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ME3 - Prova 3
ME3 - Prova 3
PONTO 45
Choque
David Ferez
Professor adjunto doutor da disciplina de anestesiologista, dor e
medicina Intensiva da Escola Paulista de Medicina – Unifesp;
Chefe da disciplina de anestesiologista, dor e medicina intensiva da Escola Paulista de Medicina – Unifesp.
Choque
45.1. Conceito
45.2. Classificação
45.3. Fisiopatologia
45.4. Monitorização
45.5. Tratamento
45.6. Síndrome da resposta inflamatória sistêmica
45.7. Síndrome da falência de múltiplos órgãos
INTRODUÇÃO
O choque é, em essência, uma história de sobrevivência, uma luta do organismo em um meio adverso
para preservar a vitalidade de seus tecidos mais essenciais. É uma história de ataque e defesa, de ganho e
perda, em um caleidoscópio de manobras defensivas para preservar a sobrevivência dos órgãos. Como tal,
o choque é virtualmente estudado em todas as disciplinas clínicas e cirúrgicas e, para o seu tratamento,
é necessária a compreensão da dinâmica circulatória e da fisiologia celular.
O termo “choque” foi aplicado por mais de dois séculos a muitas condições em que os ferimentos das
batalhas pareciam desproporcionalmente e misteriosamente pequenos quando comparados com o colapso
imediato ou gradual dos processos vitais. O enigma foi muito bem colocado por Sir Astley Cooper em seu
“Comentário sobre os ferimentos de guerra” quando chamou a atenção para o fato de que muitos soldados
haviam morrido sem perda significante de sangue, dor intensa ou ferimento grave1.
Naquela época, o termo foi aplicado sem critério a uma grande variedade de condições em que havia
ameaça à vida, e nas quais os achados anatomopatológicos foram incapazes de fornecer uma “causa mor-
tis” razoável.
Contudo, o termo “choque” com o sentido médico foi usado pela primeira vez na língua inglesa em
1743 em uma tradução da segunda edição francesa do livro de Henri François Le Dranem Um tratado de
reflexões provenientes da experiência por ferimento por arma de fogo. O tradutor usou a palavra para
transmitir a impressão de uma pancada ou um golpe seguido por deterioração progressiva, perda de
consciência e morte. Para John Collins Warren, o choque era “uma pausa momentânea no ato da morte”.
Este conceito compreende muito do que atualmente é aceito na atualidade, particularmente a noção de
que o choque não é uma única entidade, mas, na realidade, uma resposta adaptativa aos ferimentos que
ameaçam a vida, provenientes de origens variadas, e caracterizadas por lesão permanente ou temporária
às funções vitais dos órgãos2,3.
O trabalho de Thomas Latta em 1831 descrevendo o seu tratamento do estado hipovolêmico na cólera,
é um clássico em terapêutica. Não havendo precedente para orientá-lo agiu cautelosamente infundindo
330 onças de salina intravenosamente em um paciente, durante um período de 12 horas, obtendo uma
melhoria clínica importante4.
Com o advento da era da fisiologia experimental no século XIX, medidas da resposta da pressão san-
guínea média aos vários estímulos foram registradas continuamente no quimógrafo. O efeito inibidor do
nervo vago sobre o coração foi descrito e a existência de um centro vasomotor que controlava o sistema
circulatório através do sistema nervoso autônomo foi estabelecido. Experimentos demonstrando a inibi-
ção reflexa da ação cardíaca através de estímulos periféricos, tais como pancadas no abdômen do sapo,
ou a produção abrupta de modificações gravitacionais no rato sugeriram que uma analogia experimental
do choque poderia ser desenvolvida. Como resultado desses estudos estabeleceu-se o conceito de que o
choque era o resultado da inibição do centro vasomotor que produzia enfraquecimento dos batimentos
cardíacos e uma mistura periférica do sangue. Este conceito neurogênico do choque foi desenvolvido du-
rante a era em que o interesse na neurologia experimental e clínica floresciam sob o estímulo de Claude
Bernard, Brown-Sequard, e Charcot3,5.
George W. Crile, que trabalhou originalmente no laboratório de Victor Horseley no University College,
Londres, contribuiu posteriormente com uma monografia detalhada, publicada em 1889, descrevendo o
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primeiro estudo experimental extenso do choque. G. W. Crile usou manômetros e quimógrafos usados em
fisiologia para medir reações a ferimentos, em um grande número de experimentações animais. Muitas de
suas observações têm considerável relação com o conceito atual do choque. Ele salientou a relação entre
o aumento da duração da cirurgia e a possibilidade de ocorrer o choque circulatório. Notou ainda que uma
pequena hemorragia que precede uma operação reduzia a capacidade do animal a resistir aos ferimentos
e lesões, e definiu o papel da hipotermia, da anestesia, em particular da perda de sangue e fluidos. Ba-
seado nesses conhecimentos G. W. Crile idealizou as calças militares antichoque6.
G. W. Crile delineou também a aceleração e aprofundamento da respiração após a hemorragia e a
hipertensão venosa associadas com uma queda da pressão venosa central. Ao descrever a resposta do
animal em choque a uma infusão de salina morna ele salientou: “o que foi feito pela salina? Ela aumentou
a pressão venosa fazendo com que o coração se enchesse e esse, por sua vez, passou a bater mais forte
e enviar maiores quantidades de sangue com salina que vieram alimentar os centros exauridos e necessi-
tados de nutrição e, além disso, promoveu a passagem desse sangue sobrecarregado pelos pulmões para
incentivar as trocas respiratórias”. A resposta do coração à infusão de salina levou G. W. Crile a concluir
que a ação cardíaca era a última das funções vitais a se tornar insuficiente7.
Esses conceitos da importância da pressão venosa como um determinante do débito cardíaco (DC),
o reconhecimento de que a pressão venosa no choque hemorrágico está reduzida e que ela pode ser
elevada pela infusão de salina morna, e de que o coração responde com aumento de débito, são ideias
altamente aceitáveis para o clínico moderno. Ele atribuiu o determinante final do choque à exaustão do
centro vasomotor. Mais tarde um bom número de evidências sugeriu que, muito pelo contrário o centro
vasomotor estava hiperativo e que a desnervação de um órgão resultava em um aumento imediato do
fluxo sanguíneo7.
Nove anos mais tarde, Yandell Henderson também salientou a importância do retorno venoso para o
coração. “A pressão venosa é, por assim dizer, o ponto de apoio da circulação. O choque, conforme o ci-
rurgião usa a palavra, é devido à falha deste ponto de apoio. Devido à redução do suprimento venoso o
coração não se distende adequadamente e de maneira concreta durante a diástole”8. Interessantemente
os efeitos deletérios da hipocapnia salientados por Henderson estão novamente em voga, ainda que Hen-
derson tenha sido o centro de uma controvérsia, como resultado da sua sugestão de que a hipocapnia era
“mecanismo causador” mais do que um resultado do choque.
O interesse nos mecanismos de tratamento do choque foi sempre estimulado pelas guerras9. A Primeira
Guerra Mundial levou pela primeira vez os fisiologistas a estabelecerem contato com os campos de bata-
lha. Em 1917, Edward W. Archibald e Walter S. McLean depois de considerável experiência direta no tra-
tamento do choque em indivíduos feridos resumiram suas opiniões com relação ao valor das medidas de
pressão sanguínea: “enquanto uma redução da pressão sanguínea é um dos sinais mais constantes do cho-
que ela não é o aspecto essencial e muito menos a causa dele, concentra-se a atenção na pressão arterial
sanguínea de uma maneira excessiva”10. O trabalho de G. W. Crile, em particular, e o de L. J. Henderson
apoiam o conceito de que a falha do retorno venoso era o determinante primário no choque e de que o
coração conservava a sua habilidade de bombear até as fases terminais do choque. Em consequência di-
rigiu-se muita atenção aos pequenos vasos periféricos. A experiência dos tempos de guerra não foi muito
esclarecedora em vista das controvérsias correntes como a relação ao uso dos vasoconstritores e vasodi-
latadores11. Naquele tempo o debate era entre aqueles que acreditavam que a exaustão vasomotora com
mistura periférica do sangue e nos grandes vasos era causa do choque, e aqueles que acreditavam que a
vasoconstrição era a causa da deterioração. Ao tratar dos acidentes de guerra os cirurgiões observaram
a palidez dos tecidos dos pacientes em choque, o desaparecimento do pulso periférico, em um momento
em que os pulsos femorais e carotídeos eram palpáveis, e observava-se a constrição das veias periféricas9.
Posteriormente houveram evidências adicionais da vasoconstrição no choque, quando observou que os
pulsos periféricos se tornavam palpáveis após o uso do vasodilatador nitrito de amilo12.
Os esforços, em colaboração, dos fisiologistas americanos e ingleses juntamente com os clínicos, lide-
rados por W. Cannon e W. Bayliss, criaram um precedente importante para os futuros estudos no cam-
po de batalha por grupos de investigação, especialmente no campo da reposição volêmica13. As amplas
perspectivas de seu estudo as descrições clínicas por oficiais médicos da linha de frente, e as medidas
dos fenômenos fisiológicos e bioquímicos em pacientes em choque paralelamente aos estudos em animais
45.1. CONCEITO
Baseado nas evidências construídas através de décadas, como foi apresentado anteriormente, o con-
ceito de choque evoluiu e vem evoluindo. C. Ince, em 2016, conceituou choque como um comprometi-
mento circulatório que resulta em uma incapacidade de assegurar a perfusão adequada para os tecidos,
comprometendo a oferta de oxigênio para as células. Não é devido apenas às alterações das variáveis
hemodinâmicas sistêmicas, mas essencialmente pelo fracasso da microcirculação assegurar a oferta e/ou
das mitocôndrias em utilizar o oxigênio de modo adequado20.
O choque é tipicamente associado com a evidência clínica de perfusão tecidual inadequada ao exame
físico. Os três órgãos facilmente acessíveis à avaliação clínica da perfusão tecidual são a: pele (grau de
perfusão cutânea comprometido – teste do refil capilar); rins (produção de urina diminuída); e cérebro
(estado mental afetado).
45.2. CLASSIFICAÇÃO
A tarefa de classificar os estados de choque segue objetivos didáticos. Independente da etiologia, o
evento fisiopatológico primário no choque, como visto em seu conceito, é a hipoperfusão tecidual, levan-
do à hipóxia, à acidose e à disfunção orgânica. Desta maneira, é útil considerar o choque como um efeito
direto do evento precipitante nas variáveis de perfusão tecidual e hipóxia celular (pressão arterial média,
pressões de enchimento, transporte de oxigênio aos tecidos etc.), bem como a doença resultante dessa
hipoperfusão causadora deste insulto, como uma síndrome.
Deve-se salientar a impossibilidade de qualquer divisão classificatória fornecer uma definição fisiopato-
lógica totalmente adequada, estanque e definitiva para os diversos quadros de choque.
Embora seja possível classificar-se o choque pelo evento inicial que o desencadeia, seus diferentes ti-
pos podem coexistir em uma mesma situação clínica devido a uma variedade de complicações possíveis,
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tais como isquemia esplâncnica, permeabilidade capilar alterada, vasodilatação, hipoperfusão coronaria-
na, depressão miocárdica e produção e liberação de substâncias vasoativas etc.
A. Thal, em 1967, classificou o choque, de maneira etiológica e pouco se modificou desde então21.
Assim, tradicionalmente, levando em consideração a doença, a etiologia que resultou na síndrome do
choque, ele pode ser classificado em seis categorias principais: hipovolêmico, obstrutivo extracardíaco,
cardiogênico, séptico, anafilático e neurogênico22.
Como foi visto, o choque pode ser também categorizado pelo seu impacto nas variáveis de perfusão do
paciente. Essa classificação não é tão categórica como a etiológica, que qualifica o choque em defeitos
quantitativos nas variáveis hemodinâmicas. Defeitos quantitativos são aqueles que reduzem (hipodinâmi-
cos) ou elevam (hiperdinâmicos) a perfusão tecidual em grande parte do tecido corporal.
Os choques hipodinâmicos caracterizam-se por um defeito direto por redução do fluxo sanguíneo.
Portanto, seria representado pelo choque cardiogênico, hipovolêmico e obstrutivo. São caraterizados por
comprometimento da função ventricular (queda do DC), aumento da resistência vascular periférica e a
taquicardia é comum.
Os choques hiperdinâmicos são caracterizados por taquicardia (bradicardia no neurogênico), função
ventricular normal ou pouco deprimida e diminuição da resistência vascular periférica.
As causas de choque hiperdinâmico são a sepse e a anafilaxia.
Classificação dos estados de choque22
Hipovolêmico
Obstrutivo extracardíaco
Séptico
Neurogênico (?)
45.3. FISIOPATOLOGIA
Apesar do resultado final comum, que são a hipoperfusão tecidual e a hipóxia celular, cada choque tem
sua fisiopatologia específica.
O choque hipovolêmico, como o nome sugere, é consequência de depleção do volume intravascular.
Os sinais clínicos começam a ocorrer quando a depleção sobrevém em pelo menos 20%, o que resulta em
redução no retorno venoso e comprometimento direto da pré-carga do coração impactando o volume sis-
tólico. Com a diminuição no DC e pressão arterial observa-se a ativação do sistema nervoso através de
barorreceptores que utilizam vias dos nervos glossofaríngeo e vago, que inibem núcleos cerebrais e ativam
o centro vasomotor e simpático. O resultado é um aumento de 20 a 200 vezes na concentração sérica de
adrenalina e noradrenalina. As catecolaminas circulantes em excesso levam a um aumento compensatório
na frequência cardíaca e na resistência vascular sistêmica. Além disso, a concentração de angiotensina II
eleva-se em cerca de quatro vezes.
A resposta catecolaminérgica leva ao desvio de sangue dos órgãos menos nobres (rins, pulmões, in-
testinos, fígado, pele e tecido celular subcutâneo etc.) em detrimento aos órgãos considerados nobres
(cérebro e coração).
Essa resposta catecolaminérgica também induz a desvios metabólicos, especialmente no fígado
e nos músculos. Nestes tecidos leva à glicogenólise e neoglicogênese, o que permite a elevação dos
níveis de glicose.
Observa-se concomitantemente aumento dos hormônios contrainsulinares como glucagon, glicocorti-
costeroides, mineralocorticoides e de mediadores inflamatórios23-25.(Figura- 45.1).
Figura 45.2 – Fisiopatologia do choque hipovolêmico (adaptado de Baskett, P. J. (1990). ABC of major trauma.
Management of hypovolaemic shock. BMJ 300(6737):1453-1457)
Figura 45.3 – Esquemas das principais variáveis da hemodinâmica que são analisadas no estado de choque:
DC, PAS, PAP, RVS, RVP, PVC, PCP. No polígono (estrela) o centro corresponde a 0% e a ponta, a 100% da
variável hemodinâmica em tela (adaptado de De Andrade, J. S. A. e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos
estados de choque. Choque. C. Gallucci. Rio de Janeiro: Publicações Médicas, p. 17-26)
Figura 45.4 – Quadro hemodinâmico de um choque hemorrágico, em que se observam DC baixo, PAS baixa,
PAP baixa, RVS elevada, RVP usualmente baixa, PVC baixa, PCP baixa (adaptado de De Andrade, J. S. A. e
Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C. Gallucci. Rio de Janeiro: Publicações
Médicas, p. 17-26)
O choque cardiogênico resulta de uma deficiência primária da bomba cardíaca. A diminuição na con-
tratilidade do músculo cardíaco (inotropismo) leva à redução primária do fluxo sanguíneo (DC) e conse-
quente aumento nas pressões de enchimento do mesmo devido à retenção ao fluxo. Após estes eventos,
a resposta da homeostase do organismo é semelhante à do choque hipovolêmico. A diminuição no DC e
pressão arterial sistêmica induz a ativação do sistema nervoso. A resposta simpática prioriza o fluxo para
os órgãos nobres (cérebro e coração) em detrimento dos menos nobres (rins, pulmões, intestinos, múscu-
los etc.) com aumento da resistência vascular sistêmica.
Os quadros cardiogênicos podem ser também decorrentes de falhas de cronotropismo (bradicar-
dia intensa) e não apenas no inotropismo, ou em ambos. As causas mais prevalentes do choque car-
diogênico são: insuficiência coronariana, bradiarritmias cardíacas, valvulopatias graves e os estados
terminais da sepse27. O quadro hemodinâmico do choque cardiogênico é: pressões de enchimento
direita e esquerda elevadas (PVC e PCP – elevadas), pressão arterial sistêmica baixa (PAS baixa),
pressão arterial pulmonar elevada (PAP elevada), DC baixo (DC baixo), resistência vascular sistê-
mica elevada (RVS elevada) e resistência vascular pulmonar usualmente elevada (RVP usualmente
elevada) (Figura-45.526).
A mortalidade geral em síndrome coronariana aguda (SCA) caiu significativamente nas últimas décadas,
de 10,4% em 1990 para 6,3% em 200628. A melhoria na sobrevida dos pacientes com síndrome coronária
aguda pode ser atribuída, em parte, aos avanços na farmacologia e intervenções mecânicas. Em muitas
dessas terapias o alvo é a prevenção do choque cardiogênico, uma complicação relativamente comum de
SCA, com uma taxa de mortalidade associada entre 50% a 80%27.
Os distúrbios obstrutivos resultam de um bloqueio mecânico ao fluxo sanguíneo na circulação pulmonar
ou sistêmica. Este tipo de choque também é chamado, erroneamente, de obstrutivo extra cardíaco, teria
como objetivo diferenciá-lo da falência do músculo cardíaco uma vez que o perfil hemodinâmico é muito
semelhante entre ambos.
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Figura 45.5 – Quadro hemodinâmico do choque cardiogênico, em que se observam DC baixo, PAS baixa, PAP
elevada, RVS elevada, RVP usualmente elevada, PVC elevada, PCP elevada (adaptado de De Andrade, J. S. A.
e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C. Gallucci. Rio de Janeiro: Publica-
ções Médicas, p. 17-26)
Uma das causas mais comuns é a embolia pulmonar maciça ou submaciça. Estas produzem um bloqueio
significativo da circulação pulmonar, através da formação de coágulos nas artérias pulmonares e, indire-
tamente, pela liberação de agentes vasoconstritores, em que se destaca o tromboxane A2. Outras cau-
sas seriam o tamponamento cardíaco e o pneumotórax hipertensivo, nessas situações existe importante
restrição mecânica à pré-carga ventricular direita, causando uma acentuada redução do fluxo sanguíneo.
O quadro hemodinâmico do choque cardiogênico é: pressões de enchimento direita e esquerda eleva-
das (PVC e PCP – elevadas), pressão arterial sistêmica baixa (PAS baixa), pressão arterial pulmonar eleva-
da (PAP elevada), DC baixo (DC baixo), resistência vascular sistêmica elevada (RVS elevada) e resistência
vascular pulmonar usualmente elevada (RVP usualmente elevada) (Figura 45.626).
Figura 45.6 – Quadro hemodinâmico do choque obstrutivo semelhante ao cardiogênico, em que se observam
DC baixo, PAS baixa, PAP elevada, RVS elevada, RVP usualmente elevada, PVC elevada, PCP elevada (adapta-
do de De Andrade, J. S. A. e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C. Gallucci.
Rio de Janeiro: Publicações Médicas, p. 17-26)
Figura 45.7 – Quadro hemodinâmico do choque distributivo (séptico após a reanimação volêmica ou anafiláti-
co), em que se observam DC elevado, PAS baixa, PAP variada, RVS baixa, RVP variada, PVC baixa, PCP baixa
(adaptado de De Andrade, J. S. A. e Almeida, O. D. (1985). Classificação dos estados de choque. Choque. C.
Gallucci. Rio de Janeiro: Publicações Médicas, p. 17-26)
45.4. MONITORIZAÇÃO
A monitorização de um paciente crítico, como no choque, envolve a monitorização clínica, o uso de
determinados dispositivos minimamente invasivos, cateteres invasivos e marcadores bioquímicos.
