental com uma anestesia espinhal total pode ocorrer. Com a flexão da coluna,
o final do saco dural move-se em direção cranial, aumentando, assim, a margem de segurança72.
As dimensões, a forma e a orientação do hiato sacro variam durante o crescimento. Com o passar dos
anos, o ângulo se atenua e o hiato sacro tende a se fechar, fato que dificulta o procedimento após os
7-8 anos. No lactente, o espaço peridural sacral é preenchido por um tecido de sustentação gorduroso
pobre em fibras conjuntivas, no qual a difusão das soluções anestésicas é rápida e uniforme. Em torno
dos 6-7 anos, a gordura peridural se torna mais densa e rica em tecido fibroso, diminuindo a difusão do
anestésico. Agulhas especialmente concebidas para anestesia caudal, com um bisel curto e um estilete,
são uma boa escolha e, provavelmente, reduzem o risco de punção vascular. A extensão do bloqueio
depende do volume administrado. Assim, para procedimentos em membros inferiores e região inguinal,
utiliza-se 0,7 mL.kg-1 de volume anestésico nas mesmas doses e concentrações preconizadas para os
bloqueios peridurais lombares; para procedimentos em região abdominal baixa, 1 mL.kg-1; para abdo-
me superior, 1,5 mL.kg-1 e para procedimentos torácicos, 2 mL.kg-1. Deve-se considerar a dose tóxica
do anestésico, adequando-se o volume à concentração, que varia de 0,125% a 0,25% de bupivacaína e
levobupivacaína ou 0,2% a 0,35% de ropivacaína72.
Peridural lombar e torácica
O local preferível para executar a punção é L3-L4 ou L4-L5. Bloqueios em níveis mais altos exigem
experiência e cautela do anestesiologista, devido ao risco de punção acidental da dura-máter e lesão me-
dular. A técnica é similar à realizada no adulto, porém, na criança, o espaço epidural é mais superficial e
possui menor capacidade. O espaço peridural é identificado pelo teste da perda de resistência, realizado
com ar ou solução salina. Alguns estudos demonstram que o uso de solução salina diminui o risco de em-
bolia aérea e promove melhor analgesia, pois o ar pode formar bolhas no espaço peridural, impedindo a
dispersão homogênea do anestésico local73.
Anestésicos locais e adjuvantes na anestesia peridural
Habitualmente, utiliza-se bupivacaína, levobupivacaína e ropivacaína em dose única para o intraope-
ratório, nas doses de 2 a 2,5 mg.kg-1, respeitando-se a dose máxima de 3 mg.kg-1 para a bupivacaína e de
3,5 mg.kg-1 para a levobupivacaína e ropivacaína, adequando-se o volume e a concentração ao nível de
bloqueio desejado74. Em infusão contínua, para controle da dor pós-operatória, em neonatos, utiliza-se
infusão de 0,25 mg.kg-1.h-1, em concentrações de 0,125% de bupivacaína ou levobupivacaína e 0,1% de ropi-
vacaína. Em lactentes acima dos 6 meses de idade utiliza-se infusão de 0,5 mg.kg-1.h-1 em concentrações
de 0,25% de bupivacaína ou levobupivacaína e de 0,2% de ropivacaína.
Atualmente, nota-se aumento na utilização de adjuvantes não opioides nos bloqueios peridurais, como
a clonidina, e a diminuição da utilização de agentes opioides, como a morfina. As doses recomendadas
na prática pediátrica, nos bloqueios peridurais lombares ou sacrais, são de 1 a 2 μg.kg-1 de clonidina, me-
lhorando a qualidade do bloqueio e prolongando a analgesia pós-operatória, com mínimos efeitos cola-
terais. A morfina associada aos bloqueios peridurais é utilizada nas doses de 30 a 50 μg/kg via peridural.
Em 2009, a Sociedade Americana de Anestesistas publicou diretrizes para os cuidados e a identificação
de riscos dos pacientes que recebem opioides no neuroeixo. Portanto, pacientes que recebem morfina
no bloqueio peridural, devido ao risco de efeitos colaterais graves, como a depressão respiratória tardia,
deverão permanecer em cuidados intensivos no período pós-operatório70.
Bloqueios de nervos periféricos
Bloqueio do membro superior
O bloqueio de plexo braquial via axilar é muito utilizado na população pediátrica para a correção de
fraturas do terço distal do antebraço e supracondilianas, nas quais a via axilar promove analgesia adequa-

1076 | Bases do Ensino da Anestesiologia


da. Também é útil nas correções de malformações congênitas, como as sindactilias, e nas confecções de
fístulas arteriovenosas. É indicado para procedimentos cirúrgicos ou dolorosos na face mediana do ante-
braço, do braço e da mão. Apresenta falha na região do ombro, referente ao nervo axilar, e efetividade
nos territórios dos nervos ulnar, mediano e radial62.
O bloqueio de plexo braquial via axilar é de fácil execução e quase desprovido de complicações, pela
ausência de relações anatômicas com estruturas vitais, como pulmão e grandes vasos, por exemplo. O
plexo braquial é derivado dos ramos ventrais das raízes nervosas de C5 a T1, recebendo também ramos de
C4 e T2. As raízes emergem da coluna envoltas por uma fáscia que se estende desde os processos trans-
versos até a axila. Em nível cervical, o feixe atravessa o espaço interescalênico, formado pelos músculos
escaleno anterior e médio. As raízes convergem formando os troncos superior, médio e inferior. Atrás da
clavícula, os troncos dividem-se em fascículos e, posteriormente, em nervos que, no cavo axilar, agru-
pam-se ao redor da artéria axilar.
O bloqueio do plexo braquial via axilar tem como contraindicações a incapacidade de abduzir o braço
a 90° graus; lesões cutâneas no território axilar; infecção local; linfadenopatia axilar; fraturas que cursam
com lesão neurológica e distúrbios de vascularização que podem se agravar pela compressão exercida
pela solução anestésica. A técnica clássica é realizada no cavo axilar, com o braço abduzido a 90° graus
e externamente rodado. A punção perivascular é a preferida nas crianças, pois a transarterial tem maior
risco de formação de hematoma. Após a injeção, o envoltório axilar torna-se ingurgitado, podendo-se
realizar leve compressão distal com o objetivo de aumentar a dispersão cefálica e promover bloqueio do
nervo musculocutâneo. O material para a realização do bloqueio deve ser adequado à população pediátri-
ca. A utilização de estimulador de nervo favorece alto índice de sucesso com baixa incidência de compli-
cações neurológicas, porém, no paciente anestesiado, pode ocorrer lesão sensitiva do nervo mesmo sem
resposta motora com o uso do neuroestimulador75.
De forma prática pode-se utilizar 0,5 mL.kg-1 de volume total, calculando-se sempre a dose máxima do
anestésico para adequá-la em volume, massa e concentração ao peso e à idade da criança. Podem-se utili-
zar concentrações de 0,25% ou preparar soluções com concentração de 0,375%, adequando dose e volume.
O bloqueio via axilar apresenta baixa incidência de complicações, representadas principalmente por
hematoma; insuficiência arterial por vasoconstrição transitória; injeção intravascular com intoxicação
sistêmica pelo anestésico local e lesões neurais que podem ser graves e ocasionar sequelas. No paciente
anestesiado, é difícil identificar as falhas de bloqueio, que geralmente cursam com alterações dos sinais
vitais. Ocorrem em torno de 6% dos bloqueios via axilar, podendo ser completas ou parciais.
Bloqueios de parede abdominal
A inervação da parede abdominal anterolateral surge a partir dos ramos anteriores dos nervos espinais
T7 a L1. Divisões do ramo anterior incluem os nervos intercostais (T7-T11), o nervo subcostal (T12) e os
nervos ilio-hipogástrico e ilioinguinal (L1). Estes dão origem ao cutâneo lateral e ramos cutâneos anterio-
res à medida que se tornam mais superficiais. Os nervos intercostais T7 a T11 saem dos espaços intercos-
tais e correm em plano neurovascular, entre os músculos oblíquo interno e transverso do abdome. O nervo
subcostal (T12) e os nervos ilioinguinal e ilioipogástrico (L1) também viajam no plano entre o transverso
abdominal e o oblíquo interno, inervando esses músculos. T7-T12 continuam anterior no plano transverso
para perfurar o músculo reto abdominal e terminam como nervos cutâneos anteriores. Os nervos torácicos
T7 a T12 fornecem inervação motora para o piramidalis e o músculo reto. Esses nervos têm ramos cutâ-
neos lateralmente no abdome. Os nervos T7-T11 fornecem inervação sensitiva para a pele; partes costais
do diafragma; a pleura parietal relacionada e o peritônio, enquanto o T7 fornece inervação para a região
epigástrica, o T10, para o umbigo e o L1, para a prega inguinal.

Bloqueio do plano transverso da parede abdominal (Tap block)


O tap block pode ser usado para qualquer tipo de cirurgia que envolve a parede abdominal inferior (ci-
rurgia do intestino, apendicectomia, correção de hérnia, cirurgia umbilical, orquidopexias, laparotomias
e laparoscopias). A extensão superior do bloqueio e sua utilização nas cirurgias de abdome superior são
controversas. Pode ser realizado unilateral ou bilateral quando a incisão cirúrgica cruza a linha média.
Com a utilização da USG, o local da punção é imediatamente acima da crista ilíaca posterior e na linha
axilar média dentro do triângulo de Petit. Uma agulha de ponta romba de 50 milímetros 24G é inserida

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1077


perpendicularmente à pele, até o plano fascial acima do músculo transverso abdominal e, após a aspira-
ção, o anestésico local é injetado.
Em 2009, Suresh e Chan descreveram uma variação na abordagem posterior do Hebbard para crianças,
posicionando o transdutor mais lateralmente ao longo da parede abdominal para visualizar o grande dorsal
e a origem do músculo abdominal transverso. A deposição do anestésico local mais perto da origem das
raízes toracolombares permite melhor distribuição do fármaco em toda a parede abdominal. Em 2008,
Hebbard também descreveu a abordagem subcostal especificamente para cirurgia de abdome superior.
Nessa variação, a agulha penetra na pele numa área perto do apêndice xifoide76.
A dose do anestésico local é determinada de acordo com idade, estado físico, área a ser anestesiada
e peso. Suresh e Chan defendem doses de bupivacaína 0,2 mL.kg-1 com um volume máximo de 20 ml in-
jetado em cada lado para as crianças, limitando a dose de bupivacaína em 2 mg.Kg-1em RN, 3 mg.kg-1 em
crianças e 4 mg.Kg-1 em adolescentes para evitar toxicidade.
Bloqueios dos nervos ilioinguinal e ilio-hipogástrico
O bloqueio dos nervos ilioinguinal e ilio-hipogástrico é indicado em herniorrafias inguinais; orquidopexias;
correções cirúrgicas de hidrocele; cistos de cordão, além de apendicectomias. A duração da analgesia gira
em torno de 6 a 8 horas. A imprecisão dos pontos de injeção explica por que, algumas vezes, os resultados
são incertos, com falha de aproximadamente 10% dos bloqueios, podendo chegar a 30%39. Não existem con-
traindicações específicas ao bloqueio ilioinguinal, somente as inerentes a qualquer bloqueio regional77.
O objetivo da técnica consiste em realizar uma infiltração abaixo da aponeurose do músculo oblíquo
interno, atingindo os dois nervos e suas ramificações. Há pelo menos três técnicas descritas: infiltração
direta do anestésico local na proximidade dos nervos, depois da incisão; instilação de anestésico local ao
final da dissecção cirúrgica e antes do fechamento; e infiltração percutânea de anestésico local dentro
dos planos da fáscia, circundando os nervos, antes da incisão cirúrgica. Uma das técnicas consiste em se
traçar uma linha entre a espinha ilíaca anterossuperior e o umbigo, mais ou menos 1 cm medial e inferior
à espinha ilíaca, introduzindo-se uma agulha de bisel curto, num ângulo de 45 a 60° graus com a pele, em
direção caudal e medial. Ao atravessar a aponeurose do músculo oblíquo externo, sente-se uma perda de
resistência e injeta-se metade da solução anestésica. Então, aprofunda-se a agulha, atingindo o espaço
entre o músculo oblíquo interno e o transverso do abdome, injetando-se o anestésico restante77. Os nervos
ilioinguinal e ilio-hipogástrico podem também ser bloqueados com o auxílio da ultrassonografia.
Há poucas complicações descritas, podendo-se citar as perfurações de cólon; a formação de hematoma
pélvico; a injeção intraneural e intravascular. A toxicidade neural pelo anestésico local e paralisia transi-
tória do nervo femoral podem acometer até 5% das crianças que recebem esse tipo de bloqueio.
Bloqueio do nervo dorsal do pênis
O bloqueio peniano é de fácil execução, com taxa de sucesso de 93,5%, seguro e tão efetivo quanto o
bloqueio caudal. Oferece analgesia intraoperatória e pós-operatória para cirurgias do prepúcio (circunci-
são, fimose e parafimose) e para cirurgias de hipospádias que não envolvam a raiz do pênis. Não há con-
traindicações, mas como o nervo passa próximo à artéria dorsal do pênis, que é um ramo terminal, não
se deve utilizar anestésico local com adrenalina, devido ao risco de isquemia e necrose78.
O pênis é inervado principalmente pelo nervo dorsal à direita e esquerda, e ramos terminais do nervo
pudendo. O nervo dorsal do pênis emerge abaixo da sínfise púbica, atravessa o espaço subpúbico, penetra
no ligamento suspensor do pênis e corre lateralmente às artérias e veias dorsais do pênis, internamente
à fáscia de Buck. Supre a glande e quase todo o corpo do pênis, exceto a região proximal e escrotal, que
são supridas por alguns ramos do nervo genitofemoral e ilioinguinal78.
Várias são as técnicas descritas para a realização do bloqueio peniano. A técnica de Bacon é a mais uti-
lizada e consiste na administração de anestésico local no espaço subpúbico, que é rico em tecido frouxo e
gorduroso e pobre em elementos vasculares. Os pontos de referência são a sínfise púbica, o bordo inferior
dos ramos iliopúbicos e a linha média. Para a execução do bloqueio, deve-se tracionar o pênis caudalmen-
te, mantendo a fáscia de Scarpa sob tensão e introduzir uma agulha de bisel curto perpendicularmente à
pele, abaixo da sínfise púbica. Nota-se uma resistência elástica correspondente à fáscia de Scarpa, e, ao
atravessá-la, ocorre perda de resistência. Injeta-se o anestésico local bilateralmente e os nervos dorsais
do pênis são atingidos por difusão. A dose recomendada de bupivacaína 0,25-0,5% sem adrenalina é de 0,5

1078 | Bases do Ensino da Anestesiologia


a 1 mg.kg-1 ou em volume de 0,1 mL.kg-1 em cada lado. A latência do bloqueio peniano é de aproximada-
mente 15 minutos e sua duração pode chegar até 24 horas de analgesia no pós-operatório78,79.

