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Teoria Geral do Direito Administrativo 0 NOVO REGIME DO CODIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO 2015 - 22 Edi¢do Mario Aroso de Almeida Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catélica Portuguesa ALMEDINA TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO ONOVO REGIME DO CODIGO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO Ras Fernandes Toms, 2's 76,786 80 3000.17 Coimbra Tel: 239 861904 Fax 239 851901 swalmedina.ne-edeors@alm BA EDIGOES ALMEDINA, S.A, DMPRESSKO B ACATABENTO PENTAEDRO, LDA, Janclro, 2015 Dupdsizo LEGAL sasa10/15, pest do culdadoe rigor eolocades a elaborago da presente obra, dever constants ser sempre objeto de conftmagio com IN 9787 cou Ha NOTA PREVIA A SEGUNDA EDIGAO Esta segunda edicao surge mais cedo do que o previsto, em razio da neces- sidade de adequar o contetido deste livro & revisio do Cédigo do Proce- dimento Administrativo introduzida pelo Decreto-Lei n® 4/2015, de 7 de 10, que, 20 longo do texto, ser referida como revisto de 2018. Como tinha sido prometido na primeira edi¢ao, aproveita-se 0 ensejo para dar um primeiro passo no sentido de ampliar 0 objeto do livro, abor- dando temas anteriormente nele nao incluidos, embora de modo ainda incompleto, na medida em que a razio determinante do surgimento desta nova edicéo, neste momento, reside na revisio do Gédigo do Pro- cedimento Administrativo ~ revisio profunda, resultante de um trabalho minucioso, desenvolvido ao longo de mais de um ano por uma comissio de especialistas, que tive a honra de integrar. Compreende-se, por isso, que, no essencial, 0 fio condutor das alte- rages introduzidas no presente livro resida no contetido dessa revisio, de cujas principais implicag6es nele se procura dar conta, o que explica osubtitulo. Nao se deixa, em todo 0 caso, de advertir o leitor para o facto de que 0 objeto deste livro nao coincide inteiramente com o novo regime do Cédigo do Procedimento Administrativo, na medida em que sé pontualmente nele silo feitas referéncias aos artigos da I e da II Partes do Cédigo, e, por outro lado, é abordada a matéria dos contratos puiblicos e da responsabilidade da ‘Administragao, em relagio & qual ¢ limitada a relevancia do Cédigo. Janeiro de 2015, MARIO AROSO DE ALMEIDA NOTA PREVIA A PRIMEIRA EDIGAO Ageneralidade do ptiblico leitor conhece-me dos textos que, na sequéncia do meu envolvimento na reforma do contencioso administrativo, tenho publicado.em matéria de processo administrativo. A verdade, porém, & que o essencial da actividade universitéria que, ao longo dos iltimos vinte anos, tenho desenvolvido tem sido dedicado ao direito substantivo, e néo a0 direito processual Na verdade, foi & disciplina de Direito Administrative que, em ter- mos letivos, mantive mais estreita ligagéo ao longo de todo esse tempo, na Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Catdlica Portuguesa. B, desde que, em 1994, assumi a respectiva regéncia, che- ‘guei mesmo a elaborar para essa disciplina uns sumérios desenvolvidos, destinados a orientar os estudantes na preparacéo da matéria - sumérios que nunea passaram disso mesmo e, por isso, optei por nao publicar, por entender que, no essencial, careciam de originalidade. Ao longo do tempo, fui, entretanto, publicando, de modo avulso, sos textos sobre temas nucleares da teoria geral do Direito Adm tivo, respeitantes aos instrumentos juridicos de atuacio administrativa: regulamentos, atos administrativos e contratos ~ sendo que a escolha da maioria dos temas abordados nesses textos foi orientada pelo propésito de ir enriquecendo 0 contetido dos referidos sumarios, em resultado do aprofundamento do estudo dos temas versados em cada um deles. No essencial, este livro é 0 resultado desse trabalho. Na sua base, esto, pots, os referidos textos, revistos, atualizados e, em alguns aspetos, enriquecidos por aditamentos que se afiguraram liteis: como alguns desses textos nfo tiveram grande divulgagao, atenta ‘TEORIA GERAL DO DIRBITO ADMINISTRATIVO. anatureza da publicagio a que se di areceu-me ser esta forma mais adequada de os fazer chegar a um puiblico mais vasto, numa versio revista e atualizada. A estrutura do livro reflete, entretanto, o critério que presidiu escolha dos aspetos sobre que versam os diferentes textos, uns dos temas nucleares lentes aos instrumentos. juridicos de atuagao administrativa. Em alguns pontos, o texto é, entre tanto, completado por trechos provenientes dos préprios sumérios a que se fez referéncia, e, pontualmente, por passagens extraidas da minha dissertacao de doutoramento, no que respeita & teoria do ato adminis trativo, ‘Nao posso deixar de notar que este nfo é um livro de introdugdo & teoria geral do Direito Administrativo, H4, na verdade, pontos que, numa obra dessa natureza, ndo poderiam deixar de ser abordados e que, no pre~ sente livro, nao 0 séo. No que diz respeito aos temas abordados, a pre~ sente publicagao é, em todo o caso, inspirada pelo propésito de fornecer ao leitor, de modo acessivel, a informacao essencial e, ao mesmo tempo, a posigao do Autor em relacao aos aspetos mais importantes. Pode, assim, dizer-se que este livro contém uma introdugio a um con- junto de temas nucleares da teoria geral do Direito Administrativo, res- peitantes aos instrumentos juridicos de atuacéo administrativa, Por outro lado, nao posso deixar de notar que, tendo sido elabora- dos em momentos ¢ conjunturas diferentes, ¢ para finalidades entre si diversificadas, os textos que estiveram na base deste livro nao possuem uma configuracto homogénea. Apesar do esforco de harmonizagao empreendido, é, por isso, natural que o leitor detecte desequilibrios entre diferentes trechos do livro, notando que, em alguns pontos, 0 discurso é mais denso do que noutros, ou que alguns aspectos sio objeto de atengio superior aquela que é dedicada a outros. Estes sio tragos genéticos deste livro, para os quais solicito a benevo- lencia do leitor, na conviegdo, no entanto, de que, no seu conjunto, ele se presenta como um todo coerente, apto a fornecer uma perspectiva trans- versal dos temas abordados e uma leitura pessoal de algumas das questies fundamentais que a seu respeito se colocam, numa abordagem sobretudo orientada para o estudo do vigente ordenamento juridico nacional. NOTA PREVIA A PRIMEIRA EDIGAO Em futuras edig6es, haveré oportunidade de, preenchendo as omis- s®es e suprindo as deficiéncias mais evidentes, eliminar ou, pelo menos, minorar os desequilibrios de que o presente texto enferma ~ designada- mente quanto a um aspeto, apenas aflorado no ponto introdutério: o da influéncia que, a0 longo das tiltimas décadas, o Direito anglo-saxénico tem exercido sobre o Administrativo da tradicéo europeia continental, transformando-o em alguns dos seus tracos identitérios, e dos desafios que dai advém, designadamente no que toca & necessidade de aprofundar as técnicas de controlo dos cada vez mais amplos poderes de apreciagéo da Administragao Pablica. MARIO AROSO DE ALMEIDA ABREVIATURAS CCP Cédigo dos Contratos Publicos CPA. Cédigo do Procedimento Administrative CPTA Cédigo de Processo nos Tribunais Administrativos CRP Constituigéo da Repiblica Portuguesa ETAF Estatuto dos Tribunais Administrativos ¢ Fiscais RREEP Regime da Responsabilidade do Estado e demais entidades piblicas PRIMEIRA PARTE Direito Administrativo, Legalidade Administrativa e Procedimento Administrativo -|- Direito Administrative, Administragao Publica eFuncao Administrativa 1. O Direito Administrativo pode ser definido como o ramo de ito que disciplina, por um lado, a organizagao da Administragio Publica e, por outro lado, o quadro das relagGes juridicas que se esta- belecem no ambito do exercicio da funcdo administrativa, as chamadas relagées juridicas administrativas'. Aadequada compreensao desta definigéo depende da correta com- preensao de cada um dos seus dois componentes. Como facilmente se percebe, elementos nucleares da definigéo enunciada so, por um lado, o de Administragao Publica e, pelo outro, o de fungio administrativa, E, na verdade, por referéncia a cada um destes dois conceitos que so definidos os dois componentes em que a definigio se desdobra, O esclarecimento da definigao proposta de Direito Administrative passa, assim, por uma primeira referéncia aos conceitos fundamentais de Administracao Pablica e de fungao administrativa’, » A definigio enunciada no texto parte daquela que é proposta por D10co FREITAS Do Amanat, Curso de Direto Ac rando-lhe a carga statutéria, rei ica, que aquela contém. A ‘melhor d posigio que, app. 154-155 da xeza do Direivo Administrativoe coma -oncordamos, na medida em que, como adiante se ver, também para nés @Dizeito trativo nfo , no seu conjunto, um ramo de Dielto estatutirio. 