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O Príncipe

Katharine Ashe
1ª Edição

Leabhar
2019
Créditos:
Título Original: The Prince
Copyright©2018 por Katharine Ashe
Copyright da tradução©2019 Leabhar Books Editora Ltda.

Editor: Tereza Rocca


Tradução: R. Cappucci
Preparo de originais: Jaime Silveira
Revisão: D. Marquezi
Diagramação: Luis Cavichiolo
Capa: A. Morgade

Todos os direitos reservados.


Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito do proprietário dos direitos autorais.

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Dedicatória:

Para meu filho, matador de dragões (maus).


inspiração

Inspirado por histórias verdadeiras, combinadas e ambientadas


apropriadamente.
Citações
Fugi em confusão, ansiedade e dor.
Encontro-os banidos ao seu comando.
—Saadi,

Gulistan (Século XIII, Persia)

Devemos então, primeiro compreender que esta não é uma


ideia nova.

—Elizabeth Blackwell,

Discurso sobre a educação médica das mulheres (1856, Inglaterra)


Índice

Página do título
Direitos autorais
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Epílogo
Nota da Autora
Expressões em Persa
Capítulo 1

Um Disfarce

Setembro de 1825
Corredor dos Cirurgiões
Edimburgo, Escócia

Lenços de pescoço eram muito mais apertados do que ela tinha imaginado.
E as calças comprimiam uma pessoa bem no centro de onde ela menos queria ser
beliscada.
Mas ninguém a havia notado. Até mesmo os estudantes nos bancos de
ambos os lados, murmurando para seus companheiros sobre a dissecação no
centro do teatro cirúrgico em forma de U, não olhavam duas vezes para ela.
Obviamente, as costeletas tinham sido um golpe de gênio. No entanto,
Libby Shaw manteve os ombros curvados e a cabeça inclinada, espiando a
demonstração, oculta sob a aba de seu chapéu. Quando o cirurgião afastou o
músculo para expor os ossos, um arrepio de prazer a percorreu.
Havia sentado neste teatro antes para assistir a dissecações e cirurgias
públicas. Agora, disfarçada de homem, tudo parecia diferente: os médicos com
suas sábias sobrancelhas e mãos que faziam milagres; o arranhar dos lápis dos
alunos nos blocos de notas; o público curioso atraído pela palestra, se encolhia; e
o fedor da carne na mesa, em sua deterioração natural, diminuído pelo porão
fresco em que o assistente cirúrgico a guardava todas as tardes para preservá-la
para a palestra do dia seguinte.
Durante uma semana, os cirurgiões mais célebres de Edimburgo vinham
realizando dissecções, sistema por sistema, mas Libby não se preocupara em
participar até hoje, o dia reservado para sua parte favorita: o Sistema Ósseo. O
esqueleto humano era robusto, estável, um prazer imenso de se estudar.
― Essa é a fíbula ― o jovem à sua esquerda sussurrou para seu
companheiro.
― É? ― O outro sussurrou incerto.
Não.
Libby mordeu os lábios. As suíças disfarçavam seu rosto, não sua voz.
― Claro, imbecil! ― o primeiro disse. Ela reconheceu aquele tom
arrogante. Havia conhecido muitos desse tipo quando seu pai convidava seus
alunos para jantar. Pensavam que sua arrogância a impressionaria.
― Já estive em dezenas dessas dissecações ― ele acrescentou.
No entanto, ele não diferenciava uma fíbula de uma tíbia.
― O que é isso? ― O outro sussurrou, apontando.
O sóleo.
― A tíbia anterior ― disse o altivo. ― Claramente não leu o “Sistema de
Dissecações” de Charles Bell.
Aparentemente, ele também não tinha.
Seus sussurros se tornaram mais altos. Libby avançou no banco e virou a
orelha para o andar de baixo.
― Veja, o tensor ― disse o altivo. ― Agora ele vai usar a pinça de
litotomia para arrancar o músculo.
Libby virou seu queixo de lado.
― Ele não vai ― ela sussurrou em um tom baixo. ― Ele usará a faca curva
para proteger o músculo enquanto expõe o osso. Agora fique quieto para que o
resto de nós possa ouvir. ― Ela virou o rosto para o palco. Não estava aqui para
repreender estudantes mal informados. Estava aqui para aprender. A cada nova
revelação oferecida pelo cirurgião, Libby escrevia uma nota detalhada, alinhando
cada sentença cuidadosamente na margem esquerda, para ser facilmente legível
mais tarde. Finalmente o cirurgião colocou um pano de linho sobre a mesa, e o
salão irrompeu em aplausos.
― Isso pede uma cerveja ― disse o aluno arrogante, como se ele tivesse
feito a dissecação.
― Convidará o novo rapaz? ― Perguntou seu amigo, olhando-a enquanto
ela fechava o bloco de notas e se levantava.
― A ralé pode encontrar seu próprio pub. ― Disse, curvando o lábio
arrogante.
Eles se foram.
― Não se aborreça com Chedham ― um jovem disse alegremente ao lado
dela. ― Ele é um monte desprezível em um casco recheado de privilégios. A
família tem dinheiro e é esperto como uma raposa. Não acha que precisa ser
decente com ninguém. Bom que o tenha afastado, rapaz.
Não podia fingir que o jovem não estava falando com ela. Estendendo a
mão, tocou a aba do chapéu. Durante semanas, ela estudou os gestos dos
homens, bem como seu andar e movimentos faciais, em seguida, praticou-os
diante de um espelho.
― Não o conheço ― disse o jovem. ― E eu conheço todo mundo. ― Ele
estendeu a mão. Os cachos da cabeleira ruiva balançaram sobre seu rosto pálido
e sardento. ― Archibald Armstrong. Meus companheiros me chamam de
Archie.
Ela se virou.
― Ei! ― Ele disse, examinando o casaco fino de Libby e calças. ― Não é
inteligente demais para apertar a mão de um colega, não é?
Não havia como evitá-lo. Libby segurou a mão dele e apertou-a com força.
― Esperto ― ela murmurou. ― Joseph.
― Bom aperto, Joe! Sempre digo que conhecemos o valor de um homem
pelo seu aperto de mão. Matriculado nesta sessão?
Nos sonhos dela.
Ela assentiu.
― Excelente ― declarou Archie. ― Sempre fico feliz em conhecer um
homem mais inteligente do que eu, menos o Chedham, ― disse ele com uma
piscadela, e deu um tapa no ombro de Libby, fazendo-a cambalear para
frente. ― Os rapazes vão para o Dug's Bone para uma cerveja. Tenho que lavar
o fedor, ― ele disse alegremente. ― Junte-se a nós.
― Obrigado ― ela disse, e ele se afastou.
A euforia borbulhou nela. Todos os três alunos, acreditaram que ela fosse
um homem!
O disfarce, no entanto, não resolveu seu maior problema: encontrar um
cirurgião com quem aprender. Para isso, precisava de contatos na comunidade
cirúrgica de Edimburgo. Essas conexões também abririam o caminho para a
realização de cursos de anatomia, cirurgia e química para aumentar seu
aprendizado. A Srta. Elizabeth Shaw, filha do renomado médico forense John
Shaw, tinha esse tipo de conexão. O recém-criado e totalmente desamparado
Joseph Smart, não tinha.
Mas as mulheres não tinham permissão para serem aprendizes de
cirurgiões. Então se disfarçou.
Lá embaixo, apenas dois alunos estavam fazendo perguntas ao cirurgião
palestrante. As perguntas enchiam sua própria mente, mas garotos como Archie
Armstrong nem se davam ao trabalho de aprender mais.
Como Elizabeth Shaw, ela nunca conheceu esse cirurgião. Ela poderia fazer
suas perguntas sem ser reconhecida. Colocando o bloco de notas debaixo do
braço e indo em direção à escada, lançou um rápido olhar através da plateia
dispersa.
Seus passos vacilaram.
Um homem estava sentado do outro lado do teatro, sozinho enquanto as
fileiras se esvaziavam. Não porque ele fosse a única pessoa que Libby
reconheceu no local, que abruptamente não pode se mover. Pois não era. Havia
notado vários amigos de seu pai na multidão.
E não parou porque esse homem era atraente; pois tinha uma mandíbula
forte e afilada, cabelos negros penteados para trás e olhos profundos. Seus
braços, cobertos por um casaco fino e cruzados sobre o peito, eram musculosos e
o branco de sua gravata brilhava intensamente contra sua pele. Libby nunca se
importou particularmente com a beleza externa; seu interesse era a saúde de um
corpo. E ela tinha sido olhada antes. Não foi devido ao seu olhar escuro fixo nela
que permaneceu paralisada.
Seus pés não se moveram porque naquele olhar havia um reconhecimento
completo. Ele sabia que era ela.
Eles haviam se encontrado apenas uma vez, dois anos e meio atrás, de
forma muito breve. No entanto, o brilho em seus olhos de pálpebras pesadas,
agora lhe dizia que ele a reconhecia naquele momento como sendo Elizabeth
Shaw.
Com um aceno régio, ofereceu-lhe um sorriso lento e confiante de pura
crueldade.
Foi tomada pelo pânico. Era necessário apenas uma pessoa para
desmascará-la. Se não se movesse rapidamente agora, este homem com os olhos
afiados e sorriso perigoso faria isso.

EXCETO PELAS COSTELETAS, ela era perfeita.


Observando-a do outro lado do teatro, Ziyaeddin se perguntou se ela sabia
que as costeletas eram horrorosas. Mas elas serviam ao seu propósito: nenhum
dos homens aqui percebeu que uma mulher se escondia como um deles.
Nenhum, salvo ele.
Por duas horas, a atenção de todas as pessoas do teatro esteve na
demonstração. Embora Ziyaeddin preferisse os estágios iniciais de uma
dissecação cirúrgica, quando o corpo estava inteiro e os músculos ainda cheios
de sangue, apreciava toda a série. Um homem não podia descrever
adequadamente o exterior sem saber o que estava por baixo.
Além disso, a comunidade médica de Edimburgo era grande, sofisticada e
próspera. Ele tinha amigos e patronos entre os homens daqui. Era útil,
ocasionalmente, ser visto em público.
E depois havia a jovem.
Com um semblante sóbrio, ela ouvira o cirurgião palestrante, rabiscara em
um bloco de notas colocado sobre os joelhos cobertos com calças, sem fazer
nenhum movimento que pudesse revelar sua feminilidade. Mas ele conhecia a
jovem sob esse disfarce. A encontrara no castelo de Haiknayes, a casa do duque
e duquesa de Loch Irvine. Se lembrava dela perfeitamente.
Seus dedos segurando o lápis e o bloco de notas eram longos com unhas
muito curtas, e mais escuros do que os pedaços visíveis próximos de seu queixo
e bochechas. O nariz não era nem grande nem atrevido. Os olhos, sombreados
pelo chapéu, tinham a forma de uma amêndoa, estreitando-se nos centros, e
sobrancelhas equivalentes mergulhando em direção a ponte do nariz, a esquerda
um pouco menor que a direita. Os cílios e a cor dos olhos que ele não conseguia
discernir a essa distância, mas sabia que eram, respectivamente, marrons
dourados e azuis brilhante. As suíças obscureciam seus lábios.
Aqueles lábios lhe deram trabalho. Trabalho considerável.
Seu pai, John Shaw, era um médico respeitado. Ziyaeddin considerou a
probabilidade de que o Dr. Shaw fosse ciente de que sua filha agora assistia a
uma dissecação cirúrgica vestida com roupas masculinas. Pelo pouco que
Ziyaeddin conhecia da senhorita Elizabeth Shaw: provavelmente não.
Ela olhava ansiosa para os retardatários que se demoravam com o
palestrante. Não devia estar percebendo como seu rosto mostrava claramente seu
desejo. Provavelmente ele devesse dizer a ela. Isso, além de precisar dar outra
olhada naqueles lábios.
Esses lábios.
Abruptamente, ela virou a cabeça e encontrou seu olhar, e os traços
lindamente móveis ficaram imóveis. O azul acendeu em reconhecimento.
Aha! Então se lembrava dele. Sem dúvida ela apreciara o desenho que ele
havia feito de seu rosto em Haiknayes, provavelmente mantendo-o em um local
íntimo: sua mesa de cabeceira ou entre as páginas de seu diário. Retratos de “o
Turco” eram cobiçados por mulheres de toda Escócia e Inglaterra. Era parte de
sua mística, raramente fazer retratos de mulheres sozinhas, de modo que, quando
fazia, eles eram especialmente valiosos.
Ele inclinou a cabeça.
Com um olhar irritado para o andar onde ocorria a aula, ela saiu pelo
corredor.
Pegando a bengala, ele saiu, cumprimentando as pessoas ao longo do
caminho. A dor habitual o atacou; nunca poderia ficar sentado por muito tempo
sem que isso ocorresse. Ele a ignorou. Tinha coisas muito mais interessantes
para se concentrar agora, duas coisas: um lábio superior e um lábio inferior.
Quando chegou à rua, ela havia desaparecido. Em meio à azáfama de
pedestres, cavalos e veículos, não conseguia vê-la. Então, abruptamente, olhou
através da janela de uma livraria.
Um jovem com um chapéu muito apertado e costeletas o encarava por cima
da borda de um volume aberto. O fogo nos olhos inteligentes o desafiava a
revelá-la.
Abrindo a porta, entrou e olhou para o rosto desalinhado de Elizabeth Shaw.
O chapéu era um artifício inteligente e, como a gravata e o casaco, era de
boa qualidade e discreto. Mas a costeleta estava toda errada, feita de pelos de
cabra, muito grosseiras e cinzentas, e não combinava com os fios dourados dos
cabelos, visíveis entre o chapéu e o colarinho. Para esconder sua pele lisa, ela
exagerou as costeletas laterais até que fossem grossas e compridas como as de
um marinheiro.
Ele se curvou. ― Bom dia.
Ela abaixou a cabeça, se moveu ao redor dele e saiu correndo da loja.
Ele a seguiu.
Como ele mais ou menos previra e desejara, ela o estava esperando em um
beco não muito longe. Entrando no estreito isolado, foi em direção a ela.
― Não deve contar ao meu pai ― disse-lhe sem preâmbulo. Não o
surpreendeu. Quando eles falaram tão brevemente em Haiknayes, ela também
não se preocupou com os modos regulares.
― A cor da costeleta está inadequada ― ele disse.
Seu nariz enrugou. ― Está?
― Precisa de mais amarelo. ― Amarelo ocre. E talvez um toque de Siena
natural.
Ela parecia considerar isso. ― Suponho que tem conhecimento disso, sendo
um retratista.
― Realmente tenho ― ele disse, refreando sua diversão.
― Suíças críveis são notavelmente difíceis de achar. ― Não havia raiva em
seus olhos agora, apenas séria preocupação. ― Como me reconheceu?
Ele deu um passo à frente, fechando a distância entre eles, de modo que a
forma precisa e os tons de seus lábios se tornaram claros para ele - belos lábios:
nada parecido com a moda atual de arcos vermelhos, em vez disso, amplos e
exuberantemente rosados.
― Tenho motivos para conhecer bem esses lábios. ― Ainda que não bem o
suficiente.
Antes de seu encontro com Elizabeth Shaw no Castelo Haiknayes, nunca
tinha olhado os lábios de uma mulher e desejado tocá-los imediatamente.
Desenhar: sim. Pintar: certamente. Tocar: nunca.
― E esses olhos ― acrescentou, porque ela era uma mulherzinha incomum
e fazia algo com ele - algo alarmante, mas totalmente prazeroso. Ela acelerava
sua pulsação. E o fez querer ficar conversando em um beco, falando sobre
costeletas falsas.
― Em Haiknayes ― ela disse, ― desenhou meu rosto perfeitamente depois
de me ver apenas uma vez.
Não perfeitamente. Mas perto.
― Se recorda ― ele disse.
― É claro que me recordo. Não estou na minha velhice, e deu o
retrato para mim. Meu pai acredita que um dos meus amigos desenhou. Colocou
uma moldura e pendurou na sala. Fingi que caiu da parede enquanto estava
sendo espanado e teve o vidro quebrado. Disse a ele que levaria para a loja para
que o vidro fosse substituído, mas o joguei na lixeira.
Ele riu.
Suas sobrancelhas levantaram. ― Não está ofendido?
― Claro que não.
― Realmente?
― Se eu quisesse, poderia desenhar seu rosto mais cem vezes.
Ela piscou. ― Eu tenho que ir. ― Ela olhou em direção ao final do beco. ―
Tenho outro lugar para ir agora.
― Um clube de cavalheiros? ― Ele cruzou os braços. ― Ou um inferno de
jogos? Talvez a hospedaria local?
Os lábios dela se contraíram. ― Esse é o tipo mais simples de humor.
― Bem, não pretende comparecer a um círculo de costura para
mulheres neste conjunto. ― Ele permitiu que seu olhar viajasse pelo casaco
pesado e calças. Ela certamente havia enfaixado seus seios, mas não havia como
disfarçar o sutil arredondado de seus quadris. ― Pretende?
― Está sendo ridículo. Não contará a ninguém, não é?
Ela não tinha motivos para esperar sua discrição. E ele estava apreciando a
seta que se formava na ponte de seu nariz, sua forma parecia um par de amantes
leais separados para sempre por uma montanha. A beleza dela era convencional,
uma mistura de clareza escocesa e delicadeza inglesa. No entanto, a capacidade
de mudança de seus traços o fascinava.
Achava qualquer tipo de liberdade de movimento enlouquecedora - e
inspiradora.
― Gostaria de saber o motivo do seu disfarce ― disse ele.
― Queria avaliar se eu poderia passar por homem ― disse ela em um tom
que sugeria que achava que ele fosse um simplório. Mas ele estava acostumado
com isso. Mesmo nesta cidade de aprendizado, e apesar da popularidade da
moda da sociedade otomana, era ocasionalmente tratado com o desprezo de
pessoas que acreditavam que o tom de sua pele ou suas características
estrangeiras o tornassem obtuso, irracional, violento, cruel ou voraz.
No entanto, os olhos dessa mulher não brilhavam com insulto, mas com
sinceridade.
― Parabéns pelo sucesso ― disse ele. ― Quase.
― Eu poderia facilmente perguntar o que o senhor estava fazendo lá.
― Apreciando a visão de uma moça bonita disfarçada em um jovem.
Como a luz do sol no Mediterrâneo, seus olhos brilharam. Abruptamente
ela passou por ele. Ele observou as pernas ágeis e as costas retas e largas que
eram confiantes demais para uma mulher.
― Senhorita Shaw, perdoe minha impertinência.
Ela fez uma pausa. ― Vi o retrato que fez do duque e da duquesa. É muito
bom.
Aquele retrato do duque e da duquesa de Loch Irvine não era "muito bom".
Era brilhante. Claro e escuro. Mistério e familiaridade. Ação e paz. Paixão e
razão. Ele havia pintado todas as facetas do par em equilíbrio sublime.
Olhando para os olhos agora brilhantes, ele viu que a Srta. Shaw estava
bem ciente disso.
Então, esta pequena mulher da testa séria, sabia como provocar
também. Ele deveria ter previsto isso.
A reação de seu corpo a essa percepção foi, no entanto, uma surpresa.
Talvez aquelas pernas finas fossem o problema. Ou pensar em seus seios
enfaixados. Ou a curva cheia do lábio inferior. Ou o fato de que ela estava em pé
diante dele vestida como um rapaz, enganando todo mundo, mas aparentemente
esperando que ele mantivesse seu segredo.
― Não contará a ninguém, não é? ― Ela disse. ― Ao duque ou
Amarantha?
― Acredito que eles estão no campo.
― Essa não foi uma resposta. Irá?
― Seu segredo está seguro comigo.
― De verdade?
Ele assentiu.
― Obrigada. ― Com uma rápida passagem, de cima a baixo, do olhar dela
por seu corpo, saiu apressada e virou a esquina.
Ziyaeddin andou lentamente o restante do percurso para sua casa. Mesmo
quando o caminho era longo e seu quadril e costas limitados, não gostava de
contratar uma cadeira de rodas. Andando, podia estudar pessoas.
No entanto, quando entrou no saguão de sua casa, que estava frio na úmida
moda Caledônia, percebeu que por muitos minutos, não vira nada do seu
entorno. Estava pensando nela.
Aqueles lábios.
Aqueles malditos lábios.
Uma carta estava no prato de prata na mesa do vestíbulo, o nome Ibrahim
Kent escrito em seu exterior, bem desgastado. Tinha viajado muitos quilômetros,
e reconheceu a mão que a endereçou. Já havia recebido essas cartas antes.

Saudações e bênçãos sobre o senhor.

O criado de sua irmã no palácio, Ali, nunca escreveu nada nessas cartas que
pudesse identificar qualquer um deles - sem saudação, sem nome, sem título - no
caso de aqueles que não eram simpáticos à sua senhora as interceptassem.

Ela me pede que implore que permaneça como está, porque ele teme seu
retorno e não cessa suas ameaças contra os que lhe são leais. Ela insiste que
chegará um momento em que seu retorno não colocará ninguém em perigo. Até
lá, ela lhe pede paz, assim como eu.

Ziyaeddin dobrou a carta e levou para o fogo da cozinha para queimá-


la. Então entrou em seu escritório e escreveu uma carta para Londres.
Repetidas vezes, em sete anos, o secretário do Exterior havia esclarecido a
posição da Grã-Bretanha sobre o assunto. Aguarde seu tempo, Sua Alteza. A
situação é volátil demais, os russos são muito poderosos, os otomanos estão
muito inquietos e o Irã, pouco preparado para outra guerra. Se o czar acreditar
que seu aliado em Tabir, agora governando, é fraco, isso perturbaria todas as
outras terras da região. A Grã-Bretanha virá em auxílio de Sua Alteza a
tempo. Nós apenas aguardamos o momento ideal.
Em sete anos nada havia mudado: Westminster ainda recusava ajuda; sua
irmã ainda era prisioneira no palácio em que seu pai governara
benevolentemente; e ele, herdeiro desse reino, ainda estava indefeso, a milhares
de quilômetros de distância, onde o destino o havia jogado. No entanto, sua irmã
pediu-lhe para permanecer aqui.
Após anos de exílio, cativeiro e tentativas de assassinato, a falsa identidade
que ele adotara lhe dava alguma paz. Mas não podia estar contente. Que tipo de
homem permitiria que sua irmã fosse obrigada a um casamento forçado com seu
inimigo? Que tipo de filho não queimaria para vingar o assassinato do pai?
Disfarçar e acorrentar o desejo: estes eram o compasso de sua vida agora.
Não guardaria o segredo de Elizabeth Shaw porque lhe pedira. Ele manteria
porque a entendia.
Capítulo 2

O Desejo

Libby entrou na despensa do mordomo, tirando o chapéu e o casaco


apressadamente. A palestra foi longa e depois aquele homem a atrasou ainda
mais.
Aquele homem.
Dois anos e meio atrás, quando o encontrou pela primeira vez, ele também
a desconcertou. Desequilibrava-a, o que era um absurdo, dado que ele andava
com uma muleta, não ela.
Era muito misterioso para o seu gosto. A maioria das pessoas acreditava
que fosse turco, mas falava muitas línguas - turco, persa, francês, russo, inglês, e
alguns diziam que até árabe. Ele era um retratista muito popular. Pessoas
abastadas encomendavam seu trabalho por enormes somas, e ele aparecia nas
colunas de fofoca de Edimburgo com a mesma assiduidade que frequentava a
sociedade, que raramente parecia ser por escolha. Anfitriãs da moda o adoravam.
Magnificamente eloquente e jovem, tendo adotado plenamente o vestuário
britânico e evitando totalmente as costeletas, o Sr. Ibrahim Kent era ao mesmo
tempo exoticamente estrangeiro e confortavelmente familiar. Aparentemente,
para a alta sociedade, isso fazia dele o convidado ideal.
Mesmo assim, ele permanecia um grande mistério. Por que ninguém sabia
de onde exatamente ele tinha vindo? Por que o segredo?
Libby não gostava de mistérios. Eles faziam com que sentisse coceiras e
inquietação.
Mas acreditava que ele não iria expô-la. O duque de Loch Irvine sempre
havia sido muito gentil, e ele era seu amigo íntimo. Ela confiava na palavra do
Sr. Kent.
Estava dolorosamente, descolando as suíças das laterais de suas bochechas
quando Iris Tate apareceu na porta e caiu na gargalhada.
― Costeletas e musselina! Mamãe não precisa me levar a Londres para
uma temporada afinal, agora já vi tudo o que há para ver.
― Venha me abotoar. ― Libby enfiou a calça, a camisa e todas as outras
partes do disfarce sob a prateleira de vinho vazia e, pegando um pote de óleo do
esconderijo, começou a limpar a cola. ― Os carregadores terminaram?
― Estão carregando os baús do seu pai na carruagem agora. Levarão o seu
para a casa da Srta. Alice depois. Por sinal, a criada de Alice está com febre e ela
está preocupada que possa contaminá-la.
― Eu nunca tenho febres. Minha constituição é forte. ― Isso fazia dela, a
candidata ideal para a profissão médica se ao menos permitissem mulheres na
profissão. ― Obrigada por me ajudar com isso, Iris. É uma amiga querida.
― Eu a convidaria para ficar comigo enquanto seu pai está fora, mas nunca
lhe infligiria a mamãe. Pronto! Se parece com uma mulher novamente, exceto
pelas manchas vermelhas em volta dos seus lábios.
Libby esfregou o unguento em sua pele irritada. ― Preciso encontrar uma
cola menos abrasiva. E calças mais confortáveis.
― Não poderá voltar a assistir de qualquer forma, não como um rapaz, ―
disse Iris. ― Agora que estará morando a duas milhas de distância, na casa de
Alice em Leith, estará muito longe da universidade. E onde mudaria essas roupas
sem ser descoberta? Na loja de Tabitha?
― Não posso. Ela foi maravilhosa ao fazer essas roupas para que eu
pudesse me mover secretamente pelas docas. ― Quando Libby e seu pai
moravam em Leith, Tabitha aclamou a necessidade de Libby de tratar as feridas
e pequenas doenças de marinheiros pobres dos navios mercantes. ― Mas depois
que Thomas descobriu e disse ao meu pai, não posso pedir a Tabitha que
mantenha esse segredo dele. Um relacionamento íntimo entre uma esposa e um
marido deve ser baseado na confiança.
― Suponho que sim ― disse Iris com o encolher de ombros de um garoto
de quinze anos.
― Realmente deve, Iris. ― No entanto, aqui estava ela mantendo o segredo
de seu pai, a quem amava mais do que qualquer outra pessoa no mundo. ― É
positivamente criminoso não poder aprender com um cirurgião como eu mesma.
― Elizabeth? ― Seu pai chamou da frente da casa. ― Está aí?
― Estou indo, papai!
O vestíbulo tinha uma cena familiar: seu pai rodeado de bagagem. Através
da porta aberta, podia ver homens puxando uma mala para o coche. Ela e o pai
mudavam de residência frequentemente, seguindo seus pacientes aristocráticos e
projetos da polícia. Agora estavam se mudando novamente, desta vez, no
entanto, separados: ele para Londres e ela de volta para Leith para viver com sua
amiga Alice Campbell.
― Estou aqui, papai ― ela disse.
Aos sessenta anos, o Dr. John Shaw tinha saúde, inteligência e bom senso, e
agora também um convite de um ano para o Royal College of Physicians, em
Londres, onde dará palestras sobre sua especialidade: medicina forense.
― O cocheiro deseja partir. Onde esteve?
― Na livraria. ― Não era mentira.
― Libby, ― Iris disse ― a visitarei na Senhorita Alice.
Bon voyage, Dr. Shaw.
Libby lançou um olhar de gratidão a Iris enquanto ela saía.
― Estou muito animada pelo senhor e por sua grande aventura, papai. Será
esplêndido no Royal College.
― Espero que eu possa ser útil lá ― ele disse com a humildade habitual
que ela admirava.
― Permita-me ir com o senhor.
― Será mais feliz aqui, Elizabeth. Entre amigos.
Em lugares familiares, ele quis dizer. ― Eu poderia ser feliz com o senhor
em Londres.
Retirou um lenço de um bolso e, do outro bolso, o lorgnette que usava para
exames e começou a polir o vidro. Estava sendo difícil para ele também.
― Deve lembrar o que aconteceu da última vez que moramos em Londres
― disse ele.
O que aconteceu. Um eufemismo. Mergulhada em lugares desconhecidos,
com todos os seus hábitos diários perturbados, sentia-se sobrecarregada e
rapidamente perdera peso, não podia sair de casa e por fim, recusara-se a deixá-
lo sair.
― Papai, isso foi anos atrás. ― Antes de aprender a amar a medicina -
antes que encontrasse tanta satisfação em estudar os ossos, músculos e nervos
que faziam o corpo humano se mover, correr, dançar, nadar em rios e escalar
montanhas. ― Acredito que eu poderia ser feliz em Londres se....
― Se pudesse aprender com Charles Bell. ― Ele enfiou o lorgnette e o
lenço no mesmo bolso. ― Elizabeth, o que faz com que acredite que o Sr. Bell a
aceitará como aprendiz quando nenhum cirurgião em Edimburgo aceitaria?
― Li todos os seus livros e ensaios ― ela disse, pegando seu lenço,
dobrando-o e recolocando-o no bolso correto. ― Sei mais sobre anatomia e
cirurgia prática do que muitos cirurgiões que conhece. O senhor já me disse...
― As mulheres nunca serão admitidas na profissão médica, Elizabeth. Tem
vinte anos, idade suficiente para aceitar isso finalmente.
Palavras morreram em sua boca. Ela balançou a cabeça. Suas feições se
suavizaram.
― Eu a aborreci ― ele disse. ― E apenas alguns minutos antes de eu sair.
― Não disse nada que eu já não saiba, é claro. O senhor está cansado de
mim ― escorregou de entre seus lábios antes que pudesse impedir.
― Elizabeth.
― Está? ― Era injusto da parte dela perguntar, mas a necessidade de
segurança a pressionava com urgência, como as necessidades muitas vezes
faziam… perguntas que exigiam respostas imediatas, preocupações que
buscavam segurança imediata. A mãe que nunca conheceu sofrera da mesma
pequena loucura. Sem controle, a necessidade implacável acabou por levá-la à
morte. ― O senhor está, papai?
― Claro que não. ― Mas seu tom sugeria impaciência. Tinha acreditado
por muito tempo que ela superaria. Melhor dizendo, era o que ele esperava. No
entanto, ela o desapontara nessa esperança.
Pegou as mãos dela nas suas, secas, quentes e maravilhosas de médico.
Criada perfeitamente por seu pai, cuidada e amplamente querida, ela o adorava.
― Filha, deve aceitar a realidade.
― Papai, como a profissão vai começar a considerar a possibilidade de
admitir mulheres, se as mulheres qualificadas não procurarem admissão?
― Não tenho dúvida de que nunca houve uma mulher mais qualificada para
ser aprendiz de cirurgião do que minha filha brilhante. Eu gostaria de poder
mudar o mundo. Me dói não poder.
Ela não suportava a dor dele com mais facilidade do que a própria. ― É o
melhor pai que se possa imaginar. ― Apertou as mãos dele. ― Sentirei saudade.
― Sabe o que deveria fazer agora, Elizabeth. Aqui em Edimburgo e em
Leith há mulheres jovens com as quais pode conversar e fazer amizade para que
seus dias não sejam tão sem objetivo.
― Eles não são sem objetivo. Estou estudando, papai. Sabe disso. E Iris,
Tabitha e Alice são as melhores amigas que uma pessoa poderia desejar.
― Iris Tate é uma criança, Tabitha Bellarmine tem marido e a loja agora
para preocupá-la, e Alice Campbell, apesar de excelente, é quarenta anos mais
velha. Precisa de amigos em sua própria situação. ― Pegando seu estojo médico,
ele parou na porta aberta. ― As escolhas que faz Elizabeth, afetam os outros.
Odiava a preocupação gravada em suas feições. Ele precisava agora de
segurança também.
― Tentarei fazer novos amigos, se quiser. Prometo.
Ele começou a sair.
― Papai ― ela disse de costas, a necessidade apertando sua garganta. ―
Por favor, diga-me que não está cansado de mim.
― Como pode imaginar isso?
― Diga, por favor. ― Ela precisava ouvir as palavras.
― Não estou cansado de você ― ele disse paciente. ― Deus a acompanhe,
minha filha querida.
Mas Deus nunca a acompanhava, apenas aquela necessidade feroz dizendo-
lhe o que fazer e dizer.
Quando a carruagem se afastou da casa, observou até que desaparecesse de
vista, porque a necessidade dizia para que ela fizesse isso também.

ZIYAEDDIN ACORDOU DO sonho da mesma maneira que sempre fazia:


encharcado de suor e provavelmente gritando.
Não estava completamente certo sobre a gritaria. Não tinha um valete há
anos. Agora, no meio da noite, não havia ninguém para correr ao seu quarto com
uma carranca preocupada, fazendo perguntas ridículas e implorando para ajudá-
lo. A governanta vinha diariamente, exceto aos domingos, e o criado vinha três
vezes por semana. Vivia humildemente e preferia assim, especialmente quando o
sonho vinha. No entanto, as imagens habituais não se demoraram diante de seus
olhos, agora abertos para a escuridão: fogo e perversa fumaça contra um céu de
safira. Nenhum cheiro de desespero enchia suas narinas. Nenhum pânico
comprimia seus pulmões. Em vez disso, seu quarto cheirava ao inverno que se
aproximava e, diante de seus olhos, havia um par de lábios.
Esfregando uma mão sobre o rosto, ele vestiu o roupão.
A casa era estreita, flanqueada de ambos os lados por casas semelhantes.
Não a comprara por seus finos painéis de madeira na sala de estar ou fachada
elegante ou vestíbulo alto, mas por essa câmara hexagonal no andar térreo com
janelas viradas para o norte e duas câmaras menores adjacentes. Vivia
exclusivamente aqui, onde a luz era limpa.
Atravessando o estúdio, passando por seu trabalho atual, um trio de belas
donzelas escocesas, entrou na pequena câmara que usava como sala de trabalho.
Pegou um portfólio atrás da mesa de trabalho e puxou as páginas de dentro.
No brilho da vela, as feições dela traçadas a lápis e pena eram tão familiares
para ele agora, quanto foram na luz do dia no teatro cirúrgico, na livraria e no
beco. Mesmo com as costeletas, teria sido um tolo em não a reconhecer.
Em seu primeiro encontro em Haiknayes, ela entrou na biblioteca onde
estava lendo, ele a viu parada sob um caricato de São Jorge e disse a si mesmo
que parecia nada menos que um anjo aos pés do triunfante Lúcifer. Ela partira
tão abruptamente quanto aparecera.
Então teve que desenhá-la.
Movimento. Sentimento. Pensamento. Estavam tão completamente na
superfície de suas feições, como se, ao contrário de todos os outros nesta terra de
curiosa restrição, apenas ela nunca tivesse aprendido a mascarar seus
pensamentos e emoções, ou simplesmente não se importasse com isso.
Mas ele nunca acertara desenhar seus lábios.
Levou os desenhos para o cavalete, colocou a luz ao seu lado e encontrou
um lápis.
Quando terminou, o amanhecer estava chegando. Era tarde demais para
voltar para a cama e a dor era grande demais por ficar sentado por tanto tempo.
Mas a satisfação zumbia através dele agora e não precisava dormir.
Vestiu-se, colocou o chapéu e o casaco e saiu em busca de café. Pois nesta
cidade a milhares de léguas de sua casa, ele não era Ziyaeddin Mirza, Príncipe
de Tabir, cercado por servos e bajuladores para seguir suas ordens. Ele não tinha
sido assim há dezessete anos.
Aqui ele era simplesmente Ibrahim Kent, o retratista. E o trabalho honesto
tornava-o um homem faminto.
Capítulo 3

Inspiração

― Como consegue criar esses cachos dourados, Srta. Shaw? ─ A oradora


era jovem e elegantemente vestida. Seus lábios sorriam, mas seus olhos não. O
pequeno grupo de donzelas da sociedade discutia as roupas e cabelos de outras
pessoas na festa há um quarto de hora. Nenhuma delas falou com Libby desde
que se aproximou delas, até agora.
― Na verdade, não tenho nada a ver com as qualidades do meu cabelo ―
disse Libby. ― As crianças possuem naturalmente os traços físicos de seus pais.
Por exemplo, a senhorita e seu irmão compartilham os mesmos cabelos
castanhos lisos e olhos cor de avelã, devido aos traços similares aos dos seus
pais.
― É assim mesmo? ― A jovem falou de forma arrastada, sem qualquer
sinal de interesse, depois se virou, bloqueando Libby totalmente do círculo.
― Irmã ― disse um homem rindo atrás de Libby, ― está esnobando a Srta.
Shaw.
― Pobre de mim, irmão, está sendo muito bruto comigo. ― Seus lábios
pintados formaram um sorriso falso. ― Sobre o que gostaria de conversar agora,
Srta. Shaw? Dentes e queixos, talvez?
Suas amigas riram com apreciação.
― Ora, irmã ― seu irmão disse com um sorriso. ― Pare de brincar.
― Não é brincadeira ― disse Libby. ― Esta é a forma mais comum de
dominação social. Sua irmã percebeu um traço meu que os outros consideram
atraente, meus cachos louros, e desejava que notassem a ela e não a mim. Então
ela apontou isso primeiro, em voz alta, enquanto me insultava para mostrar aos
outros que tem poder sobre mim. Mas eu não tenho essas ambições, então ela
não precisa se preocupar. Ninguém aqui leu “Um Tratado sobre Exclusão” do Sr.
Harper da Sociedade Pliniana, não é?
Todos olhavam para ela como se tivesse orelhas e dentes frouxos.
― Não. Claro que não ― ela murmurou, sentindo o odiado calor subir em
suas bochechas. ― Boa noite. ― Virando-se, ouviu uma delas sussurrar:
― Ela é tão infantil.
Passando rapidamente pelos aglomerados de pessoas, Libby saiu da sala de
visitas.
Ela tinha ido a essa festa apenas para poder escrever para o pai e agradar
sua meia-irmã, Lady Constance Sterling, que gostava de levá-la para festas
organizadas por médicos, como esta, para que Libby pudesse familiarizar-se com
jovens que compartilhavam seu interesse pela medicina.
Agora Constance estava conversando alegremente com um grupo de
advogados e políticos que, embora sendo casada, ainda gostavam de flertar com
ela. Constance era muito bonita, herdeira de um duque e encantadora. Ela não
sabia que a última coisa que Libby queria na terra, era um namorado, e que o
desejo de seu pai de que ela se casasse era tão doloroso que ela mal conseguia
pensar nisso sem que as palmas de suas mãos umedecessem.
A maioria das casas dos médicos de Edimburgo tinha boas bibliotecas.
Quando sua mente estivesse ocupada adquirindo informações, ela se
acalmaria. Encontraria a biblioteca aqui e recuperaria seu equilíbrio. À frente, o
brilho da luz de uma vela aparecia através de uma porta que estava entreaberta.
Ela terminou de abrí-la e descobriu seu objetivo, bem abastecido e com móveis
confortáveis. ― Excelente ― ela disse.
Um grito de angústia feminina veio do outro lado da sala. Os grossos
grunhidos de um homem o seguiram.
Libby já ouvira tais barulhos antes. Vivendo onde quer que os pacientes de
seu pai exigissem, nas casas de famílias abastadas com filhos rudes e criadas
pouco dispostas, escondidos em escadarias e armários, ela tinha visto.
Seguiu correndo ao redor do sofá.
Subitamente, houve muito movimento: a mulher puxando um suntuoso
vestido por cima dos seios, o homem saltando de entre as coxas da mulher,
agarrando suas calças que estavam baixadas para cobrir seus órgãos genitais, e
os dois olharam boquiabertos para ela como se ela estivesse seminua e não o
inverso.
― Oh, só podia ser ela ― a mulher sussurrou. Suas joias tilintaram quando
ela riu.
Assim. Aparentemente, nem relutante nem criada.
Libby fixou o olhar no chão enquanto ouvia sons de que estavam se
arrumando. Então, com risos e mais risos, eles se foram.
Ela se sentiu fria por toda parte, e um pouco nauseada.
Movendo-se para uma estante, pegou um volume. Mas as palavras a
prenderam, e giravam várias e várias vezes para fazê-la memorizar tudo. Não
conseguia se lembrar bem delas o suficiente, mas ela devia.
Empurrando o livro na prateleira, se colocou de costas para ela e tentou -
tentou respirar lenta e uniformemente. Precisava ter seus instrumentos cirúrgicos
nas mãos agora, ou seus modelos de ossos, para novamente tocar, sentir e
conhecer suas formas familiares. Eles a acalmariam o suficiente para poder ler.
Eles sempre a acalmaram.
Lançando um olhar ao redor, ela captou o brilho de uma pintura iluminada
pela luz da lareira.
Feita sobre um antigo tema mitológico, apresentava uma mulher envolta em
pano branco que revelava amplamente as curvas de seus quadris e seios e até
seus mamilos excitados. Debaixo de uma romãzeira ela dançava, seus braços,
pernas e pescoço graciosamente soltos. Diante dela um homem vestido com uma
sugestão de tecido sobre seus lombos, se ajoelhava. Com as duas mãos, ele
oferecia uma fruta a ela.
Movendo-se em direção a ela, Libby olhou para o corpo glorioso do deus.
Dotado de musculatura, como um homem trabalhador, mas com muita nutrição
para sustentar músculos espessos, ele também era exuberante e anatomicamente
perfeito. Até mesmo sua posição ajoelhada ante a mulher estava equilibrada;
Libby podia praticamente sentir os joelhos dele cavando na terra, os calcanhares
contra as nádegas, os músculos mutantes nos membros. A mulher era igual: ideal
sem exagero. Ambos eram inteiramente humanos e gloriosamente divinos.
Libby suspirou. Ser capaz de estudar livremente o corpo humano - como
obviamente esse artista fizera - e compreendê-lo tão bem, era seu sonho.
O artista fez sua assinatura no canto inferior, pouco visível contra a grama
escura: I. Kent.
Agora entendia como ele a havia reconhecido apesar do disfarce, e como
dois anos e meio atrás, depois de falar com ela por apenas alguns minutos, havia
desenhado seu rosto com perfeita precisão. Para dar a formas humanas traços tão
honestos como havia feito nessa pintura, um homem deveria percebê-las como
poucos.
Abruptamente, os sons da conversa na sala de visitas entraram na biblioteca
e o jovem cavalheiro de antes, entrou no salão.
― Srta. Shaw ― ele disse, fechando a porta. ― Minha irmã temia que
tivesse se ofendido com a provocação dela e pediu que eu viesse atrás da
senhorita para implorar seu perdão.
― Perdão concedido ― ela disse atravessando a sala. ― Boa noite.
― Não posso ser feliz a menos que eu tenha certeza de que sabe que ela
não quis insultá-la.
― Claro que ela quis me insultar. Mas sou quase impermeável ao desprezo,
então dificilmente...
Ele se moveu rapidamente, bloqueando a saída.
― Srta. Shaw, permita-me aproveitar desta rara oportunidade de
privacidade para lhe dizer o quão ardentemente eu a admiro.
― Admira a mim? Nem me conhece.
― Eu a tenho observado de longe, com medo de me aproximar da
senhorita.
― Isso certamente é uma mentira, porque não tenho muita beleza para se
admirar de longe. Por favor, senhor, desejo deixar esta sala agora.
― Deve acreditar em mim, Srta. Shaw. Não me aproximei antes porque eu
estava - bem - intimidado. ― Ele ofereceu um sorriso torto. ― A senhorita deve
saber que faz com que um homem se sinta fraco e tolo.
― Isso é ridículo. Uma mulher não pode fazer de um homem nada que ele
já não seja. ― Ela o rodeou para alcançar a maçaneta da porta. ― Agora deve...
Ele agarrou seus ombros e sua boca desceu sobre a dela. Então seus braços
estavam ao redor dela e sua língua empurrando seus lábios.
Libby afastou a boca e o empurrou. ― Solte-me agora ou gritarei.
― Que ainda não o tenha feito, me mostra que quer isso. ― Ela não tinha
feito anteriormente porque amava Constance e seu pai e não queria envergonhá-
los. Tinha entrado nesta sala sozinha. Durante anos, a conheciam bem.
Ela deu uma joelhada em sua virilha.
Ele cambaleou para trás, ofegante e segurando seus genitais.
Correndo de volta para a festa, encontrou Constance e seu marido, Saint.
Na carruagem de volta para casa, ela mal escutou a conversa de Constance
e Saint.
― Libby ― disse Constance depois de um tempo. ― Odiou tanto?
Sim. ― Não. ― Ela queria perguntar a Constance por que um homem
enfiava a língua na boca de uma mulher. E se era desconfortável ter relações
sexuais em um sofá. E o que exatamente acontecia quando duas pessoas que
estavam envolvidas em relações sexuais eram interrompidas no meio dela.
― Parece angustiada, ― disse Constance, gentilmente.
A necessidade de fazer as perguntas subiu na garganta de Libby e apertou
seu peito. ― Não posso falar sobre isso agora ― ela se forçou a dizer.
― Eu a vi escapar para a biblioteca. O que descobriu lá? ― Constance
sabia que a distração ajudava. Ela era uma irmã maravilhosa.
― Uma pintura. Era linda. ― Extraordinária.
― Isso me lembra as excelentes notícias que ouvi esta noite, Libby. Parece
que, assim como seu pai viajou para Londres, o Sr. Charles Bell viajou até
Edimburgo para uma breve visita e ministrará um trio de palestras na Academia.
Não é maravilhoso? Finalmente alcançará seu sonho de ouvi-lo dar palestras.
O sonho de Libby não era ouvir as palestras do Sr. Charles Bell, mas
aprender com ele.
― Como a menção de Libby sobre uma pintura na biblioteca a fez lembrar
de Charles Bell? ― Perguntou Saint.
― Sr. Bell é um artista.
― Pensei que fosse um cirurgião.
― Ele é ambos ― disse Libby. ― Seus estudos artísticos permitiram que
ele entendesse melhor o corpo humano do que qualquer outro cirurgião ou
médico na... ― de repente seus batimentos cardíacos aceleraram. ― Na Escócia.
Uma ideia estava se formando, uma ideia brilhante que poderia permitir que
ela estudasse formalmente a medicina cirúrgica.
Apenas um homem poderia tornar isso possível: um retratista recluso cujo
caráter misterioso seria a passagem para seu sonho.
Capítulo 4

Uma Proposta

A aldrava soou exatamente quando o sol retirou sua lâmina da bainha do


horizonte e colocou sobre as jovens debaixo do seu pincel, sua luz
incandescente. Por essa razão, ele havia posicionado a tela o mais próximo
possível da janela, e capturar a luz necessária para dar vida a essas donzelas
insípidas.
O barulho da aldrava ressoou novamente na porta da frente.
Era cedo para a sua governanta chegar, e era incomum que ela esquecesse
sua chave. Mas Ziyaeddin estava sentado há muito tempo. Precisava se mover.
Apagando a lamparina, foi para a frente da casa ainda afundada na escuridão,
enquanto a aldrava batia mais três vezes.
Abriu a porta, não para a Sra. Coutts, mas para uma jovem.
― Preciso da sua ajuda ― ela disse. Usava um chapéu de palha amarrado
com uma fita, cobrindo a profusão de cachos dourados, um manto simples de um
marrom inadequado, sobre um vestido de lã igualmente sem graça. No entanto,
suas bochechas brilhavam com o frio da manhã e a respiração soprava em
pequenas nuvens prateadas.
Esta aqui não era nenhuma donzela insípida.
― Parece que estamos vestidos de acordo com o nosso sexo esta manhã ―
ele disse.
― Parece que estamos ― ela disse, dando-lhe aquela varredura de cima a
baixo em avaliação como tinha feito no beco. ― Convide-me a entrar.
Rapidamente, Ziyaeddin considerou suas opções.
Esses lábios. Desta vez livres daquelas suíças falsas.
Ele abriu amplamente a porta.
― Por que o senhor que atendeu a porta? ― Ela perguntou. ― Isto é, estou
feliz que tenha feito. É muito mais conveniente do que ficar em uma sala
esperando que venha me ver, que era o que presumi que aconteceria. Na verdade,
pensei que provavelmente, seria mandada embora, mas trouxe um cartão de
visitas para essa hipótese. Não tem criados?
― Eles ainda não chegaram. Suponho que não tenha notado que mal
amanheceu.
― Claro que sim. Eu não podia esperar. ― Ela pareceu se equilibrar na
ponta dos pés. ― Vamos para a sala de estar agora?
Ele apontou para a porta da sala de estar.
― Oh, eu gosto disso! ― Ela circulou o aposento, em seguida, parou
precisamente no seu centro. ― É perfeito.
Perfeito para o que, ele não podia imaginar. Ela não parecia o tipo de jovem
que seria feliz ficando sentada em uma mesa de chá por muito tempo.
― Não acha? ― Ela disse.
― Não acho?
― Não tem criados 24 horas por dia?
― Não. Srta. Shaw, estou com a impressão de que não está ciente de que
esta é uma visita incomum.
― Eu sei que é. Mas não me importo com convenções sociais e presumi
que o senhor também não. É obviamente um recluso. Amarantha diz que o
senhor raramente vai a qualquer lugar, mesmo que seja convidado para todos
eles, e até mesmo recusou um convite da Academia de Edimburgo para dar
palestras sobre pintura. E o senhor disse que não contaria a ninguém que eu tinha
ido à dissecação vestida de homem, então também não é convencional.
― Uma lista impressionante de evidências, com certeza. No entanto, como
cavalheiro, cabe a mim notar que a senhorita não deveria, de fato, estar na casa
de um homem solteiro, mesmo de madrugada.
― Então é solteiro?
Que um arrepio de advertência tenha deslizado através dele naquele
momento, acompanhado de um despertar muito focado, fez com que parasse um
momento antes de responder.
― Sou.
― Excelente ― ela disse. ― Tornará isso muito mais fácil. Uma esposa
talvez exigisse conhecer todos os seus negócios e isso poderia arruinar tudo.
Ziyaeddin tinha permitido que entrasse na casa por curiosidade e porque o
duque de Loch Irvine, o homem a quem devia sua vida, e a esposa do duque
tinham grande afeição por ela. Estava reconsiderando a sabedoria dessa decisão.
― A senhorita conseguiu ― disse ele. ― Estou completamente perplexo. O
que minha esposa inexistente poderia arruinar por saber?
― O subterfúgio no qual espero que o senhor se envolva comigo. Em
breve. Começando hoje, se possível. Tempo é essencial. Charles Bell chegará em
Edimburgo a qualquer momento e não tenho tempo a perder se quiser convencê-
lo.
― Convencê-lo a quê?
― A me ajudar a me tornar uma cirurgiã.
Ele ficou completamente imóvel, sem dizer nada, e a vontade dela de falar a
pressionava mais. Em vez disso, Libby contou em silêncio. Esperar por qualquer
resposta era extraordinariamente difícil para ela. Mas seu pai lhe ensinara que os
homens frequentemente tinham dificuldade em seguir sua fala; sua mente se
movia muito rapidamente para eles.
O Sr. Kent nem mesmo se moveu. Estava notavelmente parado.
― Uma cirurgiã ― ele finalmente disse.
― Sim.
― Tive a impressão - corrija-me se estiver enganado - que neste país as
mulheres não praticam medicina ― ele disse como se estivessem conversando
sobre qualquer assunto. Um bom sinal. Talvez a mente desse homem se movesse
mais rapidamente do que a da maioria deles.
― Isso não é precisamente verdade. Há mulheres em toda a Grã-Bretanha
com conhecimento médico que são maravilhosamente capazes de cuidar de
pacientes. De fato, talvez seja o ponto mais forte em nosso caso, no que diz
respeito ao mero poder, tanto físico quanto intelectual, de que as mulheres
puderam fazer tanto quando excluídas das vantagens da educação precoce,
abertas à maioria dos homens. As mulheres são parteiras e enfermeiras. Nós não
temos permissão para sermos médicas e cirurgiãs.
― E deseja ser a primeira.
― Não me importo em ser a primeira. Apenas quero ser cirurgiã. Não um
daqueles barbeiros que removem dentes ou algo do tipo. ― Como os que cortam
os membros masculinos nos hospitais dos campos de batalha que, sem dúvida,
fizeram na parte inferior da perna deste homem. O Sr. Kent era jovem, mas tinha
idade suficiente para ter lutado, quando mais novo, na guerra. ― Não quero
pendurar um poste listrado de vermelho e branco na frente da minha loja. Eu
gostaria de ser uma verdadeira cientista, o tipo de cirurgiã que entende a
complexidade do corpo humano e, através desse entendimento, curasse as
pessoas.
― Sua ambição é admirável, Srta. Shaw.
― Pelo contrário, é racional. Sou mais inteligente do que a maioria dos
homens, e meu pai me deu uma excelente educação em matemática, química e
filosofia mecânica, para não mencionar o latim e um pouco de grego e, claro, as
línguas modernas. Já sou notavelmente instruída em medicina por estudar de
forma independente e por ajudar meu pai por anos.
― Entendo. Eu não vejo, no entanto, o que sua ambição racional tem a ver
comigo.
― Para me tornar uma cirurgiã, devo primeiro aprender sob a orientação de
um mestre cirurgião estabelecido.
― Aha. Daí seu interesse no Sr. Bell.
Seu coração pulou. ― Conhece Charles Bell?
― Fomos apresentados.
― Foram apresentados? Como? Ele vive em Londres há décadas.
― Vim a conhecê-lo lá, na Royal Academy.
― Onde os maiores artistas da Grã-Bretanha se reúnem? ― Isso era bom
demais para ser verdade. ― Que extraordinário! Mas o senhor é
excepcionalmente talentoso, afinal de contas.
Ele levantou uma sobrancelha. ― Eu sou, então?
― Claro que o senhor é. Eu disse aquilo sobre o retrato do duque e
Amarantha para provocá-lo como estava me provocando. Isso é
maravilhoso! Ainda melhor do que eu imaginava. Ontem à noite, vi uma de suas
pinturas pendurada na casa de um médico. As figuras eram lindas. O
senhor deve ter falado com o Sr. Bell na Academia sobre pintar a forma humana.
― Se veio procurar aulas de pintura, Srta. Shaw, veio ao homem errado.
Mas não precisa se desesperar. Há muitos artistas em Edimburgo felizes em
ensinar jovens elegantes a pintar.
― Não sou elegante e não preciso desses homens. Eu preciso do senhor.
Seu olhar aguçou por um momento. Então gesticulou com a mão para que
ela continuasse. Ele tinha mãos lindas, com dedos longos e graciosos. Ele
andava com tanta dificuldade: a estaca que servia como seu tornozelo e pé
direito, tornava o passo irregular. Que pudesse quebrar o próprio silêncio neste
momento com um gesto tão polido, a assustou.
Não podia perder a coragem. Seu futuro dependia disso. ― Eu gostaria de
incumbi-lo a pintar alguns quadros ― ela disse. ― De pessoas. As figuras
devem estar pelo menos tão despidas quanto as da pintura que vi na noite
passada. E seria melhor se fossem pessoas doentes ou feridas, do tipo que
Charles Bell pinta.
― Veio aqui para encomendar um trabalho em nome do seu pai?
― Não. Meu pai está em Londres no momento, durante um ano inteiro de
fato. Quero essas pinturas para mim.
Ele a olhou pensativo enquanto a pressão para continuar falando aumentava
em Libby. Seus olhos estavam cheios de percepção, um rico marrom escuro com
longas pestanas de ébano. Havia uma qualidade no conjunto de sua boca que
sugeria arrogância natural, mas uma relutância em ser realmente arrogante. Ela
não podia imaginar aqueles lábios cheios zombando, nem mesmo em prazer
fingido como o jovem voraz tinha feito na festa na noite anterior.
― Meu trabalho não é barato ― disse ele.
― Isso é irrelevante. ― Se fosse necessário, ela pediria emprestado o
dinheiro.
― Infelizmente, meu horário está cheio no momento.
― Sim. Eu ouvi que seus trabalhos são procurados. Está escandalosamente
na moda. Todo mundo quer um retrato do turco. O senhor deve saber que eles o
chamam assim? Não pelo seu nome. Apenas o turco. Isso é desrespeitoso.
Embora seja verdade que é único em Edimburgo. Ou seja, há muitos marinheiros
estrangeiros em Leith, é claro, e muitos outros estrangeiros, também nesta
cidade. Ora, há um taxidermista da Jamaica nessa mesma rua. Mas não acredito
que os retratistas estrangeiros lotem os salões da Grã-Bretanha, pelo menos não
estrangeiros além de americanos ou irlandeses.
― Pelo menos. ― Ele estava sorrindo um pouco agora, escassamente, mas
isso o deixou ainda mais bonito. Uma sugestão de costeletas matinais corria ao
longo de sua mandíbula e sobre sua boca, esculpindo suas bochechas magras em
mais sombras. Ela raramente tinha visto um cavalheiro sem barba. Isso tornava
sua boa aparência bastante feroz.
― Certamente não há outros retratistas turcos ― ela acrescentou. ― O
senhor é realmente turco? Algumas pessoas, que viajaram ao exterior com a
Companhia das Índias Orientais ou os militares, acreditam que possa ser persa
em vez de turco. Eles se perguntam em voz alta por que o senhor não usa barba,
robe ou turbante. Poderia me dizer.
― No entanto não vou.
― Como quiser. Ainda assim, acho que as fofocas não se referem ao senhor
pelo nome, embora, é claro, os jornais em geral o fazem.
― Aprecio sua preocupação. Meu horário ainda está lotado.
― Poderiam ser pequenas pinturas.
Ele sorriu de novo, mas apenas um leve levantar de um dos lados de seus
lábios.
― Pinturas muito pequenas ― ela disse.
― Aha, entendo. Então talvez eu pudesse fazer um ou dois pedaços muito
pequenos. Entre outros projetos. ― Um brilho provocante iluminou seus olhos.
Ela ignorou isso.
― Quanto mais cedo melhor ― ela disse. ― E as imagens devem incluir
um detalhe particular.
― Que detalhe é esse, Srta. Shaw?
― Eu preciso do meu nome no final. Como o artista. ― A diversão foi
drenada de suas feições.
― Não queria insultá-lo, ela disse apressadamente. ― Eu asseguro.
― E ainda assim… ― ele disse em resumo.
― Verdade. Qualquer um ficaria orgulhoso de pendurar uma das suas
pinturas na parede. Eu não sei por que aquele médico escondeu a dele na
biblioteca, exceto talvez por que alguns visitantes não gostem do Deus e Deusa
seminus. A maioria das pessoas se sente desconfortável com a nudez. Como
estudante de medicina, claro que não sou uma delas. É só que o Sr. Bell deve
acreditar que eu fiz as pinturas.
― Ele deve? ― Os músculos de sua mandíbula haviam contraído e os
tendões de seu pescoço estavam tensos, e abruptamente Libby percebeu que ele
não estava completamente vestido. Ele usava um roupão escuro sobre calças e
uma camisa sem lenço ou gravata. Ele nem mesmo abotoara a camisa no
pescoço, deixando a cavidade na base da garganta e os contornos da clavícula
totalmente visíveis. E lindo.
Da pele aos ossos, cada parte do corpo humano sempre a fascinava. Nunca,
no entanto, havia estudado outra pessoa e sentira arrepios quentes em seu
próprio corpo. Ela arrastou sua atenção até os olhos dele.
― Sim ― ela expulsou por entre os lábios. ― Nenhum homem me
considerará seriamente como aprendiz. Ocasionalmente, colegas e amigos de
meu pai falam comigo sobre medicina e alguns até admitiram que ficaram
impressionados com meu conhecimento. Mas o senhor Charles Bell é único. Seu
trabalho é original e brilhante. Acredito que seja porque ele aprendeu sobre o
corpo através do estudo da arte, e usa suas próprias pinturas e desenhos para
ensinar os outros. Se ele vir que além do nosso amor mútuo pela ciência médica,
também sou uma talentosa pintora da forma humana, poderia acreditar que tenho
habilidade natural suficiente para estudar medicina. Poderia ajudar a encontrar
um cirurgião para me aceitar como aprendiz e também me ajudar a entrar na
escola para estudar anatomia e química. Ele tem enorme influência ainda, apesar
de ter se desentendido com os instrutores de anatomia que precipitaram sua
mudança para Londres. ― Ela apertou as mãos juntas. ― Não vê? Com o apoio
de um homem da iminência do Sr. Bell, eu poderia me tornar uma verdadeira
cirurgiã. Uma excelente cirurgiã.
― Começo a suspeitar que poderia.
― Acha?
― Sua mente claramente funciona fora das faixas habituais. Mas eu não
colocarei o nome de ninguém no meu trabalho, exceto o meu, muito menos o de
uma mulher.
O pânico estava se apoderando dela. ― O senhor diz mulher com tanto
desprezo.
― Eu não pinto aquarelas de flores, Srta. Shaw.
― Exatamente. O senhor pinta a forma humana, que é precisamente a razão
pela qual não fiz essa pergunta a mais ninguém. Eu lhe imploro. O senhor não
consideraria esta encomenda?
― Minha resposta permanece não. Esta entrevista está no fim. ― Ele
entrou no vestíbulo.
Com os nervos se despedaçando, ela o seguiu.
― Fingirei ser um jovem novamente ― ela disse. ― O senhor poderia
assinar o nome Joseph Smart nas pinturas e não se envergonhar.
A sala estava pálida pela madrugada com as cortinas abertas. Mas o
vestíbulo estava quase escuro e ela se deu conta do tamanho dele. Altura acima
da média para um homem, ele não era volumoso nem esguio, mas magro, com
ombros largos. Estava tão perto agora que sentia a energia dele, como a de um
rio poderoso que tinha sido represado: poder travado, escondido atrás da calma.
― Bom dia, Srta. Shaw.
― Não vê? ― Ela disse. ― É o único caminho.
― Eu vejo que sua imaginação ultrapassa em muito a minha. Realmente
acredita que pode conseguir fingir ao Sr. Bell que é um homem e depois revelar
a ele a verdade, uma vez que ele tenha permitido que a senhorita enganasse todo
mundo em Edimburgo, inclusive a ele?
― É verdade: ele ficaria furioso. ― Ela assentiu. ― Será melhor que eu
permaneça como homem até passar nos exames de admissão ao Royal College of
Surgeons. Os estágios cirúrgicos são normalmente de sete anos, mas já sou
adiantada e os aprendizes podem fazer os exames depois de quatro anos, se
desejarem. E, claro, eu poderia fazer os exames de diploma depois de três
períodos. Fui aprendiz informal do meu pai afinal, desde que eu era criança. Sem
um aprendizado completo, simplesmente terei que pagar uma taxa mais alta para
me tornar um membro do colégio. Mas se é o que devo fazer, eu irei.
― Seus sonhos são impressionantes, Srta. Shaw, assim como sua confiança.
Mas seu pensamento é ridículo. Não só as pessoas reconhecerão que é uma
mulher...
― Eles não reconheceram na palestra.
― Considere seus criados. Pode confiar neles, esperando que não a traiam?
― Uma navalha parecia cortar cada uma de suas palavras agora. ― Garanto-lhe,
raramente se sabe de que direção a traição virá até que seja tarde demais.
― Encontrarei uma maneira de esconder isso deles. ― Tinha que encotrar.
― E de seus vizinhos? Quando eles virem um jovem que poderia ser o
irmão gêmeo da Srta. Shaw, sair e voltar para sua casa todos os dias, por quanto
tempo permanecerão indiferentes à verdade? Quinze dias? Um mês?
O desespero estava deslizando por ela. ― O senhor parece ter pensado
nisso rapidamente.
― Tenho alguma experiência com ocultação.
Libby sabia pouco sobre ele, exceto que ele tinha a amizade do duque e
duquesa de Loch Irvine. E ela sabia de sua extraordinária arte. E agora sabia que
ele morava sozinho. Sem criados.
― Vou morar aqui ― ela disse. ― Com o senhor.
Houve um completo silêncio no qual, no vestíbulo que finalmente estava
tomando a luz da manhã, ela viu suas feições afrouxarem.
― A senhorita certamente não vai ― ele disse.
― Não vê como isso é ideal? ― A excitação estava correndo através dela.
O senhor raramente sai ou se entretém. Amarantha disse isso. Agora,
encontrando-se desejoso de companhia, o senhor se tornará o patrono de um
jovem estudante de cirurgia. Eu serei um parente de um amigo íntimo seu - o
duque ou alguém em quem confie que não faça perguntas e que viva
confortavelmente à distância de Edimburgo. Será a história mais fácil de contar a
seus servos, creio eu, que eles certamente acreditarão. Todos também vão. O
senhor vai levar este jovem estudante cirúrgico para familiarizá-lo com o Sr. Bell
e outros membros da comunidade médica. E ele, isto é, eu, realizará o resto com
seu brilhantismo e trabalho duro.
― Mas eu não estou, de fato, desejoso de companhia.
― É um pretexto.
― E agora não será apenas um jovem, mas um parente distante de um
duque?
― Minha mãe era uma duquesa, na verdade.
As sobrancelhas negras se ergueram. ― Sua mãe?
― Meu pai não é o meu verdadeiro pai. Minha mãe era a duquesa de Read,
mas o duque de Read não era, verdadeiramente, o meu pai. Eu não sei
exatamente como isso aconteceu, porque ela morreu quando eu era criança, e
ninguém fala sobre isso. John Shaw me criou como sua filha. Ele e o duque de
Read são amigos há décadas e visitamos Read Castle com frequência durante
toda a minha infância. Constance e eu compartilhamos a mesma cor de cabelo, e
eu sou a imagem do retrato da duquesa que está pendurada na parede de Read
Castle. Até o senhor ficaria maravilhado com a semelhança.
― Eu ficaria? ─ O fio cortante tinha saído de seu tom.
― Nessa casa e vizinhança, ninguém saberá que Joseph Smart é uma
mulher. E terei privacidade para estudar. É ideal, na verdade. E não o
incomodarei. Me esconderei em um canto da casa que o senhor não usa. Existe
um canto que não usa? Deve haver. Sem criados morando aqui, provavelmente
há alojamentos vazios de empregados no andar superior, e é improvável que o
senhor vá até lá de qualquer maneira.
― Não vou?
― Claro que não. Eu posso ver claramente que o senhor anda com dor. E
não seria para sempre. Uma vez que eu tenha me mostrado igual aos homens em
meu programa - na verdade, superior a eles - revelarei a verdade e terão que me
aceitar. Por favor. Precisa me ajudar.
― Não preciso. Srta. Shaw, esse plano é absurdo, cada detalhe dele.
― Os maiores avanços da ciência vieram quando as pessoas tentaram o
absurdo. Não é o mesmo na arte?
― Possivelmente. Mas a senhorita está abraçando muito na fé.
― Na fé? O que o senhor quer dizer? Provarei isso...
― A senhorita não sabe nada sobre mim.
O alarme percorreu a base da espinha até a garganta. A intensidade de seus
olhos parecia subitamente tão estranha quanto sua pele bronzeada e o suave
sotaque que inflexionava em seu inglês.
― É verdade ― ela disse. ― Não sei quase nada sobre o senhor. Mas sei
que o duque de Loch Irvine lhe confiou sua casa. E eu sei que Amarantha o
admira.
― A senhorita contaria a eles sobre sua farsa?
Ele não estava se recusando.
― Não. Eu não desejaria obrigar meus amigos a mentirem em meu nome.
― Mas não tem nenhum escrúpulo em exigir que eu minta. A senhorita
presume que não tenho a moralidade de um inglês ou de um escocês?
― Não! De modo algum. Isto é, não sei que tipo de moralidade o senhor
tem. Mas isso dificilmente importa. ― Ela torceu as mãos juntas. ― O senhor
não vê? Não tenho outros aliados em potencial.
Ele avançou um passo que o levou a poucos centímetros dela, e não fez
nenhum som, nem a ponta de sua bengala ou estaca, seu corpo inteiro no
controle. Certamente devia custar-lhe grande esforço para mover-se com tal
silêncio, e isso a alarmou.
― Na busca dessa trama, a senhorita ficaria completamente vulnerável a
um homem que não conhece. ― Sua voz era baixa. Íntima.
― Não é uma trama. É o meu sonho. ― Ela ergueu o queixo. ― Tem sido
meu sonho por toda a minha vida. E terei sucesso nisso. Eu estou determinada a
isso.
Seu olhar percorreu seus traços lentamente.
― Não se preocupa com a vergonha que isso traria ao seu pai?
― Preciso avançar agora enquanto ele estiver fora, enquanto tenho a
oportunidade.
― Para uma mulher de grande inteligência, é notavelmente ignorante.
Ela recuou um passo. ― O que exatamente quer dizer com isso?
― Mesmo que eu concordasse com essa farsa, um artista do discernimento
do Sr. Bell notaria a semelhança entre meu estilo e o desse falso Joseph Smart.
― Então poderia fazer as pinturas diferentes. A minha pode ser
imperfeita. Ligeiramente imperfeita. O suficiente para o Sr. Bell ficar
impressionado, mas sem notar a semelhança.
― A senhorita daria a uma pessoa um atendimento médico imperfeito?
― Claro que não. Mas isso é diferente.
― Não para mim.
Ela entendeu. Ele tinha padrões, assim como ela. Mas isso significava que
ele também deveria ter desejos, assim como ela.
― Pagarei o dobro do preço de cada trabalho. O triplo. Pagarei pelo
conselho.
― Não preciso do seu dinheiro.
― Então o que quer?
― Não há nada que possa me dar que eu já não possua, güzel kiz. Não
posso ajudá-la. ― Ele foi até a porta e abriu. ― Bom dia, Srta. Shaw.
De pé na varanda, ela assistiu a porta fechar com calma, mas firme e em
caráter definitivo.
Capítulo 5

Acordo de Cavalheiros

― Não é o seu melhor trabalho, senhor. Nem "de longe".


A criada de Ziyaeddin se apressou em seu estúdio, pegando xícaras de chá e
endireitando as cortinas.
Ele esfregou a palma da mão sobre os olhos. ― Obrigado, Sra. Coutts,
aprecio sua franqueza.
― Sempre prefiro a verdade para evitar bajulação ― ela disse com a
absurda honestidade dos escoceses que ele passara a apreciar. ― As moças
que terminou no último sábado também eram menos do que o seu melhor, se não
se importar que diga isso.
― Não me importo. ― Mesmo quando o entreguei aos pais, reconhecia que
no retrato das donzelas, sobre o qual trabalhara por meses, faltou alguma coisa.
Fogo. Emoção. Profundidade. Movimento.
Agora esta peça, de um advogado rico e sua esposa, estava sofrendo o
mesmo. Era um casal amável. Mas a imagem não significava nada para ele:
aquele homem em seu casaco sóbrio e essa mulher em suas camadas de renda.
Eles queriam uma perfeita semelhança, e ele foi capaz de dar isso a eles. Uma
semelhança perfeita, sem inspiração.
Todo o seu trabalho fora assim desde que aquela jovem o visitara.
Mulher.
Aqueles lábios.
Aqueles olhos.
Aqueles ombros quadrados, aqueles braços macios e aquela língua da qual
tão rapidamente tropeçavam palavras que vinham à velocidade de um camelo
enlouquecido.
Ele largou o pincel e pegou o bloco de desenho. Raspando o giz sobre o
papel grosso, trabalhou rapidamente.
― Ora, senhor ― disse sua governanta, inclinando-se por cima do
ombro. ― Essa sim é uma moça bonita.
― Ainda não desenhei o rosto dela.
― Há mais na beleza de uma moça que nariz, lábios e olhos, senhor.
Ele fez uma pausa. ― Sra. Coutts, como é possível que a senhora não se
choque?
― Trouxe sete crianças ao mundo e mais dez crianças para minhas filhas
também. Eu não vou arder de vergonha por causa de um traseiro nu. ― Com um
aceno firme, ela foi até a porta. ― Vou embora agora. O jantar está no fogão.
Mas é melhor sair hoje à noite, senhor. Talvez a uma das festas para as quais
sempre é convidado. ― Ela balançou a cabeça. ― Um jovem não deveria estar
tão sozinho. ― Com o farfalhar de saias engomadas, ela se foi.
Ela estava, claro, correta. Em quinze dias, ele não saíra de casa, exceto para
visitar esse advogado e sua esposa para as sessões. Além da Sra. Coutts, seu
criado e o casal, ele não falara com outro humano em quinze dias.
Exceto Elizabeth Shaw.
Os desenhos dela permaneceram onde ele os deixou após a dissecação
pública. Depois de sua proposta absurda, não aproveitara o tempo que havia
passado com ela, naquela manhã, para estudar suas feições.
Os lábios nesses desenhos permaneciam imperfeitos. Assim como a pintura
diante dele, o casal inteiramente sem vida.
Sem vida.
Uma resposta a sua carta veio de Canning. O secretário do Exterior exortou
Sua Alteza Real a permanecer paciente.
Mas Ziyaeddin também tinha outras notícias: o embaixador iraniano, que
em poéticas frases persas, sugerira que o Shahanshah não era mais avesso à
persuasão, que o roubo de terras no último tratado não podia mais ser tolerado,
que um príncipe de sangue persa deveria voltar a governar, não os impostores
das tribos do Norte que se chamavam de khans, mas não eram mais do que
covardes. Nesta reconquista de Tabir, seria um aliado bem-vindo. O general
usurpador da Rússia deveria, portanto, ser destituído.
Esse momento ainda não havia chegado. Respeitando a vontade de sua irmã
Aairah, e para garantir a segurança de seus filhos e do povo de Tabir, Ziyaeddin
permaneceria aqui, feliz que a sociedade de Edimburgo estava contente com sua
história fabricada: de que ele viajara de algum lugar não especificado em terras
otomanas para aprender a pintar retratos no estilo europeu.
Em compasso de espera.
E enquanto ele fazia isso, uma pequenina mulher recusava-se a esperar pela
aprovação do mundo: não temia se vestir como um rapaz e morar na casa de um
homem, que ela não conhecia, para realizar seu sonho.
De pé, ele enfiou papel e lápis em um portfólio e saiu de casa. Foram
apenas alguns quarteirões até o seu destino.
― Bom Dia, ― a jovem estendida sobre o divã da sala se moveu. O lugar
estava maltratado, com estofados surrados e papel de parede desbotado. ― Onde
esteve, querido? Não o víamos há uma eternidade. ― Ela usava um robe que era
apenas a sugestão de um vestido, seu seio saindo do corpete e as saias se abrindo
para revelar uma perna inteira.
― Bom dia, Srta. Dallis ― disse ele. ― Acredito que esteja bem?
― Sim. Só desejando uma visita sua, claro ― disse ela, acariciando ao
longo de sua coxa com os dedos em uma sedução treinada.
― Tem uma hora?
Ela despiu os membros esguios na cadeira. Com os olhos turvos por
qualquer paliativo que tivesse consumido - gim, láudano ou ópio (se tivesse
trabalhado ultimamente e pudesse pagar) - caminhou em direção a ele.
― Para você, querido, ― disse ela, acariciando com a ponta do dedo o
peito dele, como se o pintasse. ― Tenho o dia todo.
― Não posso pagar por todo o dia. ― Cada xelim que ele gastava com seu
próprio prazer era um xelim a menos para Tabir. Isso, além de que ele não
gostava de permanecer no bordel por tempo suficiente para atrair qualquer um
dos vermes que residiam nos estofados.
― Eu posso te dar o dia inteiro de qualquer maneira. ― Ela riu. ― Estou
apostando que todo mundo pagará ouro para ver minha pintura algum dia. Serei
uma Mona Lisa comum.
Não pôde deixar de sorrir. Que essa mulher, nascida na pobreza e vendendo
seu corpo por xelins, soubesse sobre a Mona Lisa não o surpreendia. No geral,
os escoceses eram informados, instruídos, pessoas maravilhosas. Seu cativeiro
foi terrível, mas não poderia ter caído em um lugar melhor de exílio.
― O solário, se preferir ― disse ele.
Ela foi à frente dele, tirando o vestido antes mesmo que ele fechasse a
porta. Seu pálido corpo escocês ainda era jovem, mas desgastado e marcado
pelas cicatrizes de uma varíola sofrida em sua infância. Ela o mostrava com
facilidade, acomodando-se confortavelmente em um raio de luz entre as cortinas.
Ele encontrou uma cadeira - abençoadamente sem estofamento - colocou o
bloco de notas no joelho e depois um lápis no papel.
― Tem certeza que só olhará hoje, querido? Eu não me importaria se
tocasse também.
― Sem tocar hoje, Dallis. ― Sem tocar nunca. ― Apenas desenho.
Com alguns poucos golpes do lápis, a vida se avolumava nervosa sob as
costelas. Havia tanta beleza na carne mais simples, tal poesia no frágil vaso da
alma humana: cor, textura, tempestades, amanheceres e fogo. Ele nascera para
governar o seu destino. Fora criado para fazer isso, era a sua dádiva.
― Estragará sua pintura se eu dormir? ― Dallis disse, suas pálpebras já
caídas.
― De modo nenhum. Durma, madame.
― Estava querendo lhe perguntar, querido ― disse ela, com a cabeça
pendendo sobre um ombro. ― Não teve outro ferimento na batalha ou algo
assim, além da perna?
― Não tive.
― Então todas as suas partes funcionam corretamente?
― Elas funcionam. ― Como aquelas partes haviam provado, ao
trabalharem maravilhosamente bem, quando Elizabeth Shaw estava a um pé de
distância dele em seu vestíbulo. Inconvenientemente.
Dallis suspirou. ― Um perfeito cavalheiro, querido. Toda moça desta casa
confiaria no senhor com a própria vida.
Bem, aquilo era alguma coisa. Ele suspeitava que não era todo dia que uma
casa cheia de prostitutas confiava em um homem.
Seu pai também inspirou a confiança nos outros. E tinha tido tal fé em seu
povo, por sua vez, que não vira o perigo até que surgiu de e o derrubou.
Elizabeth Shaw alegremente afastaria a ameaça de traição de alguém
próximo a ela.
Ziyaeddin sabia bem.
A figura tomava forma sob a dança do lápis.
Ele desejou poder justificar a si mesmo, com mais frequência, essas
visitas. Mas não podia ser visto entrando e saindo de bordéis regularmente.
Nenhum cheiro de licenciosidade deveria estragar a imagem que ele cultivara
naquela cidade.
A sra. Coutts insistia com ele sobre sua solidão, mas ele planejara sua
presença na Escócia com intenção. Não era um dândi do Leste, nem um bobo da
corte para entreter o conjunto da moda fascinado pelo exótico. Em vez disso, a
sociedade de Edimburgo fofocava sobre o enigmático “Turco”, e o mistério que
o cercava os deixava sempre famintos para saber mais. Patronos clamavam para
comissionar seu trabalho e pagavam-lhe bem. Os retratos que fazia de mulheres
sozinhas eram três vezes o preço de todas as outras peças, simplesmente porque
muito raramente concordava em pintá-las. Era um esquema desonesto, mas
rapidamente lhe rendera fama e ouro.
Aquele ouro ia para os cofres, que ele levaria consigo quando um dia
partisse dessa terra adotada para reivindicar seu direito de primogenitura. Cada
guinéu era marcado com um propósito: uma guarda forte para proteger sua
família; armas para proteger as pessoas; uma frota moderna para transportar os
bens de Tabir através do mar Cáspio; ouro para garantir o casamento de Aairah
com um forte aliado e garantir suas próprias alianças por meio do casamento
também.
Este era seu destino, adiado enquanto o general mantivesse a vida de
Aairah, as vidas dos filhos dela e do povo de Tabir sob a espada. Não os
comprometeria para satisfazer seus desejos agora.
Alguma coisa fez cócegas no seu tornozelo. Ele se abaixou e arrancou uma
pulga de sua pele.
― Alá, tenha misericórdia ― ele murmurou.
Enfiando uma nota sob a mão frouxa da modelo, saiu para a tempestuosa
tarde de outono. O céu era de um azul brilhante, cor que ele só vira uma vez,
aqui na Escócia: nos olhos de uma garota que estivera em sua casa quinze dias
antes e implorara sua ajuda.
O que quer?
Ela era extraordinária, uma jovem de determinação infinita e propósito
furioso. Deixando de lado todas as regras, veio até ele e implorou o impossível.
Güzel kiz.
E ela era linda. Apesar de seu desrespeito pelas boas maneiras, apesar de
seu vestido simples, conversa franca e vivacidade intensa - apesar disso não, por
causa disso - por causa de seu intelecto, calor e confiança limpa, ela era atraente.
Escandalosamente atraente. Irresistível.
E aqueles lábios.
A maioria das pessoas não se sente à vontade com a
nudez. Como uma estudante de medicina, claro, não sou uma delas.
No meio da rua, ele parou.
Não. Era uma ideia insana. Ridícula. Absurda.
Não sou uma delas.
Chamando uma carruagem de aluguel, instruiu o motorista a se apressar.

