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Katharine Ashe - Devil's Duke 04 - O Príncipe
Katharine Ashe - Devil's Duke 04 - O Príncipe
Katharine Ashe
1ª Edição
Leabhar
2019
Créditos:
Título Original: The Prince
Copyright©2018 por Katharine Ashe
Copyright da tradução©2019 Leabhar Books Editora Ltda.
Todos os direitos reservados, no Brasil e língua portuguesa, por Leabhar Books Editora Ltda.
CP: 5008 CEP: 14026-970 - RP/SP - Brasil
E-mail: leabharbooksbr@gmail.com
www.leabharbooks.com
Dedicatória:
—Elizabeth Blackwell,
Página do título
Direitos autorais
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Epílogo
Nota da Autora
Expressões em Persa
Capítulo 1
Um Disfarce
Setembro de 1825
Corredor dos Cirurgiões
Edimburgo, Escócia
Lenços de pescoço eram muito mais apertados do que ela tinha imaginado.
E as calças comprimiam uma pessoa bem no centro de onde ela menos queria ser
beliscada.
Mas ninguém a havia notado. Até mesmo os estudantes nos bancos de
ambos os lados, murmurando para seus companheiros sobre a dissecação no
centro do teatro cirúrgico em forma de U, não olhavam duas vezes para ela.
Obviamente, as costeletas tinham sido um golpe de gênio. No entanto,
Libby Shaw manteve os ombros curvados e a cabeça inclinada, espiando a
demonstração, oculta sob a aba de seu chapéu. Quando o cirurgião afastou o
músculo para expor os ossos, um arrepio de prazer a percorreu.
Havia sentado neste teatro antes para assistir a dissecações e cirurgias
públicas. Agora, disfarçada de homem, tudo parecia diferente: os médicos com
suas sábias sobrancelhas e mãos que faziam milagres; o arranhar dos lápis dos
alunos nos blocos de notas; o público curioso atraído pela palestra, se encolhia; e
o fedor da carne na mesa, em sua deterioração natural, diminuído pelo porão
fresco em que o assistente cirúrgico a guardava todas as tardes para preservá-la
para a palestra do dia seguinte.
Durante uma semana, os cirurgiões mais célebres de Edimburgo vinham
realizando dissecções, sistema por sistema, mas Libby não se preocupara em
participar até hoje, o dia reservado para sua parte favorita: o Sistema Ósseo. O
esqueleto humano era robusto, estável, um prazer imenso de se estudar.
― Essa é a fíbula ― o jovem à sua esquerda sussurrou para seu
companheiro.
― É? ― O outro sussurrou incerto.
Não.
Libby mordeu os lábios. As suíças disfarçavam seu rosto, não sua voz.
― Claro, imbecil! ― o primeiro disse. Ela reconheceu aquele tom
arrogante. Havia conhecido muitos desse tipo quando seu pai convidava seus
alunos para jantar. Pensavam que sua arrogância a impressionaria.
― Já estive em dezenas dessas dissecações ― ele acrescentou.
No entanto, ele não diferenciava uma fíbula de uma tíbia.
― O que é isso? ― O outro sussurrou, apontando.
O sóleo.
― A tíbia anterior ― disse o altivo. ― Claramente não leu o “Sistema de
Dissecações” de Charles Bell.
Aparentemente, ele também não tinha.
Seus sussurros se tornaram mais altos. Libby avançou no banco e virou a
orelha para o andar de baixo.
― Veja, o tensor ― disse o altivo. ― Agora ele vai usar a pinça de
litotomia para arrancar o músculo.
Libby virou seu queixo de lado.
― Ele não vai ― ela sussurrou em um tom baixo. ― Ele usará a faca curva
para proteger o músculo enquanto expõe o osso. Agora fique quieto para que o
resto de nós possa ouvir. ― Ela virou o rosto para o palco. Não estava aqui para
repreender estudantes mal informados. Estava aqui para aprender. A cada nova
revelação oferecida pelo cirurgião, Libby escrevia uma nota detalhada, alinhando
cada sentença cuidadosamente na margem esquerda, para ser facilmente legível
mais tarde. Finalmente o cirurgião colocou um pano de linho sobre a mesa, e o
salão irrompeu em aplausos.
― Isso pede uma cerveja ― disse o aluno arrogante, como se ele tivesse
feito a dissecação.
― Convidará o novo rapaz? ― Perguntou seu amigo, olhando-a enquanto
ela fechava o bloco de notas e se levantava.
― A ralé pode encontrar seu próprio pub. ― Disse, curvando o lábio
arrogante.
Eles se foram.
― Não se aborreça com Chedham ― um jovem disse alegremente ao lado
dela. ― Ele é um monte desprezível em um casco recheado de privilégios. A
família tem dinheiro e é esperto como uma raposa. Não acha que precisa ser
decente com ninguém. Bom que o tenha afastado, rapaz.
Não podia fingir que o jovem não estava falando com ela. Estendendo a
mão, tocou a aba do chapéu. Durante semanas, ela estudou os gestos dos
homens, bem como seu andar e movimentos faciais, em seguida, praticou-os
diante de um espelho.
― Não o conheço ― disse o jovem. ― E eu conheço todo mundo. ― Ele
estendeu a mão. Os cachos da cabeleira ruiva balançaram sobre seu rosto pálido
e sardento. ― Archibald Armstrong. Meus companheiros me chamam de
Archie.
Ela se virou.
― Ei! ― Ele disse, examinando o casaco fino de Libby e calças. ― Não é
inteligente demais para apertar a mão de um colega, não é?
Não havia como evitá-lo. Libby segurou a mão dele e apertou-a com força.
― Esperto ― ela murmurou. ― Joseph.
― Bom aperto, Joe! Sempre digo que conhecemos o valor de um homem
pelo seu aperto de mão. Matriculado nesta sessão?
Nos sonhos dela.
Ela assentiu.
― Excelente ― declarou Archie. ― Sempre fico feliz em conhecer um
homem mais inteligente do que eu, menos o Chedham, ― disse ele com uma
piscadela, e deu um tapa no ombro de Libby, fazendo-a cambalear para
frente. ― Os rapazes vão para o Dug's Bone para uma cerveja. Tenho que lavar
o fedor, ― ele disse alegremente. ― Junte-se a nós.
― Obrigado ― ela disse, e ele se afastou.
A euforia borbulhou nela. Todos os três alunos, acreditaram que ela fosse
um homem!
O disfarce, no entanto, não resolveu seu maior problema: encontrar um
cirurgião com quem aprender. Para isso, precisava de contatos na comunidade
cirúrgica de Edimburgo. Essas conexões também abririam o caminho para a
realização de cursos de anatomia, cirurgia e química para aumentar seu
aprendizado. A Srta. Elizabeth Shaw, filha do renomado médico forense John
Shaw, tinha esse tipo de conexão. O recém-criado e totalmente desamparado
Joseph Smart, não tinha.
Mas as mulheres não tinham permissão para serem aprendizes de
cirurgiões. Então se disfarçou.
Lá embaixo, apenas dois alunos estavam fazendo perguntas ao cirurgião
palestrante. As perguntas enchiam sua própria mente, mas garotos como Archie
Armstrong nem se davam ao trabalho de aprender mais.
Como Elizabeth Shaw, ela nunca conheceu esse cirurgião. Ela poderia fazer
suas perguntas sem ser reconhecida. Colocando o bloco de notas debaixo do
braço e indo em direção à escada, lançou um rápido olhar através da plateia
dispersa.
Seus passos vacilaram.
Um homem estava sentado do outro lado do teatro, sozinho enquanto as
fileiras se esvaziavam. Não porque ele fosse a única pessoa que Libby
reconheceu no local, que abruptamente não pode se mover. Pois não era. Havia
notado vários amigos de seu pai na multidão.
E não parou porque esse homem era atraente; pois tinha uma mandíbula
forte e afilada, cabelos negros penteados para trás e olhos profundos. Seus
braços, cobertos por um casaco fino e cruzados sobre o peito, eram musculosos e
o branco de sua gravata brilhava intensamente contra sua pele. Libby nunca se
importou particularmente com a beleza externa; seu interesse era a saúde de um
corpo. E ela tinha sido olhada antes. Não foi devido ao seu olhar escuro fixo nela
que permaneceu paralisada.
Seus pés não se moveram porque naquele olhar havia um reconhecimento
completo. Ele sabia que era ela.
Eles haviam se encontrado apenas uma vez, dois anos e meio atrás, de
forma muito breve. No entanto, o brilho em seus olhos de pálpebras pesadas,
agora lhe dizia que ele a reconhecia naquele momento como sendo Elizabeth
Shaw.
Com um aceno régio, ofereceu-lhe um sorriso lento e confiante de pura
crueldade.
Foi tomada pelo pânico. Era necessário apenas uma pessoa para
desmascará-la. Se não se movesse rapidamente agora, este homem com os olhos
afiados e sorriso perigoso faria isso.
O criado de sua irmã no palácio, Ali, nunca escreveu nada nessas cartas que
pudesse identificar qualquer um deles - sem saudação, sem nome, sem título - no
caso de aqueles que não eram simpáticos à sua senhora as interceptassem.
Ela me pede que implore que permaneça como está, porque ele teme seu
retorno e não cessa suas ameaças contra os que lhe são leais. Ela insiste que
chegará um momento em que seu retorno não colocará ninguém em perigo. Até
lá, ela lhe pede paz, assim como eu.
O Desejo
Inspiração
Uma Proposta
Acordo de Cavalheiros
As posses de Libby estavam espalhadas pelo seu quarto. Íris embalou livros,
modelos e instrumentos em um baú de viagem, enquanto Alice arrumava as
roupas. Quase todas as evidências de sua feminilidade seriam deixadas na casa
de Alice por medo de que os servos a descobrissem.
― Alice, por favor, empacote um vestido e roupas de baixo. ― Não achava
que ele iria querer que posasse com roupas masculinas, e ela poderia escondê-las
no baú trancado e lavar as roupas de baixo aos domingos.
― Não estou inteiramente decidida a deixá-la sozinha naquela casa com
ele, Elizabeth ― disse Alice, colocando em seu baú de viagem uma pilha de
gravatas recém-adquiridas.
― Mas ficou muito feliz quando acreditou que eu estava fugindo.
― Casamento, sim. A coabitação é outra questão.
― Coabitação? ― Iris estava olhando para elas.
― Na casa dele, serei homem ― Libby disse a Alice.
Alice franziu os lábios. ― Para todos, exceto para ele. ― Seu cérebro girou
em torno do assunto final, como sempre fazia. Não contara nem a Alice nem a
Iris sobre os termos da barganha - sobre posar para ele. Queria confessar a elas
agora. Mas se ele estava mantendo os segredos dela, ela deveria manter os dele.
― Alice, ficarei bem. Ele me disse que não gostaria de me ver ou ouvir, e
estarei muito ocupada de qualquer maneira.
― Esta é a aventura mais emocionante que eu já tive, ― Iris disse: ― e
nem é minha aventura!
― Aventura, de fato ― Alice disse com um olhar atento.
Três horas depois, quando o coche de aluguel se aproximou da casa na qual
iria morar até o retorno do seu pai para a Escócia, o estômago de Libby estava
em nós, as palmas das mãos desconfortavelmente úmidas e as suíças já estavam
coçando. Mas ignorou tudo. Pois isso não era uma aventura, não era um jogo
feito por diversão. Isso era real. A sua vida. O seu sonho.
A carruagem parou e ela pulou para fora, divertindo-se com a liberdade de
movimentos oferecida pelas calças e sem a prisão dos espartilhos.
― Esta é a casa ― ela indicou ao cocheiro, em tom baixo. Quanto mais
praticava o estilo de falar de Joseph Smart, mais naturalmente isso acontecia.
Ela contou os cinco degraus para a varanda. Nem todas as casas na Cidade
Velha de Edimburgo tinham escadas na entrada. Ou ele era masoquista, ou
tinha tido uma razão para comprar esta casa que tornava os degraus um
incômodo necessário.
A porta era de carvalho polido numa elegante fachada de arenito. Levantou
a mão para bater, depois fez uma pausa. Não era uma convidada. Ele lhe dera
uma chave.
Os nervos atravessaram seu estômago.
Depois que o cocheiro depositou o baú de viagem no vestíbulo, fechou a
porta. Afastando o chapéu da cabeça, se permitiu respirar.
― Cortou seus cabelos.
Sua voz era fluida e suave, como as profundezas de um riacho rolando
sobre as pedras, contornando-as conforme passava. Ele era uma silhueta na luz
no extremo oposto do corredor, vestido de preto e encoberto pela quietude.
― Não posso usar sempre um chapéu dentro de casa ― disse ela. ― Não
me importo. Íris - ou seja, minha amiga Iris Tate - recolheu o cabelo e
transformou-o numa peça de aplique, para que eu possa usá-lo quando for
obrigada a ver lady Constance de vez em quando, como eu mesma. Como meu
outro eu, porque sou isso agora. ― A partir deste momento, ela era Libby Shaw
e Joseph Smart.
Indo em sua direção, ele retirou do bolso um relógio de ouro em uma
corrente.
― Tem um compromisso? ― Ela perguntou. Quando ele exigiu que ela o
deixasse em paz, imaginou que raramente o veria. Talvez nunca.
― Tenho ― disse ele. ― Mas eu não estou consultando a hora agora. ―
Ele agarrou sua mão e depositou o relógio. Ela piscou, imaginando se ele pegaria
a mão dela a cada vez que eles se encontrassem, e igualmente esperando que não
e desejando que ele o fizesse. Era uma coisa estranha ser segurada por um
homem que não era seu pai, enervante e ao mesmo tempo agradável.
Emocionante.
― Este era do meu pai ― ele disse. ― Não tenho uso para ele, mas pode
usá-lo. Mais importante, ajudará a desviar a atenção do formato dos seus
quadris. ― A mão dele se afastou da dela.
Ela não era voluptuosa como Constance ou tinha tantas curvas quanto Iris.
Mas esse homem era um artista. Ele via tudo.
Ela encontrou seu olhar e sentiu como se ele a visse - toda ela - com a
consciência mais íntima. Aconteceu o mesmo no seu toque: como se, através de
todos os sentidos, ele estivesse sempre a estudando de perto.
― Obrigada ― ela disse. ― Não precisava.
― Tem cem anos de idade. ― Ele pegou o chapéu. ― Feito por uma antiga
família de relojoeiros que já serviu a califas e reis.
― Verdade?
― Sim. ― Ziyaeddin não resistiu a sorrir um pouco. ― Então, não venda
para pagar seu aluguel.
Sobre Elizabeth Shaw, sempre parecia pairar um zumbido, uma tensão
vibratória. Com o sorriso dela agora, ele sentiu a leve liberação daquela tensão
nela, como se estivesse acontecendo debaixo de suas próprias costelas.
Ela o encantava. Aquela era uma sensação desconfortável, e ele não sentia
um desejo puro por uma mulher há tanto tempo, que o desconcertava. De uma
vida inteira de decisões catastroficamente infelizes e desastres acidentais, essa
estava entre as piores. Não deveria ter concordado com isso. Mas já era tarde
demais agora. Ele deveria simplesmente ficar longe disso. Dela.
Levantou o olhar. ― Mas o senhor não me conhece.
― Eu sei o suficiente. ― E tudo isso o cativava. ― Estarei fora pelo resto
do dia, para que possa se estabelecer no seu tempo livre. Minha criada, Sra.
Coutts, preparou os quartos de cima para a senhorita. Use o que desejar. Como
adivinhou, eu nunca vou lá em cima. Ela e Gibbs poderiam estar administrando
um jogo de dados no terceiro andar e eu não saberia. Não acredito que o façam, a
propósito. Ela ficou muito feliz em saber que outra pessoa iria morar aqui. Mas
se encontrar algum dado, sinta-se à vontade para descartá-lo.
― Não precisa brincar para me deixar à vontade ― ela disse.
― Pelo contrário, estou falando inteiramente a sério sobre os dados. ― Ele
foi até a porta, sentindo o olhar clínico dela sobre ele como se fosse um
espécime masculino incompleto, um corpo a ser estudado em sua imperfeição.
Assim era melhor. Ela nunca deveria saber que, mesmo com roupas de
menino, ela despertava o homem real. Não seria nenhuma vantagem para eles.
― E depois que me estabelecer? ― Ela perguntou.
― Depois? ― Suas narinas alargaram.
― Vai me deixar sozinha também?
Aha. Ela parecia entender os homens afinal.
― Sim. Exceto uma vez por semana. Nesses dias, por uma hora, a senhorita
é minha.
― Conforme combinado ― disse ela depois de uma pausa. ― Foi isso que
quis dizer ontem quando perguntou se eu estava preparada? Quis dizer preparada
para posar para o senhor? Pois cumprirei meu lado do nosso trato. Farei qualquer
coisa para ter sucesso.
― Acredito nisso. ― Ele se virou para ela, olhou em seus olhos sinceros e
para o rosto cheio de determinação. ― Mas não. Não foi isso que eu quis dizer
quando perguntei se estava preparada.
― Então, preparada para o quê?
― Viver entre os homens todos os dias. Aprender seus caminhos, imitá-los
e fingir ser o que não é, para que eles não a conheçam pelo que realmente é.
Estar sempre sozinha. Isso é o que eu perguntei, Srta. Shaw. Está preparada para
isso?
― Sim ― ela disse, com o queixo firme sob as horríveis suíças. — Porque
tenho de estar.
Ele se permitiu sorrir.
― Sabe disso ― ela disse. ― Acabou de me testar. Quando disse, a
senhorita é minha, queria ver se eu recuaria. Se mostraria medo.
― Possivelmente. Ou talvez me dê mais crédito pelo desapego do que
mereço ― ele disse honestamente, seu olhar deslizando para seus lábios
momentaneamente. Os lábios, ele ainda não tinha conseguido que ficassem
perfeitos. Mas o faria.
A aldrava soou na porta da frente.
Na varanda estava um rapaz de roupas puídas, segurando uma pesada arca
de madeira nos braços.
— Meu baú médico! — Ela disse em um timbre totalmente alterado, baixo
e gutural. — Onde achou isso?
O garoto sacudiu a cabeça em direção à rua. — Atrás do pub, senhor.
― Como foi parar lá? ― Ela perguntou.
― Eu vi o cocheiro carregar com o resto da bagagem, mas depois, de volta
para o coche ― ele disse. ― Eu vi ele indo embora, então eu segui ele. Acho
que ele não achou nada que ele gostou, porque deixou no beco, mas eu digo que
a caixa é tão boa quanto ouro, até vazia! Mas quando vi que a caixa era de um
médico, eu disse pra mim mesmo: “Se um ladrão roubasse a bolsa do médico,
que cuidava da mamãe depois que o tear desmoronou e quebrou a perna dela
em dois, ela nunca mais ia andar de novo! ” ― Ele estufou o peito em direção a
ela. ― Eu não peguei nada.
― Obrigado por sua honestidade. Como está a perna da sua mãe agora?
― Está tudo curado. ― Ele balançou a cabeça, indeciso. ― Mas ela tem as
dores, no local, uma coisa horrível.
― Isso não é incomum em um osso quebrado gravemente que foi
consertado. Quanta carne, ovos e queijo macio sua mãe come?
Ele enrugou a testa. ― Temos um domingo de galinhas.
― Todos os domingos?
― Nãooo. Só enquanto o pai estiver em casa depois que volta da viagem.
― E ela come a pele e a gordura, ou você?
― Dá para os pequeninos, eles são gêmeos, senhor.
― Claro que ela faz. Qualquer boa mãe faria isso. ― Ela colocou o baú no
chão, destrancou-o e retirou uma grande garrafa marrom. ― Este é o óleo de
noz. ― Ela envolveu as mãos do rapaz em torno dele. ― Sua mãe deve engolir
uma colher de chá todos os dias. Depois de uma ou duas semanas, acho que ela
achará o desconforto menos pesado.
― Bebendo óleo?
― Este óleo em particular - e alguns outros, mas este é o que tenho em
mãos no momento. É muito valioso ― ela disse, suas mãos ainda cercando as
dele. ― Não quero que o venda.
― Minha mãe vai vender para pagar o aluguel!
