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– Revista do Instituto de Estudos Sobre o Modernismo – ISSN 2182-1488

Álvaro de Campos – Encenador e Actor de si Próprio – Luísa Monteiro

A par da criação, Pessoa e Campos teorizaram sobre a arte teatral, confluindo com determinadas
estéticas do Modernismo (concluindo afinal que o “drama estático” implica obrigatoriamente
movimento). Pessoa também se fez notar como crítico teatral nas páginas da revista Teatro –
Revista de Crítica, fundada em 1913 e que era o local onde se reuniam os intelectuais de então,
com o firme propósito de “vir [a] destruir o [teatro] existente”, sendo este o primeiro passo do
Modernismo nas artes em Portugal. A intenção era a de que o “actor artista perfeito” exprimisse
pelo drama a soma de todas as suas faculdades de imaginação e expressão, revelando as suas
naturezas e necessidades e atingindo uma interpretação inteligível para todos. Porém, se Pessoa
afirmava que “nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramaticamente”, Campos vai mais longe
ao dizer-nos n’A Passagem das Horas, “Multipliquei-me, para me sentir / Para me sentir, precisei
sentir tudo, / Transbordei, não fiz senão extravasar-me, / Despi-me, entreguei-me, / E há em cada
canto da minha alma um altar a um deus diferente.”1
Um actor mais não faz que isto mesmo, ou seja, ousar obviar a sua faceta transfronteiriça
entre a sua e a face de um outro.
Para este artigo, socorro-me primeiramente do poema-dramático A Passagem das Horas.
Temos um actor ou encenador de si próprio? De si próprio ou de “si mesmo” (galicismo bastante
curioso e frequente em Álvaro de Campos, apesar de ele considerar “pretenciosos” os
estrangeirismos)? Mesmo é impossível, porque ele é vários mesmos, todos distintos; a sua
propriedade é a da sensação, tal como no suspiro com que encerra este texto: “Meu ser elástico,
mola, agulha, trepidação…”2. Mas já que inicio por esta reflexão terminológica, continuo: poema-
dramático, ou monólogo? Monólogo, sem dúvida, e acrescento as palavras de Pessoa: “monólogo
prolongado e analítico”, pois ao longo de todo o texto, as perguntas e as respostas mesclam-se no
interior do “eu” em luta consigo mesmo, apresentando uma personalidade multímoda e expondo
a fractura do homem contemporâneo, tal como Pirandello formulou através das suas “máscaras
nuas”, em cujo ventre se gerou uma boa parte do teatro moderno.
Mas afinal, que papel é o de Campos nas ficções cénico-dramáticas de Pessoa? A pergunta
não tem uma resposta única, porque Campos encena-se para ser o actor que nem sempre ele é.
No entanto, a pertinência cénica da obra de Campos leva-nos a crer que Fernando Pessoa é que é
um heterónimo seu. A mais notória característica de Álvaro de Campos enquanto actor de si

1
Álvaro de Campos, Poesia. Ed. Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002, p. 198;
2
idem, p. 205;

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próprio, é a capacidade de devir-outro, ou como José Gil afirma, é a capacidade de “construir um


plano de imanência da pura consciência”3. Ainda n’A Passagem das Horas, confessa:

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,


Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou
uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstracta,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus,
4
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.”

Devir-outro porque Campos não nasceu pronto, tal como o Modernismo não surge
acabado. Há a passagem das horas. Assim, nasceu poeta que terá que cumprir o caminho de
transformar a poesia em poesia dramática, um poeta que terá que ignorar as unidades de tempo,
acção e lugar, criar monólogos de modos diferentes, fazer uso constante dos paradoxos e da
ironia, ignorar as separações tão velhas quanto o neoclassicismo dos géneros trágico ou cómico,
abandonar as imagens decorativas até à construção de um cenário imagético perfeitamente
integrado na estrutura dramática – tal como em Rei Lear; imagens essas que fossem as do
quotidiano, como em Titus Andronicus e onde substituísse versos retóricos por versos expressivos
de si próprio e da sua situação, como em Ricardo III; que reflectisse sobre o estado do mundo, à
semelhança de Hamlet e que, acima de tudo, expressasse a morte da alma, como em Macbeth.
Pôr tudo isto em cena, é obra de um encenador, ou para melhor adequar a expressão à de
Pessoa, de um “construtor”. Como Shakespeare, o “supremo despersonalizado”.
Com o passar das horas, Campos é o bobo de Lear, essa tal personagem que sugere numa
canção que ele e o seu senhor, troquem de lugar. Campos, também “a intonação das vozes que
nunca ouviremos mais”5 é o bobo único, o amargo actor da corte que confessa: “Correram o bobo
a chicote do palácio, sem razão”.6
Se temos um Campos que apresenta uma consciência em expansão n’A Passagem das
Horas (própria dos actores que paulatinamente se apropriam das personagens até serem elas
conscientemente geridas), mas que termina dizendo que é um “ser elástico, mola, agulha,
trepidação…”, ou seja, movimento que sugere contrários, teremos então que encontrar a cena
onde a sua consciência se contrai. E não é difícil.
Não é difícil vê-lo a encenar Fernando Pessoa em Primeiro Fausto, ou se quisermos, numa
verdadeira descida ao inferno, onde o protagonista é o assassino de si próprio, na medida em que