Casa da Srta. Alice Campbell


Porto de Leith, Escócia

― SRTA. SHAW? ― A criada de Alice enfiou a cabeça no quarto de


dormir. ― Não me ouviu batendo, criança?
― Não gosto de ser chamada de criança, Marjorie ― disse Libby, erguendo
a atenção do modelo de osso pélvico nas palmas das mãos. ― Pois eu não sou
criança, o que deveria saber pelos meus seios completamente formados e meus
lençóis que são enviados à lavadeira mensalmente para clareamento, ou mesmo
pela minha capacidade de conversar como um adulto, sem mencionar todos os
meus lembretes de que não sou de fato uma criança. Então, só posso supor que
me imagina uma criança porque sou solteira. Mas desde que conheço muitas
mulheres casadas infantis, isso não faz qualquer sentido.
― Tem uma visita, senhorita.
― Oh. Por favor, diga para Iris subir.
― Não é a Srta. Tate. É um cavalheiro.
― Um cavalheiro? ― Um cavalheiro? Além daquele jovem terrível da
festa, ela não falava com um cavalheiro em uma quinzena, nenhum que a notasse
pelo menos.
Exceto...
― Ele anda mancando?
― Sim, criança.
Libby desceu os degraus.
Ele estava ao lado da janela da sala. Quando ela entrou, ele tirou a vista da
rua e se virou em direção a ela com aquela quietude maravilhosa que havia
notado em cada um dos três encontros anteriores.
― Decidiu contar ao meu pai sobre a minha participação na dissecção,
afinal ― disse ela. ― Ou pretende contar, se já não o fez, ao duque. Pois não
pode estar aqui para me dizer que reconsiderou o meu pedido.
― Melhor dizendo, a sua demanda ― ele disse.
― Eu pedi.
― Empregou a palavra deve várias vezes.
― Bem? Vai dizer a eles? Já disse?
Seu olhar mergulhou em suas mãos. ― O que é isso?
Ela ainda segurava o modelo.
― Uma pélvis. Quer dizer, um molde de gesso de uma pélvis. Uma mulher,
é claro. Veja a grande distância entre a pelve acetabular e no todo realmente mais
rasa do que a de um homem, sem mencionar a maior largura do arco subpúbico.
― Ela pousou o modelo. ― Diga-me imediatamente por que veio.
― Se residir em minha casa, deve praticar boas maneiras. Embora eu não
esteja de fato ligado a todas as convenções sociais, aprecio a polidez.
Ela avançou involuntariamente, depois se conteve.
― Então... — ela mal podia respirar. ― Temos um acordo?
― Nós temos um acordo.
O ar saiu de seus pulmões.
― Obrigada! Eu não lhe causarei nenhum problema. Prometo que serei tão
discreta quanto um rato. Dificilmente saberá que estou lá.
― Duvido disso. No entanto, vou exigir isso da senhorita. Devo ter
tranquilidade para trabalhar. E sem interrupções.
― É claro, é claro. Me apresentará a Charles Bell?
― Apresentarei.
― Isto é perfeito! Perfeito. Arrumarei meus livros e instrumentos
imediatamente. O Sr. Bell só vai ficar em Edimburgo por um breve período,
então devemos providenciar para que eu o encontre sem demora. E devo me
matricular em cursos de anatomia e química e adquirir mais roupas. Há muito
a fazer.
― Com uma condição.
Seus nervos cantando se agruparam em uma bola.
― Eu não posso contar ao meu pai. Ele proibiria isso pelas razões óbvias. E
também não posso contar a Amarantha e ao duque. Por preocupação comigo,
certamente diriam ao meu pai ou a Constance, no mínimo. Nenhum deles pode
saber. Eu imploro, não peça isso.
― Implorando novamente. Não combina com a senhorita.
― Essa é a condição? Que não diga mais que te imploro?
― Não. ― Seu olhar escuro agora deixou seu rosto para descer pelo seu
pescoço. Libby sentiu a carícia da leitura, como a ponta de um agitador correndo
entre os seios e descendo pelo torso até a barriga, depois abaixando. Se lembrou
da advertência dele, que não era prudente se tornar voluntariamente vulnerável a
um homem sobre quem ela não sabia nada.
Com um desabrochar de calor entre suas coxas, a decepção coalhou sua
excitação. Ela não imaginara isso de nenhum querido amigo do duque e da
duquesa de Loch Irvine. Mas os homens eram acima de todas as criaturas físicas,
impelidos por impulsos animais com mais frequência, luxúria entre os principais.
E ela já havia dito a ele que não contaria a ninguém mais sobre o subterfúgio
deles. Sob essas circunstâncias, não o culparia agora por transformar sua
necessidade em vantagem própria.
Ela poderia fazer isso.
Ele era fisicamente atraente - tanto que a ideia de deitar com ele a
despertou. E parecia saudável, viril na verdade. Ela provavelmente não precisava
ter medo de doenças. Gravidez era uma preocupação. Os métodos contraceptivos
nem sempre eram eficazes.
No entanto, para seguir seu sonho, deveria correr riscos. Ela colocou os
ombros para trás.
― Qual é a sua condição? ― Ela perguntou.
― Uma vez a cada semana a senhorita deve posar para mim.
― Posar para o senhor? Como uma modelo? Para que possa me desenhar?
― E pintar.
Alívio escorreu através dela. ― Isso é tudo? Essa que é sua condição? Nada
mais?
― Nada mais.
Ele estava tão imóvel, seu olhar tão atento sobre ela, como se ele
imaginasse que ela iria objetar. Mas a alegria enchera os buracos da ansiedade.
― Eu aceito! Por quantas horas em cada sessão? Não posso perder muito
tempo de estudo. Estarei aprendendo em um hospital e também participando de
palestras, então estarei muito ocupada.
― Devemos concordar com um mínimo de uma hora a cada semana?
― Sim. Isso seria bom para mim. ― Ela foi até ele e estendeu a mão. ―
Devemos selar este acordo como senhores ― Acrescentou com um sorriso
porque era simplesmente maravilhoso demais.
Ele segurou a bengala com a mão esquerda e agarrou a dela.
Palma contra palma sua mão engoliu a dela no calor. Seu aperto era muito
mais forte do que ela previra. Absoluto. Poderoso.
― Como cavalheiros, Sr. Smart ― ele disse suavemente.
Libby afastou a mão e apertou-a contra a saia. Essa era sem dúvida a razão
pela qual homens e mulheres não costumavam apertar as mãos. Ela não
conseguia pensar em como o abraço de Archie Armstrong não causara nenhuma
das sensações que estavam acontecendo em seu corpo agora.
De qualquer forma, como homem, ela deveria se acostumar a apertar as
mãos dos homens.
― Eu tenho uma condição também ― ela disse.
― A senhorita não está em condições de criar condições.
― Seja como for, gostaria de saber algo sobre o senhor. Amarantha e o
duque não fofocam, e eles nunca compartilharam nenhum detalhe sobre o
senhor, nem mesmo o nome do país de onde veio. Acho que se for morar em sua
casa, eu deveria saber.
― Mas não vai. Pode aceitar isso ou este acordo já está quebrado?
Alarme deslizou através dela. ― Isso não. Mas um outro assunto.
― Outro? ― Ele falou pausadamente.
― Seria melhor se não houvesse visitas regulares na casa. Ficarei
disfarçada sempre que possível, mas minha pele não suportará o adesivo para as
costeletas, a menos que seja dado um alívio a cada dia.
― Já notou que eu sou um eremita ― ele disse.
― E me respondeu que não era.
― Não percebi que me ouviu dizer isso.
― Estava bem na minha frente. Não havia mais ninguém presente.
― A senhorita era um touro correndo em direção a um manto vermelho.
― Isso é novo, com certeza. Fui comparada a um grande número de
criaturas - um beija-flor, uma pomba, um esquilo, um coelho, até um macaco -
mas nunca um touro. Lembro-me de tudo o que as pessoas dizem. ― As
palavras, frases e sentenças passavam pelo seu cérebro em constante repetição.
― É o que me faz uma excelente estudante de ciências, que requer bastante
memorização técnica.
― Sim ― ele disse.
― Sim?
― A governanta visita diariamente, exceto aos domingos e meu criado a
cada dois dias. Caso contrário, a casa permanecerá livre de visitantes. Mas deve
criar suíças que combinem com sua pele e cabelo. A atual me ofende.
― Isso é outra condição?
― É um pedido.
Um sorriso puxou seus lábios. ― Tentarei não ofendê-lo.
― Bem. Este acordo lhe convém?
― Perfeitamente. Preciso ir me preparar. ― Ela foi em direção à porta.
― Srta. Shaw ― ele disse.
Ela olhou por cima do ombro.
Ele retirou a mão do bolso. ― Sua chave da casa.
Nervos dançaram em volta de seu estômago. Isso era real. Não um esquema
ou um plano fantástico. Não um sonho. Por suas próprias razões, esse homem
estava possibilitando a única coisa que ela sempre quis.
― Não tem outra modelo? ― Ela perguntou.
― Perdão?
― Sei que tem muitas encomendas. Não tem outra modelo para ir à sua
casa e posar para o senhor também?
― Não! ― Disse ele.
Ela cruzou a sala novamente e pegou a chave sobre a palma da mão dele
que estava estendida. Seus dedos se fecharam ao redor dos dela. ― Está
preparada para isso? ― Ele perguntou.
O latão era duro e frio, sua mão forte aprisionando a dela como se, também
através desse contato, ele quisesse avisá-la.
― Preparada para...?
― Elizabeth! ― Alice chamou do vestíbulo. ― Recebi uma carta do seu
pai e, novamente, ele menciona aquela extravagante francesa.
Ele libertou Libby.
― Estou mais convencida do que nunca de que ele tem.... Oh! ― Com
cachos grisalhos envoltos em um boné e um emblema da Sociedade
Abolicionista Feminina de Edimburgo presa à gola, Srta. Alice Campbell parecia
a cortesã londrina sexagenária mais improvável que a Grã-Bretanha já teve. No
entanto, ali estava ela.
― Bem, eu diria bom dia ― ela disse. ― Mas, de repente, se tornou um dia
excelente. Como vai, Sr. Kent? ― Ela fez uma reverência.
― Bom dia, Srta. Campbell. ― Ele se curvou.
― Elizabeth, por que não me avisou que um jovem bonito a estaria
visitando esta manhã? Se eu soubesse, nunca teria interrompido. No mínimo,
teria colocado um vestido melhor. ― Seus olhos brilharam.
― Ele está indo embora agora ― Libby disse. ― Não está?
― Lamentavelmente, madame ― disse ele a Alice com um sorriso galante
que causou pequenos e quentes arrepios entre as coxas de Libby. ― Srta. Shaw.
― Ele acenou para ela, e Libby sabia que esta era sua maneira de reconhecer
silenciosamente que ela era agora - para ele - um homem.
A excitação perseguia os arrepios.
Quando a porta da frente se fechou, o olhar brilhante de Alice a atravessou.
― Vai explicar imediatamente.
― Não há nada para explicar. Ele...
― Estava de mãos dadas com ele.
― Eu não estava.
― Estavam de pé, sua mão na dele. Querida menina, se não há nada para
explicar, então perderei completamente a esperança! O Sr. Kent está cortejando-
a?
― Não. Definitivamente não. ― Ele mal a tolerava.
― Como o conheceu?
― Eu o conheci quando estávamos todos em Haiknayes.
― Seus retratos estão chocantemente em voga. Se aquele homem delicioso
não a está cortejando, Elizabeth Shaw, qual era o propósito dele aqui e por que
seu rosto estava cheio de culpa quando entrei nesta sala?
― Meu rosto não estava cheio de culpa.
― Não tente me convencer de que era apenas uma visita social. Tem
encontrado esse homem em segredo?
― Por favor, Alice. Já lhe dei razões para acreditar que me envolveria em
encontros secretos com qualquer homem?
― Claro que não! Nunca demonstrou interesse em cavalheiros. Mas deixe-
me assegurar-lhe que se encontrasse qualquer cavalheiro interessante, eu nunca
ficaria no caminho, não importa de onde ele venha. Se ele capturasse seu
coração, eu aceitaria até mesmo um irlandês, embora, naturalmente, isso me
doesse.
― Alice...
― Quando uma mulher entretém homens, de diplomatas a duques, ela
descobre que eles são todos iguais da única maneira que importa. ― Uma
sobrancelha fina como lápis se ergueu.
― O impulso sexual masculino, acredito que queira dizer. Mas sinto muito
por....
― Não ouvirei desculpas! Se finalmente saiu de órbita por um homem, eu
não poderia estar mais feliz. Fui clara?
― Sim. Sempre foi a melhor das amigas para mim. Agora, por favor,
permita-me dizer a verdade. Pois eu não posso fazer o que pretendo a menos que
concorde em manter o segredo também.
― Graças ao abençoado Senhor! ― Alice bateu as palmas das mãos. ―
Tenho orado por este dia desde que seus seios brotaram. Está fugindo!
― Absolutamente não.
― Mas deve. Suas maneiras são sublimes e ele é positivamente lindo.
― Isso pode ser, mas o meu segredo é algo completamente diferente.
Alice alongou sua espinha e franziu os lábios. ― Elizabeth, o que está
planejando?
― Já está planejado. ― Seus batimentos cardíacos estavam fortes. ― Me
tornarei um cirurgião.
Capítulo 6

Sr. Smart se Muda

As posses de Libby estavam espalhadas pelo seu quarto. Íris embalou livros,
modelos e instrumentos em um baú de viagem, enquanto Alice arrumava as
roupas. Quase todas as evidências de sua feminilidade seriam deixadas na casa
de Alice por medo de que os servos a descobrissem.
― Alice, por favor, empacote um vestido e roupas de baixo. ― Não achava
que ele iria querer que posasse com roupas masculinas, e ela poderia escondê-las
no baú trancado e lavar as roupas de baixo aos domingos.
― Não estou inteiramente decidida a deixá-la sozinha naquela casa com
ele, Elizabeth ― disse Alice, colocando em seu baú de viagem uma pilha de
gravatas recém-adquiridas.
― Mas ficou muito feliz quando acreditou que eu estava fugindo.
― Casamento, sim. A coabitação é outra questão.
― Coabitação? ― Iris estava olhando para elas.
― Na casa dele, serei homem ― Libby disse a Alice.
Alice franziu os lábios. ― Para todos, exceto para ele. ― Seu cérebro girou
em torno do assunto final, como sempre fazia. Não contara nem a Alice nem a
Iris sobre os termos da barganha - sobre posar para ele. Queria confessar a elas
agora. Mas se ele estava mantendo os segredos dela, ela deveria manter os dele.
― Alice, ficarei bem. Ele me disse que não gostaria de me ver ou ouvir, e
estarei muito ocupada de qualquer maneira.
― Esta é a aventura mais emocionante que eu já tive, ― Iris disse: ― e
nem é minha aventura!
― Aventura, de fato ― Alice disse com um olhar atento.
Três horas depois, quando o coche de aluguel se aproximou da casa na qual
iria morar até o retorno do seu pai para a Escócia, o estômago de Libby estava
em nós, as palmas das mãos desconfortavelmente úmidas e as suíças já estavam
coçando. Mas ignorou tudo. Pois isso não era uma aventura, não era um jogo
feito por diversão. Isso era real. A sua vida. O seu sonho.
A carruagem parou e ela pulou para fora, divertindo-se com a liberdade de
movimentos oferecida pelas calças e sem a prisão dos espartilhos.
― Esta é a casa ― ela indicou ao cocheiro, em tom baixo. Quanto mais
praticava o estilo de falar de Joseph Smart, mais naturalmente isso acontecia.
Ela contou os cinco degraus para a varanda. Nem todas as casas na Cidade
Velha de Edimburgo tinham escadas na entrada. Ou ele era masoquista, ou
tinha tido uma razão para comprar esta casa que tornava os degraus um
incômodo necessário.
A porta era de carvalho polido numa elegante fachada de arenito. Levantou
a mão para bater, depois fez uma pausa. Não era uma convidada. Ele lhe dera
uma chave.
Os nervos atravessaram seu estômago.
Depois que o cocheiro depositou o baú de viagem no vestíbulo, fechou a
porta. Afastando o chapéu da cabeça, se permitiu respirar.
― Cortou seus cabelos.
Sua voz era fluida e suave, como as profundezas de um riacho rolando
sobre as pedras, contornando-as conforme passava. Ele era uma silhueta na luz
no extremo oposto do corredor, vestido de preto e encoberto pela quietude.
― Não posso usar sempre um chapéu dentro de casa ― disse ela. ― Não
me importo. Íris - ou seja, minha amiga Iris Tate - recolheu o cabelo e
transformou-o numa peça de aplique, para que eu possa usá-lo quando for
obrigada a ver lady Constance de vez em quando, como eu mesma. Como meu
outro eu, porque sou isso agora. ― A partir deste momento, ela era Libby Shaw
e Joseph Smart.
Indo em sua direção, ele retirou do bolso um relógio de ouro em uma
corrente.
― Tem um compromisso? ― Ela perguntou. Quando ele exigiu que ela o
deixasse em paz, imaginou que raramente o veria. Talvez nunca.
― Tenho ― disse ele. ― Mas eu não estou consultando a hora agora. ―
Ele agarrou sua mão e depositou o relógio. Ela piscou, imaginando se ele pegaria
a mão dela a cada vez que eles se encontrassem, e igualmente esperando que não
e desejando que ele o fizesse. Era uma coisa estranha ser segurada por um
homem que não era seu pai, enervante e ao mesmo tempo agradável.
Emocionante.
― Este era do meu pai ― ele disse. ― Não tenho uso para ele, mas pode
usá-lo. Mais importante, ajudará a desviar a atenção do formato dos seus
quadris. ― A mão dele se afastou da dela.
Ela não era voluptuosa como Constance ou tinha tantas curvas quanto Iris.
Mas esse homem era um artista. Ele via tudo.
Ela encontrou seu olhar e sentiu como se ele a visse - toda ela - com a
consciência mais íntima. Aconteceu o mesmo no seu toque: como se, através de
todos os sentidos, ele estivesse sempre a estudando de perto.
― Obrigada ― ela disse. ― Não precisava.
― Tem cem anos de idade. ― Ele pegou o chapéu. ― Feito por uma antiga
família de relojoeiros que já serviu a califas e reis.
― Verdade?
― Sim. ― Ziyaeddin não resistiu a sorrir um pouco. ― Então, não venda
para pagar seu aluguel.
Sobre Elizabeth Shaw, sempre parecia pairar um zumbido, uma tensão
vibratória. Com o sorriso dela agora, ele sentiu a leve liberação daquela tensão
nela, como se estivesse acontecendo debaixo de suas próprias costelas.
Ela o encantava. Aquela era uma sensação desconfortável, e ele não sentia
um desejo puro por uma mulher há tanto tempo, que o desconcertava. De uma
vida inteira de decisões catastroficamente infelizes e desastres acidentais, essa
estava entre as piores. Não deveria ter concordado com isso. Mas já era tarde
demais agora. Ele deveria simplesmente ficar longe disso. Dela.
Levantou o olhar. ― Mas o senhor não me conhece.
― Eu sei o suficiente. ― E tudo isso o cativava. ― Estarei fora pelo resto
do dia, para que possa se estabelecer no seu tempo livre. Minha criada, Sra.
Coutts, preparou os quartos de cima para a senhorita. Use o que desejar. Como
adivinhou, eu nunca vou lá em cima. Ela e Gibbs poderiam estar administrando
um jogo de dados no terceiro andar e eu não saberia. Não acredito que o façam, a
propósito. Ela ficou muito feliz em saber que outra pessoa iria morar aqui. Mas
se encontrar algum dado, sinta-se à vontade para descartá-lo.
― Não precisa brincar para me deixar à vontade ― ela disse.
― Pelo contrário, estou falando inteiramente a sério sobre os dados. ― Ele
foi até a porta, sentindo o olhar clínico dela sobre ele como se fosse um
espécime masculino incompleto, um corpo a ser estudado em sua imperfeição.
Assim era melhor. Ela nunca deveria saber que, mesmo com roupas de
menino, ela despertava o homem real. Não seria nenhuma vantagem para eles.
― E depois que me estabelecer? ― Ela perguntou.
― Depois? ― Suas narinas alargaram.
― Vai me deixar sozinha também?
Aha. Ela parecia entender os homens afinal.
― Sim. Exceto uma vez por semana. Nesses dias, por uma hora, a senhorita
é minha.
― Conforme combinado ― disse ela depois de uma pausa. ― Foi isso que
quis dizer ontem quando perguntou se eu estava preparada? Quis dizer preparada
para posar para o senhor? Pois cumprirei meu lado do nosso trato. Farei qualquer
coisa para ter sucesso.
― Acredito nisso. ― Ele se virou para ela, olhou em seus olhos sinceros e
para o rosto cheio de determinação. ― Mas não. Não foi isso que eu quis dizer
quando perguntei se estava preparada.
― Então, preparada para o quê?
― Viver entre os homens todos os dias. Aprender seus caminhos, imitá-los
e fingir ser o que não é, para que eles não a conheçam pelo que realmente é.
Estar sempre sozinha. Isso é o que eu perguntei, Srta. Shaw. Está preparada para
isso?
― Sim ― ela disse, com o queixo firme sob as horríveis suíças. — Porque
tenho de estar.
Ele se permitiu sorrir.
― Sabe disso ― ela disse. ― Acabou de me testar. Quando disse, a
senhorita é minha, queria ver se eu recuaria. Se mostraria medo.
― Possivelmente. Ou talvez me dê mais crédito pelo desapego do que
mereço ― ele disse honestamente, seu olhar deslizando para seus lábios
momentaneamente. Os lábios, ele ainda não tinha conseguido que ficassem
perfeitos. Mas o faria.
A aldrava soou na porta da frente.
Na varanda estava um rapaz de roupas puídas, segurando uma pesada arca
de madeira nos braços.
— Meu baú médico! — Ela disse em um timbre totalmente alterado, baixo
e gutural. — Onde achou isso?
O garoto sacudiu a cabeça em direção à rua. — Atrás do pub, senhor.
― Como foi parar lá? ― Ela perguntou.
― Eu vi o cocheiro carregar com o resto da bagagem, mas depois, de volta
para o coche ― ele disse. ― Eu vi ele indo embora, então eu segui ele. Acho
que ele não achou nada que ele gostou, porque deixou no beco, mas eu digo que
a caixa é tão boa quanto ouro, até vazia! Mas quando vi que a caixa era de um
médico, eu disse pra mim mesmo: “Se um ladrão roubasse a bolsa do médico,
que cuidava da mamãe depois que o tear desmoronou e quebrou a perna dela
em dois, ela nunca mais ia andar de novo! ” ― Ele estufou o peito em direção a
ela. ― Eu não peguei nada.
― Obrigado por sua honestidade. Como está a perna da sua mãe agora?
― Está tudo curado. ― Ele balançou a cabeça, indeciso. ― Mas ela tem as
dores, no local, uma coisa horrível.
― Isso não é incomum em um osso quebrado gravemente que foi
consertado. Quanta carne, ovos e queijo macio sua mãe come?
Ele enrugou a testa. ― Temos um domingo de galinhas.
― Todos os domingos?
― Nãooo. Só enquanto o pai estiver em casa depois que volta da viagem.
― E ela come a pele e a gordura, ou você?
― Dá para os pequeninos, eles são gêmeos, senhor.
― Claro que ela faz. Qualquer boa mãe faria isso. ― Ela colocou o baú no
chão, destrancou-o e retirou uma grande garrafa marrom. ― Este é o óleo de
noz. ― Ela envolveu as mãos do rapaz em torno dele. ― Sua mãe deve engolir
uma colher de chá todos os dias. Depois de uma ou duas semanas, acho que ela
achará o desconforto menos pesado.
― Bebendo óleo?
― Este óleo em particular - e alguns outros, mas este é o que tenho em
mãos no momento. É muito valioso ― ela disse, suas mãos ainda cercando as
dele. ― Não quero que o venda.
― Minha mãe vai vender para pagar o aluguel!
― Ela não deve. Ela deve consumi-lo todos os dias ou não se recuperará
totalmente, e ela não será capaz de se sentar confortavelmente diante do tear
novamente. Então, aqui está o que deve fazer: esconda em algum lugar que ela
não possa encontrá-lo e adicione à comida dela. Eu geralmente não aprovo
mentiras ― ela lançou um olhar rápido para Ziyaeddin ― mas deve fazer isso
por ela. E quando a garrafa estiver vazia, volte aqui e me dê um relatório. Se
estiver ajudando a aliviar sua dor, eu darei mais uma. Se não, vamos encontrar
outra solução.
― Sim, doutor!
Ela o soltou. ― Agora guarde isso para que não quebre.
O rapaz puxou o boné e saiu correndo. Ela segurou o baú médico.
― Eu não sei como eu poderia ter esquecido isso. Devo ter chegado mais
ansiosa do que pensei. ― Seus olhos estavam preocupados e ela segurou a caixa
no peito como se fosse uma criança. — E agora eu acabei de entregar o presente
que trouxe para o senhor em agradecimento por me receber.
― A garrafa de óleo?
― Na minha pesquisa, aprendi que o óleo de noz é o meio preferido para a
pintura devido à sua leveza e que não amarela com a idade, mas que muitos
pintores acham muito caro usar regularmente. Essa garrafa em particular foi
derivada de nozes inglesas. São deliciosas, mas suponho que isso dificilmente
importaria para o senhor, é claro, nem o custo do óleo. Pelo mobiliário em sua
casa e suas roupas, obviamente caros, e entendo que suas pinturas são muito
caras.
― Pesquisou óleos de pintura?
― Claro. Se eu for viver com um artista, deverei saber o que ele aprecia.
Sinto muito por ter que dá-lo.
Tinha que dá-lo, como se não houvesse outra escolha a não ser ajudar a mãe
do rapaz, que ela nunca conhecera.
― Eu não sinto muito ― ele disse, abrindo a porta. ― Não precisa me dar
presentes. ― Ele estava começando a pensar que a presença dela em sua casa era
presente o suficiente. ― Bom dia, Sr. Smart.

LIBBY EXPLOROU A casa. Decorados com mobília simples e elegante, os


dois quartos do segundo andar revelaram a influência de seu senhor, nos
requintados tapetes de estilo oriental e em algumas pequenas pinturas. No quarto
de dormir cuja janela dava para a rua, havia um espelho e uma penteadeira, que
ela precisaria para colocar as suíças todos os dias.
Uma pintura estava pendurada junto à porta. Obviamente, representava um
mercado, embora não como qualquer mercado que ela tivesse visitado. Os toldos
das tendas protegiam as pessoas. Pintou ânforas cheias de mercadorias, tapetes
como aqueles no chão da casa, e a luz do sol brilhava por toda parte. Em meio à
atividade de homens barbudos e mulheres encobertas, dois garotos corriam,
levantando poeira. Embora estrangeiro, era um quadro dos tipos mais comuns de
interação - comprar, vender e brincar - e fervilhante de vida.
Libby se inclinou para frente. Os rostos dos garotos e todos os
frequentadores do mercado estavam embaçados, como se ela estivesse espiando
pela luz do sol muito brilhante ou sombria demais para discerni-los. Cada figura
era colorida e vital, mas, em seu anonimato, distante.
Um frisson de medo subjugou seu centro, o mesmo que ela sentiu quando
ele disse aquelas palavras inesperadas: A senhorita é minha.
Retirando o relógio do bolso, passou a ponta do dedo sobre as gravuras na
tampa. Ornamentados, com delicados cachos e laços, pareciam mais que um
mero padrão decorativo, mais ou menos como palavras.
Califas e reis.
Quando ele chegou perto dela, havia se movido suavemente, como se não o
afetasse mover-se assim em sua perna arruinada. Mas ela sabia como o esqueleto
e os músculos funcionavam, e que sua demonstração de força e firmeza não
poderia, de fato, vir sem um custo.
Alcançando a pintura, ela passou as pontas dos dedos ao longo da borda
inferior da moldura e depois na tela. Era fresca e irregular. A ponta do sapato
escuro do menino mal surgia da tela, mas o suficiente para que a textura em si
criasse dinamismo.
― O patrão pintou esse.
Libby se virou para a porta. A mulher madura estava ali, com tanto cinza
como vermelho sob o gorro, e olhos astutos fixos em um rosto escocês
avermelhado.
Libby se curvou. ― Como está, senhora?
― Não é que foi tão bom quanto qualquer rapaz que já fez uma reverência
para Nan Coutts? Sim, foi ― ela disse com um aceno de cabeça. ― Esses olhos
bonitos podem ser um problema, mas nós vamos escurecer essas sobrancelhas e
isso ajudará. Não se preocupe com o homem do patrão, Gibbs ― ela disse com
um aceno de mão. ― Ele é lerdo, aquele maluco. Mas esteja sempre alerta,
moça. ― Ela se apressou para o patamar da escada. ― Eu faço o jantar às seis,
então vou para casa com o meu Rufus para cozinhar para ele, o querido.
Então ela se foi deixando Libby um pouco agitada.
Ele havia dito à sua governanta.
Verificando suas suíças no espelho, ela saiu de casa e foi até o escritório da
secretaria da universidade. Depois de pagar, partiu como um grande número de
jovens, com passos largos para a livraria.
― Joe Smart! ― Archibald Armstrong acenou do outro lado da rua, depois
correu. ― Vi que veio do escritório. Obteve sua matrícula então?
Ela balançou a cabeça.
― Sou aprendiz de Myers. Com ciúme? Não fique! Ele é meu tio. Mamãe
disse que se ele não me aceitasse, ela usaria suas tripas como ligas. ― Seu
sorriso era amplo. Dessa vez, quando deu um tapa nas costas de Libby, ela
enfiou os calcanhares no chão e ficou de pé.
Ele olhou para o rosto dela.
― Abomináveis essas suíças, hein? E vou dizer mais, as mulheres não
gostam delas. É melhor raspá-las antes que arranhe as bochechas de uma delas.
― Ele sorriu ainda mais. ― É melhor eu ir. Mamãe convidou seus primos para o
jantar. Não posso me atrasar.

OS AROMAS DE um saboroso assado e de pão fresco encontraram Libby


quando ela entrou em sua nova residência. As capas holandesas haviam sido
removidas da mesa de jantar e, sobre a elegante madeira de cerejeira, adornada
agora com linho fino, a Sra. Coutts deixara um banquete, mas com apenas um
único lugar à mesa. Uma nota ao lado do prato indicava que um almoço frio para
o dia seguinte estava na despensa.
Correu para o andar de cima, tirou as suíças, o lenço de pescoço e voltou
para a sala de jantar. Andar pela cidade como homem lhe dera um poderoso
apetite.
Ela estava na metade do segundo prato quando o anfitrião apareceu na
porta.
― Veja a saudação ― ela disse, brandindo a nota de Coutts. A criada havia
escrito: Para a jovem senhorita.
― Parece que deixei de compartilhar com ela o seu nome.
Libby se levantou. ― O senhor prometeu sigilo.
― No entanto não prometi imprudência.
― E se alguém o visitasse e visse essa nota? E se o seu criado, o Sr. Gibbs,
o fizesse? Ou contou a ele também?
― Não contei. E ninguém virá me visitar.
― Estou irritada com o senhor. Nós fizemos um acordo.
― Um acordo que escolhi adaptar. Levemente.
― Vai adaptar sempre que lhe convier? Por capricho?
― Possivelmente. Esta é a minha casa.
― O senhor é autocrático.
― E a senhorita é uma jovem fingindo ser um menino. Qual de nós supõe,
está ultrapassando os limites mais gravemente?
― Eu não confio no senhor.
― Não deveria confiar em mim. Agora sente-se. Continue sua refeição. O
cérebro de um rapaz requer combustível para funcionar no seu melhor.
― Não come? ― Tentou não sondar seu corpo, mas falhou, como ela
estava falhando em manter qualquer tipo de calma ao redor dele. ― Eu entendo
que artistas muitas vezes podem ser excêntricos, então talvez o senhor não coma.
― Excêntrico? Vindo da senhorita?
― Conheci um artista uma vez em uma festa que Constance insistiu que eu
participasse. Ele estava magro e pálido, como se nunca tivesse comido. Algumas
senhoras da moda acreditam que a fragilidade é interessante. Ele não era, de
maneira alguma, e sim doentio como um homem acometido de uma enfermidade
de rins ou fígado. Eu estava preocupada com ele. No entanto sua musculatura
parece ajustada e sólida. ― Deslumbrante. ― Nem um pouco desnutrido.
― Fico feliz em poupá-la da preocupação com minha saúde. Falei com
Charles Bell. Ele está ansioso para conhecer o jovem Sr. Smart.
― Sr. Bell! Quando? Ele sabe sobre mim? Já?
― Convidei-o para almoçar amanhã para conhecer Joseph Smart, um primo
distante de um amigo meu, agora hóspede em minha casa. Não é como desejava?
― Sim! Eu apenas...
― Conforme combinado, Srta. Shaw, estou aqui para lhe dar o que mais
deseja. ― Ele falou as palavras devagar e sem afastar seu olhar do dela.
― O senhor está aqui porque esta é a sua casa. E para garantir seu próprio
desejo. ― O canto da boca dele subiu. ― Por uma modelo ― acrescentou. ―
Não interprete minhas palavras intencionalmente. Sou quase imune a
provocações.
― Quase? Interessante.
― Não deve flertar comigo.
― Não estou flertando com a senhorita.
― Então o que está fazendo?
Ele inclinou a cabeça um pouco e disse, após um momento de hesitação: ―
Estudando-a.
Sentiu seu corpo vibrar. Como uma expectativa.
Ridículo.
― Estudando-me? ― Ela perguntou.
Quanto mais conheço uma pessoa, mais precisamente posso descrevê-la.
― Não é apenas o exterior que estuda?
― Não é.
― Essa é a razão pela qual participou da dissecação.― Ele assentiu. ― Em
que dia e hora gostaria que eu posasse para o senhor? ― Ela perguntou.
― Domingo às dez horas.
― E quanto a igreja?
― Nem a Sra. Coutts nem o Sr. Gibbs vem no domingo. ― A mão dele se
apertou ao redor da cabeça da bengala.
― Domingo às dez horas.
Ele saiu e ela limpou os pratos, tentando apenas pensar na visita iminente
do Sr. Bell. Mas não conseguia aquietar sua mente. Ele falou com o Sr. Bell
antes de fazer a oferta para ela na casa de Alice? Teria ele escolhido a manhã de
domingo para as sessões para sua conveniência ou para a dela? Ela o ofendera ao
mencionar a igreja? Talvez ele não fosse cristão. E o que ele estava aprendendo
sobre ela quando a estudava com seus belos olhos escuros e sorria como se
gostasse do que descobria?
Capítulo 7

Aliados

Charles Bell os visitou dois dias depois da jovem se mudar para a casa de
Ziyaeddin e interromper completamente sua paz. Seu rosto, sua voz e a maneira
como ela se movia eram enlouquecedores. As calças, o casaco e as suíças
deveriam repeli-lo. Mas não. Saber que um corpo feminino estava se escondendo
dentro dessas roupas o tornara sedento por ela. Era pura insanidade.
O fato de que ele parecia não controlar sua língua com ela, era uma falta de
disciplina que nunca conhecera antes.
Quando Bell entrou em sua sala, Ziyaeddin se viu esperando que ela
fracassasse, que o cirurgião descobrisse sua artimanha e partisse furioso.
Com um olhar firme e mão estendida, ela cumprimentou o famoso
cirurgião. Falou com sabedoria e em um ritmo que parecia tanto distrair quanto
impressionar Bell. Um escocês de cerca de cinquenta anos e um homem de
profunda fé e brilhantismo científico, Bell tinha um ar pensativo e olhos
inteligentes. Ziyaeddin confiava nele.
Depois de meia hora, Ziyaeddin se desculpou. Visitando a Sra. Coutts na
cozinha, assegurou-se de que ela colocasse a mesa de jantar apenas para dois e
depois se retirou para os seus aposentos.
Duas horas depois, o falso garoto apareceu na porta de seu estúdio.
― Ele me convidou para acompanhá-lo à Royal Infirmary amanhã! Ele
deseja ver como aplico meus conhecimentos ao examinar pacientes. Fui
obrigada a inventar um tio falecido que era cirurgião na América. Ele me
perguntou de onde eu tinha conseguido todo o meu conhecimento e eu não
poderia inventar um tio inglês ou escocês, é claro, porque ele seria capaz de
pesquisar sobre isso com muita facilidade, mesmo que meu tio estivesse no
serviço colonial.
― Ofereço minhas condolências pelo falecimento de seu tio americano.
Seus olhos brilhavam como se o sol os iluminasse por trás. ― Preocupa-me
que os médicos ou enfermeiras possam me reconhecer. Mas encontrei um ontem
e ele não me conheceu. E o Sr. Bell acredita que sou um rapaz! Ou melhor, um
menino, por causa da minha aparência jovem. Sinto alguma culpa por fingir ter
quinze. Aos vinte anos, não é de se admirar que eu tenha adquirido um vasto
conhecimento de medicina.
― Claro que não ― ele murmurou.
― Mas aos quinze realmente parece impressionante. No entanto, todo
mundo acredita nisso. Isso é incrível. Maravilhoso! E o senhor tornou isso
possível. Sou mais grata do que pode imaginar. O Sr. Bell e eu discutimos as
vantagens de fazer cursos na universidade. Naturalmente, posso aumentar esses
estudos com cursos em uma escola particular de cirurgia. É aqui onde pinta?
Ela parecia nunca respirar quando falava assim, com tanta animação,
espírito e energia. À maneira de uma carruagem de seis cavalos correndo ao
longo de uma estrada ou de uma escuna em plena viagem cortando o mar, ela era
sedutora, apesar das calças, apesar do seio achatado, do cabelo curto e das suíças
falsas. Apesar de tudo.
Como tudo isso acabaria, ele não poderia imaginar. Nada bem,
provavelmente.
Ele cometera um erro terrível.
― Sim ― ele disse. ― Aqui é onde pinto. Lembre-se de que pedi para não
ser incomodado.
― Esta é uma ocasião excepcional, é claro. ― Ela gesticulou para a tela em
seu cavalete. ― Conheci o casal que está pintando uma vez em uma festa, com
Constance. Ela está sempre me arrastando para festas, na esperança de encontrar
um rapaz que eu possa suportar por tempo suficiente para permitir que ele me
corteje. Não posso conter minha felicidade! Quero comemorar. O senhor não
gostaria de vir beber uma cerveja comigo agora? Nunca fiz uma coisa dessas,
mas Archie Armstrong mencionou isso no outro dia. Sei que os jovens gostam
de beber cerveja. Preciso me acostumar a isso, de modo que, se algum dia for
obrigada a beber cerveja com meus colegas, o álcool não subirá à minha cabeça
com excessiva rapidez.
Ela se equilibrou nas pontas dos pés na porta, emoldurada pela escuridão, a
luz repousando nos ossos altos das bochechas coradas, a testa pálida e os cachos
dourados, como se temesse se estabelecer e ser desalojada rapidamente.
Ele deveria se afastar dela.
― Archie Armstrong? ― Ele disse em lugar disso.
― Eu o conheci no dia em que o senhor me viu na dissecação. Sou grata
por aquele dia, que esteve lá e me reconheceu. Não acredito que nosso acordo
seja justo, pois há muito mais vantagens para mim do que para o senhor.
As suíças horripilantes eram insuficientes para mascarar sua beleza
vibrante. Charles Bell, o tal Archie Armstrong e todos os outros homens que ela
encontrou enquanto usava esse disfarce, que não puderam ver que era uma
mulher, eram imbecis.
Mas sempre foi sua maldição ver o que os outros não viam. ― Eu tenho
tudo o que preciso. ― Ele não acreditava nisso. Não mais.
― No entanto, estou ciente da disparidade. E grata. Obrigada. Não posso
agradecê-lo...
― Se chorar, este arranjo está acabado.
― Não estou chorando. Nunca choro. Só quero agradecê-lo.
― Já me agradeceu. Nós temos um acordo. Nada mais precisa ser dito
sobre isso. ― Ele se afastou dela e pegou seu pincel. Ele precisava da madeira
entre os dedos. ― Há lágrimas em seus olhos.
― A cola faz com que eles irritem. Preciso visitar o farmacêutico que gosto
em Leith, como Elizabeth Shaw, é claro, para pedir-lhe que crie um composto
menos nocivo.
― Faça isso. Bom dia, Srta. Shaw.
― Deveria sempre me chamar de Sr. Smart. Para que não erre
acidentalmente em público.
― Quando está vestido como Joseph Smart, deve sempre falar comigo na
voz dele. Então não errará acidentalmente em público.
― Touché. O senhor, Ibrahim Kent, não é tão estúpido afinal.
Agora ele não conseguia resistir a olhá-la. ― Não pensa que sou estúpido.
― Não. ― Ela mordeu os lábios e as suíças se projetaram absurdamente.
― Então virá comigo beber uma cerveja agora para comemorar?
― Eu não vou. Nunca vou. Vá agora.
Ela permaneceu. Ele podia senti-la ali, como se sua curiosidade e alegria
expansiva estivessem estendendo a mão e o tocando.
― Ibrahim Kent não é o meu nome ―ele disse e ficou abruptamente ciente
do alivio da pressão sob suas costelas.
― Não é?
Ele olhou para ela.
― Qual é o seu nome, então? ― Ela perguntou.
― A senhorita, ao meu ver, se dirigirá a mim apenas como Mestre.
― Não farei nada do tipo ― ela disse após o riso. Era curto, agitado e
musical à maneira de um tambor, e maravilhoso.
― Então não fale comigo em absoluto. ― Ele era definitivamente incapaz
de não sorrir. ― Agora, retire-se.
Com uma chama brilhante em seus olhos, ela virou e se foi.
Ele estava no inferno. E no céu, de uma só vez. O único consolo: era
temporário.

DURANTE CINCO DIAS, Libby não viu o homem em cuja casa ela
morava. Embora longe daquela casa, sua vida tornou-se francamente
inacreditável, dentro da casa tudo permanecia tão igual quanto seu dono, com a
exceção de um intruso pequeno e imprudente.
Em suas minúsculas pernas, entrou rapidamente na sala onde Libby
guardara os livros de medicina, arremessou-se na lareira para rolar com alegre
abandono nas cinzas, atravessou as pernas da mesa e saiu correndo pela porta,
deixando atrás de si um rasto de poeira.
Ela estava determinada a memorizar o comentário de George Kellie sobre
os benefícios derivados da compressão pelo torniquete. Mas a madrugada estava
rapidamente se tornando manhã e ela deveria acompanhar o Sr. Bell até a Royal
Infirmary. Lá ele a apresentaria a um cirurgião que a aceitaria como aprendiz.
Ela aparou o cabelo de novo e, antes de sair de casa, guardou as partes cortadas
para moldar suíças mais adequadas para um jovem de quinze anos. Isso levaria
tempo.
Apagando a vela, seguiu o rastro de cinzas até a cozinha.
― Sra. Coutts, suponho que tenha notado que um leitão está correndo pela
casa.
― Sim, moça. ― Ela estava pressionando a massa em uma forma.
― É para jantar?
― Nada de carne de porco nesta casa! Alho francês, ervilhas e torta de rim
para hoje à noite.
― Parece que o Sr. Kent não janta em casa com frequência.
― Ele está jantando no Gilded Quill.
― A cafeteria em que artistas e escritores se reúnem? Ele prefere jantar lá?
A Sra. Coutts deu-lhe um rápido olhar. ― Agora mais do que antes.
Claramente, ele havia mudado seus hábitos por causa de sua exigência de
não convidar ninguém para a casa.
― Sinto muito que tenha que preparar o jantar só para mim ― ela disse. ―
Posso ajudar?
― Nada disso, moça. Fico feliz que tenha vindo para ficar. O patrão está
sozinho demais neste grande lugar vazio. É uma bênção que esteja aqui. ― Ela
espanou as mãos no avental e deu uma pequena marmita fechada para Libby. ―
Isso vai mantê-la até chegar em casa hoje à noite.
Casa. Como se esta fosse realmente sua casa e não simplesmente um
esconderijo para lançar sua artimanha.
― Se o porco não é para ser comido, por que está na casa?
― O patrão está em um de seus projetos, eu espero. Agora vou ao mercado.
O Sr. Gibbs chegará em breve, então é melhor que se esconda. ― Com uma
grande cesta pendurada no cotovelo, a Sra. Coutts partiu e Libby foi até seu
quarto. Quando entrou, ela tocou as pontas dos dedos na pintura, exatamente
onde havia tocado em seu primeiro dia nesta casa e todos os dias desde então. A
textura áspera e esburacada da tinta lhe dava conforto. Preocupações surgiam em
sua cabeça - sobre sua preparação para estudar medicina formalmente, seus
bigodes com costeletas e o cirurgião que encontraria hoje. No entanto,
deslizando as pontas dos dedos sobre os pés dos garotos correndo no mercado, a
calma espalhou-se sob suas costelas. Como era singular que uma imagem de
estranhos em uma terra estrangeira parecesse a coisa mais segura e familiar de
seu mundo agora.
Pegando uma tesoura da penteadeira, as mechas de seu cabelo e o adesivo
nocivo, começou a trabalhar.

A ROYAL INFIRMARY se estabelecia maciçamente em um quarteirão


inteiro da Cidade Velha. O Sr. Bell tinha assegurado que ela teria o melhor
cirurgião da cidade como seu mentor, um dos poucos com uma rotação
permanente na enfermaria.
― Ah, aí está ele ― disse Bell ao se aproximarem de dois homens.
― Sr. Bridges, permita-me apresentar Joseph Smart.
― Mas isso não é mais do que uma criança, Charles ― disse Bridges,
olhando para baixo, para Libby. Era um homem de idade avançada, tinha um
queixo estreito e uma massa de cabelos ruivos e acinzentados.
― No entanto, sua mente é aguda, Lewis e seu conhecimento já é extenso.
Estou convencido de que ficará agradavelmente surpreso.
― Veremos. ― O Sr. Bridges já havia começado a se afastar.
Com um aceno delicadamente conspiratório para ela, o Sr. Bell partiu.
Libby olhou para o outro homem. O estudante arrogante da dissecação
pública olhou para ela, sua postura cheia de afronta.
Ela colocou a mão para a frente. ― Como vai?
Seu lábio aristocrático se curvou. ― Acha que conquistará Bridges e me
empurrará para o lado?
Sua mão caiu ao lado do seu corpo. ― Não acho nada sobre o senhor, na
verdade. ― Ela partiu atrás do cirurgião. Não tinha entrado nessa farsa para ser
desviada pela pequena competição de outros estudantes. Tinha trabalho a fazer.
Nada deveria entrar em seu caminho.

QUANDO LIBBY ENCONTROU um muro baixo de pedra não muito longe


da enfermaria para se jogar em cima e abrir a marmita, estava exausta e
empolgada. O Sr. Bridges era um professor tão brilhante quanto o Sr. Bell havia
dito. O fato de que ele estivesse sendo bom e exigente, Libby enfrentaria
facilmente. Só queria poder suportar isso sem a companhia do outro aprendiz,
Maxwell Chedham.
Uma das enfermeiras respondeu às perguntas de Libby sobre ele. De uma
antiga família de Derbyshire, Chedham entrou pela primeira vez na política, mas
não gostava disso. Apesar de novo para o estudo da medicina, por causa de seu
intelecto e temperamento, ele foi amplamente considerado o aprendiz de
primeiro ano mais promissor da cidade.
Obviamente, ele não gostava da perspectiva de competição por esse papel.
Enquanto se moviam pelas enfermarias, seus olhares para ela eram cansativos.
No entanto, até mesmo sua companhia desagradável e a coceira em seu
rosto não podiam aborrecer sua felicidade. Como se comemorassem seu triunfo
também, o ar estava fresco, o sol banhava as pedras e os tijolos com calor.
Abrindo a marmita descobriu uma saborosa torta.
Como era maravilhoso sentar sozinha em um lugar público! A calça lhe
dava liberdade de se empoleirar no muro como se fosse o sofá mais cômodo.
Uma porta abriu e uma mulher apareceu na varanda. Um vestido de tecido
fino deslizava sobre suas longas pernas que pareciam livres de anáguas.
Encostando o quadril no corrimão, numa posição que revelava um grande
volume de seios, ela se virou para Libby. Sob o ruge e Kohl que decoravam seu
rosto, ela parecia jovem e pouco saudável.
Libby gesticulou com a massa.
Com uma sobrancelha arqueada, a mulher levantou uma garrafa.
― Joseph! ― A voz de Iris Tate veio claramente pelo beco.
Usando um vestido listrado rosa e branco e uma touca combinando, com
seus cachos escuros escapando de todas as maneiras, ela sorria.
Libby pulou do muro e correu em direção a sua amiga.
― Primo Joseph! ― Iris praticamente riu. ― Como é divertido chamar seu
nome! Alice disse que eu não deveria provocá-lo, mas isso é o mais divertido
que tive desde que saiu. Deus, o que fez com o seu cabelo? Está pingando
literalmente.
Libby tinha coberto o cabelo com óleo para torná-lo mais escuro e soltar os
cachos, depois penteá-lo sobre a testa e as bochechas, e a Sra. Coutts lhe dera um
cosmético para engrossar as sobrancelhas.
― Venha, prima. ― Ela puxou a mão de Iris em seu braço como um
cavalheiro faria, e levou-a embora. ― Antes que alguém a ouça sendo uma tola.
― Quem iria me ouvir? Oh! ― Ela ofegou. ― Libby essa mulher é um...
― Silêncio agora ― ela sussurrou. ― Como me achou?
― A nota que enviou para Alice ontem dizia que esperava estar na
enfermaria esta manhã. Ando por aqui há pelo menos uma hora...
― Sozinha? Sem um lacaio?
― Você sempre fez isso.
“As escolhas que faz Elizabeth, afetam os outros. ”
― De qualquer forma, eu esperava encontrá-la ― disse Iris. ― E agora
encontrei!
― É tão bom vê-la, Iris. Obrigado por ter vindo. ― Libby apertou a mão da
amiga.
― Não tenho mais nada a fazer além de ficar sentada o dia todo ouvindo as
queixas da mamãe. E, verdade seja dita, Alice e eu sentimos sua falta
terrivelmente. Sem sua presença eu não tenho a menor ideia do que ler, e Alice
só se senta e borda silenciosamente. Está completamente sem graça na casa dela
agora.
― Também sinto a sua falta, Iris. Mas, quanto mais contato eu tenho com
alguém que conhecia na minha vida passada, mais é provável que eu seja
descoberto.
― Sua vida passada? Libby, quer dizer que nunca mais será você mesma?
― Claro que não. ― No entanto, ela se sentia mais como ela mesma agora
do que nunca. ― Por que veio aqui?
― Constance convidou todos nós para um piquenique amanhã. Devemos
dizer a ela que não se sente bem?
― Constance sabe que nunca passo mal. Terei que ir.
— Alice pretende interrogá-la sobre o Sr. Kent. Ela tem imaginado os
cenários mais chocantes de sedução. É muito engraçado, Lib...
― Prima ― Libby sussurrou, apertando a mão de Iris enquanto passavam
por um par de pedestres. ― Deve se lembrar de se dirigir a mim como Joseph.
― São histórias fantásticas, na verdade Joseph. Em um cenário ele é um
poderoso feiticeiro, e a tranca em uma torre para servir como sua cozinheira,
mas é tão inteligente que se torna sua assistente e então sua parceira. Em outro
ele é um pirata! Ele a leva para o seu navio e nunca mais a vemos. Alice diz que
ele tem uma perna de pau. Ele tem? Não percebi isso, mas só o vi uma vez
quando estávamos todos em Haiknayes. E em outra de suas histórias, ele se
revela como um...
― Iris, por favor.
― Tudo bem. Mas, em qualquer caso, em todos os cenários você é
brilhante.
Virando a esquina elas quase colidiram com Archie Armstrong.
― Joe Smart! Eu me perguntei se o veria de novo em breve. — Seus olhos
pousaram em Iris. Sua boca estalou e suas bochechas raspadas ficaram
escuras. ― Bom dia, senhorita. ― Ele se curvou. Carregava uma pilha de livros
debaixo de um braço.
O estômago de Libby se encolheu de prazer. Ela também teria livros para os
cursos.
― Bom dia, Archie.
― Tempo incrível que estamos desfrutando hoje, não é, senhorita? ―
Ele disse para Iris.
― Certamente. ― Iris liberou o braço de Libby. ― Correrei para casa
agora, Joseph ― ela disse com ênfase abençoadamente leve no nome. Fazendo
um som que parecia mais como uma risadinha, ela praticamente pulou para
longe. Arrependimento e um leve pesar mexeram com Libby. O fato de que ela
tivesse que abandonar seus amigos para seguir seus sonhos não podia estar certo.
― Bem, Joe ― Archie disse, olhando para Iris. ― Como conseguiu passear
com Afrodite hoje?
Afrodite? Os homens eram infinitamente bobos.
― Ela é minha prima ― inventou Libby. ― Distante!
― Prima. Muito obrigado por não me apresentar, amigo.
Amigo?
― Eu imploro seu perdão ― ela murmurou.
― Não se preocupe ― Archie disse alegremente. ― Haverá outra ocasião.
Não se ela pudesse impedir.
― Estou indo para o pub para encontrar os rapazes. Pensei em folhear
alguns textos de anatomia enquanto saboreio uma cerveja. Junta-se a nós? ― O
rosto de Archie estava aberto e sincero.
Ela não deveria. Quanto mais sozinha ficasse, mais seguro seu segredo
estaria. Ainda assim, ela assentiu.
― Não fala muito, não é? Não precisa, claro. Eu falo o suficiente por três
rapazes. ― Ele riu.
Na verdade, Alice, Iris e todos comentavam que ela mal conseguia parar de
falar. Mas o silêncio era mais uma prática que tinha que dominar agora.
― Vejo que seguiu o meu conselho e aparou aquelas grossas suíças —
Archie disse com um olhar de lado para ela.
― Mm-Hm. ― Na luz, o bigode macio que ela tinha conseguido esta
manhã, parecia muito melhor.
― Suponho que tenha se barbeado para impressionar certa moça, é isso?
Fez isso? ― Archie levantou uma sobrancelha. ― Talvez uma prima distante?
― Não é assim com Iris ― ela murmurou.
― Íris? Um nome bonito! E ela não é comprometida?
A mãe de Iris provavelmente tinha uma dúzia de pretendentes com títulos já
alinhados para sua estreia. Ela balançou a cabeça novamente.
― Joe, acredito que seremos bons amigos. Chegamos ― ele disse, parando
diante de uma taverna que Libby passara centenas de vezes, mas na qual nunca
entrara. A marquise dizia THE DUG’S BONE. A porta se abriu e um grupo de
jovens saiu rindo e conversando. Ela ouviu as palavras “Aristóteles” e “Epicuro”
ao passarem.
― Agora olhe aqui ― Archie disse, de frente para ela. ― Vou falar claro,
Joe: meus amigos e eu não o provocaremos sobre a sua idade, então não precisa
usar essas falsas suíças novamente. Estamos interessados apenas em uma coisa:
o cérebro na cabeça de um rapaz. Ou duas coisas: o cérebro na cabeça de um
rapaz e sua cerveja favorita. No seu caso, suas relações distantes também ―
acrescentou ele com uma piscadela. ― Entendido?
Ela assentiu.
― Tudo bem então ― Archie disse. ― Agora, tenho a intenção de brindar
ao mais novo estudante de cirurgia da cidade.
Pairando entre preocupação e alegria, Libby o seguiu para dentro. Mas a
preocupação era um velho amigo. A exultação, nova e cintilante, parecia querer
se instalar em seu coração.
Capítulo 8

Domingo às Dez Horas

O porco entrou primeiro, disparando os minúsculos cascos com bufos e


grunhidos. Ela o seguiu imediatamente, entrando em seu estúdio enquanto uma
tempestade se movia pela costa: com uma energia magnífica.
― Graças ao relógio que me emprestou, cheguei a tempo em todos os
lugares pelos quais passei nesses dias. Que luz esplêndida esta sala tem a esta
hora, tão limpa e pura! Entendo agora a razão pela qual comprou esta casa. No
entanto, o resto da casa é muito boa também. Não sei por que não usa a sala de
jantar e a sala de visitas. Mas a Sra. Coutts tornou tudo muito confortável para
mim, sabe. Devo me sentar lá?
Ela caminhou até o banquinho enquanto falava, e empoleirou-se na beira
dele. Usava um vestido de uma cor ocre que tornava sua pele pálida, mas ainda
mais brilhante do que o habitual. Ele se encaixava perfeitamente em seus seios,
ombros e braços.
Ziyaeddin esperava que ela usasse a roupa masculina. Ele desejou que ela
tivesse usado. Não precisava de mais atrativos para a feminilidade dela: já tinha
muito nas curvas de seus lábios enquanto ela tentava segurá-los e o delicado
reflexo de suas narinas que revelavam sua luta para fazê-lo.
Parecia difícil para ela não falar cada pensamento que tinha. No entanto,
agora estava tentando.
Ele pegou seu bloco de desenho e lápis.
― O que vai desenhar? ― Ela perguntou, arqueando as sobrancelhas como
se quisesse olhar para a borda do papel, o que não conseguia por estar ao menos
a dois metros de distância.
― A senhorita ― ele disse. ― Pensei que fosse óbvio.
― Haha. Como é inteligente, senhor. Estou quase sem fôlego de tanto rir.
No entanto, ela estava de fato sem fôlego, seu peito se movendo
rapidamente em inalações e exalações superficiais.
― Não precisa temer ― ele disse.
Os cílios dourados se arregalaram. ― Por que eu temeria?
― Não a desenharei como um monstro. Os lábios.
Os lábios.
A curva do superior parecia bem simples. O inferior nem muito carnudo
nem estreito. Descomplicado, mas único. E o lado esquerdo do lábio inferior era
ligeiramente quadrado. Lábios assimétricos. Lábios que nunca ficavam parados.
― Eu sabia que raramente o veria — disse ela. ― Deixou isso claro. Mas
sempre vivi com meu pai e o vejo regularmente na maioria dos dias. Isto é, via-
o. Então, acho que fiquei desconcertada em não ver o senhor. É estranho
compartilhar uma casa com uma pessoa e não o encontrar, mesmo de passagem.
Passou seus dias fazendo o quê?
― Esperando por este momento ― ele disse, mais ou menos honestamente.
Ela riu e mudou seu peso de uma nádega para a outra.
― Oh. Deseja permanecer enigmático ― ela disse. ― O turco ―
acrescentou mais pensativa.
Lá. A luz dançava em seu lábio inferior, uma gota de chuva de ouro rosa
que definia a sombra abaixo dela, no queixo. A pele estava avermelhada acima
do lábio superior e abaixo do comprimento de cada bochecha.
― É realmente turco? ― Ela perguntou.
― Não. ― Não inteiramente.
― Então por que todos o chamam de turco?
― Deve perguntar isso a eles.
― Talvez eles sejam ignorantes, e um homem de feições, pele e sotaque
estrangeiros, pareça igual ao outro.
― Talvez. ― Com certeza. No entanto, permitiu essa crença errônea. Às
vezes até a encorajou.
― Se não é turco, então de onde...
― Fique quieta.
Ela ficou. Por um minuto.
― Ainda está pintando o retrato do Sr. e da Sra. McPherson?
― Está terminado. ― Insatisfatoriamente. A revelação foi como um agente
funerário revelando um cadáver. A ponta do nariz dessa mulher que estava agora
na sua frente, mostrava mais vida do que aqueles dois sujeitos combinados.
― Eles gostaram?
― Sim. ― Eles tinham se entusiasmado. Não sabiam que podiam esperar
mais.
Não esta mulher. Ela estava aproveitando a vida com as duas mãos. ― Vire
seu rosto para a janela.
― É um grande alívio ter o cabelo longe da minha testa ― ela disse,
levantando uma mão e passando-a sobre os cachos curtos que ela havia
confinado com uma faixa de tecido. Ela tinha mãos fortes, ao contrário de
uma dama, mais como uma mulher da classe trabalhadora, porque as usava.
Ele se perguntou se ela já as tinha usado em um homem - não clinicamente
- e então tentou arrancar isso de sua imaginação.
Sem sucesso.
― A Sra. Coutts sugeriu que eu o pusesse para frente para cobrir mais do
meu rosto ― ela disse ― mas é tão curto que retorna. Apliquei óleo para mantê-
lo parado.
Dedos longos. Pontas redondas. Unhas curtas. Juntas enrugadas. Mãos
capazes. Ela movia-os rapidamente, mas com um propósito. Se ela não cobrisse
as mãos logo, se continuasse, ele as pintaria. Seus lábios. A ponta do seu nariz. E
então o restante dela. Ele iria se torturar fazendo isso. Mas não resistiria ao
desejo de fazê-lo.
Qualquer outro desejo em relação a essa mulher, no entanto, ele resistiria.
Sua intenção original ao procurá-la como modelo, que agora reconhecia,
simplesmente não poderia ser. Era um desafio suficiente para o seu autocontrole
mostrá-la completamente vestida.
― A irritação na pele do meu rosto causa problemas? ― Ela perguntou.
Toda a sua existência lhe causava problemas.
― Não.
― Não pretende vender esse meu retrato, não é?
― Não
― Então, com que propósito quer me desenhar?
Ele olhou nos olhos dela. ― Por sua beleza.
― Está brincando agora. Conheço mulheres bonitas. Constance é linda.
Amarantha é linda. Minhas características não são notáveis. São comuns. Não
sou bonita.
― É para mim.
Ela olhou para ele, seus lábios entreabertos, o rosado ao redor deles como
no rosto de uma criança que tinha consumido romãs entusiasticamente. Mas seus
olhos não eram olhos de criança; eles estavam cheios de clara inteligência e
sabedoria honesta.
― São apenas estudos ― ele disse. ― Não é um retrato.
― Posso ver?
Ele assentiu.
Ela saltou do banco e veio até ele sem qualquer graça, apenas movimento,
sempre movimento.
― Oh ― ela disse. ― Uma característica por vez. Lábios. Nariz. Dedos.
Por que não a minha mão inteira?
― Ainda não permaneceu parada o suficiente para eu capturar as duas mãos
completamente.
Ela prendeu os lábios entre os dentes e encontrou o olhar dele. ― Capturar?
― Ela perguntou.
― Estudar ― ele emendou.
― Acho que pretendia capturar. ― Seus olhos eram gloriosamente
brilhantes, e pontos cor de rosa manchavam cada bochecha, misturando-se com a
alergia.
― Volte para a sua posição, güzel kiz. A décima primeira hora ainda não
chegou.
Ela fez isso, desta vez colocando os pés nos degraus inferiores, o que
apertou o vestido em torno de suas nádegas e coxas.
― Que outras características minhas estudará? ― Ela perguntou. ― As
minhas orelhas?
― Sem dúvida.
― Queixo? Pescoço? Pés? ― Ela balançou um pé calçado em um chinelo
simples. ― Olhos?
― Sim. ― Nunca seus olhos. De novo não. Não desde que desenhar seus
olhos em Haiknayes mudou sua vida. Muito da alma dela brilhava naqueles
olhos. Desenhá-los seria beber naquela alma e embriagar-se.
― De que língua são essas palavras - goo-zell kuz?
― Turco.
― Mas disse que não é turco.
― Fala inglês?
― Obviamente.
― No entanto, a língua da sua terra natal é o escocês.
― Então devo assumir que veio de um lugar que agora está dentro do
Império Otomano?
Ele deveria ter adivinhado que ela teria conhecimento de tal coisa.
― Não. ― Anterior a ele, um lugar que já existia há um milênio antes da
chegada dos otomanos, que rompeu com o antigo Império Persa e que ainda se
mantinha livre de ambos.
― Não me dirá ― disse ela.
― Como já havia falado.
― Me dirá o que goo-zell kuz significa?
― Significa moça bonita.
― Isso? Que maçante! Imaginei algo como uma harpia desagradável ou
uma irritação persistente ou algo do tipo.
― Acho que deveria estar ofendido.
― Deve realmente carecer de imaginação, o que é intrigante, dada a beleza
de suas pinturas. Mas ouvi falar de artistas cujo trabalho é extraordinário,
tornando-se pessoas profundamente desinteressantes. Talvez seja um desses.
Sirigaita.
― Talvez ― ele disse.
Ela sorriu e seus dentes brancos pareciam, até entre os lábios,
enlouquecedores.
― Não ― ele se ouviu dizer.
― Não o quê? Não provocá-lo como gosta tanto de me provocar? Oh. Me
achou sem graça. Não o culpo por isso. A maioria das pessoas acha.
― Não sorria.
Aquele dardo maravilhoso se formou entre suas sobrancelhas, o que o
lembrava de amantes separados por terras que nunca poderiam ser percorridas.
― Por que não? ― Ela perguntou. ― Está tentando desenhar meus lábios
agora?
― Sempre.
― Isso é que é um mistério.
― Seu sorriso me afeta ― ele disse. ― Agudamente.
Sua boca fechou. Brevemente.
― Como assim? Li recentemente um tratado no qual o médico afirmava
que ver um sorriso regularmente, na verdade, diluía o humor nocivo de uma
pessoa melancólica. O médico era italiano, claro. Os ingleses nunca se
incomodariam com assuntos como sorrisos. Eles não considerariam isso
suficientemente científico. Ou até interessante. E a teoria do humor está
ultrapassada agora. O senhor não é melancólico, no entanto. Pelo menos não há
indicadores de melancolia que eu tenha observado.
― Coloque sua mão em seu joelho e não a mova.
Fez isso e seus dedos se arquearam, as pontas repousando sobre o tecido
como se estivessem preparadas para um voo iminente.
― Por que não usa um dispositivo protético adequado - um pé de verdade?
O arco perfeito de seu dedo indicador entrou na página como se um espírito
benevolente guiasse seu lápis.
― Andaria muito mais confortavelmente ― ela disse. ― Qual a sua idade?
― Vinte e cinco.
― Pode atrasar ou mesmo impedir totalmente o dano à sua coluna, que é o
resultado de um andar irregular. Eu estudei todos os tratados sobre o
alinhamento da coluna que tem sido...
― Senhorita Shaw...
― Sr. Smart.
― Quando aparecer neste estúdio vestindo roupas masculinas e falar apenas
como homem, então a chamarei de Sr. Smart.
― Deve fazê-lo agora também.
― Eu realmente não devo.
― Não quer ouvir meu conselho. Sou bem versada nos sistemas muscular,
ósseo e nervoso, além de ter contato com os cirurgiões conhecidos de meu pai
que têm anos de experiência. Tenho lido tratados há anos e assistido cirurgiões
realizarem cirurgias complexas sempre que possível. Também cuidei dos
pacientes de meu pai e o auxiliei em cirurgias. Na esperança de um dia conhecer
Charles Bell, leio cada um de seus trabalhos sobre os nervos, cérebro e coluna,
assim como os trabalhos de seus colegas, trabalhos de cirurgiões holandeses,
franceses e americanos, e até mesmo de cirurgiões árabes que eu possa encontrar
traduzido para as línguas europeias. Eu sou uma especialista.
― É arrogante.
― Não sou. Eu sou de fato muito conhecedora. No entanto, não prestara
atenção ao meu conselho. É porque sou mulher?
― Não.
― Não acredito no senhor.
― Acredite no que desejar ― disse ele. ― Hora de parar. ― Sinalizado
pelo carrilhão de um relógio na sala de estar. ― Comprou aquele relógio?
― Não. Eu simplesmente dei corda. Não posso usar o relógio de um
homem enquanto estou sentada aqui posando, afinal de contas. ― Ela se
levantou, mas permaneceu de pé junto ao banco. ― Sinto muito.
― Por dar corda no relógio que eu não lembrava que possuía?
― Por importuná-lo.
Agarrando sua bengala, ele se levantou e foi até ela. ― Não me importunou
― ele disse, olhando para o rosto dela, traçando o inchaço do lábio inferior com
o olhar e sentindo-o dentro dele - contra os lábios, sob as pontas dos dedos, nas
fibras pigmentadas do pincel. ― Fez perguntas. Eu respondi aquelas que eu
queria responder e não respondi as outras. Agora seu tempo aqui acabou. Deixe-
me.
Por um momento ela não disse nada e suas feições estavam quietas. Em
repouso.
― Até o próximo domingo ― ela disse um pouco instável. Então seu olhar
mergulhou em sua boca.
O desejo passou por ele como um rastro de fogo através do convés de um
navio.
ELE DEVIA ESTAR sonhando. Não podia ser que ela estivesse olhando para
os lábios dele como se quisesse que ele a beijasse. Não era possível que ele
fizesse com ela o que ela fazia a ele, que ele a deixasse com sede, fome e se
sentisse totalmente perdida.
Mesmo se fosse assim, não importaria. Esta realidade - esta cidade, esta
casa, este mundo, esta mulher - não eram o seu destino.
Aqueles lábios. Únicos. Perfeitos.
Há dois anos e meio ele estava escondido, fingindo que não existia. Então
ela apareceu.
Esses lábios.
Esses olhos. Olhos como o azul do mar iluminado com pensamento,
inteligência e paixão irrestrita. Olhos que estavam um pouco confusos agora.
Lentamente, eles se levantaram na direção dele.
― Tem muitas encomendas ― disse ela em um tom que não era nem de
Elizabeth Shaw nem de Joseph Smart, rouco e macio, que o fez imaginar se
erguer e enrolar os dedos nos cachos dourados e inclinar o rosto para poder
capturar os lábios abaixo dele. ― Suas pinturas são procuradas ― ela disse. ―
Outro dia, uma notícia do jornal dizia que seu talento é tão bom quanto o de
Lawrence ou o de Beechey, e que lhe falta apenas o patrono real que o
arremessará para o estrelato, mas esse patrono inevitavelmente virá.
Ele não conseguia pensar.
― Não é assim? ― Ela perguntou, seus seios subindo em uma inspiração
pesada.
― Fez uma pergunta?
― Preciso entender. Por que concorda com isso? Minha amiga Alice
Campbell desconfia de seu motivo para concordar com esse arranjo.
― Tem o que deseja ― ele disse. ― Por que me pergunta isso?
― É só porque me acha linda, por mais errado que esteja em relação a isso?
Simplesmente não era possível resistir tocá-la por nem mais um momento.
Ele levantou a mão e, alisando uma única ponta do dedo sobre a testa, puxou um
cacho para livrá-lo da faixa de seda em torno de sua cabeça. Ele saltou.
― Assim está melhor ― ele disse.
Seus olhos eram grandes poças de azul - azul de uma infância que ele quase
esquecera, incandescente agora como o sol escocês.
― Sim ― ele disse. ― É simplesmente porque desejo ter a liberdade de
desenhá-la. Isso é tudo, Srta. Shaw. Não há mais nada. Esta resposta a satisfaz?
― Nada me satisfaz ― ela disse. ― Meu pai me falou tantas vezes, desde
criança, que nada me satisfaz, sempre peço mais porque sempre há mais
perguntas a fazer. E ele está correto. Por minha beleza apenas? Minha beleza
inexistente?
― Apenas por sua beleza inexistente ― ele disse. ― Agora, bom dia.
― Bom dia ― ela quase sussurrou. ― Amanhã começo a assistir as
palestras sobre anatomia.
Ele riu.
― Não ria! Estou experimentando um excesso de nervos no presente.
Nenhuma mulher jamais se matriculou em um curso de anatomia dessa
universidade - pelo menos que alguém soubesse. Receio que meus joelhos
tremerão e, como vestirei calças, o professor Jones verá. Esse é o médico que
está ensinando o curso. Pelo contrário, todo mundo iria ver isso, meus colegas de
classe também. Peço desculpas por mencionar os joelhos, a propósito. Pode não
estar acostumado com mulheres falando de seus joelhos e tal para o senhor. Mas
desde que é um artista, talvez não se importe. Ou talvez de onde vem, mulheres e
homens falem de tais assuntos o tempo todo.
― Normalmente não.
― De onde veio?
― Foi há muito tempo, eu mal me lembro.
― De certa forma, parece mais escocês do que o marido de Constance e até
Amarantha, afinal de contas. ― Ele lutou com um sorriso.
― Amarantha é bastante experiente ― ela disse ― tendo vivido nas Índias
Ocidentais. Ainda assim, ela é inglesa e fala como uma inglesa. E nem ela nem
Saint, que é inglês das Índias Ocidentais, vivem na Escócia há pelo menos
metade do tempo que o senhor, ao que parece. E seu sotaque é flexionado em
lugares como os escoceses. Tendo crescido em Edimburgo e no porto de Leith e
tantos outros lugares na Escócia e na Inglaterra, percebo essas coisas. Eu noto
tudo.
― Estou percebendo isso. Minha mãe era turca, meu pai de sangue persa.
Seus belos lábios se separaram.
― Isso, güzel kiz, é tudo o que lhe direi. ― Ela imobilizou os lábios.
― Seus joelhos não tremerão ― ele disse.
― Espero que não o façam. Tudo bem. Estou indo agora. ― Ela recuou e
atravessou a sala. Mas parou na porta e virou o ombro para que estivesse
olhando para ele. Ela era ágil, pequena, mas forte, e havia um controle que
economizava seus movimentos. Ela não ficava a esmo em constante movimento
como ele pensara antes, estava em uma luta contínua para refrear esse
movimento descontrolado.
― Eu costumava dizer tudo ao meu pai ― ela disse. ― Todos os detalhes
do meu dia. Agora estou começando a experiência mais extraordinária da minha
vida e não tenho ninguém para contar sobre tudo isso.
― Conte-me ― ele disse e desejou que pudesse ter permanecido em
silêncio.
― Não se importará?
Ele balançou a cabeça.
Um sorriso iluminou seu rosto. Ela começou a se virar, mas se virou
novamente.
― Isso não quer dizer que quero sugerir que seja como meu pai. Não
poderia ser mesmo como ele. ― Seu olhar deslizou ao longo de seu corpo. ―
Isto é, é jovem e bonito, é claro, e... ― Seu pescoço se contraiu e as manchas de
pele irritada se fundiram em um rubor.
― Deve aprender a controlar isso ― ele disse.
― Claro que eu deveria ― ela murmurou, cobrindo uma bochecha com a
palma da mão. ― Há muitas pessoas jovens e atraentes em minhas aulas.
― Estude-os ― ele disse. ― Estude-os como estudava minha perna mais
cedo, e esquecerá de novo que é uma donzela e, em vez disso, será apenas uma
cirurgiã.
Seu peito subiu em várias inspirações grandes e bruscas. ― Obrigada ― ela
disse.
― Não há necessidade de me agradecer novamente.
― Mas eu devo.
Ele se curvou.
Rodopiando, ela o deixou finalmente, em paz, e o leitão correu atrás dela.
Demorou, entretanto, antes que o silêncio realmente parecesse pacífico
novamente.
Capítulo 9

O Silêncio

Inicialmente, o conhecimento dela era muito superior ao de seus pares. Mas


havia mais para aprender do que sonhara ser possível. Ela encheu um bloco de
notas em uma semana, depois comprou mais uma dúzia, etiquetou cada um com
a data de cada segunda-feira e os empilhou na mesa de trabalho da sala.
A primeira vez que Chedham respondeu a uma pergunta mais rapidamente
do que ela, seu sorriso pomposo foi insuportável. Naquela noite, ela retirou o
texto mais espesso de seu pai sobre cirurgia e releu. Fez tantas anotações que
seus dedos ficaram doloridos demais para segurar a caneta, finalmente fechou o
tomo e se arrastou para a cama.
Uma hora depois, estava colando suas suíças e lubrificando o cabelo para se
lançar de novo aos estudos. Podia fazer isso. Ela o faria.
No domingo de manhã, quando entrou no estúdio de seu anfitrião, ele disse:
― Hoje a senhorita ficará em silêncio.
Ele ergueu o olhar, e o estômago de Libby apertou como sempre quando a
olhava diretamente nos olhos.
Ele era bonito de uma maneira que a fazia sentir-se quente por dentro. E
depois da sessão anterior, ela tinha tido um impulso de beijá-lo.
Ela nunca quis beijar um homem antes. O rubor que havia se espalhado por
sua pele naquele momento, fazia com que sentisse uma fúria espinhosa por si
mesma. Uma mulher da medicina não poderia se comportar como uma moça
tímida.
Este homem a afetava de uma forma diferente do que os outros homens.
Deveria simplesmente aprender a conviver com isso - com ele.
Ela assentiu.
― Pode ficar em silêncio? ― Ele perguntou.
Ela assentiu novamente.
O leitão trotou ao lado dela até o banquinho e se acomodou aos seus pés.
Ela inclinou-se para arrastar as pontas dos dedos entre as orelhas. ― Deu
nome ao...
Lentamente ele levantou uma sobrancelha.
― Me desculpe por ter falado tanto na última vez. Eu posso, de fato, ficar
quieta. ― Virando-se para as janelas através das quais agora apenas a luz pálida
brilhava, Libby reviu em sua mente suas anotações sobre as palestras da semana.
Ela olhou para o artista. Apenas a mão empunhando o lápis e seus olhos se
moviam, seu olhar se deslocando entre a mão dela e a página diante dele. Ele
usava calça preta, um casaco vinho e um colete padronizado, e o branco da
camisa contrastava com sua pele. Na sua sétima aula na universidade, não
conseguira encontrar, de fato, um rapaz tão bonito quanto ele, nem alguém que
fizesse seu estômago brincar como cordeiros num campo de primavera. Não teve
o impulso de beijar nenhum deles.
― Por que…
O lápis parou.
Ela fechou os lábios.
― Pergunte ― ele disse.
― Por que desenha pessoas? E pinta retratos? Por que é um artista?
― Para poder me dar ao luxo de alimentar o porco. ― Ele retornou ao seu
trabalho.
― Honestamente ― disse ela, mordendo o sorriso.
Depois de um momento, ele disse: ― Acho a forma humana inspiradora.
― Acha? As formas dos crânios, colunas e tudo mais?
― O lirismo, sombras e movimento ― ele disse.
― Lirismo?
― Poesia.
― Vê poesia quando olha um corpo humano?
― Sim, eu vejo.
― Que extraordinário.
― O que vê, senhorita Shaw?
― Escoliose da espinha. Pés chatos. Fissura labial. Pernas arqueadas.
Cicatrizes. Papadas. Na sexta-feira, auxiliei o senhor Bridges a examinar uma
mulher com fratura de rádio. Ela estava com uma dor considerável, mas seus
dois filhos pequenos estavam com ela, então desenhei diagramas dos ossos do
braço em seus próprios braços, o que, é claro, os fez rir já que fazia cócegas.
― Isso foi gentil de sua parte ― ele disse, com os olhos agora no joelho
dela.
Ela encolheu os ombros. ― Isso a distraiu, que era o meu propósito. Mas,
ao fazer isso, não consegui pensar em nada a não ser naquele osso e a maneira
como o Sr. Bridges o estava arrumando, para que ela usasse esse braço
plenamente pelo resto de sua vida.
Os músculos de sua mandíbula estavam tensos. Parecia que ele tentava não
sorrir.
― Isso é uma espécie de poesia ― disse ele.
― Não. É totalmente prosaico. Também vejo uma estrutura óssea natural.
― Ela permitiu que seu olhar traçasse a linha firme e afilada de sua mandíbula e
depois seus lábios. Prazer cantarolou em seu ventre.
― Está estudando minha estrutura óssea agora ― ele disse ― não é?
― Não exatamente. ― A qualquer momento diria a ele que estava se
perguntando como seria tocar seu rosto, naquela mandíbula, na pele dele. As
palavras doíam para serem pronunciadas em voz alta. Precisava de uma
distração. ― Estou aprendendo muito a cada dia. O Sr. Bridges é sábio e
cuidadoso. E ele trata a mim e a Chedham da mesma forma, embora Chedham
seja rico, aristocrático e atraente, e eu não.
― A propósito, isso não é silêncio.
― Na última sessão, disse que eu poderia compartilhar as notícias dos meus
estudos.
― Eu disse.
― Está retratando essa oferta agora?
Às vezes havia gentileza em seus olhos, ainda que envolta em uma espécie
de escuridão, como se o mundo tivesse lhe ensinado a superar o que era mais
natural para ele. Talvez ele tivesse aprendido a escuridão no acidente que tomou
parte de sua perna.
― Quem é Chedham? ― Ele perguntou.
― Maxwell Chedham é o outro estudante que está aprendendo com o Sr.
Bridges. Ele é inteligente e arrogante.
― E rico, aristocrático e atraente.
― Sim. Embora não seja tão atraente quanto o senhor.
Ele olhou para cima, depois para baixo novamente em seu bloco de notas.
― Tenho tantas perguntas ― ela disse. ― Mais do que eu posso perguntar
ao Sr. Bridges ou após as palestras sobre anatomia.
― Não duvido disso.
― Isso me frustra. ― Assim que ela se concentra na resposta a uma
pergunta, mais três aparecem em seu lugar. ― Sou grata ao senhor por....
― Não me agradeça novamente.
― Eu devo.
― Então taparei meus ouvidos e não ouvirei nada. Ah! Há raiva nessa
sobrancelha agora. Interessante. Segure assim, consegue? ― Seu lápis pulou ao
papel.
― Não há raiva nesta sobrancelha. Pelo contrário, exasperação. Não sei por
que se oporia a ouvir que sou grata pela sua ajuda.
Depois de um silêncio durante o qual ela tentou concentrar sua atenção nos
galhos da árvore no jardim atrás da casa, ele finalmente falou.
― Seu pai nunca a ensinou a não dizer repetidamente a um homem que o
acha atraente?
― Não ― ela disse. ― Ele raramente fala comigo como um pai normal fala
com uma filha normal, eu acho. Ele tem sido infinitamente gentil e generoso.
Constance e Alice tentaram me ensinar o comportamento adequado. Não tiveram
sucesso. Se tivessem tido, eu não estaria aqui, claro. Se importa?
― Se me importo? ― Ele ergueu os olhos para os dela. ― Não.
Como o toque do olhar de um homem podia fazer seu sangue correr para o
rosto e também para seus órgãos femininos de uma só vez, era uma coisa
extraordinária. Isso a fez querer ser tocada por mais do que seu olhar. Seus lábios
pareciam formigar. Seus mamilos também. Um latejar suave começou em seus
genitais. Era certamente um desejo sexual.
Ela desviou o olhar dele novamente. Do outro lado da porta da sala,
estendia-se uma barra, uns dezoito centímetros abaixo do lintel, preso aos dois
batentes. Cada vez que ele atravessava a porta, devia se abaixar.
― Qual é o propósito daquela barra na sua porta? ― Ela perguntou.
― Para bater minha cabeça na próxima vez que considerar ter uma
pensionista. Colocará o pensamento racional de volta ao crânio.
― Ha ha ha. A lesão no crânio faz exatamente o oposto.
― Da próxima vez que estiver tentando estudar, me sentarei por perto
falando constantemente. Isso deverá ser divertido.
― Eu não me importaria. Gosto de ter companhia. ― Ela se mexeu no
banquinho. ― Já terminamos?
― Por mais vinte minutos, senhorita Shaw, é....
― Eu sou sua. Como decretou.
Durante o resto da hora, ele não disse nada e ela não falou. Em vez disso,
ela passou o tempo catalogando em sua mente todos os detalhes que sabia sobre
a resposta sexual. Isso equivalia a muito pouco. Tinha mais dúvidas do que
conhecimento, uma lacuna pior do que em qualquer outra área da anatomia.
Quando o relógio badalou na sala, ela desceu do banquinho. ― Até
próxima semana?
― Até próxima semana.
O leitão a seguiu até a porta e saiu. Ela não parou para fazer a miríade de
outras perguntas que borbulhavam em sua cabeça: ele tinha dado um nome para
a criatura? Que propósito o leitão tinha nessa casa? Ele nunca comia carne de
porco? Era um muçulmano? Por que veio para a Escócia? Qual era o verdadeiro
propósito da barra em frente à porta do seu estúdio? Por acaso ele não sabia que
um homem não podia simplesmente dizer a uma mulher que a achava bonita e
esperar que ela esquecesse? Como se os homens lhe dissessem que era bonita o
tempo todo. E como se não fosse um grande hipócrita para proibi-la de fazer o
mesmo.

NO DIA SEGUINTE, depois de um acalorado debate com Chedham sobre


suturas circulares, ao qual o Sr. Bridges ouviu atentamente, Libby saudou a paz
do beco que se tornara seu refúgio na hora do almoço. Estabelecendo-se no
muro, ela abriu a marmita.
A porta do bordel escancarou e a jovem do outro dia veio para a
varanda. Um homem saiu atrás dela. Ele tinha, cabelos longos e um nariz
irregular. Bateu no traseiro dela e se afastou assobiando.
A mulher olhou para Libby. Ela parecia tão magra quanto antes. O que quer
que aquele homem tenha pago a ela, não era o suficiente.
Cavando em sua marmita, Libby retirou um ovo cozido e pão, pulou do
muro e caminhou até ela.
― Deve comer ou ficará reduzida a nada. ― Agarrando a mão da mulher,
colocou a comida nela. Ela não apresentava nenhum sinal externo de sífilis -
inchaço dos gânglios linfáticos, erupção na palma da mão ou úlceras na boca. ―
Está precisando de algum tipo de medicação? Não posso dar-lhe láudano. Mas se
precisar de outros medicamentos, verei o que posso fazer.
― Quem está oferecendo? ― A mulher perguntou, não fechando os dedos
ao redor da comida.
― Sou um aprendiz de cirurgia na enfermaria. ― Ainda era maravilhoso
dizer isso em voz alta. ― Pegue a comida. Se não pegar ficará para as gaivotas,
e elas já parecem muito mais bem alimentadas do que você.
Os dedos se enrolaram sobre o ovo e o pão.
― Vá embora, ― disse a mulher. ― Ou acha que vai ficar sentado lá me
vendo comer?
― De fato, ficarei aqui e a observarei comer. Pois não me agradaria se
compartilhasse com outra pessoa.
A mulher levantou uma sobrancelha. ― Ora, por que eu faria isso?
― Obviamente não se alimenta o suficiente. No entanto, nitidamente tem
clientes. Pelo menos um. E ele parecia feliz. Isso é evidência suficiente para
sugerir que está dando seus ganhos para outra pessoa.
― Rapaz esperto.
― Agora, coma isso para que eu possa voltar a comer meu próprio almoço.
― Tem mais?
― Muito.
― Mas não tem nada para beber. Aqui, dê um golinho nisso. ― Ela
ofereceu a garrafa.
― Não, obrigado.
Um riso como um vidro quebrando veio da garganta da mulher. ― Teme,
rapaz, que se colocar seus lábios onde eu coloquei o meu, vá ter uma ereção?
Uma ereção. Poderia um homem realmente ficar excitado depois de beber
da mesma garrafa que uma mulher? Parecia implausível.
Ela imaginou compartilhar uma xícara com seu companheiro de casa, e o
calor se reuniu tão rapidamente entre suas pernas que ofegou.
― Não ― ela disse rapidamente para cobrir o som. ― É só que tenho que
manter a cabeça limpa para trabalhar com um dos cirurgiões mais famosos da
Grã-Bretanha.
― Não é do tipo de costume, não é?
― O tipo usual de estudante? Não, não sou.
Sua companheira riu. ― É um doce, fingindo que não pode tomar um gole
para que eu não tenha que dividir minha garrafa, em vez de me dizer que sou
uma garota porca. Meu nome é Coira
― É um prazer conhecê-la, Coira. ― Libby fez uma reverência. ― Eu sou
Joseph Smart. Agora tenho que voltar para a aula. Prometa que comerá isso.
― Sim. ― Coira se aproximou. ― Em troca, aqui está um pequeno
conselho: tente não sorrir demais. Homens raramente o fazem.