― Ela não deve. Ela deve consumi-lo todos os dias ou não se recuperará
totalmente, e ela não será capaz de se sentar confortavelmente diante do tear
novamente. Então, aqui está o que deve fazer: esconda em algum lugar que ela
não possa encontrá-lo e adicione à comida dela. Eu geralmente não aprovo
mentiras ― ela lançou um olhar rápido para Ziyaeddin ― mas deve fazer isso
por ela. E quando a garrafa estiver vazia, volte aqui e me dê um relatório. Se
estiver ajudando a aliviar sua dor, eu darei mais uma. Se não, vamos encontrar
outra solução.
― Sim, doutor!
Ela o soltou. ― Agora guarde isso para que não quebre.
O rapaz puxou o boné e saiu correndo. Ela segurou o baú médico.
― Eu não sei como eu poderia ter esquecido isso. Devo ter chegado mais
ansiosa do que pensei. ― Seus olhos estavam preocupados e ela segurou a caixa
no peito como se fosse uma criança. — E agora eu acabei de entregar o presente
que trouxe para o senhor em agradecimento por me receber.
― A garrafa de óleo?
― Na minha pesquisa, aprendi que o óleo de noz é o meio preferido para a
pintura devido à sua leveza e que não amarela com a idade, mas que muitos
pintores acham muito caro usar regularmente. Essa garrafa em particular foi
derivada de nozes inglesas. São deliciosas, mas suponho que isso dificilmente
importaria para o senhor, é claro, nem o custo do óleo. Pelo mobiliário em sua
casa e suas roupas, obviamente caros, e entendo que suas pinturas são muito
caras.
― Pesquisou óleos de pintura?
― Claro. Se eu for viver com um artista, deverei saber o que ele aprecia.
Sinto muito por ter que dá-lo.
Tinha que dá-lo, como se não houvesse outra escolha a não ser ajudar a mãe
do rapaz, que ela nunca conhecera.
― Eu não sinto muito ― ele disse, abrindo a porta. ― Não precisa me dar
presentes. ― Ele estava começando a pensar que a presença dela em sua casa era
presente o suficiente. ― Bom dia, Sr. Smart.
Aliados
Charles Bell os visitou dois dias depois da jovem se mudar para a casa de
Ziyaeddin e interromper completamente sua paz. Seu rosto, sua voz e a maneira
como ela se movia eram enlouquecedores. As calças, o casaco e as suíças
deveriam repeli-lo. Mas não. Saber que um corpo feminino estava se escondendo
dentro dessas roupas o tornara sedento por ela. Era pura insanidade.
O fato de que ele parecia não controlar sua língua com ela, era uma falta de
disciplina que nunca conhecera antes.
Quando Bell entrou em sua sala, Ziyaeddin se viu esperando que ela
fracassasse, que o cirurgião descobrisse sua artimanha e partisse furioso.
Com um olhar firme e mão estendida, ela cumprimentou o famoso
cirurgião. Falou com sabedoria e em um ritmo que parecia tanto distrair quanto
impressionar Bell. Um escocês de cerca de cinquenta anos e um homem de
profunda fé e brilhantismo científico, Bell tinha um ar pensativo e olhos
inteligentes. Ziyaeddin confiava nele.
Depois de meia hora, Ziyaeddin se desculpou. Visitando a Sra. Coutts na
cozinha, assegurou-se de que ela colocasse a mesa de jantar apenas para dois e
depois se retirou para os seus aposentos.
Duas horas depois, o falso garoto apareceu na porta de seu estúdio.
― Ele me convidou para acompanhá-lo à Royal Infirmary amanhã! Ele
deseja ver como aplico meus conhecimentos ao examinar pacientes. Fui
obrigada a inventar um tio falecido que era cirurgião na América. Ele me
perguntou de onde eu tinha conseguido todo o meu conhecimento e eu não
poderia inventar um tio inglês ou escocês, é claro, porque ele seria capaz de
pesquisar sobre isso com muita facilidade, mesmo que meu tio estivesse no
serviço colonial.
― Ofereço minhas condolências pelo falecimento de seu tio americano.
Seus olhos brilhavam como se o sol os iluminasse por trás. ― Preocupa-me
que os médicos ou enfermeiras possam me reconhecer. Mas encontrei um ontem
e ele não me conheceu. E o Sr. Bell acredita que sou um rapaz! Ou melhor, um
menino, por causa da minha aparência jovem. Sinto alguma culpa por fingir ter
quinze. Aos vinte anos, não é de se admirar que eu tenha adquirido um vasto
conhecimento de medicina.
― Claro que não ― ele murmurou.
― Mas aos quinze realmente parece impressionante. No entanto, todo
mundo acredita nisso. Isso é incrível. Maravilhoso! E o senhor tornou isso
possível. Sou mais grata do que pode imaginar. O Sr. Bell e eu discutimos as
vantagens de fazer cursos na universidade. Naturalmente, posso aumentar esses
estudos com cursos em uma escola particular de cirurgia. É aqui onde pinta?
Ela parecia nunca respirar quando falava assim, com tanta animação,
espírito e energia. À maneira de uma carruagem de seis cavalos correndo ao
longo de uma estrada ou de uma escuna em plena viagem cortando o mar, ela era
sedutora, apesar das calças, apesar do seio achatado, do cabelo curto e das suíças
falsas. Apesar de tudo.
Como tudo isso acabaria, ele não poderia imaginar. Nada bem,
provavelmente.
Ele cometera um erro terrível.
― Sim ― ele disse. ― Aqui é onde pinto. Lembre-se de que pedi para não
ser incomodado.
― Esta é uma ocasião excepcional, é claro. ― Ela gesticulou para a tela em
seu cavalete. ― Conheci o casal que está pintando uma vez em uma festa, com
Constance. Ela está sempre me arrastando para festas, na esperança de encontrar
um rapaz que eu possa suportar por tempo suficiente para permitir que ele me
corteje. Não posso conter minha felicidade! Quero comemorar. O senhor não
gostaria de vir beber uma cerveja comigo agora? Nunca fiz uma coisa dessas,
mas Archie Armstrong mencionou isso no outro dia. Sei que os jovens gostam
de beber cerveja. Preciso me acostumar a isso, de modo que, se algum dia for
obrigada a beber cerveja com meus colegas, o álcool não subirá à minha cabeça
com excessiva rapidez.
Ela se equilibrou nas pontas dos pés na porta, emoldurada pela escuridão, a
luz repousando nos ossos altos das bochechas coradas, a testa pálida e os cachos
dourados, como se temesse se estabelecer e ser desalojada rapidamente.
Ele deveria se afastar dela.
― Archie Armstrong? ― Ele disse em lugar disso.
― Eu o conheci no dia em que o senhor me viu na dissecação. Sou grata
por aquele dia, que esteve lá e me reconheceu. Não acredito que nosso acordo
seja justo, pois há muito mais vantagens para mim do que para o senhor.
As suíças horripilantes eram insuficientes para mascarar sua beleza
vibrante. Charles Bell, o tal Archie Armstrong e todos os outros homens que ela
encontrou enquanto usava esse disfarce, que não puderam ver que era uma
mulher, eram imbecis.
Mas sempre foi sua maldição ver o que os outros não viam. ― Eu tenho
tudo o que preciso. ― Ele não acreditava nisso. Não mais.
― No entanto, estou ciente da disparidade. E grata. Obrigada. Não posso
agradecê-lo...
― Se chorar, este arranjo está acabado.
― Não estou chorando. Nunca choro. Só quero agradecê-lo.
― Já me agradeceu. Nós temos um acordo. Nada mais precisa ser dito
sobre isso. ― Ele se afastou dela e pegou seu pincel. Ele precisava da madeira
entre os dedos. ― Há lágrimas em seus olhos.
― A cola faz com que eles irritem. Preciso visitar o farmacêutico que gosto
em Leith, como Elizabeth Shaw, é claro, para pedir-lhe que crie um composto
menos nocivo.
― Faça isso. Bom dia, Srta. Shaw.
― Deveria sempre me chamar de Sr. Smart. Para que não erre
acidentalmente em público.
― Quando está vestido como Joseph Smart, deve sempre falar comigo na
voz dele. Então não errará acidentalmente em público.
― Touché. O senhor, Ibrahim Kent, não é tão estúpido afinal.
Agora ele não conseguia resistir a olhá-la. ― Não pensa que sou estúpido.
― Não. ― Ela mordeu os lábios e as suíças se projetaram absurdamente.
― Então virá comigo beber uma cerveja agora para comemorar?
― Eu não vou. Nunca vou. Vá agora.
Ela permaneceu. Ele podia senti-la ali, como se sua curiosidade e alegria
expansiva estivessem estendendo a mão e o tocando.
― Ibrahim Kent não é o meu nome ―ele disse e ficou abruptamente ciente
do alivio da pressão sob suas costelas.
― Não é?
Ele olhou para ela.
― Qual é o seu nome, então? ― Ela perguntou.
― A senhorita, ao meu ver, se dirigirá a mim apenas como Mestre.
― Não farei nada do tipo ― ela disse após o riso. Era curto, agitado e
musical à maneira de um tambor, e maravilhoso.
― Então não fale comigo em absoluto. ― Ele era definitivamente incapaz
de não sorrir. ― Agora, retire-se.
Com uma chama brilhante em seus olhos, ela virou e se foi.
Ele estava no inferno. E no céu, de uma só vez. O único consolo: era
temporário.
DURANTE CINCO DIAS, Libby não viu o homem em cuja casa ela
morava. Embora longe daquela casa, sua vida tornou-se francamente
inacreditável, dentro da casa tudo permanecia tão igual quanto seu dono, com a
exceção de um intruso pequeno e imprudente.
Em suas minúsculas pernas, entrou rapidamente na sala onde Libby
guardara os livros de medicina, arremessou-se na lareira para rolar com alegre
abandono nas cinzas, atravessou as pernas da mesa e saiu correndo pela porta,
deixando atrás de si um rasto de poeira.
Ela estava determinada a memorizar o comentário de George Kellie sobre
os benefícios derivados da compressão pelo torniquete. Mas a madrugada estava
rapidamente se tornando manhã e ela deveria acompanhar o Sr. Bell até a Royal
Infirmary. Lá ele a apresentaria a um cirurgião que a aceitaria como aprendiz.
Ela aparou o cabelo de novo e, antes de sair de casa, guardou as partes cortadas
para moldar suíças mais adequadas para um jovem de quinze anos. Isso levaria
tempo.
Apagando a vela, seguiu o rastro de cinzas até a cozinha.
― Sra. Coutts, suponho que tenha notado que um leitão está correndo pela
casa.
― Sim, moça. ― Ela estava pressionando a massa em uma forma.
― É para jantar?
― Nada de carne de porco nesta casa! Alho francês, ervilhas e torta de rim
para hoje à noite.
― Parece que o Sr. Kent não janta em casa com frequência.
― Ele está jantando no Gilded Quill.
― A cafeteria em que artistas e escritores se reúnem? Ele prefere jantar lá?
A Sra. Coutts deu-lhe um rápido olhar. ― Agora mais do que antes.
Claramente, ele havia mudado seus hábitos por causa de sua exigência de
não convidar ninguém para a casa.
― Sinto muito que tenha que preparar o jantar só para mim ― ela disse. ―
Posso ajudar?
― Nada disso, moça. Fico feliz que tenha vindo para ficar. O patrão está
sozinho demais neste grande lugar vazio. É uma bênção que esteja aqui. ― Ela
espanou as mãos no avental e deu uma pequena marmita fechada para Libby. ―
Isso vai mantê-la até chegar em casa hoje à noite.
Casa. Como se esta fosse realmente sua casa e não simplesmente um
esconderijo para lançar sua artimanha.
― Se o porco não é para ser comido, por que está na casa?
― O patrão está em um de seus projetos, eu espero. Agora vou ao mercado.
O Sr. Gibbs chegará em breve, então é melhor que se esconda. ― Com uma
grande cesta pendurada no cotovelo, a Sra. Coutts partiu e Libby foi até seu
quarto. Quando entrou, ela tocou as pontas dos dedos na pintura, exatamente
onde havia tocado em seu primeiro dia nesta casa e todos os dias desde então. A
textura áspera e esburacada da tinta lhe dava conforto. Preocupações surgiam em
sua cabeça - sobre sua preparação para estudar medicina formalmente, seus
bigodes com costeletas e o cirurgião que encontraria hoje. No entanto,
deslizando as pontas dos dedos sobre os pés dos garotos correndo no mercado, a
calma espalhou-se sob suas costelas. Como era singular que uma imagem de
estranhos em uma terra estrangeira parecesse a coisa mais segura e familiar de
seu mundo agora.
Pegando uma tesoura da penteadeira, as mechas de seu cabelo e o adesivo
nocivo, começou a trabalhar.
O Silêncio
Despertar
Uma Interrupção
Ela deveria se mover. Ela deveria sair. Ela deveria pelo menos virar-se até
que ele vestisse uma camisa.
Em vez disso, o olhava e seu coração pulsava como um tambor de batalha
contra suas costelas, suas bochechas e seu corpo inteiro enchiam de calor, e mil
perguntas clamavam sair de sua língua. Ele se abaixou e segurou a bengala
apoiada no batente da porta. O tecido solto na perna direita do calção estava
preso. Obviamente, o pino não havia sido anexado cirurgicamente. Não era de se
admirar que ele tivesse tanta dor; ele estava andando com uma peça mal
adaptada e ineficiente. Ele não disse nada. Exceto pelas profundas inalações e
exalações que deslocavam as sombras através dos contornos de seu peito e
abdome, ele não se movia.
O leitão atravessou a sala e voltou para o quarto de dormir.
― Aparentemente ― ela disse ― está contente em ter me revelado aqui e
agora vai voltar para sua cama e aos doces sonhos dos inocentes.
― Por que está aqui? ― Ele perguntou em um tom nada notável, como se
não estivesse vestindo apenas calções e de pé com o cabelo úmido e pingos de
suor acariciando sua musculatura soberba. ― Está bem?
― Não. Eu estive no pub com amigos, e acho que não percebi, até esse
exato momento, como estou embriagada. Eu vim para...
Ele caminhou em direção a ela. Sem o apoio sob a perna direita, os
músculos de seus braços, ombros e peito tremiam com o extraordinário esforço.
Mas ele mal mancava, efetivamente usando a bengala como uma perna. Uma
cicatriz de dois centímetros de comprimento esculpia uma faixa delgada em sua
cintura.
― Eu vim para lhe dizer o quanto o adesivo funciona bem ― ela avançou.
Ela já tinha visto corpos de homens antes. Era uma cientista médica, filha de um
médico. O torso nu masculino não passava de uma coleção de músculos e ossos
e - ah, meu Deus, ele era primorosamente belo. ― É suave. ― Tão lindo. ― E
flexível. E ainda mantém as suíças firmemente. Em apenas dois dias a irritação
da minha pele desapareceu.
― Sei o quão bem isso funciona ― disse ele, parando tão perto que ela
podia sentir o calor de seu corpo no ar frio entre eles, e assistir os músculos
relaxarem em beleza esculpida. ― Eu testei completamente antes de dá-lo.
Outras pequenas cicatrizes marcavam a carne perfeita aqui e ali. Ela queria
perguntar-lhe sobre elas. Então queria explorar cada uma com os dedos.
― Percebo isso, é claro ― disse ela. ― Mas...
Ele levantou a mão envolvendo o rosto dela. Ela não resistiu ao impulso de
seu aperto que virou o rosto para cima quando os dedos dele afundaram em seu
cabelo.
Na escuridão, seu olhar sobre as feições dela era como a meia-noite.
― Não deveria estar aqui. ― Sua voz era áspera, mas seus dedos estavam
entrelaçados em seu cabelo e ele estava tão perto - tão perto - como se não
tivesse ideia de que seu corpo se aproximava do dela.
― Está me dizendo que eu não deveria estar aqui e me segurando, de uma
só vez. Saiu como um sussurro esganiçado. ― Isso é irracional.
Ele estava olhando para suas feições, uma de cada vez, estudando como
sempre fazia, mas de forma diferente agora, como se ele tivesse todo o tempo
livre do mundo para fazê-lo.
― Não deveria estar aqui ― ele repetiu. Então seu olhar mergulhou em
seus lábios.
Explosões de prazer fizeram seu corpo parecer puro. Vulnerável. Queria
encostar sua bochecha mais confortavelmente na mão dele, ser segurada, virar
seu rosto e sentir a sensação da palma dele contra seus lábios.
― Eu queria agradecê-lo ― ela disse.
― Já me agradeceu.
― Admito que a cerveja me roubou o pensamento apurado. Mas acho que
eu teria vindo aqui para compartilhar essa notícia, mesmo sem a bebida. É isso,
como vê.
Uma gotinha de umidade fez uma trilha ao longo de sua bochecha para se
agarrar a sua mandíbula, que estava escura com o crescimento da barba. Ela
tinha o louco desejo selvagem de lamber essa trilha e provar seu sabor salgado.
Colocou as pontas dos dedos no peito dele. Sua respiração engatou e sua
mão caiu do rosto dela.
Colocando os dedos sobre o músculo peitoral, ela levou a palma da mão até
a pele dele. Seus batimentos cardíacos eram rápidos, sua carne quente e úmida.
Ela o afetava.
Sua mão, rosada de esfregar, brilhava completamente contra sua pele
marrom dourada. Olhando para os mamilos, ela sentiu os dela se arrepiarem até
os picos ficarem doloridos. Como se sentiria ao pressioná-los contra seu peito
firme, para dar a seu corpo o que obviamente queria?
Seria bom. Tão bom.
Deslizando a mão sobre as costelas, explorando a beleza controlada dele,
ela se inclinou para frente.
Então sua mão estava pairando no vazio.
Ela o viu atravessar o estúdio e entrar no quarto dele. A porta se fechou.
Livrando-se da paralisia, ela retornou ao seu quarto em uma confusão.
Removendo o roupão e a camisola, ela subiu sob as cobertas e sentiu o tecido
macio deslizar sobre sua pele, acariciando-a como havia tentado acariciá-lo.
Ele a achava linda. Sua carne respondeu ao seu toque. Por que ele não
permitia isso?
Seu corpo estava esticado de tensão, sua cabeça nadando. Os picos tensos
de seus seios praticamente choravam de necessidade. Deslizando os dedos sobre
os seios, ela acariciou as pontas firmes e um gemido começou em sua garganta.
Em torno dos mamilos enrugados, seus seios eram macios. Ela os embrulhara
dezenas de vezes, achatando-os o máximo possível, mas nunca fizera isso -
nunca se permitiu sentir sua própria carne. Que tipo de médica ela seria para
ignorar uma resposta física que poderia facilmente estudar?
O tipo de pessoa que nunca sentiu essa reação física - essa luxúria - antes de
viver nesta casa.
Deslizando as palmas das mãos sobre as curvas de sua barriga e quadris, ela
explorou, notando as sensações que as carícias despertavam. Seus lábios se
separaram, sua respiração acelerara e ela não estava pensando em medicina.
Estava pensando nele, em como seria as mãos dele ali, onde as dela exploravam,
revelando-se nesse exame voluptuoso, essa fantasia que vinha com tanta
facilidade.
Talvez ele a achasse apenas bonita como objeto de estudo, assim como ela
achava seus pacientes fascinantes. Talvez não despertasse nele o desejo de olhar
para ela - ouvir sua voz, tocá-la, encontrar seu olhar - despertado nela.
Isso explicaria tudo.
Ela deslizou os dedos entre as coxas. A doce urgência cresceu quando ela se
permitiu pensar em sua beleza masculina, seu cheiro de suor e colônia, e sua pele
sob os dedos, que agora estavam despertando seu próprio corpo, acariciando,
sondando, escorregadios, molhados e desenfreados. Retratando a mão sobre ela,
arqueou na carícia. Um choro de prazer escapou entre seus lábios. Com os
cobertores emaranhados sobre ela, tentou se imaginar como as outras mulheres:
aos vinte anos de idade, esposas agora, que conheciam o toque de um homem.
Mas ela não era como as outras mulheres. Ela era um homem.
Capítulo 12
Um Pedido
À LUZ DE uma única vela, Libby estava tentando ler o pequeno texto em
um volume de ciência química que havia sido impresso para formigas lerem,
quando a porta da sala de estar se abriu. Levantando a cabeça, ela apertou o
olhar para as sombras.