2 No trecho imediatamente subsequente, acompanharemos a exposigfo de RoG#R10 Bunnanot Soares, Direito Adm ligdes policopiadas ministradas no Curso de Direito no Porto da Universidade Catélica Portugues, 5/4, nts 1a, 1s ‘TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO 2, Etimologicamente, administracao consiste no manejo, na uti- lizagio de certos meios, com vista a alcangar um determinado fim. A palavra é, no entanto, utilizada tanto para designar a atividade de administrar, como, também, para designar 0 organismo ou entidade que desenvolve essa atividade. Cada um de nés administra o seu patriménio, ou administra bens alheios por encargo ou procuragio, e 0 mesmo sucede com a admi- nistragio de uma sociedade. A partir do momento em que os homens ¢ as mulheres vivem em comunidade, eles passam, porém, a sentir necessidades que, vivendo isolados, nao sentiriam ~ como sucede, desde logo, com a necessidade de garantir a seguranga de cada um contra os membros da comunidade que infringem as regras estabele- cidas ~ ou que, em todo o caso, perdem a sua individualidade inicial, para passarem a ser consciencializadas e, portanto, assumidas como necessidades coletivas, necessidades piiblicas de seguranga ¢ bem- estar, moral e material - como sucede com a garantia da prestagio de cuidados essenciais em dominios como o da educagio, da satide, da limpeza das ruas, etc. Ora, a assungao destas necessidades como necessidades ptiblicas faz com que a comunidade decida chamar a si a respetiva satisfagéo, em vez. de optar por deixar essa satisfacdo entregue ao cuidado (ou as possibilidades...) de cada um. A tarefa de prosseguir a satisfacio des- tas necessidades é assumida como algo que deve ser assegurado pela comunidade no seu conjunto ¢, portanto, como uma atividade de administragio publica, Por isso, a comunidade vai organizar-se para assegurar que ela seja desenvolvida de modo regular, continuo e ade- quado, afetando a isso grande parte dos recursos humanos e mate- tiais de que dispoe. A actividade de administragao piblica vai ser, assim, desenvol- vida por um conjunto de entidades, pessoas coletivas de direito publico, integradas por um vasto conjunto de servigos pitblicos, especificamente instituidos para o efeito: a0 conjunto destes servigos dé-se o nome de Administracao Publica. DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA E FUNGAO ADMINISTRATIVA 3. Do que acaba de ser dito resulta que ao conceito de administra- gio publica podem ser atribuidos dois sentidos diferentes: 4) Por um lado, um sentido material ou funcional, mediante o qual se faz apelo a ideia de administragio para referir a atividade que, numa comunidade politicamente organizada, ¢ desenvol- vida para assegurar a concreta satisfagdo, regular e continua, das necessidades puiblicas de seguranga e bem-estar, moral e mate- rial, Pode dar-se 0 nome de fungio administrativa ao exercicio desta actividade. 5) Por outro lado, um sentido organico ou organizatério, no qual as palavras administragao e publica séo correntemente empre- gues com a utilizagio de maitisculas (Administracio Publica) e pelo qual se pretende fazer referéncia ao sistema complexo de pessoas coletivas piiblicas, integradas por servigos puiblicos, que, numa comunidade politicamente organizada, sao institui- das para desempenhar tarefas de administragio publica, neces- strias & satisfagio das necessidades publicas, ou seja, para exer- cer a fungao administrativa. Como é evidente, estes dois sentidos do conceito estao intima- mente relacionados entre si. Com efeito, é porque se entende que existe certo tipo de tarefas que correspondem a uma atividade de administragio publica (0 exercicio da fungo administrativa) que se institui uma maquina organizatéria publica, um conjunto de enti- dades, pessoas coletivas de direito piiblico, integradas por servigos piiblicos, destinadas a desempenhar essas tarefas, a que ¢ dado 0 nome de Administragio Publica. A Administragao Publica, enquanto aparelho de servigos puiblicos, sé existe, na verdade, porque existem essas tarefas que devem ser desempenhadas. Cumpre, porém, notar que dai nao resulta que Administragao Pablica e fungdo administrativa sejam indissociveis. Na verdade, nem toda a atividade desenvolvida pelas entidades que integram a Admi- nistragio Piblica configura o exercicio da fungao administrativa; e, por outro lado, a funco administrativa nfo é exclusivamente exercida pelas entidades que integram a Administragao Piblica. ‘THORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO Este ponto reveste-se de importancia fundamental, pois é ele que explica 0s termos dicotémicos em que, como vimos, pode ser definido 0 Direito Administrativo. Vejamos, pois. 4, Vimos que 0 Direito Administrative pode ser definido como o ireito que disciplina, por um lado, a organizagio da Admi- nistragdo Piblica e, por outro lado, o quadro das relagdes juridicas que se estabelecem no ambito do exercicio da fungio administrativa, as chamadas relagées juridicas administrativas. £, assim, possivel desdobrar o Direito Administrativo em dois gran- des setores de normas, de natureza muito distinta um do out primeiro desses setores ¢ 0 do chamado Direito Administrative orginico ou organizatério, que compreende o conjunto das normas que disciplinam a organizagio da Administragao Paiblica, instituindo as pessoas coletivas, os drgios € os servigos que a integram. Com efeito, st ja, em cada momento historico ¢ em cada comunidade concreta, de uma Administragéo Publica organi- zada esta necessariamente uma ideia sobre o que, nessa comunidade e nesse momento, s¢ considera serem (ou nao) necessidades publicas ¢ sobre o modo pelo qual elas devem ser satisfeitas. Como facilmente se compreende, é a0 poder politico, incumbido do exercicio da fungio , que compete formular estas opgdes. Com efeito, éele ores ponsével,em cada comunidade e em cada momento, pela definicao das condigdes de que depende a realizagio do bem comum. Desde logo a0 fel constitucional e, depois, no plano da produgio legislativa ordi- néria, é a0 legislador que compete identificar as necessidades piblicas que a comunidade pretende ver satisfeitas pelos servigos da Adminis- tragio Piblica, no exercicio da funcio administrativa, e, para 0 efeito, instituir as figuras organizatérias publicas a quem vai ser confiada a satisfacdo dessas necessidades, em nome e no interesse da coletividade. 4 Tal como atris sucedeu com a definigio de Direito Administrativo, também para o desdobramento em dois grandes setores de normas partimos da tipologia de normas 3s proposta por FREITAS DO AMARAL. pp.142segs. Natripartigio 105, no entanto, «categoria das normas funcionais, que nfo DIREITO ADMINISTR >, ADMINISTRAGAO PUBLICA E FUNGAO ADMINISTRATIVA ‘As entidades que integram a Administracéo Publica sio, por con- seguinte, instituidas e reguladas pelo legislador, quanto & sua estru- tura orginica e modo de funcionamento dos drgaos ¢ servigos que as integram. Este é 0 objeto do vasto conjunto de normas que integram 0 Direito Administrativo orginico ou organizatério. E, nesta perspetiva, pode dizer-se que o Direito Administrativo é, em parte, o ramo de Direito estatutério da Administracao Publica, no sentido em que compreende no seu seio um vasto conjunto de normas que se reportam & Administrag4o Piblica e tém por objeto definir 0 seu estatuto, instituindo as entidades puiblicas que a integram, deter- minando a estrutura organica dessas entidades e regulando o modo prdprio de funcionamento dos respetivos érgios. 5, Mas, embora se possa dizer que o Direito Administrativo é em parte, o ramo de Direito estatutério da Administragio Publica, no especifico sentido que acaba de ser explicitado, a verdade é que ele ndo se esgota na dimensio do Direito Administrativo orginico ou organiza- t6rio, mas também compreende, como jé atras foi referido, um grande setor de normas que disciplinam as relagées juridicas que se estabe- Jecem no ambito do exercicio da fungo administrativa, as chamadas relagées juridicas administrativas. E, tal como sucede nos demais ramos de Direito, pode mesmo dizer-se que sao deste tipo a maior parte das normas de Direito Administrativo*. E, com efeito, o caso, desde logo, e apenas para referir alguns dos dominios de maior relevancia juridica, das normas que regulam os ter- mos do exercicio dos poderes de autoridade da Administracao Publica, instituindo os instrumentos de atuacio juridica de que ela pode lan- car mio e estabelecendo os fins a prosseguir e porventura 0 contetido das medidas a adotar, ou das normas que impdem deveres, sujeicoes + BREITAS DO AMARAL, op ct, p. 147, propde a designacto de relacionais para as nor- mas que integram este segundo setor do Dircito Adi ‘Acexpressio nfo é,n0 entanto, correntemente utiizada e nto se vé necessidade em atribulr uma designagio especifica a normas cuja natureza corresponde & daquelas que integram a generalidade dos ramos do Direito, que nfo compreendem um setor de normas estatutirias, de natu reza orginica ou organizatéria, ou em que a dimensto e relevincia de um setor de normas dessa natureza ¢ desprezivel ‘TBORIA GERAL DO DIRBITO AD! ISTRATIVO ou limitagées especificas 4 Administragio Publica ou aos particulares para com a Administragio Publica, assim como das normas que formal- ‘mente reconhecem ou conferem direitos ou interesses aos particulares perante a Administragio Péblica’, Ora, sucede que, a0 contrario do que se passa com as normas do Direito Administrativo orginico ou organizatério, as demais normas de Direito Administrativo nao tomam necessariamente a Administra- 40 Piblica por referéncia, nem a tém necessariamente como desti- nataria. Com efeito: (i) nem todas as relagdes juridicas que envolvem a Administragio Publica sao reguladas pelo nem todas as relagées juridicas reguladas pelo Direito Ad: tivo envolvem a Administragio Publica. De onde resulta que, embora seja de admitir, como vimos, que 0 Direito Administrativo orginico ou organizatério possa ser qualificado como estatutirio da Administragio Publica, a verdade é que o Direito Administrativo, no seu conjunto, néo pode ser qualificado como um ramo de Direito estatutirio da Adminis- tragio Publica, que teria por objeto regular a Administragéo Publica, no s6 quanto & sua estrutura e organizacao, mas também quanto a0 quadro das relagdes juridicas em que ela toma parte’. Pode, assim, dizer-se que, nesta segunda dimensio, néo organizat6- ria, que tem por objeto regular as relagGes juridico-administrativas, 0 5 Reconhege-se, a latere, que, pelo modo como se encontram tradicionalmente estru= turadas, muitas das normas que acabam de ser releridas, por regularem o exercicio de poderes de autoridade da Administracio, nfo parecem regular verdadeiras relagdes juri- dias, mas ter apenas a Administragio Pablica como destinatiria. A realidade, porém, aque também as normas que conferem poderes de autoridade & Administraglo a0 definirem os condicionalismos de natureza substantiva de que depende o exei esses poderes, conferem poderes de exigir ~¢, se for caso disso, de, «posteriori, reagir ~ 20s eventuals interessados na observancia desses condicionalismos, pelo que podem e ddevem ser objeto de uma leitura relacional. © No mesmo sentido, eft. FREITAS DO AMARAL, op. cit, pp. 154-185, onde se salienta que, por um lado, 0 Direito Administrativo nao é 0 tinico ramo do direito aplicivel 8 Administraggo Publics e, por outro lado, presenca da Administragso Publica nio é um requisito necessario pare que exista uma relagio juridica administrativa, na medida em {que pode haver relagdes juridicas administrativas entre dois ou mais particulares sem qualquer presenga da Administragio Piblica. DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA & FUNGAO ADMINISTRATIVA Direito Administrativo nao é 0 Direito da Administragio Publica, mas 0 Direito da fungdo administrativa’. 