DE ACORDO COM a Sra. Coutts, o estudante de medicina cirúrgica que


hoje reside em sua casa saía pouco depois do amanhecer todas as manhãs,
voltava ao entardecer todas as noites, jantava na sala de jantar e depois se dirigia
ao salão para estudar até altas horas da madrugada.
― Ela come um prato saudável, senhor ― disse sua governanta com um
aceno satisfeito. ― Tão bem quanto um rapaz de verdade.
― Mas a senhora está preocupada ― ele disse.
― Não é saudável para uma moça passar tanto tempo com o nariz em uma
pilha de livros. Ela está ficando pálida como um espectro. Depois, nós sabemos,
que ela vai adoecer e precisará curar a si mesma.
Ziyaeddin não tinha visto nenhuma evidência de problemas de saúde
quando posou para ele da última vez, apenas os mesmos olhos cheios de
pensamentos e curiosidade, a mesma pele avermelhada manchada pelo adesivo,
e os mesmos lábios incrivelmente impossíveis.
Ele esperava mais conversas - sobre o que, ele não podia imaginar - porque
ela tinha uma mente expansiva. Mas ela permaneceu em silêncio durante toda a
hora, sem dizer nada exceto na despedida, apenas “até o próximo domingo”
novamente.
― Compartilhou essa preocupação com ela? ― Ele perguntou à sua
governanta.
― Ach! ― A Sra. Coutts acenou com a mão desconsiderando. ― Ela tem
um jeito dela, senhor, eu não gostaria de atravessar.
Ele entendia. Junto com seu objetivo direto, formigava uma energia
inexorável. Era a mesma energia que surgia quando ela agradecia a ele
repetidamente, a mesma intensidade de espírito que sempre parecia precisar ser
liberada na fala ou no movimento. Que esse pensamento o fizesse querer tomá-la
em suas mãos e descobrir como essa intensidade respondia ao ato sexual, só
provava que ele era sábio por permanecer distante dela.
Naquela noite, voltando para casa no meio de uma garoa, ao se aproximar,
viu a cortina na sala de visitas aberta, o falso rapaz e o jovem porco observando-
o através da vidraça suja de chuva.
Eles o encontraram na porta.
― Por que não contrata uma cadeira? ― Ela exigiu enquanto pegava seu
guarda-chuva e trancava a porta. ― Não é preciso ser um aristocrata para ir à
cidade em uma cadeira. Conheço um grande número de cavalheiros totalmente
humildes que o fazem.
Todos velhos e gotosos, sem dúvida, como o homem cujo retrato ele estava
pintando agora. Misturando cinza nos brancos pálidos da pele do cavalheiro,
Ziyaeddin tinha pensado nessa mulher e acrescentara um montão de Permanente
Rosa à paleta para agradar a si mesmo. Seus patronos, os filhos do homem,
também gostariam. Eles não saberiam o motivo de sua apreciação - que ele
fizera seu pai parecer mais vivo do que na realidade. Mas eles ficariam
satisfeitos.
― Obrigado por esta recomendação não solicitada. ― Ele removeu seu
manto. ― Pensarei no seu conselho.
― Não irá ― disse ela. ― Está descontente comigo por dizer isso. Posso
ouvir em sua voz. Mas estou irritada, então, francamente, não me importo. Este
passeio pode danificar séria e permanentemente sua coluna. Irreversivelmente.
Ou não entende isso, o que o tornaria extraordinariamente obtuso em seus
poderes de observação, e eu sei que não é assim, ou escolhe andar apesar do
dano que está causando a si mesmo, e da dor, que faz do senhor um idiota. Um
idiota arrogante.
― Por todos os meios, não medimos palavras. Qual seria a graça disso?
Como foi para a janela então, assim que eu me aproximava?
― O porco sabia disso. ― Ela gesticulou para o pequeno bufando a seus
pés. ― Ele fica perto da janela e observa as pessoas passando. De repente, ficou
muito animado, dançando na cadeira e fazendo muito barulho, então fui ver a
razão de sua excitação. Foi a sua aproximação. Aparentemente, lhe tem muito
carinho. Tem certeza de que não é um animal de estimação?
― Se está olhando pela janela por cima do ombro do porco, deveria estar
fazendo a si mesma essa pergunta.
― Touché. ― Ela estava novamente estudando seus lábios.
Pegando a bengala mais leve a qual usava dentro da casa, ele se afastou de
seus lábios tentadores e olhos brilhantes que o convidavam a fazer o que não
devia - o que ele desejava fazer.
― Qual é a vantagem ― ela disse atrás dele, ― de ter um especialista em
sistemas esqueléticos e musculares, para não mencionar um estudante das mais
recentes teorias científicas sobre caminhos neurais, vivendo em sua casa se não
prestar atenção aos seus conselhos?
― Dê-me tempo ― ele disse, entrando em seus aposentos. ―
Provavelmente pensarei em uma.
Ela não o seguiu para dentro, o que ele considerou um tipo de milagre.
Fechando a porta e apoiando os ombros nela, ele passou a mão pelo rosto e
tentou se firmar. As dores habituais no quadril e nas costas eram velhas amigas;
ele sabia como suportá-las. A luxúria que até mesmo o som de sua voz inflamava
em seu corpo era outra questão, completamente diferente.
Ela não tinha ideia.
Deveria permanecer assim.
Sem possibilidade de alívio, ele foi para a cama. Apesar da dor, o sono veio
facilmente.
O despertar veio violentamente, coberto de suor e ofegante, mas sua
garganta não estava ardendo; pelo menos não havia acordado gritando.
Saindo da cama, ignorou o desconforto, vestiu-se e entrou em sua sala de
trabalho. Na mesa ao lado do almofariz, pilão, tintas e óleos, havia um pequeno
pote. Ele o pegou.
Uma claridade vinha da porta da sala, que estava aberta por vários
centímetros - larga o suficiente para um porquinho se espremer, se quisesse. No
interior, a criatura dormia confortavelmente na almofada que sua governanta
havia preparado perto da lareira. Não pela primeira vez, ele imaginou o horror de
sua mãe se visse sua casa agora. Mas ela se foi e sua fé também. E ele precisava
da pequena criatura. E da mulher.
Ela lhe dissera que estava acostumada a ter companhia regular em casa. Ele
não deu isso a ela. O leitão deveria ser suficiente.
Na mesa, uma lâmpada queimava ao lado de uma xícara e pires vazios.
Cercada de livros, estava caída sobre a mesa, a bochecha pressionada na página
de um volume aberto, dormindo. Como ela não se mexia, ele foi em direção a
ela.
Destacados, seus lábios eram a tonalidade de rosa empoeirada e seus
membros estavam completamente frouxos. Ela nunca ficava assim. Ele
suspeitava que, ao acordar, ela não saberia como ficar imóvel.
Ela havia retirado as suíças e descartado o lenço de pescoço e o colete, mas
usava calças, camisa e um casaco solto. O colarinho da camisa tinha aberto e ele
não viu nenhuma faixa em torno de seus seios, apenas pele lisa, pálida e
arredondada.
Imaginou acordá-la, atraí-la para ele e saborear a pele, sentindo-a sob seus
lábios. Quando ela olhava para ele, havia mais do que avaliação clínica em seus
olhos. Havia agitação. E desejo. Estava muito melhor informada do que a
habitual ingenuidade das jovens inglesas. Ele não tinha esperança de que,
solteira ou não, ela não reconhecesse a luxúria pelo que era.
Se ele a tocasse, ela não resistiria.
Pousando o pote suavemente na mesa, ele foi até a lareira, empilhou mais
lenha nas brasas e depois saiu.
Capítulo 10

Despertar

Libby acordou com a sala de estar imersa na escuridão do quase amanhecer


e a sensação de que um som a havia tirado do sono. Um grito, talvez? Não de
dentro da casa, certamente. Apesar de sua bengala, seu anfitrião era
estranhamente quieto.
Os músculos retesados e rígidos se encolheram, ela esfregou a vermelhidão
de seus olhos, franziu a testa para a página enrugada do Variedade Singular de
Hérnia de Russell, no qual ela havia adormecido, e gemeu quando seus dedos
tocaram suas bochechas.
A irritação da pele era insuportável. Mas diante do espelho, ela estudou seu
rosto durante muito tempo, sem as suíças, para ter qualquer ilusão de que
pudesse parecer com qualquer coisa além de uma mulher vestida com roupas
masculinas. As suíças, o tratamento do cabelo e o escurecimento de suas
sobrancelhas juntos tinham um efeito significativo.
Mas ela não tinha nenhuma dúvida quanto à verdadeira razão pela qual os
outros estudantes e seus professores acreditavam em seu disfarce: eles não
pensavam que uma mulher tivesse capacidade para a ciência médica. Mesmo se
eles achassem que fosse extraordinariamente efeminado, simplesmente nunca
ocorreria a eles que uma mulher poderia realizar o que ela estava realizando
agora.
Na mesa do escritório, ao lado do livro de Russell, havia um pequeno pote.
Ainda não havia luz, e era muito cedo para a Sra. Coutts ou o Sr. Gibbs
chegarem. O que significava que seu anfitrião deixara o pote ali enquanto ela
dormia.
O batimento cardíaco de Libby deu um tropeço desconfortável. Levantando
a rolha, descobriu uma substância fina e oleosa. Ela cheirou. Era quase inodoro.
Talvez fosse um bálsamo ou sabão, para acalmar sua erupção. Ele não se
queixou das manchas no rosto dela, mas não devia gostar de desenhá-las.
Deslizando a ponta do dedo sobre a substância, ela tocou o polegar no indicador.
Os dedos ficaram juntos.
Adesivo!
Apagando a vela, ela levou o frasco para seu quarto. Enquanto se vestia,
ouviu a Sra. Coutts chegar, e logo os aromas da cozinha invadiram a casa.
Na sala de jantar, Libby se serviu de uma xícara de chá e deixou o vapor
umedecer seu rosto. Ela torceu um pouco as suíças. Elas estavam presas ao rosto.
Pousando a xícara, ela foi para os fundos da casa. A pálida luz da manhã
iluminava as janelas do estúdio, lançando-o em uma aura perolada enquanto ele
estava no cavalete. Braços cruzados e postura notavelmente sólida, olhava
atentamente para a grande tela.
― Sinto muito por ter dormido na sala de estar ― ela disse.
― Nesta casa pode dormir em qualquer lugar que desejar ― ele disse, sem
desviar a atenção da pintura. ― Mas não pode me perturbar enquanto eu estiver
trabalhando. Retire-se.
― Não há evidência de pincel ou paleta em lugar algum. Não está
trabalhando. Está pensando.
― Ponderar faz parte do trabalho. ― Seus braços cruzados no peito se
apertaram, fazendo o casaco esticar em seus ombros. Bom Deus, ele era
completamente viril. Ela podia estudar a forma de suas clavículas e escápulas -
toda a sua cintura e peitoral - por horas.
― O adesivo é maravilhoso ― ela disse. ― Milagroso, na verdade.
Extraordinariamente suave, mas forte. Mesmo seco, é elástico. O que dissolverá
isso?
― Óleo de linhaça.
― Ah, claro. Sua base é linhaça. Engenhoso. Onde o comprou?
― Eu o fiz.
― O senhor?
Finalmente ele virou o olhar para ela. Mas não disse nada.
― É um químico? ― Ela perguntou.
― Entre outros talentos.
― Deve inventar seus próprios pigmentos e soluções.
Ele assentiu, novamente aquela inclinação régia de cabeça que parecia
cumprimentá-la, sugerindo uma grande distância entre eles.
― Mas a pele humana é totalmente diferente da tela ― ela disse. ― Como
sabe que esse adesivo não será tão irritante quanto o adesivo que tenho usado?
― Seu novo melhor amigo me ajudou.
― Meu novo melhor ... oh. Verdadeiramente engenhoso! Porcos são
suscetíveis a muitas das mesmas doenças que os humanos, é claro. E a pele do
leitão deve ser pelo menos tão sensível quanto a minha. Isso foi inteligente da
sua parte. O experimento não o prejudicou, espero.
― Os compostos eram suaves. ― A sombra de um sorriso cruzou em seus
lábios. ― A criatura gostou bastante da atenção, eu acho.
― Agora que terminou, isto é, eu não o vi esta manhã. O senhor o devolveu
ao açougueiro?
― E se devolvi?
― Não fez isso.
― Para uma pessoa da ciência, é, extraordinariamente, uma jovem de bom
coração.
― Um não é contra indicativo do outro. E não sou uma jovem.
― Não ― ele disse, com os olhos arregalados enquanto seu olhar
mergulhava nela. Mas ele não estava olhando para uma jovem nem para uma
mulher, e sim a um jovem. ― Não é ― ele disse, como se por baixo do casaco,
do colete e da calça, ele visse o corpo da mulher - seios, quadris, coxas e ventre
vibrante. Olhou-a novamente nos olhos. ― Está na cozinha com a Sra. Coutts.
Não na panela. E, pelo contrário, implorando por restos de café da manhã. Não
tem uma palestra para assistir agora ou algo assim?
― Obrigada. Fez isso, mesmo quando não precisava fazê-lo.
― A clareza da sua pele é de meu interesse. ― Ele voltou sua atenção para
a tela.
Quando ela passou pela porta da cozinha, o leitão saiu disparado e correu
em círculos ao redor de seus pés. Pegando-o, ela examinou-o à luz das janelas da
sala de estar. Em seu estômago havia um pequeno quadrado de pele que tinha
sido raspado. A pele ali era saudável.
Ele manteve um animal de fazenda em sua casa limpa e elegante, a fim de
conceber um adesivo que não irritasse sua pele. No entanto, não tinha interesse
em conversar com ela, em beber uma cerveja com ela ou em vê-la a não ser por
uma única hora todas as manhãs de domingo.

LIBBY TEVE PROBLEMAS em manter sua atenção na palestra do Dr.


Jones. As suíças estavam leves demais, suas bochechas muito elásticas, e ela não
conseguia parar de pensar que o adesivo havia fracassado e soltado e ela estava
exposta diante de todos.
― Belas notícias, nada. ― Archie sussurrou ao lado dela.
Abaixo, o Dr. Jones apontava seu bastão para um diagrama do sistema
vascular.
― Que notícias?
― Que notícias? Jones anunciou que teremos cadáveres em janeiro! Sabe o
que isso significa.
― O que isso significa?
― Significa que temos um mês para encontrar um curso particular de
cirurgia e nos dedicarmos à dissecação antes que Jones esteja observando cada
um de nós. É a única maneira de termos uma vantagem sobre os outros. ― Suas
sardas agruparam em uma careta. ― Indisposto, moço? Tem ficado até tarde
com Chedham e seus companheiros, por acaso?
― Claro que não. Estou apenas um pouco distraído hoje.
― Ora, já vi tudo. Joseph Smart distraiu-se dos estudos. Moço, tire sua
cabeça das nuvens.
Mas ela não conseguia se concentrar, e quando a palestra terminou, não foi
à biblioteca com Archie, como faziam depois da palestra, para depois fazer uma
visita ao pub. Em vez disso, ela foi para o lugar mais próximo que poderia
pensar em ir: no atelier de sua amiga Tabitha.
As suíças estavam intactas. O adesivo que ele inventara era suave e
essencialmente invisível. Ele era um químico extraordinário.
E ele era seu aliado.
― Bom dia ― Tabitha disse, contornando uma tela larga por trás da qual as
mulheres falavam suavemente. Provavelmente estavam fazendo medições ou
ajustes sobre o estrado, precisamente onde Tabitha havia feito as primeiras
roupas masculinas de Libby. ― Sou a Sra. Bellarmine. ― Seu suave sotaque das
Índias Ocidentais, ombros arredondados e vestido de musselina delicada eram
um contraste com seus olhos cautelosos. ― Como posso ajudá-lo, senhor?
Senhor.
Os homens não visitavam lojas de modistas. Tendo escapado da
escravização nas Índias Ocidentais, Tabitha tinha motivos de sobra para
desconfiar de homens que se comportavam fora do habitual. Estava casada agora
com um escocês, ainda assim, ela era uma pessoa de fora fazendo de uma nova
terra a sua casa, e vulnerável.
Assim como o companheiro de casa de Libby fazia.
― Minha mãe precisa de um xale ― ela murmurou, apontando para uma
exibição de xales. ― Um desses servirá. ― Pegando em sua carteira, ela bateu
uma nota no balcão.
Manteve a cabeça baixa enquanto sua amiga enrolava o xale e embrulhava.
― Espero que sua mãe goste.
― Meus agradecimentos ― ela murmurou.
No momento em que virava a esquina e fora da vista da loja, ela estava
tonta. Arrastando um pouco de ar, olhou para o pacote de papel em suas mãos.
Uma de suas amigas mais íntimas nem sequer a reconheceu.
“Está preparada para estar sempre sozinha? ”
Ele a havia avisado. Mas ela não havia entendido realmente. E não havia
considerado como isso o afetaria se ela fosse descoberta - como ele, sendo um
estrangeiro nessa cidade, poderia estar em perigo por seu ardil.
― O que tem no pacote? ― Archie perguntou quando Libby se acomodou
ao seu lado na mesa que estava se tornando seu lugar de sempre no pub. Os
amigos de Archie, Peter "Pincushion" Pincher e George Allan, já estavam
sentados, com canecas de cerveja.
― Um xale.
Archie empurrou uma xícara para ela. Em sua primeira visita aqui, ela
cometera o erro de beber um bule inteiro de chá antes de descobrir que os
estudantes geralmente se aliviavam na sarjeta do beco atrás do prédio. Ela tomou
um gole devagar.
― Um xale? Se não desapareceu e foi substituído por outro Joe Smart,
ficarei espantado. Tem certeza que não é um saco de ossos?
― Ou um rato para dissecar? ― Pincushion disse com um sorriso.
― Ou instrumentos cirúrgicos? ― George acrescentou.
Eles a haviam decifrado rapidamente. Era totalmente transparente?
Ela franziu a testa. O adesivo se movia tão facilmente com a pele que nem
sentia. Ele era um químico milagroso. Ela desejou ter metade de seu talento.
Um rápido ardor formigou em seu ventre. Estar aqui com seus novos
companheiros e ainda pensar nele era estranho e maravilhoso. Sua vida tornou-se
um grande segredo. No entanto, seus pensamentos eram honestos.
― É apenas um xale ― ela disse.
― Talvez para aquela linda prima? ― Pincushion disse, enfiando um
cotovelo nas costelas de Archie.
― Boas notícias sobre os cadáveres chegando no Ano Novo, não é? ―
Archie disse em um redirecionamento óbvio. ― Pensamos que teríamos que
esperar até o próximo curso.
― Nem tudo foi feito é para ser ― George murmurou. Ele tinha cabelos
castanhos espetados como um forcado e óculos grossos.
― Aw, Allan ― Pincushion disse ― só tem medo de voitar seu café da
manhã novamente este ano.
― Este ano? — Libby perguntou.
― George está repetindo anatomia ― explicou Archie. ― Falhou no exame
de diploma.
George assentiu triste confirmando.
― Não podia segurar a faca firme o suficiente para cortar ― Pincushion
disse, balançando as sobrancelhas. ― Tornou-se verde todos os dias.
― Se não pode suportar a dissecação, George, por que está estudando
cirurgia? ― Libby perguntou.
― Ele não quer ser cirurgião ― Pincushion disse. ― Nem mesmo médico.
― Quer ser um advogado ― Archie disse. ― Mas o pai dele é médico.
― E o pai de seu pai ― falou Pincushion.
― E o pai do pai do meu pai ― disse George.
― O velho é um maldito idiota ― falou Pincushion. ― E ele tem dinheiro.
George terminou o último período...
― Em desgraça ― George inseriu.
― Mas o pai dele comprou sua volta.
― Isso é um negócio podre, George ― disse Libby, imaginando as
mulheres que se regozijariam em ter o dinheiro de George Allan e liberdade para
estudar medicina em seu lugar.
― Chega de tristeza, rapazes ― declarou Archie. ― Apesar de ter a cabeça
nas nuvens, Joe recitou o sistema linfático para todos em palestras hoje. Jones
ficou radiante. Um brinde ao nosso jovem companheiro!
Eles a brindaram e ela bebeu levemente.

NA SEXTA-FEIRA LIBBY deu o xale para Coira.


Coira balbuciou. ― O que eu devo fazer com um xale bonito como este?
― Use na igreja ― Libby sugeriu.
― Igreja! Moço, é um jovem precioso, com certeza.
Libby desconfiou para onde o xale iria: o mesmo lugar para onde estava
indo o salário de Coira, uma avó de quem ela havia falado com carinho.
Com uma reverência, copiada dos tipos de arcos alegres que viu Archie dar
às mulheres, Libby foi para uma palestra.
Na sala de aula, o médico estava em uma mesa de dissecação sobre a qual
havia uma coleção de jarros.
― Senhores, hoje vamos começar a dissecar órgãos preservados ― disse
Jones, apontando para um homem que entrava durante a sessão. ― Este é um
estudante de cirurgia avançada.
A boca de Libby ficou completamente seca. O Sr. Plath era o jovem da festa
em que ela comparecera com Constance e Saint, cujas mãos haviam machucado
seus braços.
Plath examinou as fileiras dos alunos. Parando em George, seus olhos se
estreitaram.
― Plath me odeia ― George sussurrou. ― Ele me disse que eu sou um
filhinho de mamãe.
― Sua santa Mãe é a única razão pela qual não é uma fraude completa,
moço.
― Assim que eles abrirem esses frascos engasgarei e ele me crucificará
novamente.
Libby abriu a tampa de um pequeno pote de bálsamo perfumado. ―
Esfregue isso no seu lábio superior, George. Isso irá mascarar o fedor.
Archie e Pincushion passaram o bálsamo acima dos lábios também. Libby
não podia; não tinha ideia de como o adesivo e o bálsamo se misturariam.
― Sr. Smart e Sr. Chedham ― disse o Dr. Jones. ― Suas marcas são no
momento as mais altas. Começarão.
― Perfeito ― ouviu Chedham murmurar. Com as palmas úmidas, ela se
aproximou da mesa.
― Sr. Chedham ― disse Plath. ― Dissecará o coração. ― Ele olhou
diretamente em seu rosto a um metro de distância. ― Sr. Smart, ficará com o
cérebro.
Ele não fazia ideia.
― O resto dos senhores ― disse o Dr. Jones ― abram seus cadernos.
― Dr. Jones ― chamou Libby. ― Já dissequei o cérebro várias vezes e
tenho todas as partes na memória. Poderia o Sr. Armstrong fazer a dissecação
desse cérebro enquanto o descrevo? ― De uma família de fazendeiros prósperos,
para Archie só faltava a experiência para ser um bom homem da medicina.
― Este é um pedido incomum, Sr. Smart. Mas pode sim. Sr. Armstrong,
aproxime-se.
Archie se levantou da cadeira. Quando pegou um instrumento e começou a
trabalhar, ela sentiu o olhar do Dr. Jones sobre ela e rezou para que ele
aprovasse.

― GOSTARIA DE SABER como suporta, moço. ─ Os olhos nebulosos de


Archie se dirigiram para onde Chedham estava com seus costumeiros
bajuladores agrupados em torno dele.
― Suporto o quê? ― Ela murmurou, tonta e não muito certa de como
conseguira segurar um copo vazio de cerveja. O pub estava cheio de estudantes,
todos turbulentos. George e Pincushion estavam rindo de alguma coisa, ambos
parecendo alegres como lavradores em um domingo.
Certo. Eles estavam celebrando o triunfo de George sobre a náusea. E ela,
em particular, estava celebrando o sucesso de seu disfarce. Plath não a
reconheceu. Até mesmo Tabitha não a reconheceu. E esses garotos acreditavam
que ela era um deles. Sua transformação em Joseph Smart estava completa.
Quando Archie lhe comprou uma cerveja, a comemoração parecia certa.
― Aprender ao lado de Chedham ― ele disse. ― Ele tem uma frieza na
qual não confio, como se ele não tivesse nenhum sentimento de amizade por
ninguém. Mas somente por ele mesmo. ― Archie bateu na mesa. ― Vamos falar
sobre mulheres.
― Não arranjou coragem para convidar a prima de Joe para um passeio
ainda? ― Pincushion disse.
As bochechas de Archie ficaram rosa através das sardas.
― Não é a coragem que o impede de ir para cima da moça ― disse George,
rindo. ― É, Archibald?
― Olhe para ele! ― Pincushion exclamou. ― Aposto que nosso rapaz
ficou duro como um cadáver apenas com a menção da menina.
― Cai fora, Peter ― disse Archie alegremente, mas lançou um olhar
preocupado a Libby. ― Pincher foi criado em um celeiro, Joe. Não tenho nada
além de respeito por sua prima. Não levará a mal, não é?
― Por que eu deveria?
O olhar de Archie se moveu por cima do seu ombro, depois abruptamente
se alargou em alarme. Libby o seguiu com o dela.
Com os olhos revirados, a cabeça para cima e a boca aberta, Pincushion
acariciava lentamente o copo de cerveja para cima e para baixo, depois
gradualmente mais rápido. Ele começou a gemer. George gargalhou loucamente.
A pele de Archie ficou ainda mais vermelha. ― Maldição ― ele disse
desesperado. Olhando em volta, chamou alguns alunos que estavam por perto.
― Que tal um jogo amanhã, rapazes? Eu trago a bola.
Uma hora depois, Libby voltou para casa em uma névoa, sua visão turva e
pensamentos completamente confusos. Aquela ação que Pincushion estava
fazendo com seu copo. . .
Era certamente sexual. E a referência de George sobre "para cima" parecia
clara o suficiente.
Obviamente, Archie tinha uma queda por Iris. Depois de apenas um
encontro, isso parecia bobo. Mas a atração por uma mulher costumava causar
uma ereção masculina. O corpo feminino funcionava de maneira semelhante,
embora muito menos óbvio. Textos de anatomia encobriam ambos, descrevendo
as funções dos músculos, da fáscia e dos vasos sanguíneos, mas pouco sobre
como tudo realmente ocorria. Não precisavam detalhar sobre a estimulação
masculina; todos esses livros eram feitos apenas para homens lerem.
Ela entrou na sala de estar da casa.
― Talvez os franceses tenham algo a dizer. ― Suas consoantes estavam
arrastadas. Puxando um volume grosso da prateleira, o abriu e piscou com força
para colocar as palavras em foco. Mas até o texto francês era vago.
Se seu pai estivesse em casa, ele contaria a ela.
Não. Não contaria. Ele diria que o lugar menos apropriado para ela era estar
em um pub com rapazes fazendo gestos obscenos. Então a olharia cheio de afeto
e pena e seu coração implodiria.
Ele a amava. Ele queria o melhor para ela. Mas conhecia suas fraquezas.
Ela não deveria ir ao pub com Archie e os rapazes. Eles a aceitaram como
homem. Que outro objetivo ela tinha para socializar com eles?
Solidão.
Foi uma fraqueza. Ela tinha a companhia da Sra. Coutts e do leitão. Estava
acostumada a ficar sozinha ― verdadeiramente sozinha. As amigas Alice,
Constance e Tabitha cuidavam dela, mas não compartilhavam do seu amor pela
medicina. Iris gostava de rir, e Libby fornecia alimento abundante para isso.
Com nenhuma delas Libby era totalmente ela mesma.
Foi até o quarto, vestiu a camisola e sentou-se à penteadeira. O kohl que
aumentava e engrossava suas sobrancelhas foi primeiro a ser completamente
limpo com creme. As suíças em seguida.
Ela olhou para seu reflexo, seus olhos muito amplos e suaves à luz da vela.
Com o cabelo cortado, feições nuas e a camisa de noite de homem aberta no
colarinho, ela não era nem moça nem rapaz.
― Eu sou eu. Sou apenas eu ― repetiu, mais alto.
Se perguntou o que ele viu nesses lábios que o fascinaram. Tocou as pontas
dos dedos no lábio inferior. O calor deslizou sobre seu ventre. Com a respiração
um pouco rápida, deslizou as pontas dos dedos sobre a pele macia onde os
bigodes tinham estado. O rosado já estava desaparecendo. Ele era um mestre
desenhista, um pintor excepcional e um químico genial.
Quando entrou em casa mais cedo, viu a luz sob a porta do estúdio. Não
podia esperar até domingo para agradecer-lhe. Colocando um roupão por cima
da camisola, saiu do quarto.
Assim que abriu a porta dos aposentos, compreendeu o verdadeiro motivo
de não ter podido esperar o domingo. Aqui ela se sentia em casa. Aqui em seu
estúdio, ela era mulher e estudante. Aqui vivia a única pessoa no mundo que
conhecia toda a verdade sobre ela.
Empurrando a porta, ela entrou.
Uma vela no cavalete iluminava a câmara com um brilho âmbar. O
propósito da barra do outro lado da porta do seu estúdio estava agora totalmente
claro.
Despido, usando apenas calções, braços e torso brilhando de suor e olhos
fechados, ele estava se levantando e se abaixando e repetindo essa ação
lentamente e em um ritmo exato e uniforme: para cima, para baixo, para cima,
para baixo, sem perder batida. Os músculos eram bem desenvolvidos, finamente
talhados, elásticos e esbeltos, contraindo-se e relaxando, cada um deles um
milagre de uma função e, em geral, algo de poder e grande beleza.
Agora ela compreendia o silêncio e a fluidez com que ele podia se mover.
Nenhum corpo humano, embora bem condicionado, poderia superar inteiramente
sua deficiência. Mas os músculos do abdômen, do peito e dos braços lhe
permitiriam velocidade temporária e furtiva que muitos homens com os dois pés
não conseguiriam alcançar.
Por que ele queria ser capaz de velocidade e discrição, ela não conseguia
adivinhar.
Em uma corrida rápida, o leitão passou por ela e entrou no estúdio,
resfolegando exaltado quando pulou sobre seus pés.
Dando um passo silencioso para trás, Libby rezou para que ele ignorasse o
barulho.
Ele abriu os olhos.
Capítulo 11

Uma Interrupção

Ela deveria se mover. Ela deveria sair. Ela deveria pelo menos virar-se até
que ele vestisse uma camisa.
Em vez disso, o olhava e seu coração pulsava como um tambor de batalha
contra suas costelas, suas bochechas e seu corpo inteiro enchiam de calor, e mil
perguntas clamavam sair de sua língua. Ele se abaixou e segurou a bengala
apoiada no batente da porta. O tecido solto na perna direita do calção estava
preso. Obviamente, o pino não havia sido anexado cirurgicamente. Não era de se
admirar que ele tivesse tanta dor; ele estava andando com uma peça mal
adaptada e ineficiente. Ele não disse nada. Exceto pelas profundas inalações e
exalações que deslocavam as sombras através dos contornos de seu peito e
abdome, ele não se movia.
O leitão atravessou a sala e voltou para o quarto de dormir.
― Aparentemente ― ela disse ― está contente em ter me revelado aqui e
agora vai voltar para sua cama e aos doces sonhos dos inocentes.
― Por que está aqui? ― Ele perguntou em um tom nada notável, como se
não estivesse vestindo apenas calções e de pé com o cabelo úmido e pingos de
suor acariciando sua musculatura soberba. ― Está bem?
― Não. Eu estive no pub com amigos, e acho que não percebi, até esse
exato momento, como estou embriagada. Eu vim para...
Ele caminhou em direção a ela. Sem o apoio sob a perna direita, os
músculos de seus braços, ombros e peito tremiam com o extraordinário esforço.
Mas ele mal mancava, efetivamente usando a bengala como uma perna. Uma
cicatriz de dois centímetros de comprimento esculpia uma faixa delgada em sua
cintura.
― Eu vim para lhe dizer o quanto o adesivo funciona bem ― ela avançou.
Ela já tinha visto corpos de homens antes. Era uma cientista médica, filha de um
médico. O torso nu masculino não passava de uma coleção de músculos e ossos
e - ah, meu Deus, ele era primorosamente belo. ― É suave. ― Tão lindo. ― E
flexível. E ainda mantém as suíças firmemente. Em apenas dois dias a irritação
da minha pele desapareceu.
― Sei o quão bem isso funciona ― disse ele, parando tão perto que ela
podia sentir o calor de seu corpo no ar frio entre eles, e assistir os músculos
relaxarem em beleza esculpida. ― Eu testei completamente antes de dá-lo.
Outras pequenas cicatrizes marcavam a carne perfeita aqui e ali. Ela queria
perguntar-lhe sobre elas. Então queria explorar cada uma com os dedos.
― Percebo isso, é claro ― disse ela. ― Mas...
Ele levantou a mão envolvendo o rosto dela. Ela não resistiu ao impulso de
seu aperto que virou o rosto para cima quando os dedos dele afundaram em seu
cabelo.
Na escuridão, seu olhar sobre as feições dela era como a meia-noite.
― Não deveria estar aqui. ― Sua voz era áspera, mas seus dedos estavam
entrelaçados em seu cabelo e ele estava tão perto - tão perto - como se não
tivesse ideia de que seu corpo se aproximava do dela.
― Está me dizendo que eu não deveria estar aqui e me segurando, de uma
só vez. Saiu como um sussurro esganiçado. ― Isso é irracional.
Ele estava olhando para suas feições, uma de cada vez, estudando como
sempre fazia, mas de forma diferente agora, como se ele tivesse todo o tempo
livre do mundo para fazê-lo.
― Não deveria estar aqui ― ele repetiu. Então seu olhar mergulhou em
seus lábios.
Explosões de prazer fizeram seu corpo parecer puro. Vulnerável. Queria
encostar sua bochecha mais confortavelmente na mão dele, ser segurada, virar
seu rosto e sentir a sensação da palma dele contra seus lábios.
― Eu queria agradecê-lo ― ela disse.
― Já me agradeceu.
― Admito que a cerveja me roubou o pensamento apurado. Mas acho que
eu teria vindo aqui para compartilhar essa notícia, mesmo sem a bebida. É isso,
como vê.
Uma gotinha de umidade fez uma trilha ao longo de sua bochecha para se
agarrar a sua mandíbula, que estava escura com o crescimento da barba. Ela
tinha o louco desejo selvagem de lamber essa trilha e provar seu sabor salgado.
Colocou as pontas dos dedos no peito dele. Sua respiração engatou e sua
mão caiu do rosto dela.
Colocando os dedos sobre o músculo peitoral, ela levou a palma da mão até
a pele dele. Seus batimentos cardíacos eram rápidos, sua carne quente e úmida.
Ela o afetava.
Sua mão, rosada de esfregar, brilhava completamente contra sua pele
marrom dourada. Olhando para os mamilos, ela sentiu os dela se arrepiarem até
os picos ficarem doloridos. Como se sentiria ao pressioná-los contra seu peito
firme, para dar a seu corpo o que obviamente queria?
Seria bom. Tão bom.
Deslizando a mão sobre as costelas, explorando a beleza controlada dele,
ela se inclinou para frente.
Então sua mão estava pairando no vazio.
Ela o viu atravessar o estúdio e entrar no quarto dele. A porta se fechou.
Livrando-se da paralisia, ela retornou ao seu quarto em uma confusão.
Removendo o roupão e a camisola, ela subiu sob as cobertas e sentiu o tecido
macio deslizar sobre sua pele, acariciando-a como havia tentado acariciá-lo.
Ele a achava linda. Sua carne respondeu ao seu toque. Por que ele não
permitia isso?
Seu corpo estava esticado de tensão, sua cabeça nadando. Os picos tensos
de seus seios praticamente choravam de necessidade. Deslizando os dedos sobre
os seios, ela acariciou as pontas firmes e um gemido começou em sua garganta.
Em torno dos mamilos enrugados, seus seios eram macios. Ela os embrulhara
dezenas de vezes, achatando-os o máximo possível, mas nunca fizera isso -
nunca se permitiu sentir sua própria carne. Que tipo de médica ela seria para
ignorar uma resposta física que poderia facilmente estudar?
O tipo de pessoa que nunca sentiu essa reação física - essa luxúria - antes de
viver nesta casa.
Deslizando as palmas das mãos sobre as curvas de sua barriga e quadris, ela
explorou, notando as sensações que as carícias despertavam. Seus lábios se
separaram, sua respiração acelerara e ela não estava pensando em medicina.
Estava pensando nele, em como seria as mãos dele ali, onde as dela exploravam,
revelando-se nesse exame voluptuoso, essa fantasia que vinha com tanta
facilidade.
Talvez ele a achasse apenas bonita como objeto de estudo, assim como ela
achava seus pacientes fascinantes. Talvez não despertasse nele o desejo de olhar
para ela - ouvir sua voz, tocá-la, encontrar seu olhar - despertado nela.
Isso explicaria tudo.
Ela deslizou os dedos entre as coxas. A doce urgência cresceu quando ela se
permitiu pensar em sua beleza masculina, seu cheiro de suor e colônia, e sua pele
sob os dedos, que agora estavam despertando seu próprio corpo, acariciando,
sondando, escorregadios, molhados e desenfreados. Retratando a mão sobre ela,
arqueou na carícia. Um choro de prazer escapou entre seus lábios. Com os
cobertores emaranhados sobre ela, tentou se imaginar como as outras mulheres:
aos vinte anos de idade, esposas agora, que conheciam o toque de um homem.
Mas ela não era como as outras mulheres. Ela era um homem.
Capítulo 12

Um Pedido

Ela o encontrou no Gilded Quill. Nesse lugar modesto, decorado com


madeira escura e linho branco, e cheirando a cera de abelha, sálvia e bolos,
Ziyaeddin encontrava amigos para jantar ou chá e, ocasionalmente, clientes.
Na maioria das vezes, porém, estava sozinho ali, com uma xícara de café -
que ele ensinara o cozinheiro a preparar com açúcar - um jornal e seus
pensamentos. Seu bloco de rascunhos estava sempre aberto, com o lápis pronto,
caso um personagem interessante se apresentasse para estudo.
Hoje ele apenas estava sentado, sem desenhar nem beber, sozinho, como
raramente estava agora em sua própria casa - sentado numa mesa perto da janela
e olhando, sem ver, para a rua.
Ele não ficou especialmente surpreso quando ela apareceu. Ela era Joseph
Smart sempre que saía de sua casa, e era Joseph Smart agora, bigodes, costeletas
e tudo.
Veio diretamente para ele. ― Posso me juntar ao senhor?
Ele inclinou a cabeça.
Com a facilidade de um jovem que fez isso por toda a vida, ela levantou o
rabo do casaco para evitar sentar-se neles. Era
inteligente. Esperta. Rápida. Atenta. É claro que ela executaria até mesmo o
menor ato de se sentar, como fazia com todo o resto: com propósito e perfeição.
Semanas antes, Charles Bell sentara-se à sua frente no lugar que ela
ocupava agora, maravilhado com o conhecimento e as habilidades do jovem Sr.
Smart e imaginando em voz alta se isso não era apenas o brilho de uma nova
moeda de centavo. Ziyaeddin respondeu ao cirurgião que era mais o brilho de
um guinéu genuíno.
Agora aquele guinéu o olhou diretamente nos olhos. ― Ontem à noite no
pub eu bebi em excesso ― disse ela. ― Eu nunca bebi tanto, mas estava muito
empolgado em celebrar para examinar o efeito que estava tendo em meus
pensamentos.
― Celebrando o que?
Ela acenou com a mão desconsiderando. ― O que eu estou dizendo é que
não tive a perspicácia de me impedir de ir aos seus aposentos na noite passada.
Na verdade, considero o comprometimento da razão um estudo fascinante.
Quando tive o impulso de falar com o senhor, estava imaginando o senhor
exatamente como é quando estou presente. Com a bebida confundindo meus
pensamentos, não considerei que, quando está em seus aposentos, nem sempre
está de pé ou sentado diante do cavalete, completamente vestido. Foi descuido
de minha parte e tenho vergonha disso.
― Disso?
― Sim. Eu tenho a dor de cabeça mais infeliz e estômago azedo como
prova do meu descuido também.
― Só por isso?
Seus olhos arregalaram, duas piscinas do mar mais profundo que o fizeram
querer beber nela. Alá, como ele tinha sede.
― Sim ― ela repetiu em seguida, com outra carranca: — Eu não deveria
ter bebido como fiz. Embriaguez e desordem são proibidos pelos termos da
minha escritura, é claro. Mas não tenho vergonha de ver um homem
parcialmente nu, se é isso que quer sugerir.
― Talvez eu quisesse sugerir isso. ― Ele cruzou os braços. ― Agora estou
reconsiderando.
― Eu sou uma pessoa da ciência ― ela disse em sílabas exageradamente
nítidas. ― Eu vi muitos homens sem roupa.
― Agora também estou reconsiderando o respeito que eu estava mantendo
por seu pai.
― É claro que meu pai nunca permitiu que eu visse um homem totalmente
despido. Apenas partes.
― Que alívio ― ele murmurou.
― Ontem em anatomia, começamos a dissecar os órgãos preservados. Fui
convidado para demonstrar.
― Ah, por isso a celebração.
Seus lábios se juntaram. Aqueles lábios eram tão diferentes agora do que na
noite anterior, quando se separaram com expectativa, brilhando de umidade, e
inteiramente prontos para serem beijados - sem palavras pedindo para serem
beijados. Agora eles estavam incertos.
― Me enganei? ― Ele perguntou.
― Não. Eu estava de fato celebrando isso. É uma grande honra ser
escolhido para liderar a primeira dissecação do período.
― Não tenho dúvida de que impressionou o Dr. Jones e seus colegas de
classe.
Ela levantou o queixo um pouco. ― Se lembra do nome do meu professor.
― Prefere que eu esqueça os detalhes do que me conta?
Respirações rápidas, intensas e profundas, estavam inchando seu peito. Sob
a lã e o linho, era plano como o de um menino, e se perguntou como ela poderia
se mover com tanta energia e conforto, apesar de estar atada nesse traje.
― Obrigada por lembrar os detalhes. ― Ela falou baixinho. ― Eu imploro
seu perdão por interrompê-lo ontem à noite. E por tocá-lo como eu fiz. Espero
que me perdoe.
― Fui eu que agi rudemente.
― Foi minha culpa estar lá. Não sua, claro. Sinto muito. Me perdoará e me
dará um aperto de mãos?
Ele simplesmente não podia. Tocá-la na noite anterior foi um erro grave.
Essa farsa inteira era um erro. Mas pelo menos esse aspecto dele, poderia
controlar.
Se tocasse a mão dela agora, iria querer tocar nela toda.
― Aqui está uma lição, jovem Joseph: não ofereça sua mão a um homem
que não mereça sua civilidade.
― Mas o senhor merece minha civilidade. Não sou ingênua. Nem
ignorante. Estou ciente do que pode acontecer com uma mulher que se torna
vulnerável a um homem, como fiquei com o senhor na noite passada.
― Não sei se me alegro que me ache um homem tão honrado ou me
desespero por sua certeza de que sou um.
― Não precisa se desesperar. Não o conheço bem o suficiente para ter
certeza. Pouco sei do senhor, exceto o que tenho visto em suas pinturas.
― Não confunda a arte com o artista ― ele disse.
― Mesmo assim, sei que é generoso, se de forma egoísta...
― Uma contradição.
― Porque fez tudo isso por mim por tão pouca compensação. E é forte. Em
caráter. Mora em uma terra estrangeira entre aqueles que provavelmente o
entendem muito pouco, e fez uma vida para si mesmo aqui. Isso requer força. E
coragem.
Isso exigia coragem: fingir que ela não o afetava, que na noite anterior ele
quase não a agarrou e fez tudo o que sonhava fazer com ela.
― Também é fisicamente forte ― ela disse. ― Eu notei isso antes. Mas
ficou especialmente evidente para mim na noite passada. Seu corpo está em uma
forma extraordinariamente boa.
Ele não pôde resistir a sorrir.
― Falo uma inverdade? ― Ela disse.
― Eu deveria ter antecipado isso.
― Antecipado o quê?
― Que diria isso. Em voz alta. Para mim. Como se fosse a conversa mais
normal entre um homem e uma mulher.
A testa dela franziu. ― Não há uma mulher aqui agora.
Apesar de tudo, ela não fazia ideia de que para ele seus bigodes, costeletas e
calças poderiam ser fitas e saias.
— Fala tudo o que pensa, cada um dos seus pensamentos ― disse ele.
Seus lábios perfeitos se separaram, depois se fecharam em palavras não
ditas.
― Entendo ― ele disse sorrindo. ― Está mostrando que estou errado sobre
isso.
― Não. Estou pensando que as mulheres devem estar felizes com o senhor.
― Mulheres?
― Com sua força física. Com seu corpo. É impressionante, bonito, como
poucos corpos masculinos. Suas amantes... elas devem... aproveitar.
Ele não disse nada em resposta, apenas olhou para ela, enquanto Libby
sentia o calor subir em seu pescoço e bochechas.
Ele se levantou, pegou a bengala e saiu.
Jogando moedas na mesa, ela o seguiu. Alcançou-o facilmente. Na perna-
de-pau, ele andava apenas com um ligeiro mancar, mas não de maneira rápida.
― Espere ― ela disse quando veio ao lado dele. ― Eu...
Ele parou, e no meio do caminho com pessoas passando de ambos os lados,
ele disse: ― Que tipo de comentário foi esse?
― Do que...
Ele partiu novamente. Começara a chover e os paralelepípedos brilhavam.
Dúvidas, como a chuva a golpeavam.
― Eu só me pergunto ― ela disse quando subiu à varanda da casa atrás
dele.
― Oh, se pergunta ― disse ele entre dentes apertados, encaixando a chave
na fechadura e abrindo a porta com tanto controle que ela poderia pensar que só
imaginava sua raiva se não fosse pelos tensos tendões e músculos de sua
mandíbula.
Ele estava esperando na varanda para ela preceder, aparentemente
esquecendo que não era uma mulher.
― Sim ― ela disse, passando por ele para entrar. ― Eu me pergunto tudo.
Não sei nada sobre o senhor e não me contará. Mas aqui estou, morando em sua
casa e onde não há informações para suprir a realidade, minha mente sempre
inventa cenários. Então, sim, eu estava pensando.
― O que mais se perguntou? ― Ele falou friamente. ― Se estou
acostumado a dar prazer a meia dúzia de mulheres ao mesmo tempo, ou talvez
em sucessão? Se o harém eu mantinha numerado nas dezenas ou centenas? Quer
saber se eu rezo aos ídolos? Se eu passo todas as noites polindo minha coleção
de adagas para que eu possa roubar e sacrificar crianças cristãs aos meus deuses
pagãos? Ou talvez suas divagações tenham sido do tipo mais plebeu. Talvez se
pergunte se eu como com um garfo e uma colher ou sobre minhas mãos e joelhos
como um cachorro?
Seu estômago revirou. ― Não.
― Nenhuma dessas? Pois asseguro-lhe, ouvi cada uma dessas perguntas
desde que resido nesta terra. Não ficarei surpreso em ouvi-las novamente, e
quaisquer outras maravilhas que sua imaginação fértil possa adicionar a elas.
― Acredito que já deva saber que, embora eu seja insaciavelmente curiosa,
não sou ignorante.
Os olhos dele eram como obsidianas.
― Por exemplo ― ela continuou, ― eu sei que os muçulmanos creem no
mesmo Deus que os cristãos, embora chamem esse deus por um nome diferente.
Quando o americano Thomas Jefferson insistiu nisso, muitas pessoas fizeram
uma confusão sobre o assunto, mas acho que faz todo o sentido. E eu sei que
ídolos são proibidos. É certo que não sei nada sobre haréns... e tal. Mas não
entendo como alguém estudado nas Escrituras, poderia pensar que uma criança
seria um sacrifício religioso útil, pois é claro, Abraão, que era o pai do judaísmo,
cristianismo e islamismo, cometeu esse erro com seu próprio filho para que o
resto de nós nunca errássemos depois. Em geral, não sou levada a ideias
extravagantes, pois leio muito - muito mais do que as caricaturas de Byron ou
Morier. E não dependo das ridículas representações de estrangeiros que se veem
na ópera para me informar. Lamento que não seja o caso de todos os ingleses ou
escoceses que encontrou. Se eu pudesse dar um tapa em todos eles, eu faria.
Por um longo momento, ele não falou.
― Iria dar um tapa ― ele disse finalmente.
― Sim. Não tenho uma coleção de adagas. Embora eu tenha instrumentos
cirúrgicos, é verdade. Então suponho que eu poderia infligir algumas feridas
bastante graves, se necessário. Eu ainda não fiz um juramento como médico,
então não seria estritamente antiético, embora certamente imoral. Mas eu faria
pelo senhor. Por favor, deixe-me saber se quiser que eu faça.
Seus belos olhos mudaram, e Libby se sentiu vista - verdadeiramente vista -
como se ele não apenas acreditasse em suas palavras, mas a entendesse. Todas as
sensações de prazer que persistiam em seu corpo da noite anterior, aumentaram
novamente.
Ela tentou muito não olhar para os lábios dele. ― Poderíamos agora chamar
de empate?
― Poderíamos ― disse ele em uma voz estranhamente baixa.
― Mas há algo que eu gostaria de saber sobre o senhor. Algo em particular.
― Ah ha. Aqui estamos de novo.
― Como isso aconteceu? ― Ela gesticulou para baixo.
Ele apenas olhou para ela, mas agora sem raiva.
― Foi um acidente? Uma ferida que infeccionou? Uma fístula incurável
de um ferimento a bala, talvez, ou estilhaços...
― Senhorita Shaw...
― Shh! Gibbs provavelmente está no andar de cima ― ela sussurrou. ―
Deve me chamar de Sr. Smart.
― Salvo pelo criado. ― Ele começou a se afastar.
― Por favor ― ela disse à suas costas. ― É uma curiosidade profissional, é
claro.
A mentira parcial deixou um gosto ruim em sua língua. Estava abrindo a
boca para dizer a verdade - que simplesmente queria saber - que queria conhecê-
lo - quando ele disse: ― Foi o preço que paguei pela minha liberdade.
Sua liberdade?
― Obrigada por me dizer.
Ele continuou indo para o estúdio e fechou a porta atrás dele. Libby estava
tremendo, estômago com espasmos. Era a sensação mais horrível e totalmente
indesejada. Recolhendo seus livros da sala, os enfiou na mochila e saiu. Ontem à
noite ela tomou cerveja suficiente para toda a vida. Mas ela queria companhia e
um prato de torta para acalmar seu estômago.
Seus amigos não estavam no bar. Maxwell Chedham aproximou-se dela
com um copo de cerveja na mão.
― Estudando em um sábado? ― Ele perguntou com um aceno superior em
direção a seus livros espalhados sobre a mesa.
― Seus pacientes se beneficiariam se também o fizesse ― disse ela.
― Não ganhará, Smart. Provarei que é uma fraude. ― O calor ácido
rastejou através dela. ― Sei que quer ser assistente de cirurgia do professor
Russell no próximo ano ― ele disse.
― A cadeira de cirurgia clínica? Não. Apenas desejo prati...
― É um garoto brincando no jogo de um homem, Smart. É só uma questão
de tempo até que cometa um erro. E eu estarei lá para derrubá-lo.
Ele foi embora.
É uma fraude.
Ela queria que ele explicasse suas palavras. A necessidade pressionou-a a
persegui-lo. Ela lutou contra isso, redirecionando seus pensamentos para seus
livros, mas estava toda molhada de suor.
Enquanto comia e seu estômago se acomodava, ela folheava suas
anotações. Na mesa ao lado, um par de alunos inclinava suas cabeças sobre um
texto filosófico.
Isso era um milagre: sentar-se sozinha em um pub, livros de medicina à sua
frente, jovens por toda a parte com a mente voltada para o aprendizado. Ela
sonhara com isso. Havia planejado, trabalhado e lutado por isso. Seu pai a
ensinara, pelo exemplo, a nunca se contentar com a derrota, mesmo quando os
adversários pareciam estar vencendo.
As mulheres nunca serão admitidas na profissão médica.
Desta vez ele estava errado. Ela não aceitaria a derrota. Seu pai poderia tê-
la criado para falar como um britânico e conversar como um homem, mas ela era
uma escocesa. Nenhum inglês sangue azul arrogante, iria destruí-la.

À LUZ DE uma única vela, Libby estava tentando ler o pequeno texto em
um volume de ciência química que havia sido impresso para formigas lerem,
quando a porta da sala de estar se abriu. Levantando a cabeça, ela apertou o
olhar para as sombras.
― Oh ― ela disse. ― O que está fazendo fora de sua caverna?
Ele sorriu, apenas ligeiramente, mas acendeu uma onda de prazer em seu
estômago. Era difícil olhar para ele sem lembrar como ela havia sentido tanto
prazer em se tocar enquanto imaginava as mãos dele nela.
Ela queria confessar isso a ele. Às vezes, a necessidade de confessar seus
pensamentos e ações ficava tão urgente e desesperada, que não conseguia pensar
em mais nada. A confissão sempre lhe trazia muito alívio. Mas só sentira
necessidade de confessar tudo com o pai e, às vezes, com Constance e Alice, que
eram como uma família. Nunca com um estranho.
Algo havia mudado entre eles.
― Eu vim me desculpar ― ele disse, permanecendo junto à porta.
Ela se virou para encará-lo e suas saias se emaranharam nas pernas da
cadeira.
― Apenas um mês, e já perdi o jeito de usar um vestido. ― Ela puxou a
bainha. ― Como os cavalheiros afortunados devem aproveitar a liberdade de
movimento em todos os momentos, dia e noite.
― Na noite em que entrei nesta sala para lhe dar o adesivo, a senhorita
usava calças. Por que não hoje à noite?
Ela não sabia.
― Pelo que veio se desculpar? Por assumir o pior de mim? Não precisa, ―
ela disse, voltando-se novamente para seus livros e pegando seu lápis. ― Estou
acostumada a cometer erros miseráveis e todo mundo ficar me achando horrível.
Estou sempre me desculpando com meus amigos por dizer ou fazer algo
dolorosamente errado.
― Sinto muito por falar com a senhorita como eu fiz.
Ela escreveu uma palavra. Não tinha ideia de que palavra era. ― Sobre o
prazer de mulheres e haréns e tal? ― Os nervos estavam agitando seu estômago
novamente.
― Sim.
― Novamente, não há necessidade ― ela disse, escrevendo outra palavra
sem sentido. ― Eu comecei, afinal, mencionando amantes.
Ele não disse nada.
Ela olhou para ele.
― Não foi cavalheiresco de minha parte. ― Sua mandíbula estava
novamente bem apertada.
― Nós poderíamos passar o ano todo insultando um ao outro e depois
pedindo desculpas por isso, eu suspeito.
― Preferiria que não o fizéssemos?
― Por mais chocante que pareça, prefiro. ― Ela se levantou. ― Na
verdade, tenho um favor a pedir-lhe agora. Estive pensando em perguntar sobre
isso desde ontem, antes da infeliz interrupção, e eu gostaria de perguntar ao
senhor agora, em vez de esperar até a sessão de amanhã. Eu prefiro não
perguntar no seu estúdio, para o senhor ver.
― Acho difícil acreditar que há alguma pergunta que não faria em qualquer
lugar ― ele disse com aquele quase sorriso que o deixava ainda mais bonito.
― Normalmente não há. Mas estou me esforçando para respeitar seu
espaço de trabalho.
― Está?
― Sim. Tardiamente. Sabe, deve reconhecer minhas boas intenções em pelo
menos alguns assuntos. Não sou horrível de todo.
Ele caminhou até ela, a bengala fazendo um baque silencioso no tapete.
― Eu não acho que seja, mesmo que parcialmente, horrível ― ele disse,
seu olhar passando por suas feições. Ela supunha que ele sempre olhava para as
pessoas assim, como se estivesse estudando as curvas, formas e tons de seus
rostos, tanto quanto ela estudava as posturas das pessoas, as corcovas e os
joelhos nodosos.
Lirismo.
Quando olhava para ela, ele via poesia?
― Mas o senhor é ― ela disse, sentindo todo o calor da noite anterior
chegar dentro dela com as mãos famintas.
― Eu sou o que? ― Ele perguntou.
― Horrível.
― Dando-lhe livre acesso à minha casa e suportando interrupções em todas
as horas?
― Esta tarde me deixou com a conta depois de me olhar como se eu
estivesse louca.
― Eu tenho uma conta naquele café. Não precisava ter pago. Mas sinta-
se à vontade para subtrair o valor do seu aluguel.
― Ainda não me disse qual é o valor do meu aluguel.
― Não disse? Quão financeiramente negligente eu sou. Então, quanto
deseja pagar? Estarei contente com qualquer soma que goste. Mas não se
esqueça de adicionar algumas libras para espionagem tarde da noite.
― Um pedido de desculpas é obviamente insuficiente para o senhor, afinal.
Eu disse, nunca havia bebido muita cerveja antes. Eu estava confusa.
― Estava desorientada. ― Seu olhar sobre ela estava sombrio e perfeito.
Por tudo que é sagrado, é ainda mais bonito quando está furioso. Como
pode ser? ― Porque é teimoso. Eu não estava espiando.
― Meu inglês às vezes é inadequado. Talvez prefira outro termo?
Desajeitada.
― Não. Pelo amor de Deus, me permite fazer a minha pergunta?
Sentando-se no braço da cadeira diante da lareira, ele gesticulou com a
mão. ― Estou à sua disposição.
― Ontem à noite, no pub, meus amigos estavam discutindo um assunto que
me sugeria uma área de estudo que temo, pode me causar alguns problemas, se
não consideráveis, no futuro. Não só isso, mas ser incapaz de compartilhar até
mesmo conversas casuais sobre isso estão sendo inconvenientes. ― Ele assentiu
encorajando-a a continuar.
Depois da noite passada, não havia outro jeito de afirmar isso.
Ela mergulhou.
― Meu conhecimento de anatomia está falho. Anatomia masculina, em
particular ― ela esclareceu.
Ergueu uma sobrancelha. ― É isso?
― Quando os outros estudantes trocam brincadeiras pueris, fico
visivelmente em silêncio. Meus estudos sobre o assunto estão se revelando
insuficientes para a pretensa masculinidade que estou vivendo.
― Entendo. ― Ele olhou para seus livros empilhados em toda a sua sala de
visitas, sobre os quais ele não disse nada por semanas. Ele era um anfitrião
generoso. Ela estava dependendo disso agora.
― Não examinou cadáveres masculinos? ― Ele disse. ― Aqueles que não
se movem, é claro. ― Ela olhou diretamente em seus olhos. À luz de velas, eles
eram da cor do carvão e, como sempre, muito bonitos.
― Mas aí que está.
― Ah ― ele disse, sorrindo levemente. ― Começo a ver a direção dessa
conversa.
― Me ajudará com isso?
― Seus estudos continuariam a sofrer. ― Os nós dos dedos ao redor do
final de sua bengala estavam brancos. ― Eu, como sabe, não sou um homem
inteiro.
Ela deu um passo à frente. Não foi sábio, especialmente agora que sabia do
que sua proximidade era capaz. Mas ela não podia permitir que nada impedisse
seu projeto, nem mesmo memórias de sua musculatura espetacular.
― Se eu quiser ter sucesso nessa farsa, preciso saber tudo sobre ser homem
― ela disse. ― E não são as pernas masculinas que me interessam agora.
Seu olhar voltou-se para o dela, e naquele momento lhe ocorreu que aquele
homem, que concordara com seus termos para morar em sua casa, não era nem
celibatário por natureza nem inclinado a permanecer assim por muito mais
tempo.
― Não ― ele disse se levantando novamente e elevando-se sobre ela.
― Por favor, não me entenda mal ― ela disse rapidamente. ― Não estou
fazendo uma proposta. Gostaria apenas de uma breve demonstração, uma
demonstração puramente clínica...
― Absolutamente não.
― Ah, por favor ― disse ela, arrastando coragem em seus pulmões. ― Eu
sei tudo sobre a anatomia humana masculina e feminina, exceto a maneira como
um homem vivo funciona. Livros didáticos são frustrantemente enevoados com
os detalhes, o que, sem dúvida, é porque apenas homens escrevem e têm a
intenção de ler esses livros, e todos eles já sabem. Os textos descrevem uma falta
de função em mais detalhes do que uma função saudável, na verdade. E agora, é
claro, nós já conversamos - e brigamos - sobre os assuntos mais íntimos. Eu sei
que é um pedido extraordinário, mas deve concordar que esta é uma situação
extraordinária e não tenho mais ninguém para perguntar. Meu sucesso neste
programa pode depender disso.
― Eu não sou um sujeito para estudo de laboratório ― ele rosnou.
― Nem eu ― ela atirou de volta. ― No entanto, todos os domingos, eu
sento em um banquinho no seu estúdio para ser exatamente isso. Por que é tão
chocante para o senhor que eu queira estudar uma parte sua quando faz
exatamente isso comigo? Meu nariz. As minhas orelhas. Meus dedos. O que eu
sou para o senhor além de uma coleção de peças para ser descrita em grafite?
Como o que eu estou lhe perguntando agora é diferente disso?
― Se não sabe a diferença, Srta. Shaw, então, em nome de todos os seus
futuros pacientes, para não mencionar os cavalheiros que são seus admiradores,
eu me desespero com a senhorita. ― Ele fez uma reverência. ― Boa noite.
Ele a deixou olhando para a porta aberta.
Suas palavras vieram espontaneamente, mas as queria dizer. Que ela era
para ele apenas um modelo - um rosto feminino e uma figura para desenhar, e
nada mais - doeu. Nunca morou sozinha. Agora compartilhava uma casa com um
homem que, apesar de tudo, era tão estranho para ela quanto seus colegas.
Ela era uma curiosidade para seus amigos e para seu pai uma
inconveniência, um fardo, uma responsabilidade que devia ser encorajada a
buscar atividades aceitáveis, se ocupar com pensamentos regulares, ser mantida
em segurança, até mesmo de si mesma, e ser normal. Junto a seu companheiro
de casa, porém, ela nunca se sentiu anormal porque ele nunca esperou que ela
fosse qualquer coisa, exceto o que verdadeiramente era.
Mas isso era falso. Para ele, ela também não era nada além de uma
esquisitice que deveria apenas ser suportada enquanto fosse necessária para ele.
Enquanto permaneceu no reflexo da vela gotejante, a solidão subiu pelo
chão frio, em suas pernas, enroscou-se em torno de sua barriga e encheu seu
peito.
Capítulo 13

Um Retrato

Toda vez que se sentava para posar para ele, ela não dizia nada - nem uma
palavra, nem em cumprimentos nem em despedidas - sem perguntas, sem
monólogos e sem observações francas sobre os assuntos mais inconsequentes.
Ela e o leitão, cada vez maior, entravam e saíam como uma névoa escocesa,
resolvendo uma camada de inquietação que exigia horas para se livrar. Dias.
Ele sentia falta da conversa dela. Seus monólogos. Suas perguntas sem fim.
Seus pedidos ultrajantes.
Era melhor assim. Quanto menos ele a visse, mais conseguiria fingir que
não tinha interesse em mais do que nariz, orelhas e dedos.
Foi então uma surpresa quando, em uma festa na casa de Lady Hart, uma de
suas patronas mais ávidas, a Srta. Elizabeth Shaw apareceu diante dele e disse:
― Eu não sabia que tinha sido convidado para essa festa. Muitas vezes ouço a
Sra. Coutts dizendo ao Sr. Gibbs sobre as festas para as quais o senhor é
convidado e reclamando que não comparece. Mas ela nunca mencionou essa
aqui. O senhor deve ter descoberto o convite para essa festa antes que ela tivesse
a oportunidade de olhar a correspondência.
Ele adorava como a mente dela funcionava: observando detalhes
minuciosos e analisando cada um desses detalhes de cada cenário até uma
conclusão lógica. Seus pensamentos nunca descansavam. Isso fez seu recente
silêncio com ele especialmente preocupante.
― Sim devo ter ― ele disse, observando a forma dela envolta em renda
branca e seda cerúleo que fazia sua pele brilhar e deixava nua uma moderada
exibição de seio rosa suave. ― A senhorita...
― Não ― ela disse. ― Este é um vestido bobo e eu só usei para agradar a
Constance, que o fez para mim porque o tecido combina com a cor dos meus
olhos. Se me elogiar agora, talvez eu tenha que não falar com o senhor por mais
um mês, e isso seria inconveniente. E desagradável.
― Entendo ― ele disse. ― Eu não estava prestes a elogiá-la.
― Não estava? ― Em seu cabelo havia um pente enfeitado com contas
brilhantes, o comprimento de suas mechas trançadas com fita de cetim e
arranjadas como uma coroa. Seus lábios tinham sido suavemente pintados,
obscurecendo seus tons perfeitos. No vale de sua clavícula, havia uma pequena
figura de marfim pendurada em uma corrente de filigrana de ouro. Ele queria
pintar o pescoço e a clavícula. Ele queria pintar cada centímetro dela.
― Então, o que estava prestes a dizer? ― Ela perguntou.
― A senhorita está familiarizada com Lorde e Lady Hart, parece?
― Oh. Conversa de festa educada. ― O brilho em seus olhos diminuiu. ―
Não, não sou. Constance e Saint são, e eles me trouxeram aqui. Papai fez com
que eles prometessem me tirar de casa de vez em quando. Não posso recusar
todos os convites ou começarão a se perguntar onde fui. Mas estou muito feliz
pelo senhor estar aqui porque festas como essa me deixam extraordinariamente
ansiosa e é bom ter um amigo presente.
Um amigo. Que a palavra provocasse instantaneamente, um retumbar
acelerado abaixo de suas costelas era mera prova de sua duplicidade, era uma
farsa.
Ele queria mais do que pintá-la. Ele queria colocar os lábios sobre aquela
graciosa clavícula e fazê-la suspirar. ― Agora vou levá-lo a função ― continuou
ela ― porque a sra. Coutts disse que foi convidado para jantar na casa do
William Playfair. Playfair! O homem que projetou o Surgeon’s Hall! No entanto,
não me convidou para comparecer com o senhor para que eu pudesse conhecê-lo
e a infinidade de cirurgiões influentes nesta cidade que, sem dúvida, participarão
também. Por que não?
― Não é sábio ser visto desnecessariamente juntos na sociedade.
A testa dela franziu. ― Porque ser visto sempre na companhia de jovens
sem conexões sociais impressionantes prejudicaria sua reputação como um gênio
artístico da moda?
― Ao contrário, por ser visto sempre na companhia de um jovem sem
família aparente ou amigos, que está morando na minha casa, encorajaria fofocas
do tipo que não desejo para a senhorita. Fofoca maliciosa que poderia prejudicá-
la.
Observar os pensamentos atravessarem seus olhos era puro prazer.
― A senhorita entende? ― Ele perguntou.
― Entendo. Obrigada. Mas, ― ela disse, voltando abruptamente a ficar
animada, ― estou morrendo de vontade de saber o que o senhor tem desenhado
de mim.
― Está?
― Sim. Claro.
― Mas tem feito questão de manter silêncio quando se senta para posar.
― Não. Estou simplesmente ficando em silêncio. Foi o que me pediu.
Estou respeitando isso. E louca de curiosidade. O que está desenhando? Meu
cotovelo? Minha narina esquerda? A ponta do meu sapato? ― Seus olhos
rolaram para cima. ― Esta onda exasperante que não ficará presa, não importa o
quanto eu tente domá-la?
― A senhorita toda.
Ela o observou por um longo momento.
― Está dizendo isso agora para provar algo ― disse ela. ― Está se
esforçando para provar que pode ser um homem melhor do que eu.
― Não estou. ― Ele estava começando a ver que era de fato, um homem
muito menor do que ela. Sua honestidade e desejo sinceros de sempre fazer o
bem pelos outros, mostravam-lhe o oco em que sua vida se tornara. ― Depois
que me proclamou por desenhá-la em partes, comecei a desenhar o todo. Não
sou totalmente irrecuperável, senhorita Shaw. ― Pelo contrário, um canalha do
pior tipo. Estava desenhando-a toda, porque a mulher curiosa, ambiciosa,
inteligente e com humor, havia saído de seu estúdio, deixando uma concha. Ao
desenhar a totalidade dela, estava balançando diante de si mesmo o prazer que
ele sabia que não deveria ter.
― Não discuti com o senhor ― ela disse. ― Não mais do que o senhor me
questionou, pelo menos. Mas eu gostaria de ver o desen... – Oh! ― Seu olhar
assustado estava na porta. Agarrando seu braço, ela posicionou seu corpo atrás
dele. ― Ah, o senhor e a senhorita Plath. Não quero vê-los. Me esconda.
Do outro lado da sala, um jovem e uma mulher saudaram seus anfitriões.
Irmão e irmã por sua aparência, eles estavam elegantemente vestidos e
obviamente populares: quando entraram, várias pessoas imediatamente se
aproximaram deles.
― Por que não quer vê-los? ― Ele disse por cima do ombro, sabendo que
deveria dizer a ela para soltá-lo, mas totalmente incapaz de formar as palavras.
Ter as mãos dela sobre ele era sua fantasia todo dia. Melhor, toda hora.
― Porque ele é o assistente do meu professor de anatomia e me viu várias
vezes como Joseph Smart, mas não me reconheceu. De modo nenhum! Pode
acreditar nisso? É um salafrário.
― A jovem companhia masculina que tem tido, está influenciando no seu
vocabulário, ao que parece.
― Além disso, eles são terríveis. Os Plaths, quero dizer. ― Seu aperto era
tão forte em torno de seu cotovelo que ele podia sentir a impressão de cada um
dos dedos dela. ― Quando tentei ser amigável com a Srta. Plath, ela e suas
amigas me esnobaram. Então ele me encurralou em um lugar isolado e enfiou a
língua na minha garganta. Ele é uma cobra. Foi noje...
Ziyaeddin se afastou dela.
― O que está... ― Ela o circulou e bloqueou seu caminho. ― O que está
fazendo? ― Ela sussurrou.
― Indo dizer ao Sr. Plath que ele deve colocar suas contas em ordem
porque amanhã ao amanhecer uma bala vai passar a residir entre os olhos dele.
― O quê? ― Ela se inclinou e segurou seu antebraço novamente, como se
fosse perfeitamente aceitável fazer isso em uma festa, cercada por outros
convidados, vários dos quais estavam agora observando-os. ― Está louco? Não
vai chamá-lo e desafiá-lo.
Ele puxou o braço. ― Afaste-se.
― Não. E os seus esforços para não chamar a atenção para que não me
reconheça?
― Não a senhorita. Sim à Joseph Smart. Agora, senhorita Shaw...
Ela o agarrou novamente. ― Lutarei com o senhor no chão para impedi-lo
de falar com ele ― ela sussurrou com força. ― Sei que o senhor é mais alto e
mais musculoso do que eu. Inteiramente. Mas sou mais forte do que aparento e
está em desvantagem em termos de equilíbrio nessa perna estúpida. Então, se
quiser que eu faça uma cena aqui com o senhor agora, vá em frente e tente se
aproximar dele.
A imagem dela lutando com ele no chão parecia muito maior que sua maior
fantasia. Ele soltou seu braço dela mais uma vez.
― E nem pense em enviar um desafio a ele também ― ela avisou.
― Eu não estava considerando isso. ― Em vez disso, esperaria até que ela
partisse para fazê-lo.
― Os homens são irracionais. E se ele escolhesse espadas em vez de
pistolas?
― Então eu diria a ele que o espaço entre suas costelas logo será o lar da
ponta de uma lâmina. ― Ele teve que sorrir.
Ela recuou. ― Não ia realmente desafiá-lo, ia?
Ele ainda iria. ― Não?
― Eu não sei. Mas, na verdade, tenho uma pergunta para o senhor. Uma
pergunta não relacionada ao que gostaria de fazer.
― Outra?
― Sim. E não, não é de forma alguma semelhante à última pergunta que lhe
fiz. Pedido, quero dizer. Então, talvez possa deixar de lado sua artilharia e voltar
sua atenção para assuntos mais produtivos. Deus do céu, os homens são
beligerantes. Essa é uma qualidade de masculinidade que eu nunca adotarei.
Uma batalha de inteligência, com certeza ― ela admitiu com um encolher de
ombros.
Do outro lado da sala, o Sr. Plath estava agora observando-os. Seu olhar
deslizou para baixo, ao longo do comprimento da bengala, e seu lábio se curvou.
Uma onda de raiva quente e aguda paralisou Ziyaeddin.
Impotente.
Ele era impotente ― não como Dallis havia sugerido semanas antes, mas de
todas as maneiras que importavam, como estivera no convés anos antes, como
continuava a ser na questão de sua irmã e no bem-estar do seu povo, e agora
mesmo como um defensor dessa mulher inteligente e forte que não precisava de
campeão, mas cujo campeão ele queria ser.
― O que deseja me perguntar? ― Ele disse.
― O que é isso? ― Ela disse em seu lugar. ― O senhor parece ... não
parece ... o senhor.
Ele mal sabia quem ele era agora. Não era um príncipe. Não era um homem
completo. Um pintor de cotovelos, narinas e sapatos. ― Está com raiva ― ela
disse.
― Está realmente zangado, não é? Neste minuto. Não como estava com
raiva de mim na rua. Por que está ... Por causa do que eu disse sobre o seu
equilíbrio?
― Não. Qual é a sua pergunta?
― O senhor não está bem agora. Quer dizer, está tão bonito e elegante
como sempre. Mas posso ver que algo está errado.
Plath desviou o olhar deles, mas Ziyaeddin não conseguiu abrir os dentes.
― Estou bem.
― Não pode mentir para mim. Sou treinada para perceber quando algo está
errado com uma pessoa. Nós devemos ir para casa agora.
― Eu ficaria feliz em levá-la para casa. Mas nós, Srta. Shaw, não estamos
aqui nesta festa juntos.
Ela piscou.
Então, como se ela estivesse trazendo-o para o foco de seus olhos, brotou
abruptamente, na boca de seu estômago, forte e profundo em seu peito, a
consciência do que ele sentia.
Ele queria estar em uma festa junto com ela - estar em qualquer lugar com
ela. Ele queria Elizabeth Shaw em seus braços. Ele queria que o mundo soubesse
que essa mulher brilhante, ambiciosa e escandalosamente corajosa pertencia a
ele.
― Quão certo está ― ela disse, hesitando nas palavras. ― Agora, mestre
químico, diga-me seus pensamentos sobre os seguintes problemas...
― Libby, que bom vê-la falando com o senhor Kent. ― Lady Constance
Sterling apareceu no braço do marido. ― Boa noite senhor.
― Milady. ― Ziyaeddin fez uma reverência.
O ouro de seu cabelo era como a luz do sol de verão e sua pele creme de
pêssego. Seus movimentos eram graciosos, sua forma voluptuosa. Ela era um
retrato de glória arredondada, tudo isso ornamentado em riqueza e estilo. Com
essa mulher como sua única companheira de infância, não era de admirar que
Elizabeth Shaw não pudesse ver seu próprio apelo.
Ele acenou para o marido de Constance. Saint Sterling não era nem
aristocrata nem político, e sim um espadachim profissional. Ao longo de dois
anos de lições, Saint ensinou Ziyaeddin a usar sua perda a seu favor quando
estava lutando.
― Eu não sabia que se conheciam ― disse Constance.
― Nós nos encontramos em Haiknayes uma vez ― ela respondeu tão
suavemente como se não estivesse morando em sua casa agora. Quando
necessário, ela era uma boa atriz.
― Sim, é claro ― disse Constance, seu olhar se deslocando lentamente
entre eles. ― Deveria ter adivinhado. ― Sua leitura foi muito aguda.
― Se me der licença, senhoras, Sterling ― ele disse com o ar lânguido de
um poeta entediado que adorava em festas, uma atitude que sugeria que, embora
ele gostasse da companhia atual, a inspiração o chamava e ele deveria prestar
atenção. ― Devo me retirar.
― Está indo embora? ― O olhar de Elizabeth disparou para Plath. ―
Agora?
― Foi um prazer. ― Ele se moveu em direção à porta. Ela o seguiu.
― Não deve desafiá-lo ― ela disse.
― Eu não pretendo. ― Não esta noite.
― Então por que se apressa a sair, se não para desafiá-lo escondido
enquanto estou falando com os outros?
― Não se esconde um desafio.
― Alguém poderia tentar esconder um desafio de uma mulher que não o
aprova.
― Lembre-se, senhorita Shaw, pelo que me contou, Lady Constance a leva
a festas com a esperança de descobrir um homem cuja companhia possa
suportar.
― Oh. Estávamos conversando por vários minutos, e agora o estou
seguindo até a porta. Está correto, claro. Constance começará a investigar.
― Ela parece ter a mesma mente inquisitiva que sua irmã. ― Era
perfeitamente tolo que ele sentisse orgulho em dizer isso.
― Vá então. Mas devo ter sua promessa de que não desafiará o Sr. Plath,
esta noite ou nunca.
― Se pedir, güzel kiz, lhe darei minha promessa.
― Isso não foi uma promessa. Foi uma declaração de sua disposição em
fazer uma promessa se eu pedisse, o que não fiz. Eu exigi isso.
― É inteligente demais para minhas artimanhas transparentes ― ele disse.
― Eu sou. ― Seus lábios estavam comprimidos. Ainda assim, eles eram
uma tentação. Cada pedaço dela era uma tentação.
― Dou-lhe minha palavra, São Jorge. ― Ele se curvou.
― São Jorge? Ah, claro. Quando me viu debaixo daquela estátua de São
Jorge na biblioteca de Haiknayes. Mas disse que eu parecia um anjo aos pés do
triunfante Lúcifer.
― A senhorita lembra.
― Tenho uma memória extraordinariamente boa.
― Também se lembra que corrigiu meu catecismo?
― Eu o lembrei que Lúcifer de fato perdeu a batalha. No entanto, me disse
que ele conquistou um reino próprio no final ― disse ela pensativa agora. ― O
senhor é cristão? Ou é muçulmano?
― Não sou nenhum dos dois. ― Não mais. Não desde que o mar havia
tomado sua fé. ― Nem cristão, nem muçulmano, “nem judeu, nem grego, nem
escravo, nem livre”.
― Ha. Esse verso da Bíblia continua “nem macho, nem fêmea”. Como é
inteligente, senhor. ― Seu tom era seco. ― E bem versado nas Escrituras
Cristãs.
― Quando em Roma . . .
― Se faz como os romanos, como diz o ditado, suponho. ― Ela ofereceu
um pequeno sorriso. Estava satisfeita agora e era tudo o que ele desejava, dar
prazer a ela, mesmo um prazer tão humilde.
Mas ele não havia aprendido seu catecismo cristão em Roma.
Pelo contrário, no Egito.
Durante aqueles anos no exílio, jamais imaginara, nem remotamente, esse
futuro. Um futuro em que uma jovem com lábios que o enlouqueciam, o fitaria
com tanto prazer e tantas perguntas no azul-mediterrâneo de seus olhos.
― Tem outra pergunta para mim? Oh mulher que triunfa sobre dragões! Ou
posso finalmente sair?
― É uma questão importante, na verdade. Mas deve esperar porque agora
está sendo ridículo.
― O que um homem mais deseja ouvir. ― Ele não pôde resistir à
oportunidade de tocá-la. Pegou sua mão, curvou-se e levou-a aos lábios. ― Boa
noite, senhorita Shaw.
Ela permitiu que sua mão descansasse na dele.
― Boa noite, Sr. quem quer que seja ― ela terminou com uma voz incerta -
uma voz totalmente inadequada para seu personagem. Dentro dos olhos azuis
estava o amanhecer, o meio dia e o anoitecer de uma só vez, uma plenitude de
emoção que fez a íris brilhar como estrelas.
Puxando a mão, ela girou e desapareceu entre os convidados.
Ele foi para casa.
E criou uma obra de arte.

― LEVANTOU ANTES DO amanhecer para o seu duelo? ― Disse ela,


reajustando sua posição no banco. Com a nitidez da manhã do início de
dezembro, a luz do Norte fez o estúdio parecer especialmente limpo e
organizado. Ele também parecia particularmente sóbrio hoje, vestido com calças
pretas e um casaco violeta tão escuro que era quase ébano.
Ele não respondeu.
― Suponho que todos nós vamos ler sobre isso no jornal amanhã ― ela
disse. ― ”Turco misterioso, mata canalha por insulto à senhora que não merece
defesa”.
Ele continuou trabalhando em silêncio.
― Recusa a isca ― ela disse. ― Eu pretendia que respondesse com alguma
significativa como: “Todas as mulheres merecem defesa, mesmo aquelas que se
vestem com calças”. Obviamente, não é o tipo de homem que faz belos
discursos, mas não toma medidas. Em vez disso, é profundamente galante, um
homem que realmente chama outro homem para um duelo por um pequeno
crime feito a uma mulher, a menos, é claro, que ele prometa não fazê-lo. Meus
cumprimentos.
Outro minuto se passou, no qual o único som era o de um único pássaro
tagarelando na árvore além da janela, nem mesmo o arranhão habitual de seu
lápis sobre o papel. Hoje, pela primeira vez desde que ela começou a posar para
ele, ele estava pintando.
― Trabalhou a noite toda? Eu vi luz debaixo da sua porta antes de subir às
duas horas.
Mais silêncio.
― Está obviamente cansado ― ela disse. ― Deveria sentar.
― Silêncio.
― Suspeitei que, se eu lhe desse uma ordem direta, o senhor reclamaria.
― Não reclamei ― ele disse.
― Eu instruí.
Mais cedo, quando entrou, tentou ver a tela no cavalete, mas ele não
permitiu. Ele estava pintando com uma cor marrom enferrujada.
― Se de repente, eu pular e correr ao redor do cavalete para ver a pintura
agora, me impedirá?
― O “silêncio” tem um segundo significado em inglês, um que eu não
aprendi, do tipo “continue falando”?
― Cansado, mas bem-humorado. Interessante.
― Faça a sua pergunta ― ele disse, não muito sorridente. ― A pergunta da
qual me avisou ontem à noite.
― Depois das dissecções de órgãos na aula de anatomia, meu amigo Peter
Pincher ficou doente. O mesmo aconteceu com vários outros estudantes que
trabalhavam em órgãos frescos, que não haviam sido preservados em solução,
mas tinham vindo diretamente do hospital. Todos sofreram horrendas febres.
― Sinto muito que seu amigo esteja doente.
― Obrigado. Como é um químico melhor do que eu ...
― Impossível.
― Muitos cirurgiões são excelentes boticários. Infelizmente, nunca tive o
dom da farmácia. Na verdade, é minha menor proficiência. O Sr. Bridges sempre
aprova os medicamentos que eu recomendo para os pacientes na enfermaria e
preparo excelentes cáusticos. Mas a farmácia é um talento diferente. Ainda estou
impressionada com o sucesso do adesivo que fez para mim. Ontem à noite eu
não precisei aplicar nenhum pó em meu rosto para cobrir manchas ou erupções
cutâneas. Nenhum! É desta forma que o adesivo é bom. Eu nunca teria pensado
nessa combinação de ingredientes. Seu talento natural como químico é muito
melhor que o meu.
― Lave suas mãos.
― Agora? ― Ela inspecionou suas mãos. Suas mãos sempre foram bem
cuidadas, como as de um aristocrata. Isso a inspirou a manter as unhas
especialmente curtas, de modo que a sujeira não pudesse se esconder embaixo
delas e lavar as mãos todas as manhãs ao acordar. ― Tudo bem. ― Ela desceu
do banquinho.
― Agora não. Depois de manusear carne. Esfregue-as bem com sabão,
como se quisesse remover a pele. Suas roupas e cabelos também.
― Esfregar minhas mãos e cabelos? E roupas?
― Na terra em que nasci, homens da medicina lavam com frequência. E
nunca usam as mesmas túnicas dia a dia.
― Eles são todos muito ricos para ter lavadeiras diariamente em suas
casas?
― Eles acreditam que a doença é facilmente transmitida através do toque.
Toque. A palavra tinha um novo significado.
Ele beijou sua mão - os dedos em volta da palma da mão dela - os lábios
dele nos nós dos dedos - uma simples série de toques que agora faziam a palavra
tocar parecer poderosa. Mágica.
Libby nunca acreditara em magia. Um filósofo natural não podia; o mundo
era um lugar de verdades físicas que podiam ser descobertas através de
investigação e experimentação. Mas agora ela entendia a suscetibilidade das
pessoas às noções de magia, a ciência do inexplicável é maravilhosa.
Seus lábios. A mão dela.
Seu ventre estava cheio de confusão de prazer. ― Lavar minhas mãos ―
ela disse.
― Faça seus amigos fazerem o mesmo.
― Nunca falou de sua terra natal. Entendo que não deseja me dizer seu
nome ou localização. Devo aceitar isso, claro.
― Como aceita tudo com entusiasmo ― ele falou pausadamente.
― Pelo menos me falaria sobre ele?
― É verdejante. Há colinas verdes não muito diferentes das montanhas de
Lothian e espetaculares. O mar também. Grandes navios no porto. Magníficas
mesquitas e igrejas, uma sinagoga...
― Igrejas e sinagogas?
― Céus de safira e diamantes. Cavalos, cujos ancestrais levaram os grandes
Khans para a batalha. E um palácio de tamanha beleza e luxo, que o rei George
ficaria vermelho de inveja.
Ele estava dizendo algo a ela. Ela não sabia o que era. Ou talvez ela
estivesse imaginando a hesitação nos golpes do pincel agora.
― Diga-me mais ― ela pediu.
― Naquela terra, há homens de grande aprendizado e mulheres de grande
beleza...― Um suspiro de frustração veio dela. ― E poder.
― Poder ― ela disse. ― As mulheres são poderosas?
― Mulheres bonitas são sempre poderosas.
― Mas há mulheres de grande aprendizado lá também?
― Algumas ― disse ele. ― Lá, como aqui, elas raramente recebem o
devido valor.
Do outro lado da casa, a campainha tocou, imediatamente seguida por
batidas na porta. Uma voz veio abafada da rua.
― Joe Smart! ― Era Pincushion.
Aqui?
A campainha tocou novamente, depois mais batidas. ― Joe! Atende à
porta!
Libby percebeu a curiosidade de seu anfitrião.
― Está esperando um convidado? ― Ele perguntou. ― Um convidado que,
ao que parece, bebeu no domingo de manhã? Homens bons, esses com quem se
relaciona.
― Ele tem vinte anos, dificilmente é um homem. ― Ela deslizou do banco.
― Desde sua doença e perda de peso, a bebida sobe para a cabeça mais
rapidamente. Nós sabemos o que pode causar, é claro. Ela atravessou a sala. ―
Devo acalmá-lo ou ele vai despertar os vizinhos.
― Elizabeth ― ele disse atrás dela, e seu coração batia contra as costelas.
Ele nunca dissera seu nome antes.
Ela olhou de volta para ele.
― Não pode atender a porta. ― Seu olhar deslizou por suas saias,
lentamente. Ele a estudava há três quartos de hora. Mas essa leitura era diferente.
Era íntima.
― Falarei com ele pela porta fechada.― Sua garganta era uma coleção de
seixos. ― Deveria me dizer seu nome verdadeiro.
Ele largou o pincel e passou por ela e saiu do estúdio. Indo atrás dele, ela se
abaixou na sala de estar. Ele abriu a porta da frente assim que o sino soou
novamente.
― Como vai, senhor? Eu sou Peter Pincher, estudo com Joe. ― Sua voz
normalmente nasalada soava estranhamente profunda e formal. ― Ele está em
casa?
― Não no momento.
― Droga. Isto é, perdoe-me, senhor! Eu tenho notícias de Bridges e o
tempo está acabando.
― Não seria melhor que escrevesse uma mensagem?
― Sim, senhor.
Libby correu para a cortina e se acomodou atrás dela.
― Muito decente de sua parte, senhor. Obrigado, senhor ― Pincushion
disse quando entrou na sala. ― Aqui tem uma pena e papel.
Libby ouviu a ponta da bengala atravessar o chão na direção de onde ela se
escondia. Ele devia estar realmente cansado para fazer esse barulho. Então, num
instante, percebeu que ele pretendia que o barulho a avisasse: não havia
nenhuma vela acesa na sala. Ela mergulhou mais fundo atrás da cortina um
momento antes de ele afastá-la para admitir a luz do dia.
― Qualquer amigo de Joseph, é meu amigo ― ele disse muito perto dela.
Pincushion escreveu a nota, agradeceu copiosamente e, finalmente, Libby
ouviu a porta da frente se fechar. Ela entrou no vestíbulo e encontrou a missiva.
― Obrigada por isso ― ela disse ao seu anfitrião. ― Oh! Eu realmente não
gostaria de perder isso. O Sr. Bridges convidou um punhado de estudantes para
participar de um curso de dissecação cirúrgica em seu teatro particular. Seis de
nós só. Ele disse que começaria assim que os corpos para estudo pudessem ser
adquiridos, e será agora, esta noite.
― À noite?
― Não sei por que deveria acontecer à noite, talvez porque o Sr. Bridges
esteja ocupado demais durante o dia. De dia, haveria melhor luz para o nosso
trabalho. Apenas seis alunos. É emocionante! Cada um de nós terá as mãos em
todas as partes do estudo.
― Não lhe disse por que isso está acontecendo em outro local que não o
Surgeons Hall?
― Há muitas faculdades práticas de anatomia e cirurgia em Edimburgo. A
maioria dos anfitriões são mercenários, é claro, vendendo dissecações para os
estudantes para complementar sua renda, desde arrancar dentes e distribuir
drogas. Mas o Sr. Bridges não é um desses.
― Não deve ir.
― Claro que devo. O Sr. Bridges me considera um dos melhores entre os
novos alunos. Não posso recusar este convite. Agora, devo me apressar e entrar
― ela gesticulou para a porta do estúdio ― na sua frente e roubar um vislumbre
de seu trabalho em andamento?
Ele passou por ela. ― Irei acompanhá-la esta noite.
― Eu vivi metade da minha vida nesta cidade ― ela disse, apreciando a
bela largura de seus ombros e a queda de seu casaco sobre as nádegas, e
desejando que tivesse tido a presença de espírito para estudar isso quando ele
estava sem camisa. ― Não tenho medo de estar fora de casa à noite,
especialmente vestido de homem.
― No entanto, vou acompanhá-lo.
― Eu aprecio sua preocupação, mas... ― Suas palavras engasgaram. Na luz
da manhã brilhante, ela se viu no cavalete. Ali. Ele esteve trabalhando nisso até
tarde da noite, depois da conversa na festa.
Ela.
Como Joseph Smart.
Ele a pintara como homem.
Cabelo esticado com óleo, revelando toda a sua testa, a jovem penugem das
suíças que ostentava, um lenço de pescoço bem amarrado no colarinho, um
casaco ao nível dos quadris onde ele se empoleirava em um banquinho, calças
colando em suas coxas e sapatos grandes demais para os tornozelos. Debaixo do
braço, ele segurava uma pilha de livros quase negligentemente, usando-os tão
facilmente quanto uma mulher usava um bracelete. Um único vinco escorregava
de sua testa pelo nariz como um perfurador cirúrgico e seus olhos eram
brilhantes. Havia nele tanto um ar de intensidade como de despreocupação,
como se mesmo em sua confiança, estivesse insatisfeito.
― É apenas a base ― ele disse ao lado dela. ― A cor virá quando secar.
Ela abriu a boca, mas as palavras não vieram.
― Não serei influenciado ― ele disse. ― Irei com a senhorita até o
endereço e esperarei lá com a carruagem até que termine.
― Mas não sei por quantas horas...
― Não adianta discutir, senhorita Shaw. Embora eu preferisse que não
comparecesse, não posso fazer isso trancando-a em seu quarto, não é?
Ela se virou do retrato para ele. ― Eu subiria na janela e desceria pela
parede.
― Não tenho dúvida.
― Em busca dos meus sonhos, me escondi debaixo de assentos de
carruagem, dentro de armários, e uma vez em um museu depois que foi trancado
a noite. Eu sou tenaz.
― Notei isso. Agora venha. Sente-se. Por mais um quarto de hora...
― Eu sou sua.
― Não. Pertence a si mesma. E eu não quereria de outra maneira. Agora
sente-se.
Ela foi até o banquinho e não disse mais nada pelo resto da hora.
Capítulo 14

A Donzela

Archie estava esperando por ela no beco coberto. ― Tem a taxa?