47.7. HIDRATAÇÃO E REPOSIÇÃO


A reposição hídrica perioperatória do paciente cirúrgico pediátrico representa desafios. A prática con-
ta com fórmulas e conceitos que permaneceram por um longo período como verdades científicas, mas
que, atualmente, estão sendo reexaminados e contestados. A clássica publicação, em 1957, por Holliday e
Segar, apresentou pela primeira vez um método prático para a prescrição de fluidos intravenosos (IV) em
crianças. Os autores descreveram a íntima relação entre as perdas fisiológicas de fluidos e o gasto calóri-
co. Sob condições normais, 1 mL de água é necessário para metabolizar 1 kcal, contabilizando-se as per-
das insensíveis e o débito urinário. Assim, as necessidades calóricas espelham as necessidades de água80.
Com base nas necessidades calóricas médias diárias de pacientes hospitalizados, as exigências de líqui-
dos em 24h, como proposto por Holliday e Segar, para pacientes com peso 0-10 kg são 100 mL.kg-1. Com
o aumento da idade, as necessidades metabólica e de água diminuem, sendo assim, para as crianças de
11-20 kg, são 1.000 mL mais 50 mL.kg-1 para cada kg entre 11 e 20 kg, e para pacientes com peso superior
a 20 kg, são 1.500 mL mais 20 mL.kg-1 para cada kg acima de 20 kg. Baseada no peso, a taxa de líquido IV
por hora, extrapolados das fórmulas acima, levou ao que hoje é mais frequentemente utilizado na prática
pediátrica, a regra do “4-2-1”. À época, os autores sugeriram o plano básico como solução de reposição e,
50 anos depois, eles questionaram o uso dessa solução80. Nesse mesmo artigo, os autores também defini-
ram as necessidades diárias de eletrólitos para manutenção. Considerando a composição de eletrólitos do
leite humano e leite de vaca, recomendaram 2 mEq.100kcal-1.d-1 de K+ e Cl- e 3 mEq.100kcal-1.d-1 de Na+. Em
suas conclusões, enfatizaram que “esses números dão apenas as necessidades de manutenção de água.
Está além do escopo deste artigo considerar a reposição de déficits ou de perdas continuadas anormais de
água”. Passados 50 anos, em 2007, o próprio Holliday questionou o uso da fórmula e de soluções hipotôni-
cas, considerando-as inadequadas, passando a recomendar o uso de soluções isotônicas, mais adequadas
para repor água e eletrólitos, uma vez que sua osmolaridade é mais próxima da do plasma5.
Durante o procedimento anestésico-cirúrgico, a necessidade de reposição de líquidos e eletrólitos ocor-
re por razões que vão desde a reposição das perdas hídricas prévias à cirurgia (vômito, preparo intestinal,
edema, ascite, jejum prolongado, hipertermia) até as basais, que correspondem às perdas sensíveis de água
e eletrólitos (pelos tratos gastrintestinal e urinário) e às perdas insensíveis (pela evaporação através da pele
e dos pulmões), e as perdas para o terceiro espaço, que variam conforme o porte cirúrgico e de sangue. A
maior parte da água perdida no intraoperatório é refletida basicamente no LEC, possuindo grande teor de
eletrólitos. Historicamente, a prática aceita é a de administrar líquidos para atender às necessidades de ma-
nutenção, bem como para substituir os déficits pré-operatórios e as perdas ocorridas durante o procedimen-
to cirúrgico. Hoje, a maioria dos anestesiologistas tem adotado a utilização de solução fisiológica ou Ringer
com lactato, tanto para manutenção como para reposição. Há pouca controvérsia sobre a taxa de fluido
aceitável para manutenção, tal como descrita por Holliday. Entretanto, considerável debate ocorre com
respeito ao montante do déficit gerado pelo jejum e da real existência de “perdas para o terceiro espaço”.
Como resultado do estado de jejum, presume-se que as crianças desenvolvam déficits de fluido pré-
-operatórios secundários às perdas contínuas insensíveis e de débito urinário. Em 1975, Furman e col.
propuseram um cálculo dos déficits pré-operatórios, multiplicando a taxa horária calculada pelo método
Holliday e Segar pelo número de horas de jejum. Em seguida, sugeriu a substituição de metade desse vo-
lume durante a primeira hora de cirurgia, seguido por outra metade nas 2 horas seguintes. Essa prática
foi adotada por muitos anos, sem que ninguém questionasse a sua utilidade81.
No entanto, em 1986, Berry simplificou esse método, fornecendo um bolus de solução salina para
crianças saudáveis durante a primeira hora de cirurgia. Berry concluiu que crianças até 3 anos deveriam
receber 25 mL.kg-1, enquanto crianças de 4 anos ou mais deveriam receber 15 mL.kg-1. Ambos os métodos
foram desenvolvidos com base na suposição de que as crianças ficavam em jejum por pelo menos 6 a 8 ho-
ras. O debate sobre o significado da desidratação pré-operatória secundária ao estado de jejum tornou-se
menos importante devido à liberalização do tempo de jejum, não havendo necessidade de uma aborda-
gem tão vigorosa para repor o jejum nessas crianças, sugerindo-se então a administração de um volume
de 4 mL.kg-1.h-1 de jejum. Para a reposição das perdas cirúrgicas, recomenda-se a infusão de 4 mL.kg-1.h-1

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1079


de volume de manutenção acrescido do volume para repor o porte cirúrgico (trauma leve: 2 mL.kg-1.h-1;
trauma moderado: 4 mL.kg-1.h-1 e trauma grave: 6 mL.kg-1.h-1, totalizando 6, 8 e 10 mL.kg-1.h-1, respectiva-
mente). A reposição das perdas sanguíneas pode ser realizada com soluções cristaloides na proporção 3:1
ou com soluções coloides na proporção de 1:1, considerando as condições hemodinâmicas do paciente, o
hematócrito prévio e o aceitável para cada faixa etária, a volemia e a perda sanguínea aceitável. Obvia-
mente, situações especiais devem ser consideradas82.
Em doenças que cursam com grandes perdas, como no caso de uma enterocolite necrotizante (seques-
tro de volume em alças), preconiza-se a administração de até 100 mL.kg-1.h-1 de volume. Em grandes repo-
sições, não podemos negligenciar o risco de acidose pela infusão de grande quantidade de Cl-1 na solução
fisiológica e de lactato no RL. Soluções como a multieletrolítica tipo 1 USP, Plasmalyte®, são balanceadas
com constituição eletrolítica e pH semelhantes aos do plasma, apresentando ainda gluconato e acetato
em sua composição que, quando metabolizados, se ligam ao H+, que, por sua vez, é eliminado, gerando,
assim, menor risco de desenvolver acidose em grandes reposições.
As soluções glicosadas e as soluções salinas 0,45% acrescidas de glicose 5% (solução ao meio) são hipotô-
nicas (baixa osmolaridade comparada com o LEC), possuem quantidades inadequadas de eletrólitos e altas
concentrações de glicose, ocasionando hiperglicemia e hiponatremia dilucional. A consequência clínica
mais grave de infusão de altos níveis de solução glicosada é o edema cerebral83.
Crianças estão particularmente vulneráveis ao risco de hiponatremia (Na+ plasmático < 130 mmol.L-1)
e tornam-se sintomáticas com concentrações plasmáticas de Na+ mais elevadas que os adultos. Mais de
50% das crianças com sódio < 125 mmol.L-1 vai desenvolver encefalopatia hiponatrêmica. Um número sig-
nificante de artigos descreve casos de encefalopatia hiponatrêmica grave relacionados totalmente ou em
parte com o uso de soluções hipotônicas. Se o aumento no volume cerebral excede 5% a 7% do seu volume
inicial, há risco de herniação cerebral e morte. A hiponatremia pode ser precipitada em pacientes por-
tadores de doenças perdedoras de sal, na secreção inapropriada de ADH e nos que cursam com vômitos
incoercíveis, sudorese excessiva, queimadura e em uso de diuréticos. Hipervolemia, hipertensão arterial,
náuseas e vômitos decorrentes do aumento da pressão intracraniana, convulsões e até herniação cerebral
são sinais e sintomas de hiponatremia84.
Com relação à infusão de soluções com glicose a 5% (isolada ou associada a SF ou RL), com o intuito de
prevenir a hipoglicemia, é importante ressaltar que, também nas crianças, o organismo responde ao trau-
ma cirúrgico com o aumento do cortisol, do hormônio de crescimento e das catecolaminas, todos capazes
de mobilizar as reservas de glicogênio, aumentando os níveis glicêmicos. Assim, a hiperglicemia também
tem sido reconhecida como deletéria para o cérebro. Na presença de isquemia ou hipóxia, propõe-se que
a diminuição do metabolismo da glicose que se encontra em excesso provoque acúmulo de lactato, di-
minuição do pH intracelular e, consequentemente, grave comprometimento da função celular, que pode
resultar em morte celular. A hiperglicemia pode também induzir diurese osmótica com consequente desi-
dratação e alterações eletrolíticas85.
Por outro lado, hipoglicemia, dependendo da gravidade, pode ter efeitos devastadores sobre o SNC,
especialmente em recém-nascidos. A diminuição da glicose no sangue evoca uma resposta de estresse e
altera o fluxo sanguíneo e o metabolismo cerebral. Se a hipoglicemia não vem a ser reconhecida e tratada,
pode resultar em comprometimento neurológico permanente86.
Baseado em vários estudos, há um consenso crescente para administrar a glicose no intraoperatório
de maneira seletiva, apenas nos pacientes em grande risco de hipoglicemia (jejum prolongado, neonatos
filhos de mães diabéticas, pequenos para a idade gestacional e prematuros, desnutridos graves ou que
cursam com baixos estoques de glicogênio, os que fazem uso de propanolol ou de nutrição parenteral, na
síndrome de Becwith-Wiedemam, os com tumores pancreáticos ou hepatopatas, no hipopituitarismo, na
insuficiência adrenal e no feocromocitoma)84.
Os coloides podem ser divididos em coloides de proteína natural (albumina) e coloides sintéticos (hidro-
xietil amido, dextrans e gelatinas). A albumina é considerada como o padrão-ouro coloidal em pediatria.
Uma solução de albumina a 5% é osmoticamente equivalente a um volume igual de plasma, enquanto uma
solução de 25% é osmoticamente equivalente a 5 vezes o seu volume de plasma. Os efeitos colaterais da
albumina são raros, mas foram relatados. Embora considerado um efeito negligenciável na cascata de
coagulação, a albumina pode ainda ter efeitos anticoagulantes fracos, por meio da inibição dos efeitos

1080 | Bases do Ensino da Anestesiologia


de agregação plaquetária ou efeito heparina-like. As reações alérgicas são outra complicação possível da
administração de albumina, no entanto, a albumina está associada significativamente com menos reações
anafiláticas em comparação com outros coloides84,87.
Existem poucos estudos com coloides sintéticos em pediatria, porém, cabe a ressalva de que, no Bra-
sil e em outros países, nem todos os sintéticos são aprovados para utilização em crianças. Sumpelmann
e col. publicaram resultados preliminares de um estudo multicêntrico observacional em crianças com a
utilização de hidroxietil starch 130/0,42 (HES 130/0,42) e concluíram que, em doses moderadas, promove
estabilidade cardiovascular e que a probabilidade de reações adversas com essas doses é menor que 1%88.
A gelatina modificada é uma solução isosmótica, sem limite de volume para ser infundido, e que perma-
nece no intravascular por cerca de 4 horas. No entanto, poucos são os estudos realizados nos pacientes
pediátricos, não havendo um consenso com relação a sua utilização nessa faixa etária.

47.8. ANESTESIA PARA AS PRINCIPAIS MALFORMAÇÕES E DOENÇAS DA CRIANÇA


E DO NEONATO
Onfalocele e gastrosquise
Apesar de não terem a mesma origem embriológica, os manejos cirúrgico e anestésico são idênticos.
A onfalocele (Figura 47.10) tem incidência de 1/5.000 nascidos vivos. Frequentemente, são prematuros e
possuem outras anomalias associadas: pentalogia de Cantrell (onfalocele, hérnia diafragmática, anomalias
cardíacas, defeito esternal/pericárdico e ectopia cordis) e síndrome de Beckwith-Wiedemann (hipertrofia
de múltiplos órgãos). Nesta, a presença da língua aumentada pode comprometer as vias aéreas e o aumen-
to do pâncreas pode causar hiperinsulinismo e hipoglicemia. A gastrosquise (Figura 47.11) tem incidência
de 1/10.000 nascidos vivos e frequentemente nascem a termo e apresentam defeito isolado34,89.

Figura 47.10 – Onfalocele Figura 47.11 – Gastrosquise

A maior diferença fisiopatológica entre os dois defeitos é que, na onfalocele, o conteúdo intestinal per-
manece recoberto com a membrana peritoneal protegendo a mucosa intestinal dos efeitos irritativos do lí-
quido aminiótico e existe menor perda de temperatura e líquido comparado com a gastrosquise. Os RN com
gastrosquise, devido à falta da membrana protetora, são mais predispostos a desidratação; hipotermia; se-
questro de fluidos para o terceiro espaço; distúrbios eletrolíticos; acidose; hemorragia e sepse. O conteúdo
abdominal extruso deve ser coberto com compressas de solução salina aquecida e revestido com um saco
plástico estéril, a fim de diminuir a perda de fluidos e de temperatura. As considerações para a indução da
anestesia geral são semelhantes àquelas para “estômago cheio”, secundárias à obstrução intestinal.
Cuidados devem ser tomados com ventilação controlada, de preferência manual, e bom relaxamento
muscular. O aumento da pressão intra-abdominal pode resultar em síndrome compartimental abdomi-
nal e diminuição crítica da perfusão dos órgãos. A compressão venosa induz à diminuição da pré-carga e
hipotensão, além da congestão dos membros inferiores, portanto, a venopunção deve ser realizada, de

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1081


preferência, nos membros superiores. A compressão arterial acarreta compressão da artéria renal, oligú-
ria, diminuição da perfusão das extremidades inferiores, e isquemia intestinal. O deslocamento cefálico
do diafragma pode diminuir significantemente a CRF e o volume final, predispondo à hipoxemia, que, a
despeito da ventilação, pode impedir o fechamento primário da parede abdominal. Pressão intragástrica
abaixo de 20 mmHg é considerada segura para fechar a cavidade abdominal. Entretanto, se a pressão in-
tratraqueal estiver acima de 30 mmHg e a pressão intragástrica, abaixo de 20 mmHg, o fechamento pri-
mário não é recomendado. No período pós-operatório há necessidade de suporte ventilatório. A síndrome
compartimental do abdome pode ocorrer no pós-operatório; portanto, adequado relaxamento abdominal
e sedação são essenciais para um bom prognóstico34,89.
Hérnia diafragmática congênita (HDC)
Nessa situação, as vísceras abdominais concorrem com os pulmões pelo mesmo espaço (Figura 47.12).
A incidência de HDC é de aproximadamente 1/5.000 nascimentos vivos e a mortalidade é alta, em virtude
da hipoplasia e de alterações vasculares no pulmão, além da associação com outras anomalias congênitas.
O grau da hipoplasia pulmonar depende da extensão e da ocasião da herniação. Tanto as vias aéreas como
a vasculatura pulmonar estão comprometidas, predispondo o RN a manter uma circulação de transição,
com shunt direito-esquerdo e hipertensão pulmonar. Adicionalmente, também são descritas alterações no
sistema de fibras elásticas e do colágeno, podendo ser responsáveis pela menor elasticidade do parênqui-
ma pulmonar.
Outras malformações podem estar associadas com a HDC, como a má rotação intestinal e anomalias
cardiovasculares. A melhora do estado pré-operatório deve ser obtida com a correção da acidose, hipóxia
e hipotermia. O tratamento do RN portador do defeito deve se basear em intubação endotraqueal ao nas-
cimento, respiração assistida com baixas pressões intratraqueais e hipercapnia permissiva. Após a estabi-
lização, a cirurgia poderá ser eletivamente indicada. A pressão positiva sob máscara facial deve ser evita-
da, devido ao risco de distensão gástrica e de vísceras ocas dentro da cavidade torácica, além do risco de
pneumotórax. Uma sonda nasogástrica deve ser imediatamente posicionada para descomprimir o trato di-
gestivo. A canulação da artéria radial direita permite medida contínua da pressão arterial e da oxigenação
pré-ductal, enquanto o oxímetro de pulso pré-ductal (extremidade superior D) e pós-ductal (extremidade
inferior) permite a detecção precoce do shunt D-E por desenvolvimento da hipertensão pulmonar. Para
evitar o barotrauma, adequadas ventilação e expansão pulmonar são prioridades, especialmente quando
altas pressões são requeridas. No manuseio desses pacientes, devem ser evitados fatores que aumentem
a resistência vascular pulmonar, como acidose, hipotermia, hipoxemia e hipercarbia. Da mesma forma,
atentar para a necessidade de redução do tônus simpático, utilizando-se altas doses de opioides34.

Figura 47.12 – Hérnia diafragmática congênita

Má rotação, íleo meconial, ânus imperfurado, atresias congênitas duodenais e ileais


As atresias duodenais podem vir associadas com outras anomalias, como má rotação intestinal; síndro-
me de Down; atresia esofágica e ânus imperfurado. Em todas essas malformações, os pacientes apresen-
tam sinais de obstrução intestinal: distensão abdominal; vômitos e distúrbios metabólicos importantes;
portanto, o cuidado com esses pacientes é semelhante. As considerações anestésicas para os RNs com

1082 | Bases do Ensino da Anestesiologia


obstrução intestinal incluem manipulação das vias aéreas, correção de distúrbios hidroeletrolíticos e tra-
tamento de sepse. A distensão abdominal deve ser aliviada pela passagem de sonda orogástrica. A intu-
bação traqueal, com o paciente acordado, pode ser uma boa indicação, como também as manobras de
indução e intubação em sequência rápida. O maior desafio no intraoperatório é manter um volume circu-
lante adequado. Para tanto, é necessário obter dois acessos venosos periféricos de grosso calibre, assim
como acesso venoso central. Em pacientes graves, com persistência de hipotensão arterial, considerar
infusão de vasopressor34,89.
Atresia de esôfago (AE)
A incidência é de 1/3.000 nascidos vivos. A maioria dos pacientes tem ainda uma comunicação anormal
entre a traqueia e o esôfago inferior, chamada fístula traqueoesofágica distal. A prematuridade é comum,
acometendo 35% dessas crianças. Mais de 50% apresentam associação com outras anomalias congêni-
tas, sendo mais frequentes as cardíacas (ducto arterioso, septos interatrial e interventricular, tetralogia
de Fallot). Das anormalidades geniturinárias e do trato gastrintestinal, as mais comuns são a anomalia
anorretal e as obstruções duodenais, sendo a atresia de duodeno muito associada com a síndrome de
Down. Pode haver, também, anormalidades neurológicas e esqueléticas (vertebrais). Outras síndromes
conhecidas podem estar associadas em aproximadamente 20% dos casos, além da síndrome de Down, as
trissomias do cromossomo VIII ou do cromossomo XIII. Existe uma associação de malformações, particu-
larmente comum, conhecida como síndrome de Vacterl (V - anomalia vertebral; A - anomalia anorretal;
C - malformação cardíaca; TE - fístula traqueoesofágica; R -malformação renal; L- anomalia de membro
[aplasia radial])34,89.
A atresia de esôfago e a fístula traqueoesofágica podem ocorrer como entidades isoladas, porém, a
combinação é frequente (Figura 47.13).

