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Surfe, política e relações internacionais

Rafael Fortes*

Laderman, Scott. Empire in Waves: a Politi- No primeiro caso, Laderman acrescenta


cal History of Surfing. Berkeley: University of uma nova perspectiva a uma vertente quase
California Press, 2014. sempre preocupada com políticas estatais,
ou com o uso do esporte como ferramenta
de mobilização e luta por movimentos so-
A obra do professor da Universidade de ciais (de independência, de trabalhadores,
Minnesota, Duluth (Estados Unidos) cons- identitários etc.).1 O autor aborda diacroni-
trói uma história política do surfe entre o camente as relações entre uma modalidade e
fim do século XIX e o presente. Para tan- a política, cobrindo um período extenso, o
to, explora um universo amplo e variado de que, salvo raras exceções — como o futebol
fontes, pesquisadas, sobretudo, nos Estados (Brasil) e o futebol americano e o beisebol
Unidos. A descrição e a análise das fontes (nos Estados Unidos) —, permanece algo
são entremeadas por uma boa contextuali- por fazer na história do esporte. Sua obra
zação realizada a partir de diálogo com a bi- contribui para os estudos do surfe ao evitar a
bliografia, ao que se soma a perspicácia dos ênfase na história cultural ou no desenvolvi-
comentários e das problematizações apresen- mento das pranchas, comuns nos trabalhos
tadas. O livro tem trechos saborosos de ler, sobre a modalidade.
seja pelo conteúdo das fontes ou pela análise O primeiro capítulo aborda o surfe no
acurada e, às vezes, mordaz. Havaí entre o fim do século XIX e as pri-
No plano historiográfico, afirmações meiras décadas do XX, período que inclui
como a de que o prazer, intimamente asso- um golpe de estado (1893) e a anexação pelos
ciado ao ato de surfar, é também político, Estados Unidos (1898). As restrições à prá-
podem soar óbvias para aqueles familiariza- tica impostas por governantes estrangeiros e
dos com os movimentos feministas do sécu-
lo XX, mas significam um avanço na histó-
1
Isto para não falar das frequentemente repetitivas
pesquisas sobre Jogos Olímpicos, Copas do Mundo
ria política do esporte e na história do surfe. de futebol e identidade nacional.

DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X01803511
Resenha recebida em 29 de setembro de 2016 e aprovada para publicação em 5 de novembro de 2016.
* Doutor em Comunicação com graduação e pós-doutorado em História. Professor adjunto do Departamen-
to de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Rio de Janeiro - RJ, Brasil.
Coordena o Laboratório de Comunicação e História (www.lachi.com.br). Atua também no corpo permanen-
te do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). O trabalho foi realizado com apoio da Capes, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior.
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missionários cristãos integraram o processo com artistas como Beach Boys e Jan and
de colonização do território e de subjuga- Dean; e programas televisivos (p. 41-42).
ção da população nativa. Nas primeiras dé- O capítulo três aborda a construção da
cadas do século XX, o surfe é ressignificado Indonésia como um destino paradisíaco,
pelos interesses imperialistas, tornando-se um com a destacada promoção do surfe na po-
dos principais elementos de promoção do ar- lítica de divulgação turística levada a cabo
quipélago como destino turístico. Laderman pela ditadura de Suharto, nos anos 1970, a
explora fontes como panfletos, livros, revistas, qual contou com intensa “colaboração dos
pôsteres e cartões postais e, mais importante, surfistas com as autoridades indonésias”
realiza uma releitura de fontes conhecidas — (p. 5). Em meados da década, Bali, promo-
como revistas2 e autores famosos da literatura vida em revistas e filmes de surfe, tornou-se
memorialística sobre o surfe3 —, discutindo o principal destino turístico da modalidade
tais obras e a trajetória de seus autores a partir fora dos Estados Unidos. A construção da
de articulações, pressupostos e objetivos polí- ilha como um “paraíso” ignorou os cerca de
ticos. Isto lhe permite contrariar a literatura 80 mil balineses assassinados pela repressão
jornalística, que situa a exploração comercial política após setembro de 1965, bem como
do surfe a partir dos anos 1970. o apoio dos Estados Unidos à matança em
O capítulo dois enfoca as “viagens, a outras ilhas.4 De acordo com Laderman, “o
diplomacia cultural e as políticas de explo- primeiro campeonato internacional de sur-
ração do surfe” entre as décadas de 1940 fe profissional realizado na Indonésia”, em
e 1970 (p. 41). Em outras palavras, dá-se 1980, contou com discursos de um general,
atenção à “globalização da cultura do surfe de um ministro e do governador de Bali; e
no pós-guerra”, estimulada pelas trajetórias com uma parada de surfistas acompanhan-
de viajantes que se tornariam célebres, bem do a banda militar, na mesma época em que
como ao fato de “as indústrias culturais dos o governo do país executava um genocídio
Estados Unidos abraçarem o esporte”: via em Timor Leste (p. 77).
produções cinematográficas como Maldo- Este capítulo é o de maior densidade, dis-
samente Ingênua (Gidget) e Alegria de Verão cutindo os acontecimentos a partir de sua re-
(The Endless Summer); indústria fonográfica, lação com a cultura do surfe, com a política
interna da Indonésia e com os contatos desse
2
Como Surfer’s Journal. país com os Estados Unidos. Frases como: “a
3
Como a autobiografia de Duke Kahanamoku, es- história do surfe, como o próprio surfe, com
critos diversos (cartas, reportagens e artigos) de Ale-
xander Hume Ford e os livros dos jornalistas Drew muita frequência se situa numa bolha ideoló-
Kampion e Matt Warshaw sobre história do surfe. Cf. gica” (p. 63); e “para os surfistas que viajavam
KAHANAMOKU, Duke; BRENNAN, Joe. Duke
ao redor do globo, levar em consideração a
Kahanamoku’s World of Surfing: Nova York: Gros-
set & Dunlap Publishers, 1968. KAMPION, Drew. realidade política dos lugares que visitavam
Stoked: a History of Surf Culture. Salt Lake City:
Gibbs Smith, 2003. WARSHAW, Matt. The History 4
Os assassinatos em massa foram um dos principais
of Surfing. San Francisco: Chronicle Books, 2010. métodos de repressão política do regime de Suharto.

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significava o risco de poluir a transcendên- essencialista do esporte.