Com os cinco guinéus apertados no bolso, Libby assentiu e entraram no
prédio.
Dezenas de velas iluminavam uma sala octogonal. Duas fileiras de bancos
erguiam-se do chão, vazios agora. No centro, em cima de uma mesa e coberto
com um pano fresco, o corpo para estudo aguardava. À esquerda do Sr. Bridges
estava George, sua tez doentia e Pincushion. À direita do cirurgião estava
Maxwell Chedham e dois outros estudantes, todos vestindo aventais sobre seus
casacos. Em outra mesa, instrumentos cirúrgicos brilhavam convidativamente:
facas, lancetas, serras, cautérios, trefinas, perfurantes, elevadores, sondas,
lenticulares, raspadores, pinças, cateteres, vasos de concha, grampos, ganchos,
agulhas e similares.
― Sr. Chedham ― disse Bridges. ― Descubra o corpo de estudo. ―
Chedham recuou o linho. O sujeito era de idade mediana, suas articulações e
pele revelando décadas de trabalho e pobreza. Libby tinha visto pior com o pai
dela. No entanto, ficou boquiaberta.
― Este homem morreu há apenas algumas horas ― ela exclamou. Até
mesmo os cadáveres de criminosos que pereceram na prisão vinham para as
mesas de dissecação dos alunos, mais velhos do que isso. Os cadáveres frescos
eram somente um privilégio dos cirurgiões mestres.
― Isso é para os senhores determinarem ― disse o Sr. Bridges. ― Antes do
nascer do sol, irão dissecá-lo completamente, sistema a sistema, enquanto
preservam os órgãos para um estudo mais aprofundado. Sr. Smart, suas incisões
são excepcionais. Começará esta noite.
O olhar de Chedham foi duro. George estava pálido e ofegante. Archie
estava sorrindo. O suor escorria pelo vale dos seios de Libby.
Colocando tudo fora de sua mente, ela pegou um bisturi.
ELA TROPEÇOU QUANDO subiu na carruagem. Ziyaeddin agarrou seu
braço e ela desabou no banco em frente a ele, seus olhos lacrimejando.
― Não partiu. ― Ela lambeu os lábios. Eles estavam secos, a pele corada
apesar do frio da aurora. ― Esperou aqui a noite toda?
― Sim. ― Ele bateu no teto e a carruagem foi em frente.
― Aquilo foi ... foi fantástico. Nós dissecamos o sujeito da pele à medula,
nós seis, sem qualquer ajuda. O Sr. Bridges não fez nada além de instruir.
Enfiando a mão no casaco, ele puxou um frasco e envolveu a mão dela em
torno dele. Ela bebeu profundamente. Observando seus olhos exaustos imbuídos
de êxtase suave, e a língua rosa lambendo o vinho dos lábios brilhantes, ele
sentiu como se estivesse vendo o prazer dela. Ele podia assistir para sempre o
simples ato dessa mulher bebendo.
Então ela passou a manga pela boca e um grande soluço anunciou.
― Obrigada! Isso tinha um gosto espetacular. A câmara cirúrgica estava
sufocante.
Ele cruzou os braços e tentou recostar-se nas almofadas. ― Está com um
cheiro deplorável.
― Ninguém pediu para sentir meu cheiro. Mas, de fato, me sinto infeliz.
Miserável e magnífica. Eu entendo muito mais agora. ― Suas palavras
arrastaram um pouco. ― Ser capaz de estudar tudo de uma vez, com tal
profundidade e detalhe, e logo após a morte - foi revelador. O corpo pereceu há
apenas algumas horas! Essa foi a razão da pressa do Sr. Bridges em nos alertar
hoje. Ele desejou que tivéssemos a experiência de trabalhar com um corpo que
ainda não havia esfriado totalmente, o que está mais próximo de trabalhar em um
paciente vivo. Foi extraordinário.
A carruagem parou. A rua estava vazia e ele desceu e ofereceu a mão, mas
ela pulou na calçada sem ajuda.
Ele pagou o cocheiro e subiu os degraus atrás dela. Ela estava se movendo
mais devagar do que ele imaginara ser possível. Mas depois de duas noites sem
dormir, ele mal conseguiria manter os olhos abertos, se não fosse pela dor.
― A Sra. Coutts chegará em breve... Ele se virou para trancar a porta e a
encontrou caída na cadeira do lacaio. Olhos fechados e lábios preguiçosos, ela
dormiu.
― Acorde, Joseph ― ele disse, retirando o boné de seus cachos úmidos e
alisando a mão ao redor do rosto. O cabelo dela deslizando por entre os dedos
dele era de seda e encheu-o com o tipo mais insano de necessidade. ― Sr. Smart.
― Passando a ponta de seu polegar sobre sua bochecha e a linha limpa de sua
mandíbula, ele a acariciou para que acordasse. Pela graça de Alá, ela era tão
suave. ― Elizabeth.
Seus olhos se abriram. ― Eu dormi?
― Sim dormiu. ― Ele acariciou a pele pálida de sua têmpora.
― Estou extraordinariamente cansada ― ela disse. ― E o senhor está me
tocando.
― Venha agora ― disse ele, segurando-a pelo braço e ajudando-a a ficar de
pé.
― Não sei se conseguirei dar dois passos ― ela murmurou, arrastando os
pés em direção à escada.
― Eu a carregaria, mas sabemos que isso não é uma opção, infelizmente.
― E suspeito que também não dormiu. Mas não precisa se preocupar. Está
tudo às claras ― ela disse, subindo como um boi arrastando o arado pela lama.
― Além disso, o senhor não deveria me levar a lugar nenhum, mesmo que
pudesse, pois não somos esse tipo de colegas de casa, somos? Eu sou Joseph
Smart ― ela murmurou ― que faz uma incisão excepcional e futura cirurgiã. ―
Ela desapareceu em seu quarto.
Ele foi até a cozinha, colocou a panela maior no fogão, acendeu o fogo e
começou a bombear água, nunca pensara seriamente em contratar empregados
24 horas por dia, mas era certo de que não poderia - não enquanto Joseph Smart
morasse em sua casa.
Quando a governanta chegou, ele a enviou com os primeiros baldes de água
quente. Então ele bombeou mais dois, colocou-os para aquecer e retirou-se para
seus aposentos. No entanto, não para dormir.
Ele não conhecia Lewiston Bridges. Se ela passaria noites inteiras no centro
cirúrgico do cirurgião, ele deveria assegurar-se do caráter do homem.
Ela não queria um paladino, mas ele a serviria dessa maneira, se necessário.
Mergulhando a pena em tinta, começou a escrever cartas.

LIBBY MAL CONSEGUIA enxergar em torno dos atormentados vasos


sanguíneos em seus olhos. Seu pescoço e ombros doíam por se debruçar sobre a
mesa de dissecação por horas. Seus pés estavam inchados por ficar de pé durante
a noite. E o casaco dela cheirava a açougue.
Mas ela estava feliz.
No entanto, nem o prazer, nem a excitação conseguiam fazê-la manter os
olhos abertos. Uma hora de cochilo exausto enquanto a Sra. Coutts despejava
muita água sobre sua cabeça, não era o mesmo que uma noite de sono
repousante. Ocorreu a ela que o Sr. Bridges havia programado intencionalmente
sua dissecação noturna para provar a capacidade de seus alunos de suportar a
falta de sono. Ela estivera vezes suficiente com o pai em enfermarias depois da
meia-noite, para saber que as madrugadas eram comuns para médicos.
Na enfermaria, atrás do Sr. Bridges, ao lado de Chedham - que também
parecia horrível - ela escreveu copiosas anotações, falou o mínimo possível e
ficou maravilhada com o vigor de seu mentor. Ele havia praticado cirurgias em
campos de batalha, na Espanha e na Bélgica. Agora, na grande sala de cirurgia
no topo da Royal Infirmary, ele operava pacientes e o fazia bem novamente.
Cada vez que ela se sentava no degrau, observando-o realizar uma cirurgia ou ao
lado dele na mesa, sentia-se ainda mais certa de que esse era seu destino.
Embora ela admirasse o brilho científico e cirúrgico de Charles Bell, não
tinha vontade de dar palestras ou escrever livros além de cuidar de pacientes. Só
queria praticar como o senhor Bridges. O Sr. Bell as combinou com o mentor
ideal, depois de conhecê-la apenas alguns dias.
Talvez ele tivesse aconselhado o Sr. Bell: seu colega de casa que parecia
compreendê-la tão bem, mas permanecia tão inflexivelmente distante - exceto
quando acariciava o rosto dela, como se nem ao menos tivesse notado que estava
fazendo isso.
Ela queria mais da mão dele em seu rosto, mais da voz dele falando
suavemente seu nome.
Quando saiu da enfermaria, estava pronta para cair. Caminhando pelo beco
onde costumava se sentar no muro e almoçar, viu Coira com outras duas
mulheres na varanda do bordel.
― Bom dia ― ela disse, dando a Coira a marmita. ― Dormirei até a aula,
então deve comer o almoço inteiro hoje.
― Rapaz, tem um coração tão grande quanto o céu. ― Coira puxou uma
das outras para a frente. ― Joe, esta é Bethany.
― Prazer em conhecê-la, Bethany.
― Senhor ― Bethany murmurou e olhou para o chão, submissa como um
filhote.
Libby estava se acostumando com isso. Como homem, ela era muito jovem
e pequena. No entanto, desde que era Joseph Smart, as mulheres que olhariam
Elizabeth Shaw diretamente nos olhos agora se submetiam a ela.
― Essa é Dallis ― disse Coira com um gesto de desprezo. Descansando
contra o corrimão, Dallis era esbelta como Coira, com olhos sombreados por
longos cílios e os lábios mais exuberantes que Libby já tinha visto. Com um
sorriso de gato naqueles lábios, ela piscou.
― Bethany aqui está esperando. ― Coira colocou a palma da mão sobre o
abdômen plano de sua amiga. ― Pelo bem da pequenina ela largou a garrafa.
― Uma decisão excelente, Bethany. Eu a elogio.
― Agora ela está se sentindo mal ― disse Coira.
― Como assim, Bethany?
― Eu tenho os tremores, senhor ― Bethany disse como um rato. ― Minha
barriga está toda torcida.
― A dor de cabeça também ― acrescentou Coira.
― Sua dor de estômago pode ser uma combinação da própria gravidez com
o parar repentino com a bebida ― disse Libby. ― O tremor e a dor de cabeça
são provavelmente sinais de que o seu corpo anseia por bebidas.
― Sim, senhor ― murmurou Bethany. Ela parecia culpada. A suspeita
formigou em Libby.
― Não há uma mulher mais velha, mãe ou procuradora, quem possa lhe dar
conselhos sobre isso?
― Sim, Joe ― disse Coira, com a sobrancelha baixa.
― Oh. Então, o que deseja de mim não é um conselho, mas um láudano
para acalmar os tremores e acalmar a cabeça. Estou correto?
Bethany assentiu.
― Sinto muito, mas não posso lhe dar láudano.
― Claro que você não pode. ― Os olhos felinos de Dallis se estreitaram.
Ao lado de seu pai, Libby tinha visto pessoas que haviam se acostumado
demais ao láudano, e isso estava longe de ser bonito. Por esse motivo, seu pai
raramente administrava-o.
― Para o seu estômago, Bethany, mastigue gengibre fresco. Também
recomendo um chá feito de Hypericum perforatum. Beba muita água fresca. Chá
de raiz de alcaçuz seria calmante também. Eu posso te fornecer isso. Também
deve dormir o suficiente, especialmente quando o seu relógio meridiano espera
isso.
― Seu o que?
― O horário interno natural do corpo. Nos tempos antigos... não importa.
Apenas tenha a certeza de dormir durante a noite toda, Bethany.
Bethany baixou o olhar. Coira ergueu as sobrancelhas.
Dallis riu com escárnio.
Calor subiu nas bochechas de Libby.
Esqueça que é uma donzela e, em vez disso, seja apenas um cirurgião.
― Durma à noite o quanto for capaz ― ela emendou. ― Trarei as ervas
amanhã.
Ela agora não tinha mais tempo para descansar, foi direto para a aula. Ouviu
apenas metade do discurso do Dr. Jones sobre malformações da coluna, que já
podia recitar de memória, e em vez disso esboçou uma carta para a duquesa de
Loch Irvine. Amarantha já havia servido em um hospital para indigentes e sua
tutora era uma mulher. Ela teria ideias para remédios naturais que fossem
seguros para Bethany e o bebê, e que Libby confiaria mais do que qualquer coisa
que o boticário em Leith pudesse recomendar.
Ela escreveu um bilhete para Alice também. Dado o passado de Alice, ela
deve saber de remédios eficazes para os desconfortos da gravidez que seriam
compartilhados entre as irmãs do comércio. Talvez ela conhecesse algumas
parteiras locais as quais, Libby pudesse consultar.
Seu pai nunca lhe pedira conselho sobre questões exclusivamente
femininas, apesar de suas muitas pacientes mulheres. Que ela soubesse, ele
nunca consultou uma parteira feminina. Nem uma vez.
Dobrou as cartas para Amarantha e Alice e sintonizou suas orelhas
novamente para a palestra do Dr. Jones.

QUANDO CHEGOU AO seu estúdio no domingo, o relógio da sala de


visitas soando dez horas, ele a viu pela primeira vez desde o amanhecer da
segunda-feira anterior. Nos dias que se seguiram, ele dissera a si mesmo que era
o melhor, mas suspeitava que tivesse ficado um pouco louco. A tentação de
procurá-la fora tal que ele havia assumido outro trabalho, que exigiria que ele
passasse todos os dias durante semanas na casa do cliente. O resultado foi dois
retratos a serem concluídos em tempo insuficiente.
Agora ele a afastara. Isso era para o melhor.
― Mas...
― Eu disse que não tenho tempo ― ele repetiu e finalmente se permitiu
olhar para ela. Ela usava o mesmo vestido que sempre usava para sessões. E
bigodes.
Seus olhos estavam cheios de alegria. ― Encantador ― ele disse.
Ela veio em direção a ele. ― Se pretende me descrever como Joseph Smart,
então eu pretendo ajudá-lo nisso. É o mínimo que posso fazer para agradecer por
seus cuidados no último domingo à noite depois da escola cirúrgica.
Ele fez como se voltasse sua atenção para a tela sob o pincel, sobre a qual,
infelizmente, nem Joseph Smart nem Elizabeth Shaw estavam sentados.
― Isso não é necessário ― ele disse, sentindo a presença dela tão perto
como se sente a chuva: em cada superfície de sua pele e em cada respiração
puxada em seus pulmões.
― Eu gosto disso ― ela disse.
― Do que a senhorita gosta?
― Quando finge não sorrir.
― Fora daqui, ― ele disse, ― e não pense em assombrar essa porta até o
próximo domingo.
Sem mais comentários, ela se foi. Horas depois, o sino tocou. Ele o ignorou.
Pouco tempo depois, seu pensionista apareceu diante dele, desta vez sem
bigodes, varrendo a paz de seu estúdio com a força de um ciclone e chegando
diretamente a ele, seguido de perto pelo porco.
― Não foi isso que eu quis dizer com não assombrar a porta ― ele disse.
― O Sr. Bridges enviou uma mensagem ― ela disse, a missiva ainda
entrelaçada na mão. ― Ele garantiu outro cadáver. Deve haver uma dissecação
hoje à noite.
Ela tinha as mãos mais expressivas, fortes, ágeis e capazes. Ele poderia
passar até meses pintando um quadro dela e se contentar, - se ao menos pudesse
fazê-lo sem imaginá-la tocando-o constantemente. O lugar em seu peito onde ela
o tocara ainda parecia quente.
― Por que está olhando para a nota quando eu acabei de dizer o que ela
diz?
Ele arrastou sua atenção para o rosto dela, mas não aliviou a pressão grossa
sob as costelas ou nas calças. ― No mesmo local?
― Sim. Insistirá em ir de novo?
― A senhorita não veio me informar com o objetivo de que eu o faça?
― Acho que sim. ― Ela virou os olhos para a tela.
― Esse é o Sr. Easterly. Ele é amigo do meu pai. Eu conheço bem a família
dele. Seus filhos mais novos são bestas. Eles costumavam me perseguir pela sala
de estar e puxar meu cabelo. Ah! Eles não seriam capazes disso agora. Eu
deveria ter cortado meu cabelo há muito tempo. Há marcas de lápis lá. ― Ela
apontou. ― Que interessante. Desenhou na tela antes de pintá-la. Sempre faz
isso?
― Eu faço ― então ele acrescentou, imprudentemente. ― Desde o dia em
que a desenhei em Haiknayes.
― Nunca tinha desenhado em uma tela antes daquele dia?
― Eu nunca tinha desenhado um retrato antes daquele dia. ― Ele não
deveria ter dito isto.
Com os olhos arregalados, ela olhou para ele como nenhuma outra mulher
jamais fez, como se ela visse seus ossos e sangue ao invés de todos os aspectos
externos dele.
― O que desenhava antes? ― Ela perguntou. ― Ou pintava?
― A forma humana.
Sua testa se enrugou.
― O corpo ― disse ele.
― O corpo? O corpo sem a cabeça?
― Sem características faciais claras.
― Entendo.
― Apenas, “entendo”? Não sei se fico alarmado com essa brevidade
incomum ou intrigado.
― Não precisa ficar de nenhum dos dois modos, porque eu acabei de
mentir. Eu realmente não entendo. Por que começou a incluir características
faciais claras depois que me desenhou? Em vez disso, talvez seja mais provável
perguntar por que não as incluía antes disso?
― Eu não faço ideia ― ele disse, o que era apenas uma pequena falta de
confiança.
― Não pode ser porque me achou bonita. Pois conheceu Amarantha no
mesmo momento em que me conheceu e ela é bonita enquanto eu não sou. ―
Abruptamente, seus lábios se apertaram juntos.
― O que foi?
― Eu gostaria muito de beijá-lo.
O choque de calor que passou por ele foi diretamente para sua virilha. Ele
voltou sua atenção para a tela e levantou o pincel.
― Vá embora agora ― ele disse.
― Não precisa se alarmar ― ela disse. ― Não pretendo me jogar nos seus
braços. É só que me pergunto como seria.
Ela, ele, ambos. Embora se perguntar não fosse o bastante para fantasiar
adequadamente.
― Pensei que talvez estivesse se perguntando também. Dada a nossa
proximidade nesse momento e naquela noite em que eu estava bêbada, seja
razoável que eu me pergunte. Talvez seja para o senhor também. Muito mais
normal do que qualquer outra coisa sobre esta situação.
― Não há nada de normal na senhorita. É inteiramente única.
― Esse sempre foi meu problema, com certeza. Mas eu...
― Sem mais confissões hoje ― ele disse com uma calma credível,
permitindo-se apenas olhar para baixo, para a bainha de seu vestido, que
certamente era uma espécie de desespero patético. ― A que horas devo chamar o
coche?
― Às sete e meia. O senhor não...
― Farei. Eu irei. Agora vá.
Ela foi fazendo uma pausa, como tantas vezes fazia na porta. ― Eu não
digo a todos os tipos de homens que eu gostaria de beijá-los.
― Para o bem da reputação de Joseph Smart, fico aliviado ao ouvi-lo.
Agora, se não me deixar neste momento, haverá consequências a pagar.
Ela foi fechando a porta atrás dela, o que era incomum para ela.
Deitando o pincel, ele passou as mãos pelo rosto. Isso era uma coisa boa,
essa situação anormal. Boa para ambos. Ele tinha o que desejara com isso. E ela
também.
Logo acabaria de qualquer maneira. O embaixador do Irã na Grã-Bretanha
tinha compartilhado a confiança com o secretário de Relações Exteriores em
Londres, e Canning havia escrito sobre isso para Ziyaeddin: o Irã não suportaria
por muito tempo a reivindicação da Rússia em seus territórios do Norte. A guerra
estava chegando. Se o Xá atacar o Norte primeiro, ou o Czar ao Sul, de qualquer
forma, Ziyaeddin não podia permanecer impotente aqui enquanto Tabir era pego
no meio disso.
Logo ele sairia deste lugar, e essa tentação chegaria ao fim.
Capítulo 15

Todos os Segredos

Os mesmos seis alunos estavam presentes na cirurgia privada, a sala à luz de


velas já estava quente. Na preparação desta noite, Libby não vestiu as
ceroulas. Mas ela não tinha considerado o desconforto da gabardine úmida entre
as pernas sem a camada de linho entre elas.
Que a sensação de umidade em suas coxas abruptamente a fizesse pensar
nas mãos de seu anfitrião em seu rosto, fez passar um pequeno frisson de prazer
através dela.
― Como o Sr. Smart fez um excelente trabalho abrindo a cavidade torácica
antes ― disse Bridges ― ele começará de novo hoje à noite. Sr. Armstrong,
descubra o sujeito.
Archie agarrou o lençol e puxou-o para longe. ― Observações iniciais,
senhores? ― Disse o cirurgião.
― Mulher ― disse Chedham. ― Dezessete ou dezoito.
― Nenhum calo nas mãos e pés ― disse Archie. ― Pele intacta, exceto
cicatrizes leves aqui e ali de feridas leves.
― Ainda em rigor mortis ― disse Pincushion.
Os pulmões de Libby estavam entupidos. O sujeito na mesa era a amiga de
Coira, Bethany.
― Como... ― Ela engoliu de volta a náusea. ― Quando ela morreu?
― Sr. Chedham, pode avaliar o assunto ― disse o cirurgião.
Libby fechou os olhos. Ela não podia assistir. ― Eu estimo três horas atrás
― disse Chedham.
Abrindo os olhos, Libby olhou para o abdômen de Bethany - no abdômen
do sujeito. Sua cabeça girou.
― Sr. Smart?
Seu nome veio para ela como se fosse através de um túnel. ― Sr. Smart,
está conosco?
― Sim, doutor ― ela forçou através de seus lábios.
― Faça a incisão.
Ela pegou o bisturi. Mas o ar não encheria seus pulmões e o suor escorria
pelos lados de seu rosto.
― Eu acredito que estou doente, senhor ― disse ela.
― Seguindo o exemplo do Allan? ― Chedham murmurou.
― Isso é suficiente, Sr. Chedham ― disse Bridges.
― Sr. Smart, faça a incisão.
― Eu imploro seu perdão, senhor. ― Seus dedos estavam escorregadios
sobre o cabo do bisturi. ― Eu imploro seu perdão. ― Ela soltou o instrumento.
Girando, saiu da sala e correu para a porta.
― Joe ― Archie veio atrás dela. ― O que no....
― Ficarei bem. Volte para dentro ou Bridges ficará descontente.
Libby caiu na rua ofegante e desejou que seus pensamentos parassem de
girar. Na extremidade do beco, a porta da carruagem se abriu. Ela tropeçou em
direção a ela.
Ele não fez perguntas, apenas instruiu o cocheiro a ir e fechou a porta.
A lua estava escura e a noite plena, as luzes apenas iluminavam a
carruagem enquanto ela se aproximava.
― Nunca fiquei tão envergonhada ― ela sussurrou.
― Sentiu náusea?
Não. Essa doença era muito mais profunda que a náusea. Ela pressionou as
palmas das mãos frias contra as bochechas. Seu rosto também estava úmido.
Quando ele tirou o sobretudo e ofereceu a ela, ela puxou-o até o queixo.
― Eu a conhecia ― disse ela. ― O sujeito. Eu a conheci há apenas alguns
dias. Seu nome era Bethany. Ela me pediu ajuda. Estava se sentindo mal. Ela
estava grávida.
O estrondo das rodas da carruagem sobre os paralelepípedos preencheu o
silêncio.
― É comum que pessoas pobres vendam os corpos de seus familiares
falecidos para escolas cirúrgicas. Mas isso nunca aconteceu comigo antes. Não
sei o que me superou. O Sr. Bridges agora vai me achar um idiota tonto. Um
incompetente. Ele vai me ejetar de sua cirurgia. Ele pode até se recusar a me
manter como seu aprendiz. Chedham não tem problemas com isso.
― O Sr. Chedham conhecia a mulher também?
― Não. Eu não sei. ― Ela baixou o rosto para as palmas das mãos. ― O
que aconteceu comigo? Eu vi as piores doenças ao lado do meu pai. Eu tratei
pacientes com doenças e ferimentos horríveis. Não sei o que aconteceu comigo.
Eu falhei. Sou fraca ― ela sussurrou.
― É humana.
― Não posso ser humana dessa maneira. Se não posso trabalhar em um
sujeito que já conheci antes, como conseguirei isso?
― A senhorita não é seu pai estudando os mortos para resolver crimes. É
uma curadora de pessoas vivas. Esse é o seu chamado. Ter acontecido isso esta
noite não significa que seja um fracasso. Isso significa que é uma pessoa de
compaixão.
― Não sabe tudo sobre mim! Mal me conhece.
― Sei disso desde o dia em que ofereceu uma cara garrafa de óleo para um
moleque, esquecendo tudo naquele momento, exceto a necessidade de curar.
A carruagem parou. Ela entrou e foi diretamente para seu quarto.
Arrastando as pontas dos dedos sobre a pintura, onde os meninos corriam pelo
mercado, e sentindo o alívio imediato que esse ritual de tocar a imagem trazia a
ela, arrancou o chapéu e a gravata. Então removeu as suíças e despiu-se.
Olhando para os disfarces de sua masculinidade descartados, sentiu o tremor
alcançá-la, e seus pensamentos giraram.
Deveria voltar para a cirurgia e pedir desculpas ao Sr. Bridges. Deveria
limpar o sorriso do rosto de Chedham. E se eles cometessem erros hoje à noite
em sua ausência? E se eles tratassem o corpo sem cuidado, sem respeito,
friamente?
Não. O Sr. Bridges ensinou-os a respeitar sempre um sujeito. Ainda assim,
ela deveria ter permanecido. Deveria ter dito a verdade. Agora ele duvidaria para
sempre de sua fortaleza. E suas anotações seriam incompletas.
Ela falhou com Joseph Smart esta noite.
Mas não falhara com Bethany. Não a Bethany viva. Coira dissera que,
desde que Bethany havia começado a beber o chá suave e a mastigar o gengibre,
parecia ter melhorado.
Amanhã ela questionaria Archie sobre a causa da morte de Beth. Ela iria
visitar Coira. Aprenderia como uma jovem de boa saúde havia morrido de
repente. Ela se redimiria por si mesma e por Bethany.

― EU FAREI UMA prótese para o senhor.


Foram as primeiras palavras que falara com ele desde a noite de domingo
na carruagem. Agora, quando entrou na cozinha, o porco arrastando atrás dela,
ela parecia a mesma mulher indomável de sempre.
Ela usava um vestido azul claro que se ajustava perfeitamente a seus
braços, seios e cintura, incendiando-se sobre os quadris para criar uma silhueta
requintada.
― Por que está olhando para a minha cintura? ― Ela perguntou.
― Isso é novo ― foi tudo o que ele conseguiu dizer.
― Oh. Outro vestido de Constance. Alice diz que Constance notará se não
for usado. Mas quão incomum é viver com um homem que percebe meus
vestidos. Embora, naturalmente, eu entenda a razão para isso.
Ele duvidou disso.
― Deve estar trabalhando no retrato do sombrio Sr. Cook. Tem tinta preta
no seu queixo.
― O que quer? ― Ele voltou sua atenção a xícara que estava enchendo.
― Não somos amigáveis hoje? Dormiu mal, não é? Na verdade, eu sei que
sim. Eu o ouvi acordar gritando nas primeiras horas da madrugada. Me assustou
até a morte.
― Me parece viva o suficiente agora. ― Ele largou o bule de chá e pegou o
pires e xícara.
― Ouvi o senhor gritar em seu sono antes, quando estou estudando até
tarde, e é por isso que sei que isso é dor crônica e agora insistirei que aceite
remédios para isso, incluindo uma prótese de verdade, que inclui dobradiças ao
redor do joelho e tornozelo e outras provisões que permitam que o pé substituto
imite o movimento de um pé real.
― Deixe-me em paz. ― Colocando a bengala de lado, sentou-se à mesa
feita de uma grande placa de madeira nodosa antiga. Assegurado de sua
ausência, ficou em casa para colocar o esmalte final em uma obra. Ela não
deveria ter retornado por horas ainda.
Ela pegou uma lata de biscoitos e sentou levemente na cadeira em frente a
ele. Na maioria das vezes, mal se sentava, até posando no banquinho de seu
estúdio durante uma hora inteira, como um pássaro preparado para voar de novo.
― Não sei se notou ― ela disse, ― mas seu temperamento está ruim hoje.
Provavelmente por falta de sono profundo. O corpo se cura durante o sono. Eu
sei disso, a propósito, através da sabedoria do meu pai e também dos livros.
― Aha. ― A xícara de chá na palma da mão estava quente. Mas não tão
quente quanto a pele dela quando ele se permitiu tocá-la insensatamente. ―
Quais livros?
― Tenho lido sobre o remédio do Oriente. E história. Turca e persa,
especialmente.
― Tem? ― Ele disse suavemente porque, claramente, ela queria que ele
mostrasse surpresa.
― Sim. Sabia que Galeno - ele é o médico cuja influência na medicina
ocidental foi maior do que de todos os outros médicos combinados por séculos -
nasceu em Pergamon? Na época, fazia parte da Grécia, mas também esteve
dentro do Império Persa. Está agora na Turquia. Embora, é claro, o grego Paulus
Aegineta fosse, pelo menos, tão celebrado quanto o cirurgião, e extremamente
influente também. De qualquer forma, estou aprendendo bastante. Paulus
Aegineta, a propósito, foi eclipsado apenas por Albucacis. Ou seja, seu nome
completo era Abū al-Qāsim Khalaf ibn al-’Abbās al-Zahrāwī. Eu não sei se
estou pronunciando isso corretamente.
― Na maior parte.
― Então sabe árabe.
― Eu sei.
― Interessante. De qualquer forma, al-Zahrāwī é comumente conhecido em
textos europeus e britânicos como Albucasis. Ele era um médico muçulmano do
século X do al-Andalus, a terra que hoje é o sul da Espanha. Ele é amplamente
considerado o pai da cirurgia moderna. Entre seus muitos avanços na ciência
médica e tratamento, ele inventou centenas de ferramentas cirúrgicas que usamos
agora. Também enfatizou a importância de uma relação positiva entre médico e
paciente. Ele escreveu sobre outros assuntos também - compostos de drogas,
pílulas, pomadas, emplastros e afins, e anatomia, é claro. Meu interesse
naturalmente tende a seus escritos sobre cirurgia.
― Está olhando para mim de forma significativa.
― Estou.
― No entanto, o significado particular disso me escapa.
― Pergunte-me por que sou a senhorita Shaw esta tarde, quando é quarta-
feira e eu deveria estar na palestra ― ela disse, pegando um biscoito entre dois
dedos ágeis e mordendo-o com prazer enérgico, como fazia quase tudo. E como
com quase tudo que ela fazia, vendo isso, ele ficou tenso.
― Por que é a senhorita Shaw hoje, quando é quarta-feira e deveria estar na
palestra? ― Por piedade, ele até parecia excitado.
― O Dr. Jones teve um resfriado miserável e nos deu um feriado repentino.
Aproveitei a oportunidade para visitar um jovem cirurgião que conhece meu pai,
James Syme. Ele já é famoso por causa da enorme amputação de quadril que ele
realizou há três anos. Ele é excepcionalmente inteligente com próteses.
Infelizmente, conversei com ele longamente no pouco tempo que tive, meses
atrás, quando ele e sua esposa convidaram papai e eu para jantar. Gostaria de
poder consultá-lo como Joseph Smart, mas temo que ele perceba o interesse
particular de Joseph pelo mesmo assunto e me reconheça. Então o visitei hoje
como Elizabeth Shaw e fiquei novamente impressionada com a seriedade com
que ele considerou minhas perguntas. Eu acredito que eu poderia facilmente
continuar a consultá-lo e ele iria me receber. Decidi fazer o meu projeto de
candidatura para o diploma, entende.
― O que será? ― Ele disse cautelosamente. ― Eu?
Seus olhos brilharam. ― Claro que não. Apenas a nova adição do senhor.
Não sei por que se contenta com esse apoio totalmente inadequado quando
existem próteses modernas e maravilhosamente funcionais que poderia adotar.
Seja qual for o motivo de sua teimosia, no entanto, não o deixarei continuar.
― Isso não é divertido.
― Não quero que seja divertido. Quero ajudá-lo e também levar meus
professores ao êxtase. ― Ela mastigou o biscoito, sorrindo um pouco.
Aparentemente, a experiência da dissecação de domingo não a tinha
intimidado.
Claro que não.
― Parece confiante no êxito ― ele disse.
― Criando para o senhor a prótese perfeita? De fato, eu estou. Sou
meticulosa, o que é ideal quando se trabalha com mecânica.
― Sucesso em seu programa de estudo ― esclareceu ele.
― Se ninguém descobrir que sou uma mulher ― ela disse em torno de um
bocado de biscoito. De repente, parou de mastigar, o biscoito em pleno ar entre
as pontas dos dedos. ― Obrigada por suas palavras na outra noite. Estava
correto, é claro.
― Claro? ― Lentamente, ele cruzou os braços. ― Esta é uma mudança
refrescante.
Ela sorriu e quebrou o biscoito ao meio. ― Não brigará comigo sobre o
meu projeto?
― Não vou brigar. Simplesmente recusarei.
― Não pode recusar.
― Seu humor hoje está especialmente elevado.
― Há uma razão para isso. ― Soltando os pedaços, ela se inclinou para
frente sobre os cotovelos. ― Tenho notícias que são ao mesmo tempo um grande
alívio e muito curiosas.
Sua postura encostada na mesa empurrou seus seios para cima, fazendo
uma fenda entre eles, e visível acima do modesto tecido branco enfiado lá, no
vestido. Ela deve pensar que ele é um eunuco para mostrar isso tão prontamente.
Imaginou libertar os seios dela do vestido e acariciá-los - ela - seus belos seios,
os lábios macios, toda ela.
― Curioso? ― Ele conseguiu dizer, embora com voz rouca.
― Eu disse ao Sr. Bridges que comi ostras ruins e ele aceitou essa
explicação.
Aha A dissecação ― São boas notícias.
― As notícias que soube sobre Bethany são ainda melhores. Ela morreu de
insuficiência cardíaca. As artérias que alimentam o coração eram normais. A
metade inferior do ventrículo esquerdo, no entanto, estava inflada e muito maior
do que deveria ser. Isso poderia ter causado parada cardíaca mesmo em uma
mulher tão jovem. Mas há algum consolo, pois ela não estava grávida, afinal de
contas.
O sorriso suave que iluminou seus olhos sufocou-o momentaneamente. Ele
desembaraçou a língua.
― Perguntou aos outros alunos?
Ela acenou com a mão naquele gesto que revelava cada nervo e curva de
seus dedos e a força tensa de sua palma, tudo o que ele queria para ele.
― Archie e Pincushion tem certeza. Eu não disse a nenhum deles que a
reconheci, claro ― disse ela. ― Ninguém sabe. Exceto o senhor. Mas o senhor
conhece todos os meus segredos.
Desejou não tê-la reconhecido. Ele desejou poder voltar ao dia em que a viu
na dissecação pública e, em vez disso, ter permanecido em casa naquele dia.
Então não haveria esse desejo por tudo sobre ela, seios, lábios, olhos
inteligentes, mãos expressivas e voz que o amarravam em nós por dentro.
― Acredita que ela mentiu? ― Ele perguntou.
― Não. Eu acho que ela realmente acreditava estar aumentando. Sua
menstruação deve ter sido adiada. Isso, somado à náusea crônica de outra causa,
pode fazer uma jovem de sua profissão acreditar que estava grávida.
― Sua profissão?
― Prostituição. ― Ela olhou diretamente para ele. ― Vê o nó nesta
madeira sob a ponta do meu dedo?
Ele estava tentando não olhar para a ponta do dedo circulando esse nó -
tentando não o imaginar circulando qualquer parte de sua pele. O dedo e o nó
não estavam longe de seus seios pressionados contra a borda da mesa.
― Sim. ― A sílaba estava rouca.
― Vê como volta sobre si mesmo?
― Vejo.
― Isso é o que acontece com seus músculos toda vez que força o quadril e
as costas ao fazer o trabalho do joelho e do pé. É por isso que deve me permitir
construir uma prótese para o senhor.
― Por piedade...
― Está bem! Não perguntarei de novo. Eu simplesmente a farei.
― Não compreende o significado da palavra não, não é?
― Se eu tivesse permitido que o senhor me impedisse de fazer o que eu
sabia estar certo, eu não estaria aqui agora, estaria? ― Ele pegou seu sorriso no
meio do caminho.
― Quer saber como conheci as prostitutas? ― Ela disse.
― Não. Pois acredito, Elizabeth Shaw, que seu coração é suficientemente
amplo para caber dentro todas as pessoas do mundo. ― Suas bochechas
queimaram de rosa. Foi bonito. E desastroso. Este show de leve constrangimento
estava apertando seu membro insuportavelmente. Mas ele podia respirar
novamente.
Se sentia extraordinário sendo honesto com ela.
― Não deveria me elogiar ― ela disse.
Ele se permitiu um sorriso agora. ― Por que não?
Abruptamente ela empurrou a cadeira para trás e se levantou. ― Porque
isso me faz querer te beijar ainda mais do que eu queria antes. E fazer outras
coisas em que estive pensando também.
Outras coisas?
― Alá, seja misericordioso ― ele murmurou. ― Tem que sair desta
cozinha. Neste momento.
― Claro que vou. ― Ela parecia zangada. ― Mas não vou parar de pensar
nisso.
― Ainda assim a senhorita deveria. ― Hipócrita. Ele era um hipócrita
completo.
― Não posso ― ela declarou. ― Eu nunca paro de pensar sobre qualquer
coisa. Minha mente não permite isso. Quando um pensamento ocorre, ou uma
ideia, minha mente não a libera até que chegue a uma conclusão satisfatória.
Mas, como não permitirá que eu o beije, não há conclusão satisfatória para
minha curiosidade a respeito. Então, talvez possa deixar de dizer coisas que
tornam esses determinados pensamentos, especialmente difíceis de ignorar,
como aqueles comentários sobre minha aparência ou caráter que ninguém mais
tenha me feito.
Ele não podia acreditar. ― Ninguém?
― Não. Então deve deixar de fazer elogios. E deve parar de me olhar assim
- como... ― Ela balançou a cabeça. ― Ou poderia simplesmente me deixar
beijá-lo e eu poderia esquecer esse assunto.
― Apesar de sua mente ser notável ― ele disse com tanto controle quanto
pôde reunir, mas as bochechas dela estavam cheias de cor, seus lábios
entreabertos, e ele a queria em suas mãos, em sua boca, embaixo dele. ― Não
posso permitir que satisfaça essa curiosidade, por mais que eu apreciasse.
Seus lábios se abriram e seus lindos seios subiram em uma inspiração
apertada. ― Apreciasse?
― Eu não posso. A senhorita não pode.
― Por que não? Não é como se eu fosse uma donzela inocente do tipo
habitual. Eu me visto como homem todos os dias e me dedico inteiramente aos
homens.
― Porque, quer reconheça ou não, no momento, depende de mim, e um
homem que se aproveita de uma mulher nessas circunstâncias é um patife. Mas,
muito mais importante, tem um projeto para realizar, um projeto que requer toda
a sua atenção. Não tem nem um momento para se dedicar à satisfação de
curiosidades inúteis.
O espanto brilhou no azul do Mediterrâneo.
― Não pense em discutir comigo ― ele disse. ― No momento em que se
mudou para esta casa, se tornou dependente de mim.
― Eu percebo isso.
― No entanto, minhas palavras a surpreendem.
― Não aquelas palavras. E se as curiosidades não estiverem inativas?
Ele se levantou. ― Vá. Imediatamente.
Com um toque na saia, ela saiu. Um pequeno milagre, apenas um alívio
temporário. Ela voltaria. Ele não tinha nenhuma ilusão de que ela iria ceder e
nenhuma fé que ele pudesse resistir a ela indefinidamente.
Capítulo 16

Desejo

Libby não queria ouvir de novo o calor da raiva em sua voz ou sentir a
confusão que a inundava quando a estudava com seus olhos inconvenientemente
bonitos. Então, na manhã de sexta-feira, quando descobriu o pequeno pote de
adesivo vazio, esperou até que ele não estivesse em casa para reabastecê-lo da
garrafa grande em sua sala de trabalho.
Ele saía todas as noites desde que ela confessara a verdade sobre seus
pensamentos, sem dúvida para evitá-la.
Seguindo o pai de casa em casa dos nobres pacientes, Libby viveu como
convidada indesejada em suficientes lares de aristocratas - muitas vezes se
escondendo em armários e escadarias - de onde vislumbrava cavalheiros se
relacionando com criadas. A posição de seu anfitrião em relação a dependentes
do sexo feminino que viviam em sua casa fazia dele o homem mais incomum da
Inglaterra ou o mais honrado.
Talvez, de onde ele veio, os costumes fossem mais rígidos. Talvez lá, os
senhores não atacassem as mulheres como na Inglaterra.
Vela na mão, ela bateu na porta de seus aposentos.
Quando não houve resposta, ela entrou.
A cidade à noite brilhava pelas janelas do estúdio: uma luz através das
cortinas entreabertas no edifício, em frente às cavalariças, um poste de luz e uma
lua prateada envolvida em estrelas. Ela olhou para a porta do quarto dele,
contando vinte antes de se abaixar em frente ao bar e abrir o painel.
Adornada em tons suaves, a câmara ostentava apenas uma cama de dossel
com cortinas azuis da meia-noite, um cabide e um espelho vertical. No chão
havia um tapete semelhante a outros na casa, de design oriental e cores ricas e
escuras. O espaço combinava com sua elegância, e cheirava a cravo, tinta e algo
mais que ela não conseguia definir, mas provavelmente era apenas ele - sua
essência única.
Deixando o quarto de dormir, atravessou o estúdio até o cavalete sobre o
qual estava sentado um retrato de uma anfitriã da sociedade que Libby conhecera
na companhia de Constance. A Sra. Lily Jackson era jovem e luxuriosamente
vestida. O fundo de sua cabeça parecia inacabado: as pinceladas ásperas e
visíveis, de modo que a pessoa parecia estar se arrastando envergonhada para
fora da sombra, inclinando-se da moldura como se tentasse pedir ajuda.
O artista assinou a peça; estava de fato terminado. Havia rumores de que o
marido de Lily Jackson batia em seus servos com um chicote de carruagem. E
Libby notara que a Sra. Jackson usava pó espesso, talvez para cobrir escoriações.
Este retrato mostrava a verdade da mulher. Era ousado e extraordinário.
Estudando as cores e texturas da obra, ela sentiu o artista nela: sua graça, sua
gentileza e beleza, sua escuridão e sua aguda compreensão da natureza humana.
Assim como ele a entendeu, ele entendeu essa mulher e as outras que ele
desenhou e pintou, como se pudesse ver suas almas. Deixando a pintura, ela
entrou na sala de trabalho.
Estreita e bem iluminada pelo luar, cheirava aos óleos usados na pintura e,
fracamente, aos produtos químicos. De um lado havia uma mesa alta sobre a
qual garrafas e potes estavam cheios de óleos e cores, um pote de terracota cheio
de pincéis e outro com ferramentas para fazer pincéis: pelos grossos, cordões de
algodão, cabos de madeira, ponteiras de metal, facas e uma pequena caixa de
latão. Um queimador e vários frascos de vidro e pipetas ocupavam o final da
mesa perto da janela.
Telas esticadas sobre molduras de madeira estavam empilhadas no chão
contra a parede. Todas, exceto uma, tinham sido pintadas. Pousando a vela,
Libby puxou a tela em branco da pilha.
Uma mulher nua olhava de volta para ela.
Esticada em um divã, a mulher estava gloriosamente relaxada, um braço
pendurado na parte de trás da mobília e as pontas dos dedos da outra roçando o
chão, a cabeça pendendo para o lado e as coxas descansando suavemente juntas.
Não havia artifício para pose ou pintura, apenas honestidade e beleza. Esta
imagem era uma adoração do corpo humano.
Pela redondeza de seus membros e as joias em seus dedos, Libby assumiu
que o modelo era uma aristocrata. O fato de uma mulher de riqueza ficar sentada
nua para um pintor era certamente incomum. Libby sabia que homens de meios
muitas vezes mantinham mulheres contratadas para fazer sexo. Talvez esse
modelo fosse sua amante. Talvez à noite ele saísse para encontrá-la.
Quão tola ele devia pensar que ela ingenuamente pedisse beijos, a ele que
viajara pelo mundo.
Ela puxou outra das telas para frente e encontrou outro nu. Este também era
enfeitado e suavemente redondo. Mas desta vez Libby a reconheceu. Essa
mulher era casada.
Ela o ouviu entrar no estúdio com tempo suficiente para vislumbrar outra
tela, outro nu, outra mulher casada.
― Aha ― ele disse, chegando perto o suficiente para olhar por cima do
ombro. ― Obviamente eu estava errado quando vi a luz aqui e assumi que o
porco havia aprendido a carregar uma vela, ― ele disse secamente. ― Pois a
Sra. Coutts e o Sr. Gibbs não estão aqui, e tenho certeza de que a proibi de entrar
nos meus aposentos particulares.
― Sou mais esperta que um porco e tenho polegares móveis, portanto,
carrego uma vela com facilidade. Eu vim por mais adesivo. Eu conheço essa
mulher, mesmo que ela esteja olhando para longe. Eu reconheço aqueles sinais
no pescoço dela.
― Claro que sim. ― No ar frio que ainda se agarrava ao seu casaco,
persistia o cheiro de bebida.
― Ela é Lady Ainsley ― ela disse. ― Uma vez em um baile nas Salas de
Assembleias, fiquei tão desconfortável que me distraí estudando a pele de todo
mundo. Suas andanças e posturas também, é claro. ― Ela gesticulou para a
pintura. ― Ela parece tão entediada aqui como ela estava naquela noite.
Ele riu.
Mas ela dissera apenas para contrariar. A noite daquele baile Lady Ainsley
adotara um ar de grandioso tédio. Nesta pintura, em vez disso, ela brilhava com
sensualidade.
― Ela posou nua para o senhor? Todas essas três mulheres o fizeram? Seus
maridos permitiram isso?
― Pressuponho que seus maridos não sabiam disso.
― Elas eram, elas são suas amantes? ― Ela olhou por cima do ombro para
ele. ― E não se atreva a ficar com raiva de mim por perguntar isso. Não dessa
vez.
― Não eram. Elas não são. Simplesmente desejavam que seus retratos
fossem pintados.
― No entanto, essas pinturas estão aqui. Presumo que as mulheres
temiam reclamá-las, mas também não desejavam que fossem vendidas.
― Sim.
― Por que vieram até o senhor?
― Deve perguntar isso a elas.
― Eu não posso, é claro. ― Ela olhou novamente para baixo no retrato. ―
É incomum que elas desejassem ser retratadas nuas, que não tivessem vergonha
de ficar nuas na sua frente.
― Será que uma dama sente vergonha por se despir diante de sua criada?
Uma imperatriz não sai de seu banho diante de sua escrava? ― Sua voz era sem
paixão. Não havia julgamento, nem sentimento de espécie alguma. Aquele
nivelamento a alarmou.
― O senhor não é um servo. É um cavalheiro. Sem dúvida elas
simplesmente o viram como um artista, como excêntrico e tal.
― Possivelmente.
― Isso o irrita. Que elas estivessem dispostas a posarem para o senhor
dessa maneira. Não é?
Houve um momento de pausa antes que ele dissesse: ― Não mais.
Ela permitiu que as pontas dos dedos traçassem a borda da pintura.
― Não perguntarei por que os pintou, apesar da raiva. Pois é evidente em
cada pincelada. Foi a mesma razão que me levou a estudar medicina. Estou
enamorada do corpo humano. Eu sou levada a repará-lo assim como o senhor é
levado a representá-lo.
― A senhorita não é levada a repará-lo. É chamada para curar.
Ela o sentiu tão intensamente atrás dela. Seu corpo se mexeu com o calor.
No entanto, havia algo novo também, que ela não havia sentido antes. Ele se
considerava seu protetor. Ele queria mantê-la segura, mas tão diferente da
maneira em que seus amigos e pai sempre tinham feito. Eles sempre queriam
protegê-la do pântano de seus próprios pensamentos e desejos. Ele queria
protegê-la para que ela pudesse perseguir seus sonhos.
Ele estendeu a mão e colocou as pontas dos dedos ao lado das dela no
quadro da pintura.
― É assim que eu queria pintá-la ― ele disse.
Ela virou a cabeça. Cada sombra em seu rosto, cada brilho de luz em seu
cabelo parecia precioso agora, muito efêmero, como se, caso ela se movesse, a
noite o roubaria.
Surgiu um desespero nela, uma necessidade selvagem de proximidade - por
intimidade com ele.
Ele soltou a mão da pintura e encontrou o seu olhar. Ela podia tocá-lo.
Poderia simplesmente estender a mão e envolver as mãos em volta do rosto dele,
sentir o calor, a beleza e a força dele, atraí-lo para ela e finalmente conhecer a
carícia de seus lábios nos dela. Ela poderia satisfazer a ânsia que só ficava mais
forte quanto mais tempo a negasse. ― Desejou ― ela disse. ― No passado?
Aqueles lábios perfeitos fizeram um leve sorriso de um lado, o sorriso que
cravou tal desejo dentro dela.
― Desejei ― ele disse ― antes de saber que a senhorita não poderia ficar
parada por tempo suficiente para isso.
Não era a verdade. Ela viu a verdade em seu olhar que agora mergulhava
em seus lábios.
Ela podia levantar os braços e envolvê-los nos ombros dele, afundar as
mãos no seu cabelo e sentir o corpo dele contra o dela. Havia tão pouco espaço
entre eles, ela pouco teria que se mover para fazê-lo.
Andando em torno dele, ela saiu para o estúdio e caminhou rapidamente em
direção à saída.
― Deixou sua vela ― ele disse atrás dela.
― Fique com ela. Fique com ela, é claro! ― Ela gritou e não parou a fuga.
Ele queria protegê-la. Ela não podia negar-lhe essa satisfação.

O SINO TOCOU enquanto seu criado estava saindo.


― Encomenda para o senhor.
― Obrigado, Gibbs. ― Ziyaeddin aceitou.
― Senhor ...? O jovem mestre ― A testa do escocês enrugou-se. ― É que
parece que ele se tornou um rato, senhor.
Elizabeth Shaw não era nada como um rato. Pelo contrário, um leão. ― O
que quer dizer?
― Ele tem um canto da cômoda cheio com meias rasgadas. Pelo menos oito
ou dez delas, todas rasgadas, como se estivesse fazendo um pequeno ninho na
gaveta! Me ofereci para queimar todas. Mas ele me proibiu de tocá-las.
Talvez ela tenha escondido um vestido ou anáguas atrás das meias
arruinadas.
― Ele não ouviu nada disso! Jogou-as naquela mala de viagem e trancou-a.
Disse que eu não encontraria a chave. Não, que eu fosse procurar por isso, não,
se o jovem mestre não gostar!
― Claro que não faria ― disse Ziyaeddin calmamente.
― Para que ele estaria querendo meias velhas rasgadas, senhor, eu não
posso supor.
― Sem dúvida, ele tem alguma utilidade para elas. ― A Sra. Coutts havia
dito que sua hóspede comprara sapatos grandes e os enchera com algodão para
parecer mais viril.
― Sim, talvez senhor. Mas eu não queria que acreditasse que eu não estava
fazendo para o jovem mestre como eu faço para o senhor.
― Eu confio em você, Gibbs.
― Obrigado, senhor. ― O escocês assentiu. ― Bom domingo amanhã para
o senhor.
― Para você também. ― Ele fechou a porta na tarde fria.
Bom domingo.
Improvável. Não enquanto ela morasse em sua casa, confundindo seu
criado, conquistando sua governanta, e fazendo-o doer pelo mais rápido olhar.
Horas passadas longe desta casa não eram suficientes para desfazer o que
acontecia com ele cada vez que ela chegava perto.
Ele deveria cancelar as sessões. Melhor ainda, deveria mandá-la de volta
para a casa de sua amiga em Leith. Ou poderia escrever para Alice Campbell e
pedir-lhe que alugasse uma casa em Edimburgo e assumisse um jovem estudante
de medicina como pensionista. Por que a mulher já não fez isso?
Porque ela não estava brava.
O pacote da loja de papelaria tinha o nome Joseph Smart. Gibbs não sabia
ler. Mas ele cortava o cabelo extraordinariamente bem, barbeava um homem
com uma mão firme e mantinha a roupa de todo mundo livre de manchas de
tinta, por um lado, e sangue do outro. E ele era abençoadamente obtuso o
suficiente para não perceber que o jovem mestre era uma mulher. Ziyaeddin
levou o pacote para ela na sala de estar.
As pilhas de livros nas mesas haviam se tornado torres e a escrivaninha
inteiramente coberta de papéis empilhados. Uma página no topo parecia ser uma
lista de tarefas a serem realizadas.

Notas da aula de botânica de Syme


Arquivos de grão fino
Solução para o tecido cicatricial da Sra. Bailey
Escrever os resultados da química
Articulação do joelho de aço (Potts)
Flexão Dorsal e flexão plantar
Memorize Bell, Dissertação em ferimentos de bala Monro secundus,
Observações na estrutura e Funções do Sistema Nervoso
Archie: quantas irmãs?
Comprar 12 blocos de notas

A lista continuava quase até a parte inferior da página, a caligrafia limpa,


com letras próximas, as linhas tachas igualmente arrumadas. Sua mente era um
ciclone de pensamentos, ideias, perguntas, curiosidades e desejos. Vendo isso,
seu método para ordenar aquele ciclone, trouxe calor para sua garganta. Ela era
mais extraordinária do que qualquer homem jamais saberia. Qualquer homem
além dele.
Voltando ao vestíbulo, ele examinou a correspondência. Incluía um convite
da duquesa de Loch Irvine para passar as férias cristãs no castelo de Haiknayes.
Ele não aceitaria. Não deixaria Elizabeth. Onde quer que ela estivesse, ele agora
entendia, ali devia estar também até que seu destino o levasse para longe dela.
Outra carta era endereçada a ele em uma mão solta e confiante. Ele leu
enquanto caminhava em direção ao seu estúdio.

Sua Alteza,

Intrigado pelo seu desejo de confiança, e convenientemente em folga (Titan


está em doca seca recebendo um casco de ferro), eu investiguei completamente.
Tenho o prazer de garantir que Lewiston Bridges está acima de qualquer
suspeita. Um homem com muita habilidade, ele é amplamente admirado. Seu
serviço naval de vinte anos chegou ao fim depois que uma infecção o deixou
surdo de um ouvido e sem equilíbrio perfeito. Desde então, ele pratica cirurgia
em Edimburgo, onde também ensina estudantes de cirurgia. Embora ele não seja
conhecido por ser um gênio científico (como a maioria considera seu amigo
Charles Bell), o histórico de Bridges é distinto e sua reputação impecável pela
luta pública.
Estou curioso quanto ao seu pedido de informação, quando mora em uma
cidade bem suprida de médicos. No entanto, sei que as cidades universitárias
podem criar as piores fofocas, e eu seria um trapaceiro a não compreender seu
desejo de discrição nisso, como em tudo.
Respeitosamente,
Seamus Boyle, Cirurgião, HMS Titan.

A dor no tornozelo direito de Ziyaeddin agora era uma ilusão, pois não
havia nada lá para sentir dor. Ao consertar sua perna há sete anos, Seamus Boyle
havia realizado um milagre.
Amassando a carta, ele entrou em seu estúdio.
― Deveria me dizer seu nome.
Ela estava empoleirada no banquinho, a luz do inverno trazendo à vida sua
tez que ultimamente se transformara em palidez. Ela usava uma saia até os pés e
um xale completamente enrolado na parte superior do corpo, que ela segurava
firmemente sob o queixo.
― Obviamente, foi um erro permitir que soubesse que Ibrahim Kent não é
o meu nome.
― Se fosse um erro, não teria revelado isso para mim.
Ele recostou-se contra o batente da porta. ― Sou conhecido por ter feito
coisas tolas antes.
― Tais como?
― Como convidar uma mulher tenaz a morar na minha casa enquanto se
fazia passar por um jovem estudante de medicina. Se eu quisesse que o mundo
soubesse meu nome, eu usaria.
― Eu não sou o mundo.
Ela era. Para ele, ela era.
― Ainda faltam dezesseis horas para que possa chegar a subir nesse
banquinho ― ele falou como se não se importasse que ela estivesse aqui,
voluntariamente, quando poderia estar - deveria estar - em outro lugar. ― O
relógio, ou talvez o seu relógio inteligente, funcionou mal?
Suas mãos se afrouxaram e o xale caiu no chão.
― Só decidi fazer isso esta manhã ― disse ela. ― Mas descobri que estava
ansiosa demais para esperar até amanhã às dez horas. Ouvi o Sr. Gibbs sair.
Então aqui estou.
Nua da cintura para cima, ela estava pálida como a luz que a iluminava,
exceto pelas sombras sob seus seios, braços e seu umbigo, e as auréolas que
eram do mesmo tom de seus lábios: escuro e rosado. Ele a viu de repente: as
costelas mais baixas que se projetavam um pouco e davam lugar a uma cintura
lisa; o arrepio formigava os finos pelos prateados em seus antebraços; os ossos
quadrados de seus ombros que permitiam que os jovens a confundissem com um
deles; o pulso que batia em sua garganta; e os olhos azuis fixos nele.
Inteligentes e determinados, aqueles olhos o desafiavam a negá-la.
― De acordo com os termos do nosso acordo, que eu só entendi
plenamente ontem ― ela disse, ― vim posar para o senhor.
Capítulo 17

O Retrato

Ele não disse nada.


Os mamilos de Libby formigaram quando se apertaram e o calor encheu
suas bochechas.
― Alegará agora que me dizer seu desejo ontem também foi um erro? ―
Ela disse.
― Não farei tal afirmação, pois esse desejo permanece.
Ele atravessou a sala e puxou as cortinas até que elas estivessem quase
fechadas. Então, na lareira, ele acendeu o fogo. ― Dito isso ― ele acrescentou,
despertando as chamas das brasas com o atiçador ― essa não foi a ideia mais
sábia que teve ultimamente. E isso quer dizer alguma coisa.
― Não foi ideia minha. Foi sua. ― Ele se virou para ela.
― Obrigada pelo fogo ― ela disse antes que ele pudesse rejeitá-la.
Ele inclinou a cabeça e passou a mão pelo rosto. ― Agora que me vê ― ela
disse ― mudou de ideia?
― Pelo contrário. ― Seu peito subiu em uma respiração dura.
Então ele andou até o cavalete.
― Pintou mulheres nuas antes.
― Como pode ver.
― Com desapego?
― Sim ― ele respondeu, virando a página do caderno no cavalete e
pegando um pedaço de giz preto.
― Não lápis ― ela disse.
― Não hoje. ― Os músculos em sua mandíbula pareciam uma rocha.
― Qual é a diferença?
― Pergunto-lhe a diferença entre instrumentos cirúrgicos que não tem
intenção de usar? ― Ele disse brevemente.
― Não. Mas isso é obviamente diferente. Eu acho que está desconfortável.
― Está? ― Finalmente, seu olhar veio para ela, mas não para o rosto dela, e sim
para seu ombro.
― Eu esperava que, por ser uma mulher de medicina, fosse capaz de
trabalhar desapaixonadamente com o senhor, se o permitir, o senhor como um
homem da arte deve ser capaz de desenhar ou pintar-me sem desconforto.
― Silêncio agora.
― Por que está sempre me colocando em silêncio?
Seus olhos percorreram seu corpo com a intensidade de um cientista em seu
microscópio, quando sua mão começou a se mover na página que ela não podia
ver.
― Não gosta do meu discurso? ― Ela disse. ― Esse é o problema? Pois
não seria o primeiro. De fato, estaria entre os muitos.
― O problema não é que eu não goste do seu discurso. O problema é que
eu gosto demais e gostaria que falasse sobre o que quisesse, excluindo tudo o
mais, simplesmente para ouvir as palavras, frases e pensamentos formados pelos
seus lábios. Dessa maneira, ficaria feliz em passar o tempo todos os dias e,
subsequentemente, não realizaria nada.
Uma onda de sentimento se espalhou sob seus seios. Sua língua foi
abruptamente inútil.
― Mas ― ele continuou ― devo pintar para comer e, não incidentalmente,
para manter esse teto, não apenas sobre minha cabeça, mas sobre a sua também,
e pagar a Sra. Coutts e o Sr. Gibbs por seus serviços, o açougueiro e o fabricante
de velas. Etc. Por mais infeliz que seja, é a trágica verdade.
― Não está pintando agora. Está desenhando ― ela disse em um sussurro
rouco.
Seu olhar deslizou até o rosto dela e sua mão parou. ― Eu digo novamente.
― Sua voz também era áspera. ― Silêncio.
Ela obedeceu. Mas o bater de seu pulso não diminuiria e seus mamilos
estavam respondendo ao seu estudo sem qualquer sutileza ou discrição. Ela se
perguntou se as mulheres que ele havia pintado nuas sentiram o mesmo, desejo
por aquele homem que as tornara tão bonitas na tela, Pigmalião e suas criações.
― Eu sonho com fogo ― ele disse.
― Fogo?
― A bordo do navio ― ele disse, seu olhar se deslocando entre a página e
seu corpo, para trás e para frente novamente, suavemente, facilmente, os olhos
do artista no trabalho. ― Levou o navio rapidamente. Quando o resgate chegou,
eu mal estava consciente.
― Ainda assim se lembra disso.
― Eu me lembro das chamas quando elas superaram o deck. É com aquilo
que sonho todas as noites e que perturba seu sono.
― Não perturba meu sono ― ela disse.
Ele olhou para o rosto dela, depois novamente para baixo, depois para a
página e depois para o corpo dela. Ele estava fazendo questão de parecer não
estar afetado por sua nudez, ou ele realmente não era afetado.
― Não. ― Disse ele.
― Durmo pouco ― ela admitiu. ― Estudo até que as velas e o óleo se
acabem.
― Hipócrita. ― Ele disse isso com um sorriso.
Suas confissões se enterraram em sua barriga e descansaram lá agora como
um raio de sol escondido em uma densa floresta.
― Tenho que ter sucesso ― ela disse. ― Não posso fazer tudo isso e ainda
falhar.
Ele não disse mais nada e por muitos minutos ela o observou.
Ele largou o giz e enxugou as mãos em um pano. ― Gostaria de vê-lo?
Ela assentiu com a cabeça e se inclinou para pegar o xale do chão,
puxando-o confortavelmente sobre os seios enquanto ele se aproximava dela. Ela
pegou o desenho.
Em cinza e ébano, ele havia escolhido sua forma na parte plana de marfim,
elevando-a a vales e picos, e a tornava viva. Seus dedos se curvaram ao redor da
página, as outras pontas dos dedos deslizando pelas bordas do desenho. As
linhas de giz eram mais suaves que o papel, como seda.
― É do seu agrado? ― Ele disse.
― Me fez aparecer... ― Forte. Poderosa. Muito bonita. Mas não da maneira
de um homem ou mesmo de uma mulher bonita. ― Elementar.
― Não fiz nada além de render no papel o que vejo com os meus olhos. ―
Havia cor em suas bochechas, seu cabelo acetinado estava despenteado sobre a
testa, e parecia que ele estava olhando para ela.
Ela liberou a página. Quando ela caiu no chão, ela encolheu os ombros. O
xale escorregou pelo braço dela e deslizou por seu seio e depois para longe dele
completamente.
― Toque-me ― disse ela.
Sem hesitar, ele deu um único passo, e a ponta do sapato dela encontrou o
seu.
― Irá? ― Ela disse, seus batimentos cardíacos galopando em seus ouvidos.
Com o joelho, ele afastou o dela, e o choque de levá-lo entre suas coxas
atraiu um suspiro de sua garganta. Então ele estava entre as pernas dela, suas
coxas embalando seus quadris. Ela olhou para os botões dourados em seu
casaco.
― Sabe como os textos médicos descrevem os seios femininos? ― Saiu de
seus lábios. ― ”Duas protuberâncias moles situadas no tórax nas fêmeas”. É
preciso, é claro, mas não ajuda em nada a entender o motivo de sua popularidade
entre os homens. E nem sequer começa a explicar sua sensibilidade
extraordinária ou as sensações provocadas quando penso no senhor e....
Ele tocou o queixo dela, gentilmente inclinando o rosto para cima. Seu
olhar percorreu suas feições, acariciando seus lábios, bochechas, seu queixo e
sobrancelha e olhos como se ele fosse pintá-la agora fora do ar, fogo e calor.
― Se chamará de patife agora? ― Ela disse, seu corpo doendo. Com fome.
― Me chamarei de Ziyaeddin Mirza ― ele disse em uma voz que ela não
reconheceu, rica com a cadência de outra língua e silenciosamente confiante. ―
Mas só contigo, São Jorge.
― Obrigada ― ela sussurrou, ― Ziyaeddin.
Sua garganta se contraiu, o pomo de Adão sacudindo para cima. Seus dedos
deslizaram de seu queixo para sua mandíbula e depois para seu cabelo, tão
levemente, como se ele mal precisasse senti-la para entendê-la. Então a palma da
mão se curvou ao redor do rosto dela.
Todos os seus anseios, solidão e medo estavam agora na superfície para
seus olhos aguçados verem. A ponta de seu polegar deslizou ao longo de sua
sobrancelha, curvando-se com o osso, depois suavemente sobre sua bochecha e
seus lábios. O desejo a inundou, pulsando entre suas pernas e pegando em sua
garganta.
Ele estava tão perto. Cada cílio preto emoldurando a íris escuras parecia um
milagre de forma e beleza.
― Elizabeth. ― Seu nome era uma carícia rouca. ― Não pode haver
nada entre nós.
Ela esperou pela retratação, a reversão que obviamente deveria vir, no
entanto. Pois já havia algo entre eles. Ele não podia negar isso.
― Eu lhe peço ― ele disse ― não me ofereça presentes que não posso
aceitar.
Ela afastou o rosto da mão dele. ― Quem é o senhor?
Sua testa franzida.
― Como pode não esperar essa pergunta? ― Ela exigiu. Arrastando o xale
para cobrir o peito, ela se afastou do banquinho e se afastou dele, ordenando seus
pensamentos, tantos pensamentos. ― Sabe que eu não sou imbecil. Nem sou
desatenta. Claramente se esconde aqui na Escócia. Ou talvez esteja preso aqui.
Seu amigo mais próximo é um duque, o que não é de modo algum usual, sabe.
Mas talvez não perceba como isso é incomum. Ou quão incomum é ser fluente
em não menos que seis idiomas. E usa um nome falso. Então, talvez não seja
simplesmente um humilde retratista que veio à Grã-Bretanha para aprender a
pintar no estilo europeu e simplesmente nunca chegou a sair. Talvez não seja
quem convenceu todo mundo que é.
― Tem pensado nisso.
― Claro que tenho. Acho que tudo acabou. E estou morando em sua casa,
então sei que é totalmente diferente de outros homens. Pensei no princípio que
era porque é um estrangeiro. Mas eu não acredito mais nisso. Mesmo assim, não
posso imaginar nenhum homem que rejeitaria o que acabei de lhe oferecer, a não
ser talvez um celibatário declarado - um padre ou homem santo de algum tipo -
ou um homem que prefere a companhia íntima dos homens. Mas não acredito
que é daqueles, pelas razões óbvias. Não desejo vinculá-lo a nenhum acordo
permanente. Pretendo permanecer um homem indefinidamente. Isso, é claro,
impossibilita qualquer congresso íntimo, a não ser do tipo mais temporário.
Então não o entendo.
Ela parou e olhou para ele. Ele não disse nada.
― Assim seja. ― Ela endireitou os ombros. ― Não irei incomodá-lo
novamente.
― Não é.... ― Ele parecia lutar, e seus dedos estavam apertados sobre a
cabeça da bengala. ― Me traz muita alegria, Elizabeth Shaw.
A dor sob as costelas era insuportável.
― Acho que a partir deste momento deveria me chamar apenas de Joseph
Smart. E só me aproximarei do senhor como ele. Isso será sábio. Pois tenho
muita confiança natural. Mas este é um novo tipo de rejeição e não me importo
com isso.
Seu olhar foi para onde ela estava pressionando seu punho em suas costelas.
Ela tirou a mão do peito e escondeu-a nas saias.
― Eu me arrependo de causar-lhe dor ― ele disse.
― Oh, desapareça. ― Ela saiu da sala.
Capítulo 18

Um Ato de Amor

Archie convidou-a para passar as férias de Natal na fazenda de sua família.


Libby recusou. Embalando seus livros, anotações e equipamentos necessários
em um caso de viagem, e fazendo arranjos com um coche para transportar o
porco até a casa de Alice, deixou uma mensagem para a Sra. Coutts e o Sr. Gibbs
na mesa do saguão com uma nota em libras para cada um deles.
Para seu anfitrião, não deixou nada. Ele saberia onde encontrá-la, a uma
distância de três quilômetros. Se ele assim desejasse, poderia se lamentar de ter
causado dor a ela.
Instruindo o cocheiro a deixá-la em uma parada de correio movimentada
nos limites de Leith, ela tirou as suíças de suas bochechas, colocou um vestido, e
chamou um coche diferente para o restante da viagem. Ela já havia feito isso três
vezes, uma vez na ocasião em que o encontrou na festa. Que isso fizesse com
que seu estômago se apertasse pela lembrança daquela festa, da conversa deles
ali, e da carícia dos lábios dele nos nós dos seus dedos, a enfurecia agora.
Ela não poderia ser fraca. Os homens não eram fracos dessa maneira.
― Está infeliz, Elizabeth ― disse Alice, que, à luz de velas, enfiou uma
agulha em um bastidor: ― Certifique-se de provar suas palavras antes de cuspi-
las.
― Está enganada. Eu estou perfeitamente feliz. ― Seus dedos estavam
apertados ao redor da lima de metal. Depois de passar horas praticando o
preenchimento de articulações conjuntas, sob os olhos atentos do Sr. Syme, ela
quase conseguiu.
Intrigado com o interesse dela, o Sr. Syme não lhe fez perguntas quando ela
solicitou ajuda. Jovem e casado com uma mulher inteligente, ele já conhecia o
fascínio de Libby pela medicina por meio do relacionamento com o pai, e
aplaudiu o desejo dela em conseguir isso. Preocupava-se agora que, se algum dia
Joseph Smart se tornasse um conhecido cirurgião em Edimburgo, o Sr. Syme a
reconhecesse. Mas fazer esse projeto de forma perfeita, valia a pena.
― Não comeu o pudim hoje ― disse Alice.
― Eu não me importo com o pudim de Natal.
― Também não comeu o ganso. Ou os haggis.
― Tenho me esforçado para comer menos carne ultimamente. Mas temo
que eu goste demais de bacon para evitar totalmente a carne. Não se preocupe,
Pig, ― ela disse para a criatura aconchegada na lareira ao lado de Iris. ― Eu não
irei comê-lo.
― Claro que não ― disse Iris. ― Porque eu pretendo ficar com Pig quando
voltar para Edimburgo. ― Ela acariciou suas costas e ele bufou e se aconchegou
mais perto dela.
― Ficou anormalmente esbelta, Elizabeth ― disse Alice.
― Pareço mais com um jovem agora.
― Está passando fome intencionalmente? Elizabeth Shaw!
― Não estou. ― Ela simplesmente não tinha apetite ultimamente. Comer
tinha se tornado muito complicado: as aves deveriam ser comidas primeiro,
depois os legumes e só depois os doces. Mas o cozinheiro de Constance tinha
revestido o ganso com geleia de amora, o que tornava tudo impossível.
Ela sabia o que estava acontecendo. Isso aconteceu em Londres anos atrás
também.
Ela poderia controlá-lo.
― Não está bem ― disse Alice.
― E ela não ri há dias ― disse Iris.
― Eu estou sentada bem aqui, Iris.
― Seu pai ficaria infeliz em vê-la agora ― Alice disse. ― Eu estou! Ou
seus estudos a estão afligindo ou é aquele homem.
― Alice, por favor. Este é um trabalho difícil.
― O que está fazendo, Libby? ― Iris perguntou.
― Estou fazendo uma dobradiça para uma prótese.
― Uma pró o quê? ― Alice perguntou.
― Um membro de substituição.
― Para uma árvore? Bom Deus, o que eles estão lhe ensinando naquela
enfermaria?
― Um membro para um ser humano, Alice. Agora, por favor, faça silêncio.
Silêncio.
Ela fechou os olhos, desejando firmeza em seus dedos.
― Para qual ser humano? ― Alice disse no silêncio do fogo crepitante e os
suspiros do porco. ― Para ele, é claro. ― O olhar de Alice rodeou a sala. ―
Querida moça, agora sucumbiu.
― Sucumbiu à quê? ― Perguntou Íris.
― Não sucumbi a nada. Este é o meu projeto para o diploma. Se eu
conseguir fazer isso e passar nos exames, poderei praticar como um cirurgião
independente.
― E quanto a ele? ― Alice disse. ― Ele sabe que é um projeto para o
seu diploma?
― Sim. Ele não aprova. Mas quando eu voltar, vou mudar sua opinião. É
para o seu próprio bem. ― Ela acendeu o pavio da vela e pegou a ferramenta na
mão. ― Eu nunca fui tola com relação a um homem, Alice. Confie que não
começarei agora.

ELA RETORNOU NA manhã seguinte à Epifania, antes que ele pudesse se


ausentar da casa. De seu estúdio, ouviu a porta da frente se abrir, ouviu seu
agradecimento ao cocheiro da carruagem e ouviu o barulho de suas botas
atravessando o vestíbulo e entrando no corredor e na cozinha.
Como ainda não a esperava, ele havia deixado a porta do estúdio aberta.
Joseph Smart apareceu na abertura. Ele não a via desde a desastrosa tarde de
sábado, depois da qual ele ficara muito tentado a cortar sua própria língua. Vê-la
agora era como encontrar um poço no deserto.
― Felicitações de novo ano para o senhor ― ela disse friamente. ―
Acredito que esteja bem.
― Sim. ― Agora.
― Eu também. Iris desenvolveu uma afeição por Pig, então o deixei na casa
de Alice. Não achei que o senhor se importaria. Se importa?
― Não.
― Preciso ter suas medidas. Creio que posso perguntar a maioria das
medidas necessárias para Gibbs, que presumo que as conheça para seu alfaiate e
sapateiro. Mas também devo estudar os detalhes da sua perna.
― Há centenas de veteranos da guerra nesta cidade ― ele disse, voltando
sua atenção para o livro aberto em seu joelho. ― Use um deles para o seu
experimento.
― Está sendo obstinado. Esse é um traço miserável em um homem de
poder e autoridade.
Lentamente ele levantou o olhar.
Ela grunhiu e seus lábios se curvaram com um novo tipo de confiança.
― Sabe ― ela disse, ― não dou a mínima se vai querer essa prótese ou
não. Isso não é sobre o senhor. Isso é sobre mim e meu projeto para impressionar
meus mentores, e o senhor fará isso ou eu direi ao mundo quem é.
― Não sabe quem eu sou.
― Tenho seu nome. E tenho amigos com conexões com o governo que
podem me ajudar a descobrir a qual cavalheiro estrangeiro esse nome está
ligado.
― A senhorita não faria.
― O senhor deveria ter pensado nisso antes de me dizer seu nome.
― A senhorita não faria. Realmente não divulgaria isso. Para ninguém. Sua
consciência não permitiria que fizesse tal coisa. Eu sei disso sobre a senhorita.
Ela olhou para ele, as narinas dilatadas acima do bigode felpudo.
― Maldito seja, Ziyaeddin Mirza ― finalmente explodiu. ― Maldito seja,
e maldito seja todo homem que não põe uma luz em sua janela e fica acordado a
noite toda amaldiçoando.
Ele riu.
A severidade se afastou de sua boca. Então os lábios com os quais ele
sonhava dia e noite sorriram. A luz frágil em seus olhos se tornou brilho.
― Lágrimas agora? ― Ele disse. ― Porque devo elogiá-la por sua
consciência?
― Claro que não. Eu nunca choro. E lembre-se de que não deve me elogiar
por nada. Agora, me dê as medidas que preciso.
― Eu não as conheço.
― Não importa. Eu tenho uma fita métrica. ― Ela enfiou a mão no bolso e
começou a avançar. ― Eu vou....
― Pare!
Franzindo a testa, ela obedeceu.
― Deixe a fita ― ele disse, ― e uma lista do que quer, na mesa do
vestíbulo.
― Obstinado e vaidoso.
― Não é vaidade.
― Orgulho ― ela disse. ― Muito orgulhoso para revelar qualquer
imperfeição.
― Talvez ― ele admitiu.
― Eu sou uma pessoa da ciência médica. As imperfeições físicas são a
razão de tudo que faço ― ela disse em sílabas limpas. Não havia pena em sua
voz, e ele pensou que poderia amá-la só por isso.
― No entanto, sou apenas um homem ― ele disse.
― É um homem tolo.
― E a senhorita é uma mulher com uma língua impetuosa e uma insolência
voluntária em relação a um homem que, embora possivelmente tolo, deve
merecer no mínimo algum respeito.
Seus lábios se contraíram. ― Bem. Se não me permitir fazer o exame, eu
lhe darei o endereço do Sr. Syme, o cirurgião que lhe contei que teve grande
sucesso com amputações e próteses. Deve encontrá-lo e ele reunirá as
informações que eu preciso para fazer o dispositivo. Eu já disse a ele o seu
nome. Seu nome falso, claro. Eu disse a ele que conheço o senhor através do
duque.
Ele assentiu.
― Isso é ridículo. ― Ela se virou e ele teve o vislumbre fugaz de um
sorriso. ― Mas os homens são criaturas fracas e devem ser tratados de acordo,
suponho ― disse ela despreocupadamente enquanto desaparecia no vestíbulo.