Figura 47.13 – Atresia de esôfago


Tipos de anormalidade congênita do esôfago:
A. Atresia de esôfago sem comunicação com a traqueia.
B. Atresia de esôfago com o segmento superior em comunicação com a traqueia.
C. Atresia de esôfago com o segmento inferior em comunicação com a parte posterior da traqueia.
D. Atresia de esôfago com os segmentos superior e inferior em comunicação com a traqueia.
E. Esôfago sem solução de continuidade, mas com uma fístula traqueoesofágica.
F. Estenose de esôfago.
Atresia de esôfago com fístula traqueoesofágica distal (AE com FTE)
É a mais comum das anomalias (86%). O esôfago proximal termina em fundo cego. A fístula pode, rara-
mente, conectar-se com o brônquio. O tamanho do coto proximal, o posicionamento mais baixo da fístula
e o espaço entre eles são fatores que influenciam a facilidade ou a dificuldade da correção cirúrgica. Não
existindo associação com outras condições patológicas, como prematuridade, baixo peso ou alterações
cardiovasculares, a correção dessa anomalia resulta em bom prognóstico. O tratamento cirúrgico da atre-
sia de esôfago não é indicação de emergência, podendo-se aguardar várias horas e mesmo alguns dias
para se obter um melhor preparo. Devido à associação da fístula traqueoesofágica com outras anomalias
congênitas, incluindo associação de Vacterl, faz-se necessária a realização de ecocardiograma no pré-ope-
ratório. Uma importante consideração durante a indução anestésica é evitar a ventilação com pressão
positiva, que pode resultar em distensão gástrica e comprometimento da função cardiorrespiratória, além
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1083
de refluxo gástrico através da fístula para dentro do pulmão. Deve ser utilizada sonda oroesofageana em
aspiração contínua.
A intubação em sequência rápida para minimizar o risco de aspiração das secreções do esôfago proxi-
mal parece ser a melhor técnica. Entretanto, se o RN encontrar-se em estado grave, a intubação acordado
é uma boa escolha. Mesmo após a intubação, pode não haver oclusão da FTE, por esta ser situada quase
sempre próxima à carina. Há também a possibilidade de se intubar a fístula. Por causa da baixa CRF, do
alto consumo de O2 e da imaturidade das fibras tipo I, a hipoxemia é comum, sendo mandatória a manu-
tenção da ventilação assistida ou controlada quando houver obstrução por tração ou compressão traqueal.
A aspiração do tubo traqueal deve ser frequente durante o intraoperatório, pois o coágulo sanguíneo e as
secreções podem obstruí-lo. A obstrução da ventilação pode ocorrer por compressão e/ou tração da tra-
queia ou hilo pulmonar pela equipe cirúrgica, sendo fundamental a cooperação entre a equipe cirúrgica
e anestésica. Assistência ventilatória e analgesia adequada no pós-operatório diminuem a incidência de
complicações, como atelectasia34,89.
Mielodisplasias
Defeitos do tubo neural
A mielodisplasia surge em decorrência do não fechamento espontâneo do tubo neural durante o desen-
volvimento embriológico. Esse fechamento deve ocorrer entre o 25º e 27º dias de gestação e, quando não
ocorre, pode ser responsável pelo aparecimento de anomalias congênitas: espinha bífida; meningocele;
mielomeningocele; medula sem mobilidade; encefalocele; anencefalia; sinus dermal; seringomielia; dias-
tematomielia; cistos do cone medular ou lipomas34 (Figura 47.14).

Figura 47.14 – Meningocele e encefalocele


Das anomalias do tubo neural, a mielomeningocele (Figura 47.15) é a mais grave e com maior reper-
cussão neurológica, já que estruturas neurais são arrastadas com o saco da meningocele. A malformação
de Arnold-Chiari do tipo II é bastante frequente (70-80%) nas crianças portadoras de meningomielocele e
geralmente evoluem para hidrocefalia34.

Figura 47.15 - Mielomeningocele

1084 | Bases do Ensino da Anestesiologia


A mielomeningocele está sujeita à infecção precoce, devendo-se iniciar de imediato antibioticoterapia
profilática e proteção das áreas expostas da lesão com compressas ou esponjas umedecidas. A correção
cirúrgica deve ser priorizada, melhorando o prognóstico da criança. A anomalia aberta do tubo neural
deve ser considerada uma emergência médica e corrigida dentro de 24h após o nascimento. É importante
a realização de uma avaliação da função neurológica prévia, com o objetivo de saber a extensão do com-
prometimento abaixo da lesão. Pacientes portadores de disfunção congênita do tubo neural geralmente
são propensos a desenvolver alergia ao látex34.
O posicionamento desses pacientes é de fundamental importância. A posição supina e a pressão so-
bre a área de lesão devem ser evitadas, para impedir sofrimento de estruturas nervosas. A laringoscopia
para intubação traqueal deve ser realizada com a criança em decúbito lateral. A perda de calor pode ser
grande durante a correção cirúrgica do defeito do tubo neural, especialmente nas crianças pequenas com
mielomeningocele extensa. Nessa circunstância, a prevenção de hipotermia e a monitorização da tempe-
ratura são medidas mandatórias. A monitorização invasiva da pressão arterial e o cateter venoso central
devem ser considerados quando o defeito do tubo neural é extenso, com previsão de grande perda san-
guínea, ou quando a sua localização é cefálica e a correção é realizada em posição semissentada. Antes
da indução anestésica, as perdas de volume para o terceiro espaço devem ser avaliadas, o que ocorrerá
na dependência da extensão da mielomeningocele. Essas perdas podem variar de pequenos a grandes vo-
lumes, isto é, de 2 a 10 mL.Kg-1.h-1 34.

47.9. ANALGESIA PÓS-OPERATÓRIA


Um manejo cada vez mais proativo da dor nos pacientes pediátricos é necessário para superar o histó-
rico de subtratamento da dor em crianças. Para um tratamento adequado, a avaliação e previsibilidade da
dor são essenciais e dependem da idade, do peso e da presença de comorbidades. E a menos que existam
contraindicações, uma abordagem multimodal, envolvendo técnicas comportamentais, especialmente no
enfoque do componente emocional da dor, deve ser aplicada sempre, associada com sedativos, analgé-
sicos e anestésicos locais que são tão importantes quanto para um esquema analgésico adequado. Como
muitos dos agentes utilizados para o tratamento da dor tem um componente de sedação associado, é
imperativo monitoramento apropriado durante o procedimento e a recuperação. Em tempos de medicina
baseada em evidência combinada com uma prática clínica que, a cada dia, aumenta a preocupação com
os riscos, há a necessidade de se encontrarem técnicas mais adequadas de promoção de analgesia com o
menor risco90.
Existem diversas técnicas de avaliação da dor em crianças, no entanto, muitos anestesiologistas
as desconhecem e a maioria tem dificuldades em aplicá-las, levando ao subdiagnóstico e, consequen-
temente, subtratamento com manejo inadequado da dor. Para modificarmos esse cenário, é neces-
sário conhecer as escalas ideais para avaliação da dor. Essas escalas mudam com a faixa etária e,
principalmente, com o desenvolvimento cognitivo das crianças pela alteração do entendimento e da
percepção da dor. Algumas escalas preconizadas são a OPS (RNs e lactentes); FLACC (1 a 18 anos,
hospitalizados); Faces Wong e Backer (3 a 18 anos); Faces revisada (4 a 14 anos); Analógica e numérica
(acima de 8 anos); Pieces of Hurt Tool (3 a 8 anos), Parents Postoperative Pain Measure – PPPM (1 a
12 anos, domiciliados)91.
Com relação ao manejo da dor, não há muita discussão com relação às cirurgias de grande porte, para
as quais, na maioria das vezes, técnicas contínuas, venosas ou peridurais são utilizadas. Muita discussão
existe em torno do manejo da dor em cirurgias de pequeno e médio portes92. Analgésicos venosos podem
ser utilizados nas doses sugeridas na Tabela 47.16.
Estudo sobre segurança da anestesia regional revela uma taxa global de complicações muito bai-
xa, igual a 0,12%, seis vezes maior em bloqueios centrais em comparação com os periféricos. Como
resultado do baixo índice de complicações, técnicas de anestesia regional têm um bom perfil de se-
gurança e podem ser usadas para fornecer analgesia pós-operatória em crianças. O estudo registra
ainda o uso seguro de um número significativo de cateteres, tanto centrais como periféricos, sendo
a maioria deles neuroaxiais62.
No entanto, muitas intervenções cirúrgicas são relativamente menores em sua natureza (por exemplo,
correção de hérnia inguinal, orquidopexia, circuncisão, hérnia umbilical) e não motivam o uso de catete-

Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1085


res contínuos. Apesar da utilização de anestésicos locais (Tabela 47.17) de longa ação, a duração das téc-
nicas de bloqueio de injeção única é frequentemente insuficiente para cobrir a maior parte das primeiras
24 horas pós-operatórias, o que muitas vezes é o período mais doloroso do pós-operatório. Assim, se a
duração de um bloqueio de injeção única pode ser prolongada por meios seguros, é razoável utilizar os
métodos e fármacos disponíveis92.
Tabela 47.16 – Analgésicos e anti-inflamatórios não esteroidais

Analgésicos e AINES Restrições de idade Via Dose Intervalo Período

> 1 ano VO 1 mg.kg-1 6/6 ou 8/8h


Cetoprofeno -
> 15 anos EV lento 3-5 mg.kg-1 12/12h

EV/VO 0,25 mg.kg-1 6/6h


máximo
Cetorolaco > 2 anos EV/VO 0,5 mg.kg-1 12/12h
2 dias
EV/VO 1 mg.kg-1 1x/dia

Dipirona qualquer idade EV 20-30 mg.kg-1 6/6h -

Ibuprofeno > 6 meses EV 4 – 10 mg.kg-1 6/6 ou 8/8h -

0 - 3 meses VO 20 mg.kg-1 8/8h máximo


Paracetamol gotas > 3 meses VO 15 mg.kg-1 4/4h 2 dias
qualquer idade VO 5 mg.kg-1 6/6h manutenção

Tenoxican > 12 anos EV 0,4 mg.kg-1 12/12h -

Tabela 47.17 – Concentração e doses máximas de anestésicos locais sugeridas

Fármaco Concentração Dose máxima sem vasoconstritor Dose máxima com vasoconstritor

Lidocaína 1 – 2% 5 mg.kg-1 7 mg.kg-1

Bupivacaína 0,125 – 0,25% 2,5 mg.kg-1 3 mg.kg-1

Levobupivacaína 0,125 – 0,25% 2,5 mg.kg-1 3 mg.kg-1

Ropivacaína 0,1 – 0,35% 3 mg.kg-1 -

O uso de medicamentos adjuvantes, em combinação com os anestésicos locais de longa ação, pode não
só prolongar a duração do bloqueio de forma desejável, mas também melhorar a qualidade do bloqueio
e evitar potenciais efeitos secundários dos AL, por exemplo, bloqueio motor indesejado. Deve-se ter em
mente que cada hora de alívio da dor pós-operatória nas crianças vale a pena se pode ser alcançado fa-
cilmente e sem quaisquer sérios efeitos colaterais ou complicações. Idealmente, a duração do alívio da
dor causada pelo bloqueio deve corresponder à duração da dor do procedimento, o que, em muitos casos,
continua por 2-3 dias do pós-operatório92.
O adjuvante mais potente em relação a prolongar a duração da analgesia após uma única injeção no
bloqueio caudal é a morfina sem conservantes, que, muitas vezes, vai fornecer até 24 horas de analge-
sia pós-operatória de boa qualidade. A morfina pode ser um suplemento muito útil em circunstâncias
especiais, mas está associada com certos efeitos colaterais incômodos (náusea, vômitos, prurido e íleo
paralítico pós-operatório), bem como a necessidade de supervisão prolongada do paciente devido ao ris-
co de depressão respiratória retardada. Essas limitações associadas com a morfina caudal/epidural vem
restringindo o seu uso generalizado. Revisões estruturadas ou metanálises sobre o uso de clonidina como
adjuvantes para bloqueio caudal em crianças mostram um prolongamento da analgesia pós-operatória de
cerca de 50% comparada com anestésicos locais de longa ação. Com relação aos grandes procedimentos,
como já citado, a infusão contínua de fármacos parece vantajosa92.
1086 | Bases do Ensino da Anestesiologia
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1090 | Bases do Ensino da Anestesiologia


ME3
PONTO 48

Anestesia para Transplantes


Daniel Lunardi Spader
Anestesista da equipe SANE Nordeste Serviço de Anestesiologia - Caxias do Sul.
Anestesia para Transplantes
48.1. Cuidados com doadores de órgãos
48.2. Farmacologia dos imunossupressores
48.3. Transplante de rim
48.4. Transplante de fígado
48.5. Transplante de coração
48.6. Transplante de pulmão
48.7. Particularidades do paciente pediátrico
48.8. Aspectos legais no transplante de órgãos
48.9. Anestesia no paciente transplantado

INTRODUÇÃO
O transplante de órgãos é o tratamento para diversas doenças em estágio terminal, porém, a escassez
1
de órgãos é um limitante importante a esse tratamento .

48.1. CUIDADOS COM DOADORES DE ÓRGÃOS


É de extrema importância maximizar a qualidade dos órgãos doados, através de cuidados intensivos ao
doador cadáver com morte encefálica2. Nesse ínterim, se faz de extrema importância o entendimento da
fisiopatologia da morte encefálica.

Fisiopatologia da Morte Encefálica


O paciente que evolui com morte encefálica apresenta uma série de alterações neuro-humorais que
incluem mudanças bioquímicas e celulares, que levam à disfunção múltipla de órgãos. Entre essas pertur-
bações, temos aumento das catecolaminas séricas gerando diminuição importante da perfusão de órgãos
do potencial doador, além de outras alterações endócrinas, como redução nos níveis de cortisol, insulina,
hormônios antidiurético e tireoidiano3,4.
A morte encefálica representa o processo final de um edema cerebral severo, com herniação cerebral
através do forâmen magno. A tríade de Cushing (hipertensão, bradicardia e bradipneia) se instala momen-
tos antes da herniação, sendo marcador de uma PIC (pressão intracraniana) elevada, refletindo uma ten-
tativa do organismo em aumentar a perfusão cerebral para minimizar a isquemia cerebral. Como esse me-
canismo entra em falência com a progressão da hipertensão intracraniana, ocorre um aumento importante
da atividade autonômica simpática quando a isquemia atinge o bulbo, com a consequente interrupção
da atividade vagal5. Esse aumento de catecolaminas é de curta duração e caracteriza-se por taquicardia,
hipertensão, hipertermia e elevação do débito cardíaco. Com a progressão da isquemia, o tônus simpático
cessa, dando lugar, agora, a uma vasodilatação sistêmica e depressão da função miocárdica, que, se não
tratadas, levam à morte em aproximadamente 72 horas6.

Alterações Orgânicas da Morte Encefálica


Em um primeiro momento, antes da herniação cerebral transforaminal, ocorre a tríade de Cushing.
Com a progressão da lesão isquêmica ao bulbo, ocorre uma descarga autonômica com intensa liberação
de catecolaminas, a qual produz grande vasoconstrição, que acarreta hipertensão arterial, taquicardia e
aumento da demanda de oxigênio do miocárdio, podendo causar isquemia e necrose miocárdica, além de
arritmias cardíacas. Logo após a descarga autonômica, segue-se um período de extrema vasodilatação,
com hipotensão arterial grave, sendo esta a alteração fisiopatológica mais grave da morte encefálica. O
grande aumento da capacitância do sistema vascular produz hipovolemia relativa, podendo ocasionar
colapso cardiovascular. A hipovolemia absoluta é consequência das perdas sanguíneas pelo trauma; da
reanimação inadequada do doador; do uso de tratamento osmótico para hipertensão intracraniana e do
diabetes insipidus, além da diurese osmótica causada pela hiperglicemia e dos efeitos da hipotermia sobre
a diurese7.

