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REGULAÇÃO E AUTO REGULAÇÃO

ODETE MEDAUAR*

l. O contexto - 2. A regulação - 3. A auto-regulação

l. O contexto

A partir da década de 80. acentuando-se na década de 90 do século XX. surgiu


um movimento, tanto nos países desenvolvidos como nos países menos desenvolvi-
dos, no sentido de transferir para o setor privado entes estatais ou atividades até
então realizadas pelo Estado.
De modo sintético, pode-se dizer que esse movimento deve-se a razões prag-
máticas, para liberar o Estado dos custos das estatais e arrecadar recursos; e teve
causas políticas, para criar nova dinâmica econômica, inspirada nos exemplos inglês
(privatizações da era Thatcher) e norte-americano. Na Europa, o movimento recebeu
propulsão forte oriunda da cúpula dirigente da União Européia, repercutindo nos
países que a integram.
Nesse panorama surgiram, no vocabulário do direito público, termos nunca ou
pouco usados até então; outras palavras passaram a ter um significado contemporâneo
revestido de novas conotações, porque vinculadas a um novo contexto. Dentre esses
termos pode-se arrolar, por exemplo: reforma do Estado; modernização do Estado;
redução do setor público; desestatização; desregulação; liberalização da economia;
privatização; Estado regulador; marcos regulatórios; regulação.
Os termos acima apontados vêm sendo objeto de estudos no direito público,
mas ainda perdura grande imprecisão conceitual e ausência de uniformidade no seu
uso. Por exemplo: às vezes utilizam-se os vocábulos privatização, desestatização e
deregulation no sentido de transferência, para o setor privado, de atividades até então

* Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

R. Dir. Adm .. Rio de Janeiro. 228: 123-128. Abr./Jun. 2002


realizadas pelo setor público; ou no sentido de menor presença do Estado na vida
da sociedade; ou no sentido de liberalização dos mercados.
O termo deregulation reveste-se também de significado mais restrito, para
denominar a eliminação total ou parcial de normas e controles estatais, incidentes
sobre o mercado e as atividades econômicas, levando à simplificação e desburocra-
tização.
É habitual encontrar a assertiva de que a deregulation significa, na verdade,
uma re-regulation, pois novas regras e novos moldes são estabelecidos para o
desempenho da atividade, inclusive se houve a passagem do setor público para o
setor privado (sujeitando-se também a normas de defesa da concorrência). Nesta
linha se expressam Linotte, Mestre e Romi (Sen'ices publics et droit Pllblic econo-
mique, vol. 11. 2" ed., Paris Litec, 1992, pp. 10, 11,12) : Dereglllatio1l "é o conjunto
de medidas que têm por objetivo diminuir o volume e o peso das normas jurídicas ...
Pode ser quantitativa e qualitativa ... Pode ter objetivos econômicos ou outros ... Não
significa o fim da regulação ... É maneira de regular de outra forma ... " Daí, segundo
nota Stoffaes (Services Publics - questio1l d' ave1lir, Ed. Odile Jacob/ La Documen-
tation française, 1995, p. 176), autores usarem o termo tra1lsréglementation para
dizer que há dereglementation e rereglementatio1l ao mesmo tempo.
A quebra de monopólios e exclusividades, a transferência de atividades, do setor
estatal para o setor privado, a flexibilização de normas incidentes sobre atividades
econômicas não vão acarretar necessariamente a ausência do Estado nessas ativida-
des. Tratando-se de serviços públicos que passam a ser desempenhados por particu-
lares, o Estado jamais se desliga. No caso de atividades econômicas, o Estado há de
ter ascendência, sobretudo nos setores sensíveis, que trazem impacto mais imediato
e profundo na vida da sociedade.