QUANDO POSOU PARA ele completamente vestida como Joseph Smart


naquele domingo, ocorreu a Libby que seria mais fácil levá-lo entre suas coxas
vestindo calças do que usando uma saia. Com grande facilidade, ela também
poderia caminhar até ele e subir em seu colo e envolver as pernas ao redor dele.
Graças a Deus por seu orgulho.
Ela soube pelo Sr. Syme que Ziyaeddin o visitara. Nenhum deles
mencionou isso agora. Quando o relógio na sala tocou a décima primeira hora,
ele não disse nada, nem ela. Ela simplesmente saiu.
Seis dias depois, ele apareceu na porta da sala. ― Não dormiu ― ele disse.
― Está me espionando agora? ― Ela disse, não levantando o queixo da
palma da mão onde descansava. ― A propósito, pensei que estivesse fora. Razão
do meu traje feminino agora.
― A Sra. Coutts está preocupada com a sua saúde.
― Sou um estudante de medicina. Se eu estivesse com problemas de saúde,
não iria supor que eu saberia? O senhor não? ― Finalmente, ela se permitiu
olhar para ele.
O furor de prazer e dor que ela sempre sentia ao vê-lo, abriu um caminho
mais fundo em seu ventre.
― O senhor veio aqui apenas para me repreender por meus hábitos carentes
de sono? ― Ela retrucou, porque era isso ou começaria a falar os pensamentos
que nunca a deixavam em paz atualmente - pensamentos sobre calças e colo e
sobre envolver as pernas ao redor da cintura dele.
― É mal-humorada ― ele disse.
Deixando cair a pena, que espalhou tinta sobre a página, ela se recostou. ―
Eu durmo muito pouco. Claro que sou mal-humorada.
Ele sorriu.
O calor se espalhou por ela.
― O Sr. Syme me enviou uma mensagem hoje ― ele disse. ― Ele disse
que a senhorita fez progressos.
― Sim. O molde de gesso, que consentiu que ele fizesse, me permitiu
moldar o encaixe. Eu já fiz tudo o que pude para preparar o dispositivo sem ter
realizado um exame eu mesma.
― O que está esperando?
― Conseguir coragem para me aproximar do senhor. ― Ele levantou uma
sobrancelha, cético.
― Sim! ― Ela insistiu. ― É um monstro, uma besta toda enterrada em seu
covil, atacando qualquer donzela inocente que cruza com o senhor. Estou
apavorada.
― Cada parte dessa declaração é uma invenção.
― Exceto aquela parte de ser uma donzela. Não preciso ter medo do
senhor?
― Talvez de... ― Ele interrompeu as palavras e pareceu reconsiderar. ―
Como posso ajudá-lo, Sr. Smart?
Sua maneira de se dirigir a ela, significava somente uma coisa.
Ela sentou-se na cadeira. ― Agora? Está finalmente oferecendo permissão
para eu examiná-lo, agora? Este minuto?
― Perdoe-me pelo meu orgulho.
Ela se levantou. Seu estômago, uma confusão de nós.
― Vai me odiar por isso? ― Ela perguntou. ― Depois? Por ferir seu
orgulho? Pois, se esse é o preço que devo pagar para ter sua cooperação nisso,
escolherei outro projeto.
― Poderia escolher outro projeto?
― Se eu quisesse me rebaixar ao nível de um novato, como muitos dos
meus colegas, sim. Nesse caso, eu poderia concluir um projeto adequado no
tempo restante.
― Devo me sentar ou prefere que eu permaneça de pé?
Seus batimentos cardíacos estavam trovejando. ― Pode prometer não me
odiar?
― Sim.
― Eu deveria acreditar no senhor?
― Sim ― ele disse com a mesma calma enlouquecedora.
― Honestamente?
― Claro.
― E depois há o elefante no meio da sala.
― Como disse?
― O elefante. O enorme item do qual ambos não estamos falando, mas que
obviamente está lá.
Ele não disse nada.
― Um elefante ― ela disse. ― Um daqueles animais gigantescos com....
Ele riu. ― Sim. Eu sei o que é um elefante.
― Oh. O senhor viu um elefante de verdade?
― Não. ― Apenas seus olhos estavam sorrindo agora, o brilho quente e
maravilhoso neles. ― Embora eu saiba que meu pai, uma vez, recebeu um par
de elefantes como um presente do embaixador de algum lugar repleto de
elefantes.
Embaixador?
― Seu pai? ― Ela disse um pouco fraca.
― Ele rapidamente mandou os animais embora. Disse que eles eram tão
inteligentes que seus cortesãos ficaram com ciúmes deles, e ele temia pela vida
das criaturas se permanecessem ali.
― Cortesãos?
Ele inclinou a cabeça, seus olhos questionando. Estava perguntando a ela
que se ele compartilhasse com ela o que podia, ela ficaria contente com
conhecimento parcial? Ele a conhecia agora. Entendia que ela precisava saber
mais.
Para ele, ela podia fazer isso. Ela devia. Essa aliança peculiar que eles
haviam forjado era preciosa.
― O elefante nesta sala ― ela disse ― é que na última vez que estivemos
perto o suficiente para tocar, as coisas não prosseguiram bem. Essa situação,
claro, é completamente diferente.
― É claro que é ― disse ele.
― Acredita nisso, não é?
― Sim.
Frequentemente falava assim, com tanta garantia real, e agora Libby não
tinha dificuldade em imaginá-lo da realeza - exceto que ele vivia como um
senhor comum na Escócia, com apenas dois criados, e pintava retratos para
comprar pão.
E ela era uma mulher fingindo ser homem e estudando para se tornar
cirurgiã.
― Vamos começar? ― Ele disse.
Ela foi pegar a caixa em que ela mantinha suas ferramentas.
― Contratei um marceneiro com considerável experiência na formação de
falsos membros. Ele já consultou seu sapateiro. E o ferreiro... ― Ela se virou e
seus passos vacilaram.
A bengala apoiada em uma cadeira, ele estava perfeitamente equilibrado em
seu pé, dobrando o tecido das calças e soltando as correias do suporte da perna
ao redor de sua coxa.
Ele olhou para ela.
― Não perca a coragem agora, Sr. Smart ― ele disse em um tom nada
notável.
― Se for condescendente comigo ― ela disse, engolindo seus sentimentos
e se movendo em direção a ele, ― pisarei muito forte nos dedos dos pés com o
salto do meu sapato.
Ele riu.
Ela se ajoelhou diante dele e, enquanto pegava a perna da calça, as mãos
deles se roçaram. Suas mãos se afastaram.
― Eu não sou água fervendo ― ela disse, dobrando para trás o tecido fino e
fingindo que deliciosos tentáculos de prazer não estavam agora correndo por
seus pulsos. ― Não vou queimá-lo.
― Não estou tão certo sobre isso ― ele murmurou.
― Endireite seu joelho.
Três quartos da panturrilha permaneceram, o que ela já havia adivinhado
corretamente.
― Mas, é melhor do que eu imaginava! ― Correndo as pontas dos dedos
da rótula e ao redor, sobre cada tendão, ela testou sua elasticidade. Ele era todo
músculo duro e saudável, tendões e fáscia. ― Muito melhor. ― Ela enfiou a
mão no bolso, retirou um pequeno martelo e bateu no tecido macio sob a patela.
― Excelente reflexo.
― Por ser um homem, está bem?
― Fique quieto. Estou trabalhando. Oh, que agradável, por uma vez, sou
aquela que te diz para ficar quieto. A tíbia, a fíbula e os extensores estão
praticamente intactos e os tendões são notavelmente fortes. A serragem e a
cauterização devem ter sido feitas com muito cuidado. E no estilo flap em vez da
guilhotina. Dado que estava no mar, essa é uma amputação extraordinariamente
boa.
― Me senti terrível ― ele murmurou.
― Até o tecido da cicatriz é mínimo e tem se mantido maravilhosamente
bem, apesar desse pino infeliz. Um cirurgião deve ter habilidade para fazer uma
amputação dessa qualidade. Eu suponho que ele escolheu amputar porque o
tornozelo estilhaçou completamente. ― As pontas dos dedos dela exploraram a
cicatriz grossa e sedosa, então correram ao longo do músculo novamente, e de
volta para os tendões e para o punho de calos acima do joelho criado pelas alças
do anexo de pino. Sua pele estava quente ao toque e polvilhada com cabelo preto
masculino.
― Quem fez isso?
― Seamus Boyle da Marinha Real.
Ela olhou para cima. ― A Marinha?
― Cirurgião do navio do Capitão Gabriel Hume.
― O duque de Loch Irvine? Foi assim que veio a conhecê-lo? Ele o salvou
do navio em chamas?
― Sim.
Ela não deveria notar o músculo duro de suas coxas, nem se maravilhar
com sua cintura magra ou a largura de seus ombros ou a beleza tensa de sua
mandíbula, nem se perguntar por que ele tinha virado a cabeça e estava olhando
fixamente através da sala. Ele estava segurando as costas de uma cadeira, seus
dedos enrolados fortemente sobre a madeira.
Ela sentou-se em seus calcanhares. ― Quero fazer medições completas do
seu pé, tornozelo e panturrilha.
Com um único movimento, ele girou a cadeira ao redor. Sentou-se, tirou o
sapato, depois dobrou a perna da calça e tirou a meia.
― É instrutivo ver como um cavalheiro se despe ― ela disse, um pouco
sufocada.
― Não tem muita experiência com isso, hum?
― Não.
Ela estava observando as mãos dele enquanto ele colocava as palmas das
mãos em suas coxas. Ziyaeddin queria que o aperto em seu pênis diminuísse.
Isso não aconteceu.
― Este homem está agora tão despido quanto possível ― disse ele, as
sílabas rochosas. ― Comece o seu exame, doutor.
Seu olhar disparou.
De joelhos. Diante dele. Olhos cheios de intenção e curiosidade.
Sobrancelha franzida com sabedoria. Mãos inteligentes que poderiam encontrar
ossos e tendões sob a pele de um homem. Dez dedos ágeis que podiam
manipular músculos como massa de pão.
No entanto, ele só conseguia pensar em uma coisa. Era um cachorro.
― Fique de pé, por favor ― disse ela.
Ele fez isso, e ela tocou primeiro o peito do seu pé e depois os ossos do
tornozelo e da canela e, em geral, passou muito tempo correndo as mãos por
todo o seu corpo até deixá-lo em agonia. Ele não era um homem fraco. Mas
havia tanta coisa que ele podia fazer para impedir o inevitável. Se ela escolhesse
esse momento para olhar para cima, ela veria.
Ele olhou para a parede onde pendia um tapete de orações sobre o qual os
minúsculos nós que formavam o desenho descreviam uma prece em árabe:
Allaahumma inee as-alukal-'aafiyah, wash-shukra' alal-'aafiyah. Ó Alá, peço-
lhe o bem-estar, e serei grato pelo bem-estar. Ele não era um homem de oração.
Nove anos atrás, sua fé tinha ido para o mar ao lado de sua liberdade. Ele não
guardou o tapete para lembrá-lo de orar. Ele guardou porque, além do relógio,
era o único objeto de Tabir que ele possuía. Quando, pouco depois de sua
chegada à Escócia, encontrou o tapete em um mercado em Leith, com a insígnia
da dinastia de sua família entremeada no padrão, pensara que era uma espécie de
bênção, uma mensagem de que ele pretendia chegar a essa terra para sarar. Viver.
Não mais.
Cartas de Londres lhe contaram sobre a agitação na fronteira norte do Irã.
Logo chegaria a hora de deixar a Grã-Bretanha. A mulher brilhante de joelhos
diante dele não saberia que ele aceitara esse presente não por ela, mas por ele.
Não voltaria a Tabir quebrado. Ela poderia fazê-lo inteiro.
Ela colocou a fita métrica no chão e estava fazendo marcas em um caderno.
Foi um momento de alívio ao seu toque, e ele odiou o quanto ele queria as mãos
dela sobre ele novamente, mesmo dessa maneira clínica.
― Meu pai estava certo ― ele disse.
― Que elefantes são inteligentes?
― Que seus cortesãos eram tolos. Eles pereceram em uma única noite,
exceto aqueles que o traíram, é claro.
Seus olhos vieram para os dele. Seus lábios eram uma linha apertada. ― O
que causou essas cicatrizes no seu tornozelo e pé ― ela perguntou.
― Uma algema e corrente.
Seus cílios fizeram uma única batida rápida.
― Terminei aqui. ― Levantando-se, ela foi até a escrivaninha. ―
Completarei a prótese nos próximos dias. Agora preciso estudar. Então deve ir
embora e fazer o que artistas de retratos fazem quando não estão contando a
estudantes cirúrgicos crédulos, contos altos da desprezível variedade trágica. ―
Sem olhar para ele, ela disse: ― O que está escrito no relógio?
― Agora, faça como os príncipes quando são prudentes, piedosos e
beneficentes - sirva a Deus e somente a Ele nos bons e maus momentos.
Ela acenou com a mão impaciente, enxotando-o.
A impaciência era dela. Evitar o seu olhar não era. Então ele soube que essa
era sua maneira de dizer que acreditava nele.
Capítulo 19

O Toque

― Ela não está doente. ― Chedham estava ao lado dela na bacia de


lavagem.
― Quem?
Ele olhou para os catres na enfermaria. ― A Sra. Small. Ela finge dor para
poder dormir naquela cama e fazer uma refeição quente todos os dias.
― O Sr. Bridges removeu um tumor dela há apenas seis dias, Chedham. ―
No entanto, se a Sra. Small estivesse demorando na convalescença para garantir
cama e comida, Libby não podia culpá-la. O gelo se agarrava a todos os telhados
de Edimburgo.
― Ela está aproveitando a caridade ― ele disse.
Enxugando as mãos, Libby pegou sua marmita, levou-a até a cama da Sra.
Small e abriu-a.
― Tenho queijo extra e pão hoje, Sra. Small. ― Ela colocou na mão da
mulher.
― Um coração de ouro esse que tem, meu querido rapaz.
Libby não se incomodou em olhar para seu colega aprendiz quando ela
partiu. Sabia que ele estaria zombando.
Mais tarde, na biblioteca, Archie sussurrou: ― Chedham está planejando
alguma coisa.
Libby tirou sua atenção do texto de química e piscou para trazê-lo para o
foco. ― Planejando?
― Ele não é ele mesmo.
― É o rigor do inverno e o fato de que todos nós temos pilhas de trabalho
para fazer. Nenhum de nós está sendo nós mesmos. ― Pelo menos o seu
companheiro de casa. A prótese combinara perfeitamente com ele, tão bem que a
conversa deles quando ela lhe dera tinha durado apenas alguns minutos. Agora
ela estava preocupada. A Sra. Coutts também compartilhara suas preocupações.
― Ele está com dor, moça. Ele não vai dizer a nenhuma alma, bendito seja.
O patrão é um homem orgulhoso. Mas eu nunca o vi assim.
Libby concordou. Em suas sessões, notara a brancura de seus dedos e
lábios, o desconforto que ele parecia ter sentado e em pé, sua inquietação. No
entanto, quando lhe perguntou sobre isso, ele não disse nada.
A prótese foi projetada com precisão. O Sr. Syme concordou. Ela tinha feito
um trabalho excepcional. Seu paciente agora deveria estar andando mais
confortavelmente desde a amputação. Ele deve ter dor ciática. Ou.... Ela não
sabia. Mas ele a estava evitando e ela estava simplesmente ocupada demais para
ir atrás dele. O Sr. Bell enviara cartas de apresentação para todos os médicos
influentes da cidade, dizendo-lhe que também devia obter a aprovação desses
homens.
Algum dia, Sr. Smart, ele havia escrito para ela, o senhor será um dos
maiores cirurgiões da Grã-Bretanha.
Agora seus estudos consumiam cada momento. Ela quase nunca dormia.
Irritada com os amigos, muitas vezes estudava sozinha e passava o almoço na
enfermaria observando qualquer médico ou cirurgião que permitisse isso.
― Archie, eu não tenho tempo para me preocupar com os ataques e
avanços de Chedham.
― Ontem à noite ele saiu do pub cedo, então eu o segui. Ele foi direto para
a casa de Bridges.
― Sua casa? ― Nenhum aluno jamais visitaria um cirurgião ou médico em
casa tarde da noite, a menos que fosse convidado.
― Sim. ― Archie assentiu. ― Não há nada de bom nisso, moço.
― Talvez ele esteja tendo problemas com seu projeto. ― Como ela estava,
maldito orgulho real de seu paciente.
― Então por que ele não esperou até amanhã na enfermaria para perguntar
a Bridges?
― Estamos sempre muito ocupados. ― Mas ela e Chedham
frequentemente perguntavam a Bridges sobre seus estudos enquanto eles se
moviam entre os pacientes, competindo sobre quais deles poderiam trazer ao seu
mentor o problema mais complicado de resolver juntos.
Complicado.
Em sua mente, um raio atingiu o ponto.
Deixando de lado o texto de química, ela saltou e foi para as prateleiras.
Correndo os dedos junto com as ligações impressas em letras douradas, eles
pousaram no que ela procurava. Seus olhos percorreram as palavras enquanto ela
virava as páginas. Havia poucos diagramas; gravuras precisas da anatomia
humana eram muito caras para a maioria das impressoras da comissão. Mas ela
se lembrou de algo que havia lido lá.
Fechando o volume, jogou os blocos de anotação em sua maleta.
― Já está saindo? ― Perguntou Archie.
― Eu tenho que ir.
Ziyaeddin raramente estava em casa, evitando-a, presumiu. Agora, numa
quarta-feira, quando era seu hábito, depois da palestra, estudar na biblioteca até
que ela e seus amigos fossem ao pub jantar, ele não a esperava em casa. Ele
poderia estar lá.
Ela descobriu por que ele estava sofrendo. Ela falaria com o Sr. Syme sobre
isso e escreveria para o Sr. Bell em Londres também. Mas ela já sabia. E poderia
consertar isso.
Uma última vez, ela desconsideraria seu desejo de privacidade e o faria
ouvi-la.

EM PÉ DIANTE do cavalete, Ziyaeddin mudou o peso do pé para o falso pé.


O balanço era sublime. Mas nenhuma posição aliviava a agonia. Como facas
enterradas profundamente em sua carne tentando cortar caminho em direção a
sua pele, a dor fazia de cada movimento uma maldição.
Ela invadiu seu estúdio, arremessando a porta e entrando. ― Deve permitir
que eu...
― Não ― ele disse.
Ela veio diretamente para ele, detendo-se em uma espiral perfumada de
hortelã e lavanda. O cheiro forte era incomum para ela, a menos que fosse da
cirurgia. Encheu sua cabeça, limpando-a abruptamente da confusão.
― Há inchaço? ― Ela exigiu. ― Ou listras vermelhas sob sua pele?
― Não.
― Eu sei que está com dor.
― Saia daqui.
Ela olhou para a tela, depois para o crepúsculo profundo lá fora. ― Como
pode pintar quando...
Um som de advertência veio através de seus dentes cerrados.
― Isso foi um grunhido? — Ela perguntou.
― Saia.
― Eu...
― Não é no domingo às dez horas. Aqui não é seu lugar.
― Na realidade é.
A noite de inverno estava chuvosa e seu estúdio estava escuro. Ele não
acendera lâmpadas, pois isso exigiria que se mexesse e trouxesse as facas de
novo. Mas ele podia ver bem sua parcial desordem. Suas bochechas estavam
vazias e manchas escuras afundavam a pele delicada sob seus olhos. Ela usava
uma camisa sem gravata, calças e um roupão sobre os dois e botas.
― Continua atraído por aquela mistura de moda ruim, então ― ele disse,
porque não resistiu, ― ou desapareça até domingo. Mas não fale.
Ela agarrou-o, as mangas do roupão ondulando momentaneamente, depois
seus dedos seguraram as costas dele.
― Não se mova ― ela ordenou.
Ele girou para desalojá-la, mas ela apertou a pélvis com força contra o
quadril dele e seus braços o envolveram fortemente. ― Aqui ― disse ela, e as
pontas dos seus dedos cravaram fortes em seus quadris.
A agonia o atravessou. ― Em nome de...
― Esses músculos devem ser cuidados ― ela disse. ― E estes.― As
pontas dos seus dedos desceram por sua coxa escavando caminhos gêmeos de
tormento. ― E estes. ― Ela amassou suas nádegas e foi como cacos de vidro
quebrado em sua carne. Estrelas explodiram diante de seus olhos.
Ele mal conseguia abrir os dentes para falar. ― Tire suas mãos de mim.
― Se não me permitir aliviar a tensão nessa fáscia, ela só piorará. Então a
única solução será a cauterização da articulação femoral e eu não recomendo
isso de forma alguma.
Ele desejou poder desfrutar do prazer de seus quadris contra os dele, os
braços dela ao seu redor, e suas mãos precisamente onde ele as fantasiava. A dor
gritou. Ele lutou para respirar. E ainda assim, seus dedos não paravam a tortura.
Lágrimas surgiram em seus olhos.
Não.
Sem fraqueza. Não com ela.
― Eu lhe imploro ― ele proferiu.
Ela o soltou e deu um passo para trás.
― Sinto muito por causar-lhe dor ― ela disse. ― Também posso alegar
isso agora, e posso até dizer com sinceridade. Mas deve permitir que eu o ajude.
Durante anos, esses músculos se condicionaram para compensar o membro
perdido. Agora deverá recondicioná-los. Eles exigem manipulação diária para
liberar os nós na fáscia. Deve permitir que eu faça isso. ― A testa dela se
comprimiu. ― A menos que não queira poder andar com facilidade e essa tenha
sido a razão pela qual nunca adquiriu uma prótese. Não entendo como isso seria
possível, mas eu ainda possuo todos os meus membros e, portanto, não posso
adivinhar o que é viver sem um. Se for um orgulho obstinado o que o afasta do
conforto, recomendo que o descarte de uma vez e faça o que eu recomendo.
― Recomenda?
― Insisto.
― É orgulho ― ele admitiu. ― E não havia necessidade real de facilitar os
movimentos antes de agora.
― Não havia necessidade real de facilitar os movimentos antes de agora?
Não permitiu isso apenas por causa do meu projeto? ― Ela perguntou.
― Não, güzel kiz. Não foi. Eu tenho que fazer uma grande jornada. Em
breve. Desejo apenas a força física e a estabilidade para fazer o que devo fazer. E
tornou isso possível para mim.
Os cílios dourados se abanaram. ― Então não devemos nos atrasar.
Ela saiu do quarto.
Observá-la se afastar dele era uma dor que sentia agora em todas as partes
do seu corpo.
Ele ainda estava olhando para a porta vazia quando ela reapareceu e
ofereceu um pedaço de papel.
― Este é o endereço do Sr. Murray. Ele pratica a manipulação muscular que
precisa. Ele aprendeu décadas atrás, a serviço da Companhia das Índias
Orientais. É um escocês um pouco velho. Eu o vi curar um cavalo manco e fazer
com que um fazendeiro de cadeira andasse novamente, ambos sem medicação ou
cirurgia. Já que não permitirá que eu o toque, deve ir vê-lo imediatamente. E
estas, ― ela disse, entregando-lhe a segunda folha de papel ― são descrições de
vários movimentos repetitivos que deve fazer duas vezes ao dia enquanto a dor
persiste. Faça exatamente como descrevi aí, sem falhar.
Ela enfiou a mão num bolso volumoso do roupão e retirou uma garrafa.
― Aplique isso duas vezes por dia em cada lugar em que sentir dor.
Trabalhe na pele até ficar bem saturada. É uma mistura de óleos vegetais que
acalmará e soltará os músculos sem inflamá-los. Como pode sentir, o cheiro é
muito forte e vai dominar o seu perfume habitual, o que é lamentável, mas deve
ser suportado temporariamente.
Ela se afastou rapidamente dele novamente.
― Levará algum tempo até que esteja livre de toda dor. Mas acho que
ficará feliz com o resultado. ― Na porta, ela se virou. ― O dispositivo em si não
está causando problemas, não é? Dor nos tendões ou joelho? Abrasões?
Qualquer coisa desse tipo?
― Nenhum ― ele disse, querendo o corpo dela pressionado contra o dele
novamente, os braços ao redor dele, mais do que ele jamais quis qualquer coisa.
― Excelente. ― Ela começou a se virar novamente, mas fez uma pausa. ―
Sabe, estou incrivelmente ocupada. Tenho muito a fazer a cada dia. No entanto,
não posso deixar de pensar no senhor. É exasperante. É o mesmo para o senhor?
Todo dia. Toda hora. Todo minuto.
Queria dizer-lhe que em sete anos não permitiu que outro ser humano o
tocasse como ela fizera - tocar aquilo que era tanto sua maior vergonha como
homem, quanto a maior responsabilidade para com sua família e povo. Queria
dizer-lhe que, até ela entrar em sua vida, entrar em sua casa, ele estivera
escondido e ela lhe dera coragem para não mais se esconder.
Mas ele não disse nada e ela o deixou.

ELE FOI EMBORA. Tendo acabado de concluir e entregar três grandes


encomendas, relatou a Sra. Coutts, o patrão partira de férias para o castelo de
Haiknayes.
Obviamente, sua confissão o afastou. Ou talvez sua invasão sem convite em
seu estúdio tivesse feito isso- malditas suas regras estúpidas. Ou ambos. Seja
qual for o caso, ele não deixou nenhum bilhete e isso era uma mensagem
suficiente.
O período de inverno trouxe um curso avançado de anatomia prática, com
cadáveres sobre os quais o Dr. Jones deu a ela, Chedham e Archie a direção, com
equipes atribuídas a eles para as dissecações, bem como uma considerável
quantidade a mais de instrução na sala cirúrgica da enfermaria. Seus deveres na
enfermaria agora ocupavam todos os dias, exceto aos domingos.
Quando o Sr. Bridges a convidou para realizar uma cirurgia real sob sua
supervisão, a princípio ela não pode acreditar em suas palavras. Sua garantia de
que os presidentes da enfermaria e da faculdade a aprovassem dificilmente a
convencia. Foi uma grande honra, sem precedentes.
Preparando-se para o procedimento, ela estava tão ansiosa de que seria
obrigada a se aliviar durante o procedimento, com outras pessoas por perto, que
não comera ou bebera por doze horas antes. A tática foi bem-sucedida e a
cirurgia ocorreu esplendidamente. Que um homem tão jovem pudesse ter uma
mão tão firme, um tal instinto natural, um comando tão minucioso da anatomia e
do procedimento, e tal velocidade e habilidade espantava a todos.
Posteriormente, o Sr. Bridges permitiu-lhe assisti-lo regularmente na cirurgia,
encorajando-a a assumir a liderança novamente em várias ocasiões.
Ela comemorou começando com aulas de leitura para Coira.
― Para que eu precisaria ler? ― Coira disse, mastigando um pedaço de
pão.
― Toda mulher deveria saber ler. Quanto mais uma mulher lê, mais ela está
no comando de seu próprio destino.
― Eu queria de bom grado, era encontrar um pote de ouro.
― Isso não é provável que aconteça. Agora, nunca ensinei outra pessoa a
ler. Normalmente, eu apenas recomendo livros. Mas começaremos reconhecendo
as letras do alfabeto e, com sorte, isso irá bem.
Coira sorriu. ― Acho que será tão bom professor, moço, como é uma boa
pessoa.
Os professores de Libby não faziam segredo de sua satisfação com o
aprendiz mais jovem. Passando por outros estudantes na enfermaria ou na rua,
ela frequentemente ouvia sussurros, mas menos cumprimentos do que antes. Era
o mesmo em seus cursos de anatomia e medicina clínica.
Ela redobrou seus estudos. Sempre tinha mais perguntas que precisavam de
respostas, mais notas que precisavam ser organizadas, mais tratados para
implorar à bibliotecária que descobrisse por ela. Se ela cometesse o mais ínfimo
erro com um paciente, todo o seu trabalho poderia dar em nada.
Ziyaeddin não enviou nenhuma palavra. Ficara tentada a escrever para
Amarantha e perguntar por ele, Libby não o fez. Ela não poderia. Isso a
revelaria. Isso iria revelá-lo.
No entanto, ela não podia deixar de se preocupar com o fato de que se algo
pudesse ter acontecido com ele na longa estrada por colinas cobertas de neve e
canais gelados, se ele tivesse caído confundido pelo tempo ou ferido, ninguém
saberia dizer a ela.
O duque certamente mandaria uma mensagem para a Sra. Coutts -
eventualmente. Se alguma coisa acontecesse ao seu amigo, ele faria. Ele deveria
fazer. Então Libby voltava cedo para a casa todas as tardes, evitando a biblioteca
e o pub, para saber se a Sra. Coutts ouvira falar de Haiknayes. Mas nenhuma
mensagem veio.

― SENTIMOS SUA FALTA no bar novamente na noite passada ― Archie


sussurrou para ela sobre a mesa da biblioteca cheia de livros. ― George estava
embriagado, protestando sobre Plath lhe dar aquele maldito pulmão, bem ali, na
frente de todos. Pincushion riu tanto que quase partiu uma costura.
Libby folheou as páginas para encontrar detalhes sobre a cartilagem.
― Teria feito algo bom, Joe ― disse Archie.
― Rido um pouquinho.
― Eu tenho uma lista de perguntas aqui que precisam de respostas e apenas
duas horas para realizá-las. ― Archie não entendeu. ― Me passe esse livro.
Ele empurrou em sua direção e ela encontrou o que precisava. Quando
bateu com a ponta do lápis na pergunta em seu caderno, um alívio instantâneo
percorreu-a como água em sua garganta em um dia quente. Metade das
perguntas foram feitas, outras duas dúzias ainda para responder.
As palavras mudavam, depois giravam para a esquerda e voltavam ao lugar.
Ela piscou, mas agora sua visão estava embaçada também. Ela mal sabia o que
deveria ler em seguida, Elementos de Fisiologia de Diderot, ou talvez Pesquisas
Fisiológicas sobre Vida e Morte de Bichat. Depois, havia a tradução latina de
Argel-lata’s de Al-Zahrawi’s Kitab al-Tasrif, para ser lida na íntegra. Estudar
essas ilustrações sozinha exigiria dias. Havia muito a aprender. Se ela pudesse
dormir.
A exaustão avançou sobre ela.
Não tinha tempo para dormir. Os meses até o retorno de seu pai estavam
diminuindo. Se mantivesse esses sucessos, ele permitiria que ela continuasse
como Joseph.
Ela não devia falhar.
A próxima pergunta da lista chamava a atenção.
Um quarto de hora depois, ela estava arrumando seus blocos de notas em
sua maleta.
― Onde está indo? ― Perguntou Archie. ― Para a enfermaria.
― Bridges o está esperando de volta agora?
― Não. ― Ela fechou a bolsa estofada. ― Eu tenho que examinar a tala da
Sra. Small novamente.
― Small? Pensei que ela tivesse ido a uma semana atrás.
― Ela caiu e quebrou o fêmur. O câncer a enfraqueceu.
― Peter fará isso. Ele está no plantão hoje à noite. Temos que escrever este
relatório.
― Não. Eu devo examiná-la. ― Primeiro, a tala da Sra. Small. Então as
suturas do Sr. Portman. Então o armário de instrumentos cirúrgicos. As
enfermeiras e os cirurgiões guardavam sempre o fórceps ao lado das serras de
ossos, e muitas vezes ficavam armazenados sujos. Se estivessem assim esta
noite, ela iria lavá-los. Os cautérios provavelmente precisariam ser colocados em
ordem também. Os funcionários cirúrgicos, que tinham muito pouco
conhecimento, não sabiam como arrumá-los de forma sensata, separando aqueles
usados na cabeça daqueles usados no pé. ― Escreverei o relatório hoje à noite e
pode colocar seu nome nele.
― Agora escute aqui, Smart, não deixarei ninguém fazer o meu trabalho,
especialmente sabendo que escreverá nesse seu novo garrancho. As letras
estavam tão juntas no último relatório que mal consegui ler. E eram todas
maiúsculas. Por que isso?
― Nosso professor pôde ler. Ouça, Archie...
― Tudo bem! ― Archie disse, raspando os dedos através de seus cachos de
gengibre. ― Farei o diagrama.
― Tudo bem. ― Ela desenharia o diagrama de qualquer maneira. Deveria
ser perfeito.
Chuva gelada escorria da escuridão acima enquanto ela caminhava para a
enfermaria. Deixando o casaco e a bolsa com o porteiro, foi direto para a ala das
mulheres.
A tala da Sra. Small estava perfeita, feita apenas cinco horas antes. Depois
de verificar o Sr. Portman, Libby foi até o estojo cirúrgico e, encontrando o
grampo no gancho esquerdo, colocou-o de volta no lugar ao qual pertencia, no
gancho direito. Ela sabia que não deveria. Estava bem no gancho esquerdo como
a direito. Ninguém se importaria.
Mas agora estava tudo bem. Melhor. Certo.
Andando para casa, a sacola cheia de livros estava no ombro dela. Archie
comentou que ela não precisava carregar toda a coleção de obras de Charles Bell
com ela todos os dias. Mas ele não entendia. Ela não queria carregá-los por toda
parte. Mas ela devia.
Trancando a porta da frente, ela pendurou o sobretudo e o chapéu e tirou as
botas. A Sra. Coutts havia deixado o jantar para ela na mesa da sala de
jantar. Até mesmo o pensamento de comer a nauseava.
Na sala de estar, ela descarregou a bolsa e empilhou o conteúdo com
cuidado sobre a mesa, mantendo as pilhas arrumadas. Não deixou lugar para
definir o texto que ela deveria ler.
Poderia ler isto no quarto dela. Entrando em seu quarto, tocou os pés dos
meninos na pintura do mercado, e então novamente, e conseguiu um momento
de alívio. Na beira da sua cama tinha três pilhas de livros e papéis. Na
penteadeira também.
Se ela se sentasse no chão, poderia usar a cadeira da penteadeira como
escrivaninha.
Ela tocou a borda da pintura novamente.
Estava tremendo. Suas meias estavam encharcadas, as calças estavam
úmidas e o casaco também. Tirando-os, ela acendeu o fogo e pendurou-os em
uma prateleira diante da lareira, depois parou na frente do espelho da
penteadeira, tirou as suíças e colocou-os na gaveta trancada. Era sábado e o Sr.
Gibbs já havia vindo e ido há muito tempo. Mas ela se sentia melhor com os
bigodes guardados na gaveta. Mais segura. Mais calma.
Mas o ritual de dobrar as suíças nos lenços umedecidos de óleo e embalá-
los em seu esconderijo secreto não a acalmou o suficiente esta noite. A
inquietação ainda formigava logo abaixo de sua pele e em seu estômago. Nervos
em excesso. Pânico.
Ela olhou para os livros em sua cama e penteadeira e mesa de cabeceira. De
pé no meio do quarto, com cada pedaço de sua pele exposta ao ar frio e úmido da
noite, se abraçou e sentiu o aperto azedo em sua garganta, o aumento salgado e
quente do desespero em seu nariz e crepitando atrás dos seus olhos, se abrindo.
Ela permitiu que isso acontecesse. Isso. Essa bagunça. Essa insanidade.
Ela devia saber. Ela sabia bem.
Se conhecia bem desde que tinha dez anos de idade, e o pai lhe contara as
histórias de sua verdadeira mãe, histórias que Libby jurava que nunca mais
repetiria, histórias que ela se esforçara tanto para manter à distância.
Isso não podia estar acontecendo. A necessidade de destrancar a gaveta,
colar as suíças de volta no rosto, vestir-se e correr para a enfermaria puxou-a
com tanta força. E se a enfermeira decidiu mover os instrumentos cirúrgicos? E
se ela rearranjou os grampos? E se a tala da Sra. Small escorregasse e ninguém
percebesse?
Os pulmões de Libby não se enchiam.
A tala estaria bem. Ela sabia disso.
Ela sabia disso.
Não custava verificar mais uma vez. Saber que a Sra. Small estava
dormindo confortavelmente com a tala no lugar a faria se sentir melhor - pelo
menos bem, pelo menos, para dormir esta noite, talvez.
Só mais uma vez.
Ela já tinha descompactado seus livros. Se ela saísse, teria que arrumar os
livros primeiro. E as meias, calças e casaco estavam molhadas. A chuva
golpeava as vidraças de seu quarto como pequenos punhos.
Os membros de Libby estavam pesados, frios. Era demais. Demais.
Ela mal conseguia levantar a cabeça. A cama estava coberta de livros e
papéis. Apenas parte dela perto da cabeceira era visível sob a bagunça.
Seu corpo estava tremendo. Precisava de comida. Quando foi a última vez
que ela comeu?
Ela ia até a sala de jantar e jogava fora o carneiro, limpava a tigela e
guardava. Então ela poderia comer as ervilhas. Possivelmente. Possivelmente. Se
não houvesse gotículas de geleia no balcão ou na mesa da cozinha.
Insanidade. Insanidade.
Pressionando as palmas das mãos na cabeça, ela ouviu um ruído como o
ranger de engrenagens. Estava vindo de seu peito, sua garganta, dentro de sua
cabeça, consumindo-a.
A tala da Sra. Small precisava de ajustes. Não, não, não, não.
Ela abriu os olhos e o barulho ainda estava vindo através dos dentes, sobre
a língua, pela câmara gelada. Afastando as mãos da cabeça, correu até o armário,
puxou uma camisola sobre a cabeça, depois foi até o fogo para se aquecer.
Através da escuridão iluminada apenas pela luz salpicada da chuva da rua, ela
desceu correndo as escadas, depois pelo corredor, o ombro direito roçando a
parede para guiá-la. Torcendo a maçaneta da porta dos aposentos dele, ela abriu
e caiu dentro.
O estúdio estava na escuridão. Sem visão, ela se dirigiu ao longo da parede
até a porta do quarto e, sob o bar ao lado, abriu a porta. A cama estava a três
passos de distância - apenas três. Ela abriu as cortinas pesadas e subiu no
colchão frio. O cobertor era luxuosamente macio e grosso.
Sem tocar no cobertor ou na roupa de cama, ela se enterrou no travesseiro e
apertou a bochecha contra ele, desejando que as penas na almofada estendessem
as mãos e a aquecessem.
Capítulo 20

Resgate

A lista de itens era do comprimento da página, a impressão inteiramente em


letras maiúsculas de forma e apertada, quase como a mão de outra pessoa.

Para coletar para pessoal boticário


Terebintina
Tomilho
Noz-moscada
Hortelã
Cardamomo
Canela
Gengibre
Alcaçuz
Argamassa
Láudano

E a lista continuava. Foi ela quem escreveu, é claro. Ziyaeddin sabia disso,
assim como sabia que não fora outra pessoa que havia entrado em sua casa e
empilhado livros ao longo do lado esquerdo do vestíbulo e em todas as
superfícies da sala, espalhado papéis pela escrivaninha e deixado pratos de
comida na mesa da sala de jantar, em torno do qual um pequeno rato estava
cheirando.
Sua maleta ocupava o chão ao lado da mesa da sala de estar. Nos meses
desde que ela veio morar em sua casa, ele nunca tinha visto a maleta a menos
que a mulher estivesse ali também. O sobretudo, o chapéu e os sapatos na porta
da frente ainda estavam molhados.
As estradas de Londres estavam todas lamacentas e congeladas em algumas
partes, e a jornada para o norte, lenta. Era algo extraordinário montar de novo,
colocar as pernas ao redor da cintura de um belo e poderoso cavalo e senti-lo sob
ele. Um milagre que ela tornara possível.
Ele pretendia finalmente agradecer e explicar-lhe a real razão pela qual
nunca tivera uma prótese adequada antes. A verdade. Ele não sabia exatamente
como faria isso sem ficar de olho nela e, com isso, corria o risco de agarrá-la e
beijá-la. Mas ele faria. Já passava da hora.
Ele tinha ido a Londres para falar com o secretário de Relações Exteriores
da Grã-Bretanha, Lorde Canning. Afundando-se na diplomacia, ele havia feito
um progresso modesto em convencer Canning e o rei de que a guerra entre a
Rússia e o Irã - e ardendo nas fronteiras de Tabir - prejudicaria os interesses da
Companhia Britânica das Índias Orientais naquela região. Também enfraqueceria
ainda mais a fronteira oriental dos otomanos. O duque de Loch Irvine o
acompanhara na jornada. Revelando nada do segredo de Elizabeth, Ziyaeddin
admitiu sua preocupação com ela.
Gabriel havia dado sua posição sobre o assunto claro: Se quebrar seu
coração, vou matá-lo.
Ziyaeddin não pretendia morrer pela mão de seu melhor amigo. E longe de
Edimburgo, ele ganhou clareza de perspectiva sobre sua hóspede, que estar
sempre a uma distância de agarrar e beijar não permitia.
Doravante ele estava determinado a manter uma distância mais sábia dela.
Era inteiramente possível recuperar o desapego inicial de seus encontros,
confinando-os apenas a sessões de desenho de uma hora inteiramente vestida.
Sem conversa.
E não haveria mais fantasias. Ou confissões.
Nenhuma.
Ele tinha isso sob controle.
Deixando o baú de viagem no vestíbulo desordenado para Gibbs guardar na
segunda-feira, ele foi para seus aposentos. O estúdio estava gelado. Ele acendeu
uma chama na lareira adiante, então puxou as cortinas para permitir a luz do dia.
Escócia no final do inverno: cinza, chuvosa, fria. Um dia ideal para pintar.
Ele tinha sentido falta deste estúdio, seu cavalete, um pincel entre os dedos.
Dentro do seu quarto de dormir, largou o estojo de viagem e só então notou
o caroço na cama. Abrindo a cortina inteiramente para que a luz do dia no
estúdio iluminasse o colchão, ele viu o intruso: uma mulher magra e esbelta,
com cabelos curtos, enroscada em uma bola apertada no centro da parte superior
da cama.
Elizabeth Shaw. Na cama dele.
Cada uma das mentiras bem-intencionadas que ele disse a si mesmo nas
últimas semanas se desintegrou.
Suas bochechas e sobrancelhas eram fantasmagóricas, o cabelo
escorregadio contra o couro cabeludo e uma camisola branca volumosa cobrindo
cada centímetro de pele, exceto no rosto. Ela mal se mexia, sua exalação era tão
fraca que o movimento de seu peito nem sequer tocava os joelhos dobrados dela.
No entanto, a cada inspiração, o corpo dela tremia.
Ele pegou o cobertor do pé da cama e colocou sobre ela. Ela não se mexeu.
Acendendo o fogo aqui também, ele foi até a cozinha, onde colocou uma
chaleira no fogão e preparou o chá. Uma tarefa simples que exigia tranquilidade
e paciência. Ele precisava disso agora.
Quando chegou pela primeira vez à Grã-Bretanha, quebrado e zangado, ele
protestava contra qualquer coisa que se movesse mais rapidamente do que ele - o
que sempre acontecia, mas também contra todos os homens que se recusavam a
ajudá-lo a derrubar o usurpador do trono de seu pai.
Depois de passar meses provando sua identidade ao príncipe regente e ao
ministro das Relações Exteriores, ele soubera que o general capturara sua irmã e
a forçara a casar-se com ele para legitimar seu governo entre as tribos locais.
Quase sem hesitação, o embaixador russo na Grã-Bretanha dissera à Ziyaeddin
que, se voltasse a Tabir, o general mataria Aairah, seus filhos e qualquer pessoa
leal a ela.
Abalado, ele implorou a seus anfitriões por ajuda. Sem sucesso. Tabir era
um aliado muito pequeno para se arriscar a enfurecer os russos. E o general
contava com o apoio dos Khans locais, que recebiam subornos de armas e ouro
russos para travar pequenas guerras entre si.
Sua Alteza é bem-vindo para permanecer como um convidado de honra da
Grã-Bretanha para sua conveniência.
Para sua conveniência, como se permanecer a cinco mil quilômetros de
onde pertencia fosse uma questão de conveniência.
Então, quando saía de uma carruagem num dia cinzento de Londres, um
assassino havia mergulhado uma faca no lado de seu corpo. Quebrado, sem
esperança, ele quase quis a morte. Foi quando Gabriel o convidou para ir a
Escócia. Lá, o duque disse, ele poderia continuar sua petição aos ministros,
regentes e embaixadores estrangeiros enquanto se curava.
Na Escócia, finalmente, ele aprendera a quietude. E paciência.
Mesmo quando Elizabeth posou para ele, ela não estava totalmente imóvel.
Ela fazia perguntas, mudava de posição, contava histórias, olhava em volta.
Agora sua absoluta quietude em sua cama era preocupante. Dado seu último
encontro, sua presença em sua cama era preocupante.
Subindo as escadas, ele foi ao quarto dela. Como a sala de estar, estava
abarrotado de livros e papéis misturados com caixas de ossos de gesso, penas
quebradas, uma caixa transbordando com copos de produtos químicos vazios.
Era o caos - um caos ordenado de forma única.
Procurando por chaves no bolso do casaco úmido pendurado no cabide, ele
destrancou o baú e encontrou o que procurava: as meias rasgadas. Dezenove
meias rasgadas, cada uma enrolada num cilindro limpo.
Ele examinou o quarto novamente, e o pavor formigou sua espinha.
Descendo para a sala, ele acendeu o fogo e olhou através de uma pilha de
lixo. Algumas foram cobertas em ambos os lados com listas: uma lista de títulos
de livros, outra de cura para os sintomas de doenças do fígado, um terço de
sapateiros em Edimburgo, e mais, todos concluídos completamente. Outra pilha
trazia equações às pressas de letras e números e símbolos que ele não
reconhecia, todas também atingidas.
Em uma folha de papel do bloco com tinta marrom escura, ela desenhara
um torso rudimentar, depois vários outros vestidos em casacos, cada um com
uma quantidade crescente de forro nos ombros. Ao lado deles, as equações
indicaram o volume de preenchimento necessário para cada um. Ziyaeddin
reconheceu o casaco; ele a havia pintado usando-o.
Ele olhou para o estudo preciso dos ombros adequados para a idade jovem
de Joseph, e a parte de trás de sua garganta ficou quente.
Tanto pensamento. Tanto trabalho. No entanto, ela persistiu.
Deixando de lado a página, ele deixou cair o lixo nas chamas.
― Não faça isso.
Ela estava na porta. A camisola caindo a seus pés, o tecido grosso engolia
sua forma, mas abria o decote em seu peito, onde ela não tinha atado. Quase tão
branca quanto o linho, o rosto parecia mais magro, as bochechas e o queixo
pronunciados, os olhos de um azul vivo cercado por sombras cinzentas.
― Bom dia para a senhorita também, Bela Adormecida ― ele disse,
pegando outra pilha de restos, seus batimentos cardíacos duros. ― Como foi seu
repouso? Imaginou ser a dona da casa na minha ausência, não é?
― O que está fazendo? ― Ela levantou a mão para apertar a frente da
camisa fechada. Seus dedos eram ossos cobertos de pele pálida. ― Não. O que
está fazendo aqui?
Não.
― Ela se empurrou para frente, os olhos fixos na mão dele estendida antes
das chamas.
― Não são nada. ― Ele gesticulou com os pedaços de papel. ― Lixo.
Estou ajudando-a - e a Sra. Coutts - a deixar limpa essa pobre sala de visitas. Eu
mal a reconheço. Ou a senhorita, aliás. Deixou de comer?
― Não. Meu peso não é da sua conta.
― Sou retratista. Sendo da minha conta ou não, notarei. ― Ele sempre
notava todos os detalhes dela. ― Está doente? ― Ele perguntou, forçando a
calma em seu tom.
― Não. ― Sua atenção não saía de suas mãos. ― Esta sessão é muito mais
desafiadora do que a anterior. Coloque-as no chão. ― Com um braço estendido,
ela deu outro passo para a sala. ― Por favor.
― Isso ― ele disse, levantando um pedaço de papel à sua frente, ― é uma
lista de itens para comprar na farmácia. Cada item foi cortado da lista. No verso,
há um diagrama rudemente esboçado que foi rabiscado. Ele jogou-o na lareira.
― Não! Pare! Neste momento, pare. ― Ela correu para ele e pegou o
restante da pilha.
Ele pegou outro papel. ― E quanto a este? Uma lista de compras de papel
de carta. ― Incluindo papel de desenho, giz e cerdas de pelo de porco. Itens para
o seu trabalho. No entanto, nenhum deles tinha sido riscado. Sua garganta ficou
espessa.
― Pare! ― Ela agarrou-o com dedos gelados. ― Não são seus para
descartar.
― Está congelada. E descalça ao que parece. Suba as escadas e se vista.
Então venha tomar uma xícara de chá e comer algo.
― Irá queimá-los se eu for. — A pele sobre a boca e os olhos estava bem
esticada.
― O lixo, sim.
― Não. Não pode queimar nada. Deseja que eu falhe?
― Falhe?
― É isso. Deseja que eu falhe.
― Isso também é lixo, é claro.
― Eu preciso disso. ― Seus olhos estavam febris brilhantes no oval pálido
de seu rosto.
― Não pode precisar de um ingresso para a exposição do museu que
aconteceu meses atrás. ― Para o qual ela o tinha convidado para acompanhá-la,
e ele havia recusado.
― Eu preciso. ― Ela agarrou o ingresso.
Ele cercou a mão dela com a dele. ― O que está acontecendo aqui?
― Liberte-me. Ou decidiu que é aceitável me tocar quando eu não quiser,
mesmo que não o faça quando eu peço?
― Está obviamente doente. O que aconteceu enquanto eu estava fora?
― Eu disse, solte-me. ― Batendo a palma da mão em seu peito, ela pegou
os papéis. Eles rasgaram. Ela abriu a mão dele e pegou as sobras. Voando pela
sala, ela os colocou debaixo de uma pilha na mesa.
― Diga-me, Elizabeth ― ele disse, controlando o pânico que o atingia.
Havia passado bastante tempo entre os artistas para reconhecer a loucura. —
Está consumindo bebida alcoólica regularmente? Ou ingere alguma medicação,
talvez?
― Claro que não ― ela retrucou. ― Não é bom para mim.
― Não está comendo. E isso não é normal na senhorita. ― Ele gesticulou
entre eles. ― Esse caos.
― Não sabe nada sobre mim.
― Na verdade, eu sei muito sobre a senhorita. Sei que sua mente é ampla,
sua ambição é alta e sua determinação é ilimitada. Eu sei que é brilhante,
talentosa e possui uma faixa de independência criativa que, se fosse um homem,
já teria atingido a sua fama como cirurgião, mesmo em uma idade tão jovem. E
eu sei que isso não é a senhorita. ― Ele pegou outra pilha de lixo.
― Não, pare! Não deve. ― Um soluço escapou dela. Soava seco, vazio. ―
Como pode agir com tal desrespeito por mim? Como pode querer que eu falhe?
Ele colocou a pilha na mesa e se aproximou dela. Ela recuou para a porta,
mas não cruzou a soleira, seus olhos correndo para as pilhas, para frente e para
trás.
― Não há nada que eu deseje mais do que seu sucesso.
― Quer se livrar de mim, como todo mundo faz depois de um tempo. ―
Contornando-o, ela recolheu as pilhas de lixo e correu para fora da sala.
Ele a seguiu pelas escadas. Ela estava fechando a porta do quarto. Ele parou
o painel com a mão, pressionando-a contra sua força surpreendente. Recuando
de repente, ela deixou a porta se abrir. Vidro quebrando.
― Não! ― Seu grito ecoou contra as paredes. Ela pulou em direção à caixa
de copos quebrados, como se quisesse pegar os cacos irregulares. Ele derrubou a
caixa, sufocando seu grito enquanto a dor cortava a palma de sua mão. Ela caiu
para frente. Ele a agarrou, puxando-a para cima e para longe dos cacos,
arrastando-a contra o peito e envolvendo os braços sobre ela.
― Pare ― ela chorou. ― Não entende. ― Seu corpo convulsionou e seu
soluço balançou através dele. Então outro. Ele segurou-a com força e pressionou
a bochecha contra o cabelo dela.
― Não, eu não entendo o que está acontecendo aqui ― disse ele. ― Mas
eu sei que isso não é você.
― Isso sou eu ― ela sufocou, lutando contra o aperto dele. ― Te odeio.
Odeio sim.
― Eu vivi em um palácio repleto de assassinos. Eu lutei algemado como
um cativo. Morri no convés de um navio em chamas, cortado em pedaços sob o
sol ardente. Posso resistir ao seu ódio por um tempo, güzel kiz.
Seus membros começaram a afrouxar, ela gemeu. ― São inúmeras ― ela
sussurrou.
Ele inclinou a cabeça para o lado dela, soltando o suficiente para testar sua
reação. Ela não procurou se libertar.
― O que são inúmeras? ― Não vozes. Pela graça de Alá, não diga vozes.
― As regras. Todas as regras me dizendo o que fazer, o que não fazer,
como fazer. Eu não posso negá-las. Eu não posso fazê-las recuar desta vez. Deve
me libertar.
― Se eu a libertar, o que fará?
― Trarei o restante dos documentos aqui. ― Sofrimento impregnava as
palavras. Ela pressionou contra seus braços.
― Solte-me.
Ele permitiu que ela escapasse de suas mãos.
― Agora, saia ― ela disse.
― Disse “desta vez”. Isso já aconteceu antes?
― Desrespeita minha exigência quando espera que eu lhe dê privacidade?
Isso é engraçado. Este é meu quarto. Não permitirá que eu fique sozinha? ― A
cor estava no alto de suas bochechas e a raiva pulsava como ondas dela.
Nada poderia ser feito aqui agora.
― Falaremos sobre isso depois ― ele disse, indo para o patamar.
― Nunca falaremos sobre isso ― disse ela atrás dele.
Ele não gostava muito de bebidas. Seu pai tinha sido um homem de grande
fé, e Ziyaeddin não conquistara um apreço pelo sabor quando menino, nem pelo
efeito confuso que dava à mente. Agora ele foi até a sala de jantar e encontrou o
conhaque. Enfaixando a mão ensanguentada com um lenço, ele bebeu um copo.
Então serviu uma dose para ela.
Seus passos ruidosamente desceram as escadas. Passou pela sala de jantar e
saiu da casa. Pela janela, Ziyaeddin viu Joseph Smart: passos rápidos, cabeça
baixa, sem a maleta.
Ele vestiu o casaco e a seguiu, mas ela havia desaparecido. Era domingo;
ela não poderia ir nem ao seu pub favorito, nem à biblioteca.
Dos estábulos atrás de sua casa, ele comandou seu cavalo. A luz do dia
desaparecera e a chuva forte começara a cair. As ruas, sempre calmas aos
domingos, esvaziaram-se.
Ele procurou por uma hora antes de encontrá-la. Ela não era idiota, e andou
até a Cidade Nova, onde os vigias podiam ser encontrados até a essa hora e com
esse clima. Só isso lhe deu alguma esperança; ela não estava tão distante da
razão a ponto de também perder seu bom senso.
― Tem um cavalo ― ela disse sem olhar para ele, continuando ao longo da
trilha. Ela parecia uma criança de rua, encharcada e anêmica. Sua voz estava
cansada, mas nivelada agora. ― Comprou em Haiknayes?
― Eu peguei emprestado. Isso já aconteceu antes? ― Ele repetiu.
― Sim.
― E o venceu.
― Venceu?
― Sim, São Jorge. Venceu esse dragão, devo supor.
― Eu acreditava ter vencido.
― Minha mão está sangrando. Me faria o favor de voltar para casa e cuidar
da ferida?
Ela parou e um grande arrepio pareceu passar por ela. Ela assentiu, virou-se
e começou a andar novamente.
― Aceita levar esse cavalo? ― Ele disse.
― Não sei montar. E o senhor não pode andar essa distância.
― Cavalgue comigo.
― Vou caminhar. Pode seguir na frente. Eu irei diretamente para casa.
― Perdoe-me se não acredito inteiramente na senhorita ― ele disse.
― Não posso mentir. Não tenho permissão para fazer isso.
― E como faz com Joseph Smart? ― Ele perguntou.
― Joseph não é uma mentira. ― Seus lábios estavam cinzas, os olhos sem
esperança. ― Ele é a parte mais honesta de mim.
Andou para o lado dela e se abaixou e ela permitiu que ele a acomodasse na
sela diante dele.
Ela não olhou para ele. Sentada confortavelmente entre suas coxas, com as
costas contra o peito e o corpo entre os braços, ela torceu os dedos na crina do
cavalo e permitiu que a chuva batesse em seu rosto.
Silenciosamente condenou o destino várias vezes, e também aquela loucura
que o fez querê-la mesmo quando ela estava doente e totalmente distante dele.
No entanto, segurá-la, mesmo dessa maneira, era um prazer sublime que ele não
trocaria por nada no mundo.
Ele pensou que ela tinha adormecido. Mas quando eles se aproximaram da
casa, ela passou a perna por cima do pescoço do cavalo e deslizou para o chão
em um único movimento rápido. Foi diretamente para dentro e Ziyaeddin deixou
o cavalo nas cavalariças.
Depois de vestir roupas secas, foi à cozinha em busca de chá.
― Perdoe-me ― disse ela da porta atrás dele. Ela ainda usava o casaco
molhado, calças e suíças. Seu corpo estremeceu como as asas vibrantes de uma
abelha.
― Não precisa pedir perdão ― ele disse.
― Tem que me perdoar ― disse ela com firmeza. ― Diga as palavras.
― Está perdoada. Onde...
― Estou? De verdade?
― De verdade. Onde está o seu kit médico?
Da despensa, ela tirou uma pequena caixa de couro e a destrancou. Parecia
ser uma versão em miniatura de seu armário de remédios. A correta organização
do conteúdo era um contraste marcante com a desordem de seu quarto, do
vestíbulo e da sala de estar.
― Mostre-me sua mão ― disse ela.
A ferida era pequena. Mas ele sabia que ela iria se machucar antes de tudo,
e voltar aqui para cuidar dele, se ele pedisse.
Ela mal o tocou enquanto limpava a incisão, aplicava a pomada e envolvia-
a com um fino pedaço de linho.
― Eu posso controlar ― ela disse.
― Obviamente não, ultimamente. ― Ele flexionou a mão.
― Vai ser desconfortável segurar um pincel por vários dias. Não deveria ter
usado sua mão dominante.
― Eu, reconhecidamente, não tenho prática na arte de me defender de
garrafas quebradas.
― Quando eu tinha dez anos, colecionei mais do que garrafas e papéis. ―
Empacotando as bandagens e limpando, ela manteve a cabeça baixa. ― Naquela
época, era muito pior do que agora. ― Ela levantou os olhos. ― Não pode me
ajudar.
― Mesmo assim...
― O senhor é....
― Imensamente heroico? Tenazmente protetor? Impressionantemente
sensato?
― Difícil de conviver.
Ele reprimiu o sorriso, pois seus lábios permaneciam tensos, todo o seu
rosto era um estudo em tensão.
― Parece que está se movendo com facilidade ― ela disse. ― Tem feito o
que prescrevi?
― Tenho.
― Sente dor?
― Muito pouca, graças a senhorita.
― Como foi a sua visita a Haiknayes? ― Ela ficou rígida, tão diferente
dela, como se castigada. Ou derrotada.
― Eu fui para Londres ― ele disse.
― A Sra. Coutts disse que estava em Haiknayes.
― Isso foi o que eu disse a ela.
― Isso dificilmente importa ― ela disse. ― Desde que o seu propósito era
estar longe de mim, qualquer destino serviria.
― Meu propósito em ir não era estar longe da senhorita. Lamento que tenha
acreditado que sim.
A descrença coloriu seus olhos, mas também provocou um desafio. ― Qual
foi o seu propósito? ― Ela perguntou.
Ele se virou para a chaleira. ― Troque a roupa molhada e depois volte aqui
para uma xícara de chá. ― Ele olhou por cima do ombro. ― Consegue?
― Consigo. Não vai...
― Não descartarei nada. Não tocarei em nada. Esta noite.
Depois de uma hesitação, ela foi embora.
Quando reapareceu na cozinha, usava o vestido azul, mas ele estava
pendurado em seu corpo como em uma barraca de roupas. Ele colocou a lata de
biscoito na mesa.
― Coma dez desses ― ele disse. ― De uma vez só. Pode fazer isso por
mim?
Ela pegou o bule e serviu. ― Por que Londres?
― Não até eu vê-la comer.
― O...
― Também tenho regras, senhorita Shaw, inclusive recusar conversar com
uma mulher que não comeu nada em um mês.
― Não um mês ― ela disse, mordiscando um biscoito. ― Eu não estava
sofrendo quando se afastou, sabe.
― Eu não supus que fosse. ― Ele cruzou os braços e encostou-se no
balcão. ― Quando foi sua última refeição?
― Eu como no pub. O Sr. Dewey está se adaptando às minhas
necessidades.
― Eu não me adaptarei. ― Ele esperou até que ela encontrasse seu olhar.
― Não nisso. Elizabeth, diga-me o que preciso saber para ajudá-la.
― Não pode me ajudar com isso ― ela disse com firmeza. ― Não tem
nada a ver com o senhor, exceto que é difícil para mim ficar sozinha. Viver
sozinha. Quando vivo entre os outros, sou mais capaz de acalmar as regras. Um
pouco. ― Ela virou o rosto para longe dele e pareceu olhar para o nada. ―
Ninguém mais pode me ajudar. Eu aprendi isso há muito tempo.
― Então me diga o que deve fazer para se ajudar.
Ela consumiu outro biscoito.
― As regras de que falou, ― ele disse ― são vozes dizendo-lhe o que
fazer?
Ela balançou a cabeça e o alívio passou por ele.
― Não vozes. Minha voz. Meus pensamentos. Meu raciocínio.
― Não há motivo para economizar pilhas de papel usado.
― Há para mim.
― Então o que é? Acredita que eles são valiosos de alguma maneira?
― Não. Não são valiosos. ― Ela fechou os olhos. ― Eu.
― A senhorita?
― Cada recado... ― Suas mãos se fecharam. ― São pedaços de mim. Não
vê? Não consegue ver porque não posso?
Ele segurou a mão dela.
― Este é um pedaço seu ― ele disse, esfregando a ponta do polegar sobre
os nós dos dedos. ― Esta peça inteligente. E isso. ― Ele disse, estendendo a
mão para afastar o cacho selvagem de sua testa. ― Não aquelas listas velhas.
― Eu sei. Racionalmente, eu sei.
― Estou assumindo que, racionalmente, sabia disso há um mês também.
Tirando sua mão, ela a segurou no colo. ― Eles são pedaços do senhor
também.
― De mim?
― No começo. ― Ela esboçou uma inalação agitada. ― Notas que fiz
enquanto produzia a prótese. E ... outras coisas... sobre o senhor.
Uma lista de sapateiros de Edimburgo. Um ingresso de museu. ― Não
entendo.
Ela se levantou abruptamente. ― Eu estava com medo. ― Seus braços
estavam rígidos, os punhos apertados ao lado do corpo.
― Não acredito ― disse ele. ― A senhorita não. Sem medo. De qualquer
coisa.
― Sim. O senhor saiu daqui mal conseguindo se mover sem dor, eu o
imaginei naquela estrada para Haiknayes e eu estava preocupada com sua
segurança. Percebi que era ridículo. Eu sei que viajou por todo o mundo e
sobreviveu a um perigo muito maior do que uma curta viagem ao interior. Mas
não pude deixar de me preocupar.
― Então me salvou em pedaços de papel usado?
Ela balançou a cabeça. Seus lábios se separaram, o pálido rosa revelando a
sombra seca dentro.
― Elizabeth, o que os pedaços de papel usado têm a ver com sua
preocupação com minha segurança na estrada?
― Se tivesse se machucado enquanto estivesse longe daqui ― disse ela, as
cordas do pescoço se esticando. ― Teria sido porque eu os descartei.
― Isso é irracional.
― Claro que é!
― Elizabeth Shaw, sua mente é extraordinária. Ágil. Brilhante. E repleta de
racionalidade.
Puxando seus lábios entre os dentes, sua garganta trabalhando, ela assentiu.
― Estou aqui ― ele disse. ― Eu estou seguro. Pode descartar os papéis
agora?
― Não ― ela disse trêmula.
― Por que não?
― Só começou dessa maneira.
― Começou?
― No começo, eu não tinha permissão para descartar anotações associadas
ao senhor. Em seguida, anotações associadas à casa. Então... ― Sua garganta se
contraiu novamente.
― Qualquer papel usado? ― As coleções de esquisitices em caixas e caixas
também, sem dúvida.
Ela assentiu. Seu corpo vacilou.
Ele empurrou a xícara para ela. Ela sentou-se novamente e envolveu as
duas mãos ao redor da porcelana, mas seus olhos dispararam em direção à
entrada, como se ela fosse saltar para a sala de estar em um instante.
Ele tocou a mandíbula dela e guiou seu rosto de volta para o dele. ―
Superou isso antes ― disse ele. ― Como?
― Estou tão envergonhada. Eu me odeio por isso. E o senhor também vai,
se já não estiver me odiando.
― Eu não ― ele disse, encostando-se na cadeira e se distanciando dela,
quando tudo o que queria era envolvê-la em seus braços e assegurar-lhe o quão
completamente ele nunca poderia odiá-la. ― Como superou isso no passado?
Ela ficou em silêncio.
― Quando desobedece às regras ― ele disse, ― o que acontece?
― Eu... ― Ela balançou a cabeça. ― Elas me rasgam. Obedecer traz tal ―
ela arranhou a garganta ― tal alívio. ― Seus olhos eram poças de desespero,
mas também pensavam. ― Mas quando sou capaz de negar um anseio,
enfraquece.
Será que o anseio dele funcionaria de maneira semelhante?
― Isso é uma boa notícia ― disse ele. ― Como negá-lo?
― Isto é ... difícil. ― Seus dedos pressionaram na mesa. Ela olhou para a
porta novamente. Ficando subitamente de pé, ela pegou o bule de chá e encheu
ambas as xícaras. Depois foi até o fogão e acendeu o fogo embaixo da chaleira.
― Me distraio com outras tarefas ― ela disse para a chaleira. ― Isso ajuda.
― Entendo.
Ela olhou ceticamente para ele. ― Entende mesmo?
― Estou tentando.
― Às vezes eu apenas cedo parcialmente ao desejo. Isso geralmente
diminui o calor também.
― O calor?
― Meu pai uma vez disse que os desejos pareciam ser como uma febre em
mim que queria consumir tudo racionalmente. ― Um sorriso passou pelos olhos
dela. ― Ele é um médico.
Até mesmo essa pitada de prazer em seu rosto, alargava o peito de
Ziyaeddin.
― Quando era menina, essa febre não a consumiu. Afinal está aqui.
― Não deve me olhar assim, como se eu já tivesse conseguido. Não
entende.
― Explique para mim. Não estou indo a lugar nenhum. Não de novo ― ele
acrescentou.
Seus olhos estavam cheios de dúvida. Mas também determinação. ― Não
foi sua partida que causou isso. Essa é a sua arrogância falando.
Ele reprimiu um sorriso. ― Não é?
― Eu não o conhecia quando tinha dez anos.
Não. Quando ela tinha dez anos de idade, ele havia sido algemado a um
remo no ventre de um navio. ― Embora eu teria gostado de tê-la conhecido
nessa época.
Seu olhar se desviou.
― Meu pai nos levou para Londres. Eu estava acostumada a me mudar.
Mas esse movimento foi diferente. Nós tínhamos deixado todos os nossos
móveis aqui. Havia tanta novidade. ― Sua mão agarrou o cabo da chaleira. ―
Foi quando as regras se multiplicaram.
― Que tipo de regras?
― Todos os tipos. ― Ela olhou para a parede. ― Havia um número preciso
de passos a serem tomados entre a carruagem e a porta da frente, postes de
iluminação a serem tocados em cada caminhada até o parque, uma caligrafia
especial que eu só podia usar para certas tarefas, páginas de livros que deveriam
ser memorizadas antes de poder ir para o próximo, um cão de pano para ser
colocado na cama a cada noite para que eu pudesse dormir. Uma noite, lembro-
me que não consegui encontrar o cachorro. Eu destruí meu quarto procurando
por ele. A criada o lavara e estava molhado em um gancho na cozinha. Eu não
conseguia colocá-lo na cama adequadamente, então o segurei em meus braços
até de manhã e não dormi. Eu peguei um resfriado horrível. Essa foi a única vez
que me lembro de estar doente em toda a minha vida. Logo depois disso,
comecei a coletar itens inúteis.
― Tornei a vida em Londres impossível para meu pai. Voltamos para
Edimburgo prematuramente. — Um sorriso apareceu hesitante em seus olhos. ―
Quando comecei a estudar textos médicos, todas as regras se acalmaram. A pior
delas desapareceu completamente. Está pensando que estou estudando medicina
agora ― ela disse, a ponta do dedo indicador tocando a alça da chaleira, ― mas
isso aconteceu. Novamente. Isso é o que está pensando, não é?
Ele estava pensando em como ele queria que aquele dedo se ocupasse nele.
Todos os dedos dela.
― Talvez ― ele disse.
― Enquanto estava fora, o Sr. Bridges me designou para minhas próprias
operações.
― Parabéns. ― Ele não conseguia desviar o olhar. Observá-la se mexendo -
qualquer parte dela - era uma dor prazerosa que ele não deveria ter negado a si
mesmo nem por um dia.
― Há muita responsabilidade em ser o cirurgião principal. E o inverno
sempre traz muitos pacientes para a enfermaria. Além disso, o novo curso de
anatomia prática é muito mais desafiador do que o último. Eu tenho muito
trabalho. Eu estive poupando o sono.
A imagem dela enrolada em uma bola em cima de sua cama nunca iria
desaparecer.
― Quando está exausta ― ele disse ― as regras ficam mais fortes. Não é?
― Sim.
― Peço perdão por tê-la deixado.
― Não foi sua responsabilidade. Eu deveria ser capaz de comandar meus
próprios pensamentos e ações. Eu sou uma mulher adulta.
Uma mulher excepcional. Mesmo a pele clara e a palidez maçante não
podiam esconder isso.
Ela ergueu os cílios e ele foi pego dentro do azul - seus desejos, seus
batimentos cardíacos, todos os seus anseios.
― Elizabeth.
― Devo derrotar eu mesma este dragão, Ziyaeddin.
Ouvir seu nome nos seus lábios novamente fez seu tolo coração dar
cambalhotas selvagens.
A quietude não natural brilhava em suas feições nuas agora. ― Havā-tō
dāram ― ele se ouviu sussurrar.
― O que isso significa?
― Estou aqui, Elizabeth. Permita-me ajudá-la.
Seus ombros caíram um pouco. ― Perdoe-me por dormir em sua cama.
― Eu sou categoricamente incapaz de aceitar um pedido de desculpas por
isso. ― Um prazer inexorável brilhou em seus olhos.
― No meu quarto ― ela disse, ― há muitas tarefas a serem feitas
perfeitamente a cada noite. Sábado à noite eu estava além da exaustão. Para
evitar ter que fazer todas as tarefas, prometi a mim mesma que faria depois.
― Depois?
― Depois que dormisse. Então eu fugi. O único lugar da casa onde não
havia nada a fazer era em sua cama.
― Não é precisamente o que um homem gostaria de ouvir.
― Isso não é engraçado.
― Não, isso realmente foi engraçado. Trágico. No entanto, divertido.
Lentamente seus olhos arregalaram, e ele ousou esperar que ela estivesse
pensando o mesmo que ele: que o lugar dela era em sua cama.
― Esqueci de fazer as tarefas quando acordei ontem e, quando saí de casa,
esqueci que estava sem minha maleta, ― ela disse. ― Eu estava tão zangada
com o senhor que nem sequer pensei nela.
Ele riu.
― Não devia rir! Normalmente, quando estou com raiva, as regras ficam
ainda mais altas e impossíveis de resistir, não mais silenciosas.
― É capaz de resistir a elas com frequência?
Colocando a chaleira sobre o bloco de ferro na mesa, ela se sentou
novamente.
― Depois de Londres, eu aprendi a fazê-lo. Em vez disso, eu me subornei.
Eu me dei prêmios para ter sucesso. ― Sua testa franziu. ― Eu me sinto como
uma perfeita idiota lhe dizendo isso.
― Prêmios?
― Fiz uma lista das regras.
― Outra lista?
― Uma lista boa. No topo estavam as regras que achei mais fáceis de
recusar. No fundo eram as mais difíceis. Comecei no topo, recusando-me a
obedecer mais facilmente primeiro. Quando conseguia fazer isso todos os dias
por uma semana, eu me recompensava com um presente.
― Pode usar essa tática agora?
Ela balançou a cabeça.
― Por que não? ― Perguntou.
― Eu tenho tudo o que quero.
Ele se levantou e colocou uma xícara e um pires na pia. ― Deve haver algo
que queira, por menor que seja, que ainda não possua. Uma ideia chegará até a
senhorita. ― Ele saiu da cozinha e ela o seguiu.
― Não irá...
― Eu lhe disse que não tocaria em nada na sala de estar. Não essa noite.
― E amanhã? ― Ela perguntou.
― Amanhã irá começar a se cuidar.
Suas mãos se torceram em suas saias. ― Eu posso. Eu devo. Eu não desejo
incomodá-lo.
― Claro que pode. ― Ele sorriu. ― Mas não por isso. Eu compreendo.
― Não me jogará na rua?
Ele se aproximou dela e sentiu toda a necessidade que tentara negar. ―
Realmente acredita que eu poderia fazer isso?
― Não. Amanhecerá em breve. Devo posar para o senhor, já que ontem não
o fiz?
― Neste momento irá subir e vestir o seu traje de aluno. Então, levarei
Joseph Smart para um café da manhã para comemorar a conclusão bem-sucedida
de sua primeira sessão de estudos médicos.
― Isso foi há semanas.
― E eu imploro seu perdão por perder isso.
― Não precisa. Antes de partir, naquela última vez em que o vi, deixou
claro para mim que não me ajudou em meus estudos por minha causa, mas por si
mesmo.
Ele era um prêmio estúpido.
― Eu entendo ― ela continuou, o vinco se formando profundamente na
ponte de seu nariz. ― Não exijo que celebre minhas realizações.
― E se eu quiser?
― Então suponho que irá. ― Os lábios se levantaram de um lado. ―
Príncipes costumam fazer o que bem entendem, afinal de contas.
A dor dentro dele era muito dura e profunda. Não podia escapar disso.
― Eu não a deixarei novamente ― disse ele.
Por segundos que pareciam ter sido anos, ela não disse nada. Então segurou
as saias e subiu as escadas correndo.
Capítulo 21

O Prêmio

Ela escolheu o prêmio desejado.


A proposta que fez para ele era assim: todo domingo ela escolheria uma
regra que desejasse dobrar - até quebrar - e, no final de uma semana de sucesso,
ele deveria recompensá-la com uma ilustração de uma parte anatomicamente
correta da história do corpo humano. A tinta, as ilustrações serviriam para seus
estudos. Ela explicou a ele que tais desenhos eram caros e que os estudantes
raramente os possuíam.
Sem alarde, ele concordou.
Começando com a desordem da sala, ela descartou primeiro os papéis
usados. Na segunda-feira, recolheu uma pilha de restos e colocou-os diante do
fogo, depois saiu da sala, com o estômago embrulhado e a garganta azeda de
pânico.
Uma hora depois, ela voltou, pegou a pilha, moveu a tela diante da grade e
jogou-as para dentro. Quando as chamas pegaram as páginas e as consumiram, o
pânico cresceu em sua garganta. Ela deu um passo em direção ao fogo.
― Jantou? ― Ele disse da porta da sala.
Ela girou para encará-lo. Não sabia que ele estava em casa.
― Quero primeiro um desenho do ombro ― disse ela.
― Terá seu desenho madame, no domingo de manhã. Agora, no entanto,
jantará. Comigo.
Eles jantavam e falavam de nada e de tudo, dos estudos dela e das
encomendas dele. Quando ela foi para a cama, tocou a pintura dos garotos no
mercado apenas duas vezes, em vez das três vezes habituais.
No final da tarde, o salão estava limpo. Sempre que superava qualquer
regra, tornava-se mais fácil superar as outras, e no sábado de manhã ela jogou
todo o lixo de seu quarto na lareira também.
Depois disso, ela retirou todos os livros do vestíbulo e do corredor,
guardando cuidadosamente os dela e o de seu pai na sala de estar e devolvendo
os outros aos seus donos. Ela fez o mesmo com as pilhas de livros em seu
quarto.
Com leveza em seu peito, ela exigiu dele seu prêmio.
― O torso. Frente. Macho, por favor.
Ele ofereceu-lhe um sorriso bonito e simples e depois enxotou-a. Ela quase
nunca o encontrava. Ele tinha assumido duas novas encomendas ao mesmo
tempo e nem sequer tinha tempo para suas sessões nas manhãs de domingo. Mas
a cada sábado, quando ela pedia outro desenho para lhe dar razões para resistir
às regras, ele fornecia.
― Suas bochechas estão corando de novo, Joe ― Coira disse, sentada ao
seu lado no muro do beco, compartilhando o almoço de Libby. ― Está
brilhando.
― É porque comi todas as minhas salsichas antes de que viesse e as
engolisse ― Libby disse e mordeu um pedaço do excelente pão de aveia da Sra.
Coutts. O sol estava claro. O Sr. Bridges confidenciou a ela que o Dr. Jones a
considerava a melhor entre os alunos do primeiro ano e muito além da maioria
dos estudantes de medicina avançados também. Ela tinha muitos motivos para
brilhar.
― Não, moça ― disse Coira. ― Está brilhando porque está apaixonada.
Libby engasgou com as migalhas.
Coira ofereceu o frasco. ― Tome um gole, moça. Acalmará sua agitação.
Libby olhou para a companheira.
― Quem é ele? ― Disse Coira. ― Ou ele é uma moça?
― Ele não é uma mulher ― Libby descobriu sua boca dizendo.
― Disse a ele que conquistou seu coração? Ou, se o fizer, é mais provável
que ele corra do que baixe suas ceroulas?
As bochechas de Libby estavam quentes. Ela pulou do muro. Arrumando os
restos de comida, murmurou: ― Compartilhe seu almoço com uma pessoa que
faça provocações em vez de agradecer.
Coira gargalhou. Então ela disse seriamente: ― Se ele não é um bom
homem, ele não a merece.
― Coira, não deve...
Coira fez o movimento de fechar os lábios com uma chave. ― Para meu
túmulo. Agora vá e engane todos aqueles homens que não conseguem ver o que
está bem debaixo de seus narizes.
Naquela noite, Libby observou atentamente seus amigos no pub. A cada
palavra, Archie e os outros falavam com ela, cada vez que olhavam para ela, ela
se perguntava se também perceberiam a verdade.
Ela tinha sido muito arrogante, certa de que seu disfarce e maneirismos
adotados escondiam sua feminilidade. Mas se Coira tinha percebido, quem mais
poderia perceber? A admiração de Archie por ela era muito forte, será que
poderia continuar se soubesse a verdade? Chedham poderia simplesmente estar
aguardando o momento ideal para expô-la?
Não. Não Chedham. Seu ciúme era sempre muito óbvio. Ele certamente a
revelaria imediatamente se soubesse.
Voltando para casa, foi diretamente para os aposentos de Ziyaeddin.
Dias antes, quando ela foi pedir o último prêmio a ele, ela o encontrou em
pé no cavalete, com a luz da tarde iluminando seu cabelo acetinado, pele quente
e camisa branca, que ele usava sem colarinho ou gravata. Seu pulso saltou. Ele
sempre fazia seu pulso acelerar.
Ele não tinha ideia. Cada vez que a vontade de confessar a ele apertava sua
garganta, ela engolia, lembrando-se de que o alívio de lhe dizer duraria apenas
um momento antes de querer confessar outro pensamento particular para ele.
Quanto mais ela negava cada desejo, mais fracos eles se tornavam.
Agora ela contava até dez em sua cabeça.
Ela não tinha nenhum pedido para exigir dele, nem por mais três dias. Ela
não precisa contar a ele sobre Coira também. Coira não representava ameaça.
Ela não tinha nenhum motivo real para falar com ele agora, apenas o desejo de
falar com ele.
Voltando à sala, ela pegou um livro e começou a trabalhar.

― EU TENHO UM pedido extraordinário. ― Ela estava na porta de seu


estúdio, com as mãos apertadas em torno de ambos os batentes. Ele a proibiu de
entrar em seus aposentos, mesmo como Joseph Smart. Também a proibiu de
falar com ele, a menos que ele estivesse fora do seu estúdio. Falar com ela -
estar com ela - era imprudente.
Então ele raramente saía de seu estúdio.
Obviamente, ela não estava levando a sério ao menos uma de suas
restrições.
― Eu gostaria de desenhos de todo o corpo, frente e verso. O corpo inteiro.
Masculino. Todas as partes externas.
O fato de suas palavras produzirem uma onda instantânea de calor em suas
partes externas masculinas só provou sua suscetibilidade idiota.
Ele voltou sua atenção para a tela.
― Sua vontade será feita ― ele disse, mergulhando o pincel em tinta
fresca.
― Não me perguntará por que estou exigindo esta ilustração abrangente?
― Eu confio na senhorita.
― Deveria. Porque isso é diferente. ― Assim como a voz dela: subjugada,
mas firme.
Ele fez uma pausa no meio da pincelada. ― O que é diferente?
― A regra que eu estou determinada a quebrar.
Ele se virou para ela. ― E qual é essa?
Suas sobrancelhas arquearam. ― Quer saber?
Ele disse a ela que não precisaria informá-lo sobre qual regra estava
conquistando a cada semana, apenas qual prêmio ela exigia que ele desse como
incentivo por conquistá-la. Dessa forma, ele efetivamente havia evitado uma
ocasião para falar com ela a cada semana.
Ele era um homem se afogando, agarrando-se à madeira flutuante.
― Se quiser me dizer ― ele disse, ― sim, eu gostaria de saber. Ele queria
saber tudo: suas regras irracionais, seus estudos, suas preocupações, seus
triunfos, o cheiro de seu pescoço, o sabor de sua boca, a textura do corpo dela
contra o dele.
― Visitar a enfermaria, ― ela disse. ― Sem o Sr. Bridges, quando não
preciso. Quando não sou esperada lá. Vou verificar os pacientes que vi no início
do dia, para me assegurar que seus curativos não escorregaram ou que as suturas
não estouraram, ou se eles estão recebendo os medicamentos corretos. Depois do
Natal, adquiri o hábito de ir várias vezes ao dia - dia e noite, na verdade. Agora
só vou duas vezes, uma vez todas as tardes e uma vez todas as noites no meu
caminho de volta do pub.
― A enfermaria não está no caminho entre o pub e esta casa.
― Isso é verdade.
Ele inclinou a cabeça e tocou o pincel entre os dedos. Ela estava muito
sombria e ele tendo a inconveniente necessidade de ir até ela, tomá-la nos braços
e fazê-la esquecer a maldita regra e a enfermaria – tudo, menos ele.
Mas isso não a ajudaria. Isso não ajudaria a nenhum deles.
― Não há enfermeiras competentes e médicos de plantão à noite para
cuidar disso? ― Perguntou.
― Não tem nada a ver com eles.
― Entendo.
― Entende? Eu sei que é difícil de entender. Meu pai nunca entendeu
inteiramente, nem Alice, nem Iris, nem mesmo Amarantha ou Constance.
Nenhum deles entende realmente como posso estar presa a necessidades
irracionais.
― Suponho que isso seja um elogio. ― Seus lábios se torceram um pouco,
como se ela estivesse tentando sorrir, mas não podia.
― Não pensarei menos do senhor se não puder entender.
― É especialmente difícil quebrar essa regra - visitar a enfermaria várias
vezes - porque coincide com sua preocupação real com os pacientes.
Um som veio dela abruptamente. ― O senhor entende.
― Visita lá duas vezes por dia, mesmo quando passou a manhã toda na
enfermaria e a tarde em aula? ― Ela assentiu com a cabeça.
― Faça isso uma vez por dia durante a vigília e, no sábado, eu lhe darei o
que deseja.
Suas feições floresceram em um sorriso. ― Obrigada. ― Então ela se
curvou. ― Milorde.
― Comece agora, rufião ― ele disse.
Ainda sorrindo, ela se afastou, e ele foi novamente afundado em uma paz
que não gostava ou queria mais.

― EU CONSEGUI ― LIBBY disse, entrando na cozinha enquanto o sol da


primavera quebrava por trás das nuvens e brilhava sobre o café e o pão com
manteiga na mesa.
Ele olhou do jornal em suas mãos para ela. ― Conseguiu o que?
― Não brinque comigo.
― Eu nunca o faria. ― Seu olhar estava em cima dela, viajando através de
seu rosto e abaixo de seu pescoço e ao longo de seus ombros e braços e seios. ―
Parece bem.
― Eu estou melhor. Eu consegui. Deve me pagar.
Dobrando o jornal, ele o colocou sobre a mesa. ― Antes do café da manhã?
― Já tomou seu café da manhã. ― Ela gesticulou para os pratos.
― Eu quis dizer o seu café da manhã.
― Tomei o café da manhã antes do amanhecer. Eu não pude dormir. Tenho
antecipado isso por sete dias. Infelizmente, acabei de receber uma nota urgente
de Alice que Constance pretende visitar Leith esta tarde. Eu devo estar lá.
Aparentemente, na última vez que Constance a visitou, Alice teve dificuldade
em convencê-la de que eu não fugira para me juntar a uma trupe de músicos
itinerantes. Então devo ir para Leith agora. Mas esteja certo, senhor, vou cobrar
meu prêmio no momento em que retornar.
― Como quiser, senhorita. ― Ele assentiu.
― É realmente da realeza?
Ele hesitou apenas um momento. ― Sim.
― Eu o feri. Com aquele vidro quebrado. Terá que me decapitar por isso?
― A senhorita não tem nenhum respeito pela autoridade ― ele disse,
assumindo seu papel novamente. ― Eu feri a mim mesmo com esse vidro.
― Na verdade não.
― Sim, será punida por causar um arranhão na pele ungida. Embora não
seja decapitada. Isso é uma prática bárbara.
― Prisão perpétua, talvez?
― Possivelmente. Cuidarei disso assim que eu puder encontrar o tempo.
Até lá, aproveite Leith.

QUANDO ELA FOI embora da casa, finalmente largou o jornal que olhava
sem ler, apoiou os cotovelos nos joelhos e pôs o rosto nas mãos. Com a vontade
dela de ter sucesso, a força vulnerável que oscilava à beira de quebrar, seus
inteligentes olhos brilhantes e seus lábios - por tudo que era sagrado, seus lábios
- ela seria a sua morte.
A campainha tocou. Nenhum conhecido o visitaria nessa manhã de sábado.
Pegando novamente o jornal, determinado para realmente lê-lo, ele se acomodou
na cadeira.
A campainha soou novamente pela casa. Ele dobrou o jornal e foi até a
porta.
Um estranho estava na varanda, um cavalo na rua abaixo, escuro de suor.
― Sr. Kent? ― O homem disse.
― Sim.
Ele estendeu uma carta, depois desceu apressadamente os degraus e para
sua montaria.
Ziyaeddin olhou para a frente da carta na sua mão.
Ali nunca havia enviado correspondência por um mensageiro privado

A graça de Alá esteja contigo, Tabirshah!

Escrevo com notícias da princesa: a saúde do general falha. Ele não viverá
até o verão.
Seu fim está próximo e, com ele, a restauração da justiça.
A princesa lhe envia agora, um amigo de confiança que irá servi-lo em sua
jornada para casa.

Ali

Ziyaeddin releu as palavras até elas se encontrarem. Sua irmã estaria livre,
seu cativeiro estava no fim, seus filhos a salvo da ameaça. Com a morte do
general, os aliados de sua família se levantariam em sua defesa. Era tudo o que
ele desejara.
No entanto, sua respiração falhava.
Tabirshah. Rei de Tabir.