1092 | Bases do Ensino da Anestesiologia


O pulmão é muito suscetível aos eventos que se seguem à morte encefálica. As alterações inflamató-
rias inerentes à morte encefálica causam aumento da permeabilidade da vasculatura pulmonar. Durante
o período de intensa descarga adrenérgica, ocorre incremento do retorno venoso ao ventrículo direito,
que aumenta rapidamente seu débito, gerando um hiperfluxo na circulação pulmonar. Simultaneamente,
a pressão do átrio esquerdo está elevada devido à vasoconstrição periférica intensa, causando aumento
da pressão hidrostática capilar e consequente edema intersticial e hemorragia alveolar. Todas essas alte-
rações culminam em hipoxemia, por causa do desequilíbrio da relação ventilação-perfusão7.
Conforme a lesão isquêmica progride, ocorre falência progressiva do eixo hipotalâmico-hipofisário.
Como consequência, a diminuição das concentrações hormonais, principalmente dos hormônios antidiu-
rético (ADH) e tireoidianos, se instala. O diabetes insipidus ocorre em aproximadamente 80% desses pa-
cientes e caracteriza-se por diurese hiposmolar, com hipovolemia secundária; hipernatremia e hiperos-
molaridade sérica. É importante causa de hipotensão e hipoperfusão tecidual, além de a hipernatremia
contribuir para o desenvolvimento de disritmias cardíacas e depressão miocárdica7.
Diminuições bruscas nos níveis de tri-iodotironina (T3) são constatadas logo após a morte encefálica e
têm sido implicadas na redução da contratilidade cardíaca, com depleção de fosfatos de alta energia e
mudança do metabolismo aeróbico para anaeróbico. Isso contribui para a piora da acidose metabólica e
da perfusão tecidual dos órgãos do doador7. A secreção de insulina também está comprometida e, asso-
ciada ao aumento da resistência periférica à insulina, pode produzir hiperglicemia7,8.
No sistema hepático, podemos ver uma redução da perfusão sinusoidal, além de uma depleção dos es-
toques de glicogênio. A lesão do tecido cerebral libera tromboplastina tecidual e outros substratos ricos
em plasminogênio, que em conjunto com outros fatores, como hemorragia, acidose, hipotermia e diluição
dos fatores de coagulação, favorecem o desenvolvimento de coagulação intravascular disseminada7,9,.
A isquemia hipotalâmica gera perda da regulação da temperatura corporal. A vasodilatação extrema
típica da morte encefálica, associada com a inabilidade de tremer para produzir calor, além da infusão
de grandes volumes de fluidos não aquecidos, resulta em hipotermia que, se não corrigida, pode ser se-
vera. A hipotermia induz a diversos efeitos deletérios, como disfunção cardíaca, disritmias, coagulopatia,
pancreatite, desvio da curva de dissociação da hemoglobina para a esquerda e disfunção renal induzida
7,10,11
pelo frio .
Na Tabela 48.1 estão apresentadas as principais alterações fisiopatológicas da morte encefálica.
Tabela 48.1 – Incidência de alterações fisiopatológicas após a morte encefálica7

Hipotensão arterial 81%


Diabetes insipidus 78%
Coagulação intravascular disseminada 28%
Disritmias cardíacas 25%
Edema pulmonar 18%
Acidose metabólica 11%

Tabela de Cuidados Intensivos com o Potencial Doador


O tratamento voltado para a otimização da perfusão cerebral perde sentido, visto que os objetivos
passam a ser a proteção e a perfusão dos órgãos especificamente. A sua prioridade é garantir o melhor
suporte fisiológico possível, para potencializar o sucesso dos órgãos transplantados. O manuseio agressivo
4
do doador pode reverter a disfunção temporária de órgãos .
Antibioticoterapia vigente deve ser mantida. Monitorização não invasiva, como pressão arterial; frequên-
cia cardíaca; temperatura e oximetria de pulso, deve ser mensurada continuamente. As medidas de pressão
venosa central, do débito, da densidade urinária e da glicemia capilar devem ser realizadas a cada hora. A
prevenção de hipotermia, com cobertores e infusão de fluidos aquecidos, deve ser preconizada. Dieta por
via enteral deve ser mantida, com evidência de melhora da função dos enxertos com essa conduta7.
A coleta de exames laboratoriais, eletrocardiograma, radiografia de tórax e tipagem sanguínea devem
ser realizadas de rotina7,12.

Ponto 48 - Anestesia para Transplantes | 1093


Cuidados Cardiovasculares
A hipertensão, que pode ocorrer durante a tríade de Cushing e, posteriormente, durante o aumento
da atividade simpática, por ser de curta duração, raramente precisa ser tratada. O fármaco de escolha é
o nitroprussiato de sódio.
A hipotensão severa, quadro mais comum da síndrome de morte encefálica, deve ser tratado com vi-
gor. A correção da hipovolemia, tanto relativa quanto absoluta, necessita de acesso venoso central para
a infusão de grandes volumes de líquidos e para o controle da PVC. O objetivo é restaurar a euvolemia,
pois a hipervolemia é deletéria quando se considera a captação de pulmão. Soluções cristaloides são con-
sideradas boas opções. Solução fisiológica a 0,45% se faz necessária em casos de diabetes insipidus com
hipernatremia grave. Lesão tubular renal e disfunção primária de enxertos renais estão associadas com o
uso de hidroxietil-amido e, portanto, seu uso deve ser evitado. Como sabemos, a sobrecarga hídrica pode
ser prejudicial a pacientes candidatos a doação de pulmão e, nesse ínterim, coloides podem ser uma boa
5,7
opção para a reanimação desses pacientes .
Em caso de persistência de hipotensão, a despeito da correção volêmica adequada, é preconizado o
uso de vasopressores, visando como meta a uma pressão arterial média de 70 mmHg, que garante perfu-
são tecidual adequada. Para adequado controle do uso de vasopressores, é imprescindível monitorização
invasiva da pressão arterial.
Ainda não existe uma definição sobre qual a melhor droga vasopressora para se utilizar nesse contexto.
Importante ressaltar que estudos evidenciam que o uso de altas doses de vasopressor tem sido associado
9
à redução da sobrevida dos enxertos cardíacos e renais . As principais drogas utilizadas nesse contexto são
dopamina, noradrenalina e vasopressina.
Todos os potenciais doadores de órgãos devem ser submetidos a um ecocardiograma tanto para ava-
liação do coração quanto para avaliação de parâmetros hemodinâmicos. Deve-se considerar a utilização
de cateter de artéria pulmonar em casos de fração de ejeção menor que 45% e evidências de inadequada
perfusão tecidual mesmo após ressuscitação volêmica . O cateter de Swan-Ganz14, apesar de seu uso ser
13

controverso, possibilita a obtenção de parâmetros hemodinâmicos fundamentais para otimizar a viabilida-


de dos órgãos em candidatos à doação de coração e pulmão. A reposição hormonal é de suma importância
nesse contexto.
Após todas essas medidas, um novo ecocardiograma deve ser realizado, pois pode haver melhora im-
portante da fração de ejeção, possibilitando o uso de corações inicialmente considerados marginais7.
O doador pode apresentar diversos distúrbios do ritmo cardíaco, geralmente associados a distúrbios
eletrolíticos e acidobásicos graves, que devem ser tratados de forma usual15. Marca-passo se faz necessá-
rio em bradicardias não responsivas à atropina. A taquicardia é a arritmia mais comum nesses pacientes.
Na Tabela 48.2, são apresentados os principais objetivos hemodinâmicos no doador de múltiplos órgãos.
Tabela 48.2 – Objetivos hemodinâmicos no doador15

Frequência cardíaca 60 – 120 bpm


Pressão arterial média 70 mmHg
Pressão venosa central 8 – 12 mmHg
Pressão de oclusão da artéria pulmonar 6 – 10 mmHg
Índice cardíaco > 2,4 L.min-1.m2-1
Resistência vascular sistêmica 800 – 1200 dinas.s-1.cm5 -1
Fração de ejeção > 45%
Diurese 0,5 – 3 mL.kg-1.h-1

Reposição Hormonal
O diabetes insipidus é o distúrbio hormonal mais comum no paciente com morte encefálica. A repo-
sição hormonal deve ser instituída em caso de dificuldade de manter a euvolemia, apesar da reposição
volêmica vigorosa. O agente de escolha é a arginina vasopressina, com seus efeitos antidiuréticos e

1094 | Bases do Ensino da Anestesiologia


vasoconstritores. Em casos de diurese abundante, pode-se associar o uso de 1-D-amino-8-arginina-vaso-
pressina (DDAVP) à vasopressina, que tem efeito antidiurético muito mais potente, porém, com efeito
vasopressor negligenciável7.
Os níveis de vasopressina e cortisol podem se tornar indetectáveis após 4 horas da morte encefálica.
Níveis de T3, T4 e insulina reduzem-se significativamente em algumas horas. Evidências recentes favore-
cem o uso de tratamento hormonal tríplice em pacientes com instabilidade hemodinâmica3,7.

Estratégias Ventilatórias
O pulmão do doador é particularmente vulnerável a lesões, e 80% deles não são viáveis para doa-
ção16. Na morte encefálica, temos a liberação de diversos mediadores inflamatórios que, associados a
sobrecarga hídrica excessiva e a estratégias ventilatórias inadequadas, tornam-se fundamentais para a
ocorrência de disfunção pulmonar com inviabilidade do órgão17. Segue a seguir os parâmetros de venti-
lação protetora preconizados.
• Volumes correntes (VC) entre 6-8 mL.kg-1.
• Pressão de platô abaixo de 30 mmHg.
• Fração inspirada de O2 (FiO2) deve ser a menor possível para atingir uma PaO2 maior que 90 mmHg.
• PEEP entre 5-10 cmH2O.

Tratamento Transfusional
Diversos autores recomendam manter o hematócrito em torno de 30%, apesar da ampla discussão sobre
a necessidade de avaliar o equilíbrio de oferta e demanda de oxigênio através de outros parâmetros, como
lactato e saturação venosa central de oxigênio12,13. Vale lembrar que pacientes transfundidos apresentam
risco aumentado de imunossupressão, além do risco de contrair citomegalovírus. Deve-se sempre atentar
para o risco de CIVD nesses pacientes.
Deve-se suspender o uso de qualquer medicamento com efeito anticoagulante ou antitrombótico tão
logo se identifique um potencial doador7.

48.2. FARMACOLOGIA DOS IMUNOSSUPRESSORES


Os fármacos imunossupressores são aqueles que agem reduzindo a resposta imunológica, com o intuito de
diminuir a resposta inflamatória aos aloenxertos. Existem três principais classes de imunossupressores: 1) glico-
corticoides; 2) ligantes de imunofilinas; 3) antiproliferativos/antimetabólicos; 4) imunossupressores biológicos.
1. Glicocorticoides (por exemplo, predisona e prednisolona): agem inibindo a expressão das citocinas
(IL-2) e aumentam a expressão das substâncias anti-inflamatórias (anexina). São utilizados para a
prevenção de rejeição de transplantes, no tratamento de doenças autoimunes e de reações alérgi-
cas. Possuem efeitos colaterais amplos tais como: hiperglicemia (diabetogênico); atraso no cresci-
mento; dificuldade de cicatrização e aparecimento de doenças oportunistas.
2. Ligantes de imunofilinas: são divididos em inibidores da calcineurina e não inibidores da calcineurina.
2.1. Inibidores da calcineurina (por exemplo, ciclosporina, tacrolimus) - agem inibindo a calcineu-
rina no interior de um linfócito T, reduzindo a expressão gênica desses linfócitos, com conse-
quente diminuição da produção de citocinas e da resposta imune. A ciclosporina faz essa inibi-
ção através da ligação direta com a calcineurina, enquanto o tacrolimus age em uma proteína
chamada FKBP-12, que resulta também na inibição da calcineurina. O tacrolimus é cerca de 100
vezes mais potente que a ciclosporina, sendo muito utilizado na rejeição aguda ao aloenxerto
(principalmente no de fígado). Ambos os fármacos são nefrotóxicos, podendo chegar a 75% no
caso da ciclosporina. Outros efeitos colaterais são hipertensão (ciclosporina) e neurotoxicidade
(tacrolimus).
2.2. Não inibidores da calcineurina (por exemplo, sirolimus ou rapamicina) - esses imunossupres-
sores são produzidos com base em uma bactéria (Streptomyces hygroscopicus). Agem inibindo
os efeitos dependentes da via das proteinoquinases (mTOR/AKT…), resultando em um bloqueio
da fase do ciclo celular dos linfócitos, que impede que eles atinjam a fase S do ciclo, perma-
necendo na fase G1. Em outras palavras, há uma inibição da proliferação de linfócitos.

Ponto 48 - Anestesia para Transplantes | 1095


3. Antiproliferativos/Antimetabólicos (por exemplo, azatioprina, micofenolato mofetil, ciclofosfami-
da) - a azatioprina age como um nucleotídeo fraudulento que, ao ser incorporado ao DNA, inibe a
síntese de purinas. O micofenolato mofetil inibe a síntese de guanina, através da inibição da enzi-
ma IMPDH (desidrogenase do monofosfato de iosina). A ciclofosfamida age através da alquilação da
molécula de DNA.
4. Imunossupressores biológicos: são divididos em anticorpos monoclonais e anticorpos policlonais.
4.1. Anticorpos monoclonais - são anticorpos produzidos por meio da técnica de hibridoma, sen-
do específicos contra determinados sítios de ação. Existem diversos anticorpos monoclonais,
como anti-CD3 (muramunab); anti-CD25 (basiliximab, daclizumab) e anti-TNF-alfa (papel impor-
tante na artrite reumatoide).
4.2. Anticorporpos policlonais - são anticorpos que vêm de linhagens diferentes e agem, portan-
to, em diferentes epítopos (estruturas imunogênicas presentes na superfície da célula). São
criados através de células retiradas do timo de seres humanos e que são injetadas em animais.
Estes desenvolvem uma resposta imune contra essas células e produzem um soro rico em an-
ticorpos, que é coletado.

48.3. TRANSPLANTE DE RIM


O rim é o órgão sólido mais frequentemente transplantado18. As taxas de sobrevida pós-transplante em
cinco anos são de 91% para receptores de enxertos de doadores vivos, 83% para receptores de doadores
falecidos de critérios padronizados e de 70% para receptores de enxertos de doadores de critérios esten-
didos18. O transplante suplanta a sobrevida além daquela alcançada pela diálise, a qual carrega um risco
anual de mortalidade de 20%18,19.
A melhor sobrevida do órgão em cinco anos ocorre nos transplantes com todos os tipos de enxer-
tos20. Os enxertos de doadores marginais ou de doadores com critérios estendidos (DCE) têm menores
taxas de sobrevida do que os enxertos-padrão. Os critérios para os enxertos de DCE incluem: doado-
res mais velhos; diabéticos; enxertos com isquemia com duração prolongada e doadores pós-morte
cardíaca (DMC)21.
O tempo de diálise pré-transplante influi, com sobrevida diminuída para os receptores que necessi-
taram de períodos prolongados de diálise antes de receber o enxerto18. O risco cardiovascular aumenta
conforme o tempo de exposição a toxinas urêmicas21.

Avaliação Pré-operatória
Diabetes e hipertensão são as causas mais comuns de doença renal em estágio terminal, respondendo
por aproximadamente dois terços dos casos21. Entre essas duas causas, o diabetes é a mais comum21. A
doença cardiovascular é responsável por mais de 50% das mortes em pacientes que recebem diálise, com
redução do risco cardiovascular em cinco vezes após o transplante. Portanto, a avaliação pré-operatória
deve se focar na triagem de doença isquêmica cardíaca e de insuficiência cardíaca congestiva, através de
exames de imagem. O ecocardiograma de estresse é provavelmente melhor que a cintilografia miocárdica
para a previsão de eventos cardíacos no pós-operatório22. Em caso de positividade nos testes de triagem,
se faz necessário realizar o cateterismo cardíaco, com as respectivas intervenções terapêuticas em caso
de haver lesões significativas21.
A insuficiência cardíaca congestiva é prevalente em paciente em diálise, mas, na ausência de doença
isquêmica cardíaca, não impede o transplante. O foco pré-operatório é o tratamento otimizado da insu-
ficiência cardíaca21.
Os fatores de risco cardíaco mais comuns nos candidatos ao transplante renal são hiperfosfatemia; dis-
lipidemia; hiper-homocisteinemia e anemia. A eritropoetina, quando utilizada para corrigir a anemia aos
níveis de 12 g.dL-1 ou menos, diminui o risco de transfusão sanguínea21.
Pacientes que se candidatam ao transplante renal podem apresentar hipercalemia, a qual está asso-
ciada com o aumento dos riscos durante a fase de reperfusão do enxerto. A diálise pré-transplante pode
diminuir a potassemia, porém, um reduzido volume intravascular central pode contrabalançar os benefí-
cios da redução do potássio sérico21.

1096 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Gerenciamento Intraoperatório
Os rins dos doadores são normalmente implantados na fossa ilíaca. As anastomoses vasculares são mais
frequentes na artéria e veia ilíacas externas, e o ureter é anastomosado diretamente à bexiga. A doen-
ça renal crônica pode afetar a excreção da droga através do rim, mas também através de mudanças na
ligação com as proteínas plasmáticas ou no metabolismo hepático. Quando a ligação com as proteínas é
diminuída, a fração livre da droga aumenta, resultando em aumento aparente do volume de distribuição
e clearence.
O transplante renal geralmente é realizado com anestesia geral. Antibióticos são administrados 30 mi-
nutos antes da incisão. Punção venosa central, com monitorização da PVC e sondagem vesical de demora,
é necessária. O objetivo mais importante no transoperatório é a manutenção de um fluxo renal adequado,
e, para isso, é importante manter pressão sistólica > 90 mmHg, pressão arterial média > 60 mmHg e PVC >
10 mmHg. Após o começo da primeira anastomose, a diurese é iniciada (tanto o manitol quanto a furose-
mida podem ser administrados). A dopamina não aumenta confiavelmente a função renal nesse contexto21.
Nesse contexto, é de extrema importância saber que, em pacientes com insuficiência renal, algumas
drogas devem ser utilizadas com cautela23. Os bloqueadores neuromusculares com excreção renal (por
exemplo, pancurônio) devem ser evitados. O cisatracúrio é mais previsível devido a sua degradação es-
pontânea. O atracúrio possui como produto de degradação a laudanosina, que é achada em concentrações
mais elevadas, aumentando o risco de convulsões. O metabólito da morfina, 6-glucoronida, tem atividade
clínica que pode resultar em uma duração prolongada de ação. Deve-se evitar a meperidina pelo risco de
convulsões por conta de seu metabólito, a normeperidina. Os anestésicos inalatórios podem ser usados
com segurança.
O composto A, metabólito do sevoflurano, mostrou nefrotoxicidade em ratos, mas não em humanos.
O isoflurano é metabolizado em fluoretos, mas seus níveis são negligenciáveis. Todos os anestésicos
voláteis podem causar redução do fluxo sanguíneo renal e na taxa de filtração glomerular de maneira
dose-dependente21.