Monitorização Clínica do Paciente
Na monitorização clínica, recomenda-se a medição repetida da frequência cardíaca, pressão arterial,
temperatura corporal e variáveis do exame físico como: sinais de vasoconstrição da pele (presente ou
1004 | Bases do Ensino da Anestesiologia
ausente), produção de urina (normal ou diminuída) e estado mental (normal, agitado, confuso, obnubila-
do ou comatoso). É importante não usar uma única variável (para o diagnóstico, a monitorização e/ou o
tratamento do choque).
Esforços devem ser feitos para identificar o tipo de choque, através de uma adequada história clínica
e exame físico e para direcionar a terapia de suporte focada em protocolos definidos. Mesmo a presença
de hipotensão arterial (definida como PAS < 90 mmHg, PAM de < 70 mmHg [65 mmHg como consideram
outros autores] ou diminuição de > 40 mmHg a partir da linha de base), comumente presente, não devem
ser empregada como monitorização única. As alterações dessas pressões são tardias e pouca relação têm
com o prognóstico (Figura 45.8).
Monitorização Hemodinâmica
A monitorização hemodinâmica é capital para o cuidado da maioria dos pacientes em choque.
Tornou-se fundamental e onipresente na prática da medicina intensiva. As técnicas de monitoriza-
ção moderna são capazes de identificar padrões fisiológicos distintos e específicos para cada estado
de choque, como já foi apresentado, e também podem monitorar a resposta a terapias destinadas a
reverter essas anormalidades. A meta primária da monitorização hemodinâmica é avaliar a função
cardiopulmonar, a reserva cardiovascular, a adequação do fluxo sanguíneo e, por fim, o fornecimento
de oxigênio para os tecidos e, se este for considerado inadequado, monitorar o impacto de terapias
dirigidas a restaurar as insuficiências.
Nos estados de choque, o clareamento do ácido láctico é mais demorado (vida média de 18 horas),
enquanto nos estados onde há aumento da demanda de oxigênio (exercício intenso, convulsões) o clarea-
mento é rápido.
No choque hipovolêmico e cardiogênico, em decorrência das lesões isquêmicas do fígado e dos rins, o
clareamento do lactato é menor que no choque séptico.
No choque, a quantidade de lactato produzida correlaciona-se com a magnitude da hipoperfusão, ou
seja, com o tamanho da dívida de oxigênio acumulada. Há correlação entre níveis de lactato permanente-
mente acima de 2 mmol.L-1 e aumento da mortalidade. A tendência do nível do lactato é melhor indicador
que os níveis absolutos isolados. Deve-se monitorar o nível sérico, com várias medidas nas primeiras 24 ou
48 horas. Se a tendência for decrescente, o tratamento está sendo efetivo; caso contrário, novas estra-
tégias devem ser consideradas.
Destaca-se que o lactato sérico maior do que 4 mmol.L-1, mesmo na ausência de hipotensão declarada,
reflete hipoperfusão tecidual ou inflamação esmagadora e é um mau sinal prognóstico32-35.
A proposta mais comum é limitar o CAP para os pacientes de alto risco, como é o caso dos pacientes
em choque, especialmente os pacientes criticamente doentes para quem os dados mudarão a terapia ou
contribuirão para algoritmos protocolizados de tratamento com benefícios claros na literatura.
• Ondas de PAP
A onda de PAP é similar à onda de pressão arterial sistêmica, dividida em duas fases: sistólica e dias-
tólica. A sístole começa com a abertura da válvula pulmonar, resultando em rápida ejeção do sangue
dentro da artéria pulmonar. Na forma da onda isto é visualizado como um pico de aumento na pressão,
seguido por um decréscimo, quando o volume de sangue ejetado diminui.
Quando a pressão do ventrículo direito cai, a válvula pulmonar rapidamente se fecha, o que produz
um pequeno “nó” no alto da curva de pressão, chamado de nó dicrótico. O valor sistólico referido é do
pico de pressão (Figura 45.10).
A diástole segue-se ao fechamento da válvula pulmonar, durante este período não há nenhum fluxo do
ventrículo direito para o sistema pulmonar até a próxima sístole; o valor da pressão diastólica (PAPd)
medido, refere-se, dessa forma, à pressão diastólica final do ventrículo esquerdo, na ausência de doen-
ça pulmonar ou lesão mitral. A fase sistólica da PAP segue-se à despolarização ventricular e geralmente
a pressão sistólica ocorre junto com a onda T do ECG e a diastólica junto com o QRS.
• Ondas de POAP
O traçado da onda de pressão da POAP contém a mesma sequência de ondas e descensos do traçado
de onda de átrio direito, apenas ocorrendo mais tardiamente a relação ondas e traçado de ECG.
A onda “a” da pressão da POAP é produzida pela contração do átrio esquerdo e é seguida pelo descenso
“x” que reflete o relaxamento do átrio esquerdo após a sístole.
A onda “v” é produzida pelo enchimento final do átrio esquerdo; o declínio que sucede a onda “v” é o
descenso “y”, que representa a abertura da válvula mitral (Figura 45.10).
Como já exposto o CAP também fornece o DC pelo método da termodiluição.
O transporte de sangue oxigenado para os tecidos e a remoção dos produtos resultantes dos processos
metabólicos celulares dependem de uma complexa interação dos sistemas pulmonar e cardiovascular.
1010 | Bases do Ensino da Anestesiologia
O DC é a quantidade de sangue ejetado pelo coração por unidade de tempo, é reportado em litros/mi-
nuto e é produto da frequência cardíaca e do volume sistólico. O valor normal do débito para a média
dos adultos ao repouso é de 5 a 8 L.min-1.
DC = VS x FC
As variáveis que afetam o DC incluem idade, demanda de oxigênio, taxa metabólica, superfície corpo-
ral, gênero e postura.
O mais potente determinante do débito é a demanda metabólica de oxigênio. Quando a demanda au-
menta, o débito deve aumentar de forma a compensar a exigência fisiológica, assim como há queda no
débito quando a demanda diminui.
Sepse, trauma, cirurgias de grande porte e exercício, por exemplo, aumentam o metabolismo e con-
sequentemente o DC.
Pacientes criticamente doentes, geralmente necessitam de um débito 50% maior que o normal devido
ao aumento da necessidade metabólica.
Mulheres, habitualmente têm uma massa muscular menor e mais tecido gorduroso que os homens. O
tecido adiposo é menos vascularizado e metabolicamente menos ativo que o tecido esquelético, con-
sequentemente, o DC nas mulheres é em torno de 10% menor que nos homens.
O DC é maior na criança e diminui com a progressão da idade, assim como o DC medido na posição su-
pina é em torno de 20% menor que na posição ereta.
Quanto maior a massa muscular, maior será o DC necessário para perfundi-la, portanto, varia conside-
ravelmente de acordo com a superfície corporal.
Os determinantes primários do DC são: inotropismo, pré-carga, pós-carga e ritmo cardíaco.
Dividir o DC pela área de superfície corporal é a maneira de ajustar o DC à variação individual do ta-
manho corporal, o índice cardíaco (IC) é o DC indexado.
IC = DC/ASC
A área de superfície corporal é obtida utilizando-se a tabela de Dubois, que considera a altura e o peso
ideal ou usual do indivíduo. O valor normal do IC é 3 a 3,5 L.min-1.m-2.
O IC é, provavelmente, a medida mais importante para avaliar o estado hemodinâmico/perfusional, por
sua participação no cálculo de outras variáveis hemodinâmicas e de oxigenação (resistência vascular
sistêmica, resistência vascular pulmonar, oferta de oxigênio etc.).
O IC pode diminuir aproximadamente 30% antes de uma queda na pressão arterial sistêmica (PA) ser
detectada, desta forma a monitorização invasiva possibilita ao clínico prevenir a queda acentuada da
pressão, evitando hipoperfusão de órgãos.
Geralmente, uma queda súbita no IC menor que a metade do valor normal é passível de sobrevida e
um índice abaixo de 1 L.min-1.m-2 não é compatível com a vida.
Pacientes com shunts intracardíacos têm diferença nos volumes de fluxo sanguíneo pulmonar e sistê-
mico e na saturação de oxigênio nas câmaras cardíacas, portanto, apresentam efeitos de refluxo na
medida do DC e, assim, do IC.
A presença de shunt da esquerda para direita, por defeito atrial ou ventricular acarreta uma sobrecar-
ga de fluxo para o ventrículo direito; o fluxo sanguíneo pulmonar torna-se maior que o sistêmico, ocor-
rendo também mistura de sangue oxigenado e não oxigenado no coração direito. Como consequência
a amostra de sangue venoso misto obtido da artéria pulmonar tem uma saturação de oxigênio acima
da esperada.
Shunts da direita para esquerda são associados à queda de fluxo sanguíneo pulmonar e saturação ar-
terial de oxigênio subnormal, devido à mistura de sangue venoso e arterial no coração esquerdo que é
clinicamente evidenciada pela cianose central.
Qualquer método invasivo da medida do débito através de fluxo pela circulação pulmonar tem sua in-
terpretação baseada no pressuposto de que o fluxo sistêmico e pulmonar é igual. A presença do shunt
toma os dois fluxos desiguais, invalidando o método.
Ponto 45 - Choque | 1011
A medida do DC pode não ser representativa do fluxo através do sistema cardiovascular em pacientes
portadores de lesões valvulares insuficientes, porque o fluxo regurgitado é imensurável.
A insuficiência tricúspide é associada com recirculação sanguínea significativa nas câmaras cardíacas
direitas, portanto, o método de termodiluição é completamente invalidado.
Em pacientes com insuficiência mitral grave, o fluxo regurgitado pode contaminar a amostra de sangue
obtida da artéria pulmonar e invalidar o método também.
Variáveis hemodinâmicas indiretas (calculadas):
• Volume sistólico (VS) e índice sistólico (IS)
O VS é a quantidade de sangue ejetado pelo coração a cada batimento cardíaco e varia de 60 a 100
mL. Uma redução no VS é o defeito fundamental na falência sistólica (alteração na contratilidade) se-
cundária à doença isquêmica miocárdica, miocardiopatia ou depressão miocárdica relacionada a drogas
ou outros depressores.
O VS é obtido à beira do leito, de forma indireta, utilizando-se o DC como base e dividindo-se o mesmo
pela frequência cardíaca.
VS = DC/FC
É determinado pelo grau de encurtamento da fibra miocárdica e da redução da circunferência do tama-
nho ventricular; o VS, portanto é afetado pela pré-carga, pós-carga e contratilidade miocárdica, como
já foi apresentado.
O índice sistólico é obtido pela substituição do DC pelo IC, na fórmula descrita acima. Seu valor normal
é de aproximadamente 38 a 50 mL.bat-1.m-².
IS = IC/FC
• Trabalho sistólico do ventrículo esquerdo (TSVE) e índice de trabalho sistólico do ventrículo
esquerdo (ITSVE).
• Trabalho sistólico do ventrículo direito (TSVD) e índice de trabalho sistólico do ventrículo di-
reito (ITSVD).
A contratilidade miocárdica é calculada através do TSVE e do TSVD. A contratilidade refere-se ao esta-
do inotrópico do miocárdio ou mais especificamente à velocidade de encurtamento da fibra miocárdica
durante a sístole. O TSVE reflete o desempenho do VE, através do cálculo da quantidade de trabalho
realizado pelo ventrículo.
TSVE = (PAM – PAE) x VSVE x 0,00136
Quando se aplica na fórmula o IVSVE no local do VSVE, tem-se o índice de trabalho sistólico do VE (ITSVE).
ITSVE = (PAM – PAE) x IVSVE x 0,00136
Os valores normais do TSVE e ITSVE são respectivamente de 60 a 100 g.m.bat-1 e 50 a 80 g.m.m-².bat-1.
A redução da contratilidade é associada com redução da ejeção e diminuição do trabalho sistólico do
VE, pode ocorrer por hipovolemia, isquemia miocárdica, infarto do miocárdio, sepse, choque cardiogê-
nico, estenose aórtica, após uso de anestésicos ou drogas cardiodepressoras.
O mesmo raciocínio aplica-se ao trabalho sistólico do ventrículo direito (TSVD).
TSVD = (PAP – PVC) x VSVD x 0,00136
Quando se aplica na fórmula o IVSVD no local do VSVD tem-se o índice de trabalho sistólico do VD (ITSVD).
ITSVD = (PAP – PVC) x IVSVD x 0,00136
Os valores normais do TSVD e ITSVD são respectivamente de 8 a 16 g.m.bat-1 e 5 a 10 g.m.m-².bat-1.
São fatores que aumentam o trabalho sistólico do VD, a hipervolemia e o tromboembolismo pulmonar
com cor pulmonale.
Defeitos no septo ventricular, infarto do ventrículo direito e cor pulmonale grave, por sua vez, dimi-
nuem o TSVD.
Figura 45.13 – Dependência patológica do VO2 diante do DO2 nos estados de sepse
45.5. TRATAMENTO
O tratamento do choque, como uma síndrome, tem como fundamento o controle da doença de base.
Como medidas de suporte deve-se controlar de forma efetiva a hemodinâmica do paciente e seu DO2 e VO2.
Adequação da PAM
A hipotensão arterial sistêmica (PAM) é geralmente considerada como uma pressão arterial sistólica
inferior a 90 mmHg ou uma PAM a menor de 70 mmHg (65 mmHg como consideram outros autores). Res-
taurar a pressão de perfusão utilizando fluidos e/ou vasopressores é um dos principais aspectos da gestão
do choque de qualquer origem, embora os valores ideais possam variar de paciente para paciente, depen-
dendo da idade e história prévia de hipertensão, insuficiência cardíaca, entre outros fatores. Além disso,
o aumento da pressão arterial além do valor “ideal” será associado com outras intervenções que podem
ser prejudiciais. Para cada paciente, um equilíbrio precisa ser estabelecido entre alcançar uma pressão
arterial adequada e limitar os efeitos adversos associados com a administração de fluidos e vasopressor.
Identificar esse equilíbrio se torna mais difícil pela falta de uma medida global ou regional clara de ade-
quação da pressão arterial.
Correa e cols., em 2013, demonstraram em um modelo experimental de sepse induzida que uma PAM mais
baixa (50-60 mmHg) foi associada a um aumento da incidência de lesão renal aguda (LRA), mas uma PAM mais
elevada (75-85 mmHg) foi associada a um equilíbrio de fluidos mais positivo e maior caga de vasopressor43.
Vasopressores inevitavelmente podem causar vasoconstrição, e vasoconstrição excessiva tem dois pro-
blemas: um é que ela pode alterar a microcirculação e interferir com os mecanismos básicos que regulam
a distribuição do fluxo sanguíneo na periferia. O segundo problema é que a vasoconstrição pode aumentar
a pós-carga ventricular direita e esquerda e resultar no prejuízo da função ventricular esquerda.
Um dos problemas-chave na definição da pressão arterial “ideal” em pacientes críticos é que as me-
didas globais de adequação (DC, SVcO2, DO2 etc.) são inadequadas e a perfusão da microcirculação pode
ficar prejudicada apesar da restauração destes parâmetros globais para valores aparentemente “normais”.
Técnicas de avaliação e controle da microcirculação podem ajudar na determinação da pressão arterial
“ideal” no futuro, mas estas permanecem experimentais. A. Thooft e cols., em 2011, relataram que o
uso da noradrenalina para aumentar PAM de 65 mmHg até 85 mmHg foi associado com melhora do débito
cardíaco, melhora da função microvascular e diminuição do lactato sanguíneo44. A resposta microvascu-
lar diante das alterações na PAM variou entre os pacientes e ao longo do tempo, este dado suporta uma
abordagem mais individual para alvos PAM.
Cada vasopressor tem um perfil específico para a atuação hemodinâmica, metabólica e efeitos imuno-
moduladores (adversos), mas poucos estudos têm comparado diretamente os efeitos de diferentes agentes
vasopressores em pacientes com choque, em especial o choque séptico.
A influência desses fármacos sobre a perfusão de vários órgãos depende do grau de hipotensão. Assim,
a norepinefrina que é conhecida por diminuir o fluxo esplâncnico nos pacientes ligeiramente hipotensos,
nos pacientes em choque grave, onde a perfusão dos tecidos é mínima, pode até melhorar o fluxo devido
à melhora hemodinâmica que pode induzir.
Otimização do DC
Os agentes inotrópicos são utilizados para melhorar a contratilidade do miocárdio e, portanto, para
tentar melhorar o débito cardíaco, especialmente quando os fluidos por si só não puderam restaurar a
perfusão tecidual adequada. No entanto, a administração demasiada de um agente inotrópico, tal como
dobutamina, pode aumentar o risco de isquemia do miocárdio.
O emprego de um inotrópico é essencial no controle do choque cardiogênico, mas deve ser usado com
cautela, uma vez que uma das causas mais prevalentes de choque cardiogênico é a isquemia coronariana.
Outros agentes inotrópicos podem ser considerados se a resposta à dobutamina é insuficiente. Novos
agentes inotrópicos, tais como os inibidores da fosfodiesterase ou levosimendan, têm algumas proprie-
dades vasodilatadoras, que podem causar redução da pressão de enchimento ventricular e da RVP. Es-
ses agentes podem, por conseguinte, não ser adequados em doentes com choque séptico, nos quais a
Ponto 45 - Choque | 1019
resistência vascular sistêmica já é frequentemente reduzida. Além disso, esses agentes possuem uma
meia-vida de eliminação prolongada, o que torna a sua utilização bastante complicada em pacientes com
doença aguda. Existem poucos estudos de alta qualidade comparando esses agentes e até mesmo o uso
de dobutamina é controverso. No entanto, mais uma vez, a abordagem do “melhor” agente inotrópico
é claramente uma falácia. Uma abordagem personalizada, com um agente selecionado de acordo com o
estado hemodinâmico do paciente e da sua resposta é o mais adequado.
Os vasodilatadores podem ajudar quando se está frente a uma elevada RVP, mas são de uso limitado
na presença de hipotensão significativa. A nitroglicerina poderia ser considerada no choque cardiogênico,
quando a origem do mesmo é a isquemia coronariana. A vasodilatação pode, teoricamente, diminuir a va-
soconstrição profunda, abrindo a microcirculação. No entanto, estudos randomizados controlados usando
nitroglicerina neste cenário têm apresentado resultados conflitantes. Isto se deve possivelmente a inten-
sidades diferentes de hipotensão arterial em que foi utilizada.
A administração de fluidos pode ser menos prejudicial para o miocárdio do que os agentes vasoconstritores
e inotrópicos, contudo pode induzir edema importante. O excesso de fluido pode resultar em edema periférico
e sistêmico, especialmente se houver insuficiência renal ou hepática associada que impeçam a eliminação de
fluidos pelos rins. Edema pulmonar pode alterar as trocas gasosas, e edema sistêmico pode alterar a função
do órgão. Assim, fluidos podem ser bons para os rins, mas ruins para os pulmões. Um balanço hídrico positivo
tem sido associado com piores resultados em diferentes grupos de pacientes críticos45. Mais recentemente, Vi-
laça de Oliveira e cols., em 2015, demonstraram em nossa unidade de terapia intensiva que a persistência de
um balanço hídrico positivo ao longo do tempo foi fortemente associada a uma maior taxa de mortalidade em
pacientes sépticos e não foi capaz de diminuir o risco de insuficiência renal nos pacientes sépticos46.
Contudo, é importante ressaltar que as estratégias de administração de fluidos devem variar de acor-
do com a fase de gestão: inicialmente, a administração de fluidos deve ser generosa e pode melhorar a
microcirculação, isto se deve ao forte componente hipovolêmico inicial. Porém, com a evolução as ne-
cessidades de líquidos devem ser avaliadas através da técnica do desafio fluido e melhora hemodinâmica.
O balanço hídrico positivo em fases posteriores é prejudicial e deve ser evitado, os diferentes graus de
administração de fluidos de acordo com a fase da doença podem ser resumidos em: reanimação volêmica,
otimização volêmica, estabilização volêmica e, finalmente, de escalonamento volêmico.
Tem existido um debate considerável ao longo dos anos sobre a escolha do tipo de fluído a ser utilizado
nos pacientes criticamente doentes, incluindo aqueles com sepse, SIRS e choque séptico. É importante
ressaltar que todos os tipos de fluidos têm seus efeitos adversos. A infusão de grandes volumes de solução
salina isotônica (SF a 0,9%) pode levar à hipercloremia e isso pode aumentar o risco de lesão renal aguda
(LRA) e acidose hiperclorêmica. O Ringer 3 (Ringer sem lactato) apresenta os mesmos efeitos adversos
potenciais da salina isotônica.