6. Como fot dito, nem todas as relagées juridicas que envolvem a Direito Administrativo no é, com efeito, o ramo de Direito que, por definicdo, disciplina as relagées juridicas que envolvam a Administra- ‘ao Publica, O Direito Administrativo sé Administragio Publica desenvolve no exercicio da fungio administra- tiva. Pode, assim, dizer-se que 0 Direito Adi Direito comum da Admi lade, e, portanto, que ele apenas regula a atividade da Ad: Pablica na medida em que esta atua especificamente como Adminis- tragio Publica que é, desenvolvendo uma atividade materialmente istrativo s6 é o ramo de nao quando ela atua como se de um st tratasse. Quando for este 0 caso, as relagGes juridicas que as entidades administrativas estabelecem regem-se pelo ramo de Direito (privado) adequado 4 natureza dessas relacdes, e no por normas de Direito Administrativo. Esta adverténcia justifica-se porque as entidades que integram a ica tém capacidade de gozo de direito privado, dentro dos limites que decorrem do principio da especialidade. Daqui resulta que essas entidades podem ter patriménio privado ¢ dispor e, de uma maneira geral, que podem utilizar os instrumentos 1s que o Direito privado coloca a sua disposigéo, desde que isso incompativel com a sua natureza, nem com a prossecugéo das necessidades puiblicas que constituem o quadro das suas atribuigdes. ireito comum da Fangio administ rapassa em muito o da mera definigéo do estatuto da administragio piblica’, cfr. Manco REDELO DE SoUsA/ANDRE SAL GADO DE Matos, Dieto Administativo Geral, tomo I, 2 ed, Lisboa, 2004, p. $3, a ‘TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO tem sido designado como atuagées de gestio privada da Administracao Piblica’, ‘Nao pode deixar, em todo o caso, de se ter presente que, de acordo com 0 artigo 2°, n®3, do CPA, “os principios gerais da atividade admi- nistrativa e as disposicdes deste Cédigo que concretizam preceitos constitucionais sio aplicéveis a toda e qualquer atuagio da Adminis- tragio Publica, ainda que meramente técnica ou de gestio privada”. Daqui resulta que, mesmo & atividade de gestao privada da Adminis- tragio Publica, sao aplicéveis principios de Direito Administrativo, , portanto, que o ambito de aplicacao destes principios vai para além do Ambito da atuagdo de gestao pitblica da Administracéo Publica, apli- cando-se também a sua atividade de gestio privada’. A nosso ver, dai nao resulta, no entanto, que a atividade de gestio privada da Administragao Piiblica se rege pelo Direito Administrativo, pelo que o Direito Administrativo seria o Direito comum da Adminis- tragio Publica, afinal de contas aplicével a todas as modalidades da sua atuagio, Na verdade, a atividade de gestao privada da Administracio Pablica rege-se, em primeira linha, pelo Direito privado, sendo que os referidos prinefpios sé so chamados a intervir para temperar as solu- Ges que resultariam da estrita aplicagio do Direito privado, impondo limites a liberdade de decisio que um privado teria, mas que nao se mostre compativel com as exigéncias que, num Estado de Direito, devem ser impostas Administragéo Publica A doutrina alema fala, a este propésito, na aplicagio de um Direito privado administrativo", para significar que, nesse dominio, a aplicacao * Chi, por todos, FREITAS Do AstaRAL, op ct, pp. 47-151. » Nesta estrta medida, tem, pois, razdo PauLo OrEno, Lageidade ¢ Administragdo illiee, Coimbra, 2003, pp. 311-312, quando nota que, em bom rigor, o ambito de aptica- fo do Direito Administrativo também se estende &atividade de gestio privada da Admi- alstragio Publica, Como de seguida se explica, a nosso ver, noentanto, este facto, embora ampliea dimensio estatutéria do Direito Administrativo, nfo tem relevosuficiente para repercutirse na definigio proposta de Direito Administrative. ' No mesmo sentido ct. FREITAS DO AMARAL, opt, pp. IS3154. ° Trata-se de uma construgio doutrinal lems, Na doutrina portuguesa, ct, por todos, com referéncias, Manta JOKo Estorninno, A Fig para o Diteto Privade, Coimbra, 1996, pp. 12 segs. PauLo OTERO, op. cit, pp. 51-52. DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGKO PUBLICA E FUNGAO ADMINISTRATIVA do direito privado ser4 permeada pela aplicagio de principios gerais de Direito Administrativo e pela afirmagio da vinculacio da Administta- 40 Paiblica aos direitos fundamentais?, 7. Por outro lado, nem todas as relacdes juridicas reguladas pelo Direito Administrative envolvem a Administrac’o Publica, Isto resulta da circunstancia, cada vez mais comum, alids, tanto entre nds, como no direito comparado, de que o exercicio da fungéo adminis- trativa néo estd reservado, em exclusivo, as entidades publicas, que integram a Administracao Publica. E, por isso, possivel - e, alids, cada vez mais frequente ~ depararmos com relagdes juridicas administra- tivas estabelecidas entre entidades privadas, sem que nenhuma delas possua o estatuto de entidade publica, integrada na Administracao Publica , desde logo, o que sucede sempre que uma entidade publica, designadamente o Estado, confia a prossecugio de atribuigdes publi- casa uma entidade privada. Com efeito, a partir do momento em que um particular é investido no exercicio de fungées piiblicas, designada- mente através da concessio de poderes de administracao de bens ou servigos piblicos, ele passa a exercer a fungo administrativa, passando a ser destinatario das normas de Direito Administrativo que Ihe so aplicaveis. E, na verdade, a0 abrigo e na observancia dessas normas que o particular vai exercer a fungio administrativa, tomando parte nas relagdes juridicas administrativas correspondentes. E 0 que, designadamente, ocorre em todos os casos de delega- io de poderes piiblicos em entidades privadas, que podem resultar diretamente da lei ~ como, v.g., sucede no caso das Federagdes com oestatuto de utilidade publica desportiva, em quem o Estado delega poderes piiblicos de regulacio e disciplina - ou de contrato de con- cessao", " Por este motivo, nao nos parece justficado refletir o aspeto em referéncia na definiga proposta de Direito Administrativo, que, para efeitos pedagSgicos, procura acentuar os ‘tragos identitirios deste ramo do Direito, sem empolar de modo enganador a sua dimen- fo de Direlto estatutério da Administragdo Publica. " Para acircunstanciada inventariagao da variadissima pléiade de situagbes que podem dar origem ao fenémeno de delegacio de poderes administrativos em privados em refe- 2 ‘TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO E também o que sucede quando o legislador opta por criar entida- des privadas, incumbindo-as diretamente de gerir recursos piblicos para prosseguir a satisfagio de necessidades publicas, em vez. de tuir entidades piiblicas para o efeito". Com efeito, é a0 legislador, ao nivel, desde logo, da Constituicéo e, depois, no plano da producio legislativa ordindria, que, como jé atras foi recordado, compete, em cada momento histérico, identificar as necessidades piblicas que a comunidade pretende ver satisfeitas pelos servigos da Administragio Publica, instituindo as figuras organizaté- tias ptiblicas a quem entende confiar a satisfacdo dessas necessidades e regulando a respetiva estrutura orginica e modo de funcionamento dos seus 6rgios e servicos através de normas de Direito Admi organico ou organizatério. Ora, importa ter presente que o fenémeno da existéncia, nas modernas sociedades ocidentais, de uma vasta Administragio Publica, estruturada num amplo conjunto de pessoas coletivas de direito piblico, é 0 resultado de uma concep¢ao geografica e historicamente determinada sobre 0 que se considera serem necessidades puiblicas ¢ sobre o modo pelo qual elas devem ser satisfeitas. Na verdade, em comunidades distintas e em diferentes momentos histéricos, pode uma Administracio Publica diminuta e insignificante ou uma Administragao Publica vasta e poderosa: tudo depende do entendi- mento que, em cada contexto espicio-temporal, prevalega sobre a questio de saber se, em que medida e por que meios, a comunidade deve tomar nas suas maos a satisfacao das necessidades coletivas, réncia no texto, eft: Pepno Gongatves, Entidadesprivadascom poderes plies, Coimbra, 2005, pp. 787 segs. Para a diferenciagio, no sentido do texto, entre estas duas formas de pr izagio das formas de organizagio, cft. PAULO OTERO, op. cit, pp. DRO FERNANDEZ SAcuE7, Os parimetras de controlo de privatze- 8, 2008, pp. 36-37. Também PEDRO GONGALVES, op. p.$50, enquadra ambas as situagGes referidas no texto (a que se refere, mais detalhada- mente, a pp. 396 segs) no fendmeno do “exereicio privado da fungio administrativa” ou da “execugio da fungéo administratva por entidades privadas” DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA F FUNGAO ADMINISTRATIVA através da instituigéo de entidades piblicas, criadas para a satisfagao dessas necessidades, Ora, a0 longo das tiltimas décadas, tem vindo aass dades ocidentais, a um fenmeno de multiplicago dos casos em que o legislador opta por confiar a gestio de recursos piiblicos para o exerci- cio da funao administrativa a entidades privadas, normalmente criadas para o efeito. A doutrina tem falado, a este propésito, de uma mudanga de paradigma, que se concretiza numa fuga para o direito privado', indo mesmo ao ponto de perguntar se, pelo menos sem radical altera- io do quadro constitucional, é ilimitada a liberdade de conformagao do legislador nesta matéria, podendo mesmo climinar de todo as moda- idades de exercicio da fungao administrativa segundo uma disciplina ridica de Direito Administrativo, em favor da utilizacdo de formas as de organizacao e de atuagao regidas pelo direito privado, ou se, pelo contrario, existe uma reserva constitucional de Direito Admi- nistrativo, que imponha a existéncia de matérias inseridas na fungao -a pelo Direito se, nas socie- strativo!