3
José Gil. O Devir-Eu de Fernando Pessoa. Lisboa: Relógio d’Água, 2010, p. 81;
4
Op. Cit., p. 196;
5
Idem, p. 194;
6
Id., p. 207;

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aniquilou a sua própria humanidade e enclausurou-se num mundo de solidão, sem sentido, onde
é incapaz de amar e se sente prisioneiro da sua própria imaginação; este Fausto, nunca perde de
vista o horror do seu crime, embora não tenha, afinal, cometido crime algum – não cometeu:
apenas comete.
Fausto, produto de longo trabalho de observação intelectual e amadurecimento na
constatação das relações humanas, não é mais, como nota Teresa Rita Lopes, do que “uma longa
confissão desesperada do autor”.
Como espectadores, acreditamos neste Fausto se houver um encenador a orientar o actor
no sentido de ele “Outra vez, mas através de uma imaginação quase literária”, como afirma
Campos na sua Ode marítima7. Ou, preferencialmente, que haja um encenador e actor de si
próprio – mas isto implica um desdobramento de 180º, um desdobramento em que um passe a
ser o outro, tal como propôs o bobo de Lear, desdobramento em que Fernando Pessoa não é mais
do que uma criação de Álvaro de Campos, concorrendo para esse efeito a linguagem da
ambiguidade, do paradoxo e do equívoco, onde a vida é morte, o bem é mal e o mal é bem, de
acordo com as marcas do Senhor Engenheiro: “(Eu próprio fui, não um nem o outro no vício, /
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles, / E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da
minha vida).”8
Vemos estas marcas pelos eixos ou perspectivas que subsidiam uma linguagem de uma
mise en scène:
- assim, no eixo da encenação, e atendendo a que a encenação é uma actividade que acontece de
forma conceptualmente construída, assistimos à falência do realismo. Subsiste a ideia de
que a linguagem não é eficaz, o que coloca um problema de índole pragmática,
resultando daqui muitas vezes uma certa abstracção no produto final; estamos perante
um teatro mental, lugar de Campos por excelência;
- no eixo da linguagem, não obstante de Primeiro Fausto ser apelidado muitas vezes de enigma,
tal não corresponde totalmente à verdade. Não há enigma nenhum, porque um dos
lugares de Campos é o da ausência do vírus do sentido, a sua linguagem constitui-se como
linha vibrante entre superfície e profundidade; e
- o eixo do Tempo-Espaço; sendo que o “pôr em cena”, mesmo tratando-se de “teatro mental”, é
um problema próximo da geometria descritiva, ou seja, constitui-se como uma actividade
de multiplicação de espaços (atitude interseccionista), conduz-nos ao conceito de
arquitectura (do grego arquê, da qual derivam as palavras “arqueologia” e “arca”, esse

7
Id., p. 134;
8
Id., p. 198;

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rudimentar navio de onde haveria de renascer uma nova civilização). Ora, ao nível
geométrico, este Fausto está repleto de linhas – temos um muro gigantesco em palco, hás
actores que andam por linhas fixas, para trás e para a frente e temos marcações de
imobilidade por parte de actores, que formam linhas perpendiculares ao palco, desfeitas
apenas aquando do aparecimento dos bailarinos. Enfim, temos o olhar geométrico de
quem tem formação em engenharia naval.

Deste modo, Fausto move-se num palco chamado mente, sujeito a um tempo e a um
espaço indefinidos. O que é catastrófico: como sombra, não pode ascender a um “eu” nem
aniquilar-se espontaneamente. Resta-lhe ser um “não-eu”, um nenhum, constituindo-se apenas
como movimento oscilatório tenso: móvel/imóvel.
Tomando como ponto de partida a importância da experiência para a encenação
contemporânea, somos levados a atentar também nas reflexões de Kierkegaard, para quem a
existência é inferior à essência, logo, não pode haver verdade fora da experiência individual.
Este Fausto tão Pessoa-actor, tão Pessoa-criador de civilização artística, tão deus, tem a
marca da orientação cénica de Campos. Ora, toda a vontade divina tem como destinatário a
humanidade. Recordando a obra The dog who gave himself the moral law, de Cora Diamond,
emparceiramos com a autora quando refere que Deus dá ordens localizadas, sem racionalidade,
desprovidas de desiderabilidade e que a única resposta que tem é a da aceitação. Vemos na
personagem Fausto uma personificação de deus – mas apenas na condição de se tratar de um
deus que falhou no processo da criação, um Deus revertido, ou melhor, um deus cuja acção é um
processo de derrota, pois nesse processo não é nem uma coisa nem outra, nem público nem
deus, nem encenador nem criador.
Mas entre alguma indefinição, termino com uma séria desconfiança: para encenar este
Fausto, esta morte da alma, Álvaro de Campos só poderia ser essa “maravilha da organização”
que Fernando Pessoa referiu: decorrente aliás, de uma leitura delirante e sólida de Macbeth (em
língua inglesa, naturalmente).

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