QUANDO LIBBY RETORNOU para casa, ela não o encontrou em seu


estúdio ou mesmo na cozinha. Ele frequentemente saía à noite.
Ela entrou na sala para pegar um livro.
Ele estava sentado diante da lareira, copo e garrafa na mesa ao lado dele.
― Está aqui! ― Ela disse, em seguida, levantou a palma da mão quando ele
pegou a bengala. ― Não, não se levante. Sou apenas eu.― Ele a olhou tão
singularmente, como se ela tivesse falado em uma língua que ele não reconhecia.
Seus olhos pareciam cheios de escuridão.
Quando ele não respondeu, ela disse: ― Por que está aqui?
― Eu moro aqui ― disse. ― Esta é a minha casa.
― Nunca senta nesta sala. Em todos os meses que vivi aqui. Nem uma vez.
― Talvez eu o faça quando não está.
Ela atravessou a sala e sentou-se na beira da cadeira em frente a ele.
― Quer tanto me evitar ― ela disse, ― que mesmo que deseje ficar em
casa, fica fora e nunca entra na maior parte dela quando estou aqui. Admita.
― Sim ― disse, inclinando-se para a frente com os cotovelos nos joelhos e
dobrando as mãos. ― Faço tudo ao meu alcance para evitar vê-la. Como foi seu
dia em Leith com Lady Constance?
― Horrível. Isto é, ela não é horrível. Foi maravilhoso vê-la e a pequena
Madeline, que está crescendo tão rapidamente. Mas Alice queria bolos para
Madeline, e Constance sugeriu que fizéssemos um passeio, e de alguma forma
acabamos no mercado. Isso foi ruim.
― Prendeu seus lábios entre os dentes ― disse, olhando para a boca dela,
mas parecia sem prazer.
Ela abriu os lábios. ― O que é que tem?
― Faz isso quando está especialmente angustiada. ― Ele ergueu o olhar
para os olhos dela.
Ela manteve o olhar. ― Algo está errado. O que está errado? Estava de
excelente humor nesta manhã. O que aconteceu? É a sua perna? Está em ...?
― Não. O que correu mal no mercado?
Ela enfiou a mão no bolso e tirou vários pedaços de papel amassados. ―
Havia tantas pessoas. E tanto barulho.
― Há barulho e pessoas em todas as ruas de Edimburgo, mas as tem
atravessado com sucesso por um mês. Não tem?
― Eu não sei o motivo pelo qual alguns lugares me agitam mais do que
outros. Isso nunca acontece quando estou cuidando dos doentes.
Ele olhou para o fogo.
Ela jogou o lixo. O alívio de vê-los se queimar foi lento, uma primavera
jorrando sobre uma rocha seca.
― Sou como uma criança, aprendendo a andar e a cair de novo e de novo,
uma criança que precisa cantar repetidamente o alfabeto para lembrar. Eu
suspeito que é assim que me vê.
― Não a vejo como criança, Elizabeth Shaw. Nem um pouco.
― Por que está bebendo? O que aconteceu? Eu não pararei de perguntar até
que me diga, sabe. Minha mente não permitirá que perguntas fiquem sem
resposta. Precisa me falar.
― Não direi, não importa quantas vezes me pergunte. ― Agora, o menor
vinco apareceu em um lado de sua boca.
― Posso quebrá-lo ― disse. ― Eu quebrei meu pai. Ele ficou tão exausto
que fugiu para Londres por um ano inteiro. Acho que ele sempre esperou que eu
superasse minha peculiaridade. Quando finalmente não precisava de férias. Às
vezes quebro Alice e Constance também. Tenho certeza de que Alice permitiu
que eu viesse, porque até mesmo a ideia de que eu morasse na casa dela a
deixava exausta. O Dr. Jones está sempre exasperado com minhas perguntas.
Archie ri, mas às vezes ele olha para mim como se eu fosse louca ou
simplesmente impetuosa. Não sou impetuosa. É só que minha mente nunca
descansa.
― Não me quebrará.
― Eu posso.
― Se dezessete anos de exílio tiveram um benefício, é que eu aprendi a ter
paciência. ― Seu olhar viajou por seu rosto e pelo pescoço e ombros. ― Talvez
dois benefícios.
Ela poderia simplesmente se jogar para ele. Nele. ― Dezessete? ―
Perguntou, agarrando as costas da cadeira para se impedir de se mover.
― Oito anos em Alexandria. Dois no mar. Sete aqui. ― Mais pedaços dele.
Eles não a satisfizeram.
― Não vai me contar o que aconteceu hoje? ― Ela perguntou.
Ele não disse nada quando a luz do fogo tocou em seus olhos.
― Já fez meu desenho? ― Ela perguntou.
― Não. Minhas desculpas, madame. Irei imediatamente. ― Ele se
levantou.
― Não precisa ir. Eu tenho um papel aqui, e como eu gostaria muito de vê-
lo desenhar, mas me barrou do seu estúdio, deve ficar aqui e desenhá-lo.
― Devo, tirana?
― Oh, sim. ― Ela pegou uma folha na mesa, pena e tinta, mas quando se
virou ele já estava em seu ombro e colocou a vela na mesa.
― Aqui ― disse, pegando os itens dela e as mãos deles esbarraram.
Nenhum dos dois se afastou. ― Esta mesa serve.
― Estou feliz que ainda não o tenha feito ― ela disse, puxando outra
cadeira para a mesa. ― Decidi que não quero o corpo inteiro. Apenas a mão e
antebraço. Em detalhe.
Ele mergulhou a caneta em tinta. ― Por que mudou?
― Se opõe?
― A desenhar uma mão e antebraço em vez de uma figura inteira? ― Ele
olhou de lado para ela, uma única sobrancelha levantada.
― Não precisa olhar para mim como se eu fosse louca.
― Perdoe-me. Tenho o prazer de desenhar o que precisar. Esquerda ou
direita?
― Por favor, desenhe a esquerda. Sua, especificamente. ― Um redemoinho
de nervos subiu direto para o centro dela.
Ele colocou a mão esquerda, palma, para baixo, sobre a mesa. A pena
encontrou papel e uma linha de graça sutil apareceu.
― Não se opõe a isso também? ― Ela disse, seu pulso estava rápido.
― Por que eu deveria?
― Por eu possuir uma pintura sua?
― Já possui. ― A pena movia-se rapidamente através do papel, com
absoluta confiança, as linhas limpas e afiadas.
― Eu não ― disse.
― A tela do mercado em seu quarto, é a parte de fora do mercado no bairro
de Alexandria, onde passei minha juventude.
― O garoto de cabelos negros? ― Aquele que ela tocava todos os dias - o
toque que se tornara obrigatório desde o primeiro dia em que ela chegara a esta
casa. ― É o senhor?
― Sim.
― Quem é o outro garoto?
― Joachim. Ele era meu companheiro mais próximo, quase um irmão para
mim, para o horror da minha mãe.
― E ele era horrível?
― A família de Joachim era cristã. Meu pai sempre foi um homem de
mente e espírito expansivos e acolheu todos os homens de fé em sua amizade.
Depois que escapamos, nos instalamos em um bairro cristão da cidade para nos
esconder melhor. Mas minha mãe temia por seus filhos.
― Tinha irmãos?
― Tenho. Uma irmã. ― Ele pousou a pena, afastou a cadeira e se levantou.
― Eu imploro seu perdão ― disse ela rapidamente. ― Por favor, não saia.
Não me aprofundarei mais.
― Eu não sairei. ― Ele tirou o casaco e pendurou nas costas da cadeira. ―
A menos que deseje que eu faça isso ― ele disse com um sorriso parcial. Ele
usava um colete azul meia-noite que se ajustava perfeitamente ao seu torso, e
seus ombros estendiam a fina camisa de linho.
Libby sacudiu a cabeça.
Ele se sentou, dobrando a manga esquerda acima do cotovelo. Havia apenas
pele e músculos escuros e, em seu antebraço, que esteve fortemente amarrado,
pelos negros. Novamente ele pegou a pena.
― Sua mãe temia que fosse descoberto pelos cortesãos que haviam traído
seu pai?
― Não. Naquela época, estávamos longe de casa e bem escondidos.
― Então o que ela temia?
― Que nos convertêssemos à fé de nossos protetores. Ela não precisava se
preocupar com a minha irmã. A fé de Aairah era inabalável como uma
montanha, mesmo então.
― Desenha tão rápido, mas com tanta precisão ― disse quase controlada.
― Seu talento é surpreendente.
― Um presente do criador do qual este servo não é digno.
― Obviamente, sua mãe não precisa se preocupar com sua fé também.
Embora eu suponha que os cristãos atribuam esses dons a Deus também.
Ele sorriu, mas não desviou o olhar do desenho.
― Quem o ensinou como desenhar e pintar?
― O tio de Joachim. O pai de Joachim era um guarda de um dignitário e
tinha pouco tempo para nós. Mas seu tio era um homem humilde. Ele possuía
uma loja no mercado onde vendia símbolos para os peregrinos. Do alto do
telhado, Joachim e eu espiávamos as lavadeiras no trabalho.
― Por que espiavam as lavadeiras?
― Elas arregaçaram as mangas para trabalhar, güzel kiz ― disse ele, com o
movimento preciso de sua pena. ― Quando um menino está morrendo de sede,
se deleita com uma única gota de chuva.
Ela olhou para o antebraço dele.
― O talento de seu tio era prodigioso ― continuou ele. ― Foi
desperdiçado nesses símbolos para peregrinos.
― Não para os peregrinos, suspeito. Nem para o senhor.
Agora ele virou o sorriso para ela. ― Na verdade não.
― Já está quase terminando ― disse ela. ― Mas eu gostaria de outro.
― Que outro poderia querer? Um símbolo, talvez, de si mesma matando o
dragão como tem feito tão corajosamente nas últimas semanas? ― Seu olhar
estava se movendo sobre seu rosto como em outras vezes, como se ele não visse
suas feições, mas a arte que podia fazer delas.
― Movimento ― disse ela. ― Eu gostaria de uma série de pinturas.
― Uma série? ― Sua risada silenciosa espalhou calor nela. ― Está
exigindo.
― Quatro ou cinco imagens.
― Ah, a tirana procura se aproveitar de mim agora.
― Aproveitar? ― Ela disse um pouco instável.
― Não deve quebrar outra das suas regras antes de receber outro prêmio?
― Lembre-se que originalmente concordou em desenhar uma figura inteira.
― Fiz isso, idiota imprudente que eu sou. Que assim seja. Que movimento
quer estudar exatamente?
― Isso. ― Com a ponta do dedo indicador, ela traçou a crista do músculo
do comprimento de seu antebraço.
Ele ficou totalmente parado.
― Este músculo ― disse ela, acariciando lentamente. A textura da pele dele
esticada causou um prazer selvagem dentro dela. ― Eu gostaria de ter um estudo
detalhado de seu movimento, começando com os dedos estendidos do punho à
mão.
Depois de um momento ele disse bem baixo: ― A mão.
― Sua mão ― disse ela. ― Sua mão que eu senti pressionada sobre o meu
coração quando eu teria arrancado cada mecha do meu cabelo se não estivesse
lá, quando eu teria me trancado no meu quarto e espancado nas paredes até que
eu desmaiasse de exaustão, pois os pensamentos não seriam calados, não
importa como eu tentasse. ― Seus dedos subiram por seu pulso. ― Esta mão
que por dias trazia marcas dos arranhões que eu coloquei lá com minhas unhas
quando me segurou, o que nunca falou ― disse ela, passando as pontas dos
dedos sobre sua pele lisa. ― Como eu sinto muito tê-lo tratado assim, e como
sou grata.
― Não deve se arrepender. ― Ele falou asperamente. ― E sou eu que sou
grato por ter confiado em mim para ajudá-la.
― Eu só desejo ...
Erguendo a cabeça, ele encontrou seu olhar e a restrição sempre presente
nas profundezas de seus olhos escuros se foi. Totalmente desaparecido. Só o
anseio brilhou ali e o desejo.
― Ziyaeddin ― ela sussurrou.
Alcançando o rosto dela e curvando a mão quente e forte em torno de sua
bochecha, ele inclinou a cabeça e a beijou.
Capítulo 22

O Fogo

Era tão simples assim, como se os lábios deles estivessem destinados a se


tocar e aos seus hálitos, embora tremendo, se misturassem com uma certeza
inebriante.
Os lábios dele a persuadiam e era tão fácil responder, fazer o que pedia e
deixá-lo provar os seus lábios, sua boca e sentir o gosto dele em troca. O cheiro
de sua pele, da colônia e da tinta agora enchia seus sentidos, seu calor e o sabor
de conhaque delicioso, estimulantes. Ela encontrou cada carícia de seus lábios
com os dela, achatando a palma da mão na mesa para se empurrar em direção a
ele, para estar mais perto. Era notável como sentia o beijo dele em sua boca,
garganta, peito e barriga. Em todo lugar.
A ponta de sua língua varreu seus lábios. Gemendo, ela abriu de bom grado,
avidamente, agarrando-o com as duas mãos.
Segurando sua cintura, ele a puxou para o seu colo.
Ela não pensava em mais nada, apenas nele - seu cabelo acetinado barba de
fim de dia crescida em sua mandíbula, sua coxa dura e as mãos espalmadas nas
suas costas, segurando-a com tanta força, e sua boca fazendo coisas deliciosas
com ela. Ele era quente e duro, completamente vivo e cheio de força e a tocava.
Necessidade a preencheu, doce e quente em seus seios e estômago. Ela
precisava estar ainda mais perto, pressionada a ele completamente.
O polegar dele acariciou sua mandíbula, depois sobre seu queixo,
instigando seus lábios separados. Ela obedeceu, de bom grado, avidamente, e
sentiu a carícia de sua língua contra a dela. A luxúria sacudiu entre suas coxas.
Ela tentou a carícia, e um som de satisfação retumbou em sua garganta. Ele
mergulhou na dela.
Era, finalmente, uma resposta para toda a confusão frustrada e anseio de
meses, ele estava beijando-a e ela não queria que isso acabasse.
E ela queria mais – mais do seu calor, de sua força e do prazer glorioso de
tocá-lo.
Deslizando a mão pelo pescoço e por cima do peito, sentiu o poder do
corpo dele sob o linho e a lã. Buscando sua boca ainda mais perto, ela deslizou a
palma da mão sobre a queda de suas calças.
Ele pegou a mão dela em seu aperto e com um gemido a afastou dele.
― Não. ― Sua mão veio ao redor da parte de trás do pescoço dela. ―
Elizabeth. ― Seu nome era um sussurro áspero contra seus lábios. E então as
palavras vieram para banir qualquer dúvida do que ele quis dizer com não e
Elizabeth.
― Não pode. Nós não devemos.
Ela se separou. Empurrando-o, tropeçou em seus pés.
Andando pelo quarto com as pernas trêmulas, ela correu os dedos sobre o
rosto quente e lábios macios, e os pensamentos caíram um sobre o outro, cheios
de luxúria, raiva e culpa.
― Bem. Sim. ― Ela o encarou e levantou o queixo. ― Tudo bem ― ela
repetiu. Havia muitas outras palavras que queriam ser ditas, e ela se recusou a
dar-lhes rédea. ― Gostaria de ter uma xícara de chá? Acho que o chá seria uma
boa ideia neste momento. Colocarei a chaleira no fogo.
Totalmente confusa, ela foi para a cozinha na escuridão.
Suas mãos ao redor da chaleira e da bomba estavam firmes, e continuavam
firmes quando ela acendeu o fogão e um brilho de luz resplandeceu no
cômodo. Ela era uma pessoa da ciência com uma vida que nenhuma outra
mulher no mundo tinha. Não era uma criança para derreter ao toque de um
homem como se não tivesse estrutura dentro dela para apoiá-la.
Ela foi até o armário e pegou uma xícara e um pires.
Ele veio até ela, sem se esforçar em fazer silêncio, seus passos como um
martelo batendo em todas as suas vértebras. Agarrando sua cintura, ele a virou
para ele.
Ela levantou o rosto e ele capturou sua boca sob a dele.
Estava certo, perfeito e delicioso, e quando ela agarrou seus ombros, ele a
arrastou contra ele. Músculos sólidos de encontro a ela - suas coxas, quadris e
peito. Enfiando seus dedos nos cabelos dela, ele beijou primeiro seus lábios,
depois sua garganta e o pescoço. A necessidade de percorrer seu corpo era
esmagadora, poderosa, mas honesta e boa.
Agarrando seus braços, ela se apertou contra ele, querendo senti-lo por toda
parte, carne contra carne, toda a pele e ossos e tendões e músculos que o faziam
bonito por fora.
― Eu não entendi que poderia ser assim ― disse ela.
O olhar febril dele cobriu suas feições. ― Eu sabia que seria.
Acariciando o polegar em seu pescoço, ele roçou a borda de seu corpete.
Ela sentiu seu corpo tremendo, esperando por mais, querendo mais. Sua mão
rodeava seu seio. ― Por tudo o que é.... ― Sua voz ficou presa. ― Elizabeth ―
ele sussurrou, e seu polegar deslizou através de sua excitação. Ela engasgou e se
pressionou em sua mão. Era delicioso. Delirantemente bom. Agarrando-se a ele,
ela aceitou seu beijo e seu toque e esse prazer novo e perfeito.
― Olá! ― O grito da porta ecoou pela cozinha.
Eles se separaram.
A Sra. Coutts estava no limiar, braços carregados de embrulhos e boca
aberta.
― Sra. Coutts? ― Exclamou Libby. ― O que está fazendo aqui em um
sábado à noite?
― Interrompendo uma violação, ao que parece!
― Não era uma violação ― ela disse.
― Um “não” no momento certo. ― Ela lançou um olhar sombrio.
― Realmente está aqui por que, Sra. Coutts? ― Ele perguntou.
― Eu vim cozinhar o jantar da moça para amanhã. Agora ela está se
alimentando novamente, eu não vou tê-la pulando uma refeição e desperdiçando,
não sob minha vigilância! E não vou ter nenhum homem tirando vantagem dela,
fraca como ainda está, não importa o quão bom seja, ― ela disse com um gesto
da ponta do dedo para o homem que tinha uma cabeça mais alta que ela e pagava
seu salário.
― Ele não estava se aproveitando de mim ― disse Libby. ― Pelo
contrário.
― Essa declaração não é precisa ― ele disse, passando a mão pela nuca e
fazendo Libby doer para tocá-lo lá também. Ela queria tocá-lo em todos os
lugares.
― Oh Ho! É assim que é? Cada um está assumindo a culpa pelo outro,
agora? ― Ela balançou a cabeça, em seguida, prendeu-o com um olhar duro. ―
Senhor, tem uma festa para participar hoje à noite.
― Não.
― Sim, tem. O jantar do Dr. Hope.
― Dr. Hope? Libby disse. Dr. Thomas Charles Hope, vice-presidente da
Royal Society of Edinburgh? O renomado médico e químico! No entanto, não
quis comparecer?
― Eu tive outro assunto para atender ― ele disse em um tom que fez o
calor ondular através dela.
― Se ele sabe o que é melhor, irá agora ― sua governanta advertiu.
― Sr. Smart ― ele falou e fez uma reverência. ― Boa noite, senhora
Coutts.
Então ele saiu da cozinha, e Libby sentiu como se seus órgãos internos
fossem sugados para fora da porta com ele, o que era ridículo.
A descoberta de tantas novas sensações era desconcertante. Também
instrutiva. Agora ela entendia por que Constance, uma nobre herdeira, forçara o
pai a permitir que ela se casasse com um homem que ensinava esgrima para
ganhar a vida, e como Amarantha e o duque tinham navegado pelos oceanos
para se encontrarem. E ela finalmente entendeu por que uma mulher e um
homem encontrariam um quarto vazio em uma festa e fariam amor em um sofá
desconfortável. A necessidade de seguir Ziyaeddin agora pressionava para fora
sob sua pele como uma febre. Ela se sentiu imediatamente excitada e perdida.
― Agora, moça ― disse a Sra. Coutts. ― Nós teremos uma conversa sobre
os termos que eu coloquei ao patrão para ficar em meu emprego quando veio
morar aqui.
― Oh. Mas não parece o tipo excessivamente piedoso. Ou seja, não se opõe
a que eu viva aqui.
― Sim, quando eu pensei que não tinha nada em sua cabeça, a não ser esses
livros. ― Sua própria cabeça balançou de um lado para o outro.
― Ele é o melhor cavalheiro que já conheci. E tenho certeza de que não
mudou seus hábitos desde que veio morar aqui. Mas moça, ele não é santo.
Libby não podia entender mal o significado da Sra. Coutts. ― Mas ele vive
de maneira tão austera ― disse ela.
― Sim. Mas viu suas pinturas.
Cheias de profundidade e movimento, eram todas paixão e beleza. E
saudade, ela percebeu agora.
― Não acredite no homem que ele mostra ao mundo como sendo a verdade
dele. ― Seguindo em frente, ela pegou as mãos de Libby nas suas duas grandes
mãos calejadas e apertou-as calorosamente. ― Eu sei que tem um bom coração,
moça. Apenas tome cuidado. Ele não é um assunto para seus estudos.
Soltando suas mãos, Libby recuou.
― Obrigada por suas palavras de sabedoria, Sra. Coutts. E sou muito grata
por vir aqui esta noite para cozinhar. Eu aprecio tudo o que os dois fizeram por
mim, mais do que posso expressar.
Pegando uma vela e saindo da cozinha, ela se virou para a porta dos
aposentos dele. Estava aberto e ela entrou.
Ele foi embora, para a festa ou outro lugar. Isso dificilmente importava.
Que ele a tenha beijado, tocado e depois deixado com tanta facilidade, só
provava as palavras da Sra. Coutts. Ele tinha dito a ela, repetidas vezes, para
ficar longe dele, e ela tinha perseguido seu desejo de qualquer maneira, porque
era isso que ela fazia quando qualquer desejo a pressionava.
Agora não podia voltar para a sala onde o desenho ainda estava na mesa.
Correndo até seu quarto, ela desviou os olhos da pintura do mercado, arrastou
seu livro médico favorito para o banco da janela, acendeu uma vela e se
acomodou para ler.
Foi um esforço fútil. Pensou nele acariciando-a e ela ansiava por isso.
Pulando do banco da janela, ela foi até a pintura do mercado e tocou as
pontas dos dedos nos pés dos garotos correndo.
Voltou para a janela e se encolheu no banco. Depois de algum tempo, ouviu
a Sra. Coutts apressar-se até o vestíbulo e partir. Apagando o pavio da vela,
Libby espiou através da cortina para a rua. Os paralelepípedos brilhavam de
umidade e uma luz na esquina mostrava a escocesa marchando para casa. As
nuvens se separaram para revelar um dossel de estrelas, e a lua projetou na pedra
cinza um suave brilho prateado.
De todos os lugares em que vivera - todas as grandes propriedades para as
quais seu pai fora convidado ao longo dos anos - sentia-se inteiramente à
vontade nesta cidade de medicina. Essa vida fantástica que estava vivendo agora,
sempre foi seu sonho. E estava tendo sucesso, apesar da farsa que vivia e da
competição e do constante medo da descoberta.
No entanto, não conseguia parar de pensar nele e de querê-lo.
Não tem nem sequer um momento de tempo para se dedicar a satisfazer
curiosidades ociosas.
Ela olhou para a noite cintilante e pensou que seus desejos o haviam
evocado da escuridão. Mas era, de fato, ele passando por baixo do poste da rua
com a bengala de cabeça de prata, os ombros bonitos e o andar irregular. Seu
corpo se encheu de desejo. E felicidade. Pela primeira vez em meses, sob seu
peito, ela doía de felicidade.
Enquanto observava, ele diminuiu a velocidade na borda da aura da
lâmpada da rua e parou.
Uma figura encapuzada afastou-se do prédio oposto e depois, empurrando o
capuz, aproximou-se dele.
Coira?
Não poderia ser uma coincidência que Coira tivesse vindo aqui para esta
rua e estivesse falando com ele agora. Fechando a cortina, Libby desceu as
escadas.

― SENHOR? ― UMA MULHER se aproximou dele.


Ziyaeddin não parou. A espada em sua bengala era suficiente para deter um
ladrão, mas ele não tinha vontade de prejudicar uma mulher. Esta noite, ele não
tinha vontade de prejudicar ninguém. Com a textura do corpo de Elizabeth e o
sabor de sua boca ainda enchendo seus sentidos, ele tinha apenas um desejo:
tocá-la novamente, e maldita razão, destino e toda sabedoria.
Ele não podia satisfazer esse desejo - nem mesmo momentaneamente. Com
um gostinho, seu desejo se tornara uma necessidade. Essa necessidade levaria
apenas a um caminho que nenhum deles poderia percorrer.
― O senhor é o pintor! ― A mulher pareceu surpresa. ― Aquele que
pintou Dallis, não é?
― Sim, sou ― respondeu.
Puxando o capuz, ela revelou uma sobrancelha alta de preocupação.
― A tem visto ultimamente?
― Não tenho. Não há vários meses.
― Então conhece o Sr. Joseph Smart? Estou quase certa de que ele mora
nesta rua.
― Na verdade sim.
― Poderia me mostrar qual porta é dele?
― Não posso. Mas transmitirei sua mensagem a ele.
Três casas abaixo na rua, a porta da frente abriu e uma figura totalmente
encapuzada pisou na escada escura.
― Coira ― ela sussurrou na voz de Joseph e gesticulou com a mão.
Coira fez uma rápida reverência e correu em direção à sua porta.
Ele a seguiu.
No interior, a conversa das mulheres emanava da sala de visitas.
― Ora, moça, limpa e bonita como um pêssego!
― Esqueça isso. Está doente? Como sabia onde me encontrar?
― Eu a segui até este quarteirão uma vez, quando Bethany e Dall... ―
Senhor! O que está fazendo aqui?
― Esta é a minha casa ― disse ele. ― Embora, aparentemente, isso não
seja de conhecimento geral nos dias de hoje. ― Ele foi até a lareira e acendeu o
fogo.
A mulher estava olhando para frente e para trás entre eles, muito parecido
com o que sua governanta tinha feito antes.
― Ele sabe a verdade, moça?
― Eu vivo aqui, então é claro que ele sabe, Coira ― ela disse com
impaciência gentil. ― Agora me diga por que veio me ver. Está doente?
― É Dallis. Ninguém a viu em dias.
― Oh. Bem, talvez ela tenha ido visitar familiares ou amigos em outros
lugares, no campo?
― Dallis não tem família ― ele disse, colocando o atiçador de volta em seu
estande.
Os olhos de Elizabeth não estavam mais nebulosos e cheios de prazer, mas
sim muito conscientes.
― Como sabe disso? ― Ela perguntou.
― Ela posou para mim várias vezes. Em seu tédio, muitas vezes falava de
si mesma.
― É verdade que ela não tem parentesco ― disse Coira. ― E se alguma
vez foi mais longe do que o portão da cidade, eu como o meu chapéu.
― Onde acredita que Dallis foi? ― Ele perguntou.
― Temo o pior, senhor. ― Ela envolveu os braços apertados sobre si
mesma.
― Sente-se ― disse ele, apontando para uma cadeira. ― Compartilhe o que
for capaz com o Sr. Smart. ― Ele foi em direção à porta.
O estômago de Libby era uma tempestade de nervos, mas ele era tão seguro
de si como sempre. Era como se nada de extraordinário tivesse acontecido nesse
mesmo cômodo, apenas duas horas antes, como se ele não a tivesse puxado para
ele e a amado com beijos, como se ele não tivesse ideia de que cada célula de
seu corpo ainda o queria.
― Onde está indo? ― Ela perguntou.
― Preparar o chá para a nossa hóspede. ― Ele saiu.
Coira estava boquiaberta.
― Ele foi fazer chá? Aquele bom cavalheiro, convidando a mim,
encharcada para sentar em sua sala, enquanto ele está fazendo chá? Para mim?
― Nós não temos servos à noite. E ele é generoso.
― Generoso? Moça, ele é um milagre! Não me admira que esteja
apaixonada por ele.
― Oh, pare com isso. E me diga o que acredita que aconteceu com a Dallis.
Ziyaeddin retornou quando Coira estava descrevendo as últimas vezes que
vira sua amiga. Dando uma xícara de chá e um pires para ela, ele não se sentou.
― Ela andava se sentindo mal ― Coira continuou, ― mas eu não dei
atenção a isso. Verdade seja dita, achei que ela estava brincando.
― Por que ela brincaria com a doença? ― Libby perguntou.
― Para não ser obrigada a ... ― Coira olhou para ele. ― Ajude a moça
aqui, senhor?
Seu olhar se voltou para Libby e seu batimento cardíaco produziu a mais
impressionante cambalhota.
― Ela é uma cirurgiã ― ele disse, voltando sua atenção para Coira. ―
Pode falar abertamente agora. De fato, deve se desejar que ela a ajude.
― Moça ― disse Coira. ― Eu pensei que Dallis estava fingindo estar
doente, assim não seria obrigada a aceitar Reeve quando ele a chamasse.
― Oh. Claro.
― James Reeve? ― Perguntou Ziyaeddin.
― Sim. ― Os lábios de Coira se torceram. ― O nojento tem o contrato de
arrendamento. Comprou-o bem debaixo de nossos narizes e agora ele acha que
pode ameaçar de nos jogar na rua a qualquer momento que ele queira. Dallis ri
dele, então ele é pior com ela, ― disse com uma carranca.
― Talvez Dallis esteja com o Sr. Reeve agora ― disse Libby. ― Sabe onde
ele mora?
Coira sacudiu a cabeça.
― Eu sei. ― Ziyaeddin se moveu para a porta. Libby ficou de pé.
― Também o conhece?
― Irei encontrá-lo.
Acenando para Coira permanecer, ela o seguiu até o vestíbulo. Ele estava
colocando o sobretudo.
― Vai agora? Depois da meia-noite?
― Homens como Reeve são mais fáceis de encontrar à noite. Como essa
mulher sabe que não é um rapaz?
― Ela adivinhou. Compartilho meu almoço com ela e estou ensinando-a a
ler, e ela não tem medo de ficar perto dos jovens. As mulheres são muito mais
espertas do que os homens e muito mais observadoras.
― Isso ficou totalmente claro para mim. ― Ele pegou seu chapéu e a
bengala em uma mão. ― Mais cedo, eu não deveria tê-la deixado.
― Oh? A festa foi chata?
Um sorriso brincou em seus lábios, mas foi temperado com outra coisa.
Inquietação.
― O que deveria ter feito ao invés disso? ― Perguntou.
― Deveria ter pedido que retornasse ao salão ― disse ele, vestindo o
chapéu ― e desenhar por quantas horas quisesse, simplesmente pela fina
desculpa de permanecer em sua presença.
― Se tivesse feito isso, eu teria me jogado no senhor novamente.
― Não se jogou em mim. Eu a beijei.
― Eu me lembro de forma diferente. Agora estou prestes a me jogar no
senhor novamente.
― Resistirei.
― Não com sucesso ― disse.
Soltando a maçaneta da porta, ele veio até ela e inclinou a cabeça para a
dela. Foi um mero toque de seus lábios nos dela, mas precioso, perfeito e
docemente persistente.
― Isso não é suficiente ― ela sussurrou quando ele levantou a boca da
dela.
― Isso nunca será suficiente ― disse ele rudemente, perto de seus lábios.
Ela agarrou suas lapelas com as duas mãos e separou seus lábios sob os
dele.
Ele a puxou para perto. Então eles estavam se beijando novamente, seu
corpo se enchendo de calor e alívio, o que a fez ficar tonta.
Com um som áspero no peito, ele se afastou e voltou para a porta.
― Que parte do “resistirei” foi essa? ― Ela disse, saboreando-o nos lábios
e pressionando as palmas das mãos na parede para se firmar.
― Essa ― disse ele profundamente, ― foi a última vez.
― A última vez que fingirá resistir?
― A última vez que a beijarei.
― Está brincando.
― Nunca mais ― disse.
A culpa a cutucou. ― A Sra. Coutts me contou sobre sua condição de
permanecer no emprego enquanto eu moro aqui. Tem medo de que ela saia?
― Isso não tem nada a ver com ela. É sobre a senhorita. E eu. Nunca mais,
― repetiu como se forçasse as palavras de sua garganta, como se dissesse a ele
mesmo que faria isso.
― Isso é ridículo quando nós dois queremos ...
― Por sua causa. Por minha. Pelo seu futuro. Pela minha sanidade.
― Pelo meu futuro? Uma vez antes alegou que não queria que eu me
distraísse do meu projeto.
― Lembra disso?
― Lembro-me de tudo. Mas eu não sei se o que disse é verdade, e eu
prefiro ter a verdade do que uma mentira ou desculpa.
Ele veio até ela, agarrou sua mão com força e levou-a aos lábios.
― Acredite que eu lhe desejo o melhor, ― disse ele. ― E acredite que, se
esse erro que cometemos hoje não cessar aqui, agora, um de nós terá que sair
desta casa imediatamente. Deve me prometer.
Seus olhos focavam nos dela como se ele quisesse ler sobre sua íris a
promessa que queria dela.
― Não entendo por que nos negaria isso ― disse ela, puxando a mão da
dele. ― A não ser que.... É verdadeiramente da realeza? As histórias que me
contou não são apenas histórias, mas a história real? Me rejeita porque sou
indigna do senhor?
― Eu sou indigno da senhorita, güzel kiz - eu que me escondo do meu
destino enquanto corre para o seu.
― Estabelecer-se em uma terra estrangeira não é estar fugindo do destino.
Está sobrevivendo apesar dos males que o destino jogou no senhor.
― Elizabeth, me prometa agora. ― Ela assentiu com a cabeça.
Ele saiu e ela ficou por um minuto perto da porta fechada, tentando
entender como a felicidade dela havia se transformado abruptamente.
Então voltou para Coira.

Ele não voltou para casa até o amanhecer. Desmoronada no banco da janela
de seu quarto, onde tinha caído em um sono intermitente, despertou com o som
da porta da frente começando a se fechar.
Ela desceu as escadas.
― Conseguiu encontrá-lo? Estou feliz que tenha retornado.
― Esperava que eu não voltasse? ― Ele disse, tirando o casaco.
― Saiu no meio da noite para procurar no submundo por um homem vil, e
tinha acabado de dizer que um de nós poderia ter que sair desta casa. Portanto,
havia pelo menos duas razões para nunca mais voltar.
Seus olhos estavam cansados, mas um sorriso brilhou neles. ― Mas aqui
estou eu.
― Conseguiu encontrá-lo?
― Não. Mas agora sei onde encontrá-lo.
― Como sabe onde procurá-lo?
― Por um curto período de tempo, ele trabalhou para mim. Depois que
ficou claro que era inclinado à violência, interrompi a conexão. Não o vejo há
anos. Ele se afastou. ― Falarei com ele hoje à noite.
― Irei contigo.
― Não irá. Dormirá esta noite e amanhã voltará para a enfermaria e estará
bem descansada e preparada para uma aula e para trabalhar.
― Não me proteja. ― Ela o seguiu, observando a tensão natural em seu
andar. ― Irei contigo. Dois investigando sempre deve ser preferível a um.
Ele parou. ― Não. Não fará isso.
― Eu me importo com Coira e suas amigas. Desejo descobrir a verdade do
desaparecimento de Dallis tanto quanto o senhor.
― Ainda assim, desejo que permaneça em segurança. ― Ele continuou em
direção aos seus aposentos. ― Deixe isso comigo.
― Não posso. Mesmo que eu não estivesse interessada nisso como amiga
de Coira, eu ainda não conseguiria parar de pensar nisso e tentar resolvê-lo. E
certamente não conseguirei dormir bem enquanto o senhor estiver andando pelos
becos escuros de Edimburgo.
― No entanto deve fazer o esforço.
― Por meses eu me provei capaz de percorrer esta cidade como homem e
de repente não confia que eu possa fazer isso?
― Não permitirei que ponha em risco a sua segurança ― ele disse
bruscamente.
O sabor metálico chegou à sua língua. ― Está bravo comigo?
― Eu desejo que faça como eu gostaria.
― Isso é um problema ― ela disse, ― pois raramente faço o que os outros
desejam. Além disso, eu posso ver que está com dor por ter passado essa noite
na sela. Eu poderia aliviar esses músculos agora, se me permitisse.
― Obrigado, não.
― Orgulho de novo?
― Não dessa vez. O espírito está totalmente disposto. Infelizmente a carne
é fraca. ― Ele se voltou para ela e não havia fraqueza em seus olhos ou postura,
apenas uma certeza granítica. ― Eu quis dizer o que falei antes. Isto não pode
ser.
O calor doentio encheu seu estômago.
Ele entrou em seu estúdio e a porta se fechou. Por vários minutos, ela olhou
para o painel, contando seus rápidos batimentos cardíacos, mas eles não iriam
diminuir.
Capítulo 23

A Inundação

― Até minha mãe escreve mensagens mais quentes do que isso, ― disse
Iris, balançando os calcanhares contra a parede enquanto passava o papel para
Libby.
― É o suficiente para congelar as mamas de uma moça ― Coira
concordou.
― Acredito que foi essa a intenção dele. Metaforicamente ― disse Libby,
relendo a nota que ele deixara na sala de visitas para ela no meio da noite: Falei
com Reeve. Ele insiste que não viu Dallis em momento algum. Se quiser,
continuarei com o assunto.
― Eu deixei uma mensagem também.
― Derramando seu coração, coitadinha?
― Não. Eu disse a ele que estava indo embora. Paguei ao estábulo para
pegar meus pertences com a Sra. Coutts e entregá-los em minha nova residência
hoje.
Ambas estavam olhando para ela.
― Não me olhe assim. É a solução mais sensata. Não sucumbirei à
insensatez e ele deixou claro que sou um incômodo. ― Foi um erro. Ele havia
chamado seus maravilhosos beijos de um erro. ― Ficarei bem em uma nova
residência até que meu pai retorne.
― Vem morar comigo e com a mamãe? ― Perguntou Íris. ― Minhas
preces foram atendidas!
― Obrigada, íris. Mas eu não posso ficar trocando de roupa e colando as
suíças em coches todas as manhãs e noites. Alguém me descobriria.
― Adoraria que ficasse comigo lá, ― Coira disse, ― se eu pudesse ter
certeza de que não correria risco de que fosse vista por algum jovem que queira
me cobrir.
― Cobrir? ― As sobrancelhas de íris estavam erguidas.
― Relações sexuais, ― disse Libby. ― Veja, Coira? Eu entendi essa
referência. Mas obrigada minha amiga. É gentileza sua.
Coira estalou a língua. ― É um homem tolo que não a quer.
― Não pode morar em Leith com Alice também ― disse Iris. ― Deve
pedir a Tabitha e Thomas para hospedá-la.
― Não, eu não posso pedir-lhes que mintam. ― No entanto, ela pediu a ele
por meses. E ele havia feito isso generosamente, exigindo apenas duas coisas em
troca: que posasse para ele e, de outro modo, o deixasse em paz.
Durante meses ela não fez nenhum dos dois. Ela lhe devia isso. ―
Encontrarei alojamento ― disse ela.
― Não está ansiosa, Libby? ― Perguntou Iris.
― Não. Aprendi que é mais fácil fazer tudo como um homem. ― Exceto,
ao que parece, querer um.

― ESTÁ SE SENTINDO bem, Joe? ― Archie olhou para ela através de


pilhas de livros. ― Parece pálido.
― Mm-hum ― Libby murmurou. Sua cabeça estava pesada e grossa. As
letras na página diante dela estavam se cruzando. Ela havia passado a noite
anterior se arrastando de pensões para as casas dos senhorios, sem sucesso.
Finalmente, o Sr. Dewey mostrou-lhe um catre na cozinha. Entre os ratos
arranhando, o desconforto das amarras de seios, a ansiedade de que as suíças
caíssem enquanto dormia, e sendo acordada antes do amanhecer, ela mal tinha
dado uma piscadela.
― Parece que dormiu com aquele casaco.
― Desaparece, ― ela resmungou.
Um par de coxas redondas e cintura larga apareceu ao lado da mesa.
― Bem, é isso, rapazes!
Libby olhou para cima, apertando os olhos para trazer George em foco.
― Isso o que? ― Perguntou Archie.
― A última maldade de Plath ― disse George, ― me fez medir cada
centímetro do intestino que tive o suficiente, rapazes. ― Ele enfiou os polegares
no colete. ― Acabei de entregar minha desistência. Acabou! Não sou mais
estudante de medicina!
― Parabéns, George ― disse Libby.
Archie estendeu a mão e apertou a de George. ― Que tenha tudo de bom.
― Sou um novo homem, moços! Agora estudarei as leis, assim que a nova
sessão começar.
― Como seu pai recebeu as notícias? ― Perguntou Archie.
― Me deserdou, o velho bastardo. ― O sorriso de George se alargou. ―
Ele já mandou até uma mensagem para o pub para cortar minha conta e uma
carta para o meu senhorio que ele não pagará o aluguel de outra noite.
― Está na rua? ― Archie ficou boquiaberto. Com sua grande e carinhosa
família, ele nunca entendeu inteiramente a animosidade de George em relação a
seu pai aterrorizante.
― A família de Caroline me acolheu. ― Suas bochechas estavam rosadas.
― Nos casaremos no próximo mês.
― Parabéns de novo ― disse Libby, sorrindo finalmente.
― Sim, moço! ― Archie disse, batendo nas costas dele.
― Nunca me senti melhor em minha vida ― disse George alegremente. ―
Quem quer uma cerveja?
― George ― disse Libby. ― Seu senhorio já alugou seu apartamento?
― Não. Badalou na minha cabeça, na verdade. Disse que é impossível
encontrar um inquilino nesta época do ano, não até que os novos alunos venham
para a cidade no outono.
― Tirarei esse contrato de suas mãos. Hoje, se estiver tudo bem contigo,
para o restante do período.
― Sabia que tinha dormido com seu casaco! ― Archie disse, seus olhos
acusando.
― O que foi Joe, saiu da mansão agora? ― George disse.
― A mansão? Quer dizer a casa do senhor Kent? ― Archie assentiu.
― Não é uma mansão. E como saberiam? Não estiveram lá.
― Pincushion nos contou tudo sobre isso ― disse George. ― Ele disse que
é a melhor casa em que já esteve.
― E ele esteve na casa da minha família, e na do George também ― Archie
disse com um aceno de cabeça. ― O que fez para ser posto na rua, moço?
― Eu não fui expulso. Ele nunca faria uma coisa dessas. Ele é um
cavalheiro.
Archie levantou as duas palmas das mãos. ― Eu não quis insultar, moço.
― George, vamos fazer aquele brinde ― disse ela, pegando sua maleta que
parecia uma carga de tijolos. ― Então vamos falar com o seu senhorio.

ZIYAEDDIN AMASSOU A carta de Alice Campbell em seu punho.


Ele havia expulsado Elizabeth. Ele não pretendia isso. Mas depois da
história que Sra. Coutts contou sobre a partida de sua colega, e do seu choque
inicial, ele se convencera de que tinha sido o melhor.
Tolo que era, ele não se preocupou com sua segurança.
― Uma carga de coragem, tem essa moça ― disse a Sra. Coutts, assentindo
sabiamente enquanto mexia uma panela. ― Pobre querida nem percebe que seu
coração não é feito de aço.
Ela era brilhante, capaz e forte, e ele assumiu que ela havia voltado para a
casa de sua amiga em Leith. Mas sentira a falta dela e, finalmente, cedera àquela
fraqueza e enviara uma mensagem a Leith.
― Ela não está na casa da senhorita Campbell. ― Sua garganta estava
quase apertada demais para falar. ― Me diria se ela estivesse com a senhora
agora e o senhor Coutts. Não diria?
A escocesa ficou furiosa. ― É por sua preocupação que fala bobagem
agora, senhor.
Então onde diabos ela estava?
Arrancando a camisa manchada de tinta enquanto se dirigia para seus
aposentos e se vestia depressa, teve certeza de uma coisa: nunca abandonaria
seus estudos.
Ela ficaria brava com ele por procurá-la. Ela havia saído - decididamente,
permanentemente, sem uma palavra. Ela não queria mais vê-lo. Mas um medo o
invadiu torcendo seu intestino quando pensou nas pessoas das quais Joseph
Smart era amigo e de quem ele poderia ter buscado ajuda: jovens universitários e
mulheres que vendiam sexo por xelins.
Do lado de fora, o Dug’s Bone parecia um lugar pouco atraente, a marquise
era uma imagem grosseiramente pintada de um esqueleto de cachorro
mastigando o pé de um esqueleto humano. Dentro dela, havia um labirinto
quente e aconchegante de recantos e mesas sobre as quais os livros estavam
espalhados, e as cabeças dos poucos patronos se inclinavam para seus estudos.
Ziyaeddin foi ao bar.
― Tem um negócio com o jovem Sr. Smart, não é, senhor? ― O dono do
pub disse, olhando-o com curiosidade. ― Ele curou minha patroa do
reumatismo, depois de vinte anos! O rapaz é uma maravilha.
― Sabe onde posso encontrá-lo?
― Havena o viu desde que ele dormiu no catre da minha cozinha.
Alá, tenha misericórdia.
Ele deveria ter previsto isso.
― Ele e seus companheiros vem aqui às quintas-feiras. Eles devem estar
aqui daqui a pouco. Uma cerveja enquanto espera, senhor?
Ele queria apenas ela.
Quando Peter Pincher entrou, veio acompanhado de dois outros: um jovem
robusto de cabelos ruivos, com um rosto aberto e inteligente, salpicado de
sardas, e um jovem corpulento e pálido, cuja roupa e feições enfadonhas
gritavam suas origens inglesas provincianas. De suas histórias, Ziyaeddin supôs
que fossem Archibald Armstrong e George Allan.
Armstrong jogou moedas no bar e pediu cerveja. O barman fez um gesto
para Ziyaeddin. A cabeça de Armstrong girou ao redor, sua testa escurecendo.
― Senhor ― disse Armstrong, as pregas em sua testa eram cômicas, mas
seu olhar severo. ― Entendo que está esperando por Joe Smart.
― Estou. É o Sr. Armstrong, eu acredito.
― Sim. ― Os olhos do escocês estreitaram. ― Joe me mencionou, não é?
― Ele me contou sobre todos os senhores. Tenho o prazer de conhecê-lo.
― Ele estendeu a mão.
Armstrong fez uma pausa, depois apertou-a com firmeza.
― Não farei rodeios, senhor ― disse, o cenho franzido novamente. ― Não
tomei gentilmente que tenha jogado Joe na rua. Por mais que ele seja mais
esperto do que eu e os rapazes juntos, ele ainda é verde para as coisas do mundo.
Embora eu admita que se fosse por causa dessa raiva teimosa dele, eu não ficaria
tão aborrecido, senhor. Eu o levaria para casa e, agora, eu estaria servindo sopa e
chá para ele.
― Sr. Armstrong, sabe onde ele está?
― Se ele mesmo não lhe contou, não estou inclinado a fazê-lo.
― Eu não o despejei. Nem tenho maldade para com ele.
― Sim ― foi o que ele disse, e eu não o peguei em uma mentira. E agora
que ele está se recusando a nos ver, alguém tem que fazer sentido para ele.
― Recusando vê-los? Por quê?
― Cheio de febre há dias agora. Então não apareceu na enfermaria ontem
ou nesta manhã. Ignorou a palestra ontem também! Pincher e eu fomos lá hoje
mais cedo.
― Lá onde?
― Para um apartamento que ele pegou. Ele se trancou lá dentro. Doente
como um cavado, mas não deixou nenhum de nós entrar para cuidar dele.
― E aceitou isso?
Armstrong começou de volta. ― Disse que se eu entrasse ele removeria
meu baço. Ele poderia fazer isso!
Claro, ela não permitiria que eles cuidassem dela. Ela morreria de febre
antes de se arriscar a se expor e arruinar seu sonho. ― Me leve até lá.
Imediatamente.
Armstrong ficou grato.
A pensão era extremamente modesta, mas por dentro estava limpa e seca.
Ziyaeddin bateu e tentou a maçaneta da porta.
― Onde está o senhorio deste maldito lugar?
― Vou encontrá-lo! ― Armstrong desceu as escadas novamente.
Ziyaeddin pressionou os nós dos dedos na madeira e, pela primeira vez em
uma década, orou.
Um quarto de hora depois, Armstrong apareceu com o senhorio.
Lentamente, o homem olhou para Ziyaeddin de cima a baixo. ― O que
exatamente quer com o rapaz, senhor?
― Ele é meu pupilo.
Os olhos do senhorio se estreitaram. ― Um pouquinho jovem para ter
concedido, não é?
Ziyaeddin havia antecipado isso. Em público, ficou longe de Joseph Smart
por causa disso. Até agora, tinha sido muito cuidadoso.
― O menino está gravemente doente ― disse ele, moldando suas vogais e
consoantes com cuidado, como se tivesse nascido para falar o inglês do rei. ―
Se deseja explicar à polícia que permitiu que o filho de um cavalheiro morra por
falta de cuidados, então, por todos os meios, não me forneça a chave. Se não, me
dê o seu preço e pagarei por isso.
Logo Ziyaeddin estava destrancando a porta e instruindo Armstrong a
esperar fora.
O apartamento era minúsculo e cheio de livros e caixas. Abriu a porta do
dormitório, cruzou-a e foi até o leito estreito. Enterrada em cobertores
encharcados, ela tremia.
Colocando a mão na testa corada e segurando o pulso entre os dedos, ele
sentiu a queimação em sua carne e encontrou seu pulso fraco.
― Elizabeth ― ele sussurrou, acariciando os dedos em torno de sua
bochecha onde as suíças tinham descolado. ― Abra seus olhos. Mostre-me
através desses belos olhos o espírito que não pode ser intimidado por uma mera
febre.
Os cílios tremeram.
― É isso ― disse ele. ― Olhe para mim.
A íris cor do mar estava coberta de um estupor vítreo.
Seus cílios caíram novamente.
Afastando os cobertores para longe dela, ele observou a camisa encharcada
de suor, os lenços de peito e as ceroulas de homem que se agarravam ao corpo
dela.
Dobrando a cabeça, ele procurou pelo núcleo de sua força. Então,
aconchegando os cobertores ao redor dela, ele a pegou em seus braços.
Capítulo 24

A Caçada

― Aí está a senhorita.
O som chegou a Libby através do estupor causado pelo sono.
― Foi um susto desagradável o que nos deu, moça. ― A Sra. Coutts
colocou um braço por trás dela e a inclinou para frente. O quarto girou. Então a
borda de um copo estava entre seus lábios e a água escorrendo por seu queixo e
também, maravilhosamente, por cima da sua língua, atingindo a parede da
garganta seca.
― Agora não vá jogar tudo de volta em mim, moça tola.
A Sra. Coutts estava rindo, o braço firme e sólido atrás da cabeça de Libby.
― Co....
― Pronto, moça. Não precisa falar ainda.
Seus membros se agarravam ao colchão como tempos atrás se agarrara ao
seu cão de pelúcia. Acima, as cortinas de seda do dossel afastadas, permitiam
que a luz da manhã se filtrasse e brilhasse sobre a pequena pintura de um
mercado.
Seu quarto. Em sua casa. ― Por que estou aqui? ― Ela murmurou.
― O patrão a trouxe para casa em seus próprios braços.
Nunca pensei que veria uma coisa dessas! Mas ele não permitiria que ninguém
mais a carregasse. O pobre coitado também não dormiu nem um minuto depois,
ficou sentado do lado de fora do quarto, noite e dia, então ficou ali para que eu
pudesse dormir um pouco, até que a febre baixou.
Os pensamentos de Libby não estavam bem. Ela estava tão cansada.
― E ele não permitiu nenhuma outra pessoa na casa ― continuou a Sra.
Coutts, ― só eu e ele. Até contratou minha sobrinha para ficar na casa nos
últimos três dias e cozinhar para o Sr. Coutts. É um homem atencioso, apesar de
assustá-la.
― Eu não estava com medo. ― O cansaço pressionou suas pálpebras. ―
EU .
― Descanse agora, querida.
Na próxima vez que Libby acordou, conseguiu sentar-se e beber uma xícara
de chá e uma tigela de caldo.
A vez seguinte, quando despertou, ela estava faminta.
― Tenho uma constituição forte ― ela disse às voltas de um pedaço de pão
e manteiga. ― Usualmente.
― Um coração dolorido derruba o corpo tão rápido como a chuva.
― Não existe um coração dolorido a menos que seja causado por uma
infecção do pericárdio, Sra. Coutts. E não se fica com febre simplesmente
porque se está triste.
― Sim, há um pouquinho de sabedoria que ainda precisa aprender, moça.
Libby se aconchegou nos cobertores macios. ― Que dia é hoje? ― Ela
murmurou, suas pálpebras pesadas.
― Sábado, moça.
― Devo ... pegue ... meus ... livros...
Ela acordou com o sino da capela Greyfriars badalando para o culto de
domingo. Olhando fixamente para o dossel acima, com um desapego frio, ela
observou seus pensamentos se acelerarem, como se pudesse ver uma carruagem
ganhando velocidade.
Ela provocara uma confusão. Tentando salvá-lo de problemas, lhe causara
mais. E a Sra. Coutts? E Archie? Onde estavam seus blocos de notas? O terrível
senhorio teria jogado fora? Deveria pedir desculpas ao Dr. Jones por adormecer
durante sua palestra. E ao Sr. Bridges por ter desaparecido. Pagou sua conta no
pub? Seu estômago queimava. Onde estavam suas roupas e suas suíças? Ela não
podia desperdiçar mais tempo aqui. Havia tantos erros para reparar.
Não.
Não.
Erguendo os braços fracos, ela pressionou as palmas das mãos nos olhos.
Aconteceu dessa forma: ela lera sua breve mensagem sobre Reeve, e a
desesperada urgência de imediatamente corrigir tudo o que havia de errado entre
eles a impulsionara a agir - qualquer coisa para acalmar os pensamentos, os
arrependimentos, a culpa.
Conquistou esse dragão.
Virando-se para o lado, ela olhou pela janela para a manhã de primavera
cinzenta.
Inspirando profundamente, à medida que cada uma das preocupações
aparecia, foi colocando-as no parapeito da janela e depois as jogou na rua
abaixo. Quando a Sra. Coutts chegou com ensopado e pão, Libby estava quase
sorrindo.
A Sra. Coutts ajudou-a a se lavar e vestir uma camisola nova. Desgastada
pela atividade, Libby caiu na cama novamente.
Quando acordou, foi de uma forma abrupta e um quarto iluminado da
lareira e de uma vela. Balançando os pés fora das cobertas, ela testou sua força.
Não a impressionou, nem a dolorosa ternura de seu peito. Mas o tapete estava
quente até para os pés descalços.
Pegando a vela, ela foi para o patamar. A casa estava em silêncio.
Segurando-se no corrimão, desceu ao térreo e seus dedos afundaram no
tapete macio que percorria o comprimento do corredor. Ela estudou o padrão
suntuoso e intrincado sob seus pés brancos.
Uma mansão, disseram seus amigos. Meses atrás, quando ela veio pela
primeira vez, percebeu sua elegância simples. Mas parecera uma extensão tão
natural de seu dono. Ela catalogara os detalhes de sua beleza em sua mente, e
então lhes dera pouco pensamento.
Pensou pouco. Um milagre, com certeza.
Agora ela permitia que as pontas dos dedos corressem ao longo dos lambris
suaves de madeira até a porta da sala de visitas, depois ao redor da alça de
bronze brilhante que era fria ao toque. Assim como em seu quarto onde a
cobertura estava em perfeitas proporções, maravilhosamente projetada para ser
repousante e bela, a casa inteira era graciosa em todos os detalhes: painéis de
parede cuidadosamente esculpidos, molduras de gesso pintadas no teto, móveis
requintadamente projetados e finamente, cortinas de tecido, a porcelana que ela
usava todos os dias. Tudo isso foi aprimorado sutilmente com pedaços de luxo:
pedras de cristais colocadas em puxadores de gavetas, granadas penduradas em
castiçais, uma linha fina como papel dourando o comprimento da grade da
escada, que em sua base se curvava como as pétalas de uma flor gloriosa, uma
espiral perfeita de madeira acetinada para o prazer da mão humana.
Sem ostentação, esta casa se deleitava em beleza. Era a casa de um artista.
E um príncipe.
No entanto, ele a recebera aqui. E a tratou como sua igual.
Na sala de visitas, seus blocos de notas estavam empilhados na
escrivaninha. Suas caixas de ossos e modelos de gesso, o estojo de instrumentos
cirúrgicos e o estojo de remédios estavam cuidadosamente colocados no chão.
Uma pena afiada, lápis, cortador de página e uma garrafa de tinta meio vazia
permaneciam exatamente onde ela os havia deixado semanas antes.
Percorreu novamente a sala e saiu, e lá estava ele. Em mangas de camisa e
colete marcado aqui e ali com listras brilhantes de tinta, ele estava perfeitamente
parado perto da base da escada.
― Pensei ter ouvido alguma coisa. ― Seus olhos estavam brilhantes. ― Ou
melhor, alguém.
Foi até ele e, sem parar, envolveu a cintura dele com os braços e apertou o
rosto contra seu peito.
Ele a envolveu em seus braços.
― Perdoe-me ― ele sussurrou próximo a sua orelha, e suas mãos se
espalhavam sobre ela, segurando-a. ― Me perdoe.
Ela queria se enterrar nele, permanecer em seu abraço e ser mantida em sua
força, paz e quietude para sempre.
Ela se afastou e recuou.
Ele pareceu soltar uma respiração lenta, seu olhar nunca deixando os olhos
dela. Libby já tinha visto isso muitas vezes antes no hospital. Este não era o
olhar habitual do estudo de artista, mas a vigilância de um homem que
acreditava que o que via poderia desaparecer a qualquer momento.
― Não precisa se preocupar mais ― ela disse. ― Me resgatou. E como um
herói de conto de fadas, conseguiu ultrapassar meu senhorio, depois me levar
para um lugar seguro.
― Isso pressupõe que seja uma donzela em perigo, o que é um disparate.
― A Sra. Coutts disse que Archie o levou para o apartamento e que o
senhor me levou para fora. Mas ela é inclinada ao exagero e, mais importante,
não acredito que isso tenha sido possível.
― Subestima sua habilidade.
― Nem uma vez na vida subestimei minha habilidade. A prótese permitiu
que me carregasse? Realmente?
― A senhorita é luz. E eu estava bem motivado.
― Archie poderia ter me carregado. Ou o cocheiro de aluguel.
― Não enquanto eu viver.
― O senhor é.... ― Sua garganta estava se fechando.
Ele inclinou a cabeça em questionamento.
― É muito forte ― ela disse. ― Com a força do corpo e do caráter.
― Estou cansado de ouvi-la me elogiar. Eu não mereço isso.
― Como de costume, vemos as coisas de maneira totalmente diferente. Eu
gostaria de ficar. Aqui. Nesta casa. Posso ficar?
― Esta é a sua casa.
Formigamento feroz explodiu por trás de seus olhos. ― Posso ficar até o
retorno do meu pai a Edimburgo?
― Por quanto tempo desejar.
― E se eu quiser que seja para sempre?
― Então para sempre será.
Com o coração apertado, ela se virou para as escadas e subiu tão rápido
quanto suas pernas estúpidas a carregaram. Quando parou no patamar e olhou
para baixo, ele estava lá parado, observando-a.
― Meu pai e eu sempre vivemos onde quer que seus pacientes desejassem.
Eu raramente fico em uma casa por muito tempo. Eu nunca tive uma casa que
pudesse ser minha para sempre.
― Agora tem.
― Até o retorno do meu pai.
Ele assentiu com a cabeça, e era tão régio que ela se perguntou se alguma
vez pensara que ele não fosse um príncipe.
― Não vou incomodá-lo, ― ela disse.
― Tenho muito pouca confiança no valor profético dessa afirmação.
Ar saiu de entre seus lábios.
― Esse barulho foi uma concordância? ― Ele disse, um belo sorriso
moldando sua boca.
Ela riu de novo e a dor atravessou seus pulmões. ― Senti falta desse som
― ele disse. ― Sua risada.
Ela apertou a roupa sobre o peito.
― Isso dói.
― Sim ― ele disse.
Ela não quis dizer que o riso doía, mas pensou que talvez ele tivesse
entendido isso.
― Tentarei não perturbá-lo ― ela disse.
― Não ― ele disse. ― Me perturbe. Todo dia. Toda hora. Cada minuto, se
desejar.
― Foi sensato. Antes. Quando disse que eu não devo - que não devemos...
― Fui ― disse. ― Mas é tarde demais para desfazer isso agora, não é?
O calor salgado inundou o fundo de sua garganta e suas mãos estavam
apertadas sobre o corrimão.
― Durma ― ele disse. ― Melhore.
Indo para seu quarto e rastejando sob os cobertores macios, ela dormiu
profundamente durante a noite.

LIBBY RETORNOU À enfermaria na manhã seguinte cedo.


― Me acostumei tanto com a sua ausência que esqueci completamente da
sua existência ― Chedham falou lentamente. ― Pincher disse que estava à beira
da morte.
― Aparentemente, a morte me empurrou de volta para a rua.
― Pena. Sugeri a Plath que comprássemos seu cadáver para nossa
dissecação final no curso de Jones.
Ela passou por ele para encontrar o Sr. Bridges, que estava entrando pelos
portões. O prazer no rosto de seu mentor era genuíno.
― Archie e Pincushion haviam assumido seus deveres durante sua doença.
Visitando seus pacientes, no entanto, ela descobriu que seu inimigo ajudara.
― Sou grato por ter visto meus pacientes, Chedham ― disse enquanto
seguiam o Sr. Bridges entre as alas.
― Não fiz isso em seu favor.
Eles pararam diante da primeira cama na ala das mulheres.
Estava vazia e Libby espiou a fileira de leitos. ― A Sra. Small foi
dispensada?
― Infelizmente ela sucumbiu ao câncer ― disse Bridges. ― Chedham
removeu os tumores. Vamos estudá-los amanhã. ― Ele seguiu para a cama ao
lado, mas Libby não conseguia arrancar os olhos do linho branco limpo
estendido sobre o catre.
Chedham inclinou-se para falar por cima do ombro dela. ― Talvez usemos
o cadáver dela para nossa próxima dissecação, já que não podemos usar o seu.
― É um idiota sem consciência, Maxwell.
― Diga isso um pouco mais alto. Não acho que Bridges o ouviu. ― Com
um sorriso apertado, ele seguiu o cirurgião.
O resto da manhã foi um turbilhão de tarefas que a atrasaram, além da hora
em que costumava encontrar Coira para o almoço.
― Estou feliz em vê-lo, moço! Deu-me um susto, ao prometer procurar por
Dallis e depois desaparecer como fez.
― Ela retornou?
Coira sacudiu a cabeça. ― Talvez tenha ido para Newcastle. Dizem que os
marinheiros pagam mais lá.
― Perguntarei ao Sr. Kent se ele descobriu alguma coisa com o Sr. Reeve.
Os olhos de Coira brilharam. ― Aceitou-o de volta, não é? ― Ela não o
aceitou de volta. Ele a levara de volta.
Que ela agora quisesse passar cada momento ao lado dele só provava que
ele tinha sido mais sábio do que ela o tempo todo.

O DR. JONES soube da sua doença através de Archie e instruiu-a a


completar o trabalho perdido e estar bem preparado para a dissecação final do
período.
― Uma dissecação pública, Joe! ― Archie disse enquanto tomavam seus
lugares na sala de aula. ― As pessoas pagarão para nos assistir realizá-la.
― Por que alguém pagaria para assistir os alunos fazerem uma dissecação?
― Enquanto esteve doente, o colégio publicou os nomes dos melhores
aprendizes este ano. Está famoso, moço!
Se isso fosse verdade quando seu pai voltasse, como poderia rejeitá-la?
No sábado, depois que tanto a Sra. Coutts quanto o Sr. Gibbs partiram,
Libby trocou de roupa e bateu na porta do quarto de Ziyaeddin e o ouviu dizer
― Entre ― lá de dentro.
Ela o encontrou na sala de trabalho. Ele não tirou a atenção de sua tarefa, e
ela observou enquanto ele habilmente trabalhava a espátula de pintura em um
montão de tinta cinza que se tornava mais verde a cada passagem da ferramenta.
― Para o que está misturando essa cor?
― Os olhos da Sra. Planchett-Spinner ― ele disse, a espátula deslizando,
pressionando e raspando a tinta com um ritmo hipnotizante.
― Eu conheci a Sra. Planchett-Spinner. É uma fofoqueira horrível. Seus
olhos não são tão verdes.
― De fato.
― O senhor pinta o que vê. É por isso que frequentemente quebra princípio
geral do retrato.
― Faço isso?
― Eu vi sua pintura de Lily Jackson, em que o fundo parece inacabado. Foi
intencional. Queria mostrar a verdade sobre ela. Não pinta segundo as regras
porque não se contenta em descrever o que todo mundo vê na superfície.
Havia tensão em seus músculos de sua mandíbula. ― Possivelmente.
― Como faz isso? Como vê o que está embaixo da pele?
― A senhorita também faz isso.
― Eu vejo ossos e músculos. O senhor vê a alma. ― Ele não respondeu.
― A Sra. Coutts diz que está ocupado com encomendas.
― Ela não mentiu. A senhorita está vestindo o roupão de Joseph Smart e
suas pernas estão nuas ― disse ele, com a cabeça ainda inclinada para o
trabalho. ― Por que disso, eu me pergunto?
― Eu quero que me retrate. Tudo de mim.
Finalmente ele olhou para ela.
Ela engoliu a grossura da garganta.
― Arte ― disse ela. ― Eu gostaria que me usasse como pretendia
inicialmente quando fizemos nosso acordo, para pintar o que deseja pintar. Um
nu. Ou talvez um tema mitológico. Ou uma peça histórica. Como quiser. Há em
seus olhos a luz mais estranha, de repente. Eu acho que está prestes a rejeitar
minha oferta. Mas não pode. Quero agradecer por tudo que fez para me ajudar,
mas não tenho mais nada a oferecer.
― Não há necessidade. A senhorita já me fez inteiro. ― Ele não gesticulou
para a prótese a fim de explicar melhor essa afirmação surpreendente.
― Como suas pinturas ― ela sussurrou, ― será que agora estaremos
dizendo mais do que nossas palavras sugerem na superfície?
Ele voltou sua atenção novamente para a paleta. ― Não é preciso
agradecer.
― Ainda assim, minha consciência deve estar satisfeita por eu ter pago
minha parte justa em nosso contrato. Não descansará até que permita.
Seus dedos apertaram a espátula. ― Tudo bem.
Os nervos giraram em seu estômago. ― Estou pronta para posar para o
senhor agora. Os olhos da Sra. Planchett-Spinner podem esperar?
Ele largou a espátula e se virou para ela. ― Tudo pode esperar.
Ela girou e entrou no estúdio, largou o roupão e se empoleirou no
banquinho.
― Eu estou um pouco livre de carne por causa da minha doença. Mas pode
me embelezar, claro. Como gostaria que eu posasse?
Ele ainda estava na porta da sala de trabalho. ― Como é ― ele disse
bastante baixo.
― Se optar por fazer uma peça clássica, eu preferiria não ser uma das
conquistas involuntárias de Zeus. Nenhum cisne aconchegado entre minhas
coxas ou touro se aproximando de mim, por favor.
― Tenha misericórdia. ― Ele agarrou a parte de trás do seu pescoço.
Uma onda de calor se espalhava por seu peito e bochechas.
― Uma vez me disse para pôr de lado a donzela e ser apenas a cirurgiã.
Agora deve deixar de lado o homem e ser apenas o artista.
― Não há artista sem o homem. Hoje não.
― Não falarei então ― disse ela. ― E o senhor também não. Assim
nenhum de nós dirá qualquer coisa imprudente, sutilmente ou não.
Ele pegou uma tela esticada sobre uma moldura e colocou-a no cavalete.
― Não deseja esboçar no papel primeiro?
― Não preciso.
― Tinha preparado essa tela para uma encomenda?
― Para esta.
― Para esta? Mas eu nunca disse ...
Ele foi em direção a ela. A pele de Libby formigava toda pelo sentimento.
Os olhos do artista estavam avaliando-a, devagar, com cuidado, demorando-se
aqui e ali.
― Como uma jornada que anseia por fazer ― ele disse, ― e pensa na
exclusão de tudo o mais, venho planejando essa tela há meses. ― Ele tocou o
joelho dela. ― Abaixe-o.
Ela obedeceu, deslizando o pé pelo chão para esticar a perna, a panturrilha
roçando as calças dele. Espirais de prazer correram através dela.
Sua mão veio ao redor da dela e ela permitiu que ele colocasse em cima da
sua coxa. Ela estremeceu.
― Não estou com frio ― disse ela. ― Apenas nervosa. Nunca antes fiquei
sentada nua, é claro.
― O que aconteceu com o nenhum de nós falando?
― Uma quimera, obviamente.
As pontas de seus dedos metralharam seu cotovelo e suas pálpebras
tremeram. Movendo o braço, ela seguiu a pressão gentil até chegar ao teto. Então
ele segurou o queixo dela na palma da mão e inclinou-o para cima.
― Perfeito ― ele disse baixinho, roucamente. Seu polegar acariciou seus
lábios e seus olhos sobre ela estavam nitidamente luminosos.
― Não deve fazer amor comigo agora, ― ela disse trêmula. ― Prioridades,
senhor.
― Fazer amor com a senhorita é minha prioridade.
― Desde quando? Já que me disse que isso não poderia acontecer?
― Desde o momento em que vi seu rosto pela primeira vez, a ouvi falar,
observei-a se mexer. Eu fui totalmente desonesto com a senhorita, e mais ainda
comigo mesmo.
― Não é desonesto, ― ela sussurrou. ― Sábio, com certeza. Devo agora
recitar uma lista das várias queixas do estômago? Ou talvez as doenças da pele?
Ambos podem amortecer efetivamente o ardor.
― A menos que possa recitá-los na voz de outra pessoa, não será suficiente.
― As pontas de seus dedos esculpiram uma linha de prazer decadente ao longo
de sua garganta, como um escultor alisando uma curva. ― Pois o som da sua voz
é para mim ao mesmo tempo céu dourado e mar azul, tempestade e luz do sol.
― Poesia ― ela sussurrou.
― A senhorita ― ele disse com voz rouca.
― A dispepsia ― ela disse no tom de Joseph, ― é uma queixa dos órgãos
digestivos centrais que faz com que o paciente experimente...
Sua mão se afastou dela.
― Descanse quando quiser ― ele disse, voltando para o cavalete. Ele
pegou um lápis, mas só olhou nos olhos dela.
― Por que não está desenhando? ― Ela perguntou.
― Elizabeth, vou....
― Desenhar. Agora deve desenhar. E depois pintar. E desta vez eu
realmente não direi outra palavra e o senhor também não deve. ― Eles não
disseram mais nada. Tornou-se, para quem quer que o visse “de fora”, o
desenhista especialista, seu olhar se deslocando rapidamente entre ela e a tela.
Quando ele completou o esboço, pegou a paleta e os pincéis da sala de trabalho
para a primeira camada. Mas a tensão não tinha saído de sua mandíbula e não
havia nada de sua habitual paz serena ou mesmo despreocupação em sua
postura. Os tendões nas mãos e no pescoço estavam sobrecarregados.
Ocasionalmente, ela descansava o braço, esticava o pescoço e sentia o calor
do olhar dele sobre ela, e imaginava todas as maneiras pelas quais ele poderia
tocá-la se ela o convidasse agora. Cada átomo de sua pele estava pronto para
isso, cada parte de seu corpo preparado - para ele.
Quando a luz do dia diminuiu, ele acendeu as velas. Finalmente ele largou o
pincel. Caminhando para a sala de trabalho, ele disse: ― Isso é tudo.
― Tudo?
― A primeira camada deve secar. Volte quando puder. Eu estarei aqui.
Sempre, para a senhorita.
Ela colocou o roupão sobre os ombros, apertou a faixa ao redor de sua
cintura e atravessou o estúdio. Dentro da sala de trabalho, ele ficou de costas
para a porta, uma mão cobrindo os olhos.
Colocando as palmas das mãos em sua escápula, deslizou-as pelas costas
dele. Os músculos se encolheram. Lentamente, ela arrastou as mãos para baixo
ao longo de ambos os lados da linha rígida de sua coluna, que por muito tempo
suportara o tormento de sua falta.
― Por que não usou uma prótese de verdade por tantos anos? ― Perguntou.
― Por que se permitiu ser manco?
― Então, eu não precisaria sair daqui. ― Suas mãos pararam.
― Não quer deixar Edimburgo?
― Quando eu for, Elizabeth, será para a guerra.
― Guerra? ― Sua garganta estava quente. ― Na sua casa?
― Lá é meu direito inato. Meu sangue. Minha responsabilidade. ― Ele
abaixou o braço para o lado. ― Aqui é a minha casa.
Inclinando-se para frente, ela pressionou seu corpo contra ele, o prazer de
deslocar o medo eriçado dentro dela. Ela correu as mãos para o peito dele.
― É um milagre ― ela disse, ― esse corpo, uma força tão inflexível, mas
que envolve um coração de tanta gentileza.
Seus pulmões se expandiram contra as palmas das mãos dela. ― Não há
nada de gentil neste coração no momento.
Colocando sua bochecha em suas costas, ela acariciou os contornos do
músculo até a cintura, sentindo a tensão nele e o estremecimento de sua carne
onde suas mãos passavam.
― Desde aquela noite tenho refletido pouco, mas isso ― ela disse. ― Eu
sabia que seria prazeroso. Mas não imaginava como estaria consumida. Não
sabia que uma vez que nos beijássemos, uma vez que nos tocássemos, eu iria
querer apenas isso.
― Isso não é nem a metade disso. ― Ele não se moveu. ― Nem um terço.
― Eu deveria saber. É o caminho da minha loucura. Quanto mais a
alimento, mais ela anseia. Meu corpo está zumbindo positivamente. Nenhuma
distração serve para diminuir a fome. Eu quero muito poder finalmente satisfazê-
la.
― Vá ― disse ele. ― Andar de cima. Em qualquer outro lugar. Longe.
Mas as mãos dela não o liberariam. Seu corpo não se afastaria do calor
dele. Aqui, tocando-o, ela se sentia segura, tanto em paz quanto totalmente viva.
O estrondo da aldrava da porta da frente ecoou pelo silêncio da casa.
― Joooooooooe! ― Do alpendre, Archie cantou em uma gargalhada. ―
Joe Smaaaaaart! Está em casa, Joe?
Tocou o sino.
― Estamos comemorando! ― George gritou.
― Georgie foi e se amarrou o nó! ― Pincushion chorou. Suas vozes
ecoaram juntas e depois copiosas risadas.
― Joe! ― Archie chamou novamente. ― Onde está, jovem Joe?
Ziyaeddin rompeu o seu aperto, moveu-se em torno dela e rapidamente
atravessou o estúdio. Ela o seguiu. Quando ele chegou a abrir a porta, ela
deslizou para trás do painel.
― Aqui está, J - senhor!
Ela ouviu passos arrastados, depois mais risadas. A chuva caía sem parar,
patinando constantemente na varanda e nas pedras.
― O jovem Joey pode sair para brincar? ― Pincushion disse em um som
anasalado, então ele e George caíram na gargalhada.
― Boa noite, senhor ― disse Archie. ― O George aqui se casou com sua
moça hoje na frente da bigorna. Estamos celebrando.
O perfil de Ziyaeddin iluminado por sua lâmpada era a coisa mais linda que
ela já vira. Ele não era muito mais velho do que os amigos dela - quatro ou cinco
anos no máximo - mas atravessara o mundo, suportara algemas e ganhara vida
em uma terra estrangeira; ainda assim, entraria em perigo porque precisava. Não
é de admirar que ela pensasse apenas nele.
― Parabéns, senhor Allan ― disse ele.
― Obrigado, senhor!
― O jovem Joe está? ― Perguntou Archie.
― Ele está. Eu direi a ele que chegaram.
― Muito obrigado! ― Disse George.
― Vendo como estamos encharcados, senhor, esperaremos aqui fora. ―
Eles estavam cantando enquanto Ziyaeddin fechava a porta.
― Eles não estão totalmente bêbados, mas certamente estão a caminho ―
ele disse, então começou a andar em direção à parte de trás da casa.
― Isso é insustentável - o que faremos agora.
Ele fez uma pausa e virou parcialmente para ela. ― Vá. Comemore a
felicidade de seu amigo - seu amigo que deveria estar com sua noiva hoje à noite
― acrescentou ele em um registro mais baixo ― mas alguns homens são idiotas.
― Estou cansada de que seja honrado!
― Isso não é honroso. Isso é autopreservação e uma boa dose de medo.
Agora vá.
― Medo?
Ele veio até ela, agarrou sua cintura e tomou sua boca sob a dele. Ela
passou os braços pelo seu pescoço e aceitou as mãos dele deslizando para cima
para separar o roupão e cobrir seus seios.
Foi um beijo selvagem, urgente, profundo e quente. Sua pele contra a dela
estava escaldante, seus polegares acariciavam seus mamilos dando-lhe um prazer
que ela nunca tinha imaginado. Ela pressionou a barriga nua contra seu colete e
mudou de posição, separando os joelhos para sentir essa coxa mais forte contra
sua necessidade. Ele gemeu e sua mão varreu ao redor de seu quadril, cercando
sua nádega. Inclinando-se para ela, ele puxou a coxa dela ao lado da dele.
O prazer espiralou nela, grosso, perfeito, o corpo dele duro entre suas
pernas, sua excitação massageando-a onde ela mais queria - como o queria. Ele
beijou sua garganta, seu pescoço, balançando-a contra ele com os dedos
esticados nela atrás, e ela só conseguia fazer sons sem palavras, o prazer girando
mais alto, mais rápido.
― Isso é tudo que eu quero ― disse ele, sua boca em sua pele, suas mãos
segurando-a com força para ele. ― A todo momento, tocá-la, senti-la em minhas
mãos, saborear seus lábios e ouvir sua voz.
― Sim ― ela disse, à beira, doendo insuportavelmente e precisando de sua
boca na dela - em toda parte dela. ― Sim.
― Joooooeeeey! ― A chamada cantada veio da rua.
Ziyaeddin levantou a cabeça. Seus olhos estavam em chamas. ― Essa fome
nunca será satisfeita ― ele sussurrou duramente. ― Se isso não é suficiente para
lhe dar medo, então é um homem muito mais corajoso do que eu, Joseph Smart.
Ele a soltou e ela deslizou de volta contra a parede enquanto o ritmo de seus
passos recuou em seus aposentos e seus amigos chamavam o nome dela da rua.
Capítulo 25