Gerenciamento Pós-operatório
Manter volemia adequada com os parâmetros hemodinâmicos dentro da faixa de normalidade é de
suma importância para a manutenção da perfusão do enxerto. Idealmente, a analgesia pós-operatória é
obtida por cateter peridural ou analgesia venosa controlada pelo paciente (PCA)21.

48.4 TRANSPLANTE DE FÍGADO


O fígado é o segundo órgão sólido mais transplantado. Os pacientes em insuficiência hepática não têm
alternativas ao transplante de fígado24. O escore de MELD é utilizado para alocar os enxertos com base na
urgência da condição do receptor. A indicação mais comum para o transplante de fígado é a cirrose não
colestática (73%), e 30% dos pacientes com essa doença têm hepatite C21.

Avaliação Pré-operatória
Pacientes com doença hepática em estágio final (DHEF) têm disfunção multissistêmica com comprome-
timento cardíaco, pulmonar e renal por conta de sua doença hepática (Tabela 48.3). A encefalopatia e o
edema cerebral são os principais responsáveis pela mortalidade da insuficiência hepática aguda (IHA)25.
Aproximadamente 25% dos pacientes com IHA não apresentam recuperação espontânea, tendo que ser
submetidos ao transplante, com sobrevida pós-transplante similar à dos pacientes com DHEF21.
A avaliação pré-transplante inclui uma verificação da doença isquêmica cardíaca e triagem da hiper-
tensão portopulmonar, através de exames como ecocardiograma de estresse e/ou cateterismo cardíaco.
Paciente com DHEF geralmente têm resistência vascular sistêmica muito baixa, índice cardíaco alto e
aumento da saturação de oxigênio venoso misto. Esse estado hiperdinâmico é muito semelhante ao que
acontece na sepse e é exacerbado com a reperfusão do enxerto21.
O ecocardiograma é também usado para rastrear a presença de hipertensão portopulmonar (au-
mento da pressão média da artéria pulmonar > 25 mmhg, sem sinais de disfunção de VE), shunts in-
tracardíacos e síndrome hepatopulmonar (shunt intrapulmonar no ecocardiograma com “bolhas” + PO2

Ponto 48 - Anestesia para Transplantes | 1097


de repouso < 70 mmHg). A pressão arterial pulmonar média acima de 50 mmHg é uma contraindicação
absoluta ao transplante hepático21.
A doença renal é comum, através da síndrome hepatorrenal, e, muitas vezes, os pacientes necessitam
dialisar no pré-operatório. Após o transplante, ocorre resolução do quadro21.
Tabela 48.3 – Complicações multissistêmicas da DHEF26
Sistemas Consequências
Sistema Nervoso Central Fadiga
Encefalopatia (confusão a coma) Distúrbio da barreira hematoencefálica e hipertensão
intracraniana (insuficiência hepática aguda)
Respiratório
Alcalose respiratória Hipoxemia ou síndrome hepatopulmonar
Hipertensão pulmonar Redução da função cardíaca direita
Cardiovascular
Redução da RVS
Disfunção diastólica
Prolongamento do intervalo QT Circulação hiperdinâmica
Bloqueio da resposta aos inotrópicos
Bloqueio da resposta aos vasopressores
Diabetes
Gastrointestinal
Sangramento Gi de varizes Risco de aspiração durante intubação orotraqueal
Ascite
Retardo do esvaziamento gástrico
Hematológico
Diminuição da síntese dos fatores de coagulação
Hiperesplenismo (pancitopenia) Risco de sangramento cirúrgico maciço
Alteração dos mecanismo fibrinolíticos
Renal Alteração na excreção renal de fármacos
Síndrome hepatorrenal
Hiponatremia
Endócrino
Intolerância à glicose Suscetibilidade a fraturas
Osteoporose Fraqueza e perda de massa muscular
Nutricional ou metabólica
Outros
Deficiência da integridade da pele Carência de cálcio com infusão rápida de PFC
Aumento do volume de distribuição dos fármacos
Redução do metabolismo do citrato

Gerenciamento Intraoperatório
Pacientes com insuficiência renal apresentam risco aumentado de aspiração de conteúdo gástrico na
indução anestésica, devido à gastroparesia e ao aumento da pressão intra-abdominal gerada pela ascite.
Portanto, indução em sequência rápida é indicada nesses pacientes.
Bloqueadores neuromusculares metabolizados pelo fígado podem ter a duração prolongada, normali-
zando após a reperfusão do enxerto. Nesse contexto, os bloqueadores mais indicados são os que apresen-
tam eliminação espontânea, como o cisatracúrio e o atracúrio. Evitar a meperidina, pelo acúmulo de seu
metabólito (normeperidina). A morfina pode ter efeito prolongado pelo acúmulo de morfina-6-glucoroni-
da. O fentanil e outros opioides sintéticos são escolhas seguras. Os anestésicos voláteis podem ser usados
com segurança, com efeitos suaves no fluxo sanguíneo hepático21.
A cirurgia de transplante de fígado apresenta risco aumentado de sangramento e é importante ter pre-
sente na sala de operação sistemas com a capacidade de infusão rápida de sangue aquecido. Normoter-
mia, que é essencial para melhor hemostasia, é mantida com infusão de líquidos aquecidos e com o uso
de manta térmica nas pernas e na parte superior do corpo21.

1098 | Bases do Ensino da Anestesiologia


O transplante de fígado é tradicionalmente descrito em três fases: de dissecção, anepática e neo-hepática,
com reperfusão do enxerto marcando o início da fase neo-hepática. A fase de dissecção é a com maior risco
de sangramento, devido ao preparo para a heptatectomia nativa. A fase anepática tem o início marcado pelo
isolamento vascular do fígado (clipagem da veia cava inferior, veia porta e da artéria hepática) e finaliza após
o término de todas as anastomoses. Essa fase é marcada por estabilidade hemodinâmica. A fase neo-hepática
inicia com a reperfusão, sendo o período de maior risco, pela liberação do efluente frio, acidótico, do enxerto
e das extremidades inferiores. O efluente portal contém peptídeos vasoativos que diminuem a RVS e aumen-
tam a RVP. A hipercalemia pode ser uma ameaça à vida. A insulina é eficaz se dada 10-15 minutos antes da
reperfusão. O cálcio administrado antes da reperfusão protege o miocárdio da hipercalemia21.
O PFC é usado para manter o RNI em 1,5 ou abaixo em pacientes com sangramento provável ou em cur-
so. Drogas fibrinolíticas podem ser utilizadas, pois, na fase neo-hepática, a fibrinólise pode estar aumen-
tada. O uso do tromboelastograma nesse período é fundamental para análise do sistema de coagulação.
É de extrema importância a manutenção de níveis de fibrinogênio acima de 150 mg/dL através do uso de
crioprecipitado ou de fibrinogênio sintético21.
A disfunção renal perioperatória, com hipovolemia e redução do fluxo sanguíneo renal, induzida por
anestésicos, é um dos maiores desafios no transplante de fígado. A síndrome hepatorrenal é um distúrbio
renal funcional que está associado com a doença hepática.

Gerenciamento Pós-operatório
A sobrevida é de 87% em um ano e 73% depois de cinco anos, sendo os índices maiores nos receptores
de enxertos de doadores vivos. A trombose da artéria hepática no início do período de pós-operatório
necessita de retransplante. A infecção é a principal causa de morte no pós-operatório21.

Transplante Pediátrico de Fígado


Diferente dos adultos, a indicação para o transplante pediátrico de fígado mais comum é a atresia bi-
liar, sendo a hipertensão portopulmonar rara em crianças. É importante saber que a atresia biliar está
associada com cardiopatias congênitas, como defeitos do septo interatrial e situs inversus26.

48.5. TRANSPLANTE DE CORAÇÃO


A sobrevida do transplante cardíaco é de, aproximadamente, 87% em um ano. As indicações mais co-
muns para o transplante cardíaco são a cardiomiopatia dilatada e a cardiopatia isquêmica, que correspon-
dem a 90% dos transplantes27.

Dispositivos de Assistência Ventricular Esquerda (DAVEs)


Os DAVEs diferem quanto ao padrão de fluxo (pulsátil ou não pulsátil); à necessidade de anticoagula-
ção (nenhuma, aspirina, varfarina); ao padrão de enchimento (cheio para vazio ou vários outros modos);
à fonte de força (bateria ou corrente alternante); ao potencial para interferência eletromagnética e ao
impacto das arritmias e desfibrilação sobre o dispositivo26.
A falha em manter pré e pós-cargas adequadas resulta em redução do fluxo do DAVE e hipotensão por
baixo débito cardíaco funcional26.
Pacientes que se apresentam para colocar o dispositivo necessitam de uma monitorização invasiva
(pam, cateter de Swan-Ganz e acesso venoso central), uma vez que, muitas vezes, se encontram em es-
tágio avançado de insuficiência cardíaca26.

Avaliação Pré-anestésica
As terapias medicamentosas para pacientes com insuficiência cardíaca congestiva têm melhorado dra-
maticamente ao longo da última década. As opções farmacológicas atuais incluem betabloqueadores,
inibidores da ECA, diuréticos e digoxina, possibilitando maior sobrevida dos pacientes com insuficiência
cardíaca em estágio avançado.
O tempo de isquemia fria do enxerto não deve ultrapassar 6 horas, para sua adequada função. A ava-
liação pré-operatória deve focar na condição cardíaca do paciente para planejamento do uso de bomba

Ponto 48 - Anestesia para Transplantes | 1099


de balão intra-aórtico ou dispositivos de assistência ventricular. A hipertensão pulmonar está associada
com o aumento da mortalidade perioperatória; assim, a hipertensão pulmonar grave e irreversível é con-
traindicada para o transplante26. Em pacientes com falência múltipla de órgãos, o transplante de coração
em conjunto com outros órgãos pode ser aventado.
Deve-se ter atenção rigorosa quanto à assepsia. Inotrópicos (dobutamina, vasopressina, noradrenalina e
adrenalina) devem estar prontamente disponíveis antes da indução (Tabela 48.4). O coração é denervado
e a bradicardia pode ocorrer após a reperfusão. A resposta da frequência cardíaca às alterações hemodi-
nâmicas é inexistente, e os fármacos que atuam indiretamente no coração são ineficazes. A bradicardia
pode ser tratada com marca-passo ou drogas cronotrópicas como o isoproterenol21.
Tabela 48.4 – Efeitos da denervação sobre a farmacologia cardíaca26
Substância Receptor Mecanismo
Digitálico Aumento normal da contratilidade Efeito miocárdico direto
Efeito mínimo sobre o nodo AV Denervação
Atropina Nenhum Denervação
Adrenalina Aumento da contratilidade Hipersensibilidade de denervação
Aumento do cronotropismo
Noradrenalina Aumento da contratilidade Denervação
Aumento do cronotropismo Sem captação neuronal
Isoproterenol Aumento normal da contratilidade Denervação
Aumento normal do cronotropismo Sem captação neuronal
Quinidina Sem efeito vagolítico Denervação
Verapamil Bloqueio AV Efeito direto
Nifedipina Sem taquicardia reflexa Denervação
Hidralazina Sem taquicardia reflexa Denervação
Betabloqueador Aumento do efeito antagonista Denervação

Gerenciamento Intra-operatório
Pacientes com disfunção ventricular grave são muito suscetíveis a instabilidade hemodinâmica relacio-
nada com o uso de anestésicos. É recomendado o uso de etomidato na indução por seu mínimo impacto
hemodinâmico. Técnicas com opioides em altas doses têm sido usadas com bons resultados para a indução
e a condução dos pacientes submetidos a transplantes cardíacos. A manutenção da anestesia é feita com
anestésicos voláteis, devendo-se evitar o óxido nitroso, uma vez que causa supressão cardíaca devido à
depleção de catecolaminas e down-regulation dos receptores beta-adrenérgicos. Os objetivos do geren-
ciamento anestésico são ditados pela insuficiência cardíaca congestiva subjacente e necessidade de evitar
condições que aumentem a pressão da artéria pulmonar (Quadro 48.1)21.
A falha de retirada de CEC muitas vezes é causada por insuficiência cardíaca direita durante o trans-
plante, com piora da hipertensão pulmonar. Pode ser tratada com vasodilatadores não seletivos, como
nitroglicerina e nitroprussiato, podendo haver diminuição exacerbada da RVS. As drogas seletivas, como o
óxido nítrico inalatório, iloprost e sildenafil, podem ser úteis.
Quadro 48.1 – Objetivos perioperatórios do transplante de coração26

Manter a pressão sanguínea sistêmica para garantir o enchimento coronariano


Otimizar a pré-carga
Reduzir a pós-carga para melhorar a fração de ejeção
Evitar vasoconstrição pulmonar
• Manter a oxigenação
• Evitar a hipercapnia
• Evitar altos volumes correntes
Corrigir anormalidades acidobásicas
Suporte à contratilidade
• Drogas farmacológicas
• Bomba de balão intra-aórtico
• Dispositivos de assistência ventricular

1100 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Considerações Pós-anestésicas
O manuseio pós-operatório tem como objetivo adequar oxigenação; ventilação; volume intravascular;
pressões pulmonares e sistêmicas; coagulação e temperatura corporal. Até 25% dos pacientes exigem im-
plantação de marca-passo para tratar a bradicardia pós-transplante21.

48.6. TRANSPLANTE DE PULMÃO


O transplante de pulmão é o tratamento de escolha para as doenças pulmonares em estágio avançado.
Doença pulmonar obstrutiva crônica; fibrose pulmonar idiopática; fibrose cística e deficiência de α1-anti-
tripsina são as indicações mais comuns28. Entre as possibilidades de transplante de pulmão temos: unipul-
monar; bipulmonar em bloco; bipulmonar sequencial e transplante cardiopulmonar.

Seleção do Receptor
Os testes de função pulmonar, cateterismo cardíaco direito e o ecocardiograma transtorácico são usa-
dos rotineiramente para avaliar os receptores (Quadro 48.2).
Quadro 48.2 – Diretrizes para a seleção dos receptores de pulmão26

Indicações gerais
• Doença pulmonar em estágio final
• Falha do tratamento medicamentoso máximo da doença pulmonar
• Idade dentro dos limites para o transplante planejado
• Expectativa de vida < 2-3 anos
• Capacidade de andar e se submeter à reabilitação
• Estado nutricional adequado (70-130% do peso corporal ideal)
• Perfil psicossocial estável
• Sem sinais de comorbidades significativas

Indicações específicas para cada doença


DPOC
• Vef1< 25% do valor previsto após uso de broncodilatadores
• PaCO2 > 55 mmHg
• Hipertensão pulmonar (especialmente com cor pulmonale)
• Oxigenoterapia crônica
Fibrose cística
• Vef1< 30% do valor previsto
• Hipoxemia, hipercapnia ou redução rápida da função pulmonar
• Perda de peso e hemoptise
• Exacerbações frequentes, especialmente em mulheres jovens
• Ausência de organismos resistentes a antibióticos
Fibrose pulmonar idiopática
• Capacidade vital < 60-65% do previsto
• Hipoxemia de repouso
• Progressão da doença mesmo com tratamento (esteroides)
Hipertensão pulmonar
• Classe funcional III ou IV da NYHA, mesmo com tratamento com prostaciclina
• Pressão média do átrio direito < 15 mmHg
• Pressão pulmonar arterial média < 55 mmHg
• Índice cardíaco < 2 L.min-1.m2-1
Síndrome de Eisenmenger
• Classe III ou IV da NYHA, mesmo com terapia otimizada
Pediátrica
• Classe III ou IV da NYHA
• Doença que não responde à terapia máxima
• Cor pulmonale, cianose, débito cardíaco baixo

Ponto 48 - Anestesia para Transplantes | 1101


Avaliação Pré-anestésica
Pacientes candidatos ao transplante pulmonar, por definição, apresentam-se em condições precárias,
com disfunção pulmonar severa, necessitando de oxigenoterapia, broncodilatadores inalatórios, esteroi-
des e vasodilatadores.
O oxigênio suplementar é utilizado com cuidado porque a maioria dos pacientes de transplante de pul-
mão depende de seu drive hipóxico. A analgesia peridural deve ser considerada para o controle da dor
pós-operatória e pode, na verdade, melhorar o resultado do transplante21.