2. A regulação

Emerge. assim, nesse contexto, o termo cujo uso vem se expandindo nos últimos
tempos: regulação. Há pouco, regulação estava ausente do vocabulário do Direito
Constitucional e Administrativo, sendo de uso mais freqüente no Direito Econômico.
Hoje. além do uso freqüente, suscita estudos e discussões.
Deve-se notar, de início, que o vocábulo inglês regulation, ao ser traduzido para
línguas latinas, como o francês e o português, pode adquirir conotações diversas,
em virtude da diferenciação dos verbos regler/reglementer, de um lado, e regular!
regulamentar, de outro. Regulation pode gerar a tradução para o verbo regular ou
para o verbo regulamentar. Veja-se que o termo inglês regulation não significa, no
direito anglo-saxônico, a edição de regulamentos, pois esta se expressa pelo termo
rulemaking.
Na língua portuguesa falada e escrita no Brasil a existência de dois verbos e o
uso enraizado do termo regulamento e da expressão poder regulamentar leva a
confusões.
Ao se cogitar do aspecto estritamente normativo, para quem entende que regu-
lamentar ou editar regulamentos significa só explicitar a lei, os sentidos mostram-se

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diversos; regulamentar teria sentido mais restrito que regular. Para quem aceita a
possibilidade de haver regulamentos destinados, não apenas a explicitar a lei, mas
a disciplinar matérias não privativas de lei, haveria identidade dos termos, sob o
estrito ângulo normativo.
Mas há outro ponto: o termo regulação vem sendo usado também em acepção
mais abrangente, sobretudo quando associado às atividades das agências reguladoras,
para significar tanto a edição de normas quanto a fiscalização do seu cumprimento,
a imposição de penalidades e também as atuações destinadas a conciliar interesses,
a obter acordos, a persuadir. Cabe notar que Alberto Venancio Filho, na clássica
obra Intervenção do Estado no domínio econômico, publicada em 1968, utiliza a
expressão Direito Regulamentar Econômico, em acepção semelhante ao que hoje
teria o nome de regulação, visto incluir na atuação estatal proibições, autorizações.
derrogações, subvenções, facilidades diversas, fiscalização. (cf. ed. fac. similar da
de 1968, Ed. Renovar, 1998, pp. 86 e 87).
Aliás, deve-se notar que o termo regulamentação vem associado, por alguns
autores (Jean-Phillipe Colson, por exemplo, Droit Public Economique, Paris,
L.G.D.J., 3a ed, 2001, pp. 500 e 514) a modalidades clássicas de atuação do Estado
sobre a atividade econômica prestada por operadores privados e públicos. O mesmo
autor afirma que a regulação tende a suplantar as regulamentações tradicionais.
A consulta à literatura estrangeira e nacional revela diversidade no teor dos
conceitos de regulação.
No entender de Dumez e Jeunemaitre (Quels modeles de régulation pour les
services publics? in L 'idée de service public est-elle encore soutenable?, Paris, PUF,
1999, pp. 64 e 65) a regulação" é uma resposta aos problemas criados pelo jogo
espontâneo dos mercados em matéria de produção de bens ou fornecimento de
serviços, cada mercado tendo especificidades e podendo ensejar regulação particu-
lar ... Esta resposta se inscreve em dois extremos: a colocação do mercado entre
parênteses (o Estado assume a produção do bem ou do serviço, segundo regras que
não dizem respeito ao mercado) e o livre jogo do mercado ... A intensidade da
regulação ocorre entre os dois extremos, conforme o efeito de três fatores: o político,
as idéias econômicas e a inovação" .
Para Gentot (Les autorités administratives indépendantes, Paris, 2a ed., pp. 41
e 42) "a regulação supõe um quadro a ser imposto a atividades que devem respeitar
um certo equilíbrio entre os interesses das diversas forças sociais em presença, os
direitos dos cidadãos e o interesse geral. Este quadro normativo é formado de
decisões impessoais que são os regulamentos; a aplicação da regra do jogo assim
fixada pode ser objeto de controles e de contestações que acarretam decisões indi-
viduais, inclusive sanções ... Mas não é necessariamente pelo exercício de compe-
tências jurídicas que se realiza a atividade de regulação. É por vias extrajurídicas
que as autoridades independentes exercem com mais boa vontade sua ação e sem
dúvida obtêm melhores resultados. Esforçando-se por convencer, mais que impor,
multiplicam as tratativas, as conciliações, as recomendações" .
Segundo Cassagne (La intervención administrativa, Buenos Aires, 2a ed., 1994,
pp. 166 e 167)" mediante a regulação se comprime o âmbito da liberdade econômica
mediante a fixação de limites ao seu exercício e imposição de obrigações e encargos