Desrespeitando Regras

Ela não o viu mais. Ela passava os dias na enfermaria, no auditório, na


biblioteca ou no bar, e nas noites em sua sala de estar com a cabeça inclinada
para seus livros. Mas seu corpo sempre estava amarrado na lembrança do desejo
e da antecipação inquieta.
― Domingo à noite, cavalheiros, será nossa última reunião em meu teatro
cirúrgico — disse Bridges, esfregando as mãos no lavatório. Por sua insistência,
elas foram lavadas entre cada exame na enfermaria. Respeitando o desejo de
Ziyaeddin de permanecer tão discreta na vida de Joseph Smart quanto possível,
ela procurou em todos os textos médicos sobre doença que poderia encontrar
para justificar a lavagem das mãos. Finalmente, havia encontrado em um tratado
sobre saúde materna feito por um médico inglês.
Secando as mãos, Chedham olhou-a rapidamente. ― Sim senhor.
O cirurgião partiu.
Chedham se virou para ela. ― Acha que eles o chamarão de melhor
aprendiz deste ano, não é?
Ela pegou sua mochila e começou a sair.
― Eu ganharei ― disse ele atrás dela. ― Farei o que for preciso, Smart.
Vencerei.
Correndo para o pátio inundado de sol, ela engoliu em seco.
Farei o que for preciso.
Ela disse isso para Ziyaeddin meses atrás.
Alice a havia acusado de sucumbir, e talvez ela tivesse mesmo. Certamente,
sucumbiu. Pensara em pouca coisa além dele, seu toque, suas mãos sobre ela, o
cheiro de sua pele. Mas nem ela nem ele estavam livres para seguir esse desejo.
Ela entendia isso agora, mas a compreensão não trazia paz, nenhum alívio,
nenhuma satisfação, apenas uma fome tão profunda que a deixava confusa.
― Chedham está tramando alguma coisa ― Archie disse mais tarde,
estreitando os olhos. ― Não confio nele.
― Ele só quer ter sucesso ― ela murmurou, virando uma página em seu
livro. ― Assim como todos nós fazemos.
― Sim, com certeza. Meu futuro está definido. Mas não é o seu caso, quer
mais. Eu nunca vi igual, moço. Quer isso como um homem quer ópio.
― O que? ― Ela perguntou. ― O que está querendo dizer?
― Não é natural, Joe ― Pincushion murmurou contra a borda de seu copo.
Não é natural.
George entrou e a conversa mudou. Mas Libby não conseguiu recuperar sua
concentração.
Ela guardou os livros, deu adeus aos amigos e saiu do pub. Estava
atravessando os portões do pátio da enfermaria quando percebeu que seus pés a
carregaram até ali.
Ela queria acreditar que tinha perdido o hábito. Mas não tinha. Necessidade
a tinha guiado até aqui. Nas cabeceiras de seus pacientes e na câmara de preparo,
onde instrumentos limpos pendiam em fileiras ordenadas, o alívio a chamava.
Atraindo o ar frio e úmido em seus pulmões, ela se virou. A cada passo para
longe da enfermaria, o desespero diminuiu.
Seus amigos achavam que ela não era natural. E ela era. Mas não como eles
acreditavam. Apenas Ziyaeddin entendia. No entanto, ele nunca a julgara por
isso. Nem uma vez.
A meio quarteirão da casa, a Sra. Coutts veio andando em sua direção.
― O jantar está na mesa ― ela disse. ― O Sr. Coutts e eu vamos para a
fazenda de nosso filho amanhã, então eu não a verei até segunda-feira. Deixei
muita comida. Não precisa gastar na rua todas as noites, como o patrão.
― Eu pensei que a senhora gostasse que ele participasse de festas.
― Não quando ele está indo simplesmente para sair da casa ― ela disse
com um aceno de cabeça.
― Ele está em casa agora?
― Ele foi à igreja.
― Igreja?
Seus olhos alegres piscaram. ― Sim, levou-o à sua religião.
― Duvido muito disso.
― Veja por si mesma. ― Ela gesticulou para a torre próxima, depois saiu
apressada.
Libby deu a volta até a entrada da igreja e entrou no santuário. Estava vazio
- nenhum sacristão acendendo as velas, nenhum adorador - apenas ele, sentado
no último banco, a cabeça baixa e as mãos entre os joelhos.
Deixou cair a pesada mochila no chão e sentou-se ao seu lado.
― Não me diga que está rezando. Não em uma igreja.
― Um homem deve encontrar socorro em algum lugar, não deve? ― Ele
levantou a cabeça e encontrou seu olhar e era como se o vento chicoteasse sob
suas costelas. Olhou para ela como ninguém mais havia feito, como se soubesse
todos os pensamentos em sua mente e achasse cada um deles lindo.
― Não acredito no que diz, ― ela falou.
― Me dê sua mão.
Ela o fez e ele levou-a aos lábios.
― Está tremendo, ― disse ele, pressionando os lábios na palma da mão.
― Estou sobrecarregada. Eu não tinha ideia de que isso era o que os
amantes fazem.
― Não é. O que os amantes realmente fazem é amor.
― Por que está nesta igreja realmente? ― Ele entrelaçou os dedos.
― Um homem vem a Edimburgo para falar comigo. Não permitirei que ele
vá em casa. Aguardo o vigário agora. Vou pedir-lhe o favor de encontrar meu
visitante na privacidade da reitoria.
― De onde vem esse visitante que escolheu encontrá-lo em segredo, em
vez de no Gilled Quill?
― Minha terra natal. ― Seu polegar acariciou os dedos dela. ― Ele está
vindo para pedir que eu retorne.
Retirando a mão, ela disse: ― Vou deixá-lo com o vigário.
Ela foi para casa. Sem apetite para o jantar que a Sra. Coutts preparara,
guardou-o e subiu as escadas. Passando pelo espelho em seu quarto ela viu
Joseph Smart.
Na igreja, quando ele pegou sua mão, havia esquecido que ela era um
homem. Ela tinha esquecido que ela era uma mulher. Ela só tinha atenção para
ele, para seu toque e para as notícias que ele compartilhara com ela, como se isso
significasse tão pouco, como se não tivesse arrancado a terra debaixo dela.
Mudando de roupa com as mãos trêmulas e esfregando o rosto sem adesivo,
ela resistiu ao calor que se acumulava no fundo da garganta e dos olhos.
Descendo para o salão, ela abriu os livros. Mas seus pensamentos giravam e as
frases se dobraram sobre si mesmas.
Ela deveria comer.
Deixando a sala de estar, foi ao estúdio dele. A pintura - sua pintura - estava
no cavalete. Acabada.
Ele não a pintou como uma donzela da mitologia antiga, nem como uma
figura religiosa ou até mesmo um simples nu.
Parcialmente coberta com um tecido fino, de um ombro a uma coxa, ela
segurava na mão direita os instrumentos de um cirurgião como se tivesse
acabado de arrancá-los do céu. Abaixo do seu pé direito havia um poste de
barbeiro tombado. Ela olhava para cima com o mesmo olhar cristalino de
inteligência, curiosidade e confiança de sua pintura de Joseph Smart, mas desta
vez com uma pitada de vulnerabilidade que parecia nada menos que humildade.
Lágrimas surgiram em seus olhos.
― Gosta dele? ― Ele disse atrás dela. Ela se virou.
― Por que tem que ser tão terrivelmente bom? ― Ela exclamou.
― Eu não sei. Pois não foi confortável.
― Eu não quis dizer bem como artista.
― Eu também não.
― Se fosse cruel ou egoísta ou violento ou mesmo imprudente, eu não o
sentiria facilmente. Não tenho tolerância para essas qualidades.
Ele cruzou os braços e apoiou o ombro no batente da porta.
― Está com raiva de mim porque eu não a pintei como uma aristocrata
entediada envolta em joias? ― Ele perguntou.
― Não estou brava. Acho que estou apaixonada pelo senhor. ― Seus lábios
se separaram. Seus braços caíram para os lados.
Ela limpou as lágrimas de suas bochechas. ― Eu tentei me convencer de
que era apenas luxúria. Mas isso era uma mentira. Estou doendo pelo senhor,
como se estivesse doente com uma doença que não tenho ideia de como curar. É
horrível e maravilhoso e estou furiosa com isso, pois isso não é conveniente.
Ele veio na direção dela, deslizou as mãos por baixo do roupão e segurou a
cintura dela com força. Gentilmente ele a puxou para ele.
― Eu sou uma doença?
― Eu não disse que é uma doença. Apenas os sentimentos. Embora eu
tente, não consigo me livrar deles. Eu nunca falhei em nada tão completamente
antes na minha vida.
― Não tente ― disse ele. ― Me beija.
― Eu o persegui quando me avisou para não fazê-lo. Eu sinto muitíssimo.
― Deveria sentir. Foi um erro terrível. Agora me beije. — Ele baixou os
lábios nos dela e ela o encontrou, sentiu-o, abriu-se para ele e bebeu-o.
Envolvendo seus braços ao redor de seu pescoço, ela pressionou seu corpo
contra o dele e ele a beijou profundamente.
― Diga que fará amor comigo ― ela disse, recebendo sua boca em sua
garganta e passando os dedos pelos cabelos e precisando sentir cada parte dele.
― Agora. Não me faça esperar mais um minuto.
Suas mãos se espalharam pelas costas e ao redor de seus quadris. ― Outro
minuto? ― Seu sussurro contra sua pele soou como riso. ― Eu tenho esperado
por três anos.
Libertando-se dele, ela tirou o roupão e largou no chão do estúdio e se
abaixou sob o balcão da porta. Ao lado da cama, ela o esperava, mas ele parou
no limiar.
― Por que está esperando? ― Ela perguntou. ― Não pode ser de nervoso,
pelo menos não tão agitado como o eu. Não é virgem também, não é?
― Elizabeth, está certa?
― Inteiramente.
Mas ele não veio para a frente. Então ela foi até ele, abriu as palmas das
mãos no peito dele e desejou que suas mãos expressassem sua certeza. A batida
rápida e dura de seu coração impulsionou sua coragem.
― Não sou uma mulher típica.
― Notei isso. ― Seu sorriso era maravilhosamente instável.
― Não tenho a modéstia nem o medo do ato sexual. E quando coloca suas
mãos em mim, quando me beija, eu quero tanto senti-lo dentro de mim que fico
com raiva por querer isso. E eu quero finalmente ver ― ela deslizou a mão para
baixo e sentiu a dura prova de seu desejo ― exatamente como isso funciona.
A mão dele cobriu a dela, a outra varrendo a parte de trás do pescoço dela e
puxando-a para ele para beijá-la.
Ela já esteve nua enquanto posava para ele, mas remover seu vestido agora
era uma nova aventura, pois enquanto ele ajudava, ele a tocava. De pé atrás dela,
ele desatou o corpete, e a despiu, e as mãos dele circundaram a cintura dela,
espalhando-se sobre a barriga, depois se arrastou até os seios. Ele beijou seu
pescoço, e seus dedos se arrastaram sobre seus mamilos apertando
tentadoramente, depois através deles.
― O que está fazendo? ― Ela disse em um arrepio de prazer.
― Fazendo amor com você, como pediu e como eu queria fazer mais que
de tudo.
― Eu não sabia que isso era parte dele.
― Qualquer coisa que desejar é parte dele.
Ela girou em seus braços. Ele a beijou lindamente. Então, com extremo
cuidado, ele ensinou-lhe o que ela queria aprender sobre o corpo masculino. O
corpo dele.
Enquanto ele se despia ela o ajudava.
― Nunca imaginei que a experiência adquirida na minha mentira poderia
ser usada de maneira tão atraente ― disse ela ao soltar os fechos de suas calças.
― Eu imaginei ― disse ele.
Ela olhou nos olhos dele que, à luz do fogo, estavam cheios de desejo.
Cheios dela.
― Imaginou? Perguntou.
― Todos os dias.
Sua boca se abriu e fechou, depois abriu de novo. ― Eu não sabia. É
excelente em dissimular.
― Toque-me, joonam. Aprenda o que deseja e satisfaça meu desejo sem
fim por suas mãos em mim, finalmente.
Ela já sabia que ele era maravilhosamente formado. Agora descobriu que
ele era assim em toda parte.
Sua pele, tensa e lisa sobre o músculo duro, revelava abrasões passadas:
algumas cicatrizes pequenas, mas outras evidências de feridas graves.
― O que vai acontecer se eu fizer isso? ― Ela disse, fazendo com ele o que
ela queria fazer por meses. Contra sua palma veio o pulso da reação do seu corpo
e um gemido retumbante soou profundamente em seu peito.
― Isso ― disse ele profundamente.
Admiração e uma sensação de poder selvagem passaram por ela. Ela
continuou o experimento. Era completamente inebriante: o aperto dele sobre ela,
sua respiração rápida contra a testa que lhe dizia que estava desmantelando sua
compostura perfeita, e o latejar crescente de sua própria excitação. Ele era cetim,
calor e desejo duro, e ela queria sentir tudo dele, prová-lo e torná-lo dela. Abriu
os lábios contra o pescoço dele e deslizou a mão para baixo.
Cinco dedos fortes se apertaram ao redor dos dela.
― Se fizer isso ― ele disse com uma aspereza gloriosa, ― esta
demonstração chegará a um final muito rápido.
― Mas isso pode ser repetido.
Após o riso, ele puxou-a contra ele e beijou-a completamente.
Ela acreditava que ele era um homem de contenção em todas as coisas.
Agora descobriu que nisto, com ela, ele absolutamente não era.
Enquanto ria de felicidade, ele a tocava em todos os lugares - lábios,
garganta, seios, de novo e de novo, acariciando até ela ofegar e suspirar com
mais frequência do que formava palavras reais. Seu corpo não era nada parecido
com o dela quando ela se tocou, pois era grande e nem um pouco calejado.
― Seu toque ― disse ela, agarrando-se a seus ombros. ― É tão gentil. Isso
me faz sentir desesperada por dentro.
Suas mãos rodeavam seus quadris, as pontas dos dedos fustigando a parte
de baixo de suas nádegas, e ele beijou sua garganta, seu pescoço, seu ombro. ―
É do seu agrado?
― É perfeito, mas quero mais. Muito mais. Eu imploro... Ele acariciou ao
longo de sua excitação. Como fogo líquido, o prazer lambeu através dela. Leve e
suave, seu toque era enlouquecedor, lindo, viciante. Com as pernas fracas, os
braços presos ao redor do pescoço, ela separou as coxas e os quadris se moveram
como se a sua mão fizesse isso. ― Ohh. Isso é ... ― ela estava louca de
necessidade, ondulando para a carícia dele. ― Por favor. Agora. Me dê mais. Me
dê você.
Então ele fez isso. Sobre a roupa de cama macia, ele se entregou a ela.
Primeiro, suas mãos gentis e cheias de poder espalharam seus joelhos. Então ele
baixou o corpo para o dela e ela o aceitou.
Por algum tempo, talvez minutos, eles ainda estavam movendo os seios
contra o peito, exceto pela respiração profunda e intumescida que nenhum deles
conseguia esboçar completamente. Segurando seu rosto na mão, ele acariciou
sua bochecha e seus lábios com a ponta do polegar.
― Isso é bom. ― Suas palavras não se elevaram acima de um sussurro.
― Sim é bom, ― ele murmurou, e beijou-a suavemente, em seguida,
novamente.
― Parece correto, ― disse ela entre seus beijos.
― Correto? Você?
― Nós, somos. Isso está certo.
― Sim. ― A febre estava em seus olhos enquanto sua mão viajava ao
longo de sua garganta e pescoço, e se curvava ao redor de seu seio. Enquanto ele
acariciava seu bico, ele se moveu dentro dela.
― Oh. Isso foi perfeito. Faça isso novamente.
Ele fez de novo e de novo e de novo. Mais rápido, mais difícil, eles se
juntaram com mais urgência a cada investida, e logo ela entendeu em um nível
puramente animal porque as pessoas frequentemente desejavam fazer isso.
As mãos dele não eram mais gentis, mas gananciosas, como se as mãos dela
estivessem sobre ele, quando ela agarrou sua cintura e ouviu-se sussurrando seu
nome, depois chorando em voz alta. Tudo estava molhado e quente: seus lábios,
sua pele, seus corpos trancados juntos.
Ainda assim, ele tocou seu corpo com suas carícias inteligentes,
precisamente onde eles a fizeram selvagem e seu sexo profundamente dentro
dela até que a espiral de êxtase apertado explodiu. Rolou através dela, profunda
e dura e completa. Os sons que ela fez eram quase humanos.
Ela não precisou pedir a ele que identificasse o momento em que ele
encontrou o ápice de seu prazer; ela viu isso no esforço dos tendões em seu
pescoço e na flexão dos músculos em seu peito e braços e sentiu dentro de seu
próprio corpo.
Ainda em seu abraço, quando ela foi novamente capaz de encher seus
pulmões completamente, e ele estava colocando belos e ternos beijos em sua
bochecha e mandíbula, ela perguntou a ele como tinha sido para ele e também se
era sempre tão satisfatório quanto molhado.
Em resposta, ele passou os braços em volta dela, beijou-lhe o cabelo, depois
a testa e depois os lábios. Ela amava sua boca, o doce calor de sua língua, as
pequenas mordidas em seus lábios que fizeram o êxtase lânguido deslizar sobre
seu sexo novamente e seus mamilos se apertarem.
Seu coração ainda batia rápido demais. Ela estava cheia - tão cheia.
Afastando-se dela, ele pegou uma jarra de água e uma roupa que antes
havia sido descartada em favor da nudez mútua - sua anágua ou sua camisa,
talvez. Começando com o suor em seus cabelos, ele começou a banhá-la. Ele
acompanhou com beijos.
Ela permitiu. Como sempre, ela tinha muitas perguntas, mas não tinha
palavras suficientes para expressar seus sentimentos agora. Quando finalmente
alcançou seus quadris e gentilmente aplicou o linho entre suas pernas, ela forçou
palavras sobre o nó que entupiu sua garganta.
― Eu não tenho nenhum respeito pela realeza.
― Eu notei que não, na verdade. ― Alisando a palma da mão sobre a
barriga úmida, ele sorriu um pouco.
― Ainda assim, não acho que deveria estar me dando banho quando uma
enfermeira banha uma criança ou uma criada banha uma grande dama. Ou seja,
não exatamente como esses, pois uma enfermeira ou criada presumivelmente
estaria vestida.
― Presumivelmente.
― Não deveria.
― No entanto, deve me permitir isso desta vez.
Ela precisava saber se pelo desta vez queria dizer que ele pretendia que eles
nunca fizessem isso novamente, ou se ela só deveria permitir isso na primeira
vez, embora houvesse muitas outras ocasiões em que ele pudesse banhá-la, mas
não o faria.
― Pergunte o que deseja, Elizabeth ― ele disse, de alguma forma, sabendo
que as perguntas agora oscilavam em sua língua.
Ela as engoliu.
― Obrigada, ― ela sussurrou em vez disso, cercando o rosto com as mãos,
e puxou a boca para a dela.
Logo ele dormiu, mas ela não podia, em vez disso, pairava em uma névoa
semiconsciente de satisfação dolorosa e outro tipo de sensação que não era
satisfatória, algo desconfortável, desesperado e se alojou debaixo do esterno.
Isso a fez observá-lo durante o sono, a lenta e superficial subida e descida de seu
peito, o belo rosto agora sem qualquer cuidado, suas feições em paz.
Finalmente, ele se mexeu, virou a cabeça, abriu os olhos e encontrou o
olhar dela.
― Esperava que gritasse, ― disse ela.
― Quando? ― Ele murmurou, ainda parcialmente adormecido.
― No seu sono ― ela disse. ― Do pesadelo.
Ele virou-se sobre o ombro e encarou-a, flexionando os magníficos
músculos iluminados pela luz do fogo.
― Os pesadelos desapareceram, ― ele disse.
― Se foram? Que maravilha! Quando?
Ele subiu em cima dela e beijou-a na boca, na ponta do nariz e na testa. As
palmas de suas mãos revelavam cada ondulação de sua espinha. Seus lábios
estavam no cabelo dela.
― Antes de você ― ele disse, ― só havia fogo.
― Eu sou a chuva?
― Você é o dilúvio.
Suas mãos apertaram nele.
― Eu não desejo ser a causa mágica de seus pesadelos pararem, ― ela
quase sussurrou.
― Não há nada de mágico nisso. ― Ele beijou sua mandíbula e ela ergueu
o queixo para que ele pudesse beijar seu pescoço logo abaixo da orelha, onde
seus lábios realmente faziam magia. ― Por que as pontas dos seus dedos estão
fazendo buracos em meus braços? ― Ele perguntou contra sua pele.
― Porque quero engoli-lo com minhas mãos. Quero te tocar em todo lugar.
E quero que me diga que os pesadelos não recomeçarão assim que eu sair desta
casa.
― Para o último, não posso lhe fazer nenhuma promessa. Para os dois
primeiros, tem meu consentimento ansioso.
― E a minha declaração de que deixarei esta casa?
― Eu sei que irá deixá-la. ― Ele olhou em seus olhos. ― Eu não sou seu
destino, güzel kiz. E você não é meu.
Um som escapou de sua garganta: um soluço de algum tipo, vindo de seus
pulmões, ventre e coração de uma só vez. Era impossível - essa dor no meio de
tal prazer. Irracional. Insuportável.
Ele pegou o rosto dela entre as mãos e beijou sua boca. Acariciando seus
lábios, ele os separou. Seu calor se tornou um.
Ele beijou sua garganta e pescoço, trabalhando sua magia de prazer ao
longo de sua clavícula e entre seus seios, agitando sua pele para um rubor
quente, e fazendo todo o seu corpo acordar novamente com fome. Provocando a
carne macia de seu peito com beijos leves, acariciou o mamilo e ele endureceu.
Quando seus lábios se fecharam, ela gemeu, arqueou-se do colchão e deu boas-
vindas a seus dentes e a sua língua nela.
As pontas dos dedos acariciando o comprimento do lado dela até o quadril,
fazendo cócegas e atormentado ao mesmo tempo. Ele seguiu-os com a boca,
suave e bonita nas costelas, depois na barriga e depois a pele esticada sobre o
osso pélvico. Ela se sentiu positivamente adorada. Era a ideia mais ridícula, mas
seu toque, suas carícias, a beleza do prazer que rodopiava através de seu corpo
ecoava a gloriosa majestade da deusa que ele pintara.
Quando suas mãos lhe afastaram as coxas, ela não resistiu, mas as espalhou,
ansiosas pelo impulso duro, a penetração profunda, o prazer selvagem.
Em vez disso, ele a lambeu. Ela engasgou com um suspiro. Seus olhares se
encontraram. Sua língua acariciou sua carne lentamente, degeneradamente. Um
som retumbou em sua garganta e ele fechou os olhos, como se prová-la lhe desse
prazer. Uma onda de frágil euforia cascateou através dela.
― Toque seus seios.
Ela os cercou com as mãos, acariciando as pontas dos dedos sobre as pontas
tensas, e viu quando ele beijou seu sexo novamente, e novamente.
Trazê-la ao clímax exigia muito pouco disso. Ela gemeu quando ele a
lambeu, repetiu a carícia suave, então a penetrou. Segurando suas coxas
separadas, ele a levou inteiramente com a boca. Ela ofegou, finalmente
empurrando, dizendo a ele com palavras e com seu corpo que ela precisava dele
dentro dela.
Ele obedeceu, deslizando para dentro dela, a barriga escovando enquanto
ele a esticava com uma facilidade lenta, úmida e gloriosamente confiante, que
apenas levou o tormento mais alto, mais apertado, em seguida, puxando para
fora até que ela estivesse ofegante. Desesperada para recuperar o prazer, ela
agarrou seus quadris e tentou forçá-lo a entrar.
Finalmente, ele empurrou com força. Ela gritou um assentimento.
― Isso te agrada? ― Ele perguntou.
― Sim. Sim. Novamente.
Ele fez o que ela desejou. Quando as mãos dele envolveram seus quadris e
empurrou mais e mais fundo nela, tocando um lugar tão mágico que as palavras
saíram de seus lábios sem forma, ela jamais havia admirado sua grande força.
Seus gritos e gemidos entrelaçados com os dele.
Quando todos se acalmaram com uma languidez gratificante e ele estava
deitado ao lado dela, beijando seu ombro e braço, enviando arrepios de prazer
por todo o corpo, ela disse: ― Eu terminei de sangrar há dois dias.
Os beijos cessaram.
Ele levantou-se sobre o cotovelo para olhar para ela. ― O que está
dizendo?
― Que não ficarei com uma criança com isso.
A perplexidade brilhava em seus olhos. Virando-se de costas, ele colocou
um antebraço em seu rosto e seu peito se moveu com respirações profundas e
irregulares.
Ela se virou de lado e observou a beleza dele, todos os contornos
bronzeados e tenso à luz das velas.
― As mulheres normalmente não falam de tais assuntos para os homens, é
claro ― ela disse, ― a menos que o homem seja um médico e, mesmo assim,
com pouca frequência. Mas acho que isso é uma coisa muito útil para os amantes
discutirem.
Seu braço deslizou para longe de seu rosto e ele olhou para o dossel, seus
lábios que lhe deram tamanho prazer se fecharam, mas sua respiração ainda
estava cheia.
― Está familiarizado com o funcionamento da menstruação de uma mulher,
― ela disse, ― que há certos dias em cada ciclo mensal em que é improvável
que ela conceba?
― Sim.
― Não imaginei que agiria assim, ― disse ela. ― Que ficaria reticente em
falar sobre isso.
― Não estou reticente em falar sobre isso.
― Então o que agora está causando desconforto?
― Não é desconforto. ― Ele encontrou seu olhar. ― Estou pensando no
quanto quero que tenha um filho meu.
Agora ela não conseguia respirar adequadamente também.
Ela subiu nele e o viu observando-a quando ela o prendeu entre suas coxas
e ele envolveu suas mãos ao redor de seus quadris - viu as perguntas e a
confusão em seus olhos.
― Não fale ― ela disse, colocando dois dedos sobre seus lábios, em
seguida, substituindo-os com os próprios lábios. ― Não diga outra palavra.
Ele encontrou seus beijos, passou os braços ao redor dela e a puxou contra
ele.

ELA ACORDOU COM uma fina luz prateada espreitando através das
cortinas e o cheiro de pão torrado. Ela estava sozinha no meio da cama dele, os
lençóis dobrados ao redor dos ombros.
Um roupão de cetim azul safira estava ao pé da cama. Ela vestiu e foi para a
cozinha. Um fogo na lareira aquecia o cômodo. De pé no fogão, ele usava
apenas calções.
― É excepcionalmente doméstico, ― ela disse, segurando o batente da
porta. Seus ombros nus e braços e costas eram todo poder e beleza fluida. ―
Surpreendente. Não conheço outro homem que possa preparar um bule de chá
tão facilmente.
― Um menino longe do conforto de casa aprende rapidamente o que deve
para sobreviver. E um homem com segredos para esconder faz por si mesmo, o
mais rápido possível. Finalmente, ele olhou por cima do ombro. ― Essa cor
combina com você.
A sombra do restolho matinal escurecia sua mandíbula e ao redor de sua
boca. Quando se lembrou das coisas que aquela boca lhe fizera, seus membros
ficaram líquidos.
― Como um menino que vive em uma terra estrangeira, ― ele disse,
voltando sua atenção para a chaleira, ― aprendi que tomar chá juntos, jantar
juntos - são rituais de amizade.
Sua maleta estava no chão, nas proximidades. Na mesa estava o café da
manhã: pão torrado, geleia, queijo, ovos e um prato de grão-de-bico lindamente
pintado, do qual surgiu o aroma amadeirado do cominho.
― Conte-me sua história, ― ela pediu, sentando-se.
― Minha história pode esperar. Primeiro, deve comer. Então deve estudar.
Não permitirei que isso a distraia do seu propósito.
― Algumas horas ― ela teve que limpar a garganta ― longe dos estudos
não me prejudicará.
Ele recostou-se no balcão. ― Café da manhã. ― Ele gesticulou.
― Viu o pior de mim ― ela disse. ― O feio, o irracional, o desesperado, o
arrogante e egoísta. Todo o pior.
― Se isso é o seu pior, güzel kiz, então seu deus realmente a favoreceu.
― Por que não quer me contar sua história? Não a compartilharei com
ninguém.
― Eu confio nisto.
― Então por quê?
― Milhares de quilômetros de distância. Anos atrás. É uma história que não
pode prender o interesse de uma mulher tão moderna. ― Mas as sombras
novamente estavam em seus olhos e ela sabia que suas palavras eram apenas
uma verdade parcial.
Pegando um pedaço de pão torrado, ela brincou entre os dedos.
― É a sua história ― ela disse.
Depois de um momento, ele falou.
― Tabir é um pequeno reino, sob o olhar atento de poderes próximos, mas
independente. Meu pai era um homem educado, viajado em sua juventude e
amigo de todos. Seu primeiro general foi seu companheiro mais próximo desde a
infância. Mas o general queria mais. Quando em segredo ele ofereceu aos nossos
vizinhos russos o monopólio do comércio em nosso porto, eles o ajudaram em
seu golpe. Meu pai foi morto. Minha mãe, minha irmã e eu escapamos com três
criados. Nós viajamos muito às pressas. Nós nos estabelecemos em Alexandria,
no Egito, sob a proteção do patriarca da Igreja Copta Ortodoxa.
― Um bispo?
― Por isso meu excelente catecismo. ― Ele quase sorriu.
― Mas porque não...?
― O Xá em Teerã? O imperador dos otomanos em Istambul? ― Ele
balançou a cabeça. ― Tanto o Irã quanto os turcos tentaram engolir Tabir em
suas fronteiras muitas vezes. Temendo os próprios russos que deram apoio ao
general, o Xá acabara assinando um tratado com a França. Quanto à família de
minha mãe em Istambul, eles nunca gostaram muito de meu pai e a teriam
encorajado a se aliar ao general, apenas para lhes dar uma desculpa para irem à
guerra com os russos. Era melhor permitir que eles acreditassem que estávamos
mortos.
― Mas por que se escondeu entre os cristãos?
― O Paxá do Egito, então, e agora, é um homem brilhante, mas beligerante.
Minha mãe acreditava que ele poderia nos usar em sua batalha contra os
otomanos. Ela não sabia em quem confiar. Napoleão havia raptado o papa
católico e o mantinha em cativeiro, e por muito tempo estudara o Egito. Talvez o
patriarca tivesse motivos para temer também. Alianças eram frequentemente
improváveis naqueles anos, como agora. ― Seu olhar deslizou pelo roupão dela.
― A necessidade cria estranhas parcerias.
― Eu não sou estranha.
― É linda. ― Sua voz era rouca.
Sob seu olhar faminto, sua pele corou com o calor. ― Está se repetindo.
― E farei isso quantas vezes eu quiser.
― Disse que viveu oito anos em Alexandria.
― O patriarca geralmente reside no Cairo, mas acreditava que, até eu ficar
mais velho, seria melhor nos escondermos em Alexandria. É um porto vasto.
Todo mundo passa por lá. Ninguém notaria mais alguns estranhos.
― Foi lá que aprendeu a pintar com o tio de Joachim.
― Eu era um menino quando chegamos e eu só sabia que estava, por fim,
livre de responsabilidades. Não havia mais treinamento de armas. Não havia
mais intermináveis horas memorizando tratados sobre táticas ou leis. Nunca
mais severos homens santos me castigando pelo meu passo em falso.
― Seu pai tinha homens assim em sua corte?
― Ele acreditava que todos os homens eram dignos de respeito.
― Em Alexandria, estava livre de responsabilidades.
― Eu corria pelas ruas da cidade como qualquer garoto. Eu lamentei meu
pai e seus amigos que tinham caído à espada naquela noite. Mas não me sentia
preso no meu anonimato. ― As memórias felizes brilhavam em seus olhos.
Ela entendeu a liberdade oferecida pelo anonimato. Inteiramente. ―
Adorou lá ― disse ela. ― Não é?
― Adorei. Dos traidores de meu pai, aprendi que nem sempre é possível
confiar nos amigos. Em Alexandria, aprendi a confiar em estranhos. E aprendi
que um homem não precisa olhar, soar, comer ou rezar como outro para se tornar
seu irmão.
― Sua mãe e sua irmã se sentiram assim também?
― Aairah estava sempre impaciente para que eu voltasse e lutasse pelo
trono de nosso pai. Eu costumava dizer que ela teria sido uma regente muito
melhor do que eu. Finalmente, não resisti mais aos seus pedidos. Decidiu-se que
eu viajaria para Istambul e buscaria a ajuda do imperador dos otomanos.
Deixando minha mãe e minha irmã na proteção do patriarca, no meu aniversário
de dezesseis anos, embarquei com meu tutor. Apenas um dia fora do porto,
bandidos nos atacaram. Meu tutor, um homem velho, disse aos piratas que eu
traria ouro em resgate. Eles riram quando o mataram.
Libby ofegou. ― Viu quando o mataram? Por que não acreditaram nele?
― Nós tínhamos fugido de Tabir sem nada. Eu tinha comigo apenas dois
itens para provar minha reivindicação ao trono: uma carta do patriarca e ...
― O relógio?
Ele assentiu. ― O capitão reconheceu seu valor óbvio e o manteve para ele.
Parece melhor em você, a propósito.
Ela não conseguia sorrir. ― Ele não acreditava que fosse do rei, não é?
― Ninguém a bordo sabia ler a inscrição, e a carta do patriarca não
significava nada para eles. Muitas dessas cartas são forjadas. Em alto mar, entre
os ladrões, o ouro é a única língua de valor.
― O que os piratas fizeram com você?
― Eu era jovem e forte. No início, eles me colocaram na cozinha e para
remar.
Fortemente acorrentado no tornozelo e no pé, as cicatrizes demoraram
meses para serem criadas. ― No início?
Ele não respondeu e a escuridão agora em seus olhos revolveu o medo em
sua espinha.
― E depois disso? ― Ela perguntou.
Depois de um momento de pausa, ele disse: ― Eles me usaram.
Não havia raiva em sua voz. Não havia nada.
Sem emoção. Sem vida.
Ela olhou para o rosto bonito dele, para a boca bonita, as mãos graciosas de
um artista, o corpo magro e a angústia rastejando através de suas entranhas.
― Eu aprendi, Elizabeth, que existem homens de Deus nesta Terra, ― ele
disse suavemente. ― Homens de honra e homens de grande fé, filhos de Alá e
Yahweh, irmãos de Jesus, todos eles lutando pelo bem - pela verdade. Fui
abençoado por conhecer muitos desses homens.
A garganta fechou, ela esperou.
― Meus captores, ― disse ele, ― não estavam entre esses homens. ―
Com os punhos apertados no colo, ela forçou a voz a se equilibrar.
― E os marinheiros do patriarca?
― Alguns sobreviveram à batalha e foram levados a bordo também.
Finalmente convenci o capitão a pedir resgate por mim. Prometi que isso faria
dele um homem rico. Os mercenários do general acabaram chegando, mas
estavam interessados apenas na riqueza que poderia ser obtida imediatamente.
Eles sacrificaram os bandidos. Acorrentado ao mastro, observei, supondo que
minha morte seria a próxima.
Tanta violência e morte. Não admira que ele gostasse da tarefa caseira de
fazer chá. Não admira que ele amasse pintar o corpo nu feminino, que era cheio
de força e gerador de vida.
― Foi quando o navio pegou fogo?
― Sim. Os mercenários fugiram para o seu navio. Assim que eles fizeram
isso, um menino tentou me libertar. Ele não tinha chave nem machado e chorou.
Eu disse a ele para atirar na corrente. A bala escolheu o osso em vez do ferro.
― Disse a ele?
― Os homens e meninos com quem eu tinha sido obrigado a remar - alguns
deles se tornaram amigos, pelo que nós éramos. Acorrentado no porão, eles
pereceriam por causa da minha arrogância. Eu tive que tentar libertá-los.
Mesmo em cadeias, ele tinha sido um herói. ― Algum deles sobreviveu? ―
Perguntou.
― Alguns.
― Como a marinha britânica o encontrou?
― O príncipe herdeiro do Irã, quando menino, conheceu meu pai e o
admirou muito. Aparentemente, um dos mercenários lhe vendera a informação
de que eu ainda vivia, e ele pediu ajuda da Inglaterra para me encontrar. A
marinha enviou o navio do capitão Gabriel Hume. Ele navegou ao longo da costa
durante meses procurando por mim. Foi pura sorte que seu vigia tenha visto a
fumaça.
Seus pesadelos eram sobre quando tinha sido salvo. ― Gabriel me levou a
Londres, onde pedi ajuda ao seu príncipe. Ele recusou. O poder russo está
crescendo ao longo das fronteiras otomana e iraniana. A Grã-Bretanha os exerce
com todo o cuidado, seja qual for a vantagem que ele der aos seus próprios
navios e caravanas da Companhia das Índias Orientais. O reino de meu pai,
embora seja uma joia, é apanhado na encruzilhada de impérios.
― E a sua irmã e mãe?
― Eu estava na Inglaterra apenas alguns meses antes de receber a notícia
de que minha mãe e seus servos tinham sido abatidos e minha irmã levada para
Tabir para se casar com o general contra sua vontade, para legitimar seu
governo. No momento em que ouvi as notícias, ela deveria dar a ele um
segundo filho.
― Ela era uma esposa cativa?
― Disseram-me que, se alguma vez voltasse a Tabir, ela, os filhos e todos
os que nos apoiariam seriam mortos. Essa ameaça permanece. ― Ele cruzou os
braços. ― Sabe o resto da história.
― Por que usa um nome falso? Por que não mora em Londres ou Paris, em
qualquer lugar que deseje, e é exaltado de acordo com seu sangue, e onde pode
pedir ajuda ao governo?
― Eu faço petições ao governo britânico. E Irã. O imperador também.
Regularmente.
― Mas pode viver como convém à realeza.
― Passar horas todos os dias com meu alfaiate e manobrista? Bebendo
fofoca nas festas para cuspir novamente no próximo entretenimento? Dormir a
manhã toda até tão tarde para que todas as noites possa ser a maravilhosa
curiosidade para a elite da moda bajular? E durante todo o tempo procurando
incessantemente o favor de aliados cujos exércitos são maiores do que toda a
população de Tabir?
Ele ficou em silêncio.
― Eu imploro seu perdão, ― disse ela.
― Depois de tudo o que vi, Elizabeth, tudo o que fiz e fui, como poderia
viver essa vida?
― Mas ainda está esperando para voltar. Pelo bem da sua irmã.
― Não está mais esperando. A guerra está vindo. Quando o exército do Xá
cavalgar para retomar as terras que a Rússia detém, esse exército passará a
quilômetros de Tabir.
Um calafrio percorreu sua pele. ― Vai agora? Para a guerra?
― Minha irmã está segura no momento. Ela tem aliados no palácio e
entre os senhores locais vizinhos. O general ainda tem a promessa de proteção
russa. O Irã ainda continua quieto. Há tempo. ― Ele inclinou a cabeça. ― E sou
necessário aqui.
De pé, ela pegou uma fatia de pão para ele e rodeou a mesa. Quebrando a
fatia em duas porções, deu a ele metade e mordeu a outra.
Ele sorriu. ― O que está fazendo?
― Comendo como me pediu e alimentando-o também para que nós dois
tenhamos energia suficiente para a forma que pretendo passar o dia.
Deixando cair o pão sobre a mesa, ele circulou seus braços ao redor dela e
puxou-a confortavelmente de quadril a quadril com ele.
― E como deseja passar o dia? ― Ele disse, beijando sua bochecha, depois
a outra face.
― Na sua cama, ― ela disse, descansando as palmas das mãos no peito
dele, em seguida, deslizando-as para cima e sobre os ombros. Ele era quente e
bonito. ― Ou em qualquer outro lugar desta casa, onde deseje me dar prazer e
recebê-lo em troca.
Ele respondeu dando a ela ali mesmo, um prazer tão grande que a deixou
agarrada a ele e impregnada de satisfação e completamente viva.
O dia passou dessa maneira. Ele descobrira reservas extraordinárias de
virilidade. Quando ela perguntou se isso era comum, ele olhou para ela como se
ela fosse estúpida e disse que não tinha como saber, e que tipo de cavalheiro ela
achava que ele era afinal? Ela se dissolveu em gargalhadas, o que lhe deu a
oportunidade de mostrar-lhe precisamente quão viril sua risada sempre o
tornava.
Quando o relógio na sala de visitas soou seis e Libby saiu de sua cama para
se vestir para a reunião final do curso de cirurgia particular de seu mentor, ela
beijou o príncipe adormecido em seus lábios, mas não ficou surpresa quando ele
não acordou.
Capítulo 26

Rei de Tabir

― Parece que está se sentindo bem, Joe ― Archie disse, lançando-lhe um


rápido olhar quando eles entraram no beco.
― Eu me sinto bem. ― Espetacular, exceto pela dor em partes que nunca
havia usado antes, como as usou nas últimas vinte e quatro horas. Ela se
perguntou se jovens saudáveis ficariam doloridos por causa do amor intenso. Ela
perguntaria a Ziyaeddin. Então faria ele fazer amor com ela novamente.
― Realmente está bem, moço?
― Sim, Archie. Por que pergunta?
― Suas bochechas e queixo estão avermelhados como se tivesse tido uma
erupção cutânea... ou algo assim.
O pó que ela usara para cobrir a queimadura da barba dele por fazer, se
desintegrara sob o adesivo. Ela esperava que suas suíças escondessem isso.
Aparentemente não. ― Estou bem. ― Ela parou diante da porta e alcançou o
sino.
― Está pensando que eu sou uma galinha velha por me preocupar contigo,
― disse Archie, franzindo a testa. ― Mas alguém precisa fazer isso.
A porta se abriu e ela foi salva de mais sondagens enquanto entravam na
sala de cirurgia.
Quando todos estavam presentes e de avental, o Sr. Bridges disse: ― Sr.
Smart, faça a incisão inicial.
Libby recuou o linho.
Dallis
― Eu conheço essa mulher. Ela estava desaparecida, meu amigo e a amiga
dela estão procurando por ela. ― Ela olhou de volta para o rosto bonito. Estava
pálido agora, os lábios exuberantes entorpecidos. ― Eu a conheço.
― A mulher que conhecia não está mais presente, ― disse Bridges. ―
Agora, faça a incisão ou o Sr. Chedham fará.
Os longos cílios repousavam pacificamente nas bochechas da beleza, como
se ela tivesse acabado de cair no sono. A mão de Libby ao redor da faca estava
úmida e fria.
Não havia nada que pudesse fazer por Dallis agora. A não ser descobrir para
Coira, a causa da morte de sua amiga.
Ela começou a trabalhar.

DEZESSETE: A IDADE de Elizabeth Shaw quando invadiu a biblioteca do


Castelo de Haiknayes e alterou o curso de sua vida. Mas ali terminavam as
semelhanças entre ela e a garota que estava sentada agora diante dele. ― Meu
querido ― disse a Srta. Hatch, batendo os cílios ― Acredito ter um rasgo no
meu babado. ― Inclinando-se para examinar o rasgo imaginário, e
proporcionando-lhe uma visão ampla do seio que saía de seu corpete, ela ergueu
para ele os olhos cheios de límpido desamparo.
Era a quarta desculpa que ela inventava para se inclinar. Ela havia
inventado três desculpas para levantar as saias até os joelhos também.
Ele teve o suficiente.
Limpando os pincéis e pegando a bengala, Ziyaeddin saiu do cômodo.
― Sr. Kent! ― O Sr. Hatch correu para o vestíbulo. ― Está saindo? Já?
Nós pensamos que permaneceria o dia todo. Minha esposa está preparando um
almoço esplêndido para o senhor. Talvez tenha esquecido um pincel ou outro
item em casa? Permita-me mandar um lacaio para buscá-lo.
― Não me esqueci de nada. Sua filha, no entanto, parece ter esquecido a
compostura.
A cabeça de Hatch recuou tanto que seu queixo se transformou em várias
papadas como de uma tartaruga.
― Perdão, senhor?
― Melhor dizendo, ELA deveria estar implorando o meu perdão. O senhor
e sua esposa, também, por criá-la com maneiras verdadeiramente pobres, mas
sem me dar nenhum aviso.
― Oh, céus. ― Suas bochechas ficaram vermelhas. ― Estou extremamente
envergonhado. Isto é, eu... ― Seus olhos eram os olhos de um pai que sabia
exatamente do que sua filha era capaz. ― Peço-lhe que me diga a sua proposta
para seguir em frente.
Ziyaeddin se inclinou para falar confidencialmente. ― Encontre um marido
para ela. Rapidamente.
O sol da primavera inundou os paralelepípedos enquanto ele cavalgava em
direção à Cidade Velha. Elizabeth não voltaria para casa por muitas horas ainda,
mas ele tinha muito trabalho para ocupá-lo até então.
Subindo os degraus até a porta, ele se sentiu vigiado. Do outro lado da rua,
um homem com uma capa castanho-avermelhado, que escondia a cabeça, estava
imóvel demais.
Ziyaeddin desceu os degraus e o homem recuou o capuz. Seu cabelo
brilhava como ouro e seus olhos eram tão familiares quanto o céu cinza escocês.
― Joachim?
― Sua Alteza ― disse o egípcio, ― venho de acordo com o meu voto feito
ao senhor há dez anos e por ordem de sua irmã.
Mais alto e mais encorpado desde que tinham corrido juntos pelas ruas de
Alexandria, a pele de Joachim era clara, a barba grossa e os olhos de uma idade
mais avançada do que Ziyaeddin se lembrava. Agora ele usava no quadril uma
lâmina e no peito a insígnia do patriarca que seu pai, uma vez, serviu.
― Meu amigo. ― Ziyaeddin estendeu a mão.
― Meu irmão. ― Inclinando a cabeça, Joachim apertou seu braço, como
haviam praticado quando espiavam os soldados do patriarca e falavam em como
algum dia eles seriam homens. Mas agora Joachim não estava falando sua língua
nativa, e sim em Persa, a língua de Tabir.
― Eu tinha esquecido, ― Ziyaeddin disse.
― Esqueceu de mim?
― Nunca. ― Na doca antes da partida do navio, Ziyaeddin finalmente disse
a seu amigo a verdade sobre sua família. Joachim tinha se ajoelhado e prometido
fidelidade ao longo da vida. ― Eu tinha esquecido sua promessa para mim.
― Ainda assim eu nunca esqueci.
― Venha. Viajou uma grande distância. Permita-me oferecer-lhe
hospitalidade.
Dentro da casa, o egípcio permaneceu rígido, seus olhos avaliando.
― Sente-se e tome um refresco, ― disse Ziyaeddin quando a Sra. Coutts
deixou uma bandeja de café.
― Sua Alteza, peça-me para ajoelhar ou ficar em pé, mas não sentar.
― Chame-me Ibrahim, ou Ziyaeddin, se preferir, ou não fale comigo de
jeito nenhum. E sente-se.
O soldado sentou-se com óbvio desconforto.
― Esta casa... ― ele disse, olhando ao redor da sala de estar. ― O que é?
― Minha casa.
Joachim franziu a testa.
― Agora, velho amigo, ― disse Ziyaeddin, ― diga-me como é que minha
irmã o mandou aqui e porque agora fala na língua da minha terra natal, em vez
da sua.
― Sua Santidade me enviou para Tabir.
― Para Tabir? Quando?
― No ano seguinte à sua partida, quando entrei no serviço para Sua
Santidade, achei certo dizer a ele a promessa que lhe fiz.
― Claro que sim. ― Ziyaeddin sorriu.
Joachim apontou sua cabeça. ― Não perdeu totalmente as memórias,
então?
― Não inteiramente. Por que aceitou tão facilmente como verdade o que
lhe contei sobre minha família, naquele dia no cais antes da minha partida?
― Meu pai sempre soube. Quando chegou a Alexandria, o patriarca lhe deu
a responsabilidade de proteger sua família. Então, depois que zarpou, quando sua
irmã foi levada e sua mãe morta por esses cães... ― Ele balançou sua cabeça. ―
Meu pai nunca se perdoou por não conseguir protegê-los. Nem Sua Santidade.
Quando chegou a notícia de que havia se perdido no mar, Sua Santidade me
enviou a Tabir para garantir a segurança da princesa. Sob a aparência de um
comerciante, tenho vigiado o seu palácio desde então. Finalmente, consegui me
comunicar com ela.
― Mas... isso é incrível.
― Não mais do que um príncipe escondido entre as famílias dos soldados a
mil quilômetros de distância de seu reino.
― Como minha irmã pôde se comunicar com alguém fora do palácio? Ela
não é mais a prisioneira do general?
― Ziyaeddin, o general está morto.
― Morto? ― Ele se levantou, passando a mão pelo rosto. Ele havia
esperado tanto tempo por isso, parecia irreal. Sua irmã estava livre de seu captor.
Finalmente! ― Ali me escreveu sobre a doença do general, mas não sobre... ― é
o mensageiro sobre quem ele escreveu, o criado que minha irmã me mandaria?
― Sim, sou eu.
― Ela está bem? E os filhos dela?
Joachim assentiu. ― Ela estava bem preparada. Ela detém a lealdade de
Tabir e negocia já com os aliados restantes do general entre os Khans. Mas a
guerra chegou. No mesmo dia da morte do general, soldados russos apareceram
na montanha e chegaram notícias de Tabriz de que o exército do Xá começara
sua marcha para o norte. Com a ajuda de Sua Santidade, a princesa está
garantindo a promessa de Istambul de ajudá-la.
Istambul. Como se os anos tivessem simplesmente desaparecido, sua irmã
estava procurando ajuda dos otomanos - do povo de sua mãe.
Milhares de quilômetros de distância. Muito tempo atrás. No entanto, tudo
isso agora era novamente a sua realidade.
― Ziyaeddin Mirza, Príncipe de Tabir ― disse Joachim, descendo para um
joelho, ― o trono é finalmente seu. Seu exílio está no fim.
Capítulo 27

A Acusação

Ziyaeddin não estava em casa quando ela voltou. Libby mudou a roupa, que
cheirava a sala cirúrgica, lavou-se completamente e andou de um lado para o
outro até ouvir a porta da frente abrir.
Ela foi até ele. ― Tenho...
A bengala bateu no banco onde ele a jogou, pegou o rosto dela entre as
mãos e capturou sua boca sob a dele. Ela o agarrou pela cintura e permitiu que a
carregasse contra a parede. Não havia hesitação ou gentileza nele agora, a única
coisa que experimentava era a urgência dele em sua boca e seus corpos
pressionados.
Quando ele se afastou, foi apenas para consumir o rosto dela com seu olhar
e depois beijá-la novamente.
― É isso que sempre acontecerá quando um de nós entrar na casa? ― Ela
perguntou.
― Se o seu deus nos favorecer, delbaram. ― Ele acariciou a testa dela onde
um vinco errante se recusou a ser domado. ― O que está errado?
― Aquilo era turco?
― Persa.
― Por que parou de me chamar de güzel kiz?
― Não é uma moça. Não era, mas eu sempre soube disso.
― Como sabe que algo está errado comigo?
― Sua testa está tensa mesmo quando me beija. Esse rosto, todas as
características, todas as tonalidades, todas as texturas são uma obra-prima. Eu o
memorizei há muito tempo. Conte-me.
― Deve falar com o Sr. Reeve novamente. ― Seus dedos cravaram nele. ―
Encontrei Dallis, esta noite, na mesa do teatro cirúrgico do Sr. Bridges. Havia
láudano em seu estômago, mas ela morreu sufocada.
Seu rosto empalideceu. ― Dallis.
― Sim, sinto muito. Sei que a conhecia bem.
― Não bem. Então não foi acidente.
― A aparição de Bethany na mesma sala de operações é uma coincidência
muito grande para ser desconsiderada. Devo falar com Coira para que seja
cautelosa. Esperei apenas até que voltasse para pedir sua ajuda.
― Elizabeth, com grande respeito a sua inteligência e habilidades, peço-lhe
que me permita falar com Reeve sozinho. Concordará com isso? ― Ele falou
gravemente.
Ela torceu os dedos ao redor das lapelas do seu casaco. ― Não posso ficar
aqui de braços cruzados, é claro.
― Não ficará ociosa. Escreva a Bridges e solicite uma audiência particular
com ele. Não divulgue sua razão em público. Quando ele concordar, irei
acompanhá-la.
― Acredita que o Sr. Bridges está contratando ladrões de sepulturas, não é?
Porque eu acredito. Embora não tenha ideia de como ainda estejam operando em
Edimburgo. Há guardas postados em quase todos os cemitérios da cidade.
― Falarei com Reeve. ― Ele a soltou. ― Sua promessa, agora.
Ela assentiu. ― Não tenho vontade de acabar debaixo do bisturi de
Maxwell Chedham.
Seus olhos se encheram de alívio. ― Claro que não tem.
Ela pegou sua bengala. ― Eu gostei disso, ― ela disse, oferecendo a ele, ―
ser beijada imediatamente e tão completamente aqui na porta.
― Isso não torna particularmente fácil sair por esta porta agora. Não diga
mais nada, tentadora.
Ela soltou uma risada.
Ele estendeu a mão para ela e, envolvendo uma mão atrás do pescoço,
inclinou sua cabeça, mas não a beijou.
― Não há nada no mundo que eu queira mais - nada, ― ele disse, ― do
que beijá-la completamente não apenas aqui e agora, mas em todos os lugares e
em todos os momentos.
― Isso seria impraticável.
― As práticas que se danem. ― Houve um áspero desafio nessas palavras
que fizeram os pelos em seus braços arrepiarem.
Ele a soltou e partiu, e ela foi escrever sua carta.

ANOS ANTES, QUANDO Ziyaeddin usava a casa do duque de Loch Irvine


em Edimburgo como estúdio, havia encontrado James Reeve lá. Criado nas ruas
de Edimburgo, Reeve tinha uma afeição desesperada e infantil pela arte.
Entregando lenha na casa de Gabriel, um dia ele vislumbrou várias pinturas de
Ziyaeddin. Depois disso, se tornou um devoto e provou ser útil para certas
tarefas. Ziyaeddin até pintara para ele uma pequena natureza-morta da fazenda
que Reeve sonhava comprar algum dia para sua mãe enferma.
Quando Reeve ateou acidentalmente o fogo que queimou a casa de Gabriel,
temendo por sua vida, ele havia retornado aos becos da Cidade Velha para se
esconder.
Agora Ziyaeddin encontrou sua presa em uma taverna.
― Senhor! Não precisa vir aqui para encontrar Jimmy Reeve! Apenas envie
uma nota e eu estarei à sua porta com um bigode de gato!
― Sente-se, James.
Uma expressão nervosa torceu os lábios de Reeve, mas ele obedeceu. ―
Está roubando sepulturas?
Reeve ficou boquiaberto.
― Não há nenhum motivo para mentir sobre isso James, e todos os motivos
para me dizer a verdade. Pelo menos duas mulheres de seu conhecimento íntimo
estão mortas. Se não as matou, não será enforcado. Mas eu tenho que saber a
verdade para poder ajudá-lo.
Reeve assentiu. ― Sim, eu desenterrei algumas sepulturas. Mas apenas
daqueles que foram devidamente enterrados e benzidos. Eu não vou pegar um
morto cujo fantasma ainda esteja por perto.
― Para quem vende os corpos?
Reeve apertou os lábios.
― Tem uma apreciação por coisas bonitas, não é? ― Indagou Ziyaeddin.
― Sim ― ele disse timidamente.
― É um belo anel de ouro esse que usa na mão esquerda. Sem dúvida, um
sinal de gratidão do homem para quem rouba os ocupantes de suas sepulturas?
― Por um trabalho bem feito. ― Reeve sorriu. ― Darei para minha mãe
quando ela estiver fora da cadeia.
― A banda é tão cuidadosamente trabalhada. E o nome inscrito
delicadamente nele. Tudo planejado com graça.
― O nome?
― Claro. Não consegue ler. Então não pode ter percebido que o que está
inscrito nesse anel é um nome próprio, sem dúvida o nome da mulher de cujo
dedo, já sem vida, ele pegou. Com esse nome, será fácil encontrar sua família.
Tenho certeza de que eles ficarão felizes em ter esse anel novamente.
As narinas de Reeve se alargaram.
― Agora, James, ― disse Ziyaeddin, ― a quem vende os corpos?
― Não me disse seu nome, ― ele cuspiu. ― Disse que eu não precisava
saber para encontrá-las.
― Elas?
― As moças.
Ziyaeddin puxou o ar em seus pulmões. Não era hora de imaginar Elizabeth
naquele beco com Coira, em perigo. Talvez ele não devesse ter persuadido
Joachim a ir imediatamente para Londres, entregando-lhe uma carta para levar
ao secretário do Exterior e instruindo-o a começar a tomar providências para a
viagem. Talvez, em vez disso, ele devesse ter pedido a seu velho amigo que
permanecesse em Edimburgo, onde a força e a habilidade de guarda poderiam
ser úteis para proteger uma mulher que não queria proteção.
Mas Ziyaeddin não estava pronto para trocar seu presente por seu passado.
Ainda não.
― Que moças, James?
― Elas são bonitas, procurando trabalho e tão suscetíveis a um bom janota.
Elas não se importam com os insetos.
― Está me dizendo que age como um procurador de um cavalheiro que
mata prostitutas e depois vende seus corpos para escolas de cirurgia?
Reeve franziu a testa. ― Bem, mestre ― disse ele, passando os dedos pela
barba desgrenhada. ― Eu não tenho certeza de como ele lida com elas depois
que vão com ele.
― Faz as apresentações apenas, e esse homem lhe paga bem por isso?
― Sim.
― Entende que, ao dar-lhe esse anel, ele o colocou com as provas que a
polícia vai usar quando descobrirem esses crimes?
Reeve franziu a testa. Então, como se o anel estivesse em chamas, ele
puxou-o e colocou-o na mesa.
― Tem alguma outra designação planejada com esse homem?
Reeve balançou a cabeça com força. ― Tem um endereço para procurá-lo?
Negou com a cabeça novamente. ― Sempre envia uma mensagem para
mim aqui.
― Está me dizendo a verdade?
― Sim, senhor! Sabe que nunca mentiria para o senhor.
― Se ele mandar uma mensagem novamente, eu gostaria de saber. Pode me
encontrar aqui. Ele deslizou seu cartão de visitas pela superfície da mesa.
Embolsando o anel, ele saiu e foi rapidamente para casa.
Ela não estava lá. O pote de adesivo estava aberto na penteadeira em seu
quarto, como se ela tivesse se vestidoe colado as suíças apressadamente. Na sala
de estar, ele encontrou uma mensagem: Chamado para uma emergência na
enfermaria. Falarei com Bridges enquanto estiver lá.
A onda de emoção em seu peito veio de repente e violentamente:
Frustração - com ela. Medo - por ela. Orgulho - de sua determinação, sua
inteligência, sua independência, sua confiança.
No entanto, tudo em que conseguia pensar era colocá-la de volta em sua
cama. Ele era um homem completamente perdido.
O relógio da sala tocou duas vezes. De pé na base da escada na escuridão,
silenciosamente ele a amaldiçoou, depois a si mesmo e depois a ela novamente.
Então ele foi para a cama. Sozinho.

LIBBY AGORA OBSERVAVA seu paciente dormindo, e seu último resto de


energia escorregou para a sola de seus pés.
― Excelente trabalho, Sr. Smart. ― Na luz cinzenta do início da manhã, o
Sr. Bridges estava na porta. ― A enfermeira me disse o que fez, apressando-se
aqui quando os cirurgiões em plantão já estavam envolvidos em cirurgia.
― Apenas três ossos precisavam ser assentados, senhor, ― disse ela,
seguindo-o para fora da enfermaria.
― Salvou o uso da mão do jovem. Bem feito.
― Obrigado, senhor.
― Recebi sua mensagem ontem à noite. O Sr. Chedham ainda não chegou.
Sobre o que deseja falar comigo em particular?
― Acredito que os cadáveres usados em seu curso de dissecação cirúrgica
são obtidos por meios sujos.
Ele ficou em silêncio por um momento. ― Imagina que seja trabalho de
ladrões de túmulos?
― Não senhor. Na verdade, acredito que possa ser assassinato.
Suas sobrancelhas se juntaram. ― Essa é uma acusação séria. Tem alguma
evidência?
― Insuficiente ainda. Mas espero que hoje tenha mais informações. Senhor,
me diria de quem compra os cadáveres?
Um cenho franziu seu rosto em linhas verticais. ― É um aprendiz e aluno
exemplar, Sr. Smart. Eu o aconselho a não colocar em risco seu futuro com
acusações infundadas.
Chedham estava entrando no corredor.
― Sim, senhor, ― ela disse rapidamente. ― Falarei com o senhor sobre
isso apenas quando tiver fortes evidências.
Com outra carranca, o cirurgião liderou o caminho para a enfermaria.
Horas depois, os pés de Libby estavam se arrastando e ela mal conseguia
manter os ombros retos.
― Smart, ― disse Chedham, facilmente alcançando-a enquanto atravessava
o pátio. ― O que fez para ofender Bridges?
― Não é da sua conta. ― Mas ela temia que fosse.
A observação de Archie de que Chedham tinha ido para a casa de Bridges
tarde da noite não deixou sua mente, nem a rápida desconsideração do cirurgião
de sua suspeita.
― Não parecia ser assim para mim, ― disse Chedham. ― Mas não se
preocupe. Quando cair, eu estarei aqui para pegar os pedaços e jogá-los no lixo
com o resto das miudezas.
Quando ele saiu, a exaustão a cobriu.
Livrando-se dos sentimentos, ela foi até o beco.
Coira saiu de casa.
― Diga-me que tem aquela torta de rim hoje, moço, e o beijarei, ― disse
ela com um sorriso alegre.
― Coira, eu tenho notícias sobre a Dallis. E preciso de informação. Preciso
que me diga como Bethany chegou a acreditar que estava grávida. Exatamente
como. Por quem e quando. E então eu preciso que vá para minha casa e repita
tudo para o Sr. Kent.

― PARA O PUB, moços? ― Perguntou Archie enquanto o auditório se


esvaziava.
― O Sr. Smart é requerido em outro lugar, ― disse o Dr. Jones quando
subia os degraus em direção a eles.
― Senhor, ― disse ela.
― Venha comigo imediatamente, ― ele disse e passou por eles. Os olhos
de Archie e Pincushion arregalaram.
Libby pegou seus livros e o seguiu. ― Doutor, eu tenho...
― O silêncio vai lhe fazer bem, pelo menos uma vez, Sr. Smart, ― ele
disse severamente.
Ele a conduziu pelo pátio até uma sala mobiliada com uma longa mesa e
sóbrios retratos de homens em todas as paredes. A luz do sol da tarde iluminava
homens semelhantes sentados em volta da mesa, incluindo o próprio Lorde
Reitor.
O Sr. Bridges estava do lado de dentro da porta.
― Sr. Smart, ― disse o Lorde Reitor. ― Eu soube pelo Dr. Jones, que
suspeita que os cadáveres que o Sr. Bridges usa em sua escola cirúrgica privada,
possam ser adquiridos ilegalmente.
― Sim. Mas, sendo verdade ou não, não entendo qual é a preocupação da
universidade. A escola do Sr. Bridges é independente. Se o que suspeito for
verdade, é uma questão para os magistrados e para a polícia.
― Tem uma língua insolente, jovem.
― Uma língua honesta, na verdade. É uma das minhas maiores falhas.
― Responderá apenas as perguntas que te faço.
― Sr. Smart, ― disse Bridges. ― Diga a eles tudo o que sabe.
Ela disse a eles. Mas ela sabia que isso não importaria. Se ela acertasse que
Chedham tinha obtido ilegalmente os cadáveres para a cirurgia de seus mentores,
todos eles o protegeriam antes de acreditar nela. Afinal, tinha passado por isso
antes. Chedham era de uma família rica, do tipo onde os filhos molestavam
criadas em escadarias e ninguém escutava quando uma garotinha relatava tudo.
Ela não era ninguém, apesar de suas realizações, ainda era a estranha, ainda era
aquela que dizia as coisas erradas - sempre as coisas erradas.
Claro, isso estava acontecendo agora. Obviamente.
― Descobri hoje, antes da palestra do Dr. Jones, que a primeira mulher que
eu reconheci, Bethany, recentemente tinha entrado em acordo com um
cavalheiro de posses, ― ela terminou.
― Entrado em acordo?
― Ela se tornou sua amante. Minha amiga, que conhecia Bethany e Dallis,
disse que o homem tinha acabado de montar uma casa para Bethany nas
proximidades. Infelizmente, minha amiga não sabe seu nome.
― Devemos confiar na palavra de uma mulher da profissão, agora,
cavalheiros? ― Disse um dos homens mais velhos.
― Se for para expor um criminoso, ― disse Libby.
― Então isso é tudo, ― disse o Lorde Reitor.
― Dr. Jones irá informá-lo sobre a nossa decisão.
― Que decisão?
― O senhor insultou gravemente a honra e a integridade da Royal
Infirmary, da faculdade e desta universidade, que há muito consideram o Sr.
Bridges um estimado colega.
― Mas eu não o acusei de fazer nada errado, ou mesmo de saber sobre isso.
― Um cirurgião, ― disse Bridges sobriamente, ― deve saber de onde vêm
seus sujeitos de estudos, Sr. Smart.
― O Sr. Bridges e o Dr. Jones pediram que não o proibíssemos de continuar
estudando nesta universidade ou na Royal Infirmary. Mas não poderá retornar
neste período, e não terá permissão para ser aprendiz na enfermaria até novo
aviso.
Ela engasgou. ― Mas...
― Está suspenso.
Suspenso.
Ela estava arruinada. Seu pai, irrepreensível em toda a sua carreira, jamais
permitiria que ela continuasse sua farsa depois disso.
Atordoada, seguiu o Dr. Jones para fora da sala. Archie, Pincushion e
George estavam no corredor, os cabelos despenteados e os rostos corados.
― Cavalheiros, ― disse o Dr. Jones, ― se estiverem pretendendo defender
o caso para seu amigo, o Sr. Bridges já fez isso, sem sucesso.
― Chegamos na hora certa! ― Pincushion exclamou. ― Trouxemos isso,
doutor. ― Na palma da mão de Archie havia um pequeno anel de ouro. ― Foi
um presente de um senhor, o Sr. John Sheets, para uma moça chamada Bethany.
― Ela era uma verdadeira beleza, senhor, ― Pincushion interveio.
― Ela gostava de láudano, então deu o anel como pagamento para o cara
que pegou o láudano para ela. Aquele sujeito deu a um outro chamado Reeve,
em pagamento por tê-lo apresentado para a moça.
― Não estou entendendo essa narrativa, Sr. Armstrong. Faça-se claro de
uma vez.
― Era Plath, senhor!
― Plath? ― Exclamou Libby.
― Sr. Robert Plath, ― disse George em sílabas limpas e nítidas. ― Plath
contratou um sujeito vulgar, Reeve, para apresentá-lo às garotas do ramo que já
têm um gosto pelo xarope de sementes de papoula. Então Plath fazia amizade
com as moças, vendia láudano para elas até que ele precisasse de um cadáver, e
então, enquanto elas estivessem em um estado de estupor, acabava com elas.
― Robert Plath? ― O médico disse em um silêncio atônito. ― Meu
assistente?
― Sim, senhor, ― disse Archie severamente. ― As assassinava e depois as
vendia para escolas de cirurgia.
― E não só a do sr. Bridges, ― inseriu Pincushion.
― Plath estava fazendo uma fortuna, ― disse George.
O rosto do Dr. Jones estava pálido como um cadáver. ― Que prova tem
além desse anel?
― O Peter falou com o rapaz que levava os cadáveres para as escolas, ―
disse Archie.
― Esperem aqui, todos os senhores. ― O Dr. Jones entrou na sala. ―
Como soube disso? ― Libby sussurrou, envolvendo os braços em volta de si
para segurar o tremor que estava subindo de seus pés ao seu estômago.
― Kent nos encontrou no pub, ― disse Archie. ― Ele estava te
procurando, mas quando dissemos a ele que o Jones o levou para a reunião, ele
nos contou como rastreou o ourives que fez o anel, depois o próprio Sheets.
Pincushion correu para encontrar o transportador dos cadáveres. Em seguida, nós
juntamos tudo até que chegamos ao contexto. Aqui está o anel que Kent pegou
de Reeve, ― ele disse, colocando-o na mão de Libby.
― É uma pena o que houve com sua amiga, moço.
― No que estava pensando para fazer amizade com garotas assim, Joe? ―
Disse George.
― Ela estava doente, ― disse Libby. ― Ela pediu minha ajuda.
A porta se abriu e ambos, o Dr. Jones e o Sr. Bridges, entraram no corredor.
― Cavalheiros, ― disse o Dr. Jones, ― sabem onde encontrar o Sr. Reeve
e o Sr. Sheets?
― Nós iremos, senhor, ― disse Libby. ― Imediatamente.
― Não. Sr. Smart, o senhor ficará aqui. Antes da palestra, eu falei ao Sr.
Plath sobre sua acusação, que o Sr. Bridges compartilhou comigo em uma
mensagem. Eu não consegui imaginar que o senhor diria algo impulsivamente e
admito que eu precisava de uma confirmação. Percebo agora que isso foi
imprudente. Se o que o senhor e seus amigos acreditam for verdade, agora o
senhor pode estar em perigo com Plath. O Senhor Reitor está escrevendo cartas
para o Sr. Sheets e para o Sr. Reeve, solicitando uma entrevista imediata.
Quando a polícia chegar, os senhores, cavalheiros ― ele olhou para seus amigos
― devem ajudá-los a encontrar os dois homens.
― Sim, senhor, ― disse Archie. ― Moços? ― Pincushion e George
assentiram.
Libby queria lançar os braços sobre todos eles. Em vez disso, quando o Sr.
Bridges a levou de volta à sala com os homens que seguravam seu destino em
suas mãos, ela o seguiu.
Capítulo 28

O Arrebatamento

Ela irrompeu na rua escura. Ziyaeddin a vigiara por horas. Rezando. Agora
foi em sua direção.
― Me salvou novamente, ― ela disse abaixo dos sons de uma carruagem
que passava. Havia uma cor profunda em suas bochechas sob as suíças, e seus
olhos estavam cheios de exaustão. ― Junto com meus amigos. ― Um sorriso
passou por seus lábios.
― O que aconteceu?
― O Sr. Sheets lhe disse que ele é casado? ― Ela continuou rapidamente
enquanto começava a andar pela calçada. ― Com três filhos. O descarado. Ele
não queria que ninguém descobrisse seu acordo com Bethany. Agora, falando ao
Lorde Reitor, porém, ele parecia verdadeiramente arrasado com a morte dela.
Quão inteligente foi ter encontrado ele e o Sr. Reeve e arrancado a verdade deles.
Mas, claro, é excelente em ver as almas das pessoas.
― Eu preferia que nenhum deles a tivesse conhecido.
― Estou exonerada. ― Ela estava olhando para a abertura escura de um
beco à frente. ― A polícia foi à casa de Plath e encontrou-o fazendo as malas
para uma viagem. O Dr. Jones e o sr. Bridges me pediram para esperar com eles
até sabermos que o levaram para a cadeia. Acho que foram as horas mais longas
da minha vida.
Dele também.
Abruptamente agarrando a manga do casaco, ela o puxou para um canto e
depois para vários metros ao longo de um beco escuro.
― O que é ...
Ela agarrou o colete dele. ― Me beija. Beije-me sem demora.
Embrulhando suas mãos ao redor de seus ombros, ele tomou sua boca na
dele. Ela o encontrou com os lábios entreabertos e as mãos torcidas em sua
camisa.
Ele riu.
― Beije-me. ― Seus olhos se arregalaram. ― Por que ri?
― Eu nunca antes beijei uma pessoa com bigodes. ― Ele acariciou um
dedo ao longo de sua garganta. ― É uma experiência nova para mim.
― Isso o repele?
― Nada sobre você poderia me repelir.
Ela plantou seus lábios nos dele, os bigodes fizeram cócegas em sua pele
quando ele a beijou. Os lábios dela tremeram e ele curvou as mãos ao redor de
suas costas, e sob a textura do casaco masculino, encontrou todo seu corpo
tremendo.
Ela se separou. ― Temos que ir para casa. ― Ela saiu de entre ele e a
parede e correu para fora do beco.
Quando chegou à rua, ela tinha sido engolida pela escuridão e o tráfego.
Ele encontrou a porta da frente destrancada. Pousando o chapéu e a
bengala, tentou ouvi-la.
Nada. Sem som. Mas ela estava na casa. Sabia disso tão bem quanto
conhecia o arco do seu lábio superior e o do inferior.
Não estava na sala de visitas. Nem na cozinha. Nem no seu estúdio.
Tampouco – ilusão tola a dele - em sua cama.
Ele subiu as escadas e encontrou-a deitada no fundo da cama, sem remover
uma das meias, e uma mancha ainda lhe grudava no queixo por ter removido as
suíças apressadamente.
Pousando a vela, ele tirou o casaco e pegou o frasco de óleo em sua
penteadeira. Então, sentando ao lado dela na cama, ele soltou os últimos pelos do
seu queixo. Ela não acordou.
Havia muito a ser feito e ele prosseguiu devagar para não perturbar o sono.
Desamarrou a gravata amassada e descartou-a, depois soltou o único botão em
seu pescoço e abriu a camisa. A tesoura fez um rápido trabalho para liberar seus
seios. Ainda assim, ela não despertou. Tirando as meias dos pés e jogando-as
para longe, fez o mesmo com as calças.
Ele deixou as ceroulas e a camisa.
Levantando as pernas para a cama, notou um nó torto em sua roupa íntima.
Rapidamente se convenceu de que um artista deve sempre satisfazer uma
curiosidade ardente. Desatando as ceroulas, ele descobriu ainda outra fita presa à
cintura. Ele puxou e esticou um grupo de três pequenas bolas de pano.
Colocando-as na mesa de cabeceira, ele engoliu o nó em sua garganta e se
encostou na cabeceira da cama.
― Por que chora? ― De olhos semicerrados, ela estava olhando para ele.
― Eu não estou chorando, é óbvio, ― disse ele, inclinando-se para dobrar a
perna da calça e soltar as correias ao redor do joelho.
― Há uma lágrima em sua bochecha.
― Está sonhando. ― Ele colocou a prótese de lado e se estendeu no
colchão ao lado dela.
Suas pálpebras se fecharam novamente. ― Eu não . . . sei porque chorar.
Nós . . . vencemos.
Ele acariciou seu cabelo para trás de sua testa, soltando as mechas oleadas e
usando a gravata arruinada para limpar os restos de seu disfarce. Quando teve
certeza de que ela dormia novamente, também fechou os olhos.

ELA O DESPERTOU ainda na escuridão. Ele ergueu as mãos para ela


quando subiu em cima dele e encontrou apenas sua pele, quente na noite de
primavera, seu corpo doce: quadris ossudos, coxas macias, cintura curva que
dava lugar à ondulação das costelas e depois aos seios.
Puxando a barra da camisa dele, ela a soltou e ele a puxou pela cabeça.
Então seus dedos estavam abrindo os fechos de suas calças, puxando suas roupas
para baixo e atirando para longe.
Deslizou, juntando seus corpos, acariciando sua pele com suas mãos e seios
e braços macios, esticando-se sobre ele. Sua boca veio sobre a dele, aberta e
faminta, buscando sua língua viva, maravilhosa, varrendo os lábios dele e
tocando sua língua, seus dentes. As palmas das suas mãos pressionadas com
força sobre as dele entrelaçando os dedos, seus braços o segurando de cada lado
enquanto ondulava contra ele, beijando-o como se quisesse consumi-lo - sua
boca, garganta, pescoço e peito.
Quando seus lábios se fecharam ao redor de seu mamilo, ele gemeu,
sentindo a fome de seu membro endurecido. Ele se mexeu para libertar as mãos.
Mas ela o segurou ainda mais pressionado na cama, ele permitiu e sentiu o
cheiro dela: suor salgado, óleo de terra e sua pele, úmida agora e emanando sua
fragrância de calor sexual. Seus dentes mordiscando sua pele, quando apertou
seu nariz na reunião das costelas dele e gemeu.
Soltando as mãos abruptamente, ela varreu as dela ao longo de sua lateral,
envolveu as duas ao redor da base de seu membro, e tomou todo o comprimento
dele em sua boca.
Como em todas as coisas, ela era surpreendentemente inteligente. Foi
rápido demais.
Ela beijou o caminho de volta até seu abdômen e peito e, finalmente,
colocou a boca na dele e ele provou sua própria semente em sua língua. Ela riu,
uma cascata de puro prazer e, acariciando-o com uma mão dos lábios aos
testículos, o fez se contrair e gemer novamente. Então subiu nele mais uma vez,
abriu as coxas e deu prazer a ele.
Quando ela desabou sobre seu peito, o rosto enterrado na curva do seu
pescoço, ele passou os braços em volta dela e a segurou o mais perto que a
respiração irregular permitia.
― Da próxima vez, príncipe da virilidade, ― ela sussurrou em seu ouvido,
e as palavras como plumas o fizeram recuperar o fôlego, ― eu o quero dentro de
mim. Podemos fazer isso?
― Eu estou, ― ele disse, deslizando seus dedos até seu traseiro esguio, ―
como sempre, ao seu comando.
A risada veio novamente - o riso de prazer, alívio e simples felicidade.
Eles dormiram. Na próxima vez que ele acordou, havia uma vela acesa na
mesa de cabeceira e encontrou-a sentada ao lado dele com um livro aberto sobre
a manta que cobria seu colo, mas não seus seios e ombros quadrados delicados.
A oscilante luz das velas fez seus olhos brilharem misteriosos. ― Descobriu os
genitais de Joseph, ― disse ela, apontando para as três pequenas bolas de pano.
Ela fechou o volume. ― O que achou?
― Que costurou notavelmente bem.
― A Sra. Coutts os costurou. E é claro que costurou bem. Eu sou uma ... —
seus olhos brilharam. ― Disse isso para me provocar.
― Possivelmente.
Sua boca quebrou em um sorriso cheio de dentes. Jogando o livro de lado,
ela se inclinou para ele e, ainda sorrindo, beijou-o nos lábios. E novamente.
Então ela estava envolvendo seus braços ao redor dele e ele a estava puxando
firmemente contra ele e passando as mãos sobre seus braços, a lateral de seu
corpo, seus quadris e o doce plano de suas costas.
― Falta uma hora ainda até o amanhecer, ― disse ela, deslizando a perna
ao redor de seu quadril e se pressionando contra ele. ― Duas até que eu deva
estar no hospital.
― Me pergunto o que deseja fazer com essas horas, ― ele disse, pegando o
lóbulo de sua orelha entre os dentes e amando como seu corpo estremecia em
resposta.
― Desejo usar meu amante descaradamente, ― ela sussurrou contra sua
garganta. ― Então, irei para meus estudos e o deixarei nesta cama pensando em
mim e ansiando pelo meu retorno. ― Ela aproximou seus lábios aos dele. ― O
que me diz, Alteza?
Ele descobriu que não podia falar. Então a beijou.
E ela fez exatamente o que desejava.
ELE NÃO PERMITIU que ela o deixasse na sua cama. Enquanto ela se
vestia, ele foi para a cozinha e fez o café da manhã. Aromatizado com açúcar, o
café era forte e delicioso.
― Como o meu príncipe, ― ela disse, e ele se inclinou para a frente e a
beijou, como ela pretendia. Raspou as pontas dos dedos em sua mandíbula sobre
a barba crescida durante noite. ― Eles abrasam minha pele.
― Instruirei Gibbs para me barbear mais atentamente.
― Qual a sensação das minhas suíças?
― Suave. Macia. ― Ele se recostou e cruzou os braços. ― Como o seu
cabelo, que na verdade foram transferidos artificialmente para o seu rosto.
― Creio que está me lembrando disso desnecessariamente, para enfatizar
que não beijaria ninguém com bigodes.
― Não tenho desejo de beijar mais ninguém, com bigodes ou não. E estou
simplesmente respondendo à sua pergunta. ― Ele disse então.
Ela se levantou e jogou sua mochila por cima do ombro. ― O que pintará
hoje?
Ele encolheu os ombros. ― Estou com o tempo livre.
― Quão magnífico é, ― ela murmurou. ― Talvez deva voltar para a minha
cama e ansiar por mim o dia todo, afinal de contas.
― Talvez eu deva.
Ao caminhar para a enfermaria enquanto a cidade ao seu redor acordava
para o dia, parecia que seus pés mal tocavam os paralelepípedos.
Ao fazerem as rondas das enfermarias, Chedham estava tão empedrado
como de costume, o Sr. Bridges em sua auto avaliação regular, e seus pacientes
ofereciam suas típicas ladainhas de reclamações e gratidão. Era como se nada
horrível tivesse acontecido no dia anterior. Até mesmo a memória dos rostos
pálidos de Dallis e Bethany, não conseguia embotar o contentamento de Libby.
Sem dúvida, os jornais arrastariam o Sr. Bridges, o colégio e a universidade
pela lama por não saberem da víbora no meio deles. Mas a excelente reputação
de Bridges permitiria que ele resistisse ao escândalo. Talvez até inspirasse a
faculdade a finalmente regulamentar a aquisição de cadáveres para uso nas aulas
cirúrgicas de seus companheiros.
Na hora do almoço, ela visitou Coira e deu a notícia. Sua amiga aceitou
com o fatalismo prático de uma escocesa e a consideração de alguém que
conhecia as fraquezas de suas amigas e as amava de qualquer maneira. Libby
prometeu que iria denunciar o caso do Sr. Plath, embora certamente fosse por
panfletos. Um escândalo desse tipo não poderia permanecer escondido dentro da
comunidade médica.
Terminando o almoço com Coira, foi à biblioteca onde Archie e Pincushion
já ocupavam a mesa habitual. Ela os cumprimentou em um sussurro. Pincushion
nem sequer olhou para cima. Archie olhou ao longo da sala de leitura e depois
para ela. Libby descarregou seus textos.
Algum tempo depois, Pincushion retornou de uma ida ao banheiro com as
bochechas vermelhas como beterraba e o lenço de pescoço torto.
― Hora de ir, moços ― disse ele com firmeza.
Archie franziu a testa. Então ele recolheu seus livros e gesticulou para ela
os seguir.
Indo para a rua e virando na direção do pub, Pincushion flexionou o ombro
e estremeceu.
― O que foi, Peter? Ela perguntou. ― Está tendo problemas com seu
ombro novamente? Posso ajudá-lo com isso.
Sem olhar para ela, ele disse: ― Eu sei que pode, Smart.
Hábil como um gato. Ele empurrou a porta do pub com a outra mão e foi
direto para o bar.
― Deslocou novamente? ― Libby perguntou ao Archie.
― Sim. ― O olhar de Archie girou sobre o pub. Ainda era cedo e o lugar
não estava cheio.
Pincushion levou duas cervejas e as colocou na mesa, mas seu rosto estava
tenso.
― Deve me permitir tratá-lo, disse ela. ― Tenho estudado rotação externa.
― Tudo bem, obrigado ― ele disse, virando em óbvio desconforto.
― Como isso aconteceu? Caiu?
Ele olhou para Archie e balançou a cabeça.
Libby olhou entre eles. ― O que está errado? Plath ficou livre da prisão ou
o Lorde Reitor mudou de ideia? Pois depois do nosso triunfo ontem não consigo
imaginar por que os dois têm rostos tão sombrios.
Archie disse: ― Então não sabe, moço?
― Sei o quê?
Do outro lado do pub, vários alunos caíram na gargalhada.
Seus olhos estavam todos nela.
Os batimentos cardíacos de Libby tropeçaram.
― Esta manhã, ao amanhecer, ― Archie disse calmamente, ― alguém
encontrou um cartaz de papel afixado com piche na porta do Surgeons Hall.
― Com piche? Que desrespeitoso. Um cartaz sobre o quê?
― A seu respeito, Joe.
― Eu?
Eles sabiam.
― Eu não vi, ― disse Archie. ― Nem Peter. Quem quer que tenha
encontrado, destruiu tudo. Mas todo mundo está falando sobre isso.
― O que foi, Archie?
― Havia uma imagem grosseira. ― Ele murmurou. ― Uma legenda.
― Qual era a legenda?
Os olhos de Archie estavam no chão, os de Pincushion estavam do outro
lado do pub. Nenhum deles falou.
― Devem me dizer, ― disse ela.
― Dizia ― Archie franziu a testa. ― Em um bom beco escuro, o Turco
sodomiza Smart, um jovem aprendiz de cirurgia.
Ela mal sabia como se abaixou para uma cadeira. ― Não importa nada para
nós, Joe, ― Archie disse rapidamente, sentando-se ao lado dela. ― Peter,
George e eu, seguiremos ombro a ombro contigo.
A cabeça de Pincushion subiu, a pele um pouco verde. Ele se virou e
marchou de volta para o bar.
― Isto é, ― Archie disse, ― não ― literalmente, claro. Não o ombro de
Peter, pelo menos. O que eu quero dizer é que ficaremos ao seu lado, moço.
Todo mundo no pub estava olhando para ela agora, sussurros e risadas de
jovens que durante meses a trataram com respeito, até mesmo deferência.
― Como o ombro dele se deslocou desta vez? ― Seus olhos estavam tão
secos. Ela não conseguia piscar.
― Uns animais o agrediram no banheiro, ― Archie franziu o cenho. ―
Eles disseram - bem, pode adivinhar.
― Por minha causa. Por causa de sua amizade comigo.
Isso não poderia estar acontecendo.
Alguém deve tê-los visto no beco na noite anterior. Alguém o viu beijá-la.
As palavras no cartaz exageraram, mas alguém claramente os viu. E agora seus
amigos estavam sofrendo por seu descuido.
E.... Ele.
A sodomia era uma ofensa pendente.
― Kent é um bom sujeito, ― Archie murmurou. ― Ainda assim, gostaria
de quebrar o pescoço dele por colocá-lo em perigo.
― Não é culpa dele, ― disse ela. ― Está acreditando na acusação?
A testa de Archie caiu. ― Algumas noites atrás, ― ele sussurrou, ― esteve
agindo muito estranho depois da palestra. Eu estava preocupado contigo, moço.
Queria ter certeza de que chegaria bem em casa, então eu o segui. ― Ele parou
por um momento. ― Eu o vi na Igreja. Com ele.
Náusea rastejou através dela. ― Não direi a uma só alma, moço.
Ela tentou encher seus pulmões.
Pincushion voltou para a mesa e sentou-se, mas não olhava para ela.
― É insensato da sua parte estar perto de mim. O dois. E George também.
— Ela se sentia vazia por dentro. ― Devem se distanciar de mim.
― Aquele sodomita, ― Archie cuspiu. ― Er, uh, me perdoe, Joe. Mas não
o abandonaremos. E essas formigas podem sugar ovos podres ― disse ele,
olhando para os perseguidores na outra mesa. ― Hipócritas, pelo menos dois
deles, e provavelmente outros.
― Devem se proteger, ― disse ela.
Pincushion empurrou um copo em sua direção, e finalmente olhou em seus
olhos.
― Desgraçados, todos eles, certo? ― Ele disse e levantou sua cerveja em
saudação. ― Para Joe Smart, o moço mais esperto de Edimburgo.
― Vai acabar, Joe, ― Archie disse e jogou um volume grosso sobre a mesa.
― Agora para os livros.
Uma hora depois, George chegou. Rosto sério, ele se sentou na cadeira ao
lado de Libby e olhou para eles incisivamente.
― Sim, moço, ― disse Archie. ― Nós ouvimos.
― Eu ouvi do meu pai, ― disse George. ― Primeira vez que ele me chama
desde que me jogou na rua. Ele se lembrou de que somos amigos, Joe.
― Seu pai? Como ele soube disso?
― Todo mundo em Edimburgo sabe, moço, ― ele disse sério. ― Fofocas
se espalham como fogo.
Ela devia ir para casa, contar a ele, avisá-lo.
― É um negócio sombrio, ― disse Archie, bebendo cerveja. ― Mas
ficaremos juntos, Joe.
Pincushion assentiu.
― Não será necessário, muito provavelmente, ― disse George. ― Jones e
Bridges já se manifestaram pelo jovem Joe aqui.
Libby congelou ao colocar seus livros em sua maleta.
― Já? Mas Archie disse que o cartaz só foi encontrado esta manhã. Como
pode ser isso?
― Kent é uma celebridade, Joe. Ele tem o respeito de metade dos homens
de poder na cidade e a antipatia da outra metade. Alguns vão acreditar em
qualquer história desagradável que ouvem sobre um sujeito estrangeiro, e eles
estão atacando isso rápido. Papai diz que Jones e Bridges defenderam que nunca
concordaria com isso. — Seus lábios estavam apertados, mas ele falou
desapaixonadamente, profissionalmente. ― Eles estão dizendo que deve ter sido
a força.
De mal a pior. Um pesadelo.
― Meu pai diz que se prepare porque provavelmente será exonerado.
― Mas e quanto a ele?
― Provavelmente será apenas acusado. A polícia não tem nenhuma
evidência para trazer perante os magistrados, apenas boatos.
― Muitos rapazes com pouca personalidade invejam o jovem Joe. ―
Archie balançou a cabeça. ― A evidência vai aparecer, mesmo que seja falsa.
― Isso foi o que pensei. ― George olhou nos olhos dela. ― Joe, o que eu
puder fazer, farei. Gostaria de ter enfrentado meu pai anos atrás para poder
representá-lo legalmente agora.
― Obrigado. ― Ela não podia dizer a eles que tinha amigos muito mais
poderosos do que o pai de George, mais poderosos do que todos juntos. Ela não
podia dizer-lhes que seu coração estava quebrando. ― Escreverei para o meu
pai.
Ela precisava. O escândalo com Plath empalideceu em comparação com
esse horror.
Um passo soou ao lado da mesa. Ela olhou nos olhos de Maxwell
Chedham.
― Pena saber que está com problemas, Smart, ― ele disse. ― Estou com o
coração partido por isso. De verdade. Mas não se preocupe. Cuidarei de seus
pacientes depois que se for. ― Ele se afastou.
O olhar de Archie seguiu-o. ― Me pergunto quem colou aquele cartaz, ―
ele murmurou.
Mas, vendo Chedham cumprimentar seu amigo Pulley e seus outros
bajuladores com um sorriso, Libby já sabia.

A SRA. COUTTS saiu da cozinha. ― Ele teve visitas, moça, ― disse ela. ―
Investigador de polícia! Ficou uma hora inteira, bebeu dois potes de chá e
engoliu todos os biscoitos também. Eu escutei através da porta, claro. É calúnia
perversa! Eles podem me prender com algemas e me levar até o laço, e eu
defenderei os dois até a minha última hora.
― Obrigado, Sra. Coutts. Onde ele está?
― Onde mais? Vou cozinhar para o Sr. Coutts. Mas se precisar de mim,
moça, mande um rapaz e voltarei imediatamente. A Sra. Coutts agitou o queixo
dela como se fosse uma criança - a criança que a população escandalizada de
Edimburgo acreditava que era - e partiu.
Em seu estúdio, ele se sentou no banquinho diante do cavalete, o retrato
nele apenas parcialmente pintado sobre a primeira camada. Era um par de
garotos de casacas vermelhas e calças pretas, orgulhosamente cercados por um
bando de cães de caça.
Ele nunca teria outra encomenda como essa.
Abaixando o pincel, ele veio até ela. Ele acariciou seu cabelo para trás de
sua testa, beijou-a ali, então beijou seus lábios.
― Precisamos conversar, ― ela disse entre os beijos.
― Mais tarde. ― Ele tirou o casaco de seus ombros e soltou sua gravata.
― Mais tarde não. Agora.
― Se eu for acusado publicamente de tê-lo arrebatado, ― disse ele,
puxando a camisa da calça, ― então eu deveria ter permissão para realmente
fazê-lo em particular.
― Não me violou, ― disse ela quando ele a soltou e entrou na sala de
trabalho. ― Encantou Joseph Smart.
Ele voltou com óleo e um pano.
― Embora eu esteja me acostumando com as cócegas desses bigodes, ―
disse ele, passando o óleo sobre a pele e descolando a penugem, ― prefiro beijá-
la sem isso.
― Não vai reconhecer o que eu disse?
― Na verdade, eu não violei nem você nem Joseph Smart. Os dois me
agarraram e me beijaram. Conforme os arroubos passarem, o público ficará
desapontado. Achei muito agradável, claro.
― Deve falar a sério. Alguém deseja me ferir, ou talvez nós dois, mas por
causa da juventude de Joseph, arcará com todo o fardo disso.
Ele soltou as calças dela. ― Nunca acreditei que meu tempo nesta terra
seria longo, joonam. De fato, há duas décadas espero que a morte chegue a
qualquer momento.
― Isso não acontecerá, ― disse ela, colocando as mãos em seus ombros
enquanto ele se inclinava para empurrar as calças para baixo. ― Deve escrever
ao duque. Pediremos sua ajuda.
Suas mãos acariciaram ao longo de suas coxas nuas. ― Essas pernas! Eu as
quero em volta de mim. Agora. Ele olhou nos seus olhos e ela ficou chocada
com a névoa febril de luxúria nos dele.
― Não fará nada para se salvar?
Ele pegou a mão dela e beijou os nós dos dedos como um cavaleiro se
ajoelhando diante de sua dama.
― Tudo o que quiser, eu farei, jan-e delam. ― Ele se levantou e começou a
atravessar a sala em direção ao seu quarto. ― Agora vem. Temos maravilhas
para serem feitas e particularmente não me importo com quem faz, só que
façamos sem mais demora.
Ela foi, e logo não houve arrebatamento, mas paixão, e quando ele a levou
ao prazer a ponto de chorar, escondeu as lágrimas de desespero contra sua pele e
segurou-o com força.
Capítulo 29

O Sacrifício

Na manhã seguinte, Libby foi à enfermaria para as suas rondas habituais. O


Sr. Bridges não disse nada a respeito da acusação, mas seu rosto estava esticado.
― Está em todos os jornais, ― Chedham murmurou para ela enquanto
estavam lado a lado na mesa de química. O Sr. Bridges foi sozinho para a
enfermaria masculina, disse que era porque havia uma doença desconhecida lá.
Mas Libby temia que fosse por sua causa, uma tentativa de protegê-la.
― A acusação de Plath está na primeira página, ― disse Chedham,
misturando uma pomada de vulnerabilidade em uma tigela de latão. ― Mas o
seu pequeno imbróglio depravado está na página dois.
Acrescentou uma pitada de açafrão tirada da cozinha da Sra. Coutts em sua
própria infusão. ― Fez isso. Não foi?
― Esquivar-se em becos escuros dificilmente combina com um homem do
meu caráter. De qualquer forma, eu tinha ingressos de teatro naquela noite. Noite
de abertura. Foi um excelente entretenimento.
Na hora do almoço, ela foi direto para o teatro mais próximo do beco em
que ela havia agarrado e beijado seu amante.
― Sim, rapaz, ― disse o recepcionista. ― Duas noites atrás. Como Gostais
de Shakespeare. Noites de estreia sempre acompanham uma grande paixão. ―
Chedham queria que soubesse que ele havia postado o cartaz - que ele havia
vencido. Ela só podia rezar para que apenas ele tivesse visto aquele beijo. Então
o juiz poderia considerá-lo uma evidência tendenciosa.
Mas o panfleto de fofocas da noite frustrou suas esperanças. Segundo
relatos, recentemente, Kent recusou rudemente os delicados avanços de uma
donzela de grande beleza, cujo pai encomendara seu retrato. Dado que os jovens
jogavam flores aos pés desta donzela, seu pai sugeriu que a indiferença do artista
certamente deveu-se à suas tendências "antinaturais".
― É tudo mentira! ― Rasgando a folha larga, Libby jogou-a na lareira.
Nenhum fogo queimava lá. Então pegou uma vela e jogou no panfleto e viu tudo
estrelar em cinzas. ― Ela o odeia por rejeitá-la, não é? E o pai dela também.
Eles estão pulando na acusação de Chedham por despeito.
― Parece que sim. ― Ele reclinou em uma cadeira confortável.
― Como pode se sentar aí e não fazer nada?
― Eu não estou fazendo nada. Estou vendo como faz um vale no meu
tapete favorito.
Indo para ele, ela subiu em seu colo, uniu os braços em volta do pescoço
dele e apertou o rosto em seu ombro. Suas mãos vieram ao redor de sua cintura e
ele beijou seu cabelo.
― Eles virão para levá-lo embora.
― Eles não virão, ― ele disse.
― Eles virão.
― Eles não têm provas além da palavra do Sr. Chedham. E, como
observou, a razão de vê-lo falhando é bem conhecida.
― Todos na cidade, com qualquer queixa minúscula a seu respeito,
acrescentarão seu descontentamento à denúncia até que os magistrados não
consigam mais ignorá-la como a vingança de um aluno contra o outro. Ela se
inclinou para trás e passou os dedos ao longo de sua mandíbula. ― A família de
Chedham é rica e influente. Mas o mesmo acontece com a Constance.
― Não deve dizer a ela. Não deve contar a ninguém.
― Escrevi para Amarantha.
Suas mãos a soltaram, ele inclinou a cabeça para trás e olhou para o teto.
Seus dedos se torceram no colete dele. ― O duque pode ajudar.
― Há apenas três anos, o Duque de Loch Irvine mal resistiu a um
escândalo muito pior do que isso. Edimburgo ainda não se esqueceu do diabo
que amavam odiar. Não retribuirei meu amigo por sua generosidade,
envolvendo-o em mais um escândalo.
― Não precisa. Eu já o fiz.
― Elizabeth...
Ela saltou do colo dele, os punhos apertados ao lado do corpo.
― Foi a minha necessidade que o colocou em perigo, minha necessidade de
confiança, perdão e toda a tolice que eu posso ser. Eu tenho culpa. Eu. Não fez
nada para levar a culpa e não posso suportar que seja ferido.
― Antes de seu pai voltar, deve completar a realização deste ano
extraordinário, ― disse ele com uma calma irritante. ― Até então, afaste isso de
seus pensamentos.
― Como pode ser tão indiferente ao seu destino? Meu pai vai ouvir isso.
Meu futuro já está determinado. O seu não está.
― Seu pai não precisa saber que Joseph Smart é sua filha.
― Eu já disse a ele.
Suas feições caíram em descrença.
― Eu tive que dar tempo a ele para aceitar a verdade antes que ele
retornasse. Eu não contei a ele sobre nós. Mas agora ele saberá. Ele vai ouvir
falar desse escândalo em que Joseph caiu. ― Ela se afastou dele. ― Quão
miseravelmente eu ajudei a toda pessoa que amo. Eu queria isso tão
desesperadamente que não me importei com a dor ou o perigo que isso traria a
alguém, apenas pela satisfação que isso me traria.
― Felicidade.
Ela se virou. ― O que?
― Não só lhe trouxe satisfação, ― disse ele. ― Isso lhe trouxe felicidade.
E a mim também. A felicidade que nunca pensei desfrutar.
Ela olhou para ele.
― Deve sair daqui imediatamente, ― ela disse. ― Vá a qualquer lugar.
Para Londres. Alexandria. Istambul. Saia daqui e salve-se.
― Eu irei. Quando seu projeto estiver terminado.
Um grito forte e duro subiu pela sua garganta. Ela engoliu de volta e saiu da
sala.