Soluções cristaloides equilibradas também têm as suas limitações, o Ringer com lactato (solução de
Hartmann) é uma solução hipotônica, contudo, pode estar associada com níveis aumentados de lactato.
O plasma Lyte, é também uma solução cristaloide bem equilibrada e pode ser utilizada nos estados de
choque com segurança e sem efeitos adversos, contudo seu custo deve ser considerado.
Soluções coloidais podem estar associadas com menos edema de tecido, isto se deve ao fato que o vo-
lume infundido é mantido mais tempo no espaço intravascular, portanto menor quantidade é necessária
para se alcançar os mesmos objetivos hemodinâmicos que uma solução cristaloide. A administração do
coloide natural, a albumina humana, pode ser indicada em certos subgrupos de pacientes graves, espe-
cialmente aqueles com hipovolemia e/ou hipoalbuminemia demonstrada, mas não é universalmente aceita
em todos os pacientes criticamente enfermos.
Outras soluções coloides não naturais disponíveis são: gelatina e hidroxietilamido (Hidroxi Ethil Starch –
HES). Cada coloide tem seu perfil farmacocinético e farmacodinâmico diferenciado, assim como também
seus efeitos adversos. Os efeitos adversos relacionados aos coloides são: anafilaxia, insuficiência renal,
interferência na atividade das plaquetas (volume dependente) e interferência com tipagem sanguínea e
reações cruzadas.
As soluções de HES não são recomendadas em pacientes inflamados (SIRS), sepse e choque séptico, pois
os resultados de vários estudos randomizados controlados indicam um aumento do risco de insuficiência
renal aguda e piores resultados.
45.7.2. Tratamento
Os pacientes de risco são geralmente portadores de uma doença grave, comumente a sepse, internados
em uma UTI e são fáceis de identificar. Por não existir nenhum tratamento específico, a prevenção é de
extrema importância. Quando SDMOS ocorre, a correção imediata do problema de saúde básico é óbvia,
apoio ativo dos sistemas que ameaçam sucumbir, e a prevenção de outros sistemas que ainda estão em
funcionamento, é a chave para a sobrevivência.
Em pacientes graves com SDMOS, o número de sistemas de órgãos disfuncionais correlaciona com a
mortalidade evidentemente. O paciente portador de sepse grave e SDMOS tem 2,2 vezes mais probabi-
lidade de morrer do que os pacientes com sepse grave e disfunção de um único órgão. Pacientes com ≥
quatro órgãos disfuncionais têm quatro vezes mais probabilidade de morrer do que aqueles com disfunção
única de um órgão.
Como foi exposto, o choque é, em essência, uma história de sobrevivência, uma luta do organismo em
um meio adverso para preservar a vitalidade de seus tecidos mais essenciais. É uma história de ataque e
defesa, de ganho e perda, em um caleidoscópio de manobras defensivas para preservar a sobrevivência
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Anestesia em Geriatria
Yara Marcondes Machado Castiglia
Professora titular do Departamento de Anestesiologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP;
Supervisora da residência médica do CET/SBA do Departamento de Anestesiologia da
Faculdade de Medicina de Botucatu, UNESP.
INTRODUÇÃO
O envelhecimento é um processo de perda de função do organismo dependente do tempo e de uma
combinação de fatores genéticos e ambientais. Não existe uma rota única para o envelhecimento das célu-
las, mas, sim, a sinergia ou o antagonismo de vários mecanismos. As alterações fisiológicas intrínsecas do
envelhecimento são sutis e dinâmicas, embora, com o passar dos anos, venham a causar níveis crescentes
de limitações no desempenho de atividades cotidianas e ocasionar repercussões orgânicas que fazem da
anestesia no idoso algo peculiar1.
Sistema Cardiovascular
Há declínio progressivo do número de miócitos, e como o colágeno aumenta, naturalmente, a com-
placência do ventrículo deve diminuir. O sistema nervoso autônomo é substituído por tecido conjuntivo
e gordura e, assim, aparecem alterações no funcionamento do nó sinusal, disritmias atriais e bloqueios
de ramo. O endurecimento da parede dos grandes vasos trará aumento da pressão arterial sistólica e da
resistência ao esvaziamento ventricular, ocorrendo hipertrofia ventricular compensatória2.
O débito cardíaco de repouso e a fração de ejeção mantêm-se, apesar da maior pós-carga imposta
pelo endurecimento das grandes artérias. Diferentemente do adulto não idoso, no qual o débito cardíaco
aumenta pelo aumento da frequência cardíaca, no idoso, quando há maior demanda cardíaca, o débito
cardíaco eleva-se em decorrência de maior enchimento ventricular (pré-carga) e maior volume sistólico
(ele usa, portanto, o mecanismo de Frank Starling). Por causa dessa dependência da pré-carga, mesmo as
hipovolemias pouco significativas comprometerão a função cardíaca2.
O relaxamento ventricular é mais dependente de energia que a contração ventricular e, então, requer
mais oxigênio, estando mais afetado no idoso. Mesmo as hipoxemias pouco significativas, que são conse-
Sistema Respiratório
A performance respiratória começa a declinar após os 30 anos4. No idoso, são muitas as alterações
morfológicas que reduzem a eficiência respiratória. O decréscimo progressivo na complacência da parede
torácica ocorre por causa de cifose, colapso vertebral por estreitamento dos espaços dos discos interver-
tebrais e calcificação da cartilagem costal, com diminuição na mobilidade costal2,7,8.
Há diminuição da massa e da força dos músculos respiratórios e deterioração das junções neuromuscu-
lares, o que contribuirá para a redução da complacência torácica e trará declínio nas forças inspiratória
e expiratória máximas8.
As fibras de elastina nos bronquíolos rompem-se e se perdem, ocorrendo perda da elasticidade pul-
monar; os poros de Kohn coalescem e os alvéolos se alargam e se achatam internamente, de modo que
o pulmão ainda perde mais em recolhimento elástico, e os ductos alveolares se dilatam. O conteúdo de
surfactante e suas propriedades, entretanto, não é afetado9. Desse modo, haverá aumento da compla-
cência alveolar e do colapso das pequenas vias aéreas, com subsequente ventilação alveolar irregular e
aprisionamento de ar. A ventilação alveolar irregular leva à alteração da relação ventilação-perfusão, que
determinará diminuição na pressão parcial de oxigênio arterial – aproximadamente 0,3 a 0,4 mmHg por
ano. A pressão parcial de CO2 permanece inalterada, apesar do maior espaço morto, em parte pelo de-
créscimo na produção de CO2 que acompanha a menor taxa de metabolismo basal2.
Entre os volumes e as capacidades pulmonares: aumentam o volume corrente (pouco), o volume de re-
serva inspiratório (pouco), a capacidade inspiratória, o volume de reserva expiratório, o volume residual
e a capacidade residual funcional, bem como a complacência pulmonar à capacidade residual funcional
e a resistência das vias aéreas; diminuem a capacidade vital, a capacidade vital forçada, o volume expi-
ratório forçado em um segundo (VEF1), o índice de Tiffeneau e o pico de fluxo expiratório, bem como a
complacência da parede torácica à capacidade residual funcional; não se alteram a pressão pleural média
e a capacidade pulmonar total4.
O controle da ventilação também está alterado, tanto a resposta à hipercapnia (40%) quanto à hipóxia
(50%), podendo ser por declínio na função dos quimiorreceptores centrais e periféricos2.
Há declínio na habilidade de proteção do sistema respiratório contra as agressões do meio ambiente e,
assim, as infecções surgem. A função das células T decresce gradualmente, o clearance mucociliar está
diminuído, assim como a função de deglutir (músculo esquelético da garganta enfraquecido), o que predis-
põe o idoso à aspiração para o pulmão de conteúdo alimentar ou de água e, inclusive, de vômito10. É desse
modo que o idoso apresenta aumento de frequência e de gravidade de pneumonias, embora também pelo
aumento da colonização orofaríngea de organismos Gram-negativos. Má conservação da dentição e má
higiene oral seriam fatores que contribuiriam para esse quadro.
Ponto 46 - Anestesia em Geriatria | 1029
Sistema Renal
Os néfrons esclerosam-se a partir dos anos 40, e aos 85 anos aproximadamente 40% já não funcionam
mais, ocorrendo atrofia das arteríolas aferentes e eferentes e decréscimo no número de células dos túbu-
los renais. Como consequência, o fluxo sanguíneo renal cai em aproximadamente 50%. Do ponto de vista
funcional, o ritmo de filtração glomerular (RFG) também deve estar diminuído em 45% aos 80 anos. A
creatinina sérica, entretanto, não deve se alterar, uma vez que sua produção está diminuída em razão da
menor massa muscular do idoso. A função tubular renal também é menor no idoso.
Caem a habilidade de conservar íon sódio e excretar íon hidrogênio e a regulação dos fluidos e do equi-
líbrio ácido-base. Como o rim do idoso não consegue compensar as perdas de fora dos rins de sódio e água
pelo mecanismo de sempre, de retenção renal de sódio, maior concentração urinária e sede, pode ocor-
rer desidratação. As alterações seriam devidas à diminuição da atividade do sistema renina-angiotensina
e da resposta ao hormônio antidiurético. A menor sensação de sede pode ser por alterações da função
dos osmorreceptores do hipotálamo. A hipervolemia também seria observada no idoso em decorrência do
menor RFG e da menor função do segmento do néfron responsável pela diluição. Esse fato exacerba-se no
pós-operatório, com maior liberação do hormônio antidiurético2.
Para a avaliação laboratorial do RFG, realiza-se o clearance de creatinina, que não é exame de rotina. Pode-se
estimar a função renal no pré-operatório pelo clearance de creatinina obtido pela fórmula de Cockroft e Gault11:
140 – idade (em anos) x peso (em kg)
RGF =
72 x (creatinina sérica (em mg/dL)
Na bexiga, há maior conteúdo de colágeno e, portanto, menor distensão e dificuldade no enchimen-
to. Na mulher, haverá incontinência urinária por diminuição nos níveis de estrogênio, com redução da
resposta tecidual a esse hormônio, ocorrendo alterações no esfíncter uretral. No homem, a hipertrofia
prostática dificulta o esvaziamento da bexiga. Todos esses fatores determinam incontinência urinária
em aproximadamente 10% a 15% de idosos da população geral e em 50% daqueles institucionalizados. Há
maior prevalência de bacteriúria assintomática (10% a 50%), dependendo do sexo, do nível de atividade,
de doenças concomitantes e local da residência. Desse modo, passa a ter importância o exame de urina
dessa população no pré-operatório2.
Sistema Gastrintestinal
Esse sistema está bem preservado na população idosa saudável. O esvaziamento gástrico pode estar retar-
dado, mas, clinicamente, não tem importância. No pós-operatório, pode ser importante se houver vômitos,
porque, então, não é incomum a aspiração secundária à atonia que passa despercebida. Subnutrição e má
nutrição são problemas comuns, porém, a motilidade intestinal e a absorção de muitos nutrientes não estão
alteradas. Apenas a absorção do cálcio cai significativamente porque o rim produz menos 1,25-hidroxicolecal-
ciferol e porque há diminuição na quantidade ou sensibilidade das proteínas que se ligam ao cálcio na mucosa
intestinal. Pode ocorrer má absorção secundária a maior crescimento bacteriano. A constipação intestinal é
comum e é de causas múltiplas: estilo sedentário de vida; dieta pobre (o que também diminui as proteínas
sanguíneas); desidratação; doença do cólon ou anorretal; doenças sistêmicas; múltiplas medicações2,12.
Sistema Hepatobiliar
Há diminuição do número de hepatócitos, peso e tamanho do fígado. Ocorre aumento compensatório
no tamanho celular. O fluxo sanguíneo hepático também diminui. A partir dos 60 anos, ele está perto de
40% dos valores do adulto não idoso. Os agentes que requerem oxidação microssomal (reações da fase I)
antes da conjugação (reações da fase II) são metabolizados mais lentamente, enquanto aqueles que reque-
rem apenas conjugação não são muito afetados. Agentes que agem diretamente nos hepatócitos, como
a warfarina, produzem seu efeito desejado com menor dose. Situação muito importante nos idosos é a
maior incidência de pedras na vesícula biliar e as complicações relacionadas a essa situação2,13.
Sistema Nervoso
Entre 45 e 50 anos, aproximadamente, começa a ser observado declínio progressivo do peso cerebral,
o que atinge o máximo por volta dos 85 anos14. O decréscimo no volume cerebral, tanto da substância
cinzenta quanto da branca, tem etiologia multifatorial15.
Risco Cirúrgico
Durante a anamnese e o exame físico, devem-se identificar os preditores clínicos de risco cardio-
vascular, divididos em maiores (síndromes coronarianas instáveis; insuficiência cardíaca descompensada;
disritmias significativas e valvopatias graves), intermediários (angina estável; infarto agudo do miocárdio
prévio; insuficiência cardíaca compensada; diabetes mellitus, história de acidente vascular cerebral e
insuficiência renal) e menores (idade avançada – acima de 70 anos; ECG anormal; baixa capacidade fun-
cional; hipertensão arterial sistêmica mal controlada e ritmo não sinusal). Tais preditores orientam a rea-
lização de testes adicionais durante a avaliação pré-operatória21.
Na presença de preditores que oferecem maiores de risco, a cirurgia deve ser adiada, se possível, até
que tais fatores sejam compensados. Nos pacientes com preditores intermediários, mas com boa capacida-
de funcional, o risco de complicações é pequeno. Um teste não invasivo para isquemia é recomendado para
pacientes com capacidade funcional comprometida e que serão submetidos a cirurgias de maior risco. Em
pacientes com preditores menores e boa capacidade funcional, a cirurgia não cardíaca é segura21,22.
A capacidade funcional é um dos melhores preditores de risco operatório e é mensurada em equiva-
lentes metabólicos (METs). Algumas informações, de maneira indireta, podem indicar uma boa capacida-
de funcional e, quanto mais alta ela for, menor a probabilidade de complicações cardiovasculares. Entre
essas informações, destacam-se: subir um lance de escada ou uma ladeira (4 METs); realizar trabalhos
domésticos mais intensos, como lavar o chão, ou fazer caminhadas longas (4 a 10 METs); praticar esportes
(10 METs). Com relação ao método para a estratificação coronariana, além da cintilografia miocárdica com
tálio-dipiridamol, o ecocardiograma de estresse com dobutamina pode ser uma opção21-24.
No idoso, a perda da elasticidade tecidual afeta não somente o miocárdio, como todo o sistema vascu-
lar. Essa perda da elasticidade, na aorta, aumenta a impedância vascular à contração cardíaca, a pós-car-
ga e as tensões na parede ventricular. Calcificação degenerativa e degeneração mixomatosa (que pode
levar à insuficiência) afetam as válvulas mitral e aórtica. Essas alterações podem evoluir a ponto de com-
prometerem a função das válvulas cardíacas. A frequência de estenose aórtica aumenta com a idade, e é
lesão clinicamente significativa no idoso. Calcificação degenerativa progressiva é causa mais comum, em
oposição à doença reumática. A calcificação ocorre ao longo das margens do folheto da válvula, diferente
da fusão de comissuras, que ocorre na febre reumática. Por causa do enrijecimento arterial, o pulso ca-
rotídeo pode ser normal, mesmo na presença de estenose aórtica significativa, e a intensidade do sopro
não se correlaciona com a gravidade da estenose. Portanto, uma avaliação cardiológica pré-operatória
é essencial para o diagnóstico ou a avaliação do idoso doente sintomático ou com sopro sistólico aórtico
ainda não previamente avaliado. O ecocardiograma Doppler é o exame de eleição para a confirmação
diagnóstica e orientação do tratamento a ser instituído5,25,26.
Cuidados Pré-operatórios
Como regra geral, a maioria das medicações pode ser mantida durante a anestesia/cirurgia, se não
interferir na anestesia e no procedimento cirúrgico. Caso interfira, deverá ser avaliado o risco-benefício
de sua retirada.
Ainda não está claro se a escolha do agente anestésico na anestesia geral é importante, mas estudos
sugerem que agentes anestésicos inalatórios associam-se a menor prevalência de DCPO em relação ao
propofol59,60. Não há nenhuma evidência convincente que sugira que a anestesia geral provoque a DCPO. A
incidência de DCPO é equivalente entre os pacientes que recebem anestesia geral e regional45.
A utilização do índice biespectral (BIS) na monitorização de pacientes idosos submetidos à anestesia
tem se mostrado uma ferramenta útil na redução da incidência de DCPO. A monitorização com BIS, com
manutenção do índice entre 40 e 60, é capaz de reduzir a dose da infusão de propofol em até 21% e dos
agentes anestésicos inalatórios em até 30%, o que resulta em menor incidência de DCPO, mesmo após três
meses de pós-operatório61. Em outro estudo, um nível mais profundo de anestesia geral, com BIS de 39
em comparação com o BIS de 51, associou-se a melhor desempenho cognitivo de quatro a seis semanas no
pós-operatório, particularmente no que diz respeito à capacidade de processar informação62.
O tratamento da DCPO deve ser iniciado pelo conhecimento das causas possivelmente envolvidas no
processo. Exames de triagem inicial devem ser solicitados, como glicemia; eletrólitos sanguíneos; ga-
sometria arterial; RXT; hemograma e hemocultura. Avaliar e tratar a dor adequadamente e suspender
medicamentos potencialmente implicados, atentando para o estabelecimento medicamentoso adequado
no pós-operatório imediato. O haloperidol, na dose de 0,5 a 1 mg por via venosa a cada 15 minutos ou
2 a 10 mg por via intramuscular, pode ser empregado no caso de agitação psicomotora. Atentar para a
ocorrência de sedação excessiva com necessidade de suporte respiratório. A meia-vida de eliminação do
haloperidol no idoso pode chegar a 72 horas63.
Anestesiar pacientes idosos é tarefa que exige conhecimento de suas alterações fisiológicas, além de suas
doenças, e avaliação pré-anestésica completa. A indicação da técnica anestésica a ser utilizada não difere
daquela para indivíduos mais jovens, porém, a seleção de fármacos e a adequação de doses são fundamen-
tais. Outros cuidados, como hidratação equilibrada, posicionamento adequado na mesa cirúrgica e preven-
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Anestesia em Pediatria
Luciana Cavalcanti Lima
Doutora em anestesiologia – UNESP;
Professora do Curso de Medicina da Faculdade Pernambucana de Saúde (FPS);
Anestesiologista do Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP - PE).
INTRODUÇÃO
O objetivo deste tópico é descrever as peculiaridades da anatomia e da fisiologia do recém-nascido
(RN) e da criança, evidenciando que as crianças não são adultos pequenos. Na faixa etária pediátri-
ca, existem diferenças importantes. É marcante o contraste entre um RN que pesa 1 kg e um ado-
lescente obeso com peso superior a 100 kg. Menos óbvias, no entanto, são as diferenças em termos
de proporção.
(Adaptado de Holliday MA. Fluid therapy for children: facts, fashions and questions5.)
A água é o componente mais importante do corpo, constituindo 70% do peso corpóreo do RN a termo e
80% do peso do pré-termo, variando inversamente com o conteúdo de gordura corporal. A composição da
água, assim como, a sua proporção nos compartimentos (Tabela 47.2), varia conforme o desenvolvimento
da criança. Mas a osmolaridade (concentração de soluto por unidade de solvente) de cada compartimento,
independentemente da idade, é constante em torno de 280-300 mOsm.L-1 4.
Tabela 47.2 - Composição corporal nas diversas faixas etárias
ACT (% peso) 80 78 65 60 60
LEC (% peso) 50 45 25 20 20
LIC (% peso) 30 35 40 40 40
ASC = área de superfície corporal; ASC/Peso = relação da área de superfície corporal e peso; ACT = água corporal total; LEC =
líquido extracelular; LIC = líquido intracelular.
(Adaptado de Cunlife M. Fluid and electrolyte management in children4.)