®, Pela nossa parte, quer-nos parecer que o fendmeno em causa evi- dencia que a prossecugio da satisfacao das necessidades publicas pode obedecer a modelos diferenciados ¢, designadamente, a modelos tos, em que o papel das pessoas colet das e estruturadas em Administracao Pt Administrativo orginico ou organizatério, tende a ser relativizado pela emergéncia de solucdes que envolvem a atribuicao da gestéo de recursos ptblicos para o exercicio da funcao administrativa a entidades estruturadas segundo formas de direito privado. ‘A nosso ver, a mudanga de paradigma concretiza-se, por isso, num fenémeno de secundarizagio do papel da Administracao Pablica, tal como ela foi entendida no modelo de Estado emergente da revolu- 's Binesgotivel a bibliografia dedicada ao tema. Na doutrina portuguesa, cfr, por todos, Manta Joxo Estorninx, op. cit, pp. 35 segs; Rocén10 ERHARDT SOARES, op. «it, n?19; PAuLo OTERO, op. ct, pp. 310 segs, com outrasreferéncias. ' Sobre o tema, entre nés, eft, por todos, PAULO OTERO, op. cit, pp. 8-10 ¢ B14 segs, ¢ Fennanpez SANCHEZ, op. cit, pp. 91 sogs.,com amplas referéncias. 2s TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO. ‘do francesa, com a concomitante secundarizagao do papel do Direito Administrativo orginico ou organizatério, em beneficio do Direito Administrativo das relag6es juridicas administrativas, cada vez mais aplicavel a entidades que, por serem privadas, nao tém o seu estatuto otginico definido por normas de Direito Administrativo, mas que nem por isso deixam de ser submetidas a normas de Direito Administrativo ~ sem prejuizo de, fora do ambito de aplicagio dessas normas, se rege- rem, naturalmente, pelo seu Direito estatutério, que ¢ 0 Direito privado. 4) Claramente neste sentido, no que ao aspeto orginico ou orga- nizatério diz respeito, resulta, na verdade, hoje dos n®s 1 e 2 do artigo 2° do CPA que as entidades privadas que desempenham a fungio administrativa néo esto sujeitas ao regime orginico ou organizatério da Parte II do CPA, que apenas disciplina o regime especifico de funcionamento dos érgios da Administra- gio Publica. Como foi assinalado na doutrina”, o artigo 2° do CPA, na sua redagio originéria, nao era um modelo de clareza. Na verdade, continha varios preceitos supérfluos e fazia, direta ou indireta~ mente, apelo a trés conceitos diferentes (funcao administrativa, gestio publica, por contraposicao a gestio privada, e poderes de autoridade) para enunciar o critério material de delimitagéo do Ambito de aplicagéo do Cédigo. A revisio de 2015 procurou, por isso, introduzir maior clareza nesse dominio. Nesse sentido, eliminou virios preceitos do artigo 28, de modo a limitar o respetivo regime ao essencial, e procurou tornar mais claro o modo como se articulam os regimes dos respetivos n°s 1, 2 3, precisando que sé a Administracio Publica (identificada no n® 4) esta sujeita ao regime em matéria organica da Parte I do CPA (cfr. n® 2) ¢ também sé ela esti globalmente vinculada a0 respeito pelos princfpios gerais da atividade administrativa, mesmo no ambito das suas atuages de gestao privada (cfr. n?® 3); € que, pelo contririo, entidades de direito privado (que nao ® Cfi. Luts FABRICA, “Ambito de aplicagzo do Cédigo do Procedimento Administra- tivo", Cadertas de Justica Administrativa n° 82, pp. 6 segs. DIREITO ADMINISTRATIVO, ADM ISTRAGKO PUBLICA & FUNGAO ADMINISTRATIVA integram a Administragdo Publica, tal como identificada no n® 4) nao esto sujeitas ao regime em matéria orginica da Parte I do CPA (cfr. n® 2) e s6 esto submetidas ao regime das restantes par- tes do CPA (respeitantes aos principios gerais, ao procedimento ¢ Aatividade administrativa) na medida em que atuem no exercicio de poderes putblicos ou ao abrigo de normas de Direito Administrative (cli. n®1), Na economia do novo artigo 2%, esta ultima formula substitui, pois, de modo unitério, os trés conceitos (funcao administrativa, gestio publica, por contraposicao a gestio privada, e poderes de autoridade) a que, como foi dito, anteriormente se fazia apelo 20 longo dos diferentes mimeros do artigo, pretendendo referir-se as condutas que as entidades em causa adotem no exercicio de fung6es administrativas de gestio publica, com exclusio das suas atuagées de gestdo privada: com efeito, as fungdes administrati- vas de gestio publica tanto se concretizam no exercicio de poderes priblicos, como na adogio de condutas de outra natureza ao abrigo de normas de Direito Administrativo. Ja as condutas de gestio pri- vada das entidades privadas, ao contrério do que sucede com as das entidades publicas (cft. n® 3), regem-se exclusivamente pelo Direito privado, como melhor se vera de seguida no texto, ‘Como foi dito, resulta, assim, do artigo 2° do CPA que as entida- des privadas que desempenham a fungio administrativa nao esto sujeitas ao regime organico ou organizatério da Parte II do CPA, que apenas disciplina o regime especifico de funcionamento dos 6rgios da Administracao Publica, tal como identificados no n® 4, 5) Por outro lado, o Direito Administrativo tem respondido ao fend- meno da dita fuga para o direito privado através de uma politica de permeabilizacio do Direito privado pelo Direito Administrativo®, no que as entidades privadas que exercem a fungao administrativa diz respeito, que se traduz na criagio de normas especificas de Direito Administrativo dirigidas a disciplinar a conduta dessas entidades quando tal se justifica em dominios especificos e, em Sobre o tema, ct. MARIA JoAO EsToRNinH, op. cit, pp. 159 segs. ‘THORIA GERALDO DIREITO ADMINISTRATIVO termos gerais, na extensio a essas entidades da aplicabilidade de institutos de Direito Administrativo de ambito geral. Neste tiltimo sentido, resulta desde logo do artigo 2° do CPA. que as entidades privadas que exercem a funcio administra- tiva s6 nao esto sujeitas a0 regime orginico que o CPA es- pecificamente estabelece para a Administragio Pitblica, tal como identificada no n® 4 do artigo, mas jé esto sujeitas, nos termos do respetivo n* I, a todo o restante regime do CPA, res- peitante aos principios gerais, ao procedimento e & atividade administrativa. Por outro lado, as decisdes concretas emitidas por entidades privadas ao abrigo de normas de Direito Admi- nistrativo sio hoje qualificadas como atos administrativos”, para o efeito da aplicagéo do correspondente regime substan- tivo contencioso, A nosso ver, na mesm: a deve ser, por outro lad deste regime as condutas de pessoas coletivas de direito privado “que sejam reguladas por disposigdes ou principios de dircito administrativo’ Note-se, a propésito, que, a nosso ver, a formula utilizada deve ser objeto de uma interpretagao que, excluindo as situagées em que qualquer particular esteja sob a alcada da aplicagao de nor- mas ou prineipios de Direito Administrativo (basta pensar no exemplo do particular que construa a sua casa em violagio de condigdes impostas pela licenga de construgio), circunscreva a aplicagio do preceito as hipéteses em que condutas lesivas ado- tadas por entidades privadas tenham sido adotadas ao abrigo de disposig6es ou principios de Direito Administrativo impositivos de deveres ou restrigdes especiais, de natureza especificamente administrativa, que nao se aplicam 4 atuagdo das entidades pri- ‘o novo artigo 148 do CPA abandonou o elemento orginico na definigso trativ, deixando de exigir que ele seja praticado por um érgio da Admi- 28 DDIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA E FUNGAO ADMINISTRATIVA vadas: na verdade, s6 nesse caso faz sentido submeter entidades privadas a um regime de responsabilidade civil extracontratual de Direito Administrativo® (sobre este ponto, cfr. ainda infra n? 196). 8, Em nossa opinifo, o modo adequado de enquadrar o fenémeno da multiplicagio das situagées em que o legislador opta por confiar 0 exercicio da fungio administrativa a entidades estruturadas segundo normas de Direito privado, e ndo a entidades puiblicas, ajusta-se & con- traposigao atrés enunciada entre as normas de Direito Administ organico ou organizatério ¢ aquelas que disciplinam as relagdes dicas que se estabelecem no ambito do exercfcio da fungio adminis- trativa. 4) Como resulta de tudo o que foi dito até aqui, em nosso enten- der, deve, na verdade, adotar-se um conceito restrito, orginico eno funcional, de Administragio Publica, sob pena de se diluir o conceito de Administragao Pablica, enquanto realidade orga~ nizatéria de Direito Administrativo, no universo das entidades privadas que, de um modo ou de outro, podem ser incumbidas do exercicio da fancio administrativa, e que sé num demasiado abstrato sentido funcional podem ser reconduzidas 4 ideia de Administragio Publica”, ® A necessidade de tal precisto resulta da circunstincia de que, 20 conti {nfelalmente propusemos no texto que serviu de base & primeira proposta de , do RREEPP acabou por nfo definir 0 exercicio da fungio especificamente por referéncia is agSes e omisses reguladas por normas «principios de Direito Administrativo “impositivos de deveres ou restricées especias, denatureza especificamente administrativa, que nfo se aplicam i atuagio das entidades privadas”, Assinalando o facto, em Revista de Legislago ede Jurisprudéncia n® 3951, p. 360, nota S. ® Como,naverdade, nota Pauto OTERO, opt, pp.75¢84,“¢tudo menos indiferente saber se cada entidade administrativa que prossegue o interesse piblico tem uma natu- reza publica ou privada (Isto 6, se houve ou no uma privatizacto formal), se a gestfo ou realizagio de uma tarefa administrativa é publicizaca ou privatizada ([sto é, se houve ‘ou ndo ums privatizacio material) ¢, em consequéncia, se, por forga da especifica natu- » TBORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO Neste preciso senti adota, no seu n® 4, um conceito resti tragio Publica, que a identifica com os érgios do Estado e das Regides Auténomas que exercem a fungio adm principal, as autarquias locais, as entidades administrativas inde- pendentes, que incluem as entidades reguladoras, as associagbes publicas, os institutos publicos e as demais