― Oh ― ela disse. ― O que está fazendo fora de sua caverna?
Ele sorriu, apenas ligeiramente, mas acendeu uma onda de prazer em seu
estômago. Era difícil olhar para ele sem lembrar como ela havia sentido tanto
prazer em se tocar enquanto imaginava as mãos dele nela.
Ela queria confessar isso a ele. Às vezes, a necessidade de confessar seus
pensamentos e ações ficava tão urgente e desesperada, que não conseguia pensar
em mais nada. A confissão sempre lhe trazia muito alívio. Mas só sentira
necessidade de confessar tudo com o pai e, às vezes, com Constance e Alice, que
eram como uma família. Nunca com um estranho.
Algo havia mudado entre eles.
― Eu vim me desculpar ― ele disse, permanecendo junto à porta.
Ela se virou para encará-lo e suas saias se emaranharam nas pernas da
cadeira.
― Apenas um mês, e já perdi o jeito de usar um vestido. ― Ela puxou a
bainha. ― Como os cavalheiros afortunados devem aproveitar a liberdade de
movimento em todos os momentos, dia e noite.
― Na noite em que entrei nesta sala para lhe dar o adesivo, a senhorita
usava calças. Por que não hoje à noite?
Ela não sabia.
― Pelo que veio se desculpar? Por assumir o pior de mim? Não precisa, ―
ela disse, voltando-se novamente para seus livros e pegando seu lápis. ― Estou
acostumada a cometer erros miseráveis e todo mundo ficar me achando horrível.
Estou sempre me desculpando com meus amigos por dizer ou fazer algo
dolorosamente errado.
― Sinto muito por falar com a senhorita como eu fiz.
Ela escreveu uma palavra. Não tinha ideia de que palavra era. ― Sobre o
prazer de mulheres e haréns e tal? ― Os nervos estavam agitando seu estômago
novamente.
― Sim.
― Novamente, não há necessidade ― ela disse, escrevendo outra palavra
sem sentido. ― Eu comecei, afinal, mencionando amantes.
Ele não disse nada.
Ela olhou para ele.
― Não foi cavalheiresco de minha parte. ― Sua mandíbula estava
novamente bem apertada.
― Nós poderíamos passar o ano todo insultando um ao outro e depois
pedindo desculpas por isso, eu suspeito.
― Preferiria que não o fizéssemos?
― Por mais chocante que pareça, prefiro. ― Ela se levantou. ― Na
verdade, tenho um favor a pedir-lhe agora. Estive pensando em perguntar sobre
isso desde ontem, antes da infeliz interrupção, e eu gostaria de perguntar ao
senhor agora, em vez de esperar até a sessão de amanhã. Eu prefiro não
perguntar no seu estúdio, para o senhor ver.
― Acho difícil acreditar que há alguma pergunta que não faria em qualquer
lugar ― ele disse com aquele quase sorriso que o deixava ainda mais bonito.
― Normalmente não há. Mas estou me esforçando para respeitar seu
espaço de trabalho.
― Está?
― Sim. Tardiamente. Sabe, deve reconhecer minhas boas intenções em pelo
menos alguns assuntos. Não sou horrível de todo.
Ele caminhou até ela, a bengala fazendo um baque silencioso no tapete.
― Eu não acho que seja, mesmo que parcialmente, horrível ― ele disse,
seu olhar passando por suas feições. Ela supunha que ele sempre olhava para as
pessoas assim, como se estivesse estudando as curvas, formas e tons de seus
rostos, tanto quanto ela estudava as posturas das pessoas, as corcovas e os
joelhos nodosos.
Lirismo.
Quando olhava para ela, ele via poesia?
― Mas o senhor é ― ela disse, sentindo todo o calor da noite anterior
chegar dentro dela com as mãos famintas.
― Eu sou o que? ― Ele perguntou.
― Horrível.
― Dando-lhe livre acesso à minha casa e suportando interrupções em todas
as horas?
― Esta tarde me deixou com a conta depois de me olhar como se eu
estivesse louca.
― Eu tenho uma conta naquele café. Não precisava ter pago. Mas sinta-
se à vontade para subtrair o valor do seu aluguel.
― Ainda não me disse qual é o valor do meu aluguel.
― Não disse? Quão financeiramente negligente eu sou. Então, quanto
deseja pagar? Estarei contente com qualquer soma que goste. Mas não se
esqueça de adicionar algumas libras para espionagem tarde da noite.
― Um pedido de desculpas é obviamente insuficiente para o senhor, afinal.
Eu disse, nunca havia bebido muita cerveja antes. Eu estava confusa.
― Estava desorientada. ― Seu olhar sobre ela estava sombrio e perfeito.
Por tudo que é sagrado, é ainda mais bonito quando está furioso. Como
pode ser? ― Porque é teimoso. Eu não estava espiando.
― Meu inglês às vezes é inadequado. Talvez prefira outro termo?
Desajeitada.
― Não. Pelo amor de Deus, me permite fazer a minha pergunta?
Sentando-se no braço da cadeira diante da lareira, ele gesticulou com a
mão. ― Estou à sua disposição.
― Ontem à noite, no pub, meus amigos estavam discutindo um assunto que
me sugeria uma área de estudo que temo, pode me causar alguns problemas, se
não consideráveis, no futuro. Não só isso, mas ser incapaz de compartilhar até
mesmo conversas casuais sobre isso estão sendo inconvenientes. ― Ele assentiu
encorajando-a a continuar.
Depois da noite passada, não havia outro jeito de afirmar isso.
Ela mergulhou.
― Meu conhecimento de anatomia está falho. Anatomia masculina, em
particular ― ela esclareceu.
Ergueu uma sobrancelha. ― É isso?
― Quando os outros estudantes trocam brincadeiras pueris, fico
visivelmente em silêncio. Meus estudos sobre o assunto estão se revelando
insuficientes para a pretensa masculinidade que estou vivendo.
― Entendo. ― Ele olhou para seus livros empilhados em toda a sua sala de
visitas, sobre os quais ele não disse nada por semanas. Ele era um anfitrião
generoso. Ela estava dependendo disso agora.
― Não examinou cadáveres masculinos? ― Ele disse. ― Aqueles que não
se movem, é claro. ― Ela olhou diretamente em seus olhos. À luz de velas, eles
eram da cor do carvão e, como sempre, muito bonitos.
― Mas aí que está.
― Ah ― ele disse, sorrindo levemente. ― Começo a ver a direção dessa
conversa.
― Me ajudará com isso?
― Seus estudos continuariam a sofrer. ― Os nós dos dedos ao redor do
final de sua bengala estavam brancos. ― Eu, como sabe, não sou um homem
inteiro.
Ela deu um passo à frente. Não foi sábio, especialmente agora que sabia do
que sua proximidade era capaz. Mas ela não podia permitir que nada impedisse
seu projeto, nem mesmo memórias de sua musculatura espetacular.
― Se eu quiser ter sucesso nessa farsa, preciso saber tudo sobre ser homem
― ela disse. ― E não são as pernas masculinas que me interessam agora.
Seu olhar voltou-se para o dela, e naquele momento lhe ocorreu que aquele
homem, que concordara com seus termos para morar em sua casa, não era nem
celibatário por natureza nem inclinado a permanecer assim por muito mais
tempo.
― Não ― ele disse se levantando novamente e elevando-se sobre ela.
― Por favor, não me entenda mal ― ela disse rapidamente. ― Não estou
fazendo uma proposta. Gostaria apenas de uma breve demonstração, uma
demonstração puramente clínica...
― Absolutamente não.
― Ah, por favor ― disse ela, arrastando coragem em seus pulmões. ― Eu
sei tudo sobre a anatomia humana masculina e feminina, exceto a maneira como
um homem vivo funciona. Livros didáticos são frustrantemente enevoados com
os detalhes, o que, sem dúvida, é porque apenas homens escrevem e têm a
intenção de ler esses livros, e todos eles já sabem. Os textos descrevem uma falta
de função em mais detalhes do que uma função saudável, na verdade. E agora, é
claro, nós já conversamos - e brigamos - sobre os assuntos mais íntimos. Eu sei
que é um pedido extraordinário, mas deve concordar que esta é uma situação
extraordinária e não tenho mais ninguém para perguntar. Meu sucesso neste
programa pode depender disso.
― Eu não sou um sujeito para estudo de laboratório ― ele rosnou.
― Nem eu ― ela atirou de volta. ― No entanto, todos os domingos, eu
sento em um banquinho no seu estúdio para ser exatamente isso. Por que é tão
chocante para o senhor que eu queira estudar uma parte sua quando faz
exatamente isso comigo? Meu nariz. As minhas orelhas. Meus dedos. O que eu
sou para o senhor além de uma coleção de peças para ser descrita em grafite?
Como o que eu estou lhe perguntando agora é diferente disso?
― Se não sabe a diferença, Srta. Shaw, então, em nome de todos os seus
futuros pacientes, para não mencionar os cavalheiros que são seus admiradores,
eu me desespero com a senhorita. ― Ele fez uma reverência. ― Boa noite.
Ele a deixou olhando para a porta aberta.
Suas palavras vieram espontaneamente, mas as queria dizer. Que ela era
para ele apenas um modelo - um rosto feminino e uma figura para desenhar, e
nada mais - doeu. Nunca morou sozinha. Agora compartilhava uma casa com um
homem que, apesar de tudo, era tão estranho para ela quanto seus colegas.
Ela era uma curiosidade para seus amigos e para seu pai uma
inconveniência, um fardo, uma responsabilidade que devia ser encorajada a
buscar atividades aceitáveis, se ocupar com pensamentos regulares, ser mantida
em segurança, até mesmo de si mesma, e ser normal. Junto a seu companheiro
de casa, porém, ela nunca se sentiu anormal porque ele nunca esperou que ela
fosse qualquer coisa, exceto o que verdadeiramente era.
Mas isso era falso. Para ele, ela também não era nada além de uma
esquisitice que deveria apenas ser suportada enquanto fosse necessária para ele.
Enquanto permaneceu no reflexo da vela gotejante, a solidão subiu pelo
chão frio, em suas pernas, enroscou-se em torno de sua barriga e encheu seu
peito.
Capítulo 13
Um Retrato
Toda vez que se sentava para posar para ele, ela não dizia nada - nem uma
palavra, nem em cumprimentos nem em despedidas - sem perguntas, sem
monólogos e sem observações francas sobre os assuntos mais inconsequentes.
Ela e o leitão, cada vez maior, entravam e saíam como uma névoa escocesa,
resolvendo uma camada de inquietação que exigia horas para se livrar. Dias.
Ele sentia falta da conversa dela. Seus monólogos. Suas perguntas sem fim.
Seus pedidos ultrajantes.
Era melhor assim. Quanto menos ele a visse, mais conseguiria fingir que
não tinha interesse em mais do que nariz, orelhas e dedos.
Foi então uma surpresa quando, em uma festa na casa de Lady Hart, uma de
suas patronas mais ávidas, a Srta. Elizabeth Shaw apareceu diante dele e disse:
― Eu não sabia que tinha sido convidado para essa festa. Muitas vezes ouço a
Sra. Coutts dizendo ao Sr. Gibbs sobre as festas para as quais o senhor é
convidado e reclamando que não comparece. Mas ela nunca mencionou essa
aqui. O senhor deve ter descoberto o convite para essa festa antes que ela tivesse
a oportunidade de olhar a correspondência.
Ele adorava como a mente dela funcionava: observando detalhes
minuciosos e analisando cada um desses detalhes de cada cenário até uma
conclusão lógica. Seus pensamentos nunca descansavam. Isso fez seu recente
silêncio com ele especialmente preocupante.
― Sim devo ter ― ele disse, observando a forma dela envolta em renda
branca e seda cerúleo que fazia sua pele brilhar e deixava nua uma moderada
exibição de seio rosa suave. ― A senhorita...
― Não ― ela disse. ― Este é um vestido bobo e eu só usei para agradar a
Constance, que o fez para mim porque o tecido combina com a cor dos meus
olhos. Se me elogiar agora, talvez eu tenha que não falar com o senhor por mais
um mês, e isso seria inconveniente. E desagradável.
― Entendo ― ele disse. ― Eu não estava prestes a elogiá-la.
― Não estava? ― Em seu cabelo havia um pente enfeitado com contas
brilhantes, o comprimento de suas mechas trançadas com fita de cetim e
arranjadas como uma coroa. Seus lábios tinham sido suavemente pintados,
obscurecendo seus tons perfeitos. No vale de sua clavícula, havia uma pequena
figura de marfim pendurada em uma corrente de filigrana de ouro. Ele queria
pintar o pescoço e a clavícula. Ele queria pintar cada centímetro dela.
― Então, o que estava prestes a dizer? ― Ela perguntou.
― A senhorita está familiarizada com Lorde e Lady Hart, parece?
― Oh. Conversa de festa educada. ― O brilho em seus olhos diminuiu. ―
Não, não sou. Constance e Saint são, e eles me trouxeram aqui. Papai fez com
que eles prometessem me tirar de casa de vez em quando. Não posso recusar
todos os convites ou começarão a se perguntar onde fui. Mas estou muito feliz
pelo senhor estar aqui porque festas como essa me deixam extraordinariamente
ansiosa e é bom ter um amigo presente.
Um amigo. Que a palavra provocasse instantaneamente, um retumbar
acelerado abaixo de suas costelas era mera prova de sua duplicidade, era uma
farsa.
Ele queria mais do que pintá-la. Ele queria colocar os lábios sobre aquela
graciosa clavícula e fazê-la suspirar. ― Agora vou levá-lo a função ― continuou
ela ― porque a sra. Coutts disse que foi convidado para jantar na casa do
William Playfair. Playfair! O homem que projetou o Surgeon’s Hall! No entanto,
não me convidou para comparecer com o senhor para que eu pudesse conhecê-lo
e a infinidade de cirurgiões influentes nesta cidade que, sem dúvida, participarão
também. Por que não?
― Não é sábio ser visto desnecessariamente juntos na sociedade.
A testa dela franziu. ― Porque ser visto sempre na companhia de jovens
sem conexões sociais impressionantes prejudicaria sua reputação como um gênio
artístico da moda?
― Ao contrário, por ser visto sempre na companhia de um jovem sem
família aparente ou amigos, que está morando na minha casa, encorajaria fofocas
do tipo que não desejo para a senhorita. Fofoca maliciosa que poderia prejudicá-
la.
Observar os pensamentos atravessarem seus olhos era puro prazer.
― A senhorita entende? ― Ele perguntou.
― Entendo. Obrigada. Mas, ― ela disse, voltando abruptamente a ficar
animada, ― estou morrendo de vontade de saber o que o senhor tem desenhado
de mim.
― Está?
― Sim. Claro.
― Mas tem feito questão de manter silêncio quando se senta para posar.
― Não. Estou simplesmente ficando em silêncio. Foi o que me pediu.
Estou respeitando isso. E louca de curiosidade. O que está desenhando? Meu
cotovelo? Minha narina esquerda? A ponta do meu sapato? ― Seus olhos
rolaram para cima. ― Esta onda exasperante que não ficará presa, não importa o
quanto eu tente domá-la?
― A senhorita toda.
Ela o observou por um longo momento.
― Está dizendo isso agora para provar algo ― disse ela. ― Está se
esforçando para provar que pode ser um homem melhor do que eu.
― Não estou. ― Ele estava começando a ver que era de fato, um homem
muito menor do que ela. Sua honestidade e desejo sinceros de sempre fazer o
bem pelos outros, mostravam-lhe o oco em que sua vida se tornara. ― Depois
que me proclamou por desenhá-la em partes, comecei a desenhar o todo. Não
sou totalmente irrecuperável, senhorita Shaw. ― Pelo contrário, um canalha do
pior tipo. Estava desenhando-a toda, porque a mulher curiosa, ambiciosa,
inteligente e com humor, havia saído de seu estúdio, deixando uma concha. Ao
desenhar a totalidade dela, estava balançando diante de si mesmo o prazer que
ele sabia que não deveria ter.
― Não discuti com o senhor ― ela disse. ― Não mais do que o senhor me
questionou, pelo menos. Mas eu gostaria de ver o desen... – Oh! ― Seu olhar
assustado estava na porta. Agarrando seu braço, ela posicionou seu corpo atrás
dele. ― Ah, o senhor e a senhorita Plath. Não quero vê-los. Me esconda.
Do outro lado da sala, um jovem e uma mulher saudaram seus anfitriões.
Irmão e irmã por sua aparência, eles estavam elegantemente vestidos e
obviamente populares: quando entraram, várias pessoas imediatamente se
aproximaram deles.
― Por que não quer vê-los? ― Ele disse por cima do ombro, sabendo que
deveria dizer a ela para soltá-lo, mas totalmente incapaz de formar as palavras.
Ter as mãos dela sobre ele era sua fantasia todo dia. Melhor, toda hora.
― Porque ele é o assistente do meu professor de anatomia e me viu várias
vezes como Joseph Smart, mas não me reconheceu. De modo nenhum! Pode
acreditar nisso? É um salafrário.
― A jovem companhia masculina que tem tido, está influenciando no seu
vocabulário, ao que parece.
― Além disso, eles são terríveis. Os Plaths, quero dizer. ― Seu aperto era
tão forte em torno de seu cotovelo que ele podia sentir a impressão de cada um
dos dedos dela. ― Quando tentei ser amigável com a Srta. Plath, ela e suas
amigas me esnobaram. Então ele me encurralou em um lugar isolado e enfiou a
língua na minha garganta. Ele é uma cobra. Foi noje...
Ziyaeddin se afastou dela.
― O que está... ― Ela o circulou e bloqueou seu caminho. ― O que está
fazendo? ― Ela sussurrou.
― Indo dizer ao Sr. Plath que ele deve colocar suas contas em ordem
porque amanhã ao amanhecer uma bala vai passar a residir entre os olhos dele.
― O quê? ― Ela se inclinou e segurou seu antebraço novamente, como se
fosse perfeitamente aceitável fazer isso em uma festa, cercada por outros
convidados, vários dos quais estavam agora observando-os. ― Está louco? Não
vai chamá-lo e desafiá-lo.
Ele puxou o braço. ― Afaste-se.
― Não. E os seus esforços para não chamar a atenção para que não me
reconheça?
― Não a senhorita. Sim à Joseph Smart. Agora, senhorita Shaw...
Ela o agarrou novamente. ― Lutarei com o senhor no chão para impedi-lo
de falar com ele ― ela sussurrou com força. ― Sei que o senhor é mais alto e
mais musculoso do que eu. Inteiramente. Mas sou mais forte do que aparento e
está em desvantagem em termos de equilíbrio nessa perna estúpida. Então, se
quiser que eu faça uma cena aqui com o senhor agora, vá em frente e tente se
aproximar dele.
A imagem dela lutando com ele no chão parecia muito maior que sua maior
fantasia. Ele soltou seu braço dela mais uma vez.
― E nem pense em enviar um desafio a ele também ― ela avisou.
― Eu não estava considerando isso. ― Em vez disso, esperaria até que ela
partisse para fazê-lo.
― Os homens são irracionais. E se ele escolhesse espadas em vez de
pistolas?
― Então eu diria a ele que o espaço entre suas costelas logo será o lar da
ponta de uma lâmina. ― Ele teve que sorrir.
Ela recuou. ― Não ia realmente desafiá-lo, ia?
Ele ainda iria. ― Não?
― Eu não sei. Mas, na verdade, tenho uma pergunta para o senhor. Uma
pergunta não relacionada ao que gostaria de fazer.
― Outra?
― Sim. E não, não é de forma alguma semelhante à última pergunta que lhe
fiz. Pedido, quero dizer. Então, talvez possa deixar de lado sua artilharia e voltar
sua atenção para assuntos mais produtivos. Deus do céu, os homens são
beligerantes. Essa é uma qualidade de masculinidade que eu nunca adotarei.
Uma batalha de inteligência, com certeza ― ela admitiu com um encolher de
ombros.
Do outro lado da sala, o Sr. Plath estava agora observando-os. Seu olhar
deslizou para baixo, ao longo do comprimento da bengala, e seu lábio se curvou.
