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Surfing K
Surfing K
Rafael Fortes*
DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X01803511
Resenha recebida em 29 de setembro de 2016 e aprovada para publicação em 5 de novembro de 2016.
* Doutor em Comunicação com graduação e pós-doutorado em História. Professor adjunto do Departamen-
to de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rio de Janeiro - RJ, Brasil.
Coordena o Laboratório de Comunicação e História (www.lachi.com.br). Atua também no corpo permanen-
te do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). O trabalho foi realizado com apoio da Capes, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior.
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missionários cristãos integraram o processo com artistas como Beach Boys e Jan and
de colonização do território e de subjuga- Dean; e programas televisivos (p. 41-42).
ção da população nativa. Nas primeiras dé- O capítulo três aborda a construção da
cadas do século XX, o surfe é ressignificado Indonésia como um destino paradisíaco,
pelos interesses imperialistas, tornando-se um com a destacada promoção do surfe na po-
dos principais elementos de promoção do ar- lítica de divulgação turística levada a cabo
quipélago como destino turístico. Laderman pela ditadura de Suharto, nos anos 1970, a
explora fontes como panfletos, livros, revistas, qual contou com intensa “colaboração dos
pôsteres e cartões postais e, mais importante, surfistas com as autoridades indonésias”
realiza uma releitura de fontes conhecidas — (p. 5). Em meados da década, Bali, promo-
como revistas2 e autores famosos da literatura vida em revistas e filmes de surfe, tornou-se
memorialística sobre o surfe3 —, discutindo o principal destino turístico da modalidade
tais obras e a trajetória de seus autores a partir fora dos Estados Unidos. A construção da
de articulações, pressupostos e objetivos polí- ilha como um “paraíso” ignorou os cerca de
ticos. Isto lhe permite contrariar a literatura 80 mil balineses assassinados pela repressão
jornalística, que situa a exploração comercial política após setembro de 1965, bem como
do surfe a partir dos anos 1970. o apoio dos Estados Unidos à matança em
O capítulo dois enfoca as “viagens, a outras ilhas.4 De acordo com Laderman, “o
diplomacia cultural e as políticas de explo- primeiro campeonato internacional de sur-
ração do surfe” entre as décadas de 1940 fe profissional realizado na Indonésia”, em
e 1970 (p. 41). Em outras palavras, dá-se 1980, contou com discursos de um general,
atenção à “globalização da cultura do surfe de um ministro e do governador de Bali; e
no pós-guerra”, estimulada pelas trajetórias com uma parada de surfistas acompanhan-
de viajantes que se tornariam célebres, bem do a banda militar, na mesma época em que
como ao fato de “as indústrias culturais dos o governo do país executava um genocídio
Estados Unidos abraçarem o esporte”: via em Timor Leste (p. 77).
produções cinematográficas como Maldo- Este capítulo é o de maior densidade, dis-
samente Ingênua (Gidget) e Alegria de Verão cutindo os acontecimentos a partir de sua re-
(The Endless Summer); indústria fonográfica, lação com a cultura do surfe, com a política
interna da Indonésia e com os contatos desse
2
Como Surfer’s Journal. país com os Estados Unidos. Frases como: “a
3
Como a autobiografia de Duke Kahanamoku, es- história do surfe, como o próprio surfe, com
critos diversos (cartas, reportagens e artigos) de Ale-
xander Hume Ford e os livros dos jornalistas Drew muita frequência se situa numa bolha ideoló-
Kampion e Matt Warshaw sobre história do surfe. Cf. gica” (p. 63); e “para os surfistas que viajavam
KAHANAMOKU, Duke; BRENNAN, Joe. Duke
ao redor do globo, levar em consideração a
Kahanamoku’s World of Surfing: Nova York: Gros-
set & Dunlap Publishers, 1968. KAMPION, Drew. realidade política dos lugares que visitavam
Stoked: a History of Surf Culture. Salt Lake City:
Gibbs Smith, 2003. WARSHAW, Matt. The History 4
Os assassinatos em massa foram um dos principais
of Surfing. San Francisco: Chronicle Books, 2010. métodos de repressão política do regime de Suharto.
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conhece, assim, a limitação estrutural que o mercados importantes como Brasil e Japão.
desconhecimento de outros idiomas impõe No mesmo sentido, o capítulo critica (com
ao desenvolvimento da pesquisa histórica. razão) a participação das multinacionais do
Terceiro, a narrativa dos acontecimentos surfe na selvageria promovida pelo neolibe-
recentes e a crítica à atuação das empresas ralismo. Contudo, pouco responsabiliza as
(capítulo cinco) é, do ponto de vista cien- empresas pela conivência com regimes au-
tífico, o ponto mais frágil: desaparece o toritários (tema do capítulo três), ou pelas
olhar historiográfico, e a narrativa se limita representações estereotipadas e imperialis-
a enfileirar frases remetendo a fontes. Pes- tas, em peças publicitárias, de cidadãos de
soal e politicamente, concordo com muitas diversas regiões do mundo (o que permitiria
afirmações e críticas do autor, mas às vezes dialogar com os quatro primeiros capítulos).
elas são pouco rigorosas e generalizantes, Não obstante tais limites, trata-se de
como ao dizer que os surfistas tendem a uma contribuição sólida para a história do
pensar desta ou daquela maneira, ou que a esporte, por inserir na história política uma
empresa de surfwear X é vista da forma Y modalidade quase sempre abordada pelo viés
pelo conjunto dos surfistas. Ademais, o ca- da história cultural, e por fazê-lo adotando
pítulo apresenta, em maior grau, um traço uma perspectiva que busca transcender as
que permeia o livro: para cada período his- fronteiras do nacional (ainda que limitada
tórico (ao que corresponde, mais ou menos, às políticas interna e externa dos Estados
cada capítulo), o autor escolhe um assunto Unidos). Destaque-se também o fato de a
e uma questão — o que, em si, não é um obra mobilizar um imenso volume e varie-
problema. Contudo, acaba deixando em se- dade de fontes (embora, como apontei, num
gundo plano o diálogo entre os capítulos e único idioma), num subcampo ainda muito
entre os períodos estudados. Desta forma, dependente dos veículos impressos, particu-
no último, ignora discussões dos anteriores larmente os jornais diários. Trata-se de mais
que poderiam trazer densidade à análise: a um título de história do esporte que merece-
disseminação global do surfe, a criação de ria ser objeto de tradução para o português,
um circuito mundial profissional, as mito- algo que ainda parece interessar pouco às
logias em torno do Havaí e a emergência de editoras, inclusive às universitárias.
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