Sistema Cardiovascular
O coração da criança tem pouco tecido muscular (apenas 30% de tecido contrátil) e muito tecido co-
nectivo. Os miócitos e as miofribrilas são desorganizadas, as proteínas contráteis (actina e miosina), ima-
turas e as organelas possuem baixas reservas de cálcio, determinando um coração menos complascente
com contração menos eficiente. No período neonatal, o coração trabalha no limite superior da Lei de
Frank-Starling, ou seja, o aumento da pressão intracardíaca não determina aumento na contratilidade ou
no volume de ejeção. O débito cardíaco depende mais da frequência cardíaca do que do volume sistólico,
pois o volume de ejeção é limitado pela baixa complascência do miocárdio. Dessa forma, elevações da
pré-carga decorrentes de sobrecarga hídrica não são bem toleradas, podendo ocasionar falência biventri-
cular, insuficiência cardíaca congestiva e parada cardíaca6,7. A Tabela 47.3 apresenta as diferenças fisio-
lógicas cardiovasculares de acordo com a faixa etária.
PA (mmHg) 55 x 40 65 x 40 95 x 65 100 x 70
Volemia (mL.kg-1) 80 - 90 80 75 - 80 70 - 75
Vias Aéreas
Durante o desenvolvimento do neonato até por volta dos 10 anos, as vias aéreas sofrem diversas modi-
ficações com relação a tamanho, forma, posição e consistência. O conhecimento dessas particularidades
é essencial para uma correta avaliação, maior segurança e adequado manuseio da via aérea pediátrica
pelo anestesiologista.
O posicionamento da cabeça é extremamente importante durante o manejo das vias aéreas. O ideal é
obtido com o pescoço em posição neutra ou em leve extensão. Devido ao grande tamanho da cabeça e à
proeminência occipital, principalmente em prematuros, neonatos e lactentes, a utilização de um pequeno
coxim sob os ombros ou rodilha para acomodar o crânio evita a flexão do pescoço, melhorando a ventila-
ção sob máscara facial e a visualização da via aérea durante a laringoscopia8.
Na criança, o nariz possui relativamente maior quantidade de mucosa e tecido linfoide do que no adulto e
as narinas apresentam diâmetros menores. Durante o desenvolvimento, a remodelação do palato e as altera-
ções na base do crânio aumentam a profundidade da nasofaringe, produzindo alargamento da via aérea na-
sal na idade adulta. Dessa forma, a população pediátrica apresenta maior resistência ao fluxo de ar e maior
predisposição à obstrução das vias aéreas superiores (VAS) na presença de secreções, edema ou sangue. Até
os 4 meses de vida, a distância entre a úvula e a epiglote é pequena, tornando a criança um respirador nasal
obrigatório. Isso ocorre, em parte também, pela menor resistência ao fluxo de ar quando comparada com a
via oral. A habilidade para respirar através da boca é dependente da idade e ocorre por volta do terceiro ao
quinto mês de vida. A adenoide, localizada no teto e na parede posterior da nasofaringe, é uma estrutura
hipertrofiada na primeira infância que, muitas vezes, causa obstrução à passagem do ar pela via nasal, além
de sangramento, edema e fragmentação quando manipulada durante a intubação nasal8.
A inervação sensorial da orofaringe é derivada dos nervos glossofaríngeo e laríngeo superior, ramo do
vago, transmitindo impulsos aferentes a partir da base da língua e da valécula. Crianças abaixo dos 2 anos
apresentam o sistema nervoso simpático pouco desenvolvido, com predominância do tônus parassimpá-
tico, sendo mais propensas a bradicardia reflexa à estimulação da faringe durante a laringoscopia direta
(LD) ou intubação traqueal (IT) através das cordas vocais8.
Nas crianças, tanto a mucosa como a submucosa da laringe são estruturas ricamente vascularizadas
com abundante tecido linfático, o que torna a fossa laríngea, a epiglote e a glote mais suscetíveis a edema
e sangramentos durante a manipulação das vias aéreas. Nos neonatos, a epiglote é estreita, mais longa,
menos tônica, apresenta a forma de ômega (Ω) e localiza-se mais angulada ao eixo da traqueia. Todas
essas características dificultam a elevação da epiglote durante a LD quando se utilizam lâminas curvas. A
utilização de lâminas retas facilita a elevação da epiglote e a visualização da abertura glótica. É somente
por volta dos 4 ou 5 anos que a epiglote torna-se firme o suficiente para permitir uma adequada visuali-
zação das cordas vocais com a utilização de lâminas curvas8.
As cordas vocais verdadeiras inserem-se mais anteriormente na criança quando comparada com os
adultos e apresentam fechamento mais inferior que no adulto, portanto, a ponta do tubo traqueal (TT)
deve prosseguir no alto da comissura anterior das pregas vocais9.
A mandíbula é relativamente hipoplásica e a língua é grande em relação à cavidade oral e ao espaço
mandibular anterior, local onde ela se acomoda durante a LD, favorecendo a obstrução da via aérea e
Neonato Adulto
V T (mL.kg-1) 6 6
VD (mL.kg-1) 2 2
VO (mL.kg-1) 12 7
CPT (mL.kg-1) 62 80
CRF (mL.kg-1) 30 30
Tabela 47.6 - Variações das funções pulmonares nas diversas faixas etárias
FR (ipm) 40 30 25 20 18 16 12
VA (mL.
385 1.245 1.760 1.800 2.195 2.790 4.140
min-1)
Termogênese
Prevenir a hipotermia é crucial para oferecer segurança e qualidade em anestesia pediátrica, além de
exigir conhecimento e atenção especial. Os pacientes pediátricos são particularmente suscetíveis à hipoter-
mia, principalmente, os neonatos e lactentes, devido à combinação de perda excessiva, resposta termor-
reguladora ineficiente e menor capacidade de gerar calor. Em condições ambientais similares, os neonatos
perdem mais calor através da pele que os adultos devido a desvantagens anatômicas, como maior relação
superfície/massa corporal (razão de 0,4 no adulto x 1 no neonato); panículo adiposo delgado, menor conteú-
do de queratina na pele e cabeça grande. O maior segmento cefálico representa 20% da superfície corpórea,
além disso, a cabeça é desprotegida, com pouca cobertura capilar e ossos delgados, sendo responsável por
85% das perdas de calor, evidenciando a necessidade de proteção da cabeça no intraoperatório16.
A resposta termorregulatória é limitada em neonatos e lactentes, e essa menor eficiência diminui a ha-
bilidade dessa população de gerar calor com maior risco de hipotermia. O limite inferior de temperatura
crítica no adulto é em torno de 28 °C, enquanto no RN é de 32-35°C, dependendo de seu peso16.
As perdas de calor nas crianças submetidas a procedimentos anestésico-cirúrgicos ocorrem por uma
série de razões, como exposição das cavidades e dos órgãos às baixas temperaturas da sala operatória,
infusão de fluidos frios, ventilação com gases frios e não umidificados e consequências diretas da aneste-
sia sobre a resposta termorregulatória. De maneira geral, a radiação é o principal mecanismo de perda de
calor tanto na criança acordada ou sob anestesia. Em ambiente termoneutro, 39% das perdas de calor no
neonato ocorrem por radiação. Numa sala operatória (SO) a 22°C, 70% das perdas ocorrem por radiação.
Portanto, o aquecimento da SO reduz significativamente o gradiente de temperatura entre o ambiente e
o paciente, diminuindo as perdas por radiação.
As perdas por evaporação tendem a ser mais significativas na criança devido à alta ventilação minuto
(VM), chegando a um terço das perdas no perioperatório nessa população, principalmente quando exposta
a ventilação com ar frio e não umidificado16.
A temperatura central é um dos parâmetros fisiológicos mais rigorosamente controlados, mantida den-
tro de uma estreita variação. No indivíduo acordado, essa variação é de apenas 0,4°C, porém, esse con-
Circulação Fetal
A placenta é o órgão respiratório no período fetal. Ela possui PaO2 de 30 mmHg, substitui os pulmões
e supre as coronárias, o sistema nervoso central e os membros superiores. Os pulmões, no período fetal,
estão repletos de líquido, possuindo alta resistência vascular e recebendo apenas 10% do débito cardíaco.
A circulação fetal possui um débito cardíaco combinado, ou seja, tanto o ventrículo direito (VD) como o
ventrículo esquerdo (VE) ejetam sangue para a circulação sistêmica, através do forame oval (FO) e canal
arterial (CA). O ventrículo direito é responsável por dois terços do débito cardíaco, desse modo, o miocár-
dio do VD é tão ou mais espesso que o do VE antes do nascimento. Ao contrário da resistência vascular
pulmonar, a circulação sistêmica possui baixa resistência vascular devido a placenta, propiciando o shunt
direita-esquerda através do FO e CA22,23.
Circulação Pós-natal
Ao nascimento, a interrupção da circulação placentária e a expansão pulmonar desencadeiam impor-
tantes alterações circulatórias. A insuflação pulmonar desloca o líquido intra-alveolar para a circulação,
gerando um incremento na volemia do neonato. Além disso, a expansão do parênquima pulmonar aumenta
a tensão alveolar de oxigênio, diminui a resistência vascular pulmonar (RVP), aumenta o fluxo sanguíneo
pulmonar e, consequentemente, diminui a pressão nas câmaras direitas do coração. Porém, se após o
nascimento a RVP não se normaliza, é possível a persistência dos shunts D-E intracardíacos ou extracar-
díacos com consequente cianose. A ligadura do cordão umbilical leva ao aumento da resistência vascular
sistêmica (RVS), da pressão aórtica e da pressão nas câmaras cardíacas esquerdas. Tanto o aumento do
retorno venoso pulmonar como a pressão no átrio esquerdo contribuem para o fechamento fisiológico do
forame oval. O sangue ejetado na aorta, rico em oxigênio (PaO2 > 50 mmHg) e com baixa pressão parcial
de CO2, leva à contração da musculatura vascular do CA, fechando também, de forma fisiológica, esse
shunt. Durante a gestação, a manutenção do canal arterial pérvio é controlada pelo baixo nível de oxigê-
Esse padrão de circulação no neonato é conhecido como circulação transicional. Algumas mudanças
ocorrem ao primeiro movimento respiratório, enquanto outras levam horas ou dias. Até o terceiro mês de
vida, qualquer fator que leve ao aumento da RVP pode desencadear a abertura dessa comunicação, com
reaparecimento do shunt D-E através do forame oval com o retorno ao padrão fetal de circulação. Os fa-
tores que predispõem à reversão da circulação transicional para o padrão fetal são comuns em neonatos
críticos, como prematuridade; hipóxia e hipercarbia; aumento da pressão intratorácica; acidose metabó-
lica; hipotermia; hipervolemia; sepse e estresse7.
Equilíbrio Acidobásico e Hidroeletrolítico Fetal e Neonatal
À medida que ocorrem o crescimento e desenvolvimento do organismo, há aumento progressivo da
quantidade de células e, consequentemente, do LIC como um todo. O intracelular é composto principal-
mente de potássio (k+), fosfatos orgânicos e proteínas e, o extracelular, de sódio (Na+), cálcio (Ca+2), mag-
nésio (Mg+), cloreto (Cl-), bicarbonato (bic) e ácidos orgânicos25 (Tabela 47.7).
Tabela 47.7 - Composição dos líquidos corporais
Líquido extracelular (LEC) Líquido intracelular (LIC)
Osmolalidade (mOsm) 290 - 310 290 - 310
Cátions (mEq/L) 155 155
Na +
138 - 142 10
K+
4,0 – 4,5 110
Ca+2 4,5 – 5,0 -
Mg +2
3 40
Ânions (mEq/L) 155 155
Cl -
103 -
HCO3 -
27 -
HPO4 -2
- 10
SO4 -2
- 110
PO4- 2 3 -
Ácidos orgânicos 6 -
Proteínas 16 40
(Adaptado de McClain CD. Fluid management. In: Coté CJ .)
6
Distúrbios do sódio
Hiponatremia: caracterizada por Na+ sérico < 130 mEq.L-1, apresenta maior gravidade com níveis de
sódio abaixo de 120 mEq.L-1, necessitando correção imediata e cautelosa. É o distúrbio mais comum en-
contrado em pacientes instáveis, decorrendo de uma diversidade de condições clínicas.
A hiponatremia causa diminuição da osmolaridade do espaço extracelular, com movimento de líqui-
dos do extracelular para o intracelular, ocasionando edema celular. O edema no SNC é responsável pela
maioria dos sintomas da hiponatremia, que incluem: anorexia; náuseas e vômitos; mal-estar; letargia;
confusão; agitação; cefaleia; crises convulsivas; coma e diminuição de reflexos24,26.
Correção excessivamente rápida da natremia pode desencadear mielinólise central pontina. Portanto,
recomenda-se aumentar o sódio sérico em 10 a 12 mEq.L-1 a cada 24 horas, evitando-se bolus de sódio.
Exceção nos casos sintomáticos de hiponatremia aguda, cursando com crise convulsiva; nestes, recomen-
da-se administrar NaCl 3% (1 mL = 0,5 mEq); geralmente há melhora após a infusão de 4 a 6 mL.kg-1.
Em hiponatremia com Na+ sérico < 120 mEq.L-1, existe risco iminente de sintomatologia grave; recomen-
da-se utilizar a fórmula a seguir para correções mais rápidas:
Reposição Na+ (mEq) = ([Na+] desejado – [Na+] encontrado) x 0,6 x peso (kg)
Para correções seguras, o sódio desejado deve ser 125 mEq.L-1 e a infusão realizada em 4 horas, respei-
tando a velocidade máxima de infusão de sódio de 5 mEq.kg-1.h-1.
Hipernatremia: é definida por sódio sérico acima de 145 mEq.L-1, embora, às vezes, seja definida por
sódio acima de 150 mEq.L-1. Resulta da interação de três mecanismos: aporte deficiente de água, aporte
excessivo de sal e existência de perdas diluídas em relação ao plasma24,26.
O quadro clínico, na maioria das crianças, inclui o quadro típico de desidratação. Como há desvio de
água para o intravascular, o quadro de desidratação se instala mais tardiamente e a criança mantém a diu-
rese. Devido às alterações no SNC, as crianças podem apresentar irritabilidade; letargia; fraqueza; coma;
hipertonia muscular, hiperreflexia e convulsões. Pode ocorrer hemorragia cerebral por diminuição do vo-
lume encefálico e estiramento de vasos intracerebrais (ocorre na instalação aguda) e, ainda, complicações
trombóticas devido à hipercoagulabilidade sanguínea24,26.
O tratamento visa à restauração da volemia e da osmolaridade dos líquidos corporais; a diminuição do
sódio não deve ultrapassar 10 mEq.L-1 por dia. Exceção nos casos em que houve hipernatremia sabidamen-
te aguda (menor que 12 horas). Mensuração frequente de sódio sérico está indicada para ajustar a terapia
endovenosa. Se ocorrer crise convulsiva na evolução, provavelmente houve edema cerebral por queda
inadvertidamente rápida do Na+, tratado com infusão de NaCl a 3% 1 a 2 mL/kg em bolus25,27.
Distúrbios Ácido-base
Acidose metabólica: é um distúrbio do metabolismo acidobásico caracterizado por acúmulo de radi-
cais ácidos (H+) de origem endógena ou exógena com consumo de bases (HCO3) e diminuição do pH sanguí-
neo. Diagnóstico laboratorial consiste em pH < 7,4; Bic < 24 e PCO2 > 40 mmHg; AG = Na+ – (Bic + Cl-) = 12
± 2. O tratamento está fundamentado na hidratação e correção do bicarbonato de sódio, indicado quando
pH < 7,2; Bic < 12; usando a fórmula:
Bic (mEq) = peso x BE x 0,3
Corrigir em 3-4 horas, se pH < 7,0: corrigir a metade na primeira hora e o restante em 3 horas. Evitar
o uso de bicarbonato em bolus. Lembrar que o aumento de 0,1 no pH pode levar à diminuição de 0,3 a
0,5 mEq.L-1 de potássio24,26.
Alcalose metabólica: geralmente ocorre com outras alterações de fluidos e eletrólitos (potássio). O
diagnóstico laboratorial revela pH > 7,4, Bic > 24 e PCO2 < 40 mmHg. O tratamento consiste em eliminar a
A marca do minuto de ouro (60 segundos) para concluir os passos iniciais, reavaliar e iniciar a ventilação
(se necessária) está mantida para enfatizar a importância de evitar atrasos desnecessários no inicio da ven-
tilação; é o passo mais importante para o sucesso da RCP do RN que não responder aos passos iniciais27,28.
Avaliação Periódica em Intervalos de 30 Segundos
As manobras de RCP, conforme preconizado, são guiadas pela avaliação simultânea da respiração, FC e
cor, mantendo reavaliações frequentes a cada 30 segundos27,28.
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1057
1- Respiração: observar os movimentos respiratórios e a expansão torácica.
2- Frequência cardíaca (FC): A avaliação é fundamental durante o primeiro minuto da RCP. O uso do
ECG de três derivações é aconselhável, pois os profissionais podem não conseguir avaliar com precisão a
FC por ausculta ou palpação e a oximetria de pulso pode subestimar a FC. A utilização do ECG não elimina
a necessidade de oximetria de pulso para avaliar a oxigenação do recém-nascido. A palpação do cordão
umbilical e/ou a ausculta dos batimentos cardíacos devem ser superiores a 100 bpm.
3- Cor: neonatos com boa vitalidade são róseos ou têm cianose de extremidades (acrocianose). A cia-
nose central é determinada pelo exame da face, do tronco e das membranas mucosas. A palidez pode
refletir diminuição do débito cardíaco, anemia grave, hipovolemia, acidose e/ou hipotermia.
Todas as manobras de reanimação neonatal levam em consideração os seguintes preceitos básicos:
• A (airways) - manter vias aéreas pérvias; posicionamento da cabeça e do pescoço; aspiração de via
aérea superior e, se necessário, da traqueia.
• B (breathing) - garantir a respiração por meio da ventilação com pressão positiva.
• C (circulation) - manter a circulação com massagem cardíaca e/ou uso de medicações ou fluidos.
Independentemente do sinal vital alterado, deve-se priorizar a oxigenação com estabelecimento de
adequada ventilação pulmonar.
Administração de O2 Suplementar
A adaptação neonatal é um processo gradativo. RN saudáveis a termo levam mais de 10 minutos para
atingir uma saturação de oxigênio pré-ductal > 95% e aproximadamente uma hora para que a saturação
pós-ductal seja > 95%. A cianose central (lábios, língua e região central do tronco), mesmo na vigência de
respiração espontânea e FC > 100 bpm, indica a necessidade de administração de O2 suplementar, umidi-
ficado e aquecido. A saturação de O2 entre 80% e 90% nas primeiras horas de vida é fisiológica; recomen-
da-se maior tolerância à cianose central no RN que mantém respiração, frequência cardíaca e tônus mus-
cular adequados, na sala de parto. Inicie a RCP dos RN prematuros < 35 semanas de gestação com frações
inspiradas de O2 entre 21% a 30%. Titule o O2 até atingir a saturação de O2 pré-ductal e se aproximar do
intervalo alcançado por RN saudáveis nascidos a termo.
Não é recomendado iniciar a RCP de RN prematuros com alta taxa de O2 (≥ 65%) para não expor os RN
prematuros a O2 adicional, sem que os dados demonstrem um benefício comprovado. Pode-se conside-
rar o uso de uma máscara laríngea como alternativa à intubação traqueal, caso não se obtenha êxito na
ventilação com máscara facial. A máscara laríngea é recomendada durante a ressuscitação de RN com 34
semanas ou mais de gestação, quando a intubação traqueal é inviável28,29.
Ventilação com Pressão Positiva (VPP)
A ventilação pulmonar é o procedimento mais simples, importante e efetivo na reanimação do RN na
sala de parto. A reversão da hipoxemia, acidose e bradicardia depende da insuflação adequada dos pul-
mões após o nascimento. Após os passos iniciais, se o RN não respira ou o faz de maneira irregular, a ven-
tilação pulmonar deve ser priorizada. A recomendação é iniciar a VPP acompanhada de oxigênio a 100%.
As indicações de VPP incluem apneia ou respirações irregulares, FC < 100 bpm, mesmo se o RN estiver
respirando e houver cianose central persistente apesar de O2 inalatório.