ELE A ENCONTROU em sua cama. Pegando-a em seus braços, ele a


segurou até que sua rígida aceitação de seu abraço se tornou aquiescente, e na
quietude, contou cada uma de suas respirações rápidas e batidas cardíacas
igualmente rápidas.
Quando finalmente ela se virou para ele, colocou os braços ao seu redor e
ergueu os lábios para ser beijada, ele deu a ela o que ela desejava.

O DUQUE E a duquesa de Loch Irvine chegaram antes do café da manhã.


― Garotos de Tuppin agora, Alteza? ― Disse o duque.
― Damas presentes, Vossa Graça ― Ziyaeddin murmurou para seu amigo.
― Apenas uma dama, propriamente ― disse Elizabeth. Seguindo em
frente, ela agarrou a mão da duquesa. ― Obrigada por ter vindo.
Ela não fez uma reverência para Gabriel, nem sequer acenou, e Ziyaeddin
sentiu aquele poderoso orgulho densamente em seu peito. Elizabeth Shaw não se
curvaria à superioridade de ninguém. Ela era perfeita. Perfeita.
― É claro que viemos ― disse a duquesa. Ela era uma beleza no modo
inglês, com pele pálida, sardas espalhadas pelo nariz e bochechas e tranças de
fogo.
― Como estão os pequeninos? ― Perguntou Elizabeth.
― Meu filho é um adorável babão de boa vontade ― disse o duque.
― Como o pai dele ― disse Ziyaeddin.
― Sim. ― Ele era um homem gigante, com ombros de um estivador e
características adquiridas por uma década no mar. ― Minha filha é um terror
sagrado, claro, do jeito que eu gosto em uma mulher. ― Sua testa ficou
pensativa. ― Falando em terrores sagrados.
― Não há nada de sagrado sobre o que eu fiz. ― Elizabeth estava sozinha
agora perto da mesa sobre a qual estavam organizados seus livros – cedo demais.
Uma nova pilha se juntava no chão, sobre uma pilha de restos de papéis usados.
Brilhante, ambicioso, magnânimo e determinado a ter sucesso. Esses
contratempos, um após o outro, incendiavam o demônio dentro dela, que sempre
aguardava um momento de fraqueza, de medo. Ele devia arrancá-la deste.
Rapidamente.
― Gabriel, ― ele disse, ― pode abrir sua casa aqui?
― Sim.
― Claro, ― disse Amarantha. ― Libby, deve vir morar conosco. Se Joseph
continuar a ser visto entrando e saindo desta casa, isso só aumentará as chamas
das fofocas. Se não for mais visto aqui, as pessoas esquecerão rapidamente. Essa
é a natureza do escândalo. Quando espera seu pai aqui?
― Logo. ― Suas mãos estavam apertadas juntas.
― Ele também será nosso convidado e parecerá uma festa alegre de
amigos.
― Mas e se ele for preso? ― Seus olhos azuis se voltaram para Ziyaeddin.
― E não diga que isso não importará, porque experimentou algo pior.
― Eu não estava pretendendo dizer isso.
― Estava pensando sobre isso. Posso ver isso no próprio conjunto da sua
boca, e sabe.
Ele se esforçou para não sorrir. Ela estava muito séria, a testa muito tensa.
― Vamos atravessar a ponte quando chegarmos a ela, moça ― disse o
duque.
― Suas graças! ― A Sra. Coutts estava na entrada, com os embrulhos nos
braços grossos.
― Bom dia, Sra. Coutts, ― disse Amarantha. ― Receio que tenhamos
descido antes mesmo do café da manhã. Libby, talvez pudéssemos ajudar a
senhora Coutts a preparar uma refeição. ― Ela apontou com a cabeça para a
porta.
― Como quiser, Amarantha. ― Elizabeth a seguiu e, quando passou pelo
corredor, Ziyaeddin ouviu-a dizer: ― Mas é ele quem sempre faz o café da
manhã.
― Filho da puta ― Gabriel resmungou.
― Insulte minha falecida mãe, Scot, e eu lhe mostrarei que os seus quase
três centímetros de altura adicional não valem nada contra minha força e
criatividade em geral.
― Não estava me referindo a você. ― O duque se jogou na cadeira em
frente. ― Quem é esse Chedham? Um rapaz mimado?
― Seus pais são ricos.
O tilintar distante da porcelana veio da cozinha para o silêncio da sala de
estar.
― Não tem escolha, ― disse Gabriel. ― Tem que deixar que seja revelado
quem é.
― Não posso. Não agora. ― Não com essa acusação ligada a ele. Em Tabir
como na Inglaterra, a lei não tinha misericórdia para os homens que ficavam
com outros homens. Ele não podia levar isso para sua irmã ou seu povo, não
quando a guerra fervilhava em suas fronteiras.
Gabriel assentiu solenemente. ― O que fará?
Ziyaeddin olhou para a porta aberta através da qual ela havia ido. ― Tudo o
que preciso.

A SRA. COUTTS e Amarantha ajudaram a embalar suas coisas. Antes de


sair de casa, Libby enviou notas para Iris e Alice. Então se vestiu como Joseph e
foi para a enfermaria onde era esperada como sempre.
Chedham não disse nada fora do comum, nem o senhor Bridges. Ela rezou
para que isso significasse que a polícia havia decidido que a acusação não tinha
mérito.
Depois da palestra, ela disse a Archie e a Pincushion que havia se mudado
para outra residência e que levaria algum tempo para caminhar até lá antes de
escurecer, para que não pudesse se juntar a eles no pub.
No local indicado na extremidade da Cidade Nova, uma carruagem simples
recolheu Joseph Smart. Um quarto de hora mais tarde, Elizabeth Shaw desceu
dela diante da porta da elegante casa do duque e duquesa de Loch Irvine, muito
além do portão.
Libby agradeceu aos anfitriões pelo acolhimento, mas recusou o jantar; não
tinha apetite. Em seu luxuoso quarto, ela desempacotou seus livros e voltou a
estudar.
Na manhã seguinte, o lacaio abriu a porta da pequena sala de visitas que
Libby fizera para seus estudos e disse: ― Senhorita, tem visita.
Iris saltou pela porta.
― Está aqui! ― Ela jogou os braços sobre Libby. ― É positivamente
refrescante vê-la usando um vestido, Libby. Quão bonita é com seu cabelo curto
e olhos tristes. Desistirá de Joseph Smart para sempre agora?
― Iris, eu também senti sua falta. Obrigada por ser uma excelente amiga.
Espero sinceramente que esse escândalo não a atinja.
― Alice e eu, achamos que é uma aventura e estamos determinadas a
defendê-la!
Uma batida soou na porta. Desta vez o pai dela estava lá.
― Papai! ― Ela se levantou e voou para o abraço dele. Depois de um
momento, ele a colocou gentilmente no comprimento do braço.
― Minha filha, ― ele disse apenas, seus olhos gentis sorrindo. ― Bom dia,
senhorita Tate.
― Bem-vindo em casa, doutor. Encontrarei as crianças. ― Iris partiu.
― Papai, como é bom ver seu rosto. Senti terrivelmente sua falta.
― No entanto, tem estado ocupado. ― Olhando para seus livros
espalhados, ele acrescentou: ― Joseph.
― Recebeu minha carta.
― Saí de Londres naquele mesmo dia. — Ele balançou a cabeça. ―
Elizabeth.
― Não fique com raiva de mim, papai. Poucas pessoas sabem quem eu sou,
e nenhuma delas dirá a uma só alma. Não precisa se envergonhar.
― Não estou envergonhado. Estou surpreso. Nunca poderia ter adivinhado
que deixá-la aqui a inspiraria nisso. Mas eu deveria saber. Conheço há duas
décadas a pessoa extraordinária que é.
― Obrigada. ― Ela agarrou as mãos dele e apertou-as. Elas estavam
quentes e secas e mais suaves do que lembrava.
― Filha, Kent lhe fez mal?
Ela o soltou. ― Não. Ele foi generoso, bondoso e paciente. Tudo que há de
bom.
― Essa acusação - esse rumor impróprio - tem verdade?
― Nada disso merece preocupação.
― Isso é um alívio. Eu não poderia me perdoar por tê-la deixado, se fosse
de outra maneira.
― Papai, foi a minha escolha. Minha culpa.
― E Alice Campbell, ― ele disse severamente. ― Eu deveria ter arranjado
para que vivesse com Constance, ou em Haiknayes.
― Perguntou a Alice porque acreditava que eu seria mais feliz em sua casa.
― Ele não queria perturbá-la, jogá-la no redemoinho social no qual vivia
Constance em Edimburgo ou na propriedade ocupada pelo duque e a duquesa.
Ele queria que ela permanecesse calma, quieta, incontestada. ― Não deve se
culpar e nem mesmo a Alice. Ela só fez o que eu implorei que fizesse, e sabe
como é impossível me recusar.
Ele pegou as mãos dela novamente. ― Eu também tenho novidades para
compartilhar, Elizabeth. A faculdade me convidou para permanecer em Londres
durante o ano. E tenho mais um motivo para continuar lá agora.
― Madame Roche? Alice adivinhou.
― Sim. Desejo pedir a mão de Clarice. Mas não deixarei meus sentimentos
claros para ela se a ideia lhe for abominável. Vinte anos atrás, quando a aceitei
como minha, fiz uma promessa à sua mãe e não menos a mim mesmo, de que a
faria feliz. Não permitirei que nada atrapalhe isso.
Libby agora via a paternidade como um fardo pesado sobre ele. Ele nunca
negou nada a ela, nunca exigiu nada dela, nunca lhe proibiu nada. Era um
médico acima de tudo. Ele lhe dera amor e afeição inquestionáveis, uma
educação extraordinária e seu respeito. Mas nunca pedira nada que fosse
desconfortável para ela dar.
Ziyaeddin tinha. Ele exigiu que ela se curasse. E agora ele exigia que ela
terminasse o que tinha começado. Ele esperava isso dela.
― Papai, eu gosto muito da Madame Roche. Nada me fará mais feliz que
sua felicidade.
― Isso me dá um grande alívio, ― disse ele, espelhando o sorriso de seu
jeito medido.
― E, o senhor e ela, permitirão que eu continue como Joseph Smart?
― Filha, a questão deve ser justamente essa. Permanecer como Joseph
Smart a faz feliz?

DOIS DIAS DEPOIS, a acusação veio. Libby ficou paralisada na esquina da


rua enquanto o tráfego se agitava e pedestres a empurravam, fazendo com que o
cartaz impresso diante de seus olhos se mexesse. Mas o texto era claro: o Sr.
Ibrahim Kent, retratista, havia sido preso pelo crime de "atos antinaturais".
Em transe, ela caminhou em direção ao pub.
― Dessa forma, Joe, ― disse Archie, agarrando-a pelo braço e arrastando-a
para a rua novamente.
― Archie. Onde está indo...
― À casa da senhorita Coira. Sua prima tem algo para lhe dizer.
― Íris? Como...
― Ela está insistindo em vê-la. Ela não sabia onde estaria, então encontrou
Coira na casa obscena. Sua prima é uma moça audaciosa, Joe. Acho que estou
apaixonado.
Eles dobraram a esquina e Iris e Coira saltaram da parede imediatamente e
se aproximaram.
― Eu o trouxe! ― O peito de Archie estufou.
Íris o ignorou. ― Joseph, devo lhe falar em particular. Imediatamente.
Libby assentiu para Coira e Archie e eles se afastaram.
― Amarantha não tinha ideia de onde encontrá-la, ― disse Iris, ― então eu
disse a ela que eu viria. Eu não queria revelar que almoça a cada dois dias com
uma prostituta, é claro. Ela é uma duquesa e ...
― Iris, por favor. O que veio me dizer?
― O Sr. Kent deverá ser indiciado.
― Eu sei. Acabei de ler sobre isso. Eu estava indo ao pub para escrever
uma declaração para a polícia, negando tudo.
― Não importa, Libby. O Sr. Kent a está repudiando.
― Repudiando? Eu não entendo. De que maneira?
― Da maneira mais fabulosamente heroica! Ele admitiu o crime, mas
afirmou que a testemunha apenas presumiu ser você, porque mora em sua casa,
mas que, de fato, não era.
O estômago de Libby subiu em sua garganta.
― Ele admitiu isso? ― O pânico rodou nela. Ela sabia por que ele fizera
isso: garantir que ela não fosse examinada fisicamente - que Joseph não seria
examinado fisicamente para comprovar a ação. Ele estava fazendo isso para
salvar seu futuro. ― Não. Não, ele não pode.
― Além disso, o acusador foi revelado. É o Sr. Maxwell Chedham.
Conhece ele?
O peso esmagador de todas as decisões que ela tomara pressionava sobre
ela.
― Ele não pode. Ele não deve ― ela se ouviu dizendo como se fosse
através de um túnel.
― Ele já fez! Embora não publicamente, é verdade. O duque disse que
apenas o Lorde Advogado sabe por enquanto. Eu não deveria saber, na verdade,
mas aconteceu de eu estar na sala de jogos com as crianças quando ele estava
contando a Amarantha na sala ao lado. Fingi que não tinha ouvido. Mas parece
que todos concordam que as acusações não serão retiradas e que é a única
maneira de salvar... Libby? Onde vai?
― Archie, por favor, leve Íris em casa.
― Sim, moço.
― Obrigado, Coira. Obrigado a todos.
Na esquina, ela chamou um coche. Pedindo ao motorista para deixá-la na
parte de trás da mansão ducal, ela entrou pela porta dos criados para que nenhum
de seus amigos a visse. Não a afligiu. Ela usara as entradas dos criados por toda
a vida. Como uma criança bastarda, ela há muito tempo se acostumara com seu
lugar.
Agora seria a causa da destruição de um príncipe.
Em seu quarto, ela tirou todos os traços de Joseph, vestiu o vestido mais
elegante que Constance comprara para ela, pôs um brinco em seus lóbulos e
amarrou um bonito chapéu, ao qual Iris tinha colocado uma mecha de cabelo
cortado, com tudo pronto, chamou o serviço.
Ela dirigiu-se para a Cidade Nova.
O bairro que procurava não tinha mais de trinta anos, as casas eram austeras
e imponentes. Ela se recusou a ser intimidada. Joseph não seria. Nem Elizabeth.
Uma criada lhe pediu que esperasse em um salão. Quando seu inimigo
finalmente entrou, ficou imediatamente claro que ele não a reconhecera.
― Como vai madame? ― Ele se curvou. Estava vestido e sobriamente em
um casaco de azul escuro com um lenço branco preso com um alfinete de ouro.
― Bom dia, Sr. Chedham.
― Está em vantagem, ― disse ele com um sorriso natural que ela nunca
tinha visto antes: aberto e agradecido. ― Senhorita ...?
― Elizabeth Shaw.
― A que sorte devo esta visita, senhorita Shaw? Ou ― o prazer em seus
olhos se apagou ― Sawyer talvez tenha se confundido e veio ver meu pai?
― Não. Eu queria ver o senhor. Não me reconhece.
― Eu imploro seu perdão. Mas tenho certeza de que me lembraria de uma
mulher tão atraente se tivéssemos nos conhecido antes.
― Todas as mulheres comuns são amaldiçoadas, é isso? Não estou
surpresa. Realmente não me reconhece. É extraordinário.
― Senhorita Shaw, ― ele disse friamente agora, ― temo que estou
perdido.
― Ah! Esse é o Chedham que conheço bem.
Algo cintilou em seus olhos. Então ergueu os ombros e seus lábios se
separaram.
― Sim, ― ela disse na voz de Joseph. ― Eu sou ele.
Chedham recuou um passo inteiro. Suas narinas se alargaram. ― É irmã de
Smart? ― Sua irmã gêmea, talvez?
Ela disse em sua voz natural. ― Não, Chedham. Sou realmente ele, o
jovem ao lado de quem trabalhou por meses, a quem tentou superar, e a quem
recentemente acusou de um crime que poderia ter a mim e a um homem que vale
cem do senhor, enforcados.
― Que tipo de homem é?
― Não sou um homem. Sou uma mulher, como claramente pode ver.
― Não pode ser.
― Devo me despir para que acredite?
― Nenhuma mulher...
― Poderia tê-lo derrotado? Poderia ter vencido? Poderia ter fingido ser um
homem por tantos meses sem ser descoberta? Sim, uma mulher poderia fazer
isso. Porque eu fiz.
Ele balançou a cabeça.
― Devo recitar, para todos, os passos errados que deu na enfermaria há
muitos meses? ― Ela disse. ― Devo dizer-lhes sobre o tempo em que deu ao Sr.
Finch muita cânfora e que se eu não tivesse notado e aberto suas vias aéreas, ele
teria morrido? Devo lhes descrever os detalhes de como zombou dos tumores
fatais da Sra. Small? Devo contar como brincou sobre o uso do meu cadáver
para dissecação? Claro, que sou eu. O fato de ter trabalhado ao meu lado por
tantos meses, sem nunca suspeitar que eu era uma mulher, e que está aqui agora,
só prova que é tão estúpido sobre seres humanos como eu sempre pensei.
Finalmente, seu olhar se estreitou. ― Não é uma criatura natural.
― Eu não sou antinatural. Eu fui, como o senhor, chamada para ser
cirurgiã. Não pode entender isso? Não pode ter pena de uma mulher cujos
talentos e habilidades são adequados para um chamado que ela não tem
permissão para seguir? Não pode tentar entender por que fiz o que fiz? Sabe
agora que o que viu naquele beco não era o que acreditava ser, ― ela disse. ―
Sabe agora que ele não cometeu nenhum crime.
― Eu? ― A arrogância estava de volta.
― Diga a eles que confundiu. Retire a acusação. Não faça isso por mim.
Pois eles não virão por mim, e sabe. Eles acreditam que Joseph Smart é jovem
demais para ter feito isso voluntariamente. Eles o estão acusando de me forçar.
Retire a acusação. Tem que fazer isso.
― Eu não me importo.
― Enviaria um homem inocente para a forca?
― Se isso garantir que a reputação de Joseph Smart será manchada, eu
farei. Com prazer.
― O que quer, então? ― Ela perguntou. ― O que devo fazer para que se
retrate?
― Ele, Joseph, deve admitir que esteve trapaceando. Ao longo do ano.
Então deve sair.
Ela estava entorpecida.
― Não quer que ninguém saiba que uma mulher o superou, ― ela disse.
― Não é o meu maior desejo, ― disse ele com firmeza.
― Eu farei. Vou desistir e desaparecer. O deixarei com sua vitória pírrica.
Mas não admitirei que estava trapaceando. Realizei este ano o que nenhuma
outra mulher - e poucos homens - conseguiram. Não mentirei sobre isso.
― Parece que é a forca para o Turco e a ignomínia para sua pobre jovem
vítima, afinal.
― Não deve fazer isso. Eu imploro. ― Ela segurou as mãos juntas. ― Me
vê agora, implorando? Me tem à sua mercê. Diga-me o que quer de mim e eu
farei isso. Qualquer coisa.
Seus olhos brilhavam. ― Se importa com ele.
Sua garganta estava cheia de lágrimas que ela se recusou a revelar. Ela
assentiu.
― Admita trapaça em todas as tarefas, e retirarei a acusação. ― Ele foi até
a porta. ― Pode ir embora agora.
Capítulo 30

A Verdade

Os jornais aguardavam ansiosamente o destino do Turco enquanto


mastigavam todos os detalhes do outro escândalo da comunidade médica. Plath
havia começado seu comércio horrível fazendo amizade com os doentes e
desabrigados nos becos de Edimburgo, encaminhando-os prematuramente para o
além, depois vendendo seus cadáveres frescos a preços exorbitantes para escolas
particulares de cirurgia. Prometendo fornecer cadáveres a muitos cirurgiões de
uma só vez, ele passou a assassinar aqueles que ele acreditava não terem amigos
e transportá-los para os centros cirúrgicos pelas antigas passagens subterrâneas
da cidade.
Em uníssono, os habitantes de Edimburgo esperavam ansiosamente pelo
enforcamento de Plath, mas brigavam em desacordo sobre o outro possível
enforcamento.
Alguns panfletos insistiam que o retratista era uma vítima inocente de
ciúme e calúnia, enquanto outros afirmavam que nunca se poderia confiar em
estrangeiros. A maioria concordou que, dada a qualidade suspeita da acusação,
uma vez que ele não poderia ser condenado a forca, deveria pelo menos ser
condenado ao pelourinho público. Lá a multidão cuidaria de sua punição.
Constance relatou que era tudo o que alguém queria fofocar. Pessoas que
uma vez clamavam por sua presença em seus salões e por suas pinturas em suas
paredes agora o fustigavam publicamente.
― Com que facilidade eles se voltam contra um homem a quem adoraram,
― ponderou Constance.
― No momento em que ele sai do papel que eles atribuíram a ele, ―
acrescentou Alice. ― Tolos ignorantes.
Ele havia entendido isso há muito tempo, Libby percebeu que ele escolhera
uma maneira silenciosa de resistir a isso.
― Estou menos interessada em fofocas do que nos rapazes que serviram
muito mal a nossa querida Elizabeth, ― acrescentou Alice. ― Mas os jovens são
miseráveis como espécie. Elizabeth, eu me ofereço para recortar as joias de cada
um daqueles que lhe causaram dor.
― Obrigada. Mas não acho que seria sensato. ― De qualquer forma,
Joseph não tinha essas joias, e foi ele quem causou mais dor a todos. ― Papai,
Amarantha e o duque acreditam que se comportar normalmente será o caminho
mais seguro para a exoneração.
― O que o Sr. Kent tem a dizer sobre isso?
Nada. Ziyaeddin não havia escrito para ela, nem enviado qualquer
mensagem através do duque.
Na manhã seguinte, vestida como Joseph, ela foi para a enfermaria como de
costume. O Sr. Bridges encontrou-a com sua costumeira sobriedade. A cirurgia
estava marcada, e enquanto ela estava em pé na mesa de operações de Chedham,
ajudando seu mentor, seu colega aprendiz lhe deu uma olhada severa, depois
desviou o olhar. Obviamente, ele não iria revelá-la. Seu orgulho não permitiria
que o mundo soubesse que uma mulher tinha conseguido ser melhor do que ele.
Mais tarde, na sala de aula, ela se sentou ao lado de Archie e tirou o lápis e
o bloco de notas.
― Não se preocupe, moço, ― Archie sussurrou. ― Nós encontraremos
uma solução. Tudo ficará bem no final.
― Sim. Ficará.
O Dr. Jones lecionou sobre os órgãos reprodutivos masculinos. Ao ver as
bochechas de Chedham ficarem vermelhas, e sabendo que sua presença no salão
causara isso, Libby quase sorriu.
Duas horas depois, o médico os dispensou.
Libby se levantou e tirou o casaco. Com as mãos firmes, desabotoou o
colete, puxou os braços e desatou o lenço.
― Joe? O que você está fazendo, rapaz? ― Archie riu
desconfortavelmente. Ela podia sentir a atenção dos outros ao seu redor
enquanto puxava a longa cauda de linho de sua calça, arrastava a roupa por cima
de sua cabeça e a largava na cadeira.
Com apenas a atadura em torno de seus seios e os olhos de todos no
auditório sobre ela, usando um pano lubrificado, tirou as suíças do rosto, limpou
os cosméticos das sobrancelhas e afastou o cabelo da testa.
Então ela soltou seus seios.
― Como podem ver, cavalheiros, ― disse ela na voz de Elizabeth Shaw -
sua voz - a voz que Ziyaeddin disse que ele poderia ouvir para sempre. ― Sou
uma mulher.
O Dr. Jones estava olhando para ela com os olhos cheios de choque.
O salão ficou em silêncio.
― Alguém vai dizer alguma coisa? ― Ela varreu o salão com o olhar. ―
Ou gostariam que eu tirasse minhas calças também para que não tivessem
nenhuma dúvida sobre isso?
Archie saltou e jogou um casaco sobre seu peito.
― Claro que não duvidamos disso, moço - moça. ― Ele segurava a roupa
em volta dela e sorria como um bobo. ― Senhor todo-poderoso, eu deveria saber
disso. Joe - Josephine - quem quer que seja - Bem feito, moça! ― Ele fez um
som alto. ― Moços, ― ele gritou através do teatro que tinha finalmente entrado
em erupção com conversas. ― Quero lembra-los que ela me escolheu para seu
companheiro! Isto é, não como o companheiro dela. Isso quer dizer ... ela ... ―
Ele engasgou em gargalhadas.
Pincushion bateu nas costas dele, seu sorriso brilhando. ― Espere até que
George saiba disso. Ele rasgará suas calças. ― Balançando a cabeça, ele
estendeu a mão para ela.
Libby apertou-a, depois as mãos de meia dúzia de outros estudantes. A
maioria de seus colegas de classe lançou olhares furiosos.
― Sr. Smart, ― a voz do Dr. Jones cortou o caos. ― Venha imediatamente.
― Ele saiu da câmara.
Agarrou o casaco, aceitou os pertences que Archie reunira e seguiu seu
professor pelo corredor.

ELA MAL CONSEGUIA ficar parada.


Do outro lado da mesa, estavam o Lorde Reitor, o presidente do colégio, o
presidente da enfermaria, vários membros do Senado da universidade, o Dr.
Jones e o Sr. Bridges.
― A ignomínia que atribuiu a essa universidade, à Royal Infirmary e à
faculdade é imperdoável, ― continuava o Lorde Reitor com seu discurso que já
durava um quarto de hora. ― Nunca antes essa antiga e augusta cidade abrigou
uma ironia impetuosa, desrespeitoso escárnio à moralidade.
Tendo em conta Robert Plath, isso era claramente falso. ― Como sabe
disso? ― Ela perguntou.
Os lábios do Dr. Jones se achataram.
A bochecha do Sr. Bridges se contraiu.
― Perdão? ― O Lorde Reitor estalou.
― Como sabe que nenhuma outra mulher fez isso antes? Não sabia que eu
era uma mulher, e eu só revelei isso para exonerar um homem inocente. Como
sabe que não houve outras mulheres que também o enganaram, só que nunca se
revelaram?
― Elizabeth, ― seu pai disse ao lado dela.
Ela engoliu as próximas palavras. Poucos minutos depois da arenga, ficou
claro que esses inestimavelmente descendentes morais dessa comunidade
estavam muito mais chateados por uma mulher ter conseguido estudar medicina
nos níveis mais altos do que pelo fato de uma donzela educada ter vivido com
um solteirão por meses. Eles eram positivamente hipócritas. Mas não queria
envergonhar mais o pai.
― Seja grata, senhorita Shaw, ― disse o reitor, ― que nenhum de nós está
tomando medidas mais severas contra a senhorita por perpetrar essa farsa
hedionda. Deportação tem sido sugerida.
Seu pai se adiantou. ― Milorde...
― Suas conexões nobres influentes, no entanto, pediram em sua defesa, ―
disse o Lorde Reitor. ― Sua taxa de inscrição está perdida, mas este conselho
não o remeterá aos magistrados. É uma jovem afortunada por ter tais amigos.
― O Sr. Bridges pediu que visitasse a enfermaria para se despedir de seus
pacientes, ― disse o presidente da enfermaria. ― Eu, no entanto, estou
preocupado que, dadas as circunstâncias dos banhos com os quais os tratou, se
os pacientes do sexo masculino descobrirem a verdade disso, ― ele gesticulou
na direção geral de seu torso, ― isso os incomodará. Eu lhe dou permissão para
completar suas responsabilidades na enfermaria hoje, como era.
― Obrigada, senhor.
― Dr. Shaw, ― disse o Lorde Reitor, gravemente, ― há muito tempo é um
colega estimado e amigo dessa universidade. No entanto, o senhor, doutor,
contribuiu para essa farsa. Confio que punirá sua filha com a gravidade de sua
farsa insustentável e a manterá sob controle.
― Meu pai é generoso e sábio, e não merece a sua censura. ― Ela estendeu
a mão e agarrou a mão dele. ― Obrigada por nunca cortar minhas asas, papai. ―
Liberando-o, ela se levantou.
― Sente-se, jovem, ― disse o reitor. ― Nós não terminamos com a
senhorita.
― Mas eu terminei com o senhor. Infelizmente. Pois eu teria gostado de
completar meus estudos e me tornar um colega da faculdade e um cirurgião
praticante. Mas não permitirá, apesar de minhas realizações, e por isso, tenho
pouco respeito pelo senhor. ― Ela olhou para seus professores. ― Dr. Jones, Sr.
Bridges, sou profundamente grata pela educação superlativa que me deram, e
sinceramente me arrependo de ter lhes causado constrangimento. Mas espero
que meus sucessos tenham plantado uma semente de dúvida em suas excelentes
mentes sobre a exclusão de mulheres nos mais altos escalões da profissão
médica. Se fiz isso, mesmo que de maneira muito pequena, venci. Bom dia,
cavalheiros.
Seu pai a seguiu. Quando a porta se fechou, ela segurou as duas mãos dele.
― Obrigada por ficar comigo, papai. Agora será condenado ao ostracismo
aqui.
― Por ninguém que mereça o meu respeito.
Deixando-o, ela saiu do prédio. Ela passara horas aguardando a reunião de
seus carrascos e depois sendo punida - horas em que ouvira a notícia de que as
acusações contra Ziyaeddin haviam sido retiradas. Agora o fim da tarde se
instalou nas ruas, na movimentada pressão do tráfego. Dando passos longos
enquanto corria sem graça para a enfermaria, ela se deleitava nesses momentos
finais de liberdade das restrições de saias e espartilhos, seu coração ao mesmo
tempo dolorido e magnificamente leve.
No hospital, apenas um de seus pacientes mencionou suas suíças
desgrenhadas - os remanescentes de sua tentativa de removê-las na sala de aula.
As enfermeiras a observavam com cuidado e ela suspeitava que já haviam
ouvido os rumores. Notícias corriam rapidamente na comunidade médica e, em
menos de uma semana, Joseph Smart esteve no centro de dois escândalos.
Enquanto ela colocava as ferramentas de exame de volta no lugar certo na
sala de preparação, uma das enfermeiras entrou.
― Eu soube o tempo todo, ― a mulher sussurrou. ― O Senhor a abençoe,
moça, e abençoe seu pai que é um santo e aquele bom senhor Kent. ― Então ela
se foi e Libby estava olhando para a porta vazia.
Quantas pessoas sabiam? Quantas mulheres? Quantos suspeitaram, mas
nunca disseram uma palavra? Quantas simplesmente se divertiram sabendo que
alguém estava realizando secretamente o que nenhuma delas poderia sequer
tentar?
Respeito e gratidão a preencheu ao caminhar pelo pátio da enfermaria até
sua casa.
Pela primeira vez desde que se mudara para a casa dele, ao erguer a mão
para a campainha, formigamentos ansiosos afligiam seu ventre.
O Sr. Gibbs atendeu a porta.
― Boa tarde, senhorita, ― ele disse, chamando-a por dentro. ― Ouvi dizer
que foi descoberta.
― Sr. Gibbs, sempre soube que eu era uma mulher?
― Não, senhorita! Anly ouviu isso do mestre uma hora atrás. Gostaria de
uma gravata nova? Aquela que tem está em um fino emaranhado.
― Não, obrigada. ― Ela engoliu o riso. ― Ele está em casa?
Ele sacudiu a cabeça grisalhada. ― Saiu como um tiro de canhão depois
que a polícia foi embora, deve ter passado uns vinte minutos mais ou menos.
Disse que iria ver um Dug sobre um osso.
The Dug’s Bone
― A filha pródiga! ― Exclamou a Sra. Coutts, apressando-se até ela. ― Sr.
Gibbs, temos uma celebridade na casa.
― Na verdade, deixando-a, ― disse Libby, os nervos dançando em seu
estômago como pequenos ratos em torno de um bloco de queijo.
― Não ― com esse emaranhado de penugem nessas lindas bochechas! Sr.
Gibbs, pegue o óleo.
Minutos depois, livre de bigodes e costeletas, Libby abriu a porta do pub.
― Ela está aqui! ― Pincushion estava gritando quando a porta se abriu.
E lá estava Ziyaeddin, encontrando seu olhar, e todos os nervos perversos
em seu estômago se fundiram em felicidade brilhante.
Ela voou para ele, colocou os braços em volta do seu pescoço e o beijou.
Ela pensou ter ouvido aplausos, mas a boca e a força das mãos dele segurando-a
eram tudo com que ela se importava.
― Não deveria ter feito isso, ― ele disse enquanto os gritos e assobios e
aplausos continuavam. Ela ouviu Archie pedir cerveja para todo mundo, e o
lugar entrou em erupção ainda mais animada.
― O Lorde Advogado concordou em atrasar as coisas até eu partir, ― disse
Ziyaeddin sob os aplausos. Ele pegou as duas mãos e falou perto dela. ―
Elizabeth, estou partindo. Muito em breve.
― Eu suspeitava disso, ― ela disse, apertando as mãos com muita força. ―
Me disse isso. Eu queria que saísse sem medo de que esse boato lhe perseguisse
e voltasse sem medo da forca - se algum dia encontrasse uma ocasião para
voltar.
Seus olhos sorriam.
― Venha, ― disse ela, circulando os dedos sobre o braço dele. ― Eu
gostaria de ter a minha aparência desenhada de uma só vez, e estou disposta a
pagar um preço muito respeitável por isso.
― Muito respeitável?
― Isso vai depender da qualidade da imagem, é claro.

ELE NUNCA TERMINOU a pintura. A cada poucos minutos, sua


curiosidade a impelia a pular da cadeira e inspecionar seu progresso. Cada vez
tinha que tocá-lo e às vezes beijá-lo.
Na décima dessas interrupções, ele a puxou para seu colo e fez amor com
ela lá, ela arrancou o casaco e a camisa dele enquanto o montava, rindo e
chorando e geralmente fazendo um tumulto que comprovava uma coisa muito
boa que ele tinha feito. Não contratar criados 24 horas por dia.
Mais tarde, torcidos nos lençóis, com os membros completamente
entrelaçados, quando ela adormeceu, ouviu-o sussurrar: ― Obrigado. ― Mas ela
não o fez por seus agradecimentos. Ela fez isso porque terminou de viver uma
mentira e terminou de se inclinar para regras irracionais. Ela se aconchegou mais
perto em seu calor e dormiu profundamente.
Na escuridão permeada pela primeira sugestão do amanhecer, ela sentiu
quando ele se levantou. Sonolenta, ela sentiu as pontas dos dedos dele
acariciarem sua mandíbula e depois os lábios, lentamente, com ternura, como se
ele tentasse memorizar a textura e a forma deles. Então seus lábios pressionaram
contra sua testa.
Ela ouviu o eco de seus passos de madeira no chão do estúdio e sorriu com
os olhos fechados. Café turco ou chá inglês: tanto faz para o café da manhã. Ela
voltou a dormir.
Quando acordou, a luz do sol brilhava através da fenda nas cortinas.
Levantando-se, envolveu seu roupão em torno si e foi para a cozinha. Na mesa
ao lado de um bule de chá que esfriara havia muito tempo, havia um fólio grande
e um pacote espesso de papéis.
O fólio era o desenho dela da noite anterior, agora terminado, uma jovem
vestindo apenas um roupão de cetim superdimensionado, o rosto radiante.
Enquanto lia as palavras que ele havia escrito embaixo, não conseguia respirar.

Fique bem, pessoa extraordinária. Não a esquecerei.


Z.

O pacote continha a escritura da casa, passada em seu nome, assinada e


carimbada por um notário. Havia também outro documento, que indicava que
todos os bens móveis da casa também pertenciam a Elizabeth Shaw, filha do Dr.
John Shaw, de Edimburgo. O conteúdo de sua conta bancária também era dela.
Ela vagou pela casa. Seu quarto estava como ela o deixara. A sala também.
No estúdio, ele havia deixado tudo: pincéis, óleos, pigmentos e pinturas
acabadas. Ela não encontrou os retratos dela.
Voltando ao quarto principal, ela envolveu seu corpo em cobertores e
finalmente se permitiu chorar.
Capítulo 31

O Campeão

Quando a tarde avançava, Libby levantou-se, limpou o rosto, vestiu um dos


vestidos da Sra. Coutts, chamou uma carruagem de aluguel e foi para a casa do
Duque e Duquesa de Loch Irvine.
Depois de falar com o pai, Alice, o duque e a duquesa, informando-os de
que pretendia ir imediatamente para sua residência, ela estava no quarto de
dormir que usara durante a última semana e olhava fixamente para o leque de
fitas de cabelo. Íris lhe dera para consolá-la por ter que se tornar mulher outra
vez.
Ao lado deles na penteadeira estava o relógio que ela usara por meses.
Califas e reis. Ele estava a um mundo de distância.
Os folhetos matinais imprimiram a notícia chocante de que Kent havia feito
tudo para proteger a reputação da Srta. Elizabeth Shaw. Ele foi exonerado do
crime sujeito a enforcamento, mas criticado pela desonestidade e sua influência
imoral sobre uma donzela inocente.
Quanta insensatez.
― Senhorita, ― disse uma criada da porta, ― há um Sr. Chedham aqui
para vê-la.
Soltando as fitas, ela desceu a grande escadaria para a sala de estar.
Chedham permanecia rigidamente junto a uma estante de livros.
― O que quer agora? ― Ela perguntou.
― Suponho que não deveria ter esperado outra saudação sua.
― Claro que não deveria. E eu não deveria ter concordado em lhe falar,
mas aqui está o senhor e eu tenho uma natureza curiosa. Assim? O que quer?
― Desculpar-me.
Ela cruzou os braços. ― Isso é inesperado. E demasiado tarde.
― Eu estava errado em não retratar minha acusação depois que veio me
visitar, ― ele disse como se precisasse de cada músculo em seu corpo para
forçar as palavras sobre sua língua. ― Foi o pior tipo de comportamento
deselegante.
― O senhor poderia estar expelindo uma pedra pela bexiga agora com a
pressão que está colocando no seu diafragma.
― Pulley me contou que viu os dois entrarem no beco. Isso foi tudo que ele
viu. Para arruiná-la, eu embelezei as coisas.
― É um idiota arrogante e se não fosse por suas extraordinárias habilidades
em medicina, eu desejaria que fosse banido desta terra. Mas não posso desejar
isso Maxwell, porque o senhor tem um dom para a cura que já ajudou muitas
pessoas. Eu testemunhei isso. Só gostaria que o dom tivesse sido concedido ao
senhor junto com um coração humano também. Até uma fração do coração de
Archie, faria diferença.
― Ele lhe disse que me desafiou?
― O desafiou? Para um duelo? Archie? Ah não! Não diga que ...
― Não Armstrong, ― disse ele. ― Kent. Ele ganhou, claro. Nós nos
encontramos esta manhã no Arthur's Seat, ao amanhecer. Eu não tenho nenhuma
habilidade com pistola ou espada, então eu escolhi pistolas porque suspeitei que
seria mais fácil. Acho que ele sabia que eu não estava preparado. Ele não fez
nada enquanto eu me atrapalhava, nem sequer levantou sua arma. Eu atirei e
errei. Só então ele disparou para o ar. Ele me disse que foi por sua causa que ele
não me matou.
― O senhor jurou curar os outros, ― disse ela. ― Mas pretendia matá-lo?
Seu olhar se desviou desconfortavelmente, depois pareceu notar a sala em
que estavam, uma elegância ducal moderada. ― A senhorita não é a pessoa que
eu pensei que fosse.
― As pessoas raramente são o que os outros pensam delas.
― Sua graça secundou Kent. ― Seus lábios se apertaram. ― Pulley ficou
tão impressionado ao encontrar um duque que quase se sujou.
― Seus amigos são idiotas. Não precisa se cercar de tolos, Maxwell. O
senhor é brilhante. Deve assumir seu potencial. Me deve pelo menos isso.
― Devo me despedir agora ― ele disse rigidamente.
Ela andou até ele e estendeu a mão. Após um momento de hesitação, ele
aceitou.
Ele foi embora, e Libby voltou a empacotar seus pertences, a dor em seu
coração não era mais leve, mas pela primeira vez em meses sua cabeça ficou
totalmente clara.
A Royal Academy, Londres, Inglaterra

ZIYAEDDIN OBSERVOU ENQUANTO, no salão de exposições lotado, um


casal com uma garota se aproximava da pintura.
― Mulher de boa aparência, ― disse o homem, tentando não olhar muito
de perto. Como as mulheres, ele estava vestido de maneira simples, as mãos
vermelhas e rachadas do trabalho.
― Olha como ela segura os instrumentos, Louisa, ― disse a mulher para a
menina. ― Como se ela fosse lutar ao invés de desistir deles.
― Ela é linda, mamãe. ― A garota olhou sem vergonha.
― Sim, ― sua mãe disse. ― Seus olhos estão cheios de fogo e sabedoria.
― Ela tem a força de um rapaz, ― disse o homem, franzindo a testa.
― Ela é forte, ― disse a mãe.
― Ela é médica? ― A garota perguntou, seus olhos nos instrumentos
cirúrgicos.
― Deve ser uma daquelas deusas dos velhos tempos, ― disse o homem, ―
ou ela estaria usando um vestido apropriado.
― Não, Sr. Dunnell ― disse sua esposa. ― Ela é apenas uma mulher que
recebeu um dom de Deus.
A família se afastou.
― A forma de uma mulher e a mente de um homem. ― Charles Bell estava
ao lado de Ziyaeddin, estudando a pintura. ― Ainda assim, meus colegas tolos a
rejeitam.
Ziyaeddin assentiu. Mas ela não tinha a mente de um homem, e sim de uma
mulher. E a coragem de um herói. Ninguém saberia que ela havia conseguido
muito mais do que sucesso em seus estudos médicos. Ninguém saberia que ela
havia matado um dragão. Ninguém senão ele.
― Obrigado, senhor, ― disse ele.
― Oh, não precisa me agradecer. Os diretores ficaram felizes em poder
convencê-lo a permitir que eles pendurassem seu trabalho na exposição deste
ano.
― Eu te agradeço pelo seu perdão pela minha mentira e pela sua promessa.
― Eu continuaria a apoiá-la, mesmo que não o solicitasse. Mas estou
honrado por ter perguntado, Sr. Kent. Só espero que ela não esteja cansada da
luta.
Ela não - não essa guerreira.
Ziyaeddin despediu-se do cirurgião e saiu do salão de exposição para a rua.
Joachim esperava na carruagem, um estrangeiro ficava evidente até mesmo nesta
cidade cosmopolita.
― Demorou muito, ― disse Joachim.
― O ministro das Relações Exteriores esperará.
― Mas um navio da Marinha não vai, ― disse Joachim quando um lacaio
abriu a porta da carruagem. ― Devemos estar a bordo em poucas horas. ― Ele
subiu atrás de Ziyaeddin e a carruagem começou a avançar. ― No entanto, sua
alteza preferiria ficar aqui neste prédio cheio de fotos e plebeus. Se tornou ligado
a esta terra. Não foi?
Em torno deles, Londres em toda a sua complexidade ambiciosa,
fervilhava. Mas seu coração não estava nesta cidade.
Ele sentia falta de Edimburgo. Sentia falta dos becos estreitos da Cidade
Velha, o café onde bebia vinho com artistas e poetas, a agitação dos estudantes,
as livrarias e o brilhante céu azul coberto de nuvens e colinas esmeraldas, e o
enrolar dos escoceses em seus ouvidos.
Ele sentia falta de sua casa, seu estúdio, suas pinturas. Apenas a quinze dias
de distância deles, mas seus dedos estavam com fome de um pincel. Ele sentia
falta dos aromas de óleo de noz e linhaça.
Ele sentia falta dela. Ele sentia tanta falta dela que às vezes se esquecia de
respirar.
― Edimburgo, ― disse ele.
― Pedra fria e chuva constante? ― Joachim franziu o cenho. ― A casa em
que morava era menor do que o alojamento dos criados em seu palácio.
Ziyaeddin sorriu. ― É uma boa casa, na verdade. ― Dela agora. Imaginou-
a na sala de visitas, com livros espalhados, uma xícara de chá abandonada perto
do cotovelo.
― Se lembra, Ziyaeddin, de como o brilhante sol de verão banha o pátio do
seu palácio com calor?
― Na verdade, lembro-me pouco disso.
― Sua irmã vai ajudá-lo a lembrar de tudo.
Ziyaeddin olhou para o amigo, que agora olhava pela janela. Nos dias que
passara com Joachim, ele vira isso com frequência: os olhos cinzentos ficavam
sem visão quando ele mencionava Aairah. Agora ele não podia deixar de se
perguntar como Joachim parecia conhecer tão bem o calor do verão no pátio. O
general morrera durante o frio inverno Cáspio, e Aairah assumira o controle do
palácio só naquela época. Ziyaeddin se perguntou se o voto de fidelidade de seu
velho amigo o trouxera para cá, ou outro vínculo - um vínculo com uma princesa
em cativeiro - forjado em segredo em um pátio banhado pelo sol do verão.
Ao redor de um porto movimentado, durante séculos Tabir foi uma terra de
muitas crenças e muitos povos. As pessoas de seu reino aprenderam há muito
tempo a negociar suas diferenças e costumes, vivendo em paz uns com outros.
Ainda assim, para uma princesa real muçulmana, o amor de um soldado cristão
era proibido - assim como o amor de um príncipe real por uma menina órfã
bastarda, uma plebeia que era tudo menos comum.
Mas ele não era mais aquele príncipe. Exilado dela agora, ele soube que no
momento em que conhecera Elizabeth Shaw, ele tinha sido, nada mais ou menos,
do que dela.
Batendo no teto da carruagem, ele pegou a maçaneta da porta.
― Ainda não chegamos a Westminster ― disse Joachim quando a
carruagem parou.
― Há uma loja de papelaria apenas aqui. ― Ele gesticulou com a bengala e
saiu em seguida. ― Continue. Andarei pelo restante do caminho.
― Mas, vossa Alteza
― Não tenha medo. Eu irei.
Franzindo a testa, Joachim fechou a porta e a carruagem se afastou.
Agarrando a bengala, Ziyaeddin foi em direção à loja. Ele comprara um
bloco de notas com folhas grossas de linho que aceitavam giz e deslizavam bem.
O dia estava quente e a rua era povoada com pessoas de todo o mundo, os
homens de alta e de baixa estatura, de casacos pretos e coroados com altos
chapéus e mulheres elegantes de musselina e seda verde, vinho e azul, as peles
morenas e as pálidas de todo o vasto Império Britânico, comerciantes de amido
ricos e humildes mendigos e babás marchando atrás de carrinhos de bebê.
Enquanto caminhava, para dar prazer a si mesmo, ele procurou uns
exuberantes cachos negros, luminosos olhos azuis e lábios que conduziam um
homem à loucura, e fingiu que algum dia, ele poderia acidentalmente, vê-la
passar novamente, para em um momento precioso, voltar para casa.
Capítulo 32

Um Novo Acordo

Maio de 1828
Edimburgo, Escócia

― Lá. Aqui não. Lá. Bom Deus, Archie, não consegue ver?
― Sim, eu posso ver, senhorita Perfeição ― disse ele, levantando sua
atenção da ferida meio costurada para olhar para ela. ― Eu estou fazendo do
meu jeito, muito obrigado.
O paciente, um velho pescador envelhecido, olhou com cautela de um para
o outro.
― Está tudo bem, ― disse Libby a ele gentilmente. ― O Sr. Armstrong
costura uma sutura excepcionalmente boa. ― Ela cruzou os braços. ― Seria
muito mais rápido se ele permitisse que eu o fizesse.
― Sim, ― disse Archie. ― Mas nós dois seríamos suspensos deste lugar
por quinze dias. Novamente. Não arriscarei estando tão perto de me sentar para
os exames.
― Vai se sair bem.
― Chedham está à minha frente.
― Ele sempre esteve à sua frente.
― Feito! ― Ele se endireitou e acenou para o pescador. ― Como se sente?
O pescador dobrou o braço. ― Eu preferiria que a moça tivesse feito isso.
― Aha!
Archie revirou os olhos. Pegando seu kit de sutura, foi em direção ao
lavatório.
Archie secou as mãos. ― Seria o presidente deste lugar algum dia se....
― Se a faculdade permitisse que eu me tornasse uma colega. Não sei por
quanto tempo terei paciência para isso, Archie ― disse ela quando saíram do
prédio. ― Meus professores são todos maravilhosos, especialmente o Sr.
Bridges e o Sr. Syme.
― Bridges estava novamente se gabando do seu trabalho no outro dia. Não
pode medicar a si mesmo.
― Mas ser proibida de trabalhar na enfermaria, apesar de tudo, tenho
provado repetidamente, e mesmo assim sou privada de outros ensinamentos. ―
Esta manhã, ela havia recebido mais uma advertência conjunta do conselho da
cidade e da Igreja da Escócia de que, se tentasse realizar uma cirurgia em
qualquer instituição médica estabelecida, enfrentaria o desagrado total da lei. ―
Até a associação dos boticários fechou suas portas para mim. Não há lugar em
Edimburgo para uma mulher cirurgiã.
― O que vai fazer, Lib?
― Continuar a ajudar no hospital dos pobres em Leith e a estudar. ― E
esperar. Ela não podia dizer em voz alta, mas a verdade é que durante dois anos
ela esteve esperando. Esperando por um milagre.
Ela colou um sorriso em sua face, da mesma forma que uma vez colou
umas suíças.
― E eu vou continuar importunando-o e ao Pincushion para me deixarem
trabalhar em seus pacientes aqui, quando ninguém estiver assistindo.
― Algum dia nós vamos abrir nossa própria clínica cirúrgica privada, nós
três. George será nosso advogado e nós seremos os cirurgiões mais populares na
Escócia. ― Ela sorriu genuinamente agora.
Eles tinham chegado à esquina do seu quarteirão. ― Tem tempo para uma
cerveja? ― Perguntou Archie.
― Hoje não. Tenho que terminar de escrever notas sobre a hérnia
estrangulada que eu consertei ontem.
― Amanhã então.
― Amanhã, talvez. ― Ela o observou se afastar. Não se juntaria aos amigos
no pub amanhã, nem no dia seguinte, nem no outro dia. Ela os adorava. Eles
permaneceram companheiros leais, mesmo quando seus estudos particulares
levaram suas habilidades e conhecimentos para muito além da deles. Mas eles
eram tão jovens. Como Íris, eles brincavam na vida sem a compreenderem
completamente, enquanto ela era uma mulher adulta que conhecia seu coração e
mente, mas ainda estava esperando por um dia que nunca chegaria.
Era hora de sair de Edimburgo. A comunidade de homens médicos era
muito forte contra ela. De acordo com alguns em Edimburgo, ela ainda era uma
mulher antinatural e uma mulher decaída, disfarçando-se de homem apenas para
ser seduzida pelo Turco, depois abandonada e agora escandalosamente vivendo
sozinha. Que ela fosse acusada de ambos, lado a lado, era uma pilha de
irracionalidade. O pior, no entanto, foi a ignomínia que trouxe para seus
mentores e amigos por simplesmente se associar a eles.
Ela precisava ir para outro lugar, talvez para uma aldeia remota que
precisasse desesperadamente de uma curandeira, onde ninguém a castigasse por
isso. Sentiria saudades de Alice, Iris, Coira e da Sra. Coutts. Mas não podia mais
suportar essa vida parcial.
E ela precisava ir embora dos lugares em que não podia deixar de pensar
nele.
A dor de levantar-se todos os dias sem ele na casa não desaparecera
completamente. As lembranças continuavam frescas. Ela nem havia alterado o
seu estúdio. Ele estava governando um reino a milhares de quilômetros de
distância, mas ela não conseguia se desfazer de um único pincel.
Deixar Edimburgo era a solução mais sábia.
Ela poderia morar com o pai e Clarice em Londres. O senhor Bell
prometera contratá-la como assistente particular. Mas os hospitais e o College of
Surgeons também não a aceitariam e, de qualquer forma, ela não se importava
com Londres. Ela não queria deixar seus amigos aqui, a cafeteria na esquina, a
igrejinha onde ela gostava de se sentar no último banco e sua casa perfeita.
Ela não queria deixar para trás as memórias de seu retratista. Seu príncipe.
O Times de Londres anunciara o fim da guerra entre o Irã e a Rússia e
elogiava o justo governante de Tabir por ajudar a negociar o tratado.
A guerra estava se formando novamente entre a Rússia e os otomanos. Mas
por enquanto, a um mundo de distância, ele estava bem. Ela queria apenas isso.
Dois anos de espera foram longos o suficiente. A vida deve ser vivida.
Deslizando a mão em um ponto delicado em sua bochecha, ela subiu os
degraus até a porta da frente e procurou a chave no bolso.
― Está preparada para isso? ― Veio uma voz de trás dela - a voz mais
perfeita em todo o mundo.
Ela se virou e lá estava ele na calçada abaixo, uma figura alta, magra e
sombria de elegância excepcional com uma bengala com ponta dourada,
completamente imóvel e observando-a.
As mais extraordinárias sensações romperam seu coração e se espalharam
por todas as partes dela. Espanto. Desejo. Alegria.
― Preparada para viver inteiramente entre os homens? ― Ela disse, não
totalmente estável. ― Aprender seus caminhos e fingir ser o que não sou, para
que eles não me conheçam pelo que eu realmente sou? Estar sempre sozinha?
Ele ofereceu aquela linda inclinação de cabeça que ela sempre achou tão
principesco mesmo quando não sabia que ele era um príncipe.
― Não, ― disse ela. ― Por enquanto eu sei quem sou, e desejo apenas ser
eu mesma.
Ele subiu os degraus e ela permaneceu imóvel enquanto tudo dentro dela
era um tumulto. Tão perto agora era impossível não ver as mudanças que dois
anos haviam feito nele: seu cabelo estava mais comprido e bigodes curtos
emolduravam sua boca e mandíbula. Seu casaco era muito fino, o estilo régio,
seu colete com fios em ouro. Ele parecia um governante de um reino estrangeiro.
Como um estranho.
Ele estava olhando para ela como se ela fosse uma estranha também, seus
olhos escuros questionando. A incerteza hesitante pairava no ar entre eles.
― Tem gesso grudado na sua bochecha, ― ele disse em um silêncio
constrangedor, sua voz um pouco tremida também. Ele estendeu a mão e tirou-o
da pele, e as pontas dos dedos permaneceram por um instante - por apenas um
instante - por tempo suficiente.
A incerteza vacilou, depois desapareceu.
― Esqueci de me olhar no espelho antes de sair da enfermaria ― disse ela,
atraindo o cheiro dele para ela e ficando tonta. ― O paciente de Archie estava
uivando, então eu misturei o gesso mesmo que tenha sido proibida de ajudá-lo.
Foi horas atrás. Mas eu estava distraída. Na verdade, fiquei distraída o dia todo.
Ele inclinou a cabeça e ela viu a mudança de músculos em sua mandíbula.
― Diga-me que é porque hoje é o aniversário do dia em que parti.
― É porque hoje é o aniversário do dia que partiu. ― Com os dedos
trêmulos, ela colocou um cacho solto atrás da orelha e a esperança bateu nela. ―
Não é possível que tenha chegado hoje por coincidência.
― Na verdade, foi necessário um esforço bastante significativo da minha
parte até para chegar hoje. Os ventos nem sempre sopram na direção que se
deseja.
Formigamentos de felicidade estavam se espalhando dentro dela. ―
Metáforas de novo?
― Ventos reais também, como aconteceu. Meu navio atrasou a chegada ao
porto. Fui obrigado a cavalgar de Newcastle para chegar aqui hoje.
― Ainda nem mudou de roupa. Cheira a cavalo.
― E a senhorita cheira a cânfora. ― Seus olhos sorriam. A alegria era
selvagem em seu peito.
― Tenho acompanhado as notícias da guerra. ― Perseguido. Devorado.
Tinha medo de que um dia lesse que Tabir havia caído, que ele se fora para
sempre. ― Eu f- fiquei feliz em ler sobre o tratado, q- que seu reino está bem e
seu - seu povo.
― Gagueira? ― Ele levantou uma sobrancelha. ― Quando isso começou?
― Neste momento. Isso é extraordinário. Eu realmente nunca pensei em
nunca mais vê-lo novamente.
― Claro que pensou.
― Eu não o fiz. Eu queria. Eu imaginei isso. Claro. Eu pensava todos os
dias em como essa conversa poderia acontecer se voltasse: o que diria para mim,
o que eu lhe diria, onde aconteceria, todos os detalhes. Às vezes eu pensava
nisso a cada hora. Eventualmente, tornou-se tão angustiante que fui obrigada a
me recompensar para não permitir que minha mente girasse em torno dessa
potencial conversa.
― Superou isso.
― Sim, primeiro, me permitindo passar um quarto de hora por dia
escrevendo o que eu imaginava que diríamos um ao outro. Nos quinze dias
seguintes, permiti-me apenas pensar nisso por um quarto de hora por dia. Mas o
último se mostrou impossível, pois estava sempre em minha mente de qualquer
maneira. Finalmente, me permiti lembrá-lo sempre, exceto imaginar essa
conversa.
― Essa conversa é parecida com o que imaginou?
― Pedaços dela. A parte em que disse que fez um esforço significativo para
voltar, sim. Não a parte sobre gesso.
Sua boca estava resistindo a um sorriso. ― Como eu senti sua falta, ― ele
disse muito bem e estendeu a mão para enrolar o cacho errante atrás da orelha
dela. Desta vez, as pontas dos dedos demoraram-se por mais de um momento,
acariciando a inclinação de sua mandíbula e enviando faíscas de prazer através
dela.
Ela colocou a palma da mão sobre o peito dele, e a sua sólida realidade a
preencheu enquanto seus pulmões enchiam profundamente sob sua mão.
― Está aqui, ― ela sussurrou.
― Eu estou aqui, ― ele respondeu suavemente.
― Esse é um casaco lindo, não importa que cheire a cavalo. Está vestido
magnificamente. Regiamente. Essa bengala é a peça entalhada mais bonita que
eu já vi.
― Eu queria impressioná-la.
― A mim?
― Quando nos conhecemos, eu desenhei seu rosto para impressioná-la.
Depois disso, não consegui me esquecer de nenhum detalhe dessas
características. Sim, sempre quis impressioná-la, jan-e delam.
Ela enrolou os dedos ao redor da lapela de seu casaco, sabendo que não
deveria fazer isso aqui na varanda, mas incapaz de libertá-lo, e de qualquer
maneira tinha passado uma vida fazendo o que não deveria.
― Eu pedi notícias suas, ― ele disse.
― Pediu? Do duque?
― Toda quinzena.
― Cada quinzena? O que ele relatou?
― Que permanecia destemida. Que continuou seus estudos. Que é
brilhante.
― Já estava ciente do último.
― E que não se casou.
― Por que eu deveria?
O sorriso relutante que ela tanto amava enrugou sua bochecha. ― Por que
deveria, de fato. ― Não era realmente uma pergunta.
― Sua irmã e filhos estão bem?
― Muito bem. ― Seu olhar estava viajando em seu rosto lentamente. ―
Depois do tratado, quando me garantiram que tudo estava estável, abdiquei.
Seu braço caiu. Ela ficou boquiaberta. ― Fez – o que – com ...
― Precisamos fazer algo sobre essa gagueira. Não lhe cai bem.
― Abdicou? Mas pode fazer isso?
― Eu fiz. Então sim, eu posso. Isto é, primeiro eu formei um parlamento.
Isso levou algum tempo, é claro ― ele disse calmamente, como se estivesse
recitando recados. ― Quando isso foi resolvido, escrevi uma petição ao
parlamento dizendo que minha irmã deveria servir como regente até que seus
filhos atingissem a maioridade e, em seu primeiro ato oficial, os membros o
ratificaram. Tudo correu muito bem, na verdade. Esta é a era moderna, sabe. As
monarquias constitucionais são muito populares.
― Não deve brincar sobre isso.
― Não estou brincando.
― Abdicou.
― Como pode duvidar? ― Ele disse, agora sóbrio.
― Não se abdica simplesmente!
― Se faz quando a mulher que se quer está do outro lado do mundo. ― Ele
levou a mão dela aos lábios e a beijou com ternura - tão ternamente. ― Não sou
o primeiro monarca a abdicar por amor.
Por amor.
Isso não poderia ser real.
― Quando saiu daqui, ― ela disse, ― eu acreditava que nunca voltaria.
― Quando saí daqui, soube a menos de um quilômetro que não sou
ninguém se não estiver ao seu lado. ― Ele inclinou a cabeça para que suas
sobrancelhas quase se toquem. ― Preenche meu coração, Elizabeth Shaw. Enche
minha cabeça. Só pensei em você, só queria você. Longe de você, eu tenho sido
como um homem dormindo enquanto acordado, sempre em um sonho terrível do
qual não conseguia acordar. Sem você sou meia alma. Com você eu sou inteiro.
― Ele olhou em seus olhos. ― Estou em casa.
Ela não conseguia respirar. ― Mas não pode ter desistido da sua coroa.
― Eu desistiria de mais que uma coroa. Por você, eu desistiria do mundo.
Com um grito de alegria, ela jogou os braços sobre ele. Ele beijou sua testa,
sua bochecha. ― Eu não estou atrasado?
― Nunca teria chegado tarde demais.
― Me aceitará? ― Ele perguntou com ferocidade linda. ― Permitirá que
eu a cuide e faça amor contigo e que a veja ser extraordinária no mundo, desta
vez por toda a vida?
― Sim, sim, eu vou, claro, agora me beije. Pois esta foi a parte que
imaginei todas as vezes.
Ele sorriu e a beijou sorrindo, e acariciou a ponta do polegar sobre o lábio
inferior.
― Então temos um acordo? ― Ele perguntou.
― Temos um acordo. ― Ela puxou a chave do bolso e apertou-a na palma
da mão dele. ― Bem-vindo a nossa casa. ― Ela alisou as mãos no peito dele e
sentiu toda a sua força gloriosa. ― Onde está o meu retrato que levou contigo?
Ele a beijou novamente, saboreando seus lábios. Suas mãos envolveram sua
cintura e ele a puxou confortavelmente para ele. ― Pendurado em uma galeria
em Paris, ― disse ele entre beijos. ― Por que pergunta?
Ela se agarrou a seus ombros e aceitou sua boca em seu pescoço. ―
Ultimamente eu tenho desejado um retrato meu.
― Tem?
― Sim. Porém, apenas do meu queixo.
Ele beijou seu queixo. ― Este belo queixo.
― Também o lóbulo da minha orelha.
― Lóbulo da orelha requintado, ― ele murmurou, arrastando a língua ao
longo do apêndice sensível.
― E talvez meu tornozelo esquerdo.
― E esses lábios, ― disse ele, beijando-os novamente. ― Esses lábios
perfeitos.
― Lábios também ― ela disse com um suspiro porque aqueles lábios
estavam no céu sob os dele.
― Eu conheço um artista que pode fazer esses retratos. ― Seu timbre era
rico e rouco, do jeito que ela amava.
― Eu esperava que sim.
― Ele está disponível agora.
― Esplêndido, ela disse. ― Vamos cuidar disso imediatamente. ― Não há
tempo a perder.
Eles entraram.
Não chegaram ao estúdio. Não diretamente, pelo menos. De alguma forma,
foram pegos nos braços um do outro e a sala de estar estava perto, e a ânsia de
confirmar seu novo acordo foi muito além da necessidade de um aperto de mão
cavalheiresco.
Mais tarde, havia chá para ser saboreado e depois uma grande quantidade
de beijos na cozinha também, já que era difícil deixarem de se tocar até para
beber uma xícara de chá. No meio disto tudo, eles redescobriram um ao outro,
imprimindo em seus sentidos novamente a cadência do riso, a textura da pele, a
beleza dos suspiros, o vislumbre de afeição nos olhos azuis e marrons, e o brilho
do amor.
Finalmente, eles chegaram ao estúdio. Ela havia instalado um sofá bem
acolchoado no quarto e explicou que era porque gostava de descansar ali à tarde,
às vezes para ler, e às vezes para catalogar mentalmente os galhos das árvores no
jardim e fingir que não estava pensando nele.
Eles fizeram amor novamente naquele sofá. Beijando-a, ele murmurou as
palavras atashe delam. Quando ela perguntou a ele o significado daquilo, ele
disse que ela era o fogo de seu coração, e então mostrou a ela.
Mais tarde, quando estava corada, quente, úmida e totalmente satisfeita, ele
foi até a sala de trabalho, tirou lona e lápis e começou um novo retrato.
Os dias seguintes foram muito parecidos, incluindo uma eficiente visita a
um pároco em meio às sessões de namoro e amor.
Quando o retrato foi concluído, Ziyaeddin pendurou-o na parede do quarto
principal. Libby disse que era tolice ter uma grande pintura nua de si mesma em
seu quarto, mais ainda, uma pintura em que ela obviamente estava sofrendo de
gratificação sexual. Ele respondeu que devia permanecer ali, pois sempre que ela
estivesse longe de casa até tarde da noite na cabeceira de um paciente, isso lhe
faria companhia e lhe proporcionaria enorme prazer. Ela brincou com ele, e ele a
pegou em seus braços e disse a ela que a amava, que estava louco por ela, e que
ordenava que ela o obedecesse, porque ele era, afinal, de sangue real. Ela disse
que nunca concordaria em obedecê-lo em nada, mas que faria amor com ele
imediatamente, e então talvez eles pudessem tomar chá e biscoitos, sentar no
sofá e ler um para o outro, e então provavelmente fazer amor novamente e isso
não seria muito mais divertido?
Para isso, seu príncipe respondeu como ela desejava.
Epílogo

Felizes para Sempre

Maio de 1868
Escócia

O mundo estava mudando.


O funcionário do correio olhou para os trilhos de madeira e ferro negro. Os
operários foram todos embora agora, levando suas máquinas de fabricação de
tijolos, suas cabanas em ruínas e suas estranhas línguas estrangeiras, deixando
apenas os trilhos para trás. Nenhuma locomotiva ou vagões havia passado ainda.
O cronograma dizia que o primeiro viria na terça-feira e com ele a entrega de
correspondências mais rápida a chegar na aldeia.
Sim, a mudança chegaria gostasse o homem ou não. No entanto, algumas
coisas continuavam as mesmas. Os sinos de Saint Margaret ainda anunciavam o
culto de domingo. O pequeno rio que seguia seu caminho ao longo da aldeia
ainda estava repleto de trutas. A velha roda do moinho ainda girava rangendo
como um gemido. E a doutora e o Sr. Kent ainda andavam pelo caminho do rio
todas as noites depois do jantar - chuva, neve ou sol - como estavam fazendo
agora.
O funcionário balançou para trás em sua cadeira, observando os dois
passearem ao lado da água cintilante. Dias atrás, havia três pequenos correndo ao
lado, deslizando pedras na água e caindo no musgo. Aqueles jovens, cada um
deles mais brilhante do que o outro, há muito tempo haviam crescido e se
mudado - um para o Royal College of Physicians em Londres, outro para Paris
para esculpir estátuas sofisticadas e o último para alguma terra distante do Leste.
Esse, um embaixador. Sim, essa aldeia era pequena demais para satisfazer
aqueles três.
Apenas a médica e o sr. Kent permaneceram.
O funcionário do correio ainda se lembrava de quando o casal chegara. Ele
era um menino, e até então ele só vira os turcos nas páginas de livros, com seus
turbantes, pantalonas e grandes espadas curvas. Se não tivesse ouvido o vereador
insistindo nisso, ele não teria acreditado que o Sr. Kent era um deles. Vestido
como um inglês, e até falando melhor do que o reverendo, ele fascinou todos na
aldeia. Havia rumores de que era algum tipo de realeza. A maior mentira que o
funcionário já ouvira. Que príncipe viveria em uma aldeia no meio do nada?
Quem quer que fosse, as pessoas tinham se aproximado dele rapidamente.
Os desenhos que fez para os pequeninos da aldeia lhe renderam o favor das
mães. Mas quando ele pintou o cão predileto do laird de modo que parecia que a
cadela estava saltando direto para fora da tela, toda a paróquia o acolheu.
Não ela. Não no começo. Lady cirurgiã, eles a chamavam e não
gentilmente.
Eventualmente, ela conquistou todo mundo, é claro. Quando o pequenino
Willie Pudding caiu do velho incinerador e quebrou o osso que atravessou a pele,
ela sabia o que fazer – naquele dia, e várias outras vezes depois disso.
Ela ainda mantinha uma prática ocupada em seu escritório na aldeia, às
vezes saindo para ajudar com um nascimento problemático nas fazendas
arrendatárias, em outras ocasiões auxiliando a nobreza nas aflições que só os
ricos e confortáveis pareciam ter: depressão, insônia e gota. Principalmente ela
ajudou aqueles que não podiam pagar.
Juntos, os dois sempre viveram em silêncio no seu chalé no final da aldeia.
Todos gostavam e os respeitavam.
O funcionário do correio olhou novamente para os trilhos e para a nova
plataforma cintilante. Era uma pena que a doutora não viajasse tanto quanto
antes. Com a estrada de ferro, ela chegaria a Edimburgo ou mesmo a Londres
rapidamente - muito mais rápido do que naquelas belas carruagens que seus
pacientes mandavam para ela. Certa vez, ele ouviu, Sua própria Majestade
exigira que a médica visitasse o Palácio de Buckingham.
Estranhos ainda os visitavam regularmente na casa de campo, alguns
grandiosos, outros modestos, às vezes por semanas a fio. O próprio funcionário
ocasionalmente cuidava do envio das pinturas do Sr. Kent. Apenas os retratos
pequeninos, no entanto. A médica certa vez disse a ele que os clientes do Sr.
Kent preferiam pegar as pinturas maiores pessoalmente.
― Cada um vale uma verdadeira fortuna em ouro, é claro, ― ela disse a ele
como se não se importasse com fortuna, ouro ou qualquer outra coisa.
O funcionário dos correios não sabia nada sobre arte. Mas sabia que os
Kent pagavam aos criados duas vezes o que todos os outros lares da paróquia
pagavam. E de acordo com o açougueiro e a mercearia, eles nunca tinham
atrasado o pagamento das contas. Então o funcionário supôs que a doutora não
exagerou sobre o valor desses retratos.
Ele os observava agora enquanto caminhavam ao longo da margem do
rio, no brilho rosado do dia que se desvanecia. Como sempre, andavam de mãos
dadas, devagar, com passos curtos, esburacados, como se não estivessem na
movimentada vida moderna, lado a lado, desfrutando da paz e tranquilidade de
uma noite de primavera juntos.
Pisando na passarela, ela pegou o braço dele. Eles pararam no centro e
viraram os rostos para o pôr do sol sobre a água.
Naquele lugar certamente o pôr do sol era um dos mais bonitos da Escócia.
Então a médica virou o rosto para o marido e falou, longe demais para ser
ouvida, mas seus lábios se moveram rapidamente - aquela mulher podia falar
uma milha por minuto. O Sr. Kent respondeu e ela sorriu. Então ele levou a mão
ao rosto dela e inclinou a cabeça.
O funcionário do correio desviou o olhar. Não era certo olhar, mesmo que o
casal fizesse isso todas as noites, exatamente naquele local, chuva, neve ou sol.
Algumas pessoas, ele supôs, nunca se esqueciam o que era se apaixonar.
Nota da Autora
Agradecimentos pelo maravilhoso e bastante amplo material
histórico

Todos os homens e mulheres são uns aos outros os membros


de um único corpo, cada um de nós criado a partir da vida que
Deus deu a Adão.
Quando a passagem do tempo te atrapalhar, sofrerei como se
tivesse perdido uma perna; mas tu, que não sentes a dor do outro,
perdeu o direito de se chamar de humano.
—Saadi, Gulistan (século XIII, Persia)

Meus queridos leitores,


Obrigado por se juntar a mim nesta aventura. Espero muito que tenham
gostado da história de amor de Libby e Ziyaeddin.
Quando os personagens pedem que eu escreva a história deles, sempre digo
sim, o que quer que isso implique, mesmo que pareça incrível. Pois, felizmente,
descobri que a história real é mais surpreendente e a pessoa histórica, muito mais
extraordinária do que esperamos. E às vezes as estrelas se alinham.
Em um único dia glorioso em Edimburgo, descobri no Surgeons Hall, Sir
Charles Bell e o Dr. James Barry. Em Charles Bell, um cirurgião brilhante e um
pintor de pouco talento, vi imediatamente como eu poderia reunir minha
esperançosa heroína cirurgiã e meu herói retratista. Cheia de excitação por isso,
eu estava vasculhando a encantadora loja de presentes do Surgeons ’Hall e
encontrei a biografia do Dr. James Barry de Michael du Preez e Jeremy
Dronfield. E O Príncipe nasceu.
O disfarce de Libby é baseado em James Barry. Ansiosa por se tornar
médica, uma jovem irlandesa, Margaret Buckley, fez amizade com dois patronos
de pensamento liberal e influentes. Em 1809, vestida como homem, começou a
estudar medicina em Edimburgo, logo se tornando o Dr. James Barry. Entrando
no serviço colonial do exército e passando décadas em postos no exterior, Barry
viveu o resto de sua vida como homem.
Eu tirei da história de Barry não apenas a ideia do disfarce de Libby, mas
muitos detalhes, incluindo um patrono estrangeiro incorporado na sociedade
britânica que tinha planos de voltar ao seu país natal e governá-lo; O isolamento
auto imposto de Barry até que ele se tornou amigo íntimo de outro estudante
inteligente; as pequenas bolas de pano cuidadosamente trabalhadas que ele usava
para encher as calças; seu brilhantismo e sucessos; o cartaz postado
anonimamente acusando o Dr. Barry de ter sido “sodomizado” por seu amigo e
patrono; e a grave doença que sofreu durante a qual - no caso de Barry - seu
segredo foi descoberto quando seus colegas médicos procuraram cuidar dele. Em
cada uma das poucas ocasiões em que parece que outras pessoas de fato
descobriram o sexo feminino de Barry, ele sempre foi silenciado, provavelmente
devido a aliados influentes, mas possivelmente também devido ao respeito que
muitos detinham pelas habilidades de Barry.
No século XIX, na Grã-Bretanha, a maioria dos homens acreditava que as
mulheres não tinham a natureza física e moral de serem médicas ou cirurgiãs. Na
cena em que Libby conta a Ziyaeddin que ela quer ser cirurgiã, eu dei a ela as
palavras de Elizabeth Davies, LL.D., em seu artigo de 1861 “Female Physicians”
no Englishwoman Journal: as conquistas médicas das mulheres, até hoje, são
elas mesmas, evidência do poder intelectual e físico das mulheres - e tudo
realizado apesar de ser negada a educação formal.
Minha inspiração para Ziyaeddin veio inicialmente de várias pessoas
históricas. Mirza Abul Hassan, o embaixador iraniano em Londres em 1809-10 e
1819, escreveu um livro de memórias de seu tempo entre a alta sociedade, e os
ingleses escreveram sobre ele também, incluindo jornais. Ele era um convidado
muito popular: bonito, charmoso e amado por anfitriãs da moda, o príncipe
regente e muitos outros.
Talvez mais importante para o estilo de vida menos exaltado de Ziyaeddin
na Grã-Bretanha, tirei das experiências de seis estudantes iranianos que moraram
na Inglaterra entre 1815 e 1818 para estudar literatura, história, engenharia,
medicina e fabricação de armas. Um deles, Mirza Salih (que novamente visitou a
Inglaterra em 1823 em uma missão diplomática), manteve um diário de suas
viagens e escreveu muitas cartas. Tal como aconteceu com o embaixador, outros
escreveram sobre esses jovens, incluindo amigos que eles fizeram na Inglaterra e
jornalistas ansiosos. A maravilhosa história desses alunos, do Nilo Green,
sugeriu-me, entre outros detalhes, que Ziyaeddin apreciava o chá e o jantar como
rituais de amizade.
A pintura de retratos era imensamente popular na cultura persa nessa época
e, embora o estilo de retratista adotado por Ziyaeddin fosse europeu, foi fácil
enraizar seu interesse e aptidão em retratos, à sua infância. O prodígio artístico
do inglês Thomas Lawrence, suas habilidades e mentores naturais, assim como
seu estilo e desejos, também me proporcionou uma inspiração especial.
O início do século XIX era uma era global, com guerras regulares entre os
exércitos de titãs cujos impérios mercantis em expansão estavam sempre com
fome. Inventando Tabir - e fazendo com que sua família governante descendesse
da realeza Persa - coloquei-a no nexo entre a Rússia, o Irã e o Império Otomano,
e perto das rotas comerciais da Companhia Britânica das Índias Orientais e das
terras das ambições imperiais de Napoleão. Aqui, a mistura de povos de muitas
origens, línguas e credos não era incomum, especialmente nas cidades
portuárias.
Durante séculos, os europeus referiram-se ao governante do Império
Otomano como "O Turco". Mas no início do século XIX, na Grã-Bretanha e na
América, "Turco" era usado indiscriminadamente para descrever qualquer
muçulmano. Nos noticiários e entretenimento ocidentais, os muçulmanos eram
regularmente representados de modo imprecisamente selvagem. As "caricaturas"
tiradas no best-seller de Lorde Byron, poemas orientais e os romances populares
do diplomata James Morier, aos quais Libby se refere, incluíam falsas
representações de muçulmanos, islamismo e culturas orientais que pretendiam
vender cópias a um público sedento por entretenimento excitante. A ópera
oferecia outros retratos clichês. Corretivos literários para estes existiam, mas
nunca eram tão populares.
Pelo que sei, Charles Bell não viajou para a Escócia no outono de 1825.
Meu cronograma para essa história foi limitado pela guerra russo-persa de 1826-
28, por isso enviei-o brevemente a Edimburgo para servir ao propósito de Libby.
Além disso, nessa época na Grã-Bretanha, havia um renomado médico chamado
John Shaw. Eu o descobri, no entanto, depois que meu personagem fictício de
mesmo nome apareceu impresso em meus romances O Espadachim e O Duque.
O pai de Libby não pretende ser o verdadeiro médico histórico, Dr. John Shaw.
O século XIX viu avanços extraordinários na ciência médica na Grã-
Bretanha, especialmente na cirurgia, com Edimburgo no ápice desses
desenvolvimentos científicos. Os "ladrões de sepultura" ganharam um bom
dinheiro roubando túmulos de seus habitantes e vendendo os cadáveres para a
rede em expansão de escolas particulares de anatomia e cirurgia. A terrível
história de roubo de cadáveres voltados para a criação de cadáveres também vem
de Edimburgo: em 1827, dois ladrões de inescrupulosos e empreendedores,
prometeram a um cirurgião mais cadáveres do que encontraram e começaram a
assassinar pessoas pobres que, acreditavam, não fariam falta. Uma de suas
vítimas, no entanto, estava de fato desaparecida e os vilões foram condenados e
enforcados.
Enquanto pesquisava, descobri muitas outras histórias fascinantes também.
Por exemplo, o jovem Charles Darwin estudou medicina em Edimburgo ao
mesmo tempo que Libby. Aborrecido e adiado por seus cursos de anatomia e
cirurgia, ele ocupava sua mente brilhante aprendendo a arte da taxidermia com
John Edmonstone, um homem anteriormente escravizado da Guiana Inglesa que
vivia e trabalhava em Edimburgo. É difícil imaginar que esse trabalho de
reconstruir os corpos de animais não tenha um efeito profundo nas teorias
posteriores de Darwin. E depois há pequenos fragmentos de informações
magicamente deliciosas que aprendi e que não aparecem diretamente neste
romance, como o fato de a palavra caliber (qualidade) ter raízes arábicas - via
italiano, depois francês e, finalmente, inglês - e se refere ao excelente calçado.
Muitas pessoas me ajudaram com este livro, para as quais eu envio aplausos
copiosos e ofereço oblações.
Agradeço à minha editora Lucia Macro, que é boa e sensata, e a Carolyn
Coons, Eleanor Mikucki e a toda a paciência das pessoas talentosas da Managing
Editorial; meu editor Liate Stehlik.
Obrigado à minha superlativa agente Kimberly Whalen da The Whalen
Agency.
Para as pessoas generosas que leram este manuscrito e ofereceram sábios
conselhos, e para os incríveis romancistas, historiadores, especialistas médicos e
artistas sem cuja pesquisa, redação e consulta eu não poderia ter escrito este
livro, sou profundamente grata. Esses anjos são Marcia Abercrombie, Sophie
Barnes, Dan Bensimhon, Georgie C. Brophy, Georgann T. Brophy, Noé
Redstone Brophy, Helen Dingwall, Hussein Fantasia, Donna Finlay, Nilo Verde,
Mona Hassan, Jean Hebrard, Paty Jager, Deborah Jenson, Arash Khazeni,
Adriane Lentz-Smith, Mary Brophy Marcus, Vanessa Murray, Cat Sebastian,
SrA Misty R. Sow, USAF, Ret., Martha P. Trachtenberg, Amanda Weaver,
Barbara Claypole White, o Royal College of Surgeons de Edimburgo, os
bibliotecários da Perkins Library e da Rubenstein Rare Books and Manuscripts
Library, e os escritores e professores do blog de língua e cultura persa Chai and
Conversation.
Às damas autoras, Caroline Linden e Maya Rodale, de quem aprecio o riso
e encorajamento, e à memória da querida Miranda Neville, cuja própria pesquisa
de livros e sagacidade, emprestou palavras a Libby que sempre me farão sorrir:
de todo meu coração.
Para os meus leitores que tornam esta aventura muito divertida, e
especialmente para As Princesas, eu as adoro e sou grata por vocês.
Obrigada do fundo do meu coração aos meus amados, marido, filho e
Idaho, cujo apoio e amor me sustentam e inspiram cada um dos meus livros.
Para novos leitores que me encontraram com esse romance, sejam bem-
vindos! O romance de Libby e Ziyaeddin é o quarto romance da série Devil's
Duke. Para mais informações sobre a série, incluindo cenas de bônus e ainda
mais história, espero que visite meu site em www.KatharineAshe.com. Lá
também pode encontrar minha agenda de aparições e também muitos outros
extras bacanas.
Expressões em Persa

Delbaram - alguém que mantém seu coração


güzel kız - moça bonita
joonam - minha vida, querida, coração
atashe delam - fogo do meu coração
jan-e delam - vida do meu coração

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