Gerenciamento Intraoperatório: Transplante Unipulmonar


Pode ocorrer hipotensão severa durante a indução anestésica, uma vez que os pacientes tendem a
apresentar depleção de volume intravascular. Geralmente, os anestésicos inalatórios utilizados são o se-
voflurano e o isoflurano. O óxido nitroso deve ser evitado por conta da possibilidade de bolhas enfisema-
tosas, hipertensão pulmonar ou hipoxemia intraoperatória26.
Nos transplantes unilaterais e bilaterais sequenciais, é de extrema importância a utilização de tubos
endotraqueais de duplo lúmen para que seja possível realizar o isolamento do pulmão a ser retirado. Re-
ceptores de transplantes pulmonares são suscetíveis ao desenvolvimento de hipertensão pulmonar e dis-
função ventricular direita durante a ventilação unipulmonar. Pode ser necessário suporte com vasodilata-
dor ou inotrópico. O óxido nítrico é outra opção para melhorar o estado respiratório e a função ventricular
direita. É comum a hipoxemia durante a ventilação unipulmonar26.
A questão intraoperatória mais desafiadora envolve a incompatibilidade de ventilação-perfusão e a hi-
pertensão da artéria pulmonar. As estratégias para tratar a hipoxemia são similares àquelas vistas nas ci-
rurgias torácicas. No momento do clampeamento da artéria pulmonar, muitas vezes, se observa aumento
da pressão arterial. Os métodos para reduzir a PAP incluem restrição de líquidos e uso de vasodilatadores
pulmonares não seletivos e seletivos tanto na forma inalada quanto na intravenosa. A administração ex-
cessiva de fluidos deve ser evitada porque o edema pulmonar não cardiogênico desenvolve-se, frequente-
mente, em pacientes de transplante de pulmão26.

Gerenciamento Pós-anestésico
Os pacientes geralmente permanecem em ventilação mecânica com pressão positiva nas primeiras 48
horas pós-transplante. Os cuidados no pós-operatório visam evitar o barotrauma, o volutrauma e a deis-
cência anastomótica, através de parâmetros protetores de ventilação mecânica.

Transplante Bipulmonar
O transplante bipulmonar em bloco requer circulação extracorpórea (CEC), e o tubo endotraqueal de
lúmen único é suficiente. O transplante bipulmonar sequencial é, atualmente, o procedimento de escolha,
porque a anastomose traqueal é desnecessária e o sangramento cirúrgico é menor26.

Transplante Pulmonar Pediátrico


As indicações mais comuns são fibrose cística, doença cardíaca congênita e hipertensão pulmonar pri-
mária. A maioria dos pacientes submete-se a transplante bipulmonar com CEC.

Disfunção Primária do Enxerto (DPE)


A causa de DPE não está definida e certamente é multifatorial. O diagnóstico não é aplicável para
a disfunção que se inicia mais de 72 horas após a reperfusão do enxerto, que idealmente deve ocorrer
com menos de 6 horas de isquemia do órgão. A conduta anestésica não parece ser fator de risco para
a DPE. A DPE grave e com ameaça à vida tem sido conduzida satisfatoriamente com oxigenação por
membrana extracorpórea.

O Óxido Nítrico Inalatório


É utilizado na dose de 20 partes por milhão (ppm), para reduzir a resistência vascular pulmonar e au-
mentar a oxigenação.
1102 | Bases do Ensino da Anestesiologia
48.7. PARTICULARIDADES DO PACIENTE PEDIÁTRICO
As principais considerações sobre o transplante pediátrico já foram comentadas nos subitens anteriores.

48.8. ASPECTOS LEGAIS NO TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS


A Política Nacional de Transplantes de Órgãos e Tecidos está fundamentada na Legislação (Lei no
9.434/1997 e Lei no 10.211/2001) e tem como diretrizes a gratuidade da doação; a beneficência em rela-
ção aos receptores e a não maleficência em relação aos doadores vivos. Estabelece, também, garantias e
direitos aos pacientes que necessitam desses procedimentos e regula toda a rede assistencial, através de
autorizações e reautorizações de funcionamento de equipes e instituições. Toda política de transplante
está em sintonia com as Leis no 8.080/1990 e no 8.142/1990, que regem o funcionamento do SUS.
Entre os fatores que interferem no quesito transplantes de órgãos e tecidos estão: o número de doa-
ções insuficientes para a demanda; o nível educacional; a falta de informação e conhecimento; a existên-
cia de programas de estímulo à doação; legislação adequada; infraestrutura para a captação (disponibili-
dade de leitos hospitalares) e o aproveitamento de órgãos. A organização dos transplantes é feita a partir
de uma lista única de espera. A alocação dos órgãos para transplante deve ser feita em dois estágios. O
primeiro, deve ser realizado pela própria equipe de saúde, contemplando os critérios de elegibilidade, de
probabilidade de sucesso e de progresso à ciência, visando à beneficência ampla. O segundo estágio, a ser
realizado por um comitê de bioética, que pode utilizar os critérios de igualdade de acesso; da necessidade
de tratamento futuro; do valor social do indivíduo receptor; da dependência de outras pessoas.
É considerado potencial doador todo paciente com morte encefálica. Após o diagnóstico de morte en-
cefálica, a família deve ser consultada e orientada sobre o processo de doação de órgãos. O diagnóstico
de morte encefálica é realizado através de exames neurológicos que demonstram a ausência dos reflexos
do tronco cerebral. Os exames são feitos por dois médicos não participantes das equipes de captação e
transplante, e o intervalo de tempo entre um exame e outro é definido pela idade do paciente.
Para ser doador, é fundamental comunicar à família o desejo da doação, que só se concretizará após a au-
torização desta por escrito. O doador vivo é um cidadão juridicamente capaz de doar órgãos ou tecidos sem
comprometimento de sua saúde e aptidões vitais. O doador vivo pode doar um órgão ou tecido que seja duplo,
como o rim, e não impeça o organismo do doador de continuar funcionando; ter um receptor com indicação te-
rapêutica indispensável de transplante; e ser parente de até quarto grau ou cônjuge. No caso de não parentes,
a doação só poderá ser feita com autorização judicial. Os órgãos e tecidos que podem ser doados em vida são:
rim; pâncreas; medula óssea (se compatível, feita por meio de aspiração óssea ou coleta de sangue); fígado
(apenas parte dele, em torno de 70%); e pulmão (apenas parte dele, em situações excepcionais).
Algumas denominações religiosas, como a Ciência Cristã e Testemunhas de Jeová, entendem que a trans-
fusão de sangue e a doação de órgãos são proibidos pela Bíblia. Decorrentes dessa convicção surgem situa-
ções de impasse, em que o doente recusa o sangue, mesmo que, como consequência disso, sobrevenha a
morte. Mediante esses impasses, quando se trata de um adulto consciente, sugere-se respeitar suas convic-
ções, mas exige-se que ele assine uma declaração isentando de responsabilidade a instituição e o médico,
ou seja, aplica-se o princípio da autonomia. Já para os casos de adulto inconsciente, admite-se que o sangue
possa ser aplicado, desde que nem o cliente, nem seus familiares venham saber, evitando possíveis traumas
psicológicos e espirituais, embora desrespeite suas convicções e sua vontade. A Constituição Brasileira de
1988 propõe a liberdade de crença para todo cidadão. Quando a situação envolve menores de idade ou pa-
cientes incapazes de responder por suas próprias ações, cabe aos responsáveis expressar seu consentimento.

48.9. ANESTESIA NO PACIENTE TRANSPLANTADO


Para receptores de órgãos sólidos, a avaliação do paciente deve ser concentrada na função do órgão
transplantado. Uma consideração importante para os transplantados renais é a manutenção da perfusão
renal com reposição volêmica adequada. Assim, a monitorização da PVC é útil para prevenir a lesão pré-
-renal dos rins transplantados. Mas vale lembrar que o acesso venoso central deve ser colocado com téc-
nicas assépticas rigorosas, devido à imunossupressão do paciente27.
Para todos os transplantados, deve-se alterar o menos possível os regimes antibióticos, antivirais, an-
tifúngicos e imunossupressores no perioperatório.

Ponto 48 - Anestesia para Transplantes | 1103


Os corações transplantados são denervados e não podem responder a agentes de ação indireta, como a
efedrina e até mesmo a dopamina. A dobutamina pode ser útil e a noradrenalina e adrenalina devem ser
reservadas ao choque cardiogênico refratário28.

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1104 | Bases do Ensino da Anestesiologia


ME3
PONTO 49

Anestesia para Procedimentos


fora do Centro Cirúrgico
Ana Cristina Pinho Mendes Pereira
Membro da Comissão de Educação Continuada da SBA;
Responsável pelo CET/SBA do Instituto Nacional do Câncer – HC 1, Rio de Janeiro.

Mauro Pereira de Azevedo


Membro da Comissão de Treinamento e Terapêutica da Dor – SBA;
Instrutor Corresponsável pelo CET/SBA do Hospital Naval Marcílio Dias – RJ;
Diretor de Eventos e Divulgação da Sociedade de Anestesiologia do Estado do Rio de Janeiro – SAERJ, Rio de Janeiro.

Anne Katy Fares das Chagas


Médica do Serviço de Anestesiologia do Instituto Nacional do Câncer – HC 1;
Médica do Serviço de Anestesiologia do Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, Rio de Janeiro.
Anestesia para Procedimentos fora
do Centro Cirúrgico
49.1. Avaliação
49.2. Recuperação
49.3. Equipamentos
49.4. Monitorização
49.5. Segurança profissional
49.6. Transporte
49.7. Meios de contraste

INTRODUÇÃO
Com o avanço da medicina diagnóstica e terapêutica, o campo de trabalho do anestesiologista alcan-
çou novos horizontes. Hoje, não mais restrito ao centro cirúrgico e à sala operatória, é possível encontrar
inúmeros locais fora do centro cirúrgico onde há necessidade da presença do anestesiologista. Exames de
imagem e endoscópicos; radiologia intervencionista; hemodinâmica; consultório odontológico; radioterapia;
eletroconvulsoterapia e pequenas cirurgias ambulatoriais são parte desse contexto, entre outras possibilida-
des em que o anestesista pode atuar. Hoje, em especial, se desenvolve cada vez mais a prática da anestesia
em consultórios, para procedimentos diversos, especialmente o consultório onde se realizam intervenções
estéticas e odontológicas. No entanto, essas facilidades ainda estão pouco reguladas, mesmo nos Estados
Unidos1, o que demanda uma atenção mais rigorosa à seleção do local (estrutura, pessoal e material) e do
paciente a ser atendido, sempre tendo em mente que o primordial é promover a segurança do paciente.
Nesse sentido, também encontramos uma grande diversidade no tipo de paciente candidato à realiza-
ção de procedimentos em locais além do centro cirúrgico que está incluído numa extensa faixa etária e
com comorbidades diversas. A tecnologia moderna, os novos fármacos e as novas técnicas de anestesia
permitem que os pacientes com estado físico mais elevado sejam candidatos a realizar procedimentos fora
do centro cirúrgico, com alto grau de segurança e bons resultados.
Quando falamos em anestesia fora do centro cirúrgico, mais comumente estamos nos referindo a pro-
cedimentos (exames ou intervenções) em regime de curta permanência hospitalar. Normalmente, são
pacientes que são submetidos a algum procedimento diagnóstico ou terapêutico que, ao seu término, re-
pousam por um tempo variável, porém curto, antes de serem liberados da unidade.
O habitat natural do anestesiologista é o centro cirúrgico, onde ele encontra todo o aparato de material
e de pessoal para a realização do seu trabalho. Sabemos que, diante de uma situação crítica, a ajuda de
outro colega é fundamental para o sucesso da condução do evento; raramente o anestesiologista conta
com essa possibilidade quando trabalha fora do centro cirúrgico.
A evolução dos meios de diagnóstico e terapia criou novos espaços e novos campos de trabalho fora desse
habitat natural. Toda vez que o anestesiologista sai da “zona de conforto” (o centro cirúrgico), cria-se uma
fonte de medo, desconforto, insegurança, à realização de suas atividades. Para tanto, é necessário estar
bem preparado, técnica, material e psicologicamente, para que a atividade anestésica seja feita com o má-
ximo de tranquilidade e segurança, tanto para o paciente quanto para os profissionais envolvidos.
O desafio do anestesiologista será multifatorial e abordará a avaliação e eleição do paciente apto, a
realização do ato em si, a recuperação pós-anestésica do paciente e sua alta hospitalar, compreendendo
também a avaliação e adequação do ambiente onde será realizado o procedimento e os cuidados com a
qualidade e a segurança do procedimento.

Normatizações e Resoluções do CFM


A realização de procedimentos anestésicos é regulamentada por diversas resoluções do Conselho Fede-
ral de Medicina que devem ser atendidas na sua plenitude, antes de se pensar em realizar o ato anestésico
fora do centro cirúrgico.

1106 | Bases do Ensino da Anestesiologia


A Resolução 1.802/20062 trata da realização do ato anestésico como um todo, regulamentando a ava-
liação pré-anestésica; das condições mínimas de segurança para a prática da anestesia e da recuperação
pós-anestésica, além de listar os documentos a serem preenchidos, a lista de equipamentos, instrumen-
tos, material e fármacos que devem estar à disposição para a realização de qualquer ato anestésico, in-
dependentemente do local onde se dará o procedimento cirúrgico-diagnóstico.
A Resolução 1.886/20083 dispõe sobre as normas mínimas para o funcionamento de consultórios mé-
dicos e dos complexos cirúrgicos para procedimentos com internação de curta permanência. É uma reso-
lução que esclarece, de maneira bastante ampla, como devem ser organizados e estruturados e os limites
de atuação de cada tipo de unidade de curta permanência, desde o consultório médico (unidade tipo I)
até os centros mais equipados (unidade tipo IV). As unidades I, II e III funcionam de forma independente
de um hospital. Fala também do critério de seleção dos pacientes, da avaliação pré-operatória mínima e
dos recursos humanos e materiais necessários em cada tipo de unidade.
Essa resolução define cirurgias com internação de curta permanência como “todos os procedimentos
clínico-cirúrgicos (com exceção daqueles que acompanham os partos) que, pelo seu porte, dispensam o
pernoite do paciente. Eventualmente, o pernoite do paciente poderá ocorrer, sendo que o tempo de per-
manência do paciente no estabelecimento não deverá ser superior a 24 horas”.
A Resolução 1.670/20034 define os níveis de sedação e normatiza as condições mínimas para a realiza-
ção do ato. Ela estabelece que a “sedação profunda só pode ser realizada por médicos qualificados e em
ambientes que ofereçam condições seguras para sua realização, ficando os cuidados do paciente a cargo
do médico que não esteja realizando o procedimento que exige sedação”.
Por fim, a Resolução do CREMERJ 215/20065 oferece uma lista de procedimentos que podem ser rea-
lizados nos diversos tipos de unidade de curta permanência em diversas especialidades, servindo como
uma referência para a prática de cirurgia/anestesia ambulatorial.

49.1. AVALIAÇÃO DO PACIENTE


A gama de pacientes elegíveis para procedimentos fora do centro cirúrgico (ambulatoriais) é muito di-
versa, com uma participação cada vez maior de indivíduos nos extremos da idade. Contudo, encontram-se
todos os tipos de paciente, que apresentam variados graus de estado físico e psicológico, alguns sendo co-
laborativos e outros não colaborativos, que exigem a intervenção do anestesiologista (sedação, analgesia
ou anestesia) para possibilitar a execução de procedimentos cirúrgicos ou exames, que são, muitas vezes,
indolores, mas insuportáveis ante o estresse gerado ao paciente.
A seleção dos candidatos é dividida em dois grandes grupos: um primeiro grupo no qual se incluem os
pacientes que estarão aptos a realizar o procedimento em regime ambulatorial, ou seja, poderão ter alta
em curto espaço de tempo. O segundo grupo inclui aqueles pacientes que já estão internados, no curso
de um tratamento ou investigação, ou aqueles cuja internação hospitalar será mandatória para avaliações
posteriores relacionadas com os riscos do procedimento ou a doença de base do paciente.