pessoas coletivas de direito ptiblico, como os entes piblicos empresariais. Por outro lado, resulta hoje com muita clareza do n? 2 do artigo 2% do CPA que s6 a Administragao Publica ~ e ja nfo as demais entidades que, embora desempenhem a fungio administrative, nao integram a Administracao Publica — est4 sujeita as disposi Ges de carter orginico ou organizatério da Parte II do CPA, que disciplinam o regime especifico de funcionamento dos seus, orgios. Por conseguinte, a Administrag4o Publica sé integra pessoas coletivas de direito piblico, cujo regime estatutétio, respeitante a0 modo de instituicao, estrutura orginica e modo de funciona~ mento interno, obedece a normas prdprias especificas de Direito Administrativo orginico ou organizatério, diferentes daquelas que regem as pessoas coletivas de direito privado e que nfo so aplicaveis a estas. Como vimos, quando os drgitos ¢ servicos das pessoas coletivas de direito piblico exercem a fungio administrativa, eles atuam a0 abrigo das normas de Direito Administrativo disciplinadoras dos termos do exercicio dessa fungo, tomando parte em relagdes juridicas administrativas. Mas mesmo no ambito da sua atividade de gestao privada, eles nao deixam de estar submetidos a aplica- gio de principios de Direito Administrativo e de estar vinculados tos fundamentais (cfr. artigo 2°, n® 3, do CPA). ou das particularidades do interesse piblico que ‘comum” aplicivel & sua atividade é primariamente piiblico 1a medida em que “a opgto de privatizacio implica a automatica eleicho ivado como parimetro primério da atividade da entidade privatizada’, No mesmo sentido, fr. também PepRo GONGALVES, op. cit, pp. 411-412, 0 ® Paraacircunstanciada referéncia a algumas das manifestagSesde vinculagd -pibl BsTORNINHO, op. cit, pp. 167 segs. DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA & FUNGAO ADMINISTRATIVA, b) Orgios publicos, do Estado ou das Regiées Auténomas, que nao integram a Administracao Publica, por ndo exercerem a fungo administrativa a titulo principal, praticam, esporadicamente, “atos em matéria administrativa” - que hoje, 4 face do artigo 148° do CPA, devem ser mesmo qualificados como atos administrati- vos. Eo que, desde logo, sucede com o Presidente da Reptblica, a Assembleia da Reptiblica e 0 seu Presidente, e os Tribunais Superiores ¢ os seus Presidentes (cfr. artigos 4, n° 1, alinea c), 24, n®I, alinea a), do BTAE). Para além do regime normativo especificamente aplicivel aos atos em causa, estes drgios devem observar, na pratica de tais atos, os principios gerais da atividade administrativa e as normas do CPA que estabelecem o regime do procedimento administrativo e do ato administrativo. B o que resulta do n® 1 do artigo 2° do CPA. 2) Como jé foi dito, a fungio administrativa pode ser, entretanto, exercida por entidades privadas incumbidas de tal tarefa, titu- lares de delegagoes ou concessdes de funcbes administrativas. Estas entidades, mesmo quando criadas por entidades publicas, nto deixam, por esse facto, de ser entidades privadas, na medida em que obedecem a um modelo de estruturacio orginico regulado por normas de direito privado e, no essencial, se regem pelo seu direito estatutirio, que é 0 direito privado®, pelo que nao fazem parte da Administragio Publica. Com efeito, mesmo quando seja criada por uma entidade piiblica, uma entidade nao ¢ piblica, mas privada, desde que a sua estrutura orginica obedega a um modelo configurado por normas de direito privado. Eo que, paradigmaticamente, sucede com as sociedades comer- ciais de capitais publicos, que, mesmo quando sio criadas pelo Estado, nao deixam de ser sociedades comerciais, estruturadas segundo um dos tipos organizatérios que o Cédigo das Socieda- des Comerciais faz. corresponder 4s entidades dessa natureza, ¢ das entidades privadas que exercem a fungio administrativa, cfr. Manta JoA0 a TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO que, por isso, se relacionam com 0 Estado acionista segundo um modelo de direito privado®. Com efeito, embora, por influéncia do Direito da Unido Buropeia, 0 diploma legal que estabelece o regime geral do sector puiblico = trata-se, hoje, do Decreto-Lei n® 133/2013, de 3 de outubro, que, nesta matéria, segue a orientagao do Decreto- -Lei n® 558/99, de 17 de dezembro, que o precedeu ~ adote um conceito amplo de empresa puiblica (cft. artigos 5? e 13%, n® 1), que compreende no seu seio, tanto pessoas coletivas de direito publico, as entidades puiblicas empresariais, como pessoas cole- tivas de direito privado, as sociedades de capitais pitblicos ¢ de interesse coletivo*, a verdade € que o referido diploma sé faz corresponder as entidades puiblicas empresariais a uma catego- ria organizatéria autdnoma, que qualifica como uma categoria de pessoas colectivas de direito puiblico ¢ sujeita a um regime especifico quanto & respetiva criagdo, transformacao, fusio ou ciséo, que se processa por decreto-lei (cfr. artigos 56%, 57° ¢ 34° do Decreto-Lei n® 133/2013). $6 elas so, assim, objeto de nor- mas de Direito Administrativo orginico ou organizatério, que, mesmo apés a alteragio de regime a que foram submetidas em 2013, parecem continuat a fazé-las corresponder a um nizatorio auténomo de Direito Administrativo, como é préprio das entidades que integram a Administragio Publica’, ® Como,naverdade, nota PEDRO GoNGALVS, opt, p. 413, "salvo se outra coisa resul- tarexpressamente dali a criagdo, por inicitiva publica, de uma entidade num formato de dzeitoprivado Gociedade comercial associagdo ou fundagio)irénaturalmentereme ter paraaesfera do di s80 de regular o processo de relacionamento jrfico que se desenvolve entre essa en einfluéncia dominante sobre el: no silencio d assumemrse_e efetivam-se nos vermos (de dretoprivado)previstos no Cédigo das Socie~ ™ De acordo com a terminologia adotada pela lei, pode, assim, dizerse que existem empresas piiblicas sob forma privada ¢ empresas piblicas sob forma piblica: cfr, por todos, FREITAS Do AMARAL, op. cit, p.390; JOKO CaurERs, Introdugto ao Diteito Adini- nistrativo, UP ed, Lisboa, 2013, p.123. % Cumpre, em todo o caso, notar que, com o Decreto-Lei n133/2013, oregime aplicivel as relagdes que se estabelecem entre as entidades piblicas empresariais e 0 Estado foi DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA E FUNGAO ADMINISTRATIVA, Pelo contrério, as outras empresas piiblicas so sociedades comer- is, cuja constituicdo, transformagio, fusao ou cisao se processa “nos termos e condig6es aplicdveis 4 constituigio de sociedades comerciais”, cuja estrutura organizativa corresponde a dos “ti de sociedade de responsabilidade limitada previstos no Cédigo das Sociedades Comerciais” e com as quais 0 Estado se relaciona na qualidade de acionista (cfr. artigos 10°, 31°, 34° 37° e segs. do Decreto-Lei n® 133/2013). Por conseguinte, elas nfo correspon- dem a um tipo organizatdrio especifico, definido por normas de Direito Administrativo orginico ou organizatério, como ¢ pré- prio das entidades que integram a Administragio Publica, que as diferencie das demais sociedades comerciais. ‘Nao se justifica, por isso, a nosso ver, autonomizar estas socie- dades, no plano organizatério, para o efeito de as integrar na ‘Administragio Pablica’*, No sentido de que elas nao integram fortemente aproximado do regime que anteriormente era apenas reservado As empresas piblicas sob forma societiria, na medida em que detxou de ser prevista a existé agdes de tutelae superintendéncia e ont do artigo 60%, a0determinarq tragioefiscaizagio das entidades pitblicas empresaria modalidades e com as designagées previstas para as saciedades anéninas", parece preten- der que também nesse imbito a relacio do Estado com a empresa seja exercida segundo 0 privado, segundo 0 modelo a que de seguida 2% Bm sentido contririo, a doutrina tende, num conceito amplo de Administragio Pi administrativas privadas e, portanto, de uma Administragio indireta privada, ou de uma Administrago Publica em forma privada ou sob formas privadas: cr, por exemplo, PsDRO GONGALVES, op. ct, pp. 396 segs. JOAO CAUPERS, op. ci, pp. 117 €122; PAULO OreRo, 9. ct, pp.304-307,€ Vinculagtoeliberdade de conformegao uridca do stor empresa- rial do Estado, Coimbra, 1998, pp. 228-230, para quem “a existéncia de uma tal Admi tragio indireta privada acarreta uma inevitavel reformagio do conceito orginico-subje- de Administragio Publica, hoje suscetivel, por consequencia, de comportar pessoas privadassueitas a um controlo ou influéncia dominantes dos poderes piblicos” Pela nossa parte, no nos parece, porém, de acompanhar essa tendéncia, porque, nosso fegrar as entidades em referéncia undo, a seu respeito, de entidades 3 TEORIA GERALDO DIREITO ADMINISTRATIVO a Administragio Publica, aponta, alids, a nosso ver, tanto 0 dis- posto no n° 4 do artigo 2° do CPA, como, muito claramente, on? 1 do artigo 23° do préprio Decreto-Lei n* 133/2013”. E por esse motivo 0 n® 2 do artigo 2* do CPA afasta a aplicagio a estas enti- dades do regime da Parte I do CPA, respeitante ao regime do funcionamento dos érgios da Administragio Publica”, ‘Trata-se, em todo o caso, de entidades que, embora nao corres pondendo, no plano orginico ou organizatério, a um tipo organi- zatério especifico de Direito Administrativo, nao deixam de estar submetidas, no plano funcional, & aplicagao de normas de Direito Administrativo. Com efeito, as empresas puiblicas estio, desde logo, suj ‘um regime normativo especifico, resultante do Decreto-Lei n? 133/2013, que, entre outras coisas, regula o seu relacionamento com 0 Estado acionista. Esse regime define os termos do exercicio da fungio acionista do Estado em relagio as sociedades comerciais de capitais ptibli- cos ¢ de interesse coletivo. Como é evidente, nao esté aqui em ‘causa disciplinar a estrutura orginica das sociedades em causa ~ matéria que o diploma em causa da por resolvida, como foi através da remiss4o para o Direito das Sociedades Comerciais. E, aliés, precisamente por estar em causa a definigao do rumo de entidades com o estatuto e estrutura jusprivatisticos das socie- ver, ¢ salvo o devido respeito, ela mistura o plano orginico com o plano funcional, num. dominio em que, como jf de seguida se dirdno texto, do que se trata éde procedera uma classifcagio organizatéria,e nfo funcional, e€ do ponto de vista funcional, eno orgo- nizatério, que as entidades em causa podem ser qualificadas como piiblicas, por estarem sumbidas do exereicio de fungbes de navureza pi esse sentido, ofr. Lufs FABRI artigo 2° do CPA, cujo contetido corresponde a0 Los FeRNaNDss Caprtita, Regime da Responsabilidade Civil Bxtracont motado, 2 ed., Coimbra, 2010, p. 39, por re '$58/99, que tinha o mesmo teord artigo 23 do Decreto-Let do Decreto-Lei 33/2013. 