Uma onda de raiva quente e aguda paralisou Ziyaeddin.
Impotente.
Ele era impotente ― não como Dallis havia sugerido semanas antes, mas de
todas as maneiras que importavam, como estivera no convés anos antes, como
continuava a ser na questão de sua irmã e no bem-estar do seu povo, e agora
mesmo como um defensor dessa mulher inteligente e forte que não precisava de
campeão, mas cujo campeão ele queria ser.
― O que deseja me perguntar? ― Ele disse.
― O que é isso? ― Ela disse em seu lugar. ― O senhor parece ... não
parece ... o senhor.
Ele mal sabia quem ele era agora. Não era um príncipe. Não era um homem
completo. Um pintor de cotovelos, narinas e sapatos. ― Está com raiva ― ela
disse.
― Está realmente zangado, não é? Neste minuto. Não como estava com
raiva de mim na rua. Por que está ... Por causa do que eu disse sobre o seu
equilíbrio?
― Não. Qual é a sua pergunta?
― O senhor não está bem agora. Quer dizer, está tão bonito e elegante
como sempre. Mas posso ver que algo está errado.
Plath desviou o olhar deles, mas Ziyaeddin não conseguiu abrir os dentes.
― Estou bem.
― Não pode mentir para mim. Sou treinada para perceber quando algo está
errado com uma pessoa. Nós devemos ir para casa agora.
― Eu ficaria feliz em levá-la para casa. Mas nós, Srta. Shaw, não estamos
aqui nesta festa juntos.
Ela piscou.
Então, como se ela estivesse trazendo-o para o foco de seus olhos, brotou
abruptamente, na boca de seu estômago, forte e profundo em seu peito, a
consciência do que ele sentia.
Ele queria estar em uma festa junto com ela - estar em qualquer lugar com
ela. Ele queria Elizabeth Shaw em seus braços. Ele queria que o mundo soubesse
que essa mulher brilhante, ambiciosa e escandalosamente corajosa pertencia a
ele.
― Quão certo está ― ela disse, hesitando nas palavras. ― Agora, mestre
químico, diga-me seus pensamentos sobre os seguintes problemas...
― Libby, que bom vê-la falando com o senhor Kent. ― Lady Constance
Sterling apareceu no braço do marido. ― Boa noite senhor.
― Milady. ― Ziyaeddin fez uma reverência.
O ouro de seu cabelo era como a luz do sol de verão e sua pele creme de
pêssego. Seus movimentos eram graciosos, sua forma voluptuosa. Ela era um
retrato de glória arredondada, tudo isso ornamentado em riqueza e estilo. Com
essa mulher como sua única companheira de infância, não era de admirar que
Elizabeth Shaw não pudesse ver seu próprio apelo.
Ele acenou para o marido de Constance. Saint Sterling não era nem
aristocrata nem político, e sim um espadachim profissional. Ao longo de dois
anos de lições, Saint ensinou Ziyaeddin a usar sua perda a seu favor quando
estava lutando.
― Eu não sabia que se conheciam ― disse Constance.
― Nós nos encontramos em Haiknayes uma vez ― ela respondeu tão
suavemente como se não estivesse morando em sua casa agora. Quando
necessário, ela era uma boa atriz.
― Sim, é claro ― disse Constance, seu olhar se deslocando lentamente
entre eles. ― Deveria ter adivinhado. ― Sua leitura foi muito aguda.
― Se me der licença, senhoras, Sterling ― ele disse com o ar lânguido de
um poeta entediado que adorava em festas, uma atitude que sugeria que, embora
ele gostasse da companhia atual, a inspiração o chamava e ele deveria prestar
atenção. ― Devo me retirar.
― Está indo embora? ― O olhar de Elizabeth disparou para Plath. ―
Agora?
― Foi um prazer. ― Ele se moveu em direção à porta. Ela o seguiu.
― Não deve desafiá-lo ― ela disse.
― Eu não pretendo. ― Não esta noite.
― Então por que se apressa a sair, se não para desafiá-lo escondido
enquanto estou falando com os outros?
― Não se esconde um desafio.
― Alguém poderia tentar esconder um desafio de uma mulher que não o
aprova.
― Lembre-se, senhorita Shaw, pelo que me contou, Lady Constance a leva
a festas com a esperança de descobrir um homem cuja companhia possa
suportar.
― Oh. Estávamos conversando por vários minutos, e agora o estou
seguindo até a porta. Está correto, claro. Constance começará a investigar.
― Ela parece ter a mesma mente inquisitiva que sua irmã. ― Era
perfeitamente tolo que ele sentisse orgulho em dizer isso.
― Vá então. Mas devo ter sua promessa de que não desafiará o Sr. Plath,
esta noite ou nunca.
― Se pedir, güzel kiz, lhe darei minha promessa.
― Isso não foi uma promessa. Foi uma declaração de sua disposição em
fazer uma promessa se eu pedisse, o que não fiz. Eu exigi isso.
― É inteligente demais para minhas artimanhas transparentes ― ele disse.
― Eu sou. ― Seus lábios estavam comprimidos. Ainda assim, eles eram
uma tentação. Cada pedaço dela era uma tentação.
― Dou-lhe minha palavra, São Jorge. ― Ele se curvou.
― São Jorge? Ah, claro. Quando me viu debaixo daquela estátua de São
Jorge na biblioteca de Haiknayes. Mas disse que eu parecia um anjo aos pés do
triunfante Lúcifer.
― A senhorita lembra.
― Tenho uma memória extraordinariamente boa.
― Também se lembra que corrigiu meu catecismo?
― Eu o lembrei que Lúcifer de fato perdeu a batalha. No entanto, me disse
que ele conquistou um reino próprio no final ― disse ela pensativa agora. ― O
senhor é cristão? Ou é muçulmano?
― Não sou nenhum dos dois. ― Não mais. Não desde que o mar havia
tomado sua fé. ― Nem cristão, nem muçulmano, “nem judeu, nem grego, nem
escravo, nem livre”.
― Ha. Esse verso da Bíblia continua “nem macho, nem fêmea”. Como é
inteligente, senhor. ― Seu tom era seco. ― E bem versado nas Escrituras
Cristãs.
― Quando em Roma . . .
― Se faz como os romanos, como diz o ditado, suponho. ― Ela ofereceu
um pequeno sorriso. Estava satisfeita agora e era tudo o que ele desejava, dar
prazer a ela, mesmo um prazer tão humilde.
Mas ele não havia aprendido seu catecismo cristão em Roma.
Pelo contrário, no Egito.
Durante aqueles anos no exílio, jamais imaginara, nem remotamente, esse
futuro. Um futuro em que uma jovem com lábios que o enlouqueciam, o fitaria
com tanto prazer e tantas perguntas no azul-mediterrâneo de seus olhos.
― Tem outra pergunta para mim? Oh mulher que triunfa sobre dragões! Ou
posso finalmente sair?
― É uma questão importante, na verdade. Mas deve esperar porque agora
está sendo ridículo.
― O que um homem mais deseja ouvir. ― Ele não pôde resistir à
oportunidade de tocá-la. Pegou sua mão, curvou-se e levou-a aos lábios. ― Boa
noite, senhorita Shaw.
Ela permitiu que sua mão descansasse na dele.
― Boa noite, Sr. quem quer que seja ― ela terminou com uma voz incerta -
uma voz totalmente inadequada para seu personagem. Dentro dos olhos azuis
estava o amanhecer, o meio dia e o anoitecer de uma só vez, uma plenitude de
emoção que fez a íris brilhar como estrelas.
Puxando a mão, ela girou e desapareceu entre os convidados.
Ele foi para casa.
E criou uma obra de arte.
A Donzela
Todos os Segredos
Desejo
Libby não queria ouvir de novo o calor da raiva em sua voz ou sentir a
confusão que a inundava quando a estudava com seus olhos inconvenientemente
bonitos. Então, na manhã de sexta-feira, quando descobriu o pequeno pote de
adesivo vazio, esperou até que ele não estivesse em casa para reabastecê-lo da
garrafa grande em sua sala de trabalho.
Ele saía todas as noites desde que ela confessara a verdade sobre seus
pensamentos, sem dúvida para evitá-la.
Seguindo o pai de casa em casa dos nobres pacientes, Libby viveu como
convidada indesejada em suficientes lares de aristocratas - muitas vezes se
escondendo em armários e escadarias - de onde vislumbrava cavalheiros se
relacionando com criadas. A posição de seu anfitrião em relação a dependentes
do sexo feminino que viviam em sua casa fazia dele o homem mais incomum da
Inglaterra ou o mais honrado.
Talvez, de onde ele veio, os costumes fossem mais rígidos. Talvez lá, os
senhores não atacassem as mulheres como na Inglaterra.
Vela na mão, ela bateu na porta de seus aposentos.
Quando não houve resposta, ela entrou.
A cidade à noite brilhava pelas janelas do estúdio: uma luz através das
cortinas entreabertas no edifício, em frente às cavalariças, um poste de luz e uma
lua prateada envolvida em estrelas. Ela olhou para a porta do quarto dele,
contando vinte antes de se abaixar em frente ao bar e abrir o painel.
Adornada em tons suaves, a câmara ostentava apenas uma cama de dossel
com cortinas azuis da meia-noite, um cabide e um espelho vertical. No chão
havia um tapete semelhante a outros na casa, de design oriental e cores ricas e
escuras. O espaço combinava com sua elegância, e cheirava a cravo, tinta e algo
mais que ela não conseguia definir, mas provavelmente era apenas ele - sua
essência única.
Deixando o quarto de dormir, atravessou o estúdio até o cavalete sobre o
qual estava sentado um retrato de uma anfitriã da sociedade que Libby conhecera
na companhia de Constance. A Sra. Lily Jackson era jovem e luxuriosamente
vestida. O fundo de sua cabeça parecia inacabado: as pinceladas ásperas e
visíveis, de modo que a pessoa parecia estar se arrastando envergonhada para
fora da sombra, inclinando-se da moldura como se tentasse pedir ajuda.
O artista assinou a peça; estava de fato terminado. Havia rumores de que o
marido de Lily Jackson batia em seus servos com um chicote de carruagem. E
Libby notara que a Sra. Jackson usava pó espesso, talvez para cobrir escoriações.
Este retrato mostrava a verdade da mulher. Era ousado e extraordinário.
Estudando as cores e texturas da obra, ela sentiu o artista nela: sua graça, sua
gentileza e beleza, sua escuridão e sua aguda compreensão da natureza humana.
Assim como ele a entendeu, ele entendeu essa mulher e as outras que ele
desenhou e pintou, como se pudesse ver suas almas. Deixando a pintura, ela
entrou na sala de trabalho.
Estreita e bem iluminada pelo luar, cheirava aos óleos usados na pintura e,
fracamente, aos produtos químicos. De um lado havia uma mesa alta sobre a
qual garrafas e potes estavam cheios de óleos e cores, um pote de terracota cheio
de pincéis e outro com ferramentas para fazer pincéis: pelos grossos, cordões de
algodão, cabos de madeira, ponteiras de metal, facas e uma pequena caixa de
latão. Um queimador e vários frascos de vidro e pipetas ocupavam o final da
mesa perto da janela.
Telas esticadas sobre molduras de madeira estavam empilhadas no chão
contra a parede. Todas, exceto uma, tinham sido pintadas. Pousando a vela,
Libby puxou a tela em branco da pilha.
Uma mulher nua olhava de volta para ela.
Esticada em um divã, a mulher estava gloriosamente relaxada, um braço
pendurado na parte de trás da mobília e as pontas dos dedos da outra roçando o
chão, a cabeça pendendo para o lado e as coxas descansando suavemente juntas.
Não havia artifício para pose ou pintura, apenas honestidade e beleza. Esta
imagem era uma adoração do corpo humano.
Pela redondeza de seus membros e as joias em seus dedos, Libby assumiu
que o modelo era uma aristocrata. O fato de uma mulher de riqueza ficar sentada
nua para um pintor era certamente incomum. Libby sabia que homens de meios
muitas vezes mantinham mulheres contratadas para fazer sexo. Talvez esse
modelo fosse sua amante. Talvez à noite ele saísse para encontrá-la.
Quão tola ele devia pensar que ela ingenuamente pedisse beijos, a ele que
viajara pelo mundo.
Ela puxou outra das telas para frente e encontrou outro nu. Este também era
enfeitado e suavemente redondo. Mas desta vez Libby a reconheceu. Essa
mulher era casada.
Ela o ouviu entrar no estúdio com tempo suficiente para vislumbrar outra
tela, outro nu, outra mulher casada.
― Aha ― ele disse, chegando perto o suficiente para olhar por cima do
ombro. ― Obviamente eu estava errado quando vi a luz aqui e assumi que o
porco havia aprendido a carregar uma vela, ― ele disse secamente. ― Pois a
Sra. Coutts e o Sr. Gibbs não estão aqui, e tenho certeza de que a proibi de entrar
nos meus aposentos particulares.
― Sou mais esperta que um porco e tenho polegares móveis, portanto,
carrego uma vela com facilidade. Eu vim por mais adesivo. Eu conheço essa
mulher, mesmo que ela esteja olhando para longe. Eu reconheço aqueles sinais
no pescoço dela.
― Claro que sim. ― No ar frio que ainda se agarrava ao seu casaco,
persistia o cheiro de bebida.
― Ela é Lady Ainsley ― ela disse. ― Uma vez em um baile nas Salas de
Assembleias, fiquei tão desconfortável que me distraí estudando a pele de todo
mundo. Suas andanças e posturas também, é claro. ― Ela gesticulou para a
pintura. ― Ela parece tão entediada aqui como ela estava naquela noite.
Ele riu.
Mas ela dissera apenas para contrariar. A noite daquele baile Lady Ainsley
adotara um ar de grandioso tédio. Nesta pintura, em vez disso, ela brilhava com
sensualidade.
― Ela posou nua para o senhor? Todas essas três mulheres o fizeram? Seus
maridos permitiram isso?
― Pressuponho que seus maridos não sabiam disso.
― Elas eram, elas são suas amantes? ― Ela olhou por cima do ombro para
ele. ― E não se atreva a ficar com raiva de mim por perguntar isso. Não dessa
vez.
― Não eram. Elas não são. Simplesmente desejavam que seus retratos
fossem pintados.
― No entanto, essas pinturas estão aqui. Presumo que as mulheres
temiam reclamá-las, mas também não desejavam que fossem vendidas.
― Sim.
― Por que vieram até o senhor?
― Deve perguntar isso a elas.
― Eu não posso, é claro. ― Ela olhou novamente para baixo no retrato. ―
É incomum que elas desejassem ser retratadas nuas, que não tivessem vergonha
de ficar nuas na sua frente.
― Será que uma dama sente vergonha por se despir diante de sua criada?
Uma imperatriz não sai de seu banho diante de sua escrava? ― Sua voz era sem
paixão. Não havia julgamento, nem sentimento de espécie alguma. Aquele
nivelamento a alarmou.
― O senhor não é um servo. É um cavalheiro. Sem dúvida elas
simplesmente o viram como um artista, como excêntrico e tal.
― Possivelmente.
― Isso o irrita. Que elas estivessem dispostas a posarem para o senhor
dessa maneira. Não é?
Houve um momento de pausa antes que ele dissesse: ― Não mais.
Ela permitiu que as pontas dos dedos traçassem a borda da pintura.
― Não perguntarei por que os pintou, apesar da raiva. Pois é evidente em
cada pincelada. Foi a mesma razão que me levou a estudar medicina. Estou
enamorada do corpo humano. Eu sou levada a repará-lo assim como o senhor é
levado a representá-lo.
― A senhorita não é levada a repará-lo. É chamada para curar.
Ela o sentiu tão intensamente atrás dela. Seu corpo se mexeu com o calor.
No entanto, havia algo novo também, que ela não havia sentido antes. Ele se
considerava seu protetor. Ele queria mantê-la segura, mas tão diferente da
maneira em que seus amigos e pai sempre tinham feito. Eles sempre queriam
protegê-la do pântano de seus próprios pensamentos e desejos. Ele queria
protegê-la para que ela pudesse perseguir seus sonhos.
Ele estendeu a mão e colocou as pontas dos dedos ao lado das dela no
quadro da pintura.
― É assim que eu queria pintá-la ― ele disse.
Ela virou a cabeça. Cada sombra em seu rosto, cada brilho de luz em seu
cabelo parecia precioso agora, muito efêmero, como se, caso ela se movesse, a
noite o roubaria.
Surgiu um desespero nela, uma necessidade selvagem de proximidade - por
intimidade com ele.
Ele soltou a mão da pintura e encontrou o seu olhar. Ela podia tocá-lo.
Poderia simplesmente estender a mão e envolver as mãos em volta do rosto dele,
sentir o calor, a beleza e a força dele, atraí-lo para ela e finalmente conhecer a
carícia de seus lábios nos dela. Ela poderia satisfazer a ânsia que só ficava mais
forte quanto mais tempo a negasse. ― Desejou ― ela disse. ― No passado?
Aqueles lábios perfeitos fizeram um leve sorriso de um lado, o sorriso que
cravou tal desejo dentro dela.
― Desejei ― ele disse ― antes de saber que a senhorita não poderia ficar
parada por tempo suficiente para isso.
Não era a verdade. Ela viu a verdade em seu olhar que agora mergulhava
em seus lábios.
Ela podia levantar os braços e envolvê-los nos ombros dele, afundar as
mãos no seu cabelo e sentir o corpo dele contra o dela. Havia tão pouco espaço
entre eles, ela pouco teria que se mover para fazê-lo.
Andando em torno dele, ela saiu para o estúdio e caminhou rapidamente em
direção à saída.
― Deixou sua vela ― ele disse atrás dela.
― Fique com ela. Fique com ela, é claro! ― Ela gritou e não parou a fuga.
Ele queria protegê-la. Ela não podia negar-lhe essa satisfação.
Sua Alteza,
A dor no tornozelo direito de Ziyaeddin agora era uma ilusão, pois não
havia nada lá para sentir dor. Ao consertar sua perna há sete anos, Seamus Boyle
havia realizado um milagre.
Amassando a carta, ele entrou em seu estúdio.
― Deveria me dizer seu nome.
Ela estava empoleirada no banquinho, a luz do inverno trazendo à vida sua
tez que ultimamente se transformara em palidez. Ela usava uma saia até os pés e
um xale completamente enrolado na parte superior do corpo, que ela segurava
firmemente sob o queixo.
― Obviamente, foi um erro permitir que soubesse que Ibrahim Kent não é
o meu nome.
― Se fosse um erro, não teria revelado isso para mim.
Ele recostou-se contra o batente da porta. ― Sou conhecido por ter feito
coisas tolas antes.
― Tais como?
― Como convidar uma mulher tenaz a morar na minha casa enquanto se
fazia passar por um jovem estudante de medicina. Se eu quisesse que o mundo
soubesse meu nome, eu usaria.
― Eu não sou o mundo.
Ela era. Para ele, ela era.
― Ainda faltam dezesseis horas para que possa chegar a subir nesse
banquinho ― ele falou como se não se importasse que ela estivesse aqui,
voluntariamente, quando poderia estar - deveria estar - em outro lugar. ― O
relógio, ou talvez o seu relógio inteligente, funcionou mal?
Suas mãos se afrouxaram e o xale caiu no chão.
― Só decidi fazer isso esta manhã ― disse ela. ― Mas descobri que estava
ansiosa demais para esperar até amanhã às dez horas. Ouvi o Sr. Gibbs sair.
Então aqui estou.
Nua da cintura para cima, ela estava pálida como a luz que a iluminava,
exceto pelas sombras sob seus seios, braços e seu umbigo, e as auréolas que
eram do mesmo tom de seus lábios: escuro e rosado. Ele a viu de repente: as
costelas mais baixas que se projetavam um pouco e davam lugar a uma cintura
lisa; o arrepio formigava os finos pelos prateados em seus antebraços; os ossos
quadrados de seus ombros que permitiam que os jovens a confundissem com um
deles; o pulso que batia em sua garganta; e os olhos azuis fixos nele.
Inteligentes e determinados, aqueles olhos o desafiavam a negá-la.
― De acordo com os termos do nosso acordo, que eu só entendi
plenamente ontem ― ela disse, ― vim posar para o senhor.