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com a finalidade de harmonizar os direitos dos prestadores dos serviços públicos (e
demais atividades privadas de interesse público que o Direito administrativo capta)
com os interesses da comunidade (dentre os quais se insere a proteção dos usuários) ...
Na atualidade se vem sustentando que a regulação tem um novo sentido, com as
funções, entre outras, de estimular a proteger a livre concorrência em benefício dos
consumidores" .
Na visão de Cuétara Martinez (Aproximación a la regulación de sen'icio publico
como nuevo paradigma para la prestación de servicios económicos, in El nuevo
servicio publico, Madri, Marcial Pons, 1997, p. 95) "a regulação pode ser entendida
de duas formas: em sentido amplo, abrangente tanto do que chamamos de interven-
cionismo simples (mera atividade de polícia) como da totalidade dos serviços públi-
cos, monopolizados ou não; ou em sua acepção de regulação econômica, em sentido
mais estrito, que se centra na regulação do livre mercado em benefício de valores
coletivos que vão mais além da segurança de pessoas e bens." O mesmo autor afirma
que a regulação comporta o poder normativo, o poder de outorga de títulos de
habilitação, o poder de inspeção, o poder de aplicação de penalidades (Tres postu-
lados para o nuevo servicio público, in El nuevo servicio publico, Madri. 1997, p.
171).
La Spina e Majone (Lo Stato regolatore, Bolonha, li Mulino, 2000. pp. 38 e 39)
distinguem regulação econômica (economic regulation) e regulação social (social
reguLation). "O objetivo da primeira é corrigir alguns defeitos internos do mercado,
aspirando ao seu normal funcionamento. A regulação social destina-se a corrigir
uma vasta gama de defeitos de informação ou de efeitos colaterais ou externalidades
das atividades econômicas, em campos como a saúde, o meio ambiente, a segurança
dos trabalhadores, os interesses dos consumidores; ... na regulação social se incluem
também medidas anti-discriminação e a garantia dos direitos de cidadania."
Parece importante ressaltar, na esteira dos últimos autores, que a regulação não
visa exclusivamente à atividade econômica e aos serviços públicos. Podem ser objeto
de regulação, como ocorre, por exemplo, na França, na Itália, na Inglaterra, os
chamados setores sens,'veis da vida social, como preservação de dados pessoais,
segurança do trabalho, acesso a documentos, relações raciais. São relações e valores
não econômicos, fugindo portanto, à idéia de que regulação inclui necessariamente
concorrência.
Para Salvatore Cattaneo (Agencies e Regulation nel Regno Unito, in Le Autorità
lndipendenti, a cura de Silvano Labriola, Milão, Giuffre, 1999. p. 282) a regulação
implica conjunto de poderes e deveres que apresenta variações relativas à especifi-
cidade do setor, mas apresenta algumas características constantes: a) observação
permanente sobre as atividades do setor; b) coleta e difusão de informações; c)
emanação de pareceres; d) emanação de recomendações ou diretrizes aos agentes;
e) determinações relativas às condições dos serviços e das tarifas; f) investigação e
controle quanto ao cumprimento dos deveres pelos agentes; g) decisões sobre con-
trovérsias e conflitos; h) medidas para execução de suas decisões; i) busca de soluções
negociadas, reduzindo a necessidade do uso de medidas sancionatórias (a estrutura
autônoma especializada do ente regulador torna possível essa atuação).