30 sentido, cfr. PEDRO GongaLves, “Natureza de capitais maioritéria ou exclusivamente piblicos’, Cadernos de Ju DIREITO ADNINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA E FUNGAO ADMINISTRATIVA, dades comerciais, que o legislador assume ser na qualidade de acionista que o Estado deve intervir na determinacao desse rumo. Trata-se, em todo o caso, de disciplinar segundo critérios pré- prios de Direito Administrativo as relag6es juridicas que se esta- belecem entre o Estado e as sociedades em causa” Como esto incumbidas do exercicio da funcao administrativa, as entidades em referéncia esto, por outro lado, submetidas as normas de Direito Administrativo que disciplinam os termos do exercicio dessa funcio e as relagdes juridicas em que, no ambito desse exercicio, tomam parte. Pode, assim, desde logo dizer-se que elas atuam ao abrigo de normas de Direito Administrativo, na medida em que é em normas de Direito Administrative que encontram o fundamento para o exercicio da sua atividade mate~ rialmente administrativa: & 0 que, em primeira linha, sucede no que respeite ao exercicio de poderes puiblicos de autoridade, pois s6 mediante habilitagao legal expressa estas entidades podem ser admitidas a exercer tais poderes (cfr., a propdsito, artigo 22°, n? 2, do Decreto-Lei n® 13/2013)”, ® Nesse sentido, a lei impoe ao Estado o dever de estabelecer orientagées estratégicas, definidoras dos objetivos a prosseguir pelas empresas piblicas, que devem obrigatoria- mente conter metas quantificadas. Estas orientagbes estratégicas devem refletr-se nas orientagGes anuais de cada empress, que so sdcio piblico tinico ou maiortério cumpre {aver aprovar na assembleiageral da sociedade. Estas orientagGes devem, entretanto,pre- veracelebracio de contratosentreo Estado ea empresa, nos quais se devem coneretizar os bjetivos, definir parimetros e padr6es de eficdciaeefciéncia, identificarindicadores referenciais que permitam medira realizagto dos objetivos. Por outro lado, aavaliagio do desempenho dos gestores da empresa também deve depender da celebragio de contratos de gestio, funcionalizadosarealizagio dos bjetivosfxados. Cf, arespeito, ‘gates, Entdaesprimadascom poderesp sa ordem ju das empresas municipais, PRDRO GongatyEs, Regime juridico das empresas mail Coimbra, 2007, pp. 192-195 © Como,naverdade, recorda PauLo OrERo, Legulidade.cit,p.87, as entidades dotadas de personalidade privada, “estando dependentes da atribuigéo especifica de poderes jo um mero ato juridico de Direito Privado se emitirem (pretensos) atos adm 3s fora das competéncias que sto conferidas aos seus rgios”. Em sent ‘TEORIA GERAL DO PIREITO ADMINISTRATIVO Mas, por outro lado, elas também tém de atuar em conformidade com normas de Direito Administrativo, que Ihes so generica- mente aplicaveis, independentemente do tipo concreto de atua- glo que possa estar em causa. Eo que, desde logo, sucede com os principios gerais de Di Administrativo, que sio genericamente aplicaveis a atividade materialmente administrativa destas entidades, assim como, 1pde uma especifica vinculagao aos di tos fundamentais, que Ihes limita a liberdade de decisio: esta é¢ a consequéncia que decorre da aplicabilidade do Direito Admi- nistrativo, enquanto Direito comum da fungao admi a quem quer que a exerca, independentemente do seu estatuto orgfinico, Neste preciso sentido, veja-se, uma vez mais, o regime, ja virias vezes citado, do n®1 do artigo 2° do CPA. Resulta, entretanto, do confronto entre 0 n® 1 e 0 n® 3 do artigo 22 do CPA que o que acaba de ser dito s6 vale para a atuacao de esto ptiblica", mas j4 nao para a atuagio de gestio privada das entidades em referéncia, na medida em que, por se tratar de enti- dades privadas, o normal é que elas tenham um Ambito de gestio privada muito mais alargado do que as entidades puiblicas ¢ que, nesse imbito, atuem em conformidade com o seu direito estatu trio, que € o direito privado. E, na verdade, isto que explica que, como jé atris foi assinalado, o n®3 do artigo 2°do CPA sé estenda ais atuagGes de gestio privada da Administracao Pablica, e destas entidades, a aplicabilidade dos principios gerais da ai dade administrativa e das disposig6es do CPA que concretizem preceitos constitucionais. Impée-se, no entanto, usar, neste dominio, da maior precaugao, na medida em que gestio publica nfo é sinénimo de exercicio de como cntidades dministratives privadas of, entretant, PEORO GONGALVES, Enter des privadescom poder piblics pp. 406-407, com ourasrefertncis 4 Nas palavras de Prono Gowgatvs, “Ambito de aplicagio do Cédigo do Proved DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA E FUNGAO ADMINISTRATIVA poderes de autoridade (como ja atris foi assinalado, veja-se, nesse sentido, a formula compésita utilizada na redagao do n® 1 do artigo 2! do CPA), pelo que deve entender-se que atividades como aque~ Jas que se concretizem na realizacio de prestagdes aos cidadaos no exercicio da fungio administrativa por parte das entidades em causa, esto submetidas a regras e principios de Direito Admi- nistrativo ~ ¢ isto, naturalmente sem prejuizo das obrigagdes de servigo puiblico a que, independentemente da sua natureza, esto vinculadas as empresas que prestam servicos de interesse geral, nos termos da legislacao especificamente aplicavel. c-se 4 aplicabilidade de regras e principios de Direito Administrativo a entidades privadas colocadas em posicio diferente daquela que foi considerada na alinea anterior, na medida em que, a nosso ver, nao exercem a fungao administrativa, mas parece dever entender-se que, em certas circunstincias, adotam condutas “reguladas por normas de direito administrativo”, para 0 feito de ficarem submetidas a previsto do n* 1 do artigo 2° do CPA. Estamos, desde logo, a pensar nas escolas privadas integradas no sistema educativo, escolas oficializadas, que conferem titulos ¢ habi- litagdes com valor oficial. Com efeito, como o Estado nao detém do ensino, néo pode sustentar-se que, quando efe~ tuam avaliagdes e conferem titulos com validade oficial, estas escolas exercem poderes que Ihes tenham sido delegados pelo Estado. Mas nao pode deixar, a nosso ver, de reconhecer-se que, quando praticam tais atos, as referidas escolas atuam ao abrigo de normas de Direito Administrativo, das quais resulta a qualifi- cago desses atos como atos admi os, em tudo idéi aos que, paralelamente, sfo praticados pelos érgios das escolas publicas. Tudo se passa, por isso, como se exercessem poderes piblicos no exercicio da fungio administrativa, embora tal nao suceda®. ™ © tema reveste-se de alguma com idade, ¢, na presente sede, nlo pode ser apro- fundado, Pata a sua circunstanciada andlise, na doutrina portuguesa, cfr. PEDRO GON- ‘gaLves, Entidades privadas om poder priblicos, pp. 489 segs, com outras referéncias. Pela nossa parte, sem deixarmos de concordar com as premissas de que parte o Autor, nd . 10 de revisi)’, in Cadernos de ” ‘TEORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO Com ambito mais geral, deve ser, entretanto, referido 0 que, por impulso do Direito da Unido Europeia, sucede no dominio da contratagio pitblica, em que, para certos efeitos, o legislador equipara a entidades publicas certas categorias de entidades pri- vadas, que, a nosso ver, ndo pode dizer-se que exercam a fun- fo administrativa, submetendo-as, em todo 0 caso, a regras de Direito Administrativo, como se elas exercessem a funcio admi- nistrativa, E, anosso ver, o que sucede desde logo no caso previsto no artigo 275% do CCP, em que, em fungio do preenchimento de certos requisitos, contratos subsidiados celebrados por entidades nfo adjudicantes sio submetidos a regras da contratacio publica, Com efeito, é, para nds, evidente que as entidades visadas por 1¢ nao exercem fungdes administrativas. Por conse- guinte, elas ndo utilizam a contratagto publica no exercicio da fungio administrativa, Por forca, no entanto, da imposi¢ao, a que séo sub- metidas, de, em determinadas circunstdncias, aplicarem as regras da contratacio publica, elas véem-se obrigadas a atuar ao abrigo de normas de Direito Administrativo, das quais resulta a equipa- ragio dos seus atos aos atos administrativos que so praticados pelas entidades adjudicantes no ambito do mesmo tipo de pro- cedimentos. Tudo se passa, pois, como se estas entidades exer- cessem poderes ptiblicos no exercicio da fungio administrativa, embora tal nao suceda, E, anosso ver, o mesmo sucede com as préprias entidades adju- licantes no abrangidas pelo artigo 2° do CCP, que atuam no Ambito dos setores especiais, nos termos dos artigos 7°e segs. do subscrevemos, contudo, a conclusio a que chega, pois, a nosso ver, quando as escolas privadas oficializadasatuam em conformidade com as normas de Di ue Ihes impoem os requisitos formais de euja observ jcados no exercicio de poderes piiblicos delegados pelo Estado, Sensivelmente neste sentido, cft, por: ‘Acérdio do Tribunal Central Administrativo de 6 de junho de 2002, proc. nt -om anotagéo concordante de CARLA AMADO GOMES, jn Cadernos de Justica Administrativa * 36, pp. 48 segs = DIREITO ADMINISTRATIVO, ADMINISTRAGAO PUBLICA & FUNGAO ADMINISTRATIVA, mesmo Cédigo, Com efeito, na medida em que essas entidades sejam puramente privadas ~ no sentido de que, 20 contratio do que sucede com as entidades adjudicantes do n® 2 do artigo 2° do CCP, nao foram instituidas por entidades puiblicas para servirem como instrumentos de prossecugio indireta de fins piblicos -, também elas ndo utilizam a contratagéo publica no exercicio da fungto administrativa, mas