Capítulo 17
O Retrato
Um Ato de Amor
O Toque
Resgate
E a lista continuava. Foi ela quem escreveu, é claro. Ziyaeddin sabia disso,
assim como sabia que não fora outra pessoa que havia entrado em sua casa e
empilhado livros ao longo do lado esquerdo do vestíbulo e em todas as
superfícies da sala, espalhado papéis pela escrivaninha e deixado pratos de
comida na mesa da sala de jantar, em torno do qual um pequeno rato estava
cheirando.
Sua maleta ocupava o chão ao lado da mesa da sala de estar. Nos meses
desde que ela veio morar em sua casa, ele nunca tinha visto a maleta a menos
que a mulher estivesse ali também. O sobretudo, o chapéu e os sapatos na porta
da frente ainda estavam molhados.
As estradas de Londres estavam todas lamacentas e congeladas em algumas
partes, e a jornada para o norte, lenta. Era algo extraordinário montar de novo,
colocar as pernas ao redor da cintura de um belo e poderoso cavalo e senti-lo sob
ele. Um milagre que ela tornara possível.
Ele pretendia finalmente agradecer e explicar-lhe a real razão pela qual
nunca tivera uma prótese adequada antes. A verdade. Ele não sabia exatamente
como faria isso sem ficar de olho nela e, com isso, corria o risco de agarrá-la e
beijá-la. Mas ele faria. Já passava da hora.
Ele tinha ido a Londres para falar com o secretário de Relações Exteriores
da Grã-Bretanha, Lorde Canning. Afundando-se na diplomacia, ele havia feito
um progresso modesto em convencer Canning e o rei de que a guerra entre a
Rússia e o Irã - e ardendo nas fronteiras de Tabir - prejudicaria os interesses da
Companhia Britânica das Índias Orientais naquela região. Também enfraqueceria
ainda mais a fronteira oriental dos otomanos. O duque de Loch Irvine o
acompanhara na jornada. Revelando nada do segredo de Elizabeth, Ziyaeddin
admitiu sua preocupação com ela.
Gabriel havia dado sua posição sobre o assunto claro: Se quebrar seu
coração, vou matá-lo.
Ziyaeddin não pretendia morrer pela mão de seu melhor amigo. E longe de
Edimburgo, ele ganhou clareza de perspectiva sobre sua hóspede, que estar
sempre a uma distância de agarrar e beijar não permitia.
Doravante ele estava determinado a manter uma distância mais sábia dela.
Era inteiramente possível recuperar o desapego inicial de seus encontros,
confinando-os apenas a sessões de desenho de uma hora inteiramente vestida.
Sem conversa.
E não haveria mais fantasias. Ou confissões.
Nenhuma.
Ele tinha isso sob controle.
Deixando o baú de viagem no vestíbulo desordenado para Gibbs guardar na
segunda-feira, ele foi para seus aposentos. O estúdio estava gelado. Ele acendeu
uma chama na lareira adiante, então puxou as cortinas para permitir a luz do dia.
Escócia no final do inverno: cinza, chuvosa, fria. Um dia ideal para pintar.
Ele tinha sentido falta deste estúdio, seu cavalete, um pincel entre os dedos.
Dentro do seu quarto de dormir, largou o estojo de viagem e só então notou
o caroço na cama. Abrindo a cortina inteiramente para que a luz do dia no
estúdio iluminasse o colchão, ele viu o intruso: uma mulher magra e esbelta,
com cabelos curtos, enroscada em uma bola apertada no centro da parte superior
da cama.
Elizabeth Shaw. Na cama dele.
Cada uma das mentiras bem-intencionadas que ele disse a si mesmo nas
últimas semanas se desintegrou.
Suas bochechas e sobrancelhas eram fantasmagóricas, o cabelo
escorregadio contra o couro cabeludo e uma camisola branca volumosa cobrindo
cada centímetro de pele, exceto no rosto. Ela mal se mexia, sua exalação era tão
fraca que o movimento de seu peito nem sequer tocava os joelhos dobrados dela.
No entanto, a cada inspiração, o corpo dela tremia.
Ele pegou o cobertor do pé da cama e colocou sobre ela. Ela não se mexeu.
Acendendo o fogo aqui também, ele foi até a cozinha, onde colocou uma
chaleira no fogão e preparou o chá. Uma tarefa simples que exigia tranquilidade
e paciência. Ele precisava disso agora.
Quando chegou pela primeira vez à Grã-Bretanha, quebrado e zangado, ele
protestava contra qualquer coisa que se movesse mais rapidamente do que ele - o
que sempre acontecia, mas também contra todos os homens que se recusavam a
ajudá-lo a derrubar o usurpador do trono de seu pai.
Depois de passar meses provando sua identidade ao príncipe regente e ao
ministro das Relações Exteriores, ele soubera que o general capturara sua irmã e
a forçara a casar-se com ele para legitimar seu governo entre as tribos locais.
Quase sem hesitação, o embaixador russo na Grã-Bretanha dissera à Ziyaeddin
que, se voltasse a Tabir, o general mataria Aairah, seus filhos e qualquer pessoa
leal a ela.
Abalado, ele implorou a seus anfitriões por ajuda. Sem sucesso. Tabir era
um aliado muito pequeno para se arriscar a enfurecer os russos. E o general
contava com o apoio dos Khans locais, que recebiam subornos de armas e ouro
russos para travar pequenas guerras entre si.
Sua Alteza é bem-vindo para permanecer como um convidado de honra da
Grã-Bretanha para sua conveniência.
Para sua conveniência, como se permanecer a cinco mil quilômetros de
onde pertencia fosse uma questão de conveniência.
Então, quando saía de uma carruagem num dia cinzento de Londres, um
assassino havia mergulhado uma faca no lado de seu corpo. Quebrado, sem
esperança, ele quase quis a morte. Foi quando Gabriel o convidou para ir a
Escócia. Lá, o duque disse, ele poderia continuar sua petição aos ministros,
regentes e embaixadores estrangeiros enquanto se curava.
Na Escócia, finalmente, ele aprendera a quietude. E paciência.
Mesmo quando Elizabeth posou para ele, ela não estava totalmente imóvel.
Ela fazia perguntas, mudava de posição, contava histórias, olhava em volta.
Agora sua absoluta quietude em sua cama era preocupante. Dado seu último
encontro, sua presença em sua cama era preocupante.
Subindo as escadas, ele foi ao quarto dela. Como a sala de estar, estava
abarrotado de livros e papéis misturados com caixas de ossos de gesso, penas
quebradas, uma caixa transbordando com copos de produtos químicos vazios.
Era o caos - um caos ordenado de forma única.
Procurando por chaves no bolso do casaco úmido pendurado no cabide, ele
destrancou o baú e encontrou o que procurava: as meias rasgadas. Dezenove
meias rasgadas, cada uma enrolada num cilindro limpo.
Ele examinou o quarto novamente, e o pavor formigou sua espinha.
Descendo para a sala, ele acendeu o fogo e olhou através de uma pilha de
lixo. Algumas foram cobertas em ambos os lados com listas: uma lista de títulos
de livros, outra de cura para os sintomas de doenças do fígado, um terço de
sapateiros em Edimburgo, e mais, todos concluídos completamente. Outra pilha
trazia equações às pressas de letras e números e símbolos que ele não
reconhecia, todas também atingidas.
Em uma folha de papel do bloco com tinta marrom escura, ela desenhara
um torso rudimentar, depois vários outros vestidos em casacos, cada um com
uma quantidade crescente de forro nos ombros. Ao lado deles, as equações
indicaram o volume de preenchimento necessário para cada um. Ziyaeddin
reconheceu o casaco; ele a havia pintado usando-o.
Ele olhou para o estudo preciso dos ombros adequados para a idade jovem
de Joseph, e a parte de trás de sua garganta ficou quente.
Tanto pensamento. Tanto trabalho. No entanto, ela persistiu.
Deixando de lado a página, ele deixou cair o lixo nas chamas.
― Não faça isso.
Ela estava na porta. A camisola caindo a seus pés, o tecido grosso engolia
sua forma, mas abria o decote em seu peito, onde ela não tinha atado. Quase tão
branca quanto o linho, o rosto parecia mais magro, as bochechas e o queixo
pronunciados, os olhos de um azul vivo cercado por sombras cinzentas.
― Bom dia para a senhorita também, Bela Adormecida ― ele disse,
pegando outra pilha de restos, seus batimentos cardíacos duros. ― Como foi seu
repouso? Imaginou ser a dona da casa na minha ausência, não é?
― O que está fazendo? ― Ela levantou a mão para apertar a frente da
camisa fechada. Seus dedos eram ossos cobertos de pele pálida. ― Não. O que
está fazendo aqui?
Não.
― Ela se empurrou para frente, os olhos fixos na mão dele estendida antes
das chamas.
― Não são nada. ― Ele gesticulou com os pedaços de papel. ― Lixo.
Estou ajudando-a - e a Sra. Coutts - a deixar limpa essa pobre sala de visitas. Eu
mal a reconheço. Ou a senhorita, aliás. Deixou de comer?
― Não. Meu peso não é da sua conta.
― Sou retratista. Sendo da minha conta ou não, notarei. ― Ele sempre
notava todos os detalhes dela. ― Está doente? ― Ele perguntou, forçando a
calma em seu tom.
― Não. ― Sua atenção não saía de suas mãos. ― Esta sessão é muito mais
desafiadora do que a anterior. Coloque-as no chão. ― Com um braço estendido,
ela deu outro passo para a sala. ― Por favor.
― Isso ― ele disse, levantando um pedaço de papel à sua frente, ― é uma
lista de itens para comprar na farmácia. Cada item foi cortado da lista. No verso,
há um diagrama rudemente esboçado que foi rabiscado. Ele jogou-o na lareira.
― Não! Pare! Neste momento, pare. ― Ela correu para ele e pegou o
restante da pilha.
Ele pegou outro papel. ― E quanto a este? Uma lista de compras de papel
de carta. ― Incluindo papel de desenho, giz e cerdas de pelo de porco. Itens para
o seu trabalho. No entanto, nenhum deles tinha sido riscado. Sua garganta ficou
espessa.
― Pare! ― Ela agarrou-o com dedos gelados. ― Não são seus para
descartar.
― Está congelada. E descalça ao que parece. Suba as escadas e se vista.
Então venha tomar uma xícara de chá e comer algo.
― Irá queimá-los se eu for. — A pele sobre a boca e os olhos estava bem
esticada.
― O lixo, sim.
― Não. Não pode queimar nada. Deseja que eu falhe?
― Falhe?
― É isso. Deseja que eu falhe.
― Isso também é lixo, é claro.
― Eu preciso disso. ― Seus olhos estavam febris brilhantes no oval pálido
de seu rosto.
― Não pode precisar de um ingresso para a exposição do museu que
aconteceu meses atrás. ― Para o qual ela o tinha convidado para acompanhá-la,
e ele havia recusado.
― Eu preciso. ― Ela agarrou o ingresso.
Ele cercou a mão dela com a dele. ― O que está acontecendo aqui?
― Liberte-me. Ou decidiu que é aceitável me tocar quando eu não quiser,
mesmo que não o faça quando eu peço?
― Está obviamente doente. O que aconteceu enquanto eu estava fora?
― Eu disse, solte-me. ― Batendo a palma da mão em seu peito, ela pegou
os papéis. Eles rasgaram. Ela abriu a mão dele e pegou as sobras. Voando pela
sala, ela os colocou debaixo de uma pilha na mesa.
― Diga-me, Elizabeth ― ele disse, controlando o pânico que o atingia.
Havia passado bastante tempo entre os artistas para reconhecer a loucura. —
Está consumindo bebida alcoólica regularmente? Ou ingere alguma medicação,
talvez?
― Claro que não ― ela retrucou. ― Não é bom para mim.
― Não está comendo. E isso não é normal na senhorita. ― Ele gesticulou
entre eles. ― Esse caos.
― Não sabe nada sobre mim.
― Na verdade, eu sei muito sobre a senhorita. Sei que sua mente é ampla,
sua ambição é alta e sua determinação é ilimitada. Eu sei que é brilhante,
talentosa e possui uma faixa de independência criativa que, se fosse um homem,
já teria atingido a sua fama como cirurgião, mesmo em uma idade tão jovem. E
eu sei que isso não é a senhorita. ― Ele pegou outra pilha de lixo.
― Não, pare! Não deve. ― Um soluço escapou dela. Soava seco, vazio. ―
Como pode agir com tal desrespeito por mim? Como pode querer que eu falhe?
Ele colocou a pilha na mesa e se aproximou dela. Ela recuou para a porta,
mas não cruzou a soleira, seus olhos correndo para as pilhas, para frente e para
trás.
― Não há nada que eu deseje mais do que seu sucesso.
― Quer se livrar de mim, como todo mundo faz depois de um tempo. ―
Contornando-o, ela recolheu as pilhas de lixo e correu para fora da sala.
Ele a seguiu pelas escadas. Ela estava fechando a porta do quarto. Ele parou
o painel com a mão, pressionando-a contra sua força surpreendente. Recuando
de repente, ela deixou a porta se abrir. Vidro quebrando.
― Não! ― Seu grito ecoou contra as paredes. Ela pulou em direção à caixa
de copos quebrados, como se quisesse pegar os cacos irregulares. Ele derrubou a
caixa, sufocando seu grito enquanto a dor cortava a palma de sua mão. Ela caiu
para frente. Ele a agarrou, puxando-a para cima e para longe dos cacos,
arrastando-a contra o peito e envolvendo os braços sobre ela.
― Pare ― ela chorou. ― Não entende. ― Seu corpo convulsionou e seu
soluço balançou através dele. Então outro. Ele segurou-a com força e pressionou
a bochecha contra o cabelo dela.
― Não, eu não entendo o que está acontecendo aqui ― disse ele. ― Mas
eu sei que isso não é você.
― Isso sou eu ― ela sufocou, lutando contra o aperto dele. ― Te odeio.
Odeio sim.
― Eu vivi em um palácio repleto de assassinos. Eu lutei algemado como
um cativo. Morri no convés de um navio em chamas, cortado em pedaços sob o
sol ardente. Posso resistir ao seu ódio por um tempo, güzel kiz.
Seus membros começaram a afrouxar, ela gemeu. ― São inúmeras ― ela
sussurrou.
Ele inclinou a cabeça para o lado dela, soltando o suficiente para testar sua
reação. Ela não procurou se libertar.
― O que são inúmeras? ― Não vozes. Pela graça de Alá, não diga vozes.
― As regras. Todas as regras me dizendo o que fazer, o que não fazer,
como fazer. Eu não posso negá-las. Eu não posso fazê-las recuar desta vez. Deve
me libertar.
― Se eu a libertar, o que fará?
― Trarei o restante dos documentos aqui. ― Sofrimento impregnava as
palavras. Ela pressionou contra seus braços.
― Solte-me.
Ele permitiu que ela escapasse de suas mãos.
― Agora, saia ― ela disse.
― Disse “desta vez”. Isso já aconteceu antes?
― Desrespeita minha exigência quando espera que eu lhe dê privacidade?
Isso é engraçado. Este é meu quarto. Não permitirá que eu fique sozinha? ― A
cor estava no alto de suas bochechas e a raiva pulsava como ondas dela.
Nada poderia ser feito aqui agora.
― Falaremos sobre isso depois ― ele disse, indo para o patamar.
― Nunca falaremos sobre isso ― disse ela atrás dele.
Ele não gostava muito de bebidas. Seu pai tinha sido um homem de grande
fé, e Ziyaeddin não conquistara um apreço pelo sabor quando menino, nem pelo
efeito confuso que dava à mente. Agora ele foi até a sala de jantar e encontrou o
conhaque. Enfaixando a mão ensanguentada com um lenço, ele bebeu um copo.
Então serviu uma dose para ela.
Seus passos ruidosamente desceram as escadas. Passou pela sala de jantar e
saiu da casa. Pela janela, Ziyaeddin viu Joseph Smart: passos rápidos, cabeça
baixa, sem a maleta.
Ele vestiu o casaco e a seguiu, mas ela havia desaparecido. Era domingo;
ela não poderia ir nem ao seu pub favorito, nem à biblioteca.
Dos estábulos atrás de sua casa, ele comandou seu cavalo. A luz do dia
desaparecera e a chuva forte começara a cair. As ruas, sempre calmas aos
domingos, esvaziaram-se.
Ele procurou por uma hora antes de encontrá-la. Ela não era idiota, e andou
até a Cidade Nova, onde os vigias podiam ser encontrados até a essa hora e com
esse clima. Só isso lhe deu alguma esperança; ela não estava tão distante da
razão a ponto de também perder seu bom senso.
― Tem um cavalo ― ela disse sem olhar para ele, continuando ao longo da
trilha. Ela parecia uma criança de rua, encharcada e anêmica. Sua voz estava
cansada, mas nivelada agora. ― Comprou em Haiknayes?
― Eu peguei emprestado. Isso já aconteceu antes? ― Ele repetiu.
― Sim.
― E o venceu.
― Venceu?
― Sim, São Jorge. Venceu esse dragão, devo supor.
― Eu acreditava ter vencido.
― Minha mão está sangrando. Me faria o favor de voltar para casa e cuidar
da ferida?
Ela parou e um grande arrepio pareceu passar por ela. Ela assentiu, virou-se
e começou a andar novamente.
― Aceita levar esse cavalo? ― Ele disse.
― Não sei montar. E o senhor não pode andar essa distância.
― Cavalgue comigo.
― Vou caminhar. Pode seguir na frente. Eu irei diretamente para casa.
― Perdoe-me se não acredito inteiramente na senhorita ― ele disse.
― Não posso mentir. Não tenho permissão para fazer isso.
― E como faz com Joseph Smart? ― Ele perguntou.
― Joseph não é uma mentira. ― Seus lábios estavam cinzas, os olhos sem
esperança. ― Ele é a parte mais honesta de mim.
Andou para o lado dela e se abaixou e ela permitiu que ele a acomodasse na
sela diante dele.
Ela não olhou para ele. Sentada confortavelmente entre suas coxas, com as
costas contra o peito e o corpo entre os braços, ela torceu os dedos na crina do
cavalo e permitiu que a chuva batesse em seu rosto.
Silenciosamente condenou o destino várias vezes, e também aquela loucura
que o fez querê-la mesmo quando ela estava doente e totalmente distante dele.
No entanto, segurá-la, mesmo dessa maneira, era um prazer sublime que ele não
trocaria por nada no mundo.
Ele pensou que ela tinha adormecido. Mas quando eles se aproximaram da
casa, ela passou a perna por cima do pescoço do cavalo e deslizou para o chão
em um único movimento rápido. Foi diretamente para dentro e Ziyaeddin deixou
o cavalo nas cavalariças.
Depois de vestir roupas secas, foi à cozinha em busca de chá.
― Perdoe-me ― disse ela da porta atrás dele. Ela ainda usava o casaco
molhado, calças e suíças. Seu corpo estremeceu como as asas vibrantes de uma
abelha.
― Não precisa pedir perdão ― ele disse.
― Tem que me perdoar ― disse ela com firmeza. ― Diga as palavras.
― Está perdoada. Onde...
― Estou? De verdade?
― De verdade. Onde está o seu kit médico?
Da despensa, ela tirou uma pequena caixa de couro e a destrancou. Parecia
ser uma versão em miniatura de seu armário de remédios. A correta organização
do conteúdo era um contraste marcante com a desordem de seu quarto, do
vestíbulo e da sala de estar.
― Mostre-me sua mão ― disse ela.
A ferida era pequena. Mas ele sabia que ela iria se machucar antes de tudo,
e voltar aqui para cuidar dele, se ele pedisse.
Ela mal o tocou enquanto limpava a incisão, aplicava a pomada e envolvia-
a com um fino pedaço de linho.
― Eu posso controlar ― ela disse.
― Obviamente não, ultimamente. ― Ele flexionou a mão.
― Vai ser desconfortável segurar um pincel por vários dias. Não deveria ter
usado sua mão dominante.
― Eu, reconhecidamente, não tenho prática na arte de me defender de
garrafas quebradas.