Em termos da adequação da VPP, a elevação da FC é o desfecho mais importante, seguida de melhora
da coloração e do tônus muscular, para posteriormente ocorrer o reestabelecimento da respiração es-
pontânea. Caso não haja recuperação do neonato, verifique todos os passos realizados; ajuste a máscara
facial; adapte a pressão de insuflação; veja o funcionamento da unidade ventilatória, a oferta de oxigênio,
se há obstrução das vias aéreas por posicionamento inadequado ou secreção e a presença de distensão
1058 | Bases do Ensino da Anestesiologia
gástrica que possa estar interferindo com a ventilação. Se o neonato mantém FC < 100 bpm, está indicada
a intubação traqueal. RN prematuros que respiram espontaneamente com desconforto respiratório podem
ser inicialmente auxiliados, com pressão positiva contínua nas vias aéreas em vez de intubação de rotina
para a administração de VPP28,29.
Intubação
As indicações de intubação traqueal são para líquido amniótico meconial; RN deprimido; ventilação
bolsa/máscara ineficaz; ausência de respiração espontânea efetiva; administração endotraqueal de fár-
macos e prolongamento das manobras de reanimação. Em algumas situações especiais, recomenda-se
intubação traqueal precoce, como em RN portadores de hérnia diafragmática que necessitem de VPP, pre-
maturidade extrema (idade gestacional < 30 semanas) para a administração de surfactante e neonatos de
extremo baixo peso (< 1.000 g). Em situações de emergência, a via de intubação indicada é a orotraqueal,
e o tempo máximo para cada tentativa de intubação é de 20 segundos.
Ao ventilar prematuros, devem-se evitar insuflações pulmonares profundas que possam gerar grandes
volumes, devido ao risco de lesão pulmonar, recomendando-se a instituição de baixos níveis de PEEP, prin-
cipalmente em ventilações prolongadas. Na vigência de VPP através de bolsa-tubo traqueal, se o neonato
não recuperar os sinais vitais, outras intercorrências clínicas devem ser consideradas, como pneumotórax.
Havendo deterioração do estado geral e manutenção de baixas frequências cardíacas (< 60 bpm), após 30
segundos de ventilação efetiva, o próximo passo será iniciar a massagem cardíaca27,28.
Massagem Cardíaca
A massagem cardíaca externa (MCE) diminui a eficácia da ventilação, devendo somente ser iniciada
quando a expansão e ventilação pulmonar estiverem bem estabelecidas. As indicações para iniciar a MCE
são: FC < 60 bpm, após ventilação adequada com O2 suplementar por 30 segundos e assistolia. Nessas si-
tuações, sempre considerar a intubação do RN. Para assegurar uma ventilação efetiva e facilitar a coor-
denação entre a ventilação e a massagem cardíaca, a relação ventilação/massagem preconizada é de 1
ventilação para 3 massagens, realizando um total de 30 ventilações e 90 compressões por minuto. Para
adequada MCE no neonato, recomenda-se a técnica de polegares (preferível) ou de dois dedos (aceitável).
A compressão deve ser exercida de forma vertical ao terço inferior do esterno, sendo suficiente para de-
primir o tórax a uma profundidade de quase um terço do diâmetro anteroposterior da caixa torácica. Para
garantir um DC adequado, a duração da fase de compressão torácica deve ser ligeiramente menor que a
duração da descompressão.
Após 30 segundos de MCE e ventilação adequadamente coordenadas, avalie a FC; se for > 60 bpm,
interrompa a massagem cardíaca, mantendo a VPP até que a FC seja > 100 bpm e o RN apresente respi-
ração espontânea. Caso o RN não apresente melhora, reavalie todo o procedimento: movimento torácico
durante a ventilação; intubação traqueal; administração de O2 a 100%; profundidade da compressão torá-
cica e coordenação massagem/ventilação. Havendo deterioração do neonato e manutenção de baixas FC
(< 60 bpm), após 30 segundos de MCE e VPP com O2 a 100%, o próximo passo será iniciar a administração
de epinefrina (adrenalina). Os socorristas podem considerar relações mais altas (por exemplo, 15:2), caso
acreditem que a parada tenha origem cardíaca. Embora não existam estudos clínicos disponíveis sobre o
uso de O2 durante a RCP, o grupo de redação das diretrizes neonatais continua a endossar o uso de O2 a
100% sempre que forem aplicadas compressões torácicas. É aconselhável reduzir gradativamente a con-
centração de O2 logo que a FC se recuperar27,28.
Medicações e Fluidos
Entre as opções de vias para a administração de drogas no neonato, podemos considerar: a) cânula tra-
queal, porém, a absorção no parênquima pulmonar é lenta e imprevisível; recomenda-se usar a dose máxima;
b) a veia umbilical é a via preferencial na sala de parto, devido a facilidade de acesso; c) a via intraóssea no
neonato pode ser eventualmente empregada como via alternativa ao acesso venoso direto; d) as veias perifé-
ricas não são boas opções para o acesso venoso, devido à dificuldade de visualização no RN bradicárdico27,28.
1. Epinefrina (adrenalina)
A principal indicação é FC < 60 bpm, após 30 segundos de ventilação e MCE adequadas (Classe I). Dose:
0,01-0,03 mg.kg-1, a cada 3 a 5 min, por via venosa, acompanhada de um “bolus” de 1 a 2 mL de soro
fisiológico. Enquanto o acesso venoso é obtido, dose elevada (0,03 até 0,1 mg.kg-1), através do tubo en-
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1059
dotraqueal (ET), pode ser considerada, seguida de “bolus” de 0,5 a 1,0 mL de soro fisiológico e VPP para
que o fármaco alcance os pulmões (Classe Indeterminada). Vale lembrar que, quando não há reversão da
bradicardia com o uso da adrenalina, antes de repetir ou administrar outras medicações, é importante
verificar a efetividade de VPP e MCE, o coração em hipóxia responde mal à adrenalina.
2. Bicarbonato de Na+ a 8,4%
Somente indicado na acidose metabólica confirmada (Classe II a) em dose de 2 mEq.Kg-1 (4 ml.kg-1 da
solução 4,2%), EV lento, 1 mEq.Kg-1.min-1. O bicarbonato de sódio é indicado de modo excepcional (Classe
IIb), na suspeita de acidose metabólica grave durante a reanimação prolongada, quando não houver res-
posta às outras medidas terapêuticas e com a segurança de que a ventilação e a massagem estão sendo
aplicadas com a técnica correta. Lembrar que a hiperosmolaridade e a geração de gás carbônico promo-
vidas pelo bicarbonato podem ser deletérias às funções miocárdica e cerebral do neonato.
3. Expansores de volume
Os expansores de volume estão indicados na reanimação do RN com perda sanguínea comprovada du-
rante o parto ou em neonatos com sinais evidentes de choque hipovolêmico como palidez, má perfusão e
pulsos fracos. O expansor de escolha é a solução cristaloide isotônica (soro fisiológico 0,9% ou Ringer com
lactato), na dose de 10 ml.kg-1, por via venosa rápido, em 10 minutos.
4. Naloxona
A naloxona está formalmente indicada em neonatos com depressão respiratória decorrente do uso de
opioides materno, em até 4 horas antes do início do trabalho de parto.
5. ABC da Cianose
Hipoxemia transitória e acidose são bem toleradas por neonatos normais e a termo, entretanto, a ma-
nutenção de hipoxemia e acidose impede a transição fisiológica entre o período fetal e neonatal. Não
havendo sucesso na reanimação, após verificação da efetividade de todas as manobras, devem-se somar
esforços, objetivando o estabelecimento do diagnóstico das possíveis causas de cianose. Recomenda-se
estratégia de avaliação baseada no suporte avançado de vida em neonatologia, que preconiza o ABC da
cianose (Quadro 47.2)27,28.
Quadro 47.2 – ABC da cianose
Prematuridade
RN prematuros podem ser classificados em: limítrofes (entre 36 e 37 semanas); moderados (entre 31 e
35 semanas) e graves (entre 24 e 30 semanas). Estes apresentam maior suscetibilidade à apneia devido à
menor resposta do centro respiratório à hipercarbia e hipoxemia e menor capacidade de manter a tempe-
ratura. Outros fatores aumentam o risco, como maior propensão à insuficiência respiratória por causa da
pequena quantidade de fibras resistentes à fadiga; instabilidade da caixa torácica pela alta complacência
e baixo volume de fechamento, que leva ao colapso alveolar na expiração, predispondo os alvéolos à hi-
poxemia e atelectasia.
Entre os fatores de risco para apneia pós-operatória, os mais enfatizados são idade gestacional; idade
pós-conceptual (gestacional + pós-natal = idade pós-conceptual em semanas); anemia; presença de bron-
codisplasia e técnica anestésica29.
Sistema hematopoético
Anemia
É controversa a realização de cirurgias eletivas em crianças anêmicas. Deve-se considerar o tipo e o
porte cirúrgico e os procedimento de emergência. Muitos anestesistas pediátricos recomendam hemató-
crito > 25%, mas em algumas circunstâncias especiais (anemia fisiológica entre o segundo e quarto mês de
vida) hematócrito mais baixo é aceitável se neonatos a termo e adequados para a idade gestacional (AIG).
Se existe perspectiva de sangramento intraoperatório, a causa de anemia deve ser investigada e tratada,
e o procedimento cirúrgico eletivo deve ser postergado até o restabelecimento do hematócrito30.
Anemia Falciforme
A anemia falciforme acomete mais crianças da raça negra, que requerem avaliação e preparação es-
pecial. A presença de anemia falciforme (HbSS), ou traço falcêmico (HbSs), exige alterações do manejo
anestésico. É importante obter uma história completa sobre a incidência familiar, crises de falcização e
exames para caracterizar a gravidade da hemoglobinopatia, como a eletroforese de hemoglobina. Crian-
ças portadoras de HbSC (duplo heterozigoto) são potencialmente mais vulneráveis aos efeitos da hipoxe-
mia. Sugere-se que crianças com HbSC que se submetem a procedimentos abdominais ou de grande porte
se beneficiem de transfusão pré-operatória, entretanto, procedimentos de pequeno porte não necessitam
desse tipo de manuseio30.
Metabolismo
Diabetes Mellitus
A conduta perioperatória depende do tipo, da extensão e da urgência da cirurgia. Em caso de cirurgias
eletivas, recomenda-se que a avaliação deva ser feita com no mínimo 10 dias de antecedência para oti-
mização glicêmica e metabólica, devendo ser retardada até que esse objetivo seja atingido. A avaliação
requer dosagens de glicemia, eletrólitos e hemoglobina glicosilada (HbA1c). Eletrocardiograma, raios x de
tórax e função renal serão solicitados de acordo com a suspeita clínica e em cirurgias de maior porte.
Atenção especial deverá ser dada ao grau de controle glicêmico, regime e tipo de medicamento em uso.
A insulina regular por via venosa geralmente é preferida no intraoperatório, já que a absorção subcutânea
depende do fluxo tissular, imprevisível nesse período. O uso de hipoglicemiantes orais é raro em pediatria.
Assim como no adulto, devem ser descontinuados no dia da cirurgia.
A metformina oferece risco de acidose lática, sendo interrompida 24h antes e reiniciada 48-72 horas
após, quando a função renal já estiver normalizada. Admissão hospitalar na manhã da cirurgia é frequente,
entretanto, internamento prévio é recomendável em cirurgias de maior porte. Anestesia ambulatorial po-
derá ser considerada em pacientes mais velhos, bem controlados e em procedimentos de pequeno porte. O
jejum deve ser minimizado, com a seleção para o primeiro horário cirúrgico do dia. Na véspera, o paciente
deverá receber dose usual de insulina e, no dia, a insulina só será administrada após a checagem da glicemia
e o estabelecimento do acesso venoso38.
Tratamento Crônico com Corticosteroides
Pacientes até 1 ano após uso prolongado de corticosteroides (> 2 meses) apresentam supressão do eixo
hipotálamo-hipófise-adrenal, perdendo a capacidade de responder adequadamente ao estresse periope-
ratório. Mesmo na ausência de forte evidência científica, endocrinologistas recomendam perioperatoria-
mente uma dose de estresse (2,5 – 5 mg.m²-1) de prednisona oral na noite anterior e 50 mg.m² -1 de hidro-
cortisona venosa antes ou após a indução anestésica.
Sistema Cardiovascular
A incidência de cardiopatias congênitas (CC) é menor que 1%, ocorrendo em 8-12:1000 nascidos vivos,
exceto prematuros. As mais frequentes são as acianóticas (CIV 15-20%, PCA 5-10% e CIA 5-10%) e que são
menos sintomáticas e de diagnóstico mais difícil. As alterações anatômicas mais comuns são a comunica-
ção entre as circulações sistêmica e pulmonar, ou a obstrução parcial ou total à circulação do sangue nas
câmaras cardíacas ou grandes artérias7.
O shunt é a alteração funcional mais comum nas CC e consiste no desvio de parte do sangue da circulação
sistêmica para a pulmonar (shunt E-D) ou inverso (shunt D-E). Com frequência, shunt e obstrução coexistem
em uma mesma doença. As cadiopatias adquiridas têm ocorrência variável, de acordo com a população
estudada, e doenças como febre reumática, miocardites, endocardites e outras têm maior incidência, à
medida que a criança é mais exposta aos agentes infecciosos. O anestesiologista deverá estar atento para
suspeitar, pois as CC podem permanecer assintomáticas por vários anos. A investigação é mandatória em
casos de síndromes genéticas ou malformações congênitas em outros sistemas, pela forte associação com
as alterações cardiovasculares (25%) (Tabela 47.11). Associam-se a risco cardiovascular aumentado condi-
ções gestacionais como diabetes; doenças do colágeno; lúpus eritematoso sistêmico; infecções no primeiro
trimestre de gravidez e uso de anfetaminas, lítio, álcool, progesterona e estrógeno. Antecedente de CC nos
pais e irmãos eleva o risco em 3,4 ou até 10 vezes, principalmente se a mãe e/ou mais de um familiar forem
acometidos. História de morte súbita na infância deve ser valorizada, já que a miocardiopatia hipertrófica
tem herança genética em 20% a 60% dos casos e pode cursar assintomática por anos7.
1064 | Bases do Ensino da Anestesiologia
Tabela 47.11 - Síndromes genéticas, malformações congênitas e frequência das cardiopatias congênitas
A principal alteração que auxilia o diagnóstico de CC é a presença de sopro, que deve ser dife-
renciado em patológico ou inocente. O inocente ocorre na ausência de anormalidade anatômica e/
ou funcional do sistema cardiovascular, presente em 50-70% das crianças, principalmente em idade
escolar. Suas características são: mais facilmente audíveis em estados hipercinéticos; são sistólicos
ou contínuos; seguidos por uma segunda bulha normal com seus dois componentes; nunca ocorrem
isoladamente na diástole; geralmente suave, não rude, e de curta duração; não se associam a frêmito
ou ruídos acessórios (estalidos ou cliques). O sopro tende a ser patológico quando de ocorrência iso-
lada na diástole ou contínuo, com maior intensidade, com irradiação nítida ou fixa para outras áreas
e com associação com outros sons cardíacos anormais; é recomendável que a ausculta seja feita com
a criança calma39.
A detecção de terceira e quarta bulhas (galope) é sugestiva de cardiopatia. Outros dados do exame
físico chamam atenção de anormalidades: frequência respiratória em repouso maior que 60; palidez e
sudorese fria em polo cefálico sugerem insuficiência cardíaca e estase jugular e hepatomegalia, descom-
pensação direita. Assimetria de pulso ou diferença de pressão maior que 20 mmHg entre os membros
superiores e inferiores sugere coarctação da aorta. Cianose; baqueteamento digital; circulação colateral
e alteração da perfusão sugerem hipoxemia. Alteração do padrão de crescimento; sibilância pulmonar crô-
nica e pneumonia de repetição são inespecíficos, mas comuns nas cardiopatias com hiperfluxo pulmonar.
Sintomatologia que se correlaciona fortemente com a doença cardiovascular e que deve ser valorizada na
criança com sopro são: arritmias cardíacas; cianose; crises hipoxêmicas; síncope; dor torácica; intolerân-
cia aos exercícios; taquidispneia; edema e hepatoesplenomegalia.
Alteração da ausculta no RN ou nos primeiros 6-12 meses necessita de investigação mais detalhada com
especialista. A sintomatologia da insuficiência cardíaca costuma ser pouco específica nessa faixa etária
(sudorese de polo cefálico e dificuldade durante a amamentação; icterícia prolongada e desconforto res-
piratório). Comunicação entre as circulações sistêmica e pulmonar nem sempre resulta em sopros (resis-
tência pulmonar ainda elevada), contribuindo para a dificuldade de avaliação39.
Sistema Nervoso
Crianças com risco de hipertensão intracraniana devem ser identificadas, e a patência da derivação
deve ser avaliada antes da cirurgia. Pacientes com doenças degenerativa e neuromusculares apresentam
risco de fadiga e podem requerer ventilação mecânica prolongada. Crianças com miopatia deverão ter
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1065
avaliação cardiológica cuidadosa pela possibilidade de miocardiopatia associada e que pode se apresen-
tar como alterações do ritmo, prolapso de válvula mitral e hipocinesia ventricular. Pacientes em terapia
anticonvulsivante podem requerer administração venosa perioperatória para manter o nível terapêutico.
Entretanto, a maioria dos anticonvulsivantes tem longa meia-vida e a omissão de uma dose não implica
queda significativa do nível plasmático40.
Medicamentos em Uso
É essencial obter história medicamentosa completa. Crianças com doença oncológica prévia ou atual
devem ter toda a quimioterapia bem documentada. Terapias alternativas e suplementos dietéticos devem
ser especificamente questionados, já que 70% dos pacientes e responsáveis não costumam relatar espon-
taneamente na avaliação pré-operatória41.
Exames Laboratoriais
Os exames laboratoriais, na maioria das vezes, são invasivos ou representam um potencial aumento da
ansiedade, e somente devem ser solicitados quando podem modificar positivamente o curso e o manejo
da anestesia sem acrescentar riscos desnecessários para a criança, ou seja, com indicação clínica ou nas
cirurgias de maior porte cirúrgico42.
Jejum
Período jejum de acordo com a idade e o tipo de alimentação podem ser observados no Quadro 47.343.
Quadro 47.3 - Orientações de jejum
Leite materno 4h
Fórmula infantil 6h
Refeição leve 6h
Refeição completa 8h
Ansiedade Pré-operatória
É comum a presença, em grau variado, de ansiedade devido à separação dos pais no momento de ad-
missão no centro cirúrgico e por medo do desconhecido. Pais ansiosos podem tornar suas crianças tam-
bém ansiosas, com repercussões durante e após o período de internação hospitalar. Algumas estratégias
podem ser úteis quando empregadas para diminuir a ansiedade do binômio pais-criança. Entre elas, po-
demos citar: consultório de anestesia; cartilha com explicações; vídeo com conteúdo explicativo; presen-
ça dos pais no momento da indução; jogos e dispositivos eletrônicos, além de estratégia farmacológica.
Quando empregadas separadamente, a eficácia dessas estratégias diminui quando comparada com a as-
sociação de duas ou mais44.
Estratégia Farmacológica: Medicação Pré-anestésica (MPA)
A MPA é uma ferramenta muito utilizada para atenuar a ansiedade e promover a sedação da criança.
Os < 6 meses de idade não se beneficiarão dessa estratégia, já que é muito fácil separá-los dos pais
usando palavras carinhosas e afagos. Para as crianças maiores, o midazolam é o agente padrão, pois
produz sedação e ansiólise sem retardar o tempo de alta da SRPA. A cetamina pode ser utilizada iso-
lada ou associada ao midazolam. Os agonistas alfa 2 adrenérgicos possuem efeito sedativo; analgésico;
ansiolítico; atenuam os efeitos da ativação simpática ante o estresse anestésico-cirúrgico; diminuem
a necessidade de anestésicos e analgésicos no intraoperatório e pós-operatório e exibem estabilidade
cardiovascular durante o procedimento quando utilizados por via oral na criança45,46. Agentes e doses
estão descritos na Tabela 47.12.