apenas porque, instrumentalmente, o legis- lador entendeu, por determinadas razes, equipari-las as enti- dades que exercem a fungio administrativa, para o efeito de as submeter, embora apenas dentro de certos limites, as regras da contratacio publica. ‘Também aqui estamos, pois, perante entidades privadas que, por serem obrigadas a atuar ao abrigo de normas de Direito Admi- nistrativo, das quais resulta a equiparagao dos seus atos aos atos administrativos que sao praticados pelas outras entidades adjudi- cantes no ambito do mesmo tipo de procedimentos, atuam como se exercessem poderes puiblicos no exercicio da fungao adminis- tre ac ‘embora tal nao suceda, Em hipéteses como as enunciadas, parece dever entender-se que as entidades em causa esto abrangidas pelo ambito de aplicagao do n* 1 do artigo 2° do CPA, de onde resulta que, no ambito das atuagées em causa, esto vinculadas, nao apenas & observancia das regras procedimentais devidas, como das demais regras e princ{- pios gerais apliciveis & atividade administrativa. Para dar apenas alguns exemplos, os atos que praticam devem, por isso, respeitar principios como a igualdade ou a imparcialidade, e, sendo equi- parados a atos administrativos, esto sujeitos 20 respetivo regime substantivo, em dominios como o da invalidade, da revogagio ¢ da impugnagio, tanto administrativa, como perante os tribunais administrativos. Legalidade administrativa e boa administragao: iculdades e desafios 1 Enquadramento: o principio da legalidade e os demais principios gerais da atividade administrativa 9. Como estabelece o artigo 266%, n’ 2, da CRP, “os drgios e agen- tes administrativos esto subordinados & Constituigio e idica portuguesa, o principio da legalidade da istrago Publica, que o artigo 3° do CPA enuncia, estabelecendo 3s érgios da Administracdo Publica devem atuar em obediéncia € a0 Direito, dentro dos limites dos poderes que lhes sejam confe- ridos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes, foram conferidos”. O principio da legalidade administrativa é associado a uma exigén- cia de precedéncia de lei, de acordo com a qual o exercicio de poderes por parte dos érgéos da Administragio Publica ~ e entidades equipa- radas para o efeito ~ pressup@e a existéncia de uma base normativa, isto é, de uma fonte de Direito, na qual, em tiltima anilise, radicario 08 efeitos juridicos a introdu: Significa isto que a lei nao é apenas o limite, mas o pressuposto € o fundamento de toda a atividade administrativa, pelo que nao existe Administragéo Publica, nem exercicio da fungao administrativa, sem lei, sem norma legal que o fundamente. E isto, no que respeita ao exer- assim, na ordem Adi que ® fir, por todos, SExvULO Conneta, Leflidede eautonomia contatual nos contatos edsnstratives, Coimbra, 987, pp. 284 segs. ‘THORIA GERALDO DIREITO ADMINISTRATIVO cicio da fungao administrativa, sem que possa ou deva distinguir-se consoante as matérias ou dominios de atuagao. No que se refere ao poder normativo da Administracio, da consagra- gio deste principio parece resultar que, mesmo quando nao se trate de dar execugao ou de completar um ato legislativo anterior, mas de intro- duzir diseiplina nova, regulando de inicio as relagoes sociais, as normas ditadas pela Administracio, os regulamentos, devem ser precedidos de ‘um ato legislativo, de uma norma legal de habilitagdo, que pelo menos fandamente “a competéncia objetiva e subjetiva” para a sua emissio—a seu tempo regressaremos 20 tema (cft. infra, n°s 63 ¢ 64). Janno que diz respeito as decisbes concretas da Administragio, os atos administrativos, deve entender-se que do mesmo princfpio decorre uma reserva absoluta de norma juridica e, portanto, um principio de precedéncia direta ou indireta de ato legislativo. Isto significa que s6 podem ser tomadas decisdes de autoridade correspondentes a tipos previstos em normas de Direito Administrativo: seja directamente em atos legislativos, seja em regulamentos, emanados pela prépria Admi- nistrac&o Piblica, ao abrigo da Constituicio e das leis. Coloca-se, entretanto, a questio de saber qual a densidade exigi- vel as normas em que, de harmonia com o principio da legalidade, deve fundar-se a emissio das decisdes de autoridade da Administra- ‘ao Pablica, designadamente quando diretamente contendem com os direitos fundamentais dos particulares. E a questo coloca-se com cada ‘vez maior acuidade, na medida em que, nos tempos em que vivemos, se tem vindo a assistir a um fendmeno de progressiva erosio do princi- pio da legalidade, que resulta da tendencial redugio da densidade do contetido da regulacio normativa dos poderes de autoridade que a let formalmente confere 4 Administragio - com a concomitante atenu- ago da intensidade do controlo jurisdicional que pode ser exercido sobre 0s atos juridicos em que se concretiza o exercicio desses pode- res, na medida em que, como é sabido, a maior ou menor intensidade do controlo jurisdicional depende da maior ou menor densidade da regulagio normativa. % Cfr: SéxvuLo Cor 1A, op. cit, pp. 297-298. LEGALIDADE ADMINISTRATIVA B BOA ADMINISTRAGAO: DIFICULDADES E DESAFIOS A questio est longe de esgotar-se nesse plano, mas coloca-se com particular intensidade nos dominios da chamada regulagao adminis- trativa®®, em que se assiste a um interessantissimo fendmeno de con- vergéncia de um conjunto de tendéncias que, por porem diretamente em causa os postulados em que assenta a afirmacio do principio da legalidade administrativa, constituem objeto privilegiado de anélise. 10. Cumpre comesar por referir que, tal como sucede noutros ses europeus, também em Portugal a regulacao administrativa é um, fenémeno recente, mas em franca expansio. S40 hoje varios os seto- res em que, designadamente por impulso da Unido Europeia, foram, com efeito, instituidas entidades administrativas independentes do Governo, dotadas de poderes de regulagio*, e a doutrina vem dedi- ® O conceito de regulacio nto é entendido de modo Ainda que, no entanto, iva, consubs- tanciada nas normas legos institutdoras dos sistemas regulat6rios publicos e dis nadoras da atuacio das entidades administrativas reguladaras e dos agentes por elas regulados, a regulagio administrativa ha de reportarse atividade que as entidades, reguladoras desenvolvem no exercicio das suas fung6es. Sobre estes conceits, na dou- ina portuguesa, ft, por todos, Vira Monin, Autorregulact profsionale Adm .co na doutrina comparada, e servigos de interesse geral”, in pp-547 segs, Prpko Goncalves, "Dis nos Estudos em Ho ‘535 segs, erepublicado no livo de mesmo Autor Regula Eletricidadee Telecomunieasdes ~ Estudos de Direito Admainistrativo da Regulagdo, Coimbra, 2008, pp. 7 segs. As pri bes do fendmeno, no ordenamento juridico portugués, cor- respondem 4 regulagio da concorréneia pela Autoridade da Concorréncla, do setor ban- ‘frio pelo Banco de Portugal, des seguradoras pelo Instituto de Seguros de Portugal (SP), do setor dos valores mobiliérios pela Comissio do Mercado de Valores Mol ios (CMVM) iro (IMOPPI), do setor da saide pela Entidade Reguladora da Satie (ERS) e do setor da comunicacio social pela Entidade Reguladora para a Comunicacio Social (ERC). ‘TBORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO cando ao tema uma atengio crescente”. Sé ha relativamente pouco tempo comecou, no entanto, a desenhar-se, no panorama doutrinal portugués, a tentativa de estruturar um pensamento sistematico sobre 0 Direito Administrativo da Regulacio, designadamente do ponto de vista da anilise das especificidades com que, nesse dominio, se concre- tiza a aplicacio dos conceitos e principios enformadores da teoria geral do Direito Administrativo®. (Ora, para os efeitos que interessam a presente anilise, os aspetos em que, aexemplo do que tem sucedido noutros paises, também entre nés tém sido identificadas tendéncias especificas de evolugio no domi da regulacio dizem, fundamentalmente, respeito retragio do pio da legalidade, & intensificacio dos poderes inspetivos e sanciona- trios € atenuacio do controlo j Com efeito, se a diminuicio da intensidade da di a legal dos poderes da Administragao é, he icada pela doutrina como uma tendéncia de ambito geral, a verdade é que o fenémeno avulta com particular nitidez no dominio da regulacdo, em que, mais do que em nenhum outro, se multiplicam as manifestagdes de autocontengio do legislador, mediante as quais a lei tende a limitar-se a conferir as enti- dades reguladoras a habilitagéo formal para a emissao de regulamen- & Merece seferéncia especial o trabalho que, no ambito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, tem sido desenvolvido pelo Centro de Estudos de Di Pablico e Regulacio (CEDIPRE). Cfr., por exemplo, Vitat. MOREIRA/FERNANDA ‘Magis, Auroridades reguladoras independents ~ Bstudoe Projet de Lei-Quadro, Coimbra, 2008; Estudos de Regulagto Publica, vol. I (coordenagio de Vital Moreira), Coimbra, 2004; Prono Gongatvas, Regulagd, Eletricdade e Telecomunicages ~ Estudos de Dieito Adm nistrativo da Regulaet0, Coimbra, 2008; FERNANDA MAGas, “O controlo jurisdicional das autoridades reguladoras independentes’, in Gadernas de Justi Administativan® 58, pp. 2Lsegs. 