Pacientes Aptos à Realização de Procedimentos em Regime Ambulatorial


Nestes grupo encontram-se pacientes candidatos a procedimentos como cirurgias de pequeno porte,
crianças e adultos especiais com história de anafilaxia ou transtornos psicológicos ou psiquiátricos que
impossibilitam a colaboração em tratamentos diversos, como odontológicos, exames de imagens, trata-
mentos radioterápicos e outros.
Os pacientes elegíveis devem possuir capacidade cognitiva adequada à compreensão das orientações
pré e pós-procedimentos; devem ser hígidos ou com doença crônica preexistente sob controle, classifica-
dos segundo a Sociedade Americana de Anestesiologistas6 como estado físico ASA I e ASA II, podendo ser
estendido a alguns pacientes classificados com estado físico ASA III, sem doença aguda no momento do
procedimento. Além disso, devem estar acompanhados de um adulto, ou dois adultos no caso das crian-
ças, e possuir acesso rápido a uma unidade de referência. Existem ainda critérios mais específicos que são
direcionados a certo público-alvo, como as crianças e os portadores de doenças crônicas. Prematuros com
idade pós-conceptual menor que 45 semanas; crianças com doença cardiológica congênita ou pulmonar
aguda recente; história de morte infantil familiar súbita e doença neuromuscular estão automaticamente

Ponto 49 - Anestesia para Procedimentos fora do Centro Cirúrgico | 1107


impedidos de realizar qualquer procedimento ambulatorial. Adultos com doenças crônicas de difícil con-
trole ou que causem risco de vida estão igualmente excluídos.
A Resolução CFM 1.886/20083 (artigo 3.2) ainda contraindica a realização dos procedimentos em regime
ambulatorial (inclui os procedimentos fora do centro cirúrgico) quando:
a. Os pacientes são portadores de distúrbios orgânicos de certa gravidade, avaliados a critério do
médico assistente.
b. Os procedimentos a serem realizados são extensos.
c. Há grande risco de sangramento ou outras perdas de volume que necessitem de reposição importante.
d. Há necessidade de imobilização prolongada no pós-operatório.
e. Os procedimentos estão associados com dores que exijam a aplicação de narcóticos, com efeito
por tempo superior à permanência do paciente no estabelecimento.

Pacientes com Necessidade de Internação Hospitalar


Nesse grupo, encontram-se pacientes com doenças limitantes, estado físico ASA III não compensados
ou acima, os quais, após o procedimento terapêutico ou diagnóstico, precisarão de assistência médica
direcionada, seja para estabilização clínica, seja para vigilância ou analgesia. Esse grupo abrange, por
exemplo, procedimentos de hemodinâmica como angioplastia, radiologia intervencionista e procedimen-
tos endoscópicos avançados, entre outros.

Cuidados e Avaliação dos Pacientes Selecionados


A avaliação dos pacientes antes do procedimento e seu preparo não diferem daqueles que são utili-
zados regularmente para procedimentos dentro do ambiente cirúrgico. Exames laboratoriais, avaliação
clínica prévia e risco cirúrgico, quando necessário, devem ser feitos seguindo o mesmo critério utilizado
para a associação de idade e comorbidades.
A avaliação pré-operatória deve ser realizada com antecedência, se possível. Este não é normalmente
o caso dos pacientes ambulatoriais ou pacientes que vão realizar procedimentos em consultório. Nessas
situações, o anestesista, muitas vezes, só tem a oportunidade de ter contato com os pacientes momentos
antes da realização da intervenção. Independentemente desse fator, é essencial que o anestesista colha
detalhada história clínica do paciente e faça um exame físico adequado7, o qual deve incluir, no mínimo,
avaliação criteriosa das vias aéreas e avaliação da função cardiovascular e respiratória, com o registro do
exame e dos sinais vitais. Em uma grande parte dos casos, somente essa avaliação é suficiente para orien-
tar a conduta médica. Nem sempre os exames laboratoriais solicitados aleatoriamente, como rotina, vão
ajudar a definir condutas ou vão mudar nossas ações previamente estabelecidas. Na maioria das vezes,
só somos auxiliados por avaliações laboratoriais que foram ditadas por alguma alteração clínica percebida
anteriormente, na colheita da história clínica, no exame físico ou em exames relacionados com o proce-
dimento proposto.
Contudo, algumas peculiaridades devem ser consideradas na avaliação dos pacientes, de acordo com
o procedimento a ser realizado. Como exemplo, os pacientes candidatos a procedimentos com necessi-
dade de uso de contraste venoso, como alguns exames radiológicos e hemodinâmicos. Esses casos me-
recem atenção especial para a avaliação da função renal devido ao risco de insuficiência renal aguda.
Também se deve ter cuidado com pacientes do sexo feminino em idade fértil (avaliar data da última
menstruação e, se necessário, solicitar teste de gravidez). Algumas vezes é exigida adaptação da condu-
ta diante de pacientes com distúrbios diversos, cujo diagnóstico depende do procedimento/intervenção
a ser realizado, como por exemplo, pacientes com anemia em investigação e que serão submetidos a
procedimentos endoscópicos para investigação da causa. Nesses casos, só devemos intervir na patologia
(tratar a anemia), caso a condição clínica esteja deteriorada em função dela, ou seja, o risco supera o
possível benefício da intervenção.
O controle e tratamento rígido de doenças prévias conhecidas também são mandatórios, pois uma
descompensação aguda ou induzida pelo procedimento proposto pode exigir internação hospitalar, o que
aumenta consideravelmente a morbimortalidade desses pacientes. De novo, isso demonstra que o essen-
cial é uma boa avaliação clínica prévia.

1108 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Por fim, muitos pacientes comparecem ao centro de tratamento/diagnóstico com exames já realizados
há algum tempo. Se a avaliação clínica/exame físico demonstrar que o paciente tem uma condição clínica
estável, os exames anteriores devem ser considerados ainda válidos.
Ainda em relação aos exames, deve-se considerar que não existe nenhum exame que deva ser solici-
tado para todos os pacientes, e que a maioria dos exames pedidos e que apresentam alguma alteração
não determina mudanças nas condutas, diante de uma história clínica e um exame físico bem-feitos
(Tabela 49.1).
Tabela 49.1 - Relação de exames solicitados/alteração de conduta7

Teste % Anormalidades % Alteração de Conduta ou Cancelamento


ECG 4,6% a 44,9% 0,46% a 2,6%
ECO 25% (pacientes assintomáticos) 2%
ECO 7,5% a 25,2% (pacientes selecionados) 0,8% cancelamento
Não selecionados – 0,3% a 60,1% 0,6% a 20,3%
Raios x de tórax
Selecionados – 7,7% a 86% 0,5% a 17,1%
Teste de gravidez 0,3% a 1,3% 100%

Testes de coagulação 0,06% a 21,2% 0,0% a 4,0%

Hemoglobina 0,5% a 65,4% 2,4% a 28,6%


Hematócrito 0,2% a 38,9% 20%

Sempre que possível, uma avaliação prévia com o anestesiologista deve ser realizada. Além de todos
os cuidados técnicos a serem vistos, esse momento é ideal para orientação e esclarecimento das dúvi-
das. Informações sobre o papel do anestesiologista nesse procedimento, jejum e medicamentos a serem
mantidos ou suspensos, associados sempre a particularidade de cada procedimento, além da obtenção do
consentimento informado, são fundamentais.
Outro ponto importante é o período de jejum necessário à realização dos procedimentos ambulato-
riais. As recomendações são aquelas listadas no Practice Guidelines for Preoperative Fasting and the Use
of Pharmacologic Agents to Reduce the Risk of Pulmonary Aspiration: Application to Healthy Patients
Undergoing Elective Procedures, publicado pela American Society of Anesthesiologists8, que, em resumo,
determina os seguintes períodos de jejum pré-operatório para pacientes saudáveis que vão se submeter
a procedimentos eletivos (Tabela 49.2):
Tabela 49.2 - Jejum pré-operatório

Material Ingerido Período Mínimo de Jejum


Líquidos claros (sem resíduos) 2h
Leite materno 4h
Fórmula infantil 6h
Leite não humano 6h
Refeição leve 6h

Não existe recomendação para o uso de agentes estimulantes ou de medicamentos que alterem o pH
gástrico de rotina. As indicações devem ser baseadas na história clínica e no exame físico.

49.2. RECUPERAÇÃO
Essa etapa do atendimento também é crítica para o sucesso da intervenção. Os critérios a serem ob-
servados são tanto os de alta da sala de cirurgia/intervenção quanto os de alta da unidade. Porém, exis-

Ponto 49 - Anestesia para Procedimentos fora do Centro Cirúrgico | 1109


tem alguns elementos fundamentais sobre os quais devemos atuar previamente, no sentido de otimizar as
condições e o atendimento dos pacientes, a fim de facilitar sua recuperação e alta (Quadro 49.1).
Quadro 49.1 - Elementos-chave do manejo anestésico perioperatório para facilitar a recuperação rápida após
cirurgia ambulatorial eletiva

Período Pré-operatório
• Estabilizar doenças preexistentes e encorajar programa de exercícios de pré-habilitação e cessação do
fumo.
• Otimizar o conforto do paciente, minimizando a ansiedade e o desconforto.
• Assegurar a reidratação adequada repondo o déficit de fluidos.
• Utilizar terapêuticas profiláticas apropriadas para prevenir complicações pós-operatórias (por exemplo,
dor, náuseas, vômitos, íleo).
Período Intraoperatório
• Utilizar técnicas anestésicas que otimizem as condições cirúrgicas, enquanto asseguram uma recuperação
rápida com mínimos efeitos colaterais.
• Administrar anestesia local via bloqueio de nervos periféricos, infiltração da ferida e/ou instilação.
• Aplicar analgesia multimodal e profilaxia antiemética (incluindo o uso de glicocorticoides esteroidais).
• Minimizar o uso de tubos nasogástricos e drenos cirúrgicos e evitar administração excessiva de fluidos.
Período Pós-operatório
• Permitir que os pacientes que atinjam os critérios sejam liberados precocemente.
• Assegurar o controle adequado da dor com o uso de analgésicos não opioides para minimizar o uso de
analgésicos que contenham opioides.
• Encorajar a deambulação precoce e o retorno às atividades normais da vida diária.

Alta da Sala de Cirurgia/Intervenção


Os pacientes submetidos à anestesia/sedação fora do centro cirúrgico devem ser avaliados dentro dos
mesmos critérios utilizados nas salas de cirurgia, como os critérios de Aldrette-Kroulik (Tabela 49.3).
Além destes, também é importante a avaliação da intensidade da dor que o paciente apresenta no perío-
do pós-operatório, já que esta é uma das principais causas de retardo da alta e de readmissão hospitalar
após a alta.
Tabela 49.3 – Índice de Aldrete-Kroulik
Movimenta os quatro membros 2
Atividade muscular Movimenta dois membros 1
É incapaz de mover os membros voluntariamente ou sob comando 0
É capaz de respirar profundamente ou de tossir livremente 2
Respiração Apresenta dispneia ou limitação da respiração 1
Tem apneia 0
PA em 20% do nível pré-anestésico 2
Circulação PA em 20-49% do nível anestésico 1
PA em 50% do nível pré-anestésico 0
Está lúcido e orientado no tempo e espaço 2
Consciência Desperta, se solicitado 1
Não responde 0
É capaz de manter saturação de O2 maior que 92% respirando em ar ambiente 2
Saturação de O2 Necessita de O2 para manter saturação maior que 90% 1
Apresenta saturação de O2 menor que 90%, mesmo com suplementação de oxigênio 0

Para que o paciente possa ser transferido da sala de cirurgia para a sala de recuperação pós-anestési-
ca, ele deve ter ao menos 8 pontos na escala de Aldrete e Kroulik, mas não pode ter 0 ponto em nenhum
dos critérios. Além disso, o paciente deve estar com dor fraca (escala verbal numérica ou analógica visual
abaixo de três).

1110 | Bases do Ensino da Anestesiologia


Alta da Unidade
Seguindo os critérios adotados anteriormente, o paciente deve ter sua recuperação completa ou quase (mí-
nimo de 9 pontos na escala de Aldrete e Kroulik) e dor fraca ou controlada, além de ausência de náuseas ou
vômitos (ou mínimo) e sangramento cirúrgico ausente, ou mínimo. Não é mandatória a micção espontânea do
paciente antes da alta, na dependência do tipo de paciente e do tipo de procedimento ao qual foi submetido10.
O tempo de permanência mínimo na unidade de observação antes da alta deve ser individualizado.
É importante também para a alta a presença de um acompanhante maior de idade, capaz de entender
as orientações de alta e conduzir com segurança o paciente de volta ao local de origem. Um importante
fator a ser considerado na alta é a distância da residência à unidade onde se realizou o procedimento ou
à unidade de suporte, além da capacidade de locomoção do paciente. Em caso de complicações após a
alta, o acesso difícil a uma unidade de suporte ou resgate pode comprometer a integridade do paciente.
Nessa situação, pode ser melhor retardar ou cancelar a alta.
Existem escalas desenvolvidas para pontuar os critérios de elegibilidade de alta. Como exemplo temos
a seguinte escala (Tabela 49.4):
Tabela 49.4 – Escala de alta
2 Variação menor que 20% dos valores pré-operatórios
Sinais Vitais 1 20%-40% dos valores pré-operatórios
0 40% dos valores pré-operatórios
2 Deambulação normal/Sem tontura
Deambulação 1 Com assistência
0 Não deambula/Tontura
2 Mínimos
Náuseas e Vômitos 1 Moderados
0 Intensos
2 Mínima
Dor 1 Moderada
0 Intensa
2 Mínimo
Sangramento cirúrgico 1 Moderado
0 Intenso

Diversos fatores podem retardar a alta ou causar readmissão do paciente após a cirurgia ambulatorial11,12.

Alta retardada
Pré-operatório
• Gênero feminino
• Idade avançada
• Doença cardíaca congestiva
Intraoperatório
• Duração prolongada da cirurgia
• Anestesia geral
• Anestesia espinhal
Pós-operatório
• Náuseas e vômitos pós-operatórios
• Dor moderada a severa
• Sonolência excessiva
• Falta de acompanhante

Ponto 49 - Anestesia para Procedimentos fora do Centro Cirúrgico | 1111


Admissão não programada
Cirurgia
• Dor
• Sangramento
• Cirurgia extensa
• Complicações cirúrgicas
• Cirurgia abdominal
• Cirurgia otorrinolaringológica e urológica
Anestesia
• Náuseas e vômitos
• Sonolência
• Aspiração
Social
• Falta de acompanhante
Clínica
• Diabetes melito
• Doença cardíaca isquêmica
• Apneia do sono

49.3. EQUIPAMENTOS
As normatizações do CFM sobre o funcionamento e a estrutura das instalações que receberão o proce-
dimentos fora do centro cirúrgico são de extrema importância para o planejamento de uma nova unidade.
O ambiente candidato a receber os procedimentos cirúrgicos deve ter a mínima estrutura para seu perfei-
to funcionamento. Não raro o anestesiologista é chamado para participar do planejamento de uma nova
unidade e sugerir a formação desse ambiente.
Quanto à organização do espaço físico, aparelhagens, material, equipamento e monitores; o ambiente
basicamente não difere do ambiente habitual do centro cirúrgico. Uma vez que há uma distância relativa
do centro cirúrgico de referência até a unidade de cirurgia, esta deve estar abastecida e preparada para
suportar todos os procedimentos e qualquer intercorrência que possam advir do ato.
A sala de procedimento cirúrgico deve estar pronta para fornecer conforto e segurança a toda a equipe
e aos pacientes candidatos aos procedimentos. O espaço deve ser suficiente para que receba, além das
instalações próprias para cirurgia, o aparelho de anestesia; deve permitir mobilidade ampla da equipe
dentro do ambiente. O espaço físico deve estar preparado para suportar uma cirurgia e poder resolver
todas as intercorrências, se houver. É importante atentar para a necessidade de fontes de fornecimento
de gases frescos, sistemas de aspiração, ventiladores mecânicos na sala cirúrgica e aparelhos capazes de
suportar emergências e fornecer suporte avançado cardiovascular caso seja preciso. Além dos equipa-
mentos, é importante ressaltar que há necessidade de material e instrumental mínimo para a realização
da anestesia em ambiente fora do centro cirúrgico.
As recomendações do CFM sobre os equipamentos básicos, instrumentais e material a serem considera-
dos na sala operatória fora do centro cirúrgico podem ser encontradas na Resolução 1.802/2006.

49.4. MONITORIZAÇÃO
A monitorização do ato cirúrgico anestésico fora do centro cirúrgico nada difere da que se costuma
a utilizar nos procedimentos realizados no centro cirúrgico. A importância se dá em nome da segurança
e qualidade do procedimento a ser feito fora do ambiente habitual do anestesiologista. É fundamental
destacar que a monitorização objetiva a manutenção das funções fisiológicas e a prevenção de possíveis
intercorrências relacionadas com o ato cirúrgico-anestésico.
De forma global, a monitorização básica da função cardíaca, com avaliação contínua da frequência car-
díaca e do ritmo através do ECG e da pressão arterial e a avaliação respiratória através da oximetria de

1112 | Bases do Ensino da Anestesiologia


pulso, deve ser empregada em todos os procedimentos realizados, independentemente da técnica anesté-
sica utilizada. Monitorizações auxiliares são reservadas conforme as necessidades exigidas, segundo o tipo
de anestesia, o porte da intervenção ou o perfil do paciente. A capnografia torna-se obrigatória para ava-
liação intraoperatória de pacientes candidatos à ventilação artificial ou ao uso de medicações que possam
desencadear hipertermia maligna. Recomenda-se ainda a monitorização da temperatura em procedimentos
realizados em pacientes com extremos de idade ou cuja duração ultrapasse 2 horas. Assim como os equipa-
mentos e a infraestrutura, a monitorização também é regulamentada pela CFM 1.802/06.