Ventilação
Ventilação Espontânea
Nem mesmo os mais sofisticados ventiladores têm a capacidade de ajustar fluxo, pressão e distribui-
ção dos gases alveolares com a mesma eficácia que o funcionamento normal dos pulmões e do diafragma
durante a ventilação espontânea8. Entretanto, a manutenção dessa modalidade de ventilação no paciente
anestesiado nem sempre é possível. A anestesia promove uma série de alterações que prejudicam a fun-
ção respiratória, como diminuição dos volumes e da capacidade pulmonar, da resposta ventilatória ao CO2
e do tônus da musculatura orofaríngea e respiratória. Essas alterações acentuam a tendência à obstrução
e ao colapso alveolar, principalmente em neonatos e lactentes.
A manutenção da patência das vias aéreas em anestesia é um aspecto crítico na ventilação espontâ-
nea e, ao contrário da visão tradicional, a queda da língua não é a principal causa de obstrução. O ponto
de maior estreitamento faríngeo ocorre ao nível do palato mole, em lactentes, e ao nível da epiglote,
em crianças maiores9. Extensão da cabeça ao nível da articulação atlanto-occipital, com deslocamento
anterior da coluna cervical (sniffing position), melhora a patência da via aérea hipofaríngea, mas não ne-
cessariamente modifica a posição da língua. O aumento da profundidade anestésica determina a redução
progressiva do diâmetro anteroposterior da faringe por perda do tônus e efeito gravitacional. Essa altera-
ção da configuração da via aérea é mais acentuada em lactentes, sendo quase o dobro da observada em
crianças mais velhas48.
Clinicamente, medidas devem ser tomadas para antecipar e prevenir a obstrução. O posicionamento ade-
quado da cabeça, o uso de manobras de vias aéreas e a aplicação de pressão positiva contínua (CPAP) podem
auxiliar na manutenção da ventilação espontânea em crianças anestesiadas. O posicionamento adequado
da cabeça é um preceito básico nem sempre observado na prática. Em crianças pré-escolares e escolares,
submetidas a exame de ressonância sob sedação profunda com propofol, foi demonstrada a manutenção da
patência das vias aéreas com uma simples extensão leve da cabeça (110 graus entre o plano horizontal da
mesa do exame e a linha que conecta o olho ao trágus da orelha). Adicionalmente ao posicionamento, a ele-
vação do queixo promoveu o aumento do diâmetro transverso de toda a via aérea faríngea e do diâmetro an-
teroposterior, principalmente ao nível da epiglote. O fechamento da boca tensiona as estruturas anteriores
do pescoço, e a tensão e os movimentos dos músculos da mandíbula podem contribuir para o alargamento
mais pronunciado entre a ponta da epiglote e a parede posterior da faringe48.
Modos Ventilatórios
Estabelecer alvo de V T em anestesia pediátrica sempre esbarrou em dificuldades tecnológicas. Nos
antigos aparelhos de anestesia, o V T programado não era igual ao recebido pela criança. Os maiores obs-
táculos para a liberação acurada do V T eram complacência excessiva do sistema, com distensibilidade e
compressão do gás no circuito e interferência do fluxo de gás fresco (FGF)50.
Nos aparelhos pneumáticos ciclados a volume, era comum o ajuste fundamentado na expansibilidade
torácica, até que o volume liberado fosse “adequado”. No uso de sistemas respiratórios, a ventilação é es-
tabelecida por “mãos educadas”, promovendo, de forma empírica, a relação entre pressão e V T liberado6.
No passado, os ventiladores tradicionais não possuíam acurácia para liberar pequenos V T, e a ventilação
controlada a pressão (PCV) tornou-se o modo mais adotado em pediatria. Na PCV, o fluxo desacelerado
permite compensar a complacência do circuito e até mesmo pequenos vazamentos, como os que ocorrem
com o uso de tubos sem balonetes50.
Atualmente, os ventiladores modernos, pneumáticos ou elétricos movidos a pistão ou turbina, possuem FGF
dissociado do VT com sistemas de compensação de complacência. Não há estudos de performance compara-
tivos entre esses ventiladores, apenas especificações técnicas dos recursos disponíveis que, em sua maioria,
garantem a oferta confiável de VT mínimo de 20 ml. Na escolha de modos ventilatórios com alvo de volume,
nesses aparelhos modernos, é essencial a realização adequada dos testes de vazamento e de complacência,
estando todos os componentes do circuito previamente instalados. O aparelho calcula o fator de complacência
do sistema medindo o volume necessário para que uma pressão específica seja atingida. O desacoplamento
do FGF ocorre de forma diferente, a depender do fabricante. Em alguns, uma válvula de dissociação previne a
entrada do FGF durante a inspiração e em outros, um sensor de fluxo permite ajustar o VT51.
Com a evolução dos ventiladores e da monitorização, procura-se estabelecer qual a melhor forma de
ventilar uma criança de acordo com sua faixa etária, presença de comorbidades e necessidade de estraté-
1068 | Bases do Ensino da Anestesiologia
gia ventilatória protetora. Os recursos disponíveis permitem, ao fabricante, disponibilizar modos ventila-
tórios tão funcionais quanto os empregados em terapia intensiva. Poucos estudos em pediatria comparam
os modos ventilatórios e seus desfechos, não havendo estudos que demonstrem clara superioridade entre
modos ventilatórios controlados a pressão versus volume51. Cada modo apresenta vantagens e promove
suporte apropriado, desde que exista compreensão dos princípios básicos de funcionamento e que o ven-
tilador tenha os recursos necessários.
Frequentemente, os modos controlados a volume são utilizados para ventilar pacientes adultos ou
crianças acima de 20 kg de peso e os modos controlados a pressão são utilizados em neonatos e lactentes.
Entretanto, essa regra não é absoluta. Os aparelhos modernos, microprocessados, são capazes de ofere-
cer diferentes modos ventilatórios em todas as faixas etárias, produzindo grande variedade de formas de
onda de fluxo e de pressão.
Ajustes Iniciais do Ventilador
Após a programação inicial dos parâmetros do ventilador, o funcionamento do aparelho deve ser tes-
tado, conectando-se o circuito a um balão de testes ou a uma luva estéril. É importante salientar que
esses ajustes são apenas um ponto de partida antes da indução anestésica, devendo ser reajustado após
conectar-se ao paciente ou ao longo do intraopertório, havendo necessidade de se adequar às condi-
ções do paciente, de acordo com a monitorização e detecção de modificações na mecânica ventilatória
(Tabela 47.13).
Tabela 47.13 - Ajustes iniciais para a ventilação mecânica, de acordo com a faixa etária
Pré-escolares (até 6
15-20 6-8 5 15-25 0,7-0,9
anos)
Adolescentes (até 21
15-25 6-8 5 10-15 1,0-1,3
anos)
1) Frequência respiratória e relação I:E – a FR deve ser ajustada de acordo com a idade do paciente.
A relação I:E deve ser ajustada para 1:2 ou menor (1:3 ou 1:4), certificando-se de que o TI corresponda a
pelo menos três constantes de tempo.
2) Volume corrente ou pressão inspiratória de pico – nos modos limitados a volume, deve-se ajustar
o VT para 6 a 8 mL.kg-1, desde que a pressão inspiratória de pico (Ppi) não ultrapasse 25 a 30 cm H2O. Nos
modos limitados a pressão, deve-se selecionar um valor de Ppi que produza expansão torácica adequada e
murmúrio vesicular bem audível à ausculta, geralmente entre 10 e 15 cm H2O. Nos ventiladores capazes de
medir o volume expirado, a Ppi deve ser ajustada para garantir V T de 6 e 8 mL.kg-1. Em alguns ventiladores,
não é possível regular diretamente a Ppi, mas sim a pressão motriz (ΔP), que é a pressão a ser aplicada aci-
ma da PEEP. Assim, com uma ΔP de 10 cm H2O e uma PEEP de 5 cm H2O, a Ppi gerada será de 15 cm H2O.
Lembrar que o volume corrente deve ser monitorado pelo volume expirado, muitas vezes, se faz necessário
acrescentar o volume de espaço morto acrescido por conexões ou fluxômetros, para garantir o VT alvo.
3) Pressão positiva expiratória final (PEEP) – essencial como forma de manter a CRF, restaurar a com-
placência pulmonar e prevenir a atelectasia na criança intubada, o que pode ser alcançado com o uso do
CPAP na ventilação espontânea, com ajuste da válvula APL entre 5 a 10 cmH2O. A análise da curva pressão
× volume pode ser útil na determinação da PEEP ideal. Esse valor deve ser ajustado de acordo com a pa-
tologia de base. Em geral, se utiliza a PEEP fisiológica de 3-5 cm H2O.
Entre as diferenças farmacológicas, é importante ressaltar que a concentração alveolar mínima (CAM)
varia com a idade, dese modo, neonatos e prematuros possuem maior CAM quando comparados com
crianças maiores. Em geral, a CAM aumenta durante o período neonatal, atingindo valores máximos nos
lactentes, e, depois, apresenta diminuição ao longo da vida, atingindo os menores valores nos idosos.
In vivo, o sevoflurano é metabolizado pela isoenzima microssômica CYP IIE1, no fígado e nos rins. A con-
centração plasmática máxima de fluoreto inorgânico é proporcional à duração da exposição ao sevoflurano
e ao fluxo de admissão utilizado. No entanto, não existem evidências de nefrotoxicidade induzida pelo sevo-
flurano, após vários milhões de procedimentos anestésicos. Duas explicações plausíveis para essa ausência
de nefrotoxicidade são a rápida eliminação e o baixo grau de metabolismo do sevoflurano. Apesar da falta
de evidência humana, algumas autoridades sugerem que o sevoflurano, quando utilizado em circuito fe-
chado com cal sodada, exibe potencial de metabolismo, gerando esta substância nefrotóxica, denominada
composto A. O reconhecimento dessa possibilidade resultou em algumas recomendações: evitar o fluxo de
gás fresco (FGF) menores que 1 L.min-1 durante a anestesia com sevoflurano; evitar o uso de sevoflurano por
períodos superiores a 2 horas, em concentrações acima de 1 CAM com FGF de 1 L.min-1 53-56.
Agitação ao despertar e risco para desencadear HM são efeitos comuns a todos os agentes inalatórios,
igualmente, a depressão respiratória e diminuição da resposta ventilatória ao CO2, porém, os efeitos sobre
a ventilação e a apneia são dose-dependentes, habitualmente previsíveis e evitáveis57.
A indução anestésica inalatória é muito utilizada na população pediátrica, por ser indolor, simples e de
boa aceitação para a maioria das crianças, que não toleram bem a punção venosa. Ainda como vantagem,
em crianças nas quais o acesso venoso é difícil, o efeito vasodilatador dos agentes inalatórios é muito
útil. O sevoflurano e o halotano são minimamente irritantes para as vias aéreas, conferindo um perfil de
segurança e qualidade desses agentes para a indução inalatória. Contudo, o isoflurano e, particularmente,
o desflurano são muito irritantes e pungentes, podendo desencadear respostas reflexas nas vias aéreas,
como tosse e laringoespasmo, durante a indução inalatória, não sendo recomendado o uso desses agentes
com essa finalidade. A indução com sevoflurano pode ser tranquila e agradável, utilizando incrementos
graduais na concentração inspirada. Nas técnicas de indução com altas concentrações, por exemplo, se-
voflurano em 6% a 8%, ocorre rápida passagem do inalatório do gás alveolar para a circulação arterial e o
cérebro, sendo especialmente rápida em neonatos e lactentes53-57.
A monitoração com analisador de gases permite avaliar a fração inspirada e expirada do inalatório em
tempo real, quantificando a profundidade do plano anestésico, por meio da mensuração direta da concen-
tração expirada, que retrata a pressão parcial do gás no cérebro durante o equilíbrio. Assim, à semelhança
da venosa, podemos considerar a técnica inalatória, alvo-controlada, permitindo inferir com precisão a
indução, manutenção e despertar anestésico53-57.
A técnica balanceada com associação de um agente inalatório a um anestésico opioide é a técnica de
anestesia geral mais utilizada na população pediátrica. Mais recentemente, no entanto, a anestesia veno-
sa total (AVT) tornou-se possível, graças ao surgimento de hipnóticos e opioides com perfis farmacociné-
1072 | Bases do Ensino da Anestesiologia
ticos favoráveis à infusão contínua. Contudo, as alterações fisiológicas que decorrem do desenvolvimento
das crianças ocasionam grande variabilidade interindividual na farmacocinética e farmacodinâmica, im-
possibilitando a utilização de modelos farmacocinéticos desenvolvidos para adultos na população pediá-
trica. Entretanto, existem estudos farmacocinéticos em crianças de diferentes idades (Marsh, Kataria) que
possibilitam o uso da AVT nesse grupo de pacientes.
Anestesia Regional
Atualmente, é possível utilizar técnicas de anestesia regional em mais de 80% dos procedimentos ci-
rúrgicos realizados em crianças. A abrangência do uso de técnicas regionais depende principalmente da
prática clínica de cada instituição58. Na escolha da técnica, os riscos e os benefícios devem ser pesados
e comparados com os de outras formas de analgesia. Influenciam na escolha idade e condição geral do
paciente; presença de comorbidades; local e intensidade do estímulo doloroso; habilidade do anestesis-
ta e presença ou não de alguma contraindicação à anestesia regional até o consentimento da criança ou
responsável. Ao fazer a escolha, o anestesista também deve levar em consideração a disponibilidade de
equipamentos e o nível de acompanhamento e cuidado da enfermagem disponível59.
Os bloqueios anestésicos permitem a redução da necessidade de anestésicos, analgésicos e bloquea-
dores neuromusculares; proporcionam despertar mais suave, confortável e rápido, alta precoce da SRPA,
alimentação precoce, redução de náuseas e vômitos, além da redução dos riscos associados com os planos
mais profundos de anestesia geral60.
Os bloqueios anestésicos são uma alternativa eficaz para os analgésicos sistêmicos, e isso é parti-
cularmente relevante quando os opioides são contraindicados ou quando as crianças tornaram-se to-
lerantes aos efeitos analgésicos. A anestesia regional é considerada mais eficaz contra a dor visceral,
espasmos da bexiga após a cirurgia genitourinária do que os opioides sistêmicos. A analgesia profunda
fornecida pelos bloqueios proporciona condições ideais para a recuperação da criança, do ponto de vis-
ta familiar e da enfermagem59.
Ainda em relação às vantagens dos bloqueios anestésicos, destacam-se o recente desenvolvimento e
a ampliação das indicações dos bloqueios nervosos periféricos e analgesia prolongada, por meio da utili-
zação de cateteres61. Um benefício adicional é a utilização dos bloqueios periféricos quando a anestesia
geral é contraindicada, considerada tecnicamente difícil ou associada com o aumento da morbimortali-
dade, como em ex-prematuros; nos portadores de doenças neuromusculares, metabólicas, pulmonares
ou cardíaca crônicas; quando há risco de hipertermia maligna ou em situações de emergência com risco
de broncoaspiração59.
É importante ressaltar que a analgesia profunda proporcionada pela anestesia regional pode ocasionar
ausência de sensibilidade e mobilidade em membros inferiores, determinando desconforto para algumas
crianças, aspecto esse que merece atenção62.
A anestesia regional em crianças é considerada segura, desde que cuidado e atenção adequados aos
detalhes sejam tomados. Crianças e recém-nascidos apresentam um risco ligeiramente maior de com-
plicações, e esses grupos etários devem, portanto, ser atendidos por profissionais experientes. Em ter-
mos gerais, um bloqueio do nervo periférico é considerado mais seguro do que um bloqueio neuraxial
em crianças59. Estudo multicêntrico, prospectivo e anônimo sobre segurança da anestesia regional em
crianças62 mostrou que os bloqueios centrais representaram 34% de todas as anestesias regionais reali-
zadas e os bloqueios periféricos abrangeram 66%, dos quais 29% foram bloqueios de membros superio-
res e inferiores, enquanto 71% corresponderam a bloqueios de face e tronco. Bloqueios faciais são uma
prática nova e amplamente utilizada para a cirurgia facial e reconstrutiva, particularmente na repa-
ração do lábio leporino. O estudo registra ainda o uso de um número significativo de cateteres, tanto
centrais como periféricos, sendo a maioria deles neuroaxiais. A taxa global de complicações foi muito
baixa, igual a 0,12%, seis vezes maior em bloqueios centrais comparados com os periféricos. Nenhuma
complicação resultou em sequela ou lesão grave após um ano. Como resultado do baixo índice de com-
plicações, os autores concluem que as técnicas de anestesia regional têm um bom perfil de segurança
e que podem ser usadas para oferecer analgesia pós-operatória em crianças e que as técnicas de blo-
queios periféricos devem ser estimuladas. Outros resultados interessantes foram que a frequência de
utilização de bloqueios, independentemente de qual, aumenta de acordo com a idade e que a incidên-
cia de complicações é significativamente mais elevada no grupo de menor faixa etária, 0,4% nos menores de
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1073
6 meses e 0,1% nos maiores de 6 meses. Esses resultados sugerem que crianças menores sejam assistidas
por anestesistas com experiência em anestesia pediátrica.
Um dos mais importantes avanços na tecnologia em anestesia pediátrica foi o desenvolvimento do co-
nhecimento anatômico baseado na USG, que facilita a localização de estruturas como nervos e vasos. A
utilização de USG na anestesia regional não só reduz a quantidade de AL, mas também sua concentração.
Ainda como vantagem, facilita a execução de bloqueios difíceis de ser realizados, utilizando-se apenas
referências anatômicas com potencial de injeção contígua em áreas sensíveis vasculares. Como uma fa-
cilitadora das técnicas de bloqueios regionais e centrais, assim como de acessos venosos, a USG aumenta
a segurança dessas técnicas por permitir identificar as relações anatômicas com estruturas críticas em
crianças, que, na maioria das vezes, estão sedadas ou sob anestesia geral, impossibilitadas de relatar
qualquer sinal potencial de complicações durante a realização dos bloqueios, como parestesias, dor ou
sinais de intoxicação pelo anestésico local63.
Bloqueios do Neuroeixo
Raquianestesia
A anestesia espinal ou subaracnóidea é uma das mais antigas modalidades para proporcionar alívio da
dor em pacientes submetidos à cirurgia64. Devido às características favoráveis, como rápido início de ação
e curta duração, esses bloqueios são utilizados para procedimentos de pequeno porte, abrangendo maior
faixa etária e permitindo alta hospitalar precoce. A duração do bloqueio sensitivo e motor é curta, em
razão do maior volume de liquor que dilui o anestésico local, maior velocidade de absorção do anestésico,
maior vascularização da região e menor diâmetro das fibras nervosas. Cirurgia da região inferior do corpo
são as principais indicações para a raquianestesia em crianças. Em recém-nascidos, ela é usada para a
correção de hérnia inguinal e cirurgia cardíaca. É particularmente útil em crianças nas quais o anestesista
deseja evitar anestesia geral e manipulação das vias aéreas. Pode ser usada também em crianças com vias
aéreas reconhecidamente difíceis, devendo haver um plano B caso seja necessária a sedação. Também é
uma técnica viável nas situações de estômago cheio, como em pacientes pediátricos com trauma de mem-
bro inferior e torção testicular e crianças com doença pulmonar ou neuromuscular nas quais a anestesia
geral pode piorar a função respiratória65. Um problema da raquianestesia é a taxa de insucesso, que pode
ser significativa (até 45%)66. Deve ser evitada em crianças com infecção no local da punção, doença dege-
nerativa axonal em curso, aumento da pressão intracraniana e hipovolemia grave. A avaliação dos sinais
e sintomas de complicação em lactentes e crianças pequenas não é tão fácil e simples como nas crianças
mais velhas e em adultos. A cefaleia pós-punção dural é rara em crianças67.