cia da experiência de descer ondas” eviden- Em suma, o livro problematiza uma série
ciam o ponto de vista do autor, para quem de elementos presentes na cultura do surfe e
a postura de ignorar questões políticas está estabelece uma mirada interessante para a re-
relacionada com as próprias características e lação entre esporte e política. Contudo, como
valores do surfe moderno. Isto tornava possí- qualquer obra, tem limites. Aponto três.
vel à cultura do surfe tanto ignorar os banhos Primeiro, ao afirmar que o surfe é “uma
de sangue quanto referir-se repetidamente ao força cultural nascida no império (...), basea­
espírito pacífico dos indonésios. da no poder do Ocidente e inserida no ca-
O capítulo quatro trata do surfe e do pitalismo neoliberal” (p. 7), o autor fornece
boicote esportivo à África do Sul devido ao a chave para se compreender o foco central,
apartheid. O assunto aparecia intermitente- mas também um limite fundamental de seu
mente em revistas de surfe estadunidenses e trabalho: trata-se de uma história política
australianas desde a década de 1960. Contu- do surfe relativa à política externa dos Esta-
do, em 1985, quando três atletas profissio- dos Unidos, e não de uma história política
nais de ponta decidem boicotar as competi- (geral) deste esporte, como o título sugere.
ções em território sul-africano, o movimento Para ser justo: esta grandiosidade nos títulos
ganha força e repercussão na modalidade. O é comum na historiografia de países como
texto se beneficia da grande variedade de Grã-Bretanha, França e Estados Unidos.
fontes, incluindo filmes, livros e revistas da Segundo, o uso de fontes e de bibliogra-
Austrália e da África do Sul. fia exclusivamente em língua inglesa limita a
O último capítulo foca a indústria do análise e as perspectivas apresentadas. Como
surfe e a “mercadorização da experiência”. é comum entre autores anglófonos, Lader-
Uma das principais contribuições é a aná- man não reconhece o problema. Em dado
lise da participação da indústria do surfe na momento, afirma não ser possível saber se
“competição global estimulada por corpo- os vietnamitas surfavam durante a guerra
rações multinacionais para reduzir salários, com os Estados Unidos. Ora, por que não
enfraquecer condições de trabalho e diluir é possível saber? Pela inexistência de fontes?
proteções ambientais”, algo muito distin- Ou pela impossibilidade de acessá-las, já
to da imagem positiva e ecológica que boa que não estão em inglês? Uma pesquisa de
parte dos adeptos e do público geral nutrem história oral que consulte surfistas do Viet-
em relação à modalidade (p. 147). Por outro nã atual poderia trazer informações sobre a
lado, parece-me pouco produtiva a discussão prática do surfe durante a guerra — ou sobre
sobre se é ou não contraditório o fato de o sua inexistência. Trata-se de uma postura
surfe ter se desenvolvido de tal maneira, se relativamente comum: ignorar, como pos-
isto é inevitável etc. Neste ponto, a narrativa sibilidade de acesso ao conhecimento, tudo
se distancia de um bom trabalho de inter- que pode haver de fontes e de historiografia
pretação histórica e flerta com uma visão sobre o surfe em outros idiomas. Não se re-
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conhece, assim, a limitação estrutural que o mercados importantes como Brasil e Japão.
desconhecimento de outros idiomas impõe No mesmo sentido, o capítulo critica (com
ao desenvolvimento da pesquisa histórica. razão) a participação das multinacionais do
Terceiro, a narrativa dos acontecimentos surfe na selvageria promovida pelo neolibe-
recentes e a crítica à atuação das empresas ralismo. Contudo, pouco responsabiliza as
(capítulo cinco) é, do ponto de vista cien- empresas pela conivência com regimes au-
tífico, o ponto mais frágil: desaparece o toritários (tema do capítulo três), ou pelas
olhar historiográfico, e a narrativa se limita representações estereotipadas e imperialis-
a enfileirar frases remetendo a fontes. Pes- tas, em peças publicitárias, de cidadãos de
soal e politicamente, concordo com muitas diversas regiões do mundo (o que permitiria
afirmações e críticas do autor, mas às vezes dialogar com os quatro primeiros capítulos).
elas são pouco rigorosas e generalizantes, Não obstante tais limites, trata-se de
como ao dizer que os surfistas tendem a uma contribuição sólida para a história do
pensar desta ou daquela maneira, ou que a esporte, por inserir na história política uma
empresa de surfwear X é vista da forma Y modalidade quase sempre abordada pelo viés
pelo conjunto dos surfistas. Ademais, o ca- da história cultural, e por fazê-lo adotando
pítulo apresenta, em maior grau, um traço uma perspectiva que busca transcender as
que permeia o livro: para cada período his- fronteiras do nacional (ainda que limitada
tórico (ao que corresponde, mais ou menos, às políticas interna e externa dos Estados
cada capítulo), o autor escolhe um assunto Unidos). Destaque-se também o fato de a
e uma questão — o que, em si, não é um obra mobilizar um imenso volume e varie-
problema. Contudo, acaba deixando em se- dade de fontes (embora, como apontei, num
gundo plano o diálogo entre os capítulos e único idioma), num subcampo ainda muito
entre os períodos estudados. Desta forma, dependente dos veículos impressos, particu-
no último, ignora discussões dos anteriores larmente os jornais diários. Trata-se de mais
que poderiam trazer densidade à análise: a um título de história do esporte que merece-
disseminação global do surfe, a criação de ria ser objeto de tradução para o português,
um circuito mundial profissional, as mito- algo que ainda parece interessar pouco às
logias em torno do Havaí e a emergência de editoras, inclusive às universitárias.

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