― Quando eu tinha dez anos, colecionei mais do que garrafas e papéis. ―
Empacotando as bandagens e limpando, ela manteve a cabeça baixa. ― Naquela
época, era muito pior do que agora. ― Ela levantou os olhos. ― Não pode me
ajudar.
― Mesmo assim...
― O senhor é....
― Imensamente heroico? Tenazmente protetor? Impressionantemente
sensato?
― Difícil de conviver.
Ele reprimiu o sorriso, pois seus lábios permaneciam tensos, todo o seu
rosto era um estudo em tensão.
― Parece que está se movendo com facilidade ― ela disse. ― Tem feito o
que prescrevi?
― Tenho.
― Sente dor?
― Muito pouca, graças a senhorita.
― Como foi a sua visita a Haiknayes? ― Ela ficou rígida, tão diferente
dela, como se castigada. Ou derrotada.
― Eu fui para Londres ― ele disse.
― A Sra. Coutts disse que estava em Haiknayes.
― Isso foi o que eu disse a ela.
― Isso dificilmente importa ― ela disse. ― Desde que o seu propósito era
estar longe de mim, qualquer destino serviria.
― Meu propósito em ir não era estar longe da senhorita. Lamento que tenha
acreditado que sim.
A descrença coloriu seus olhos, mas também provocou um desafio. ― Qual
foi o seu propósito? ― Ela perguntou.
Ele se virou para a chaleira. ― Troque a roupa molhada e depois volte aqui
para uma xícara de chá. ― Ele olhou por cima do ombro. ― Consegue?
― Consigo. Não vai...
― Não descartarei nada. Não tocarei em nada. Esta noite.
Depois de uma hesitação, ela foi embora.
Quando reapareceu na cozinha, usava o vestido azul, mas ele estava
pendurado em seu corpo como em uma barraca de roupas. Ele colocou a lata de
biscoito na mesa.
― Coma dez desses ― ele disse. ― De uma vez só. Pode fazer isso por
mim?
Ela pegou o bule e serviu. ― Por que Londres?
― Não até eu vê-la comer.
― O...
― Também tenho regras, senhorita Shaw, inclusive recusar conversar com
uma mulher que não comeu nada em um mês.
― Não um mês ― ela disse, mordiscando um biscoito. ― Eu não estava
sofrendo quando se afastou, sabe.
― Eu não supus que fosse. ― Ele cruzou os braços e encostou-se no
balcão. ― Quando foi sua última refeição?
― Eu como no pub. O Sr. Dewey está se adaptando às minhas
necessidades.
― Eu não me adaptarei. ― Ele esperou até que ela encontrasse seu olhar.
― Não nisso. Elizabeth, diga-me o que preciso saber para ajudá-la.
― Não pode me ajudar com isso ― ela disse com firmeza. ― Não tem
nada a ver com o senhor, exceto que é difícil para mim ficar sozinha. Viver
sozinha. Quando vivo entre os outros, sou mais capaz de acalmar as regras. Um
pouco. ― Ela virou o rosto para longe dele e pareceu olhar para o nada. ―
Ninguém mais pode me ajudar. Eu aprendi isso há muito tempo.
― Então me diga o que deve fazer para se ajudar.
Ela consumiu outro biscoito.
― As regras de que falou, ― ele disse ― são vozes dizendo-lhe o que
fazer?
Ela balançou a cabeça e o alívio passou por ele.
― Não vozes. Minha voz. Meus pensamentos. Meu raciocínio.
― Não há motivo para economizar pilhas de papel usado.
― Há para mim.
― Então o que é? Acredita que eles são valiosos de alguma maneira?
― Não. Não são valiosos. ― Ela fechou os olhos. ― Eu.
― A senhorita?
― Cada recado... ― Suas mãos se fecharam. ― São pedaços de mim. Não
vê? Não consegue ver porque não posso?
Ele segurou a mão dela.
― Este é um pedaço seu ― ele disse, esfregando a ponta do polegar sobre
os nós dos dedos. ― Esta peça inteligente. E isso. ― Ele disse, estendendo a
mão para afastar o cacho selvagem de sua testa. ― Não aquelas listas velhas.
― Eu sei. Racionalmente, eu sei.
― Estou assumindo que, racionalmente, sabia disso há um mês também.
Tirando sua mão, ela a segurou no colo. ― Eles são pedaços do senhor
também.
― De mim?
― No começo. ― Ela esboçou uma inalação agitada. ― Notas que fiz
enquanto produzia a prótese. E ... outras coisas... sobre o senhor.
Uma lista de sapateiros de Edimburgo. Um ingresso de museu. ― Não
entendo.
Ela se levantou abruptamente. ― Eu estava com medo. ― Seus braços
estavam rígidos, os punhos apertados ao lado do corpo.
― Não acredito ― disse ele. ― A senhorita não. Sem medo. De qualquer
coisa.
― Sim. O senhor saiu daqui mal conseguindo se mover sem dor, eu o
imaginei naquela estrada para Haiknayes e eu estava preocupada com sua
segurança. Percebi que era ridículo. Eu sei que viajou por todo o mundo e
sobreviveu a um perigo muito maior do que uma curta viagem ao interior. Mas
não pude deixar de me preocupar.
― Então me salvou em pedaços de papel usado?
Ela balançou a cabeça. Seus lábios se separaram, o pálido rosa revelando a
sombra seca dentro.
― Elizabeth, o que os pedaços de papel usado têm a ver com sua
preocupação com minha segurança na estrada?
― Se tivesse se machucado enquanto estivesse longe daqui ― disse ela, as
cordas do pescoço se esticando. ― Teria sido porque eu os descartei.
― Isso é irracional.
― Claro que é!
― Elizabeth Shaw, sua mente é extraordinária. Ágil. Brilhante. E repleta de
racionalidade.
Puxando seus lábios entre os dentes, sua garganta trabalhando, ela assentiu.
― Estou aqui ― ele disse. ― Eu estou seguro. Pode descartar os papéis
agora?
― Não ― ela disse trêmula.
― Por que não?
― Só começou dessa maneira.
― Começou?
― No começo, eu não tinha permissão para descartar anotações associadas
ao senhor. Em seguida, anotações associadas à casa. Então... ― Sua garganta se
contraiu novamente.
― Qualquer papel usado? ― As coleções de esquisitices em caixas e caixas
também, sem dúvida.
Ela assentiu. Seu corpo vacilou.
Ele empurrou a xícara para ela. Ela sentou-se novamente e envolveu as
duas mãos ao redor da porcelana, mas seus olhos dispararam em direção à
entrada, como se ela fosse saltar para a sala de estar em um instante.
Ele tocou a mandíbula dela e guiou seu rosto de volta para o dele. ―
Superou isso antes ― disse ele. ― Como?
― Estou tão envergonhada. Eu me odeio por isso. E o senhor também vai,
se já não estiver me odiando.
― Eu não ― ele disse, encostando-se na cadeira e se distanciando dela,
quando tudo o que queria era envolvê-la em seus braços e assegurar-lhe o quão
completamente ele nunca poderia odiá-la. ― Como superou isso no passado?
Ela ficou em silêncio.
― Quando desobedece às regras ― ele disse, ― o que acontece?
― Eu... ― Ela balançou a cabeça. ― Elas me rasgam. Obedecer traz tal ―
ela arranhou a garganta ― tal alívio. ― Seus olhos eram poças de desespero,
mas também pensavam. ― Mas quando sou capaz de negar um anseio,
enfraquece.
Será que o anseio dele funcionaria de maneira semelhante?
― Isso é uma boa notícia ― disse ele. ― Como negá-lo?
― Isto é ... difícil. ― Seus dedos pressionaram na mesa. Ela olhou para a
porta novamente. Ficando subitamente de pé, ela pegou o bule de chá e encheu
ambas as xícaras. Depois foi até o fogão e acendeu o fogo embaixo da chaleira.
― Me distraio com outras tarefas ― ela disse para a chaleira. ― Isso ajuda.
― Entendo.
Ela olhou ceticamente para ele. ― Entende mesmo?
― Estou tentando.
― Às vezes eu apenas cedo parcialmente ao desejo. Isso geralmente
diminui o calor também.
― O calor?
― Meu pai uma vez disse que os desejos pareciam ser como uma febre em
mim que queria consumir tudo racionalmente. ― Um sorriso passou pelos olhos
dela. ― Ele é um médico.
Até mesmo essa pitada de prazer em seu rosto, alargava o peito de
Ziyaeddin.
― Quando era menina, essa febre não a consumiu. Afinal está aqui.
― Não deve me olhar assim, como se eu já tivesse conseguido. Não
entende.
― Explique para mim. Não estou indo a lugar nenhum. Não de novo ― ele
acrescentou.
Seus olhos estavam cheios de dúvida. Mas também determinação. ― Não
foi sua partida que causou isso. Essa é a sua arrogância falando.
Ele reprimiu um sorriso. ― Não é?
― Eu não o conhecia quando tinha dez anos.
Não. Quando ela tinha dez anos de idade, ele havia sido algemado a um
remo no ventre de um navio. ― Embora eu teria gostado de tê-la conhecido
nessa época.
Seu olhar se desviou.
― Meu pai nos levou para Londres. Eu estava acostumada a me mudar.
Mas esse movimento foi diferente. Nós tínhamos deixado todos os nossos
móveis aqui. Havia tanta novidade. ― Sua mão agarrou o cabo da chaleira. ―
Foi quando as regras se multiplicaram.
― Que tipo de regras?
― Todos os tipos. ― Ela olhou para a parede. ― Havia um número preciso
de passos a serem tomados entre a carruagem e a porta da frente, postes de
iluminação a serem tocados em cada caminhada até o parque, uma caligrafia
especial que eu só podia usar para certas tarefas, páginas de livros que deveriam
ser memorizadas antes de poder ir para o próximo, um cão de pano para ser
colocado na cama a cada noite para que eu pudesse dormir. Uma noite, lembro-
me que não consegui encontrar o cachorro. Eu destruí meu quarto procurando
por ele. A criada o lavara e estava molhado em um gancho na cozinha. Eu não
conseguia colocá-lo na cama adequadamente, então o segurei em meus braços
até de manhã e não dormi. Eu peguei um resfriado horrível. Essa foi a única vez
que me lembro de estar doente em toda a minha vida. Logo depois disso,
comecei a coletar itens inúteis.
― Tornei a vida em Londres impossível para meu pai. Voltamos para
Edimburgo prematuramente. — Um sorriso apareceu hesitante em seus olhos. ―
Quando comecei a estudar textos médicos, todas as regras se acalmaram. A pior
delas desapareceu completamente. Está pensando que estou estudando medicina
agora ― ela disse, a ponta do dedo indicador tocando a alça da chaleira, ― mas
isso aconteceu. Novamente. Isso é o que está pensando, não é?
Ele estava pensando em como ele queria que aquele dedo se ocupasse nele.
Todos os dedos dela.
― Talvez ― ele disse.
― Enquanto estava fora, o Sr. Bridges me designou para minhas próprias
operações.
― Parabéns. ― Ele não conseguia desviar o olhar. Observá-la se mexendo -
qualquer parte dela - era uma dor prazerosa que ele não deveria ter negado a si
mesmo nem por um dia.
― Há muita responsabilidade em ser o cirurgião principal. E o inverno
sempre traz muitos pacientes para a enfermaria. Além disso, o novo curso de
anatomia prática é muito mais desafiador do que o último. Eu tenho muito
trabalho. Eu estive poupando o sono.
A imagem dela enrolada em uma bola em cima de sua cama nunca iria
desaparecer.
― Quando está exausta ― ele disse ― as regras ficam mais fortes. Não é?
― Sim.
― Peço perdão por tê-la deixado.
― Não foi sua responsabilidade. Eu deveria ser capaz de comandar meus
próprios pensamentos e ações. Eu sou uma mulher adulta.
Uma mulher excepcional. Mesmo a pele clara e a palidez maçante não
podiam esconder isso.
Ela ergueu os cílios e ele foi pego dentro do azul - seus desejos, seus
batimentos cardíacos, todos os seus anseios.
― Elizabeth.
― Devo derrotar eu mesma este dragão, Ziyaeddin.
Ouvir seu nome nos seus lábios novamente fez seu tolo coração dar
cambalhotas selvagens.
A quietude não natural brilhava em suas feições nuas agora. ― Havā-tō
dāram ― ele se ouviu sussurrar.
― O que isso significa?
― Estou aqui, Elizabeth. Permita-me ajudá-la.
Seus ombros caíram um pouco. ― Perdoe-me por dormir em sua cama.
― Eu sou categoricamente incapaz de aceitar um pedido de desculpas por
isso. ― Um prazer inexorável brilhou em seus olhos.
― No meu quarto ― ela disse, ― há muitas tarefas a serem feitas
perfeitamente a cada noite. Sábado à noite eu estava além da exaustão. Para
evitar ter que fazer todas as tarefas, prometi a mim mesma que faria depois.
― Depois?
― Depois que dormisse. Então eu fugi. O único lugar da casa onde não
havia nada a fazer era em sua cama.
― Não é precisamente o que um homem gostaria de ouvir.
― Isso não é engraçado.
― Não, isso realmente foi engraçado. Trágico. No entanto, divertido.
Lentamente seus olhos arregalaram, e ele ousou esperar que ela estivesse
pensando o mesmo que ele: que o lugar dela era em sua cama.
― Esqueci de fazer as tarefas quando acordei ontem e, quando saí de casa,
esqueci que estava sem minha maleta, ― ela disse. ― Eu estava tão zangada
com o senhor que nem sequer pensei nela.
Ele riu.
― Não devia rir! Normalmente, quando estou com raiva, as regras ficam
ainda mais altas e impossíveis de resistir, não mais silenciosas.
― É capaz de resistir a elas com frequência?
Colocando a chaleira sobre o bloco de ferro na mesa, ela se sentou
novamente.
― Depois de Londres, eu aprendi a fazê-lo. Em vez disso, eu me subornei.
Eu me dei prêmios para ter sucesso. ― Sua testa franziu. ― Eu me sinto como
uma perfeita idiota lhe dizendo isso.
― Prêmios?
― Fiz uma lista das regras.
― Outra lista?
― Uma lista boa. No topo estavam as regras que achei mais fáceis de
recusar. No fundo eram as mais difíceis. Comecei no topo, recusando-me a
obedecer mais facilmente primeiro. Quando conseguia fazer isso todos os dias
por uma semana, eu me recompensava com um presente.
― Pode usar essa tática agora?
Ela balançou a cabeça.
― Por que não? ― Perguntou.
― Eu tenho tudo o que quero.
Ele se levantou e colocou uma xícara e um pires na pia. ― Deve haver algo
que queira, por menor que seja, que ainda não possua. Uma ideia chegará até a
senhorita. ― Ele saiu da cozinha e ela o seguiu.
― Não irá...
― Eu lhe disse que não tocaria em nada na sala de estar. Não essa noite.
― E amanhã? ― Ela perguntou.
― Amanhã irá começar a se cuidar.
Suas mãos se torceram em suas saias. ― Eu posso. Eu devo. Eu não desejo
incomodá-lo.
― Claro que pode. ― Ele sorriu. ― Mas não por isso. Eu compreendo.
― Não me jogará na rua?
Ele se aproximou dela e sentiu toda a necessidade que tentara negar. ―
Realmente acredita que eu poderia fazer isso?
― Não. Amanhecerá em breve. Devo posar para o senhor, já que ontem não
o fiz?
― Neste momento irá subir e vestir o seu traje de aluno. Então, levarei
Joseph Smart para um café da manhã para comemorar a conclusão bem-sucedida
de sua primeira sessão de estudos médicos.
― Isso foi há semanas.
― E eu imploro seu perdão por perder isso.
― Não precisa. Antes de partir, naquela última vez em que o vi, deixou
claro para mim que não me ajudou em meus estudos por minha causa, mas por si
mesmo.
Ele era um prêmio estúpido.
― Eu entendo ― ela continuou, o vinco se formando profundamente na
ponte de seu nariz. ― Não exijo que celebre minhas realizações.
― E se eu quiser?
― Então suponho que irá. ― Os lábios se levantaram de um lado. ―
Príncipes costumam fazer o que bem entendem, afinal de contas.
A dor dentro dele era muito dura e profunda. Não podia escapar disso.
― Eu não a deixarei novamente ― disse ele.
Por segundos que pareciam ter sido anos, ela não disse nada. Então segurou
as saias e subiu as escadas correndo.
Capítulo 21
O Prêmio
QUANDO ELA FOI embora da casa, finalmente largou o jornal que olhava
sem ler, apoiou os cotovelos nos joelhos e pôs o rosto nas mãos. Com a vontade
dela de ter sucesso, a força vulnerável que oscilava à beira de quebrar, seus
inteligentes olhos brilhantes e seus lábios - por tudo que era sagrado, seus lábios
- ela seria a sua morte.
A campainha tocou. Nenhum conhecido o visitaria nessa manhã de sábado.
Pegando novamente o jornal, determinado para realmente lê-lo, ele se acomodou
na cadeira.
A campainha soou novamente pela casa. Ele dobrou o jornal e foi até a
porta.
Um estranho estava na varanda, um cavalo na rua abaixo, escuro de suor.
― Sr. Kent? ― O homem disse.
― Sim.
Ele estendeu uma carta, depois desceu apressadamente os degraus e para
sua montaria.
Ziyaeddin olhou para a frente da carta na sua mão.
Ali nunca havia enviado correspondência por um mensageiro privado
Escrevo com notícias da princesa: a saúde do general falha. Ele não viverá
até o verão.
Seu fim está próximo e, com ele, a restauração da justiça.
A princesa lhe envia agora, um amigo de confiança que irá servi-lo em sua
jornada para casa.
Ali
Ziyaeddin releu as palavras até elas se encontrarem. Sua irmã estaria livre,
seu cativeiro estava no fim, seus filhos a salvo da ameaça. Com a morte do
general, os aliados de sua família se levantariam em sua defesa. Era tudo o que
ele desejara.
No entanto, sua respiração falhava.
Tabirshah. Rei de Tabir.
O Fogo
Ele não voltou para casa até o amanhecer. Desmoronada no banco da janela
de seu quarto, onde tinha caído em um sono intermitente, despertou com o som
da porta da frente começando a se fechar.
Ela desceu as escadas.
― Conseguiu encontrá-lo? Estou feliz que tenha retornado.
― Esperava que eu não voltasse? ― Ele disse, tirando o casaco.
― Saiu no meio da noite para procurar no submundo por um homem vil, e
tinha acabado de dizer que um de nós poderia ter que sair desta casa. Portanto,
havia pelo menos duas razões para nunca mais voltar.
Seus olhos estavam cansados, mas um sorriso brilhou neles. ― Mas aqui
estou eu.
― Conseguiu encontrá-lo?
― Não. Mas agora sei onde encontrá-lo.
― Como sabe onde procurá-lo?
― Por um curto período de tempo, ele trabalhou para mim. Depois que
ficou claro que era inclinado à violência, interrompi a conexão. Não o vejo há
anos. Ele se afastou. ― Falarei com ele hoje à noite.
― Irei contigo.
― Não irá. Dormirá esta noite e amanhã voltará para a enfermaria e estará
bem descansada e preparada para uma aula e para trabalhar.
― Não me proteja. ― Ela o seguiu, observando a tensão natural em seu
andar. ― Irei contigo. Dois investigando sempre deve ser preferível a um.
Ele parou. ― Não. Não fará isso.
― Eu me importo com Coira e suas amigas. Desejo descobrir a verdade do
desaparecimento de Dallis tanto quanto o senhor.
― Ainda assim, desejo que permaneça em segurança. ― Ele continuou em
direção aos seus aposentos. ― Deixe isso comigo.
― Não posso. Mesmo que eu não estivesse interessada nisso como amiga
de Coira, eu ainda não conseguiria parar de pensar nisso e tentar resolvê-lo. E
certamente não conseguirei dormir bem enquanto o senhor estiver andando pelos
becos escuros de Edimburgo.
― No entanto deve fazer o esforço.
― Por meses eu me provei capaz de percorrer esta cidade como homem e
de repente não confia que eu possa fazer isso?
― Não permitirei que ponha em risco a sua segurança ― ele disse
bruscamente.
O sabor metálico chegou à sua língua. ― Está bravo comigo?