Em RN e lactentes, o espaço de escolha para a punção é L4-L5 ou L5-S1 e, em crianças mais velhas, po-
de-se optar pelo interespaço L3-L4. Recomenda-se abordagem na linha média, em RN e lactentes, devido à
calcificação incompleta das lâminas vertebrais. Utiliza-se agulha espinhal pediátrica 22, 25 ou 26 Gauge. O
método de barbotagem não é recomendado, podendo resultar em altos níveis de bloqueio ou bloqueio es-
pinal total. A raquianestesia na criança pode ser também realizada na posição sentada, porém, é mais fácil
e comumente feita na posição de decúbito lateral. O anestesiologista deve ter certeza, em ambas as posi-
ções, de que o pescoço não está fletido, que pode resultar em obstrução das vias aéreas. Após a injeção, a
criança é colocada em posição supina, evitando elevação dos membros inferiores, principalmente, quando
se utiliza anestésico hiperbárico. Tal conduta pode resultar em níveis altos de bloqueio ou raquianestesia
total, levando à depressão respiratória. As seringas (para a injeção do anestésico local) e agulhas devem ter
tamanhos apropriados. Devido aos pequenos volumes de anestésico local utilizados, deve-se acrescentar o
volume que ficará no espaço morto (canhão) da agulha para assegurar que a dose total de anestésico local
seja administrada. Antes da injeção do anestésico local, é importante garantir um fluxo livre de LCR. A in-
jeção deve ser realizada lentamente, > 20 segundos, para evitar a disseminação extensa do bloqueio. Após
a injeção do anestésico local, o mandril deve ser reinserido e a agulha pode ser deixado na posição durante
alguns segundos, para evitar que o medicamento escoe de volta para os tecidos no local de perfuração da
pele. Isso é especialmente sugerido em crianças pequenas, porque uma parte relativamente grande do ori-
fício na dura-máter promove o retorno do anestésico para o local de punção68.
Soluções de anestésicos hiperbáricos ou isobáricos têm similar qualidade e duração nos bloqueios. Doses
de 0,3 mg.kg-1 a 1 mg.kg-1 de bupivacaína são geralmente administradas. A morfina pode ser utilizada como
adjuvante nos bloqueios espinais, em doses que variam de 4 a 10 µg.kg-1, associada ao anestésico local.
1074 | Bases do Ensino da Anestesiologia
Porém, a morfina no neuroeixo não é desprovida de efeitos colaterais. Alguns autores relatam alta incidên-
cia de náusea, vômito e prurido, acometendo em torno de 30% das crianças que recebem a raquianestesia69.
A incidência de eventos adversos graves, como dessaturação e depressão respiratória, é menor, no
entanto, podem ser catastróficos, sendo recomendada vigilância em terapia intensiva com monitorização
adequada por no mínimo 12 horas após a administração da morfina no espaço subaracnóideo70.
O fentanil pode ser utilizado nas doses de 0,25 a 1 µg.kg-1. Novos adjuvantes, como a clonidina, na dose
de 1 µg.kg -1, prolongam a duração da analgesia espinal para o dobro da duração habitual em RN e lacten-
tes72. Notam-se diminuição transitória na pressão arterial e maior predisposição à sedação pós-operatória
com doses superiores a 2 µg.kg -1 de clonidina.
Peridural Sacral
A peridural caudal ou sacral apresenta como vantagens analgesia pós-operatória; bloqueio motor de
menor intensidade quando administradas baixas concentrações de anestésico local; possibilidade de in-
fusão contínua por meio da colocação de cateter no espaço peridural, além de fácil execução, segurança
e estabilidade hemodinâmica. Todas as cirurgias abaixo do umbigo podem ser realizadas com bloqueio
caudal. As principais indicações são cirurgias de membros inferiores; quadril; abdome inferior; hernior-
rafia inguinal; orquidopexia; hipospádia e cirurgia anal. As contraindicações são as mesmas que para o
bloqueio raquidiano, incluindo o cisto pilonidal; lesões sépticas ou distróficas que recobrem o hiato sacral;
meningite e malformações importantes do osso sacro. As complicações mais comuns são perfuração da
dura-máter; punção subcutânea; bloqueio de apenas uma raiz sacral; injeção intravascular ou intraóssea;
contaminação; altura inadequada do bloqueio e persistência de dermátomos não anestesiados (L5, S1, S2).
Raquianestesia total é possível e dor no local da injeção ou nas costas são discutidas, mas isso não é um
problema relevante na prática clínica72.
É clássico descrever a projeção cutânea do hiato sacro como o ângulo inferior de um triângulo equi-
látero, com os outros dois ângulos nas espinhas ilíacas posterossuperiores direita e esquerda (figura). O
hiato sacro está localizado na parte inferior do osso sacro. Nessa região, palpa-se, habitualmente, uma
depressão em forma de U ou V invertido, cujas margens laterais são constituídas pelos cornos sacrais
(resíduos embriológicos das apófises articulares inferiores da quinta vértebra sacral). É recoberto pela
membrana sacrococcígea (ligamentos sacrococcígeos superficiais e profundos) que possui consistência
elástica (Figuras 47.8 e 47.9).
A técnica preconizada consiste em abordar o espaço epidural abaixo do cone medular e do saco dural, em
um nível onde o canal sacral praticamente não contém raízes espinhais. O posicionamento para a realização do
Ponto 47 - Anestesia em Pediatria | 1075
bloqueio pode ser decúbito ventral, com a pelve elevada por uma almofada, ou decúbito lateral, com os qua-
dris e os joelhos fletidos em 90 graus. As referências anatômicas utilizadas são a espinha ilíaca posterossuperior
e o hiato sacral, que formam as bordas de um triângulo equilátero. A punção peridural é conseguida na região
mais próxima do hiato sacral com a agulha inclinada de 45-60° em relação à pele. A agulha deve ser inserida
logo abaixo do processo espinhoso de S4. Após a perfuração da membrana, que obstrui o hiato sacro, a agulha
deve ser apenas minimamente avançada, não mais do que 1-3 mm, a fim de evitar uma punção com sangue ou
uma injeção subaracnóidea. A distância entre o saco dural e o local da punção pode ser extremamente curta e
uma injeção subaracnóidea acidental com uma anestesia espinhal total pode ocorrer. Com a flexão da coluna,
o final do saco dural move-se em direção cranial, aumentando, assim, a margem de segurança72.
As dimensões, a forma e a orientação do hiato sacro variam durante o crescimento. Com o passar dos
anos, o ângulo se atenua e o hiato sacro tende a se fechar, fato que dificulta o procedimento após os
7-8 anos. No lactente, o espaço peridural sacral é preenchido por um tecido de sustentação gorduroso
pobre em fibras conjuntivas, no qual a difusão das soluções anestésicas é rápida e uniforme. Em torno
dos 6-7 anos, a gordura peridural se torna mais densa e rica em tecido fibroso, diminuindo a difusão do
anestésico. Agulhas especialmente concebidas para anestesia caudal, com um bisel curto e um estilete,
são uma boa escolha e, provavelmente, reduzem o risco de punção vascular. A extensão do bloqueio
depende do volume administrado. Assim, para procedimentos em membros inferiores e região inguinal,
utiliza-se 0,7 mL.kg-1 de volume anestésico nas mesmas doses e concentrações preconizadas para os
bloqueios peridurais lombares; para procedimentos em região abdominal baixa, 1 mL.kg-1; para abdo-
me superior, 1,5 mL.kg-1 e para procedimentos torácicos, 2 mL.kg-1. Deve-se considerar a dose tóxica
do anestésico, adequando-se o volume à concentração, que varia de 0,125% a 0,25% de bupivacaína e
levobupivacaína ou 0,2% a 0,35% de ropivacaína72.
Peridural lombar e torácica
O local preferível para executar a punção é L3-L4 ou L4-L5. Bloqueios em níveis mais altos exigem
experiência e cautela do anestesiologista, devido ao risco de punção acidental da dura-máter e lesão me-
dular. A técnica é similar à realizada no adulto, porém, na criança, o espaço epidural é mais superficial e
possui menor capacidade. O espaço peridural é identificado pelo teste da perda de resistência, realizado
com ar ou solução salina. Alguns estudos demonstram que o uso de solução salina diminui o risco de em-
bolia aérea e promove melhor analgesia, pois o ar pode formar bolhas no espaço peridural, impedindo a
dispersão homogênea do anestésico local73.
Anestésicos locais e adjuvantes na anestesia peridural
Habitualmente, utiliza-se bupivacaína, levobupivacaína e ropivacaína em dose única para o intraope-
ratório, nas doses de 2 a 2,5 mg.kg-1, respeitando-se a dose máxima de 3 mg.kg-1 para a bupivacaína e de
3,5 mg.kg-1 para a levobupivacaína e ropivacaína, adequando-se o volume e a concentração ao nível de
bloqueio desejado74. Em infusão contínua, para controle da dor pós-operatória, em neonatos, utiliza-se
infusão de 0,25 mg.kg-1.h-1, em concentrações de 0,125% de bupivacaína ou levobupivacaína e 0,1% de ropi-
vacaína. Em lactentes acima dos 6 meses de idade utiliza-se infusão de 0,5 mg.kg-1.h-1 em concentrações
de 0,25% de bupivacaína ou levobupivacaína e de 0,2% de ropivacaína.
Atualmente, nota-se aumento na utilização de adjuvantes não opioides nos bloqueios peridurais, como
a clonidina, e a diminuição da utilização de agentes opioides, como a morfina. As doses recomendadas
na prática pediátrica, nos bloqueios peridurais lombares ou sacrais, são de 1 a 2 μg.kg-1 de clonidina, me-
lhorando a qualidade do bloqueio e prolongando a analgesia pós-operatória, com mínimos efeitos cola-
terais. A morfina associada aos bloqueios peridurais é utilizada nas doses de 30 a 50 μg/kg via peridural.
Em 2009, a Sociedade Americana de Anestesistas publicou diretrizes para os cuidados e a identificação
de riscos dos pacientes que recebem opioides no neuroeixo. Portanto, pacientes que recebem morfina
no bloqueio peridural, devido ao risco de efeitos colaterais graves, como a depressão respiratória tardia,
deverão permanecer em cuidados intensivos no período pós-operatório70.
Bloqueios de nervos periféricos
Bloqueio do membro superior
O bloqueio de plexo braquial via axilar é muito utilizado na população pediátrica para a correção de
fraturas do terço distal do antebraço e supracondilianas, nas quais a via axilar promove analgesia adequa-
A maior diferença fisiopatológica entre os dois defeitos é que, na onfalocele, o conteúdo intestinal per-
manece recoberto com a membrana peritoneal protegendo a mucosa intestinal dos efeitos irritativos do lí-
quido aminiótico e existe menor perda de temperatura e líquido comparado com a gastrosquise. Os RN com
gastrosquise, devido à falta da membrana protetora, são mais predispostos a desidratação; hipotermia; se-
questro de fluidos para o terceiro espaço; distúrbios eletrolíticos; acidose; hemorragia e sepse. O conteúdo
abdominal extruso deve ser coberto com compressas de solução salina aquecida e revestido com um saco
plástico estéril, a fim de diminuir a perda de fluidos e de temperatura. As considerações para a indução da
anestesia geral são semelhantes àquelas para “estômago cheio”, secundárias à obstrução intestinal.
Cuidados devem ser tomados com ventilação controlada, de preferência manual, e bom relaxamento
muscular. O aumento da pressão intra-abdominal pode resultar em síndrome compartimental abdomi-
nal e diminuição crítica da perfusão dos órgãos. A compressão venosa induz à diminuição da pré-carga e
hipotensão, além da congestão dos membros inferiores, portanto, a venopunção deve ser realizada, de
Fármaco Concentração Dose máxima sem vasoconstritor Dose máxima com vasoconstritor
O uso de medicamentos adjuvantes, em combinação com os anestésicos locais de longa ação, pode não
só prolongar a duração do bloqueio de forma desejável, mas também melhorar a qualidade do bloqueio
e evitar potenciais efeitos secundários dos AL, por exemplo, bloqueio motor indesejado. Deve-se ter em
mente que cada hora de alívio da dor pós-operatória nas crianças vale a pena se pode ser alcançado fa-
cilmente e sem quaisquer sérios efeitos colaterais ou complicações. Idealmente, a duração do alívio da
dor causada pelo bloqueio deve corresponder à duração da dor do procedimento, o que, em muitos casos,
continua por 2-3 dias do pós-operatório92.
O adjuvante mais potente em relação a prolongar a duração da analgesia após uma única injeção no
bloqueio caudal é a morfina sem conservantes, que, muitas vezes, vai fornecer até 24 horas de analge-
sia pós-operatória de boa qualidade. A morfina pode ser um suplemento muito útil em circunstâncias
especiais, mas está associada com certos efeitos colaterais incômodos (náusea, vômitos, prurido e íleo
paralítico pós-operatório), bem como a necessidade de supervisão prolongada do paciente devido ao ris-
co de depressão respiratória retardada. Essas limitações associadas com a morfina caudal/epidural vem
restringindo o seu uso generalizado. Revisões estruturadas ou metanálises sobre o uso de clonidina como
adjuvantes para bloqueio caudal em crianças mostram um prolongamento da analgesia pós-operatória de
cerca de 50% comparada com anestésicos locais de longa ação. Com relação aos grandes procedimentos,
como já citado, a infusão contínua de fármacos parece vantajosa92.
1086 | Bases do Ensino da Anestesiologia
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INTRODUÇÃO
O transplante de órgãos é o tratamento para diversas doenças em estágio terminal, porém, a escassez
1
de órgãos é um limitante importante a esse tratamento .
Reposição Hormonal
O diabetes insipidus é o distúrbio hormonal mais comum no paciente com morte encefálica. A repo-
sição hormonal deve ser instituída em caso de dificuldade de manter a euvolemia, apesar da reposição
volêmica vigorosa. O agente de escolha é a arginina vasopressina, com seus efeitos antidiuréticos e
Estratégias Ventilatórias
O pulmão do doador é particularmente vulnerável a lesões, e 80% deles não são viáveis para doa-
ção16. Na morte encefálica, temos a liberação de diversos mediadores inflamatórios que, associados a
sobrecarga hídrica excessiva e a estratégias ventilatórias inadequadas, tornam-se fundamentais para a
ocorrência de disfunção pulmonar com inviabilidade do órgão17. Segue a seguir os parâmetros de venti-
lação protetora preconizados.
• Volumes correntes (VC) entre 6-8 mL.kg-1.
• Pressão de platô abaixo de 30 mmHg.
• Fração inspirada de O2 (FiO2) deve ser a menor possível para atingir uma PaO2 maior que 90 mmHg.
• PEEP entre 5-10 cmH2O.
Tratamento Transfusional
Diversos autores recomendam manter o hematócrito em torno de 30%, apesar da ampla discussão sobre
a necessidade de avaliar o equilíbrio de oferta e demanda de oxigênio através de outros parâmetros, como
lactato e saturação venosa central de oxigênio12,13. Vale lembrar que pacientes transfundidos apresentam
risco aumentado de imunossupressão, além do risco de contrair citomegalovírus. Deve-se sempre atentar
para o risco de CIVD nesses pacientes.
Deve-se suspender o uso de qualquer medicamento com efeito anticoagulante ou antitrombótico tão
logo se identifique um potencial doador7.
Avaliação Pré-operatória
Diabetes e hipertensão são as causas mais comuns de doença renal em estágio terminal, respondendo
por aproximadamente dois terços dos casos21. Entre essas duas causas, o diabetes é a mais comum21. A
doença cardiovascular é responsável por mais de 50% das mortes em pacientes que recebem diálise, com
redução do risco cardiovascular em cinco vezes após o transplante. Portanto, a avaliação pré-operatória
deve se focar na triagem de doença isquêmica cardíaca e de insuficiência cardíaca congestiva, através de
exames de imagem. O ecocardiograma de estresse é provavelmente melhor que a cintilografia miocárdica
para a previsão de eventos cardíacos no pós-operatório22. Em caso de positividade nos testes de triagem,
se faz necessário realizar o cateterismo cardíaco, com as respectivas intervenções terapêuticas em caso
de haver lesões significativas21.
A insuficiência cardíaca congestiva é prevalente em paciente em diálise, mas, na ausência de doença
isquêmica cardíaca, não impede o transplante. O foco pré-operatório é o tratamento otimizado da insu-
ficiência cardíaca21.
Os fatores de risco cardíaco mais comuns nos candidatos ao transplante renal são hiperfosfatemia; dis-
lipidemia; hiper-homocisteinemia e anemia. A eritropoetina, quando utilizada para corrigir a anemia aos
níveis de 12 g.dL-1 ou menos, diminui o risco de transfusão sanguínea21.
Pacientes que se candidatam ao transplante renal podem apresentar hipercalemia, a qual está asso-
ciada com o aumento dos riscos durante a fase de reperfusão do enxerto. A diálise pré-transplante pode
diminuir a potassemia, porém, um reduzido volume intravascular central pode contrabalançar os benefí-
cios da redução do potássio sérico21.
Gerenciamento Pós-operatório
Manter volemia adequada com os parâmetros hemodinâmicos dentro da faixa de normalidade é de
suma importância para a manutenção da perfusão do enxerto. Idealmente, a analgesia pós-operatória é
obtida por cateter peridural ou analgesia venosa controlada pelo paciente (PCA)21.
Avaliação Pré-operatória
Pacientes com doença hepática em estágio final (DHEF) têm disfunção multissistêmica com comprome-
timento cardíaco, pulmonar e renal por conta de sua doença hepática (Tabela 48.3). A encefalopatia e o
edema cerebral são os principais responsáveis pela mortalidade da insuficiência hepática aguda (IHA)25.
Aproximadamente 25% dos pacientes com IHA não apresentam recuperação espontânea, tendo que ser
submetidos ao transplante, com sobrevida pós-transplante similar à dos pacientes com DHEF21.
A avaliação pré-transplante inclui uma verificação da doença isquêmica cardíaca e triagem da hiper-
tensão portopulmonar, através de exames como ecocardiograma de estresse e/ou cateterismo cardíaco.
Paciente com DHEF geralmente têm resistência vascular sistêmica muito baixa, índice cardíaco alto e
aumento da saturação de oxigênio venoso misto. Esse estado hiperdinâmico é muito semelhante ao que
acontece na sepse e é exacerbado com a reperfusão do enxerto21.
O ecocardiograma é também usado para rastrear a presença de hipertensão portopulmonar (au-
mento da pressão média da artéria pulmonar > 25 mmhg, sem sinais de disfunção de VE), shunts in-
tracardíacos e síndrome hepatopulmonar (shunt intrapulmonar no ecocardiograma com “bolhas” + PO2
Gerenciamento Intraoperatório
Pacientes com insuficiência renal apresentam risco aumentado de aspiração de conteúdo gástrico na
indução anestésica, devido à gastroparesia e ao aumento da pressão intra-abdominal gerada pela ascite.
Portanto, indução em sequência rápida é indicada nesses pacientes.
Bloqueadores neuromusculares metabolizados pelo fígado podem ter a duração prolongada, normali-
zando após a reperfusão do enxerto. Nesse contexto, os bloqueadores mais indicados são os que apresen-
tam eliminação espontânea, como o cisatracúrio e o atracúrio. Evitar a meperidina, pelo acúmulo de seu
metabólito (normeperidina). A morfina pode ter efeito prolongado pelo acúmulo de morfina-6-glucoroni-
da. O fentanil e outros opioides sintéticos são escolhas seguras. Os anestésicos voláteis podem ser usados
com segurança, com efeitos suaves no fluxo sanguíneo hepático21.
A cirurgia de transplante de fígado apresenta risco aumentado de sangramento e é importante ter pre-
sente na sala de operação sistemas com a capacidade de infusão rápida de sangue aquecido. Normoter-
mia, que é essencial para melhor hemostasia, é mantida com infusão de líquidos aquecidos e com o uso
de manta térmica nas pernas e na parte superior do corpo21.
Gerenciamento Pós-operatório
A sobrevida é de 87% em um ano e 73% depois de cinco anos, sendo os índices maiores nos receptores
de enxertos de doadores vivos. A trombose da artéria hepática no início do período de pós-operatório
necessita de retransplante. A infecção é a principal causa de morte no pós-operatório21.
Avaliação Pré-anestésica
As terapias medicamentosas para pacientes com insuficiência cardíaca congestiva têm melhorado dra-
maticamente ao longo da última década. As opções farmacológicas atuais incluem betabloqueadores,
inibidores da ECA, diuréticos e digoxina, possibilitando maior sobrevida dos pacientes com insuficiência
cardíaca em estágio avançado.