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Na literatura brasileira, Marcos Juruena Villela Souto (Agências reguladoras,
in Revista de Direito Administrativo - RDA, 216, abr/jun. 1999, p. 130) nota que na
função de regular .. a idéia é sempre harmonizar o interesse do consumidor, na
obtenção do melhor preço e da melhor qualidade do serviço, com os do fornecedor
do serviço, que deve ter preservada a viabilidade da sua atividade, como forma de
se assegurar a continuidade do atendimento dos interesses sociais. Daí porque a
prevenção dos conflitos é um dos principais aspectos da regulação através da ela-
boração de diretrizes que traduzem os conceitos de eficiência técnica e financeira
para o caso concreto do segmento regulado."
Alexandre dos Santos Aragão (Os ordenamentos setoriais e as agências regu-
ladoras independentes, in Revista de Direito - da Associação dos Procuradores do
novo Estado do Rio de Janeiro, vol. VI, 2000, p. 89) nota que regulação e regula-
mentação podem ser usados indistintamente, dando preferência ao termo regulação,
para "designar ambas as formas de exercício da mesma atividade estatal, ou seja, a
da adequação da atividade, Pedro Dutra (Novos órgãos reguladores: energia, petró-
leo, telecomunicações, in Revista do IBRAC, vol. 4, n° 3, março 1997, pp. 39 e 45),
por sua vez, inclui no poder de regular: a edição de normas a incidir sobre fatos e
atos próprios do curso da atividade; a fiscalização; a mediação.
De regra, na regulação e no papel das agências reguladoras não se insere a
fixação de políticas para o setor, cabendo a tarefa aos órgãos de cúpula do Executivo
(Presidente da República ou Ministro, no Brasil, em âmbito federal). No entanto,
vozes doutrinárias pregam a importância de que as agências reguladoras formulem
políticas setoriais ou sediem a discussão ampla sobre a formulação dessas políticas,
por meio de audiências públicas, por exemplo, onde seriam ouvidos os representantes
de todos os envolvidos (v. Pedro Dutra, Regulação: o desafio de uma nova era, in
Revista do IBRAC, vol. 5, n° 2, 1998, p. 6; Novos órgãos reguladores: energia,
petróleo, telecomunicações, in Revista do IBRAC, vol. 4, n° 3, 1997, p. 44).
Entendemos que a regulação, no atual contexto, abrange: a edição de normas;
a fiscalização do seu cumprimento; a atribuição de habilitações (p. ex: autorização,
permissão, concessão); a imposição de sanções; a mediação de conflitos (para pre-
vení-Ios ou resolvê-los, utilizando variadas técnicas, por exemplo: consulta pública;
audiência pública; celebração de compromisso de cessação e compromisso de ajus-
tamento). Não se inclui necessariamente na atividade regulatória a fixação de polí-
ticas para o setor, mas seria viável a contribuição das agências para tanto, com a
participação de representantes de todos os segmentos envolvidos.

3. A auto-regulação

Em alguns ordenamentos, como o italiano (no caso do Garante para a tutela dos
dados pessoais, criado pela Lei 675/96) parece se incluir nas atribuições de regulação
promover, no âmbito das categoria interessadas, na observância do princípio de
representatividade, a elaboração de códigos de deontologia, de verificar a conformi-
dade desses códigos à lei e aos regulamentos e de contribuir para a garantia de sua

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difusão e aplicação. Trata-se de uma auto-regulação induzida e controlada, como
foi feito com jornalistas. Colson (op. cit., p. 515) inclui na regulação diferentes
formas de auto-regulação oriundas dos próprios agentes que seriam regulados. o que
nos parece duvidoso se não houver a atuação do poder público.
A literatura refere a auto-regulação dirigida: ocorre uma troca entre o Estado
e grupos privados; estes aceitam limitar sua liberdade de ação sob dupla condição:
a) garantia de não haver imposição de regulação autoritária; b) o poder público lhes
conferir o poder de fixar normas para si próprios. Ex: bancos na Suiça (cf. Moran,
Le droit neo modeme des politiques publiques, L.G.D.J., 1999. p. 140).
Mas pode haver auto-regulação sem a atuação do ente regulador e nesse caso,
exclui-se da regulação. Ex: regulamentos de empresa; código de conduta da empresa;
auto-regulamentação na área da publicidade; selos de qualidade; standards de qua-
lidade. Cita-se o PANEL, criado em Londres em 1968, composto de profissionais
encarregados de controlar o bom funcionamento do mercado de bolsa. (v. Catherine
Teitgen-CoIIy, Les autorités admistratives indépendantes: histoire d'une institution,
in Les autorités administratives indépendantes, org. Colliard e Timsit, PUF, 1988,
p.26).
Há uma idéia de que a desregulamentação vem geralmente acompanhada de
auto-regulação. E Calixto Salomão (Regulação da atividade econômica, p. 24)
menciona a criação de bolsas de negócios, no formato das bolsas de valores. Mas,
isso não é freqüente.

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