― Eu desejo que faça como eu gostaria.
― Isso é um problema ― ela disse, ― pois raramente faço o que os outros
desejam. Além disso, eu posso ver que está com dor por ter passado essa noite
na sela. Eu poderia aliviar esses músculos agora, se me permitisse.
― Obrigado, não.
― Orgulho de novo?
― Não dessa vez. O espírito está totalmente disposto. Infelizmente a carne
é fraca. ― Ele se voltou para ela e não havia fraqueza em seus olhos ou postura,
apenas uma certeza granítica. ― Eu quis dizer o que falei antes. Isto não pode
ser.
O calor doentio encheu seu estômago.
Ele entrou em seu estúdio e a porta se fechou. Por vários minutos, ela olhou
para o painel, contando seus rápidos batimentos cardíacos, mas eles não iriam
diminuir.
Capítulo 23
A Inundação
― Até minha mãe escreve mensagens mais quentes do que isso, ― disse
Iris, balançando os calcanhares contra a parede enquanto passava o papel para
Libby.
― É o suficiente para congelar as mamas de uma moça ― Coira
concordou.
― Acredito que foi essa a intenção dele. Metaforicamente ― disse Libby,
relendo a nota que ele deixara na sala de visitas para ela no meio da noite: Falei
com Reeve. Ele insiste que não viu Dallis em momento algum. Se quiser,
continuarei com o assunto.
― Eu deixei uma mensagem também.
― Derramando seu coração, coitadinha?
― Não. Eu disse a ele que estava indo embora. Paguei ao estábulo para
pegar meus pertences com a Sra. Coutts e entregá-los em minha nova residência
hoje.
Ambas estavam olhando para ela.
― Não me olhe assim. É a solução mais sensata. Não sucumbirei à
insensatez e ele deixou claro que sou um incômodo. ― Foi um erro. Ele havia
chamado seus maravilhosos beijos de um erro. ― Ficarei bem em uma nova
residência até que meu pai retorne.
― Vem morar comigo e com a mamãe? ― Perguntou Íris. ― Minhas
preces foram atendidas!
― Obrigada, íris. Mas eu não posso ficar trocando de roupa e colando as
suíças em coches todas as manhãs e noites. Alguém me descobriria.
― Adoraria que ficasse comigo lá, ― Coira disse, ― se eu pudesse ter
certeza de que não correria risco de que fosse vista por algum jovem que queira
me cobrir.
― Cobrir? ― As sobrancelhas de íris estavam erguidas.
― Relações sexuais, ― disse Libby. ― Veja, Coira? Eu entendi essa
referência. Mas obrigada minha amiga. É gentileza sua.
Coira estalou a língua. ― É um homem tolo que não a quer.
― Não pode morar em Leith com Alice também ― disse Iris. ― Deve
pedir a Tabitha e Thomas para hospedá-la.
― Não, eu não posso pedir-lhes que mintam. ― No entanto, ela pediu a ele
por meses. E ele havia feito isso generosamente, exigindo apenas duas coisas em
troca: que posasse para ele e, de outro modo, o deixasse em paz.
Durante meses ela não fez nenhum dos dois. Ela lhe devia isso. ―
Encontrarei alojamento ― disse ela.
― Não está ansiosa, Libby? ― Perguntou Iris.
― Não. Aprendi que é mais fácil fazer tudo como um homem. ― Exceto,
ao que parece, querer um.
A Caçada
― Aí está a senhorita.
O som chegou a Libby através do estupor causado pelo sono.
― Foi um susto desagradável o que nos deu, moça. ― A Sra. Coutts
colocou um braço por trás dela e a inclinou para frente. O quarto girou. Então a
borda de um copo estava entre seus lábios e a água escorrendo por seu queixo e
também, maravilhosamente, por cima da sua língua, atingindo a parede da
garganta seca.
― Agora não vá jogar tudo de volta em mim, moça tola.
A Sra. Coutts estava rindo, o braço firme e sólido atrás da cabeça de Libby.
― Co....
― Pronto, moça. Não precisa falar ainda.
Seus membros se agarravam ao colchão como tempos atrás se agarrara ao
seu cão de pelúcia. Acima, as cortinas de seda do dossel afastadas, permitiam
que a luz da manhã se filtrasse e brilhasse sobre a pequena pintura de um
mercado.
Seu quarto. Em sua casa. ― Por que estou aqui? ― Ela murmurou.
― O patrão a trouxe para casa em seus próprios braços.
Nunca pensei que veria uma coisa dessas! Mas ele não permitiria que ninguém
mais a carregasse. O pobre coitado também não dormiu nem um minuto depois,
ficou sentado do lado de fora do quarto, noite e dia, então ficou ali para que eu
pudesse dormir um pouco, até que a febre baixou.
Os pensamentos de Libby não estavam bem. Ela estava tão cansada.
― E ele não permitiu nenhuma outra pessoa na casa ― continuou a Sra.
Coutts, ― só eu e ele. Até contratou minha sobrinha para ficar na casa nos
últimos três dias e cozinhar para o Sr. Coutts. É um homem atencioso, apesar de
assustá-la.
― Eu não estava com medo. ― O cansaço pressionou suas pálpebras. ―
EU .
― Descanse agora, querida.
Na próxima vez que Libby acordou, conseguiu sentar-se e beber uma xícara
de chá e uma tigela de caldo.
A vez seguinte, quando despertou, ela estava faminta.
― Tenho uma constituição forte ― ela disse às voltas de um pedaço de pão
e manteiga. ― Usualmente.
― Um coração dolorido derruba o corpo tão rápido como a chuva.
― Não existe um coração dolorido a menos que seja causado por uma
infecção do pericárdio, Sra. Coutts. E não se fica com febre simplesmente
porque se está triste.
― Sim, há um pouquinho de sabedoria que ainda precisa aprender, moça.
Libby se aconchegou nos cobertores macios. ― Que dia é hoje? ― Ela
murmurou, suas pálpebras pesadas.
― Sábado, moça.
― Devo ... pegue ... meus ... livros...
Ela acordou com o sino da capela Greyfriars badalando para o culto de
domingo. Olhando fixamente para o dossel acima, com um desapego frio, ela
observou seus pensamentos se acelerarem, como se pudesse ver uma carruagem
ganhando velocidade.
Ela provocara uma confusão. Tentando salvá-lo de problemas, lhe causara
mais. E a Sra. Coutts? E Archie? Onde estavam seus blocos de notas? O terrível
senhorio teria jogado fora? Deveria pedir desculpas ao Dr. Jones por adormecer
durante sua palestra. E ao Sr. Bridges por ter desaparecido. Pagou sua conta no
pub? Seu estômago queimava. Onde estavam suas roupas e suas suíças? Ela não
podia desperdiçar mais tempo aqui. Havia tantos erros para reparar.
Não.
Não.
Erguendo os braços fracos, ela pressionou as palmas das mãos nos olhos.
Aconteceu dessa forma: ela lera sua breve mensagem sobre Reeve, e a
desesperada urgência de imediatamente corrigir tudo o que havia de errado entre
eles a impulsionara a agir - qualquer coisa para acalmar os pensamentos, os
arrependimentos, a culpa.
Conquistou esse dragão.
Virando-se para o lado, ela olhou pela janela para a manhã de primavera
cinzenta.
Inspirando profundamente, à medida que cada uma das preocupações
aparecia, foi colocando-as no parapeito da janela e depois as jogou na rua
abaixo. Quando a Sra. Coutts chegou com ensopado e pão, Libby estava quase
sorrindo.
A Sra. Coutts ajudou-a a se lavar e vestir uma camisola nova. Desgastada
pela atividade, Libby caiu na cama novamente.
Quando acordou, foi de uma forma abrupta e um quarto iluminado da
lareira e de uma vela. Balançando os pés fora das cobertas, ela testou sua força.
Não a impressionou, nem a dolorosa ternura de seu peito. Mas o tapete estava
quente até para os pés descalços.
Pegando a vela, ela foi para o patamar. A casa estava em silêncio.
Segurando-se no corrimão, desceu ao térreo e seus dedos afundaram no
tapete macio que percorria o comprimento do corredor. Ela estudou o padrão
suntuoso e intrincado sob seus pés brancos.
Uma mansão, disseram seus amigos. Meses atrás, quando ela veio pela
primeira vez, percebeu sua elegância simples. Mas parecera uma extensão tão
natural de seu dono. Ela catalogara os detalhes de sua beleza em sua mente, e
então lhes dera pouco pensamento.
Pensou pouco. Um milagre, com certeza.
Agora ela permitia que as pontas dos dedos corressem ao longo dos lambris
suaves de madeira até a porta da sala de visitas, depois ao redor da alça de
bronze brilhante que era fria ao toque. Assim como em seu quarto onde a
cobertura estava em perfeitas proporções, maravilhosamente projetada para ser
repousante e bela, a casa inteira era graciosa em todos os detalhes: painéis de
parede cuidadosamente esculpidos, molduras de gesso pintadas no teto, móveis
requintadamente projetados e finamente, cortinas de tecido, a porcelana que ela
usava todos os dias. Tudo isso foi aprimorado sutilmente com pedaços de luxo:
pedras de cristais colocadas em puxadores de gavetas, granadas penduradas em
castiçais, uma linha fina como papel dourando o comprimento da grade da
escada, que em sua base se curvava como as pétalas de uma flor gloriosa, uma
espiral perfeita de madeira acetinada para o prazer da mão humana.
Sem ostentação, esta casa se deleitava em beleza. Era a casa de um artista.
E um príncipe.
No entanto, ele a recebera aqui. E a tratou como sua igual.
Na sala de visitas, seus blocos de notas estavam empilhados na
escrivaninha. Suas caixas de ossos e modelos de gesso, o estojo de instrumentos
cirúrgicos e o estojo de remédios estavam cuidadosamente colocados no chão.
Uma pena afiada, lápis, cortador de página e uma garrafa de tinta meio vazia
permaneciam exatamente onde ela os havia deixado semanas antes.
Percorreu novamente a sala e saiu, e lá estava ele. Em mangas de camisa e
colete marcado aqui e ali com listras brilhantes de tinta, ele estava perfeitamente
parado perto da base da escada.
― Pensei ter ouvido alguma coisa. ― Seus olhos estavam brilhantes. ― Ou
melhor, alguém.
Foi até ele e, sem parar, envolveu a cintura dele com os braços e apertou o
rosto contra seu peito.
Ele a envolveu em seus braços.
― Perdoe-me ― ele sussurrou próximo a sua orelha, e suas mãos se
espalhavam sobre ela, segurando-a. ― Me perdoe.
Ela queria se enterrar nele, permanecer em seu abraço e ser mantida em sua
força, paz e quietude para sempre.
Ela se afastou e recuou.
Ele pareceu soltar uma respiração lenta, seu olhar nunca deixando os olhos
dela. Libby já tinha visto isso muitas vezes antes no hospital. Este não era o
olhar habitual do estudo de artista, mas a vigilância de um homem que
acreditava que o que via poderia desaparecer a qualquer momento.
― Não precisa se preocupar mais ― ela disse. ― Me resgatou. E como um
herói de conto de fadas, conseguiu ultrapassar meu senhorio, depois me levar
para um lugar seguro.
― Isso pressupõe que seja uma donzela em perigo, o que é um disparate.
― A Sra. Coutts disse que Archie o levou para o apartamento e que o
senhor me levou para fora. Mas ela é inclinada ao exagero e, mais importante,
não acredito que isso tenha sido possível.
― Subestima sua habilidade.
― Nem uma vez na vida subestimei minha habilidade. A prótese permitiu
que me carregasse? Realmente?
― A senhorita é luz. E eu estava bem motivado.
― Archie poderia ter me carregado. Ou o cocheiro de aluguel.
― Não enquanto eu viver.
― O senhor é.... ― Sua garganta estava se fechando.
Ele inclinou a cabeça em questionamento.
― É muito forte ― ela disse. ― Com a força do corpo e do caráter.
― Estou cansado de ouvi-la me elogiar. Eu não mereço isso.
― Como de costume, vemos as coisas de maneira totalmente diferente. Eu
gostaria de ficar. Aqui. Nesta casa. Posso ficar?
― Esta é a sua casa.
Formigamento feroz explodiu por trás de seus olhos. ― Posso ficar até o
retorno do meu pai a Edimburgo?
― Por quanto tempo desejar.
― E se eu quiser que seja para sempre?
― Então para sempre será.
Com o coração apertado, ela se virou para as escadas e subiu tão rápido
quanto suas pernas estúpidas a carregaram. Quando parou no patamar e olhou
para baixo, ele estava lá parado, observando-a.
― Meu pai e eu sempre vivemos onde quer que seus pacientes desejassem.
Eu raramente fico em uma casa por muito tempo. Eu nunca tive uma casa que
pudesse ser minha para sempre.
― Agora tem.
― Até o retorno do meu pai.
Ele assentiu com a cabeça, e era tão régio que ela se perguntou se alguma
vez pensara que ele não fosse um príncipe.
― Não vou incomodá-lo, ― ela disse.
― Tenho muito pouca confiança no valor profético dessa afirmação.
Ar saiu de entre seus lábios.
― Esse barulho foi uma concordância? ― Ele disse, um belo sorriso
moldando sua boca.
Ela riu de novo e a dor atravessou seus pulmões. ― Senti falta desse som
― ele disse. ― Sua risada.
Ela apertou a roupa sobre o peito.
― Isso dói.
― Sim ― ele disse.
Ela não quis dizer que o riso doía, mas pensou que talvez ele tivesse
entendido isso.
― Tentarei não perturbá-lo ― ela disse.
― Não ― ele disse. ― Me perturbe. Todo dia. Toda hora. Cada minuto, se
desejar.
― Foi sensato. Antes. Quando disse que eu não devo - que não devemos...
― Fui ― disse. ― Mas é tarde demais para desfazer isso agora, não é?
O calor salgado inundou o fundo de sua garganta e suas mãos estavam
apertadas sobre o corrimão.
― Durma ― ele disse. ― Melhore.
Indo para seu quarto e rastejando sob os cobertores macios, ela dormiu
profundamente durante a noite.
Desrespeitando Regras
ELA ACORDOU COM uma fina luz prateada espreitando através das
cortinas e o cheiro de pão torrado. Ela estava sozinha no meio da cama dele, os
lençóis dobrados ao redor dos ombros.
Um roupão de cetim azul safira estava ao pé da cama. Ela vestiu e foi para a
cozinha. Um fogo na lareira aquecia o cômodo. De pé no fogão, ele usava
apenas calções.
― É excepcionalmente doméstico, ― ela disse, segurando o batente da
porta. Seus ombros nus e braços e costas eram todo poder e beleza fluida. ―
Surpreendente. Não conheço outro homem que possa preparar um bule de chá
tão facilmente.
― Um menino longe do conforto de casa aprende rapidamente o que deve
para sobreviver. E um homem com segredos para esconder faz por si mesmo, o
mais rápido possível. Finalmente, ele olhou por cima do ombro. ― Essa cor
combina com você.
A sombra do restolho matinal escurecia sua mandíbula e ao redor de sua
boca. Quando se lembrou das coisas que aquela boca lhe fizera, seus membros
ficaram líquidos.
― Como um menino que vive em uma terra estrangeira, ― ele disse,
voltando sua atenção para a chaleira, ― aprendi que tomar chá juntos, jantar
juntos - são rituais de amizade.
Sua maleta estava no chão, nas proximidades. Na mesa estava o café da
manhã: pão torrado, geleia, queijo, ovos e um prato de grão-de-bico lindamente
pintado, do qual surgiu o aroma amadeirado do cominho.
― Conte-me sua história, ― ela pediu, sentando-se.
― Minha história pode esperar. Primeiro, deve comer. Então deve estudar.
Não permitirei que isso a distraia do seu propósito.
― Algumas horas ― ela teve que limpar a garganta ― longe dos estudos
não me prejudicará.
Ele recostou-se no balcão. ― Café da manhã. ― Ele gesticulou.
― Viu o pior de mim ― ela disse. ― O feio, o irracional, o desesperado, o
arrogante e egoísta. Todo o pior.
― Se isso é o seu pior, güzel kiz, então seu deus realmente a favoreceu.
― Por que não quer me contar sua história? Não a compartilharei com
ninguém.
― Eu confio nisto.
― Então por quê?
― Milhares de quilômetros de distância. Anos atrás. É uma história que não
pode prender o interesse de uma mulher tão moderna. ― Mas as sombras
novamente estavam em seus olhos e ela sabia que suas palavras eram apenas
uma verdade parcial.
Pegando um pedaço de pão torrado, ela brincou entre os dedos.
― É a sua história ― ela disse.
Depois de um momento, ele falou.
― Tabir é um pequeno reino, sob o olhar atento de poderes próximos, mas
independente. Meu pai era um homem educado, viajado em sua juventude e
amigo de todos. Seu primeiro general foi seu companheiro mais próximo desde a
infância. Mas o general queria mais. Quando em segredo ele ofereceu aos nossos
vizinhos russos o monopólio do comércio em nosso porto, eles o ajudaram em
seu golpe. Meu pai foi morto. Minha mãe, minha irmã e eu escapamos com três
criados. Nós viajamos muito às pressas. Nós nos estabelecemos em Alexandria,
no Egito, sob a proteção do patriarca da Igreja Copta Ortodoxa.
― Um bispo?
― Por isso meu excelente catecismo. ― Ele quase sorriu.
― Mas porque não...?
― O Xá em Teerã? O imperador dos otomanos em Istambul? ― Ele
balançou a cabeça. ― Tanto o Irã quanto os turcos tentaram engolir Tabir em
suas fronteiras muitas vezes. Temendo os próprios russos que deram apoio ao
general, o Xá acabara assinando um tratado com a França. Quanto à família de
minha mãe em Istambul, eles nunca gostaram muito de meu pai e a teriam
encorajado a se aliar ao general, apenas para lhes dar uma desculpa para irem à
guerra com os russos. Era melhor permitir que eles acreditassem que estávamos
mortos.
― Mas por que se escondeu entre os cristãos?
― O Paxá do Egito, então, e agora, é um homem brilhante, mas beligerante.
Minha mãe acreditava que ele poderia nos usar em sua batalha contra os
otomanos. Ela não sabia em quem confiar. Napoleão havia raptado o papa
católico e o mantinha em cativeiro, e por muito tempo estudara o Egito. Talvez o
patriarca tivesse motivos para temer também. Alianças eram frequentemente
improváveis naqueles anos, como agora. ― Seu olhar deslizou pelo roupão dela.
― A necessidade cria estranhas parcerias.
― Eu não sou estranha.
― É linda. ― Sua voz era rouca.
Sob seu olhar faminto, sua pele corou com o calor. ― Está se repetindo.
― E farei isso quantas vezes eu quiser.
― Disse que viveu oito anos em Alexandria.
― O patriarca geralmente reside no Cairo, mas acreditava que, até eu ficar
mais velho, seria melhor nos escondermos em Alexandria. É um porto vasto.
Todo mundo passa por lá. Ninguém notaria mais alguns estranhos.
― Foi lá que aprendeu a pintar com o tio de Joachim.
― Eu era um menino quando chegamos e eu só sabia que estava, por fim,
livre de responsabilidades. Não havia mais treinamento de armas. Não havia
mais intermináveis horas memorizando tratados sobre táticas ou leis. Nunca
mais severos homens santos me castigando pelo meu passo em falso.
― Seu pai tinha homens assim em sua corte?
― Ele acreditava que todos os homens eram dignos de respeito.
― Em Alexandria, estava livre de responsabilidades.
― Eu corria pelas ruas da cidade como qualquer garoto. Eu lamentei meu
pai e seus amigos que tinham caído à espada naquela noite. Mas não me sentia
preso no meu anonimato. ― As memórias felizes brilhavam em seus olhos.
Ela entendeu a liberdade oferecida pelo anonimato. Inteiramente. ―
Adorou lá ― disse ela. ― Não é?
― Adorei. Dos traidores de meu pai, aprendi que nem sempre é possível
confiar nos amigos. Em Alexandria, aprendi a confiar em estranhos. E aprendi
que um homem não precisa olhar, soar, comer ou rezar como outro para se tornar
seu irmão.