O tempo de isquemia fria do enxerto não deve ultrapassar 6 horas, para sua adequada função. A ava-
liação pré-operatória deve focar na condição cardíaca do paciente para planejamento do uso de bomba
Gerenciamento Intra-operatório
Pacientes com disfunção ventricular grave são muito suscetíveis a instabilidade hemodinâmica relacio-
nada com o uso de anestésicos. É recomendado o uso de etomidato na indução por seu mínimo impacto
hemodinâmico. Técnicas com opioides em altas doses têm sido usadas com bons resultados para a indução
e a condução dos pacientes submetidos a transplantes cardíacos. A manutenção da anestesia é feita com
anestésicos voláteis, devendo-se evitar o óxido nitroso, uma vez que causa supressão cardíaca devido à
depleção de catecolaminas e down-regulation dos receptores beta-adrenérgicos. Os objetivos do geren-
ciamento anestésico são ditados pela insuficiência cardíaca congestiva subjacente e necessidade de evitar
condições que aumentem a pressão da artéria pulmonar (Quadro 48.1)21.
A falha de retirada de CEC muitas vezes é causada por insuficiência cardíaca direita durante o trans-
plante, com piora da hipertensão pulmonar. Pode ser tratada com vasodilatadores não seletivos, como
nitroglicerina e nitroprussiato, podendo haver diminuição exacerbada da RVS. As drogas seletivas, como o
óxido nítrico inalatório, iloprost e sildenafil, podem ser úteis.
Quadro 48.1 – Objetivos perioperatórios do transplante de coração26
Seleção do Receptor
Os testes de função pulmonar, cateterismo cardíaco direito e o ecocardiograma transtorácico são usa-
dos rotineiramente para avaliar os receptores (Quadro 48.2).
Quadro 48.2 – Diretrizes para a seleção dos receptores de pulmão26
Indicações gerais
• Doença pulmonar em estágio final
• Falha do tratamento medicamentoso máximo da doença pulmonar
• Idade dentro dos limites para o transplante planejado
• Expectativa de vida < 2-3 anos
• Capacidade de andar e se submeter à reabilitação
• Estado nutricional adequado (70-130% do peso corporal ideal)
• Perfil psicossocial estável
• Sem sinais de comorbidades significativas
Gerenciamento Pós-anestésico
Os pacientes geralmente permanecem em ventilação mecânica com pressão positiva nas primeiras 48
horas pós-transplante. Os cuidados no pós-operatório visam evitar o barotrauma, o volutrauma e a deis-
cência anastomótica, através de parâmetros protetores de ventilação mecânica.
Transplante Bipulmonar
O transplante bipulmonar em bloco requer circulação extracorpórea (CEC), e o tubo endotraqueal de
lúmen único é suficiente. O transplante bipulmonar sequencial é, atualmente, o procedimento de escolha,
porque a anastomose traqueal é desnecessária e o sangramento cirúrgico é menor26.
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INTRODUÇÃO
Com o avanço da medicina diagnóstica e terapêutica, o campo de trabalho do anestesiologista alcan-
çou novos horizontes. Hoje, não mais restrito ao centro cirúrgico e à sala operatória, é possível encontrar
inúmeros locais fora do centro cirúrgico onde há necessidade da presença do anestesiologista. Exames de
imagem e endoscópicos; radiologia intervencionista; hemodinâmica; consultório odontológico; radioterapia;
eletroconvulsoterapia e pequenas cirurgias ambulatoriais são parte desse contexto, entre outras possibilida-
des em que o anestesista pode atuar. Hoje, em especial, se desenvolve cada vez mais a prática da anestesia
em consultórios, para procedimentos diversos, especialmente o consultório onde se realizam intervenções
estéticas e odontológicas. No entanto, essas facilidades ainda estão pouco reguladas, mesmo nos Estados
Unidos1, o que demanda uma atenção mais rigorosa à seleção do local (estrutura, pessoal e material) e do
paciente a ser atendido, sempre tendo em mente que o primordial é promover a segurança do paciente.
Nesse sentido, também encontramos uma grande diversidade no tipo de paciente candidato à realiza-
ção de procedimentos em locais além do centro cirúrgico que está incluído numa extensa faixa etária e
com comorbidades diversas. A tecnologia moderna, os novos fármacos e as novas técnicas de anestesia
permitem que os pacientes com estado físico mais elevado sejam candidatos a realizar procedimentos fora
do centro cirúrgico, com alto grau de segurança e bons resultados.
Quando falamos em anestesia fora do centro cirúrgico, mais comumente estamos nos referindo a pro-
cedimentos (exames ou intervenções) em regime de curta permanência hospitalar. Normalmente, são
pacientes que são submetidos a algum procedimento diagnóstico ou terapêutico que, ao seu término, re-
pousam por um tempo variável, porém curto, antes de serem liberados da unidade.
O habitat natural do anestesiologista é o centro cirúrgico, onde ele encontra todo o aparato de material
e de pessoal para a realização do seu trabalho. Sabemos que, diante de uma situação crítica, a ajuda de
outro colega é fundamental para o sucesso da condução do evento; raramente o anestesiologista conta
com essa possibilidade quando trabalha fora do centro cirúrgico.
A evolução dos meios de diagnóstico e terapia criou novos espaços e novos campos de trabalho fora desse
habitat natural. Toda vez que o anestesiologista sai da “zona de conforto” (o centro cirúrgico), cria-se uma
fonte de medo, desconforto, insegurança, à realização de suas atividades. Para tanto, é necessário estar
bem preparado, técnica, material e psicologicamente, para que a atividade anestésica seja feita com o má-
ximo de tranquilidade e segurança, tanto para o paciente quanto para os profissionais envolvidos.
O desafio do anestesiologista será multifatorial e abordará a avaliação e eleição do paciente apto, a
realização do ato em si, a recuperação pós-anestésica do paciente e sua alta hospitalar, compreendendo
também a avaliação e adequação do ambiente onde será realizado o procedimento e os cuidados com a
qualidade e a segurança do procedimento.
Sempre que possível, uma avaliação prévia com o anestesiologista deve ser realizada. Além de todos
os cuidados técnicos a serem vistos, esse momento é ideal para orientação e esclarecimento das dúvi-
das. Informações sobre o papel do anestesiologista nesse procedimento, jejum e medicamentos a serem
mantidos ou suspensos, associados sempre a particularidade de cada procedimento, além da obtenção do
consentimento informado, são fundamentais.
Outro ponto importante é o período de jejum necessário à realização dos procedimentos ambulato-
riais. As recomendações são aquelas listadas no Practice Guidelines for Preoperative Fasting and the Use
of Pharmacologic Agents to Reduce the Risk of Pulmonary Aspiration: Application to Healthy Patients
Undergoing Elective Procedures, publicado pela American Society of Anesthesiologists8, que, em resumo,
determina os seguintes períodos de jejum pré-operatório para pacientes saudáveis que vão se submeter
a procedimentos eletivos (Tabela 49.2):
Tabela 49.2 - Jejum pré-operatório
Não existe recomendação para o uso de agentes estimulantes ou de medicamentos que alterem o pH
gástrico de rotina. As indicações devem ser baseadas na história clínica e no exame físico.
49.2. RECUPERAÇÃO
Essa etapa do atendimento também é crítica para o sucesso da intervenção. Os critérios a serem ob-
servados são tanto os de alta da sala de cirurgia/intervenção quanto os de alta da unidade. Porém, exis-
Período Pré-operatório
• Estabilizar doenças preexistentes e encorajar programa de exercícios de pré-habilitação e cessação do
fumo.
• Otimizar o conforto do paciente, minimizando a ansiedade e o desconforto.
• Assegurar a reidratação adequada repondo o déficit de fluidos.
• Utilizar terapêuticas profiláticas apropriadas para prevenir complicações pós-operatórias (por exemplo,
dor, náuseas, vômitos, íleo).
Período Intraoperatório
• Utilizar técnicas anestésicas que otimizem as condições cirúrgicas, enquanto asseguram uma recuperação
rápida com mínimos efeitos colaterais.
• Administrar anestesia local via bloqueio de nervos periféricos, infiltração da ferida e/ou instilação.
• Aplicar analgesia multimodal e profilaxia antiemética (incluindo o uso de glicocorticoides esteroidais).
• Minimizar o uso de tubos nasogástricos e drenos cirúrgicos e evitar administração excessiva de fluidos.
Período Pós-operatório
• Permitir que os pacientes que atinjam os critérios sejam liberados precocemente.
• Assegurar o controle adequado da dor com o uso de analgésicos não opioides para minimizar o uso de
analgésicos que contenham opioides.
• Encorajar a deambulação precoce e o retorno às atividades normais da vida diária.
Para que o paciente possa ser transferido da sala de cirurgia para a sala de recuperação pós-anestési-
ca, ele deve ter ao menos 8 pontos na escala de Aldrete e Kroulik, mas não pode ter 0 ponto em nenhum
dos critérios. Além disso, o paciente deve estar com dor fraca (escala verbal numérica ou analógica visual
abaixo de três).
Diversos fatores podem retardar a alta ou causar readmissão do paciente após a cirurgia ambulatorial11,12.
Alta retardada
Pré-operatório
• Gênero feminino
• Idade avançada
• Doença cardíaca congestiva
Intraoperatório
• Duração prolongada da cirurgia
• Anestesia geral
• Anestesia espinhal
Pós-operatório
• Náuseas e vômitos pós-operatórios
• Dor moderada a severa
• Sonolência excessiva
• Falta de acompanhante
49.3. EQUIPAMENTOS
As normatizações do CFM sobre o funcionamento e a estrutura das instalações que receberão o proce-
dimentos fora do centro cirúrgico são de extrema importância para o planejamento de uma nova unidade.
O ambiente candidato a receber os procedimentos cirúrgicos deve ter a mínima estrutura para seu perfei-
to funcionamento. Não raro o anestesiologista é chamado para participar do planejamento de uma nova
unidade e sugerir a formação desse ambiente.
Quanto à organização do espaço físico, aparelhagens, material, equipamento e monitores; o ambiente
basicamente não difere do ambiente habitual do centro cirúrgico. Uma vez que há uma distância relativa
do centro cirúrgico de referência até a unidade de cirurgia, esta deve estar abastecida e preparada para
suportar todos os procedimentos e qualquer intercorrência que possam advir do ato.
A sala de procedimento cirúrgico deve estar pronta para fornecer conforto e segurança a toda a equipe
e aos pacientes candidatos aos procedimentos. O espaço deve ser suficiente para que receba, além das
instalações próprias para cirurgia, o aparelho de anestesia; deve permitir mobilidade ampla da equipe
dentro do ambiente. O espaço físico deve estar preparado para suportar uma cirurgia e poder resolver
todas as intercorrências, se houver. É importante atentar para a necessidade de fontes de fornecimento
de gases frescos, sistemas de aspiração, ventiladores mecânicos na sala cirúrgica e aparelhos capazes de
suportar emergências e fornecer suporte avançado cardiovascular caso seja preciso. Além dos equipa-
mentos, é importante ressaltar que há necessidade de material e instrumental mínimo para a realização
da anestesia em ambiente fora do centro cirúrgico.
As recomendações do CFM sobre os equipamentos básicos, instrumentais e material a serem considera-
dos na sala operatória fora do centro cirúrgico podem ser encontradas na Resolução 1.802/2006.
49.4. MONITORIZAÇÃO
A monitorização do ato cirúrgico anestésico fora do centro cirúrgico nada difere da que se costuma
a utilizar nos procedimentos realizados no centro cirúrgico. A importância se dá em nome da segurança
e qualidade do procedimento a ser feito fora do ambiente habitual do anestesiologista. É fundamental
destacar que a monitorização objetiva a manutenção das funções fisiológicas e a prevenção de possíveis
intercorrências relacionadas com o ato cirúrgico-anestésico.
De forma global, a monitorização básica da função cardíaca, com avaliação contínua da frequência car-
díaca e do ritmo através do ECG e da pressão arterial e a avaliação respiratória através da oximetria de
ANEXO III
Instrumental e materiais
1. Máscaras faciais
2. Cânulas oronasofaríngeas
3. Máscaras laríngeas
4. Tubos traqueais e conectores
5. Seringas, agulhas e cateteres venosos descartáveis
6. Laringoscópio (cabos e lâminas)
7. Guia para tubo traqueal e pinça condutora
8. Dispositivo para cricotireostomia
9. Seringas, agulhas e cateteres descartáveis específicos para os diversos bloqueios anestésicos neuroaxiais
e periféricos
ANEXO IV
Fármacos
1. Agentes usados em anestesia, incluindo anestésicos locais, hipnoindutores, bloqueadores neuromusculares
e seus antagonistas, anestésicos inalatórios e dantroleno sódico, opioides e seus antagonistas, antieméticos,
analgésicos não opioides, corticosteroides, inibidores H2, efedrina/etil-efrina, broncodilatadores, gluconato/
cloreto de cálcio.
2. Agentes destinados à ressuscitação cardiopulmonar, incluindo adrenalina, atropina, amiodarona, sulfato de
magnésio, dopamina, dobutamina, noradrenalina, bicarbonato de sódio, soluções para hidratação e expan-
sores plasmáticos.
Dois tipos de risco que atualmente são muito discutidos são a síndrome de Burnout (exaustão prolongada
e queda do interesse no trabalho) e o risco de drogadicção, muito prevalentes entres os anestesiologistas. A
síndrome de Burnout ocorre em 19% a 47% entre os médicos, contra 18% em trabalhadores em geral15.
O Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP), publicado na Portaria nº 529, do Ministério da
Saúde16, visa ao aumento da segurança do paciente, que é definida, em seu artigo 4º, inciso I, como a “re-
dução, a um mínimo aceitável, do risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde”.
No seu artigo 5º, o PNSP fala na implantação de uma cultura de segurança, que deriva de cinco carac-
terísticas que devem ser implantadas pela organização:
“a) Cultura na qual todos os trabalhadores, incluindo os profissionais envolvidos no cuidado e gesto-
res, assumem responsabilidade pela própria segurança, pela segurança de seus colegas, pacien-
tes e familiares.
b) Cultura que prioriza a segurança acima de metas financeiras e operacionais.
c) Cultura que encoraja e recompensa a identificação, a notificação e a resolução dos problemas
relacionados à segurança.
d) Cultura que, a partir da ocorrência de incidentes, promove o aprendizado organizacional.
e) Cultura que proporciona recursos, estrutura e responsabilização para a manutenção efetiva
da segurança.”
O Quadro 49.3 apresenta a classificação dos riscos ocupacionais.
Quadro 49.3 - Classificação dos riscos ocupacionais
Riscos relacionados com os agentes • Infecções transmitidas pelos pacientes portadores dos seguintes
biológicos patógenos: hepatite B, hepatite C, HIV, bactérias, fungos, outros
• Radiação ionizante (RX)
• Radiação não ionizante (laser)
• Ruídos e vibrações
• Temperatura
Riscos relacionados com agentes físicos e a
• Ventilação
segurança
• Iluminação
• Cargas elétricas de alta e baixa voltagem
• Incêndios
• Gases comprimidos (cilindros)
• Organização e teor do trabalho
Riscos relacionados com o planejamento • Modelo de trabalho
de trabalho (organizacionais) • Calendário, carga horária, densidade de tarefas
• Violência
• Alergia ao látex
Riscos relacionados com agentes químicos
• Exposição aos anestésicos inalatórios (riscos reprodutivos)
Os principais protocolos clínicos a serem trabalhados no âmbito do PNSP estão expressos no art. 7º:
“a) Infecções relacionadas com a assistência à saúde.
b) Procedimentos cirúrgicos e de anestesiologia.
c) Prescrição, transcrição, dispensação e administração de medicamentos, sangue e hemoderivados.
49.6. TRANSPORTE
O transporte dos pacientes após a realização do procedimento fora do centro cirúrgico também é res-
ponsabilidade do anestesiologista. O destino dos pacientes e sua alta são idealmente avaliados, seguindo
a técnica anestésica utilizada, o estado físico do paciente e a elegibilidade de alta hospitalar ou cuidados
pós-procedimentos.
A condição inicial, para qualquer tipo de técnica utilizada, segue os critérios comumente utilizados
quando se fala em recuperação da anestesia. Todos os pacientes devem seguir as normas de alta para o
estágio 1 da recuperação pós-anestésica, ou seja, precisam estar cooperativos e responsivos aos estímu-
los; hemodinamicamente estáveis; aptos a manter a via aérea desobstruída e capazes de manter a satu-
ração venosa de oxigênio em níveis aceitáveis com ou sem administração de oxigênio complementar para
poder ser transportados. Alcançados esses objetivos, o paciente deve ser conduzido, sob supervisão do
anestesiologista, a uma unidade de recuperação pós-anestésica do centro cirúrgico (SRPA 1). A exceção
está para os pacientes submetidos à sedação leve ou sedação consciente, que conseguem uma fase 1 de
recuperação acelerada, podendo continuar sua recuperação pós-anestésica em uma unidade de recupe-
ração ambulatorial onde, após apresentarem diurese espontânea (se necessário) e se alimentarem sem
maiores problemas, podem receber alta hospitalar.
Pacientes hígidos submetidos à sedação consciente ou sedação leve devem ser avaliados após o pro-
cedimento. Havendo estabilidade hemodinâmica e capacidade respiratória preservada, deve-se promover
o transporte em macas específicas até a unidade de recuperação pós-anestésica, que pode ser no centro
cirúrgico ou em uma unidade ambulatorial, caso possuam recuperação da fase 1 acelerada. Entretanto,
quando os pacientes não conseguem manter a saturação da hemoglobina maior que 95% em ar ambiente,
deve-se oferecer oxigênio via cateter nasal e aguardar a estabilidade respiratória para seu transporte.
Pacientes submetidos à anestesia geral ou sedação moderada devem ser transportados após a recupe-
ração na sala do procedimento da mesma forma que os outros. Particularmente, nesse tipo de paciente, a
hipóxia inerente à sedação residual é a complicação mais comum, devendo o anestesiologista manter vigi-
lância sobre a ventilação até que esse paciente seja entregue na sala de recuperação anestésica do centro
cirúrgico (SRPA 1). A monitorização dos sinais vitais, especialmente da saturação de hemoglobina, através
do oxímetro de pulso, deve estar presente. Oxigenação complementar pode ser necessária para aqueles
pacientes que só conseguem manter níveis ideais de SpO2 através do cateter nasal ou da máscara facial.
Pacientes graves que serão transportados para unidades de tratamento intensivo exigem maiores de-
safios do anestesiologista. Estes devem estar preparados com balas/galões de oxigênio suficientes para o
tempo de transporte; monitores carregados para que mantenham os sinais vitais do paciente disponíveis
por todo o trajeto; ventiladores mecânicos portáteis ou AMBUs com bolsa reservatório preparados para o
transporte; fármacos de resgate e emergência preparados para qualquer eventualidade ou necessidades
e, quando disponíveis, desfibriladores cardíacos. O médico anestesiologista que realizou o procedimento
deve acompanhar o paciente até a unidade de destino onde, depois de se comunicar com outro profissio-
nal, lhe atribui agora os cuidados pertinentes daquele paciente.
Todo transporte de pacientes, vindo de lugares onde receberam anestesia fora do centro cirúrgico,
deve ser realizado com a supervisão e responsabilidade do anestesiologista, respeitando as particulari-
dades de cada paciente. Todos os pacientes devem ser transportados deitados, em macas específicas, de
forma que seus pés fiquem no sentido de direção da maca, evitando movimentos bruscos que podem le-
var a quadros de náusea e tontura, especialmente quando houve a utilização de opioides, fator que pode
retardar a alta.
REFERÊNCIAS
1. American Society of Anesthesiologists. Committee of Ambulatory Surgical Care. Guidelines for office-based
anesthesia. Approved by the ASA House of Delegates on October 13, 1999; last amended on October 21, 2009;
and reaffirmed on October 15, 2014.
2. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução n° 1.802, de 1° de novembro 2006, retificada em 20 de dezem-
bro de 2006. Dispõe sobre a prática do ato anestésico. Revoga a Resolução CFM n° 1363/1993. Diário Oficial da
União de 1° nov 2006, Seção 1; Diário Oficial da União de 20 dez 2006, Seção 1. p. 160.
3. Conselho Federal de Medicina (Brasil). Resolução nº 1.886, de 21 de novembro de 2008. Dispõe sobre as Normas
Mínimas para o Funcionamento de Consultórios Médicos e dos Complexos Cirúrgicos para Procedimentos com
Internação de Curta Permanência. Diário Oficial da União de 21 nov 2008, Seção I, p. 271.