Resolução CFM 1.802/2006


ANEXO II
Equipamentos básicos para a administração da anestesia e suporte cardiorrespiratório
1. Em cada sala onde se administra anestesia: secção de fluxo contínuo de gases, sistema respiratório e venti-
latório completo e sistema de aspiração.
2. Na unidade onde se administra anestesia: desfibrilador, marca-passo transcutâneo (incluindo gerador e cabo).
3. Recomendam-se a monitoração da temperatura e sistemas para aquecimento de pacientes em anestesia pe-
diátrica e geriátrica, bem como em procedimentos com duração superior a duas horas, nas demais situações.
4. Recomenda-se a adoção de sistemas automáticos de infusão para a administração contínua de fármacos va-
soativos e anestesia intravenosa contínua.

ANEXO III
Instrumental e materiais
1. Máscaras faciais
2. Cânulas oronasofaríngeas
3. Máscaras laríngeas
4. Tubos traqueais e conectores
5. Seringas, agulhas e cateteres venosos descartáveis
6. Laringoscópio (cabos e lâminas)
7. Guia para tubo traqueal e pinça condutora
8. Dispositivo para cricotireostomia
9. Seringas, agulhas e cateteres descartáveis específicos para os diversos bloqueios anestésicos neuroaxiais
e periféricos

ANEXO IV
Fármacos
1. Agentes usados em anestesia, incluindo anestésicos locais, hipnoindutores, bloqueadores neuromusculares
e seus antagonistas, anestésicos inalatórios e dantroleno sódico, opioides e seus antagonistas, antieméticos,
analgésicos não opioides, corticosteroides, inibidores H2, efedrina/etil-efrina, broncodilatadores, gluconato/
cloreto de cálcio.
2. Agentes destinados à ressuscitação cardiopulmonar, incluindo adrenalina, atropina, amiodarona, sulfato de
magnésio, dopamina, dobutamina, noradrenalina, bicarbonato de sódio, soluções para hidratação e expan-
sores plasmáticos.

49.5. SEGURANÇA PROFISSIONAL


Os protocolos de segurança são adotados quer o paciente seja ambulatorial ou não, quer o procedimen-
to seja realizado dentro ou fora do centro cirúrgico. O crescente número de procedimentos realizados fora
do centro cirúrgico, considerando-se este um local “hostil”, deve atender os mesmos protocolos, ainda
com mais rigor.
O fundamento da abordagem deste tópico é o evitar o erro médico, definido como “a conduta profis-
sional inadequada que supõe uma inobservância técnica, sendo capaz de produzir um dano à vida ou à
saúde de outrem, caracterizada por imperícia, imprudência ou negligência”13.
Existem diversos tipos de risco ocupacional em anestesiologia, que se classificam dependendo do agen-
te desencadeante ou da situação desencadeante14 (Quadro 49.2). Os riscos envolvem aspectos ergonômi-

Ponto 49 - Anestesia para Procedimentos fora do Centro Cirúrgico | 1113


cos; mecânicos; exposição a agentes químicos, biológicos e radioativos, contra os quais devemos sempre
nos proteger e proteger o paciente. Outros aspectos que também devem ser considerados são o estresse
e a fadiga (risco psicológico) envolvidos no trabalho realizado fora do centro cirúrgico.
Quadro 49.2 – Riscos
• Estresse ocupacional crônico
Riscos relacionados com a natureza da prática da • Transtornos psicossociais
anestesiologia • Dependência de fármacos
• Ergonomia

Dois tipos de risco que atualmente são muito discutidos são a síndrome de Burnout (exaustão prolongada
e queda do interesse no trabalho) e o risco de drogadicção, muito prevalentes entres os anestesiologistas. A
síndrome de Burnout ocorre em 19% a 47% entre os médicos, contra 18% em trabalhadores em geral15.
O Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), publicado na Portaria nº 529, do Ministério da
Saúde16, visa ao aumento da segurança do paciente, que é definida, em seu artigo 4º, inciso I, como a “re-
dução, a um mínimo aceitável, do risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde”.
No seu artigo 5º, o PNSP fala na implantação de uma cultura de segurança, que deriva de cinco carac-
terísticas que devem ser implantadas pela organização:
“a) Cultura na qual todos os trabalhadores, incluindo os profissionais envolvidos no cuidado e gesto-
res, assumem responsabilidade pela própria segurança, pela segurança de seus colegas, pacien-
tes e familiares.
b) Cultura que prioriza a segurança acima de metas financeiras e operacionais.
c) Cultura que encoraja e recompensa a identificação, a notificação e a resolução dos problemas
relacionados à segurança.
d) Cultura que, a partir da ocorrência de incidentes, promove o aprendizado organizacional.
e) Cultura que proporciona recursos, estrutura e responsabilização para a manutenção efetiva
da segurança.”
O Quadro 49.3 apresenta a classificação dos riscos ocupacionais.
Quadro 49.3 - Classificação dos riscos ocupacionais

Riscos relacionados com os agentes • Infecções transmitidas pelos pacientes portadores dos seguintes
biológicos patógenos: hepatite B, hepatite C, HIV, bactérias, fungos, outros
• Radiação ionizante (RX)
• Radiação não ionizante (laser)
• Ruídos e vibrações
• Temperatura
Riscos relacionados com agentes físicos e a
• Ventilação
segurança
• Iluminação
• Cargas elétricas de alta e baixa voltagem
• Incêndios
• Gases comprimidos (cilindros)
• Organização e teor do trabalho
Riscos relacionados com o planejamento • Modelo de trabalho
de trabalho (organizacionais) • Calendário, carga horária, densidade de tarefas
• Violência
• Alergia ao látex
Riscos relacionados com agentes químicos
• Exposição aos anestésicos inalatórios (riscos reprodutivos)

Os principais protocolos clínicos a serem trabalhados no âmbito do PNSP estão expressos no art. 7º:
“a) Infecções relacionadas com a assistência à saúde.
b) Procedimentos cirúrgicos e de anestesiologia.
c) Prescrição, transcrição, dispensação e administração de medicamentos, sangue e hemoderivados.

1114 | Bases do Ensino da Anestesiologia


d) Processos de identificação de pacientes.
e) Comunicação no ambiente dos serviços de saúde.
f) Prevenção de quedas.
g) Úlceras por pressão.
h) Transferência de pacientes entre pontos de cuidado.
i) Uso seguro de equipamentos e material.”
Como especialidade, a anestesiologia é a única expressamente citada como fundamental na implanta-
ção dos protocolos de segurança.
Ainda na busca do maior nível de segurança que se pode oferecer dentro do sistema de saúde, foi ins-
tituído o Protocolo de Cirurgia Segura17, que estabelece 10 objetivos essenciais para a cirurgia segura18:
1. A equipe operará o paciente certo no local cirúrgico correto.
2. A equipe usará métodos conhecidos para impedir danos na administração de anestésicos, enquanto
protege o paciente da dor.
3. A equipe reconhecerá a perda de via aérea ou de função respiratória que ameacem a vida e estará
efetivamente preparada para ela.
4. A equipe reconhecerá o risco de grandes perdas sanguíneas e estará efetivamente preparada para isso.
5. A equipe evitará a indução de reação adversa a drogas ou reação alérgica sabidamente de risco
ao paciente.
6. A equipe usará de maneira sistemática, métodos conhecidos para minimizar o risco de infecção no
sítio cirúrgico.
7. A equipe impedirá a retenção inadvertida de instrumentais ou compressas nas feridas cirúrgicas.
8. A equipe manterá seguros e identificará precisamente todos os espécimes cirúrgicos.
9. A equipe se comunicará efetivamente e trocará informações críticas para a condução segura da operação.
10. Os hospitais e os sistemas de saúde pública estabelecerão vigilância de rotina sobre a capacidade,
o volume e os resultados cirúrgicos.
A Anvisa publicou uma Lista de Verificação de Segurança Cirúrgica19, que deve ser adotada para uso
durante cada procedimento cirúrgico, na qual o anestesiologista tem papel fundamental para sua imple-
mentação (Quadro 49.4).

Ponto 49 - Anestesia para Procedimentos fora do Centro Cirúrgico | 1115


No campo da segurança profissional, sob outra vertente, ainda cabe comentar a necessidade da obten-
ção do Consentimento Informado antes da realização de qualquer ato anestésico e que está expresso na
Resolução 1.802/2006 do CFM.

49.6. TRANSPORTE
O transporte dos pacientes após a realização do procedimento fora do centro cirúrgico também é res-
ponsabilidade do anestesiologista. O destino dos pacientes e sua alta são idealmente avaliados, seguindo
a técnica anestésica utilizada, o estado físico do paciente e a elegibilidade de alta hospitalar ou cuidados
pós-procedimentos.
A condição inicial, para qualquer tipo de técnica utilizada, segue os critérios comumente utilizados
quando se fala em recuperação da anestesia. Todos os pacientes devem seguir as normas de alta para o
estágio 1 da recuperação pós-anestésica, ou seja, precisam estar cooperativos e responsivos aos estímu-
los; hemodinamicamente estáveis; aptos a manter a via aérea desobstruída e capazes de manter a satu-
ração venosa de oxigênio em níveis aceitáveis com ou sem administração de oxigênio complementar para
poder ser transportados. Alcançados esses objetivos, o paciente deve ser conduzido, sob supervisão do
anestesiologista, a uma unidade de recuperação pós-anestésica do centro cirúrgico (SRPA 1). A exceção
está para os pacientes submetidos à sedação leve ou sedação consciente, que conseguem uma fase 1 de
recuperação acelerada, podendo continuar sua recuperação pós-anestésica em uma unidade de recupe-
ração ambulatorial onde, após apresentarem diurese espontânea (se necessário) e se alimentarem sem
maiores problemas, podem receber alta hospitalar.
Pacientes hígidos submetidos à sedação consciente ou sedação leve devem ser avaliados após o pro-
cedimento. Havendo estabilidade hemodinâmica e capacidade respiratória preservada, deve-se promover
o transporte em macas específicas até a unidade de recuperação pós-anestésica, que pode ser no centro
cirúrgico ou em uma unidade ambulatorial, caso possuam recuperação da fase 1 acelerada. Entretanto,
quando os pacientes não conseguem manter a saturação da hemoglobina maior que 95% em ar ambiente,
deve-se oferecer oxigênio via cateter nasal e aguardar a estabilidade respiratória para seu transporte.
Pacientes submetidos à anestesia geral ou sedação moderada devem ser transportados após a recupe-
ração na sala do procedimento da mesma forma que os outros. Particularmente, nesse tipo de paciente, a
hipóxia inerente à sedação residual é a complicação mais comum, devendo o anestesiologista manter vigi-
lância sobre a ventilação até que esse paciente seja entregue na sala de recuperação anestésica do centro
cirúrgico (SRPA 1). A monitorização dos sinais vitais, especialmente da saturação de hemoglobina, através
do oxímetro de pulso, deve estar presente. Oxigenação complementar pode ser necessária para aqueles
pacientes que só conseguem manter níveis ideais de SpO2 através do cateter nasal ou da máscara facial.
Pacientes graves que serão transportados para unidades de tratamento intensivo exigem maiores de-
safios do anestesiologista. Estes devem estar preparados com balas/galões de oxigênio suficientes para o
tempo de transporte; monitores carregados para que mantenham os sinais vitais do paciente disponíveis
por todo o trajeto; ventiladores mecânicos portáteis ou AMBUs com bolsa reservatório preparados para o
transporte; fármacos de resgate e emergência preparados para qualquer eventualidade ou necessidades
e, quando disponíveis, desfibriladores cardíacos. O médico anestesiologista que realizou o procedimento
deve acompanhar o paciente até a unidade de destino onde, depois de se comunicar com outro profissio-
nal, lhe atribui agora os cuidados pertinentes daquele paciente.
Todo transporte de pacientes, vindo de lugares onde receberam anestesia fora do centro cirúrgico,
deve ser realizado com a supervisão e responsabilidade do anestesiologista, respeitando as particulari-
dades de cada paciente. Todos os pacientes devem ser transportados deitados, em macas específicas, de
forma que seus pés fiquem no sentido de direção da maca, evitando movimentos bruscos que podem le-
var a quadros de náusea e tontura, especialmente quando houve a utilização de opioides, fator que pode
retardar a alta.

49.7. MEIOS DE CONTRASTE RADIOLÓGICOS20,21


Os contrastes radiológicos são instrumentos utilizados em inúmeros exames de imagem recorren-
tes na prática da medicina. Quando se administram contrastes radiológicos, a absorção pelos órgãos
1116 | Bases do Ensino da Anestesiologia
ocorre de forma heterogênea, apresentando, assim, uma imagem particular, que diferencia melhor
as estruturas e, por vezes, outras doenças existentes. Esse processo é traduzido por uma melhora
considerável na qualidade técnica dos exames de imagens. Devido a suas repercussões, o aneste-
siologista deve conhecer os meios de contraste de forma ampla, uma vez que sua utilização pode
ocasionar reações adversas nos pacientes, especialmente reações alérgicas e de nefrotoxicidade. Da
mesma forma, deve se apresentar apto a reconhecer as intercorrências e instituir o tratamento e a
prevenção adequados.
Evolutivamente, os contrates radiológicos sofreram profundas mudanças. Os primeiros a surgir no
mundo da medicina eram moléculas baseadas em íons inorgânicos, como chumbo, bismuto e bário, que
apresentavam osmolaridades bastantes altas, muito maiores que as do plasma e com um perfil bastan-
te tóxico. Hoje, compostos mais fisiológicos foram alcançados, de modo que encontramos dois grandes
grupos de contrastes. No primeiro grupo estão os contrastes iônicos, ou baseados no iodo, com melhor
perfil de administração e que possuem osmolaridade aumentada em relação ao plasma (entre 1.400 a
1.800 mOsm.kg-1). No segundo grupo estão os contrastes não iônicos, que possuem baixa osmolaridade
(entre 550 e 880 mOsm.kg-1). A osmolaridade está diretamente associada com os efeitos colaterais, sen-
do os agentes iônicos mais tóxicos.
A nefrotoxicidade induzida pelo uso dos meios de contraste está intimamente ligada à sua natureza.
Todos os contrastes apresentam eliminação renal, quase completamente in natura, sem nenhuma meta-
bolização. Acredita-se que sua administração pode gerar uma série de alterações na hemodinâmica renal,
causando uma isquemia irreversível com lesão grave das células renais. Outro fator também importante é
que a ação nefrotóxica dos contrastes venosos pode ocorrer por lesão direta sobre o túbulo renal. Fatores
de risco prévios estão intimamente relacionados com a patogênese da nefropatia induzida por contrates.
Pacientes que possuem extremos de idade; desidratação prévia; relato de uso de fármacos nefrotóxicos;
alterações prévias dos níveis séricos de creatinina; necessidade de altas doses de contraste e história de
doença crônica como diabetes e cardiopatias apresentam risco aumentado para o desenvolvimento da
lesão renal pós-contrastes venosos.
Baseados nos fatores de risco, o anestesiologista deve indicar a profilaxia para a nefrotoxicidade renal.
A prevenção passa pela escolha do melhor tipo de contraste até a intervenção pré-procedimento com
fármacos ou melhora do estado volêmico do paciente. Sempre que possível, deve se optar pelas menores
doses de contraste e utilizar os de baixa osmolaridade. A hidratação prévia com solução salina na dose
de 1 mL.kg.-1h-1 deve ser iniciada 12 horas antes do procedimento e ser mantida por, no mínimo, 12 horas
depois do exame. Pacientes que serão candidatos a procedimentos ambulatoriais devem ser orientado à
hidratação oral com ingestão de ao menos 2 litros de líquido antes e após o procedimento. Estudos re-
centes sugeriram não haver benefício da alcalinização da urina pela utilização de bicarbonato de sódio
quando comparado com a hidratação com cristaloide. Pacientes usuários de drogas nefrotóxicas, como a
metformina, devem ser aconselhados a suspender a medicação pelo menos 12 horas antes do exame de
imagem e reintroduzi-la após a avaliação da função renal com dosagens de creatinina sérica seguidas 48
horas do uso do contraste. A utilização de acetilcisteína, por via oral, na dose de 600 mg de cada 12 horas
ainda é bastante controversa. Estudos recentes foram conflitantes sobre os benefícios desse fármaco na
nefroproteçāo de pacientes expostos a fatores de risco. Contudo, devido a seu baixo custo e a ausência
de efeitos adversos na prática clínica, essa droga ainda é bastante usada na profilaxia da nefrotoxicidade
induzida por contrastes.

REFERÊNCIAS
1. American Society of Anesthesiologists. Committee of Ambulatory Surgical Care. Guidelines for office-based
anesthesia. Approved by the ASA House of Delegates on October 13, 1999; last amended on October 21, 2009;
and reaffirmed on October 15, 2014.
2. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução n° 1.802, de 1° de novembro 2006, retificada em 20 de dezem-
bro de 2006. Dispõe sobre a prática do ato anestésico. Revoga a Resolução CFM n° 1363/1993. Diário Oficial da
União de 1° nov 2006, Seção 1; Diário Oficial da União de 20 dez 2006, Seção 1. p. 160.
3. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução nº 1.886, de 21 de novembro de 2008. Dispõe sobre as Normas
Mínimas para o Funcionamento de Consultórios Médicos e dos Complexos Cirúrgicos para Procedimentos com
Internação de Curta Permanência. Diário Oficial da União de 21 nov 2008, Seção I, p. 271.

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