― Sua mãe e sua irmã se sentiram assim também?
― Aairah estava sempre impaciente para que eu voltasse e lutasse pelo
trono de nosso pai. Eu costumava dizer que ela teria sido uma regente muito
melhor do que eu. Finalmente, não resisti mais aos seus pedidos. Decidiu-se que
eu viajaria para Istambul e buscaria a ajuda do imperador dos otomanos.
Deixando minha mãe e minha irmã na proteção do patriarca, no meu aniversário
de dezesseis anos, embarquei com meu tutor. Apenas um dia fora do porto,
bandidos nos atacaram. Meu tutor, um homem velho, disse aos piratas que eu
traria ouro em resgate. Eles riram quando o mataram.
Libby ofegou. ― Viu quando o mataram? Por que não acreditaram nele?
― Nós tínhamos fugido de Tabir sem nada. Eu tinha comigo apenas dois
itens para provar minha reivindicação ao trono: uma carta do patriarca e ...
― O relógio?
Ele assentiu. ― O capitão reconheceu seu valor óbvio e o manteve para ele.
Parece melhor em você, a propósito.
Ela não conseguia sorrir. ― Ele não acreditava que fosse do rei, não é?
― Ninguém a bordo sabia ler a inscrição, e a carta do patriarca não
significava nada para eles. Muitas dessas cartas são forjadas. Em alto mar, entre
os ladrões, o ouro é a única língua de valor.
― O que os piratas fizeram com você?
― Eu era jovem e forte. No início, eles me colocaram na cozinha e para
remar.
Fortemente acorrentado no tornozelo e no pé, as cicatrizes demoraram
meses para serem criadas. ― No início?
Ele não respondeu e a escuridão agora em seus olhos revolveu o medo em
sua espinha.
― E depois disso? ― Ela perguntou.
Depois de um momento de pausa, ele disse: ― Eles me usaram.
Não havia raiva em sua voz. Não havia nada.
Sem emoção. Sem vida.
Ela olhou para o rosto bonito dele, para a boca bonita, as mãos graciosas de
um artista, o corpo magro e a angústia rastejando através de suas entranhas.
― Eu aprendi, Elizabeth, que existem homens de Deus nesta Terra, ― ele
disse suavemente. ― Homens de honra e homens de grande fé, filhos de Alá e
Yahweh, irmãos de Jesus, todos eles lutando pelo bem - pela verdade. Fui
abençoado por conhecer muitos desses homens.
A garganta fechou, ela esperou.
― Meus captores, ― disse ele, ― não estavam entre esses homens. ―
Com os punhos apertados no colo, ela forçou a voz a se equilibrar.
― E os marinheiros do patriarca?
― Alguns sobreviveram à batalha e foram levados a bordo também.
Finalmente convenci o capitão a pedir resgate por mim. Prometi que isso faria
dele um homem rico. Os mercenários do general acabaram chegando, mas
estavam interessados apenas na riqueza que poderia ser obtida imediatamente.
Eles sacrificaram os bandidos. Acorrentado ao mastro, observei, supondo que
minha morte seria a próxima.
Tanta violência e morte. Não admira que ele gostasse da tarefa caseira de
fazer chá. Não admira que ele amasse pintar o corpo nu feminino, que era cheio
de força e gerador de vida.
― Foi quando o navio pegou fogo?
― Sim. Os mercenários fugiram para o seu navio. Assim que eles fizeram
isso, um menino tentou me libertar. Ele não tinha chave nem machado e chorou.
Eu disse a ele para atirar na corrente. A bala escolheu o osso em vez do ferro.
― Disse a ele?
― Os homens e meninos com quem eu tinha sido obrigado a remar - alguns
deles se tornaram amigos, pelo que nós éramos. Acorrentado no porão, eles
pereceriam por causa da minha arrogância. Eu tive que tentar libertá-los.
Mesmo em cadeias, ele tinha sido um herói. ― Algum deles sobreviveu? ―
Perguntou.
― Alguns.
― Como a marinha britânica o encontrou?
― O príncipe herdeiro do Irã, quando menino, conheceu meu pai e o
admirou muito. Aparentemente, um dos mercenários lhe vendera a informação
de que eu ainda vivia, e ele pediu ajuda da Inglaterra para me encontrar. A
marinha enviou o navio do capitão Gabriel Hume. Ele navegou ao longo da costa
durante meses procurando por mim. Foi pura sorte que seu vigia tenha visto a
fumaça.
Seus pesadelos eram sobre quando tinha sido salvo. ― Gabriel me levou a
Londres, onde pedi ajuda ao seu príncipe. Ele recusou. O poder russo está
crescendo ao longo das fronteiras otomana e iraniana. A Grã-Bretanha os exerce
com todo o cuidado, seja qual for a vantagem que ele der aos seus próprios
navios e caravanas da Companhia das Índias Orientais. O reino de meu pai,
embora seja uma joia, é apanhado na encruzilhada de impérios.
― E a sua irmã e mãe?
― Eu estava na Inglaterra apenas alguns meses antes de receber a notícia
de que minha mãe e seus servos tinham sido abatidos e minha irmã levada para
Tabir para se casar com o general contra sua vontade, para legitimar seu
governo. No momento em que ouvi as notícias, ela deveria dar a ele um
segundo filho.
― Ela era uma esposa cativa?
― Disseram-me que, se alguma vez voltasse a Tabir, ela, os filhos e todos
os que nos apoiariam seriam mortos. Essa ameaça permanece. ― Ele cruzou os
braços. ― Sabe o resto da história.
― Por que usa um nome falso? Por que não mora em Londres ou Paris, em
qualquer lugar que deseje, e é exaltado de acordo com seu sangue, e onde pode
pedir ajuda ao governo?
― Eu faço petições ao governo britânico. E Irã. O imperador também.
Regularmente.
― Mas pode viver como convém à realeza.
― Passar horas todos os dias com meu alfaiate e manobrista? Bebendo
fofoca nas festas para cuspir novamente no próximo entretenimento? Dormir a
manhã toda até tão tarde para que todas as noites possa ser a maravilhosa
curiosidade para a elite da moda bajular? E durante todo o tempo procurando
incessantemente o favor de aliados cujos exércitos são maiores do que toda a
população de Tabir?
Ele ficou em silêncio.
― Eu imploro seu perdão, ― disse ela.
― Depois de tudo o que vi, Elizabeth, tudo o que fiz e fui, como poderia
viver essa vida?
― Mas ainda está esperando para voltar. Pelo bem da sua irmã.
― Não está mais esperando. A guerra está vindo. Quando o exército do Xá
cavalgar para retomar as terras que a Rússia detém, esse exército passará a
quilômetros de Tabir.
Um calafrio percorreu sua pele. ― Vai agora? Para a guerra?
― Minha irmã está segura no momento. Ela tem aliados no palácio e
entre os senhores locais vizinhos. O general ainda tem a promessa de proteção
russa. O Irã ainda continua quieto. Há tempo. ― Ele inclinou a cabeça. ― E sou
necessário aqui.
De pé, ela pegou uma fatia de pão para ele e rodeou a mesa. Quebrando a
fatia em duas porções, deu a ele metade e mordeu a outra.
Ele sorriu. ― O que está fazendo?
― Comendo como me pediu e alimentando-o também para que nós dois
tenhamos energia suficiente para a forma que pretendo passar o dia.
Deixando cair o pão sobre a mesa, ele circulou seus braços ao redor dela e
puxou-a confortavelmente de quadril a quadril com ele.
― E como deseja passar o dia? ― Ele disse, beijando sua bochecha, depois
a outra face.
― Na sua cama, ― ela disse, descansando as palmas das mãos no peito
dele, em seguida, deslizando-as para cima e sobre os ombros. Ele era quente e
bonito. ― Ou em qualquer outro lugar desta casa, onde deseje me dar prazer e
recebê-lo em troca.
Ele respondeu dando a ela ali mesmo, um prazer tão grande que a deixou
agarrada a ele e impregnada de satisfação e completamente viva.
O dia passou dessa maneira. Ele descobrira reservas extraordinárias de
virilidade. Quando ela perguntou se isso era comum, ele olhou para ela como se
ela fosse estúpida e disse que não tinha como saber, e que tipo de cavalheiro ela
achava que ele era afinal? Ela se dissolveu em gargalhadas, o que lhe deu a
oportunidade de mostrar-lhe precisamente quão viril sua risada sempre o
tornava.
Quando o relógio na sala de visitas soou seis e Libby saiu de sua cama para
se vestir para a reunião final do curso de cirurgia particular de seu mentor, ela
beijou o príncipe adormecido em seus lábios, mas não ficou surpresa quando ele
não acordou.
Capítulo 26
Rei de Tabir
A Acusação
Ziyaeddin não estava em casa quando ela voltou. Libby mudou a roupa, que
cheirava a sala cirúrgica, lavou-se completamente e andou de um lado para o
outro até ouvir a porta da frente abrir.
Ela foi até ele. ― Tenho...
A bengala bateu no banco onde ele a jogou, pegou o rosto dela entre as
mãos e capturou sua boca sob a dele. Ela o agarrou pela cintura e permitiu que a
carregasse contra a parede. Não havia hesitação ou gentileza nele agora, a única
coisa que experimentava era a urgência dele em sua boca e seus corpos
pressionados.
Quando ele se afastou, foi apenas para consumir o rosto dela com seu olhar
e depois beijá-la novamente.
― É isso que sempre acontecerá quando um de nós entrar na casa? ― Ela
perguntou.
― Se o seu deus nos favorecer, delbaram. ― Ele acariciou a testa dela onde
um vinco errante se recusou a ser domado. ― O que está errado?
― Aquilo era turco?
― Persa.
― Por que parou de me chamar de güzel kiz?
― Não é uma moça. Não era, mas eu sempre soube disso.
― Como sabe que algo está errado comigo?
― Sua testa está tensa mesmo quando me beija. Esse rosto, todas as
características, todas as tonalidades, todas as texturas são uma obra-prima. Eu o
memorizei há muito tempo. Conte-me.
― Deve falar com o Sr. Reeve novamente. ― Seus dedos cravaram nele. ―
Encontrei Dallis, esta noite, na mesa do teatro cirúrgico do Sr. Bridges. Havia
láudano em seu estômago, mas ela morreu sufocada.
Seu rosto empalideceu. ― Dallis.
― Sim, sinto muito. Sei que a conhecia bem.
― Não bem. Então não foi acidente.
― A aparição de Bethany na mesma sala de operações é uma coincidência
muito grande para ser desconsiderada. Devo falar com Coira para que seja
cautelosa. Esperei apenas até que voltasse para pedir sua ajuda.
― Elizabeth, com grande respeito a sua inteligência e habilidades, peço-lhe
que me permita falar com Reeve sozinho. Concordará com isso? ― Ele falou
gravemente.
Ela torceu os dedos ao redor das lapelas do seu casaco. ― Não posso ficar
aqui de braços cruzados, é claro.
― Não ficará ociosa. Escreva a Bridges e solicite uma audiência particular
com ele. Não divulgue sua razão em público. Quando ele concordar, irei
acompanhá-la.
― Acredita que o Sr. Bridges está contratando ladrões de sepulturas, não é?
Porque eu acredito. Embora não tenha ideia de como ainda estejam operando em
Edimburgo. Há guardas postados em quase todos os cemitérios da cidade.
― Falarei com Reeve. ― Ele a soltou. ― Sua promessa, agora.
Ela assentiu. ― Não tenho vontade de acabar debaixo do bisturi de
Maxwell Chedham.
Seus olhos se encheram de alívio. ― Claro que não tem.
Ela pegou sua bengala. ― Eu gostei disso, ― ela disse, oferecendo a ele, ―
ser beijada imediatamente e tão completamente aqui na porta.
― Isso não torna particularmente fácil sair por esta porta agora. Não diga
mais nada, tentadora.
Ela soltou uma risada.
Ele estendeu a mão para ela e, envolvendo uma mão atrás do pescoço,
inclinou sua cabeça, mas não a beijou.
― Não há nada no mundo que eu queira mais - nada, ― ele disse, ― do
que beijá-la completamente não apenas aqui e agora, mas em todos os lugares e
em todos os momentos.
― Isso seria impraticável.
― As práticas que se danem. ― Houve um áspero desafio nessas palavras
que fizeram os pelos em seus braços arrepiarem.
Ele a soltou e partiu, e ela foi escrever sua carta.
O Arrebatamento
Ela irrompeu na rua escura. Ziyaeddin a vigiara por horas. Rezando. Agora
foi em sua direção.
― Me salvou novamente, ― ela disse abaixo dos sons de uma carruagem
que passava. Havia uma cor profunda em suas bochechas sob as suíças, e seus
olhos estavam cheios de exaustão. ― Junto com meus amigos. ― Um sorriso
passou por seus lábios.
― O que aconteceu?
― O Sr. Sheets lhe disse que ele é casado? ― Ela continuou rapidamente
enquanto começava a andar pela calçada. ― Com três filhos. O descarado. Ele
não queria que ninguém descobrisse seu acordo com Bethany. Agora, falando ao
Lorde Reitor, porém, ele parecia verdadeiramente arrasado com a morte dela.
Quão inteligente foi ter encontrado ele e o Sr. Reeve e arrancado a verdade deles.
Mas, claro, é excelente em ver as almas das pessoas.
― Eu preferia que nenhum deles a tivesse conhecido.
― Estou exonerada. ― Ela estava olhando para a abertura escura de um
beco à frente. ― A polícia foi à casa de Plath e encontrou-o fazendo as malas
para uma viagem. O Dr. Jones e o sr. Bridges me pediram para esperar com eles
até sabermos que o levaram para a cadeia. Acho que foram as horas mais longas
da minha vida.
Dele também.
Abruptamente agarrando a manga do casaco, ela o puxou para um canto e
depois para vários metros ao longo de um beco escuro.
― O que é ...
Ela agarrou o colete dele. ― Me beija. Beije-me sem demora.
Embrulhando suas mãos ao redor de seus ombros, ele tomou sua boca na
dele. Ela o encontrou com os lábios entreabertos e as mãos torcidas em sua
camisa.
Ele riu.
― Beije-me. ― Seus olhos se arregalaram. ― Por que ri?
― Eu nunca antes beijei uma pessoa com bigodes. ― Ele acariciou um
dedo ao longo de sua garganta. ― É uma experiência nova para mim.
― Isso o repele?
― Nada sobre você poderia me repelir.
Ela plantou seus lábios nos dele, os bigodes fizeram cócegas em sua pele
quando ele a beijou. Os lábios dela tremeram e ele curvou as mãos ao redor de
suas costas, e sob a textura do casaco masculino, encontrou todo seu corpo
tremendo.
Ela se separou. ― Temos que ir para casa. ― Ela saiu de entre ele e a
parede e correu para fora do beco.
Quando chegou à rua, ela tinha sido engolida pela escuridão e o tráfego.
Ele encontrou a porta da frente destrancada. Pousando o chapéu e a
bengala, tentou ouvi-la.
Nada. Sem som. Mas ela estava na casa. Sabia disso tão bem quanto
conhecia o arco do seu lábio superior e o do inferior.
Não estava na sala de visitas. Nem na cozinha. Nem no seu estúdio.
Tampouco – ilusão tola a dele - em sua cama.
Ele subiu as escadas e encontrou-a deitada no fundo da cama, sem remover
uma das meias, e uma mancha ainda lhe grudava no queixo por ter removido as
suíças apressadamente.
Pousando a vela, ele tirou o casaco e pegou o frasco de óleo em sua
penteadeira. Então, sentando ao lado dela na cama, ele soltou os últimos pelos do
seu queixo. Ela não acordou.
Havia muito a ser feito e ele prosseguiu devagar para não perturbar o sono.
Desamarrou a gravata amassada e descartou-a, depois soltou o único botão em
seu pescoço e abriu a camisa. A tesoura fez um rápido trabalho para liberar seus
seios. Ainda assim, ela não despertou. Tirando as meias dos pés e jogando-as
para longe, fez o mesmo com as calças.
Ele deixou as ceroulas e a camisa.
Levantando as pernas para a cama, notou um nó torto em sua roupa íntima.
Rapidamente se convenceu de que um artista deve sempre satisfazer uma
curiosidade ardente. Desatando as ceroulas, ele descobriu ainda outra fita presa à
cintura. Ele puxou e esticou um grupo de três pequenas bolas de pano.
Colocando-as na mesa de cabeceira, ele engoliu o nó em sua garganta e se
encostou na cabeceira da cama.
― Por que chora? ― De olhos semicerrados, ela estava olhando para ele.
― Eu não estou chorando, é óbvio, ― disse ele, inclinando-se para dobrar a
perna da calça e soltar as correias ao redor do joelho.
― Há uma lágrima em sua bochecha.
― Está sonhando. ― Ele colocou a prótese de lado e se estendeu no
colchão ao lado dela.
Suas pálpebras se fecharam novamente. ― Eu não . . . sei porque chorar.
Nós . . . vencemos.
Ele acariciou seu cabelo para trás de sua testa, soltando as mechas oleadas e
usando a gravata arruinada para limpar os restos de seu disfarce. Quando teve
certeza de que ela dormia novamente, também fechou os olhos.
A SRA. COUTTS saiu da cozinha. ― Ele teve visitas, moça, ― disse ela. ―
Investigador de polícia! Ficou uma hora inteira, bebeu dois potes de chá e
engoliu todos os biscoitos também. Eu escutei através da porta, claro. É calúnia
perversa! Eles podem me prender com algemas e me levar até o laço, e eu
defenderei os dois até a minha última hora.
― Obrigado, Sra. Coutts. Onde ele está?
― Onde mais? Vou cozinhar para o Sr. Coutts. Mas se precisar de mim,
moça, mande um rapaz e voltarei imediatamente. A Sra. Coutts agitou o queixo
dela como se fosse uma criança - a criança que a população escandalizada de
Edimburgo acreditava que era - e partiu.
Em seu estúdio, ele se sentou no banquinho diante do cavalete, o retrato
nele apenas parcialmente pintado sobre a primeira camada. Era um par de
garotos de casacas vermelhas e calças pretas, orgulhosamente cercados por um
bando de cães de caça.
Ele nunca teria outra encomenda como essa.
Abaixando o pincel, ele veio até ela. Ele acariciou seu cabelo para trás de
sua testa, beijou-a ali, então beijou seus lábios.
― Precisamos conversar, ― ela disse entre os beijos.
― Mais tarde. ― Ele tirou o casaco de seus ombros e soltou sua gravata.
― Mais tarde não. Agora.
― Se eu for acusado publicamente de tê-lo arrebatado, ― disse ele,
puxando a camisa da calça, ― então eu deveria ter permissão para realmente
fazê-lo em particular.
― Não me violou, ― disse ela quando ele a soltou e entrou na sala de
trabalho. ― Encantou Joseph Smart.
Ele voltou com óleo e um pano.
― Embora eu esteja me acostumando com as cócegas desses bigodes, ―
disse ele, passando o óleo sobre a pele e descolando a penugem, ― prefiro beijá-
la sem isso.
― Não vai reconhecer o que eu disse?
― Na verdade, eu não violei nem você nem Joseph Smart. Os dois me
agarraram e me beijaram. Conforme os arroubos passarem, o público ficará
desapontado. Achei muito agradável, claro.
― Deve falar a sério. Alguém deseja me ferir, ou talvez nós dois, mas por
causa da juventude de Joseph, arcará com todo o fardo disso.
Ele soltou as calças dela. ― Nunca acreditei que meu tempo nesta terra
seria longo, joonam. De fato, há duas décadas espero que a morte chegue a
qualquer momento.
― Isso não acontecerá, ― disse ela, colocando as mãos em seus ombros
enquanto ele se inclinava para empurrar as calças para baixo. ― Deve escrever
ao duque. Pediremos sua ajuda.
Suas mãos acariciaram ao longo de suas coxas nuas. ― Essas pernas! Eu as
quero em volta de mim. Agora. Ele olhou nos seus olhos e ela ficou chocada
com a névoa febril de luxúria nos dele.
― Não fará nada para se salvar?
Ele pegou a mão dela e beijou os nós dos dedos como um cavaleiro se
ajoelhando diante de sua dama.
― Tudo o que quiser, eu farei