8 O mais consistente estudo orientado nesta perspetiva ¢ 0 de PEDRO GONGALVES, referenciado. bordagens parcelares, sio estes 0s aspetos com relevo anilise identficados por PEDRO GoNgALvES no seu citado ito Administrativo da Regulagfo”, que acompanharemos de perto no sub- recho da exposigio (s referéncias indicadas reportam-se arepublicagi« pRo Gongatves, Regulacto, ‘Administrativo da Regilagao, pp. 7 segs) LEGALIDADE ADMINISTRATIVA B BOA ADMENISTRAGRO: DIFICULDADES E DESAFIOS tos e mesmo para a pritica de atos administrativos, sem se pronunciar sobre a substincia dos poderes de autoridade que confere. O ponto avulta, desde logo, no que respeita ao poder regulamentar. Com efeito, a generalidade dos regulamentos emanados pelas entida- des reguladoras sao regulamentos independentes, que introduzem dis- ciplina inovadora sobre as matérias a que respeitam, sem se reportarem a0 contetido de uma lei anterior, sendo apenas precedidos de uma pura norma de produgio normativa, isto é, de uma lei que se limita a atribuir acompeténcia objetiva e subjetiva para a sua emissio. ‘Mas também no que respeita & pritica de atos administrativos, tem sido assinalada a tendéncia do legislador para se limitar “a definir os objetivos piblicos e os resultados a atingir”, confiando as entidades reguladoras “uma ampla liberdade de escolha das medidas que, em concreto, se mostrem adequadas, eficazes e eficientes para a produ- ‘gio dos efeitos desejados”, com o que se abre espago i adogio de atos administrativos atfpicos, em relagio aos quais a lei se limita a conferir a habilitagao formal para a sua emissio, sem pré-determinar minima- mente o respetivo contetido®. [Em contrapartida, sio intensos os poderes que a lei confere as enti- dades reguladoras, designadamente poderes de inspe¢io, que compre- endem a possibilidade de realizar buscas e aprender documentos nas instalagdes dos agentes regulados, e poderes sancionatérios, que envol- vemopoder de aplicar sangSes pecunirias de montante extremamente elevado (em , de um modo geral, faz.cor- responder aosilicitos administrativos cometidos nos demais setores de atividade), sangdes acessérias, como a imposi¢io da inibigdo do exerci- cio de atividades, e sangdes pecuniérias compulsérias. © Afiguram-se, a este propés por Pzpxo Gongatvss, “Di laemente ustrativos os exemplos apontados 0 Administativo de Regulagio’sp. 45, do poder que ede roceder identificagio dos poderes de influéncia sobre a opinige publica, ra perspetiva da defesa do plurslismo e da diversidade, podendo adotar as medidas necessirias & sua salvaguarda”; eo poder da Autoridade Nacional das Comunicagdes (ANACOM) de “tomar as medi ara garantir o cumpri- mento de certas obrigag6es por parte dos agentes regulados. ‘TRORIA GERAL DO DIREITO ADMINISTRATIVO ‘Na pritica, a propensio do legislador para a adogéo de uma postura de autocontengio neste dominio tem conduzido, entretanto, a uma atenuagao do controlo jurisdicional. Na verdade, como a maior inten- sidade do controlo jurisdicional depende da maior densidade da regu- Jagio normativa, quanto maior abertura do quadro normativo, menos intensa ¢ a vinculagao das autoridades administrativas ao principio da legalidade e, por conseguinte, mais rarefeito é 0 controlo jurisdicional, a mingua de padrées suficientemente precisos de aferigfo da confor- midade da atuagio administrativa". 1. E preocupante a vertigem com que, neste dominio, tém sido pau- latinamente postos em causa os principais postulados em que assenta a afirmagio do principio da legalidade administrativa™. Nao pode, na verdade, perder-se de vista que, num Estado de Direito, o pressuposto fundamental da prépria admis de poderes de autoridade pelas autoridades piblicas assenta na delicada conjugacio deum conjunto de fatores, que, na exemplar sintese de José Carlos Vieira de Andrade, podem ser enunciados do seguinte modo: a) “Em primeiro lugar, a admi de superioridade (nesse sentido, de autoridade) da Ad do na sua relacéo com os cidadaos, determinando wu mente efeitos (ainda que desfavordveis) na esfera jurt [ARI] ndo podem deixar de ter consequéncias no controlo jurisdicional dos seus atos. A complexidade técnica ea indeterminagio das normas e atos das ARI associadas & falta de preparagio técnica dos magistrados cor ‘o controlo judicial dos seus atos de autoridade se torne uma questio del nfo permitindo em muitas siouagGes sendo um controlo limitado ou atenuado’ © Cir, designadamente, PEDRO GoncaLvES, op. loc. tt cits; FERNANDA MAgas,0p.clt, pp.24-26, © Cfr, Vintna Dz Awpnane, “Algumas reflexées a propésito da sobrevivéncia do con- de ato administrativo”, in Estudasem Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Coiti~ 2001, p- 1197, LEGALIDADE ADMINISTRATIVA B BOA ADMINISTRAGAO: DIFICULDADES DBSAFIOS legislativa substancial, isto é, de ser, genericamente, uma ativi- dade de aplicagao da lei. De facto, nos sistemas do continente europeu, a lei fixa previamente e em abstrato as condigées de rea- lizagdo do interesse piblico, constivuindo assim, para a comuni- dade, uma caugio de democraticidade e de racionalidade, e, para 08 cidadaos, uma garantia de pret 5) “Por outro lado, a admissibilidade do poder de decisio unilateral da Administragio também se justifica pelo facto de a atividade a. um controlo judicial aposterioris- tico, garantido por um direito de impugnacao dos cidadaos, que assegura o cumprimento das condicdes estabelecidas pela lei e, nos espacos discricionarios, 0 respeito pelos prineipios juridicos que regem as atuacées ptiblicas”; 9) Por titimo, impoe-se fala e da atividade administrativa: quer da legitimidade democritica prépria que agora tem de reconhecer-se ao poder administrative (indireta, nas administragGes estaduais, direta, nas administra~ ges auténomas), quer da legitimidade que resulta de procedi- mentos abertos & participacdo dos particulares interessados”. Ora, se bem se reparar, todos estes fatores so postos em causa no dominio da regulacao administrativa. Sendo, vejamos. a) Em primeiro lugar, e mercé da mencionada propensio do legis- Jador para a adogio de uma postura de autocontengio, mediante a qual se demite das suas responsabilidades do ponto de vista da regulagio minima dos aspetos substantivos do exercicio dos poderes de autoridade das entidades reguladoras, falece “a cau- ‘Go de democraticidade e de racionalidade, e, para os cidadiios, a garantia de previsibilidade e de seguranca”, que, num Estado de Direito, deveria resultar da “circunstancia de a atuagao adminis- trativa ser precedida de uma decisio legislati 6, de ser, genericamente, uma atividade de aplicagio da circunstincia tanto mais gravosa dada a intensidade dos poderes inspetivos e sancionatérios que, como vimos, sio atribufdos as entidades reguladoras. ‘TEORIA GERAL DO DIRBITO ADMINISTRATIVO 5) Como jé foi explicado, esta circunstincia fragiliza a sujeicao da atuagao das entidades reguladoras a um efetivo controlo juris- dicional aposterioristico. Como, na verdade, ja atras foi recor dado, a maior intensidade do controlo jurisdicional depende da maior densidade da regulagio normativa, na medida em que, quanto maior a abertura do quadro normativo, mais rare~ feito se torna o controlo jurisdicional, & mingua de padroes suficientemente precisos para aferir da conformidade da atua- do administrativa. 2) Por outro lado, a tendéncia para a atenuagio do principio da legalidade no dominio da regulagio administrativa reveste-se de tanto maior gravidade na medida em que a maior parte das entidades reguladoras independentes nao gozam da autolegi- timago que, de um modo ou de outro, resulta, para as autori- dades administrativas clissicas, da legitimidade democratica de que, direta ou indiretamente, elas so investidas, Esse é, na verdade, o preco do fenémeno de desgovernamentalizagio, que esté associado & maior parte das formas de regulagéo admi trativa ¢ que assenta numa ldgica de separacio entre politica ¢ administracao%, que, inspirada pelo propésito de obter uma administragao assética, neutral, quimicamente pura, de base tecnocratica, cuja competéncia e profissionalismo seriam 0 fun- damento da sua prépria autolegitimacio, tem vindo a proliferar nas sociedades ocidentais, em que a politica esta desacreditada eo mercado tem sido o alfa e o mega. ‘Tem, na verdade, prevalecido na doutrina, neste dominio, o discurso de que o poder politico se deve confinar a identificagio dos fins e obje- tivos da agio publica, deixando para a competéncia dos tecnocratas a concretizagio ¢ a prossecucdo desses fins. Nao pode, porém, esquecer- -se que a concretizacio dos fins, quando envolve o exercicio de poderes de autoridade, designadamente no dominio da pritica de atos impositi- vos ¢ sancionatérios, é criagio de Direito, que, num Estado de Direito + Sobre este ponto, na doutr ee portuguesa, veji-se ainda PeDRo GoNgaLves, Administrativa da Regulacio", pp. 26 segs. LEGALIDADE ADMINISTRATIVA E BOA ADMI {STRAGAO: DIFICULDADES & DESAPIOS democritico, nao pode deixar, em tiltima andlise, de encontrar a sua legitimagio, ainda que indireta, na sede do poder, que reside no Povo. 12 Como jé foi assinalado, os problemas decorrentes do fendmeno da crescente indeterminacao do contetido das normas que discipli- nam 0 exercicio dos poderes da Administrago Publica nao se colocam apenas no plano da regulacdo administrativa, embora, nesse dominio, apresentem especificidades que, como vimos, Ihes conferem maior acuidade. E, a nosso ver, so o resultado da influéncia que, nos tempos de globalizagio em que vivemos, o Direito anglo-saxénico tem exer- cido sobre o Direito Administrativo da tradi¢io europeia continental, transformando-o quanto a alguns dos seus tragos identitérios. Senfo, vejamos. Como muito pertinentemente fez, entre nés, notar Paulo Otero, 0 ‘milagre”, de que falava Prosper Weil, do surgimento do Direito Admi- nistrativo, tal como o entendemos durante parte significativa do século XX, foio resultado de um fenémeno muito particular, e historicamente condicionado, de construgZo jurisprudencial pretoriana, pelo Conse- Iho de Estado francés, de todo um corpo de regras, que, na prética, transformaram o que, a partida, seria o ramo de Direito dos privilé- gios da Administragéo Publica num ramo de Direito (também) dos deveres especificos da Administragio Publica e dos correspondentes direitos dos administrados. Ao longo das tiltimas décadas, contudo, tem-se assistido a um retrocesso nesta matéria, que, em bom rigor, se consubstancia num paulatino regresso da Administragao Publica aos tempos que precederam a sua subordinacao a regras impositivas de deveres especificos®, ‘Ora, anosso ver, para isso tem contribuido o fenémeno da globaliza~ io, que, neste dominio, tem conduzido a uma dindmica de confluéncia com 0 Direito anglo-saxdnico, que, na transicao do século XIX para © século XX, nao conheceu 0 Direito Administrativo, tal como nés © entendemos, nem instituiu um sistema de controlo substantivo da observancia de um tal Direito. * Clr. PAULO Oreno, Legaidade e Administragto Publica, Coimbra, 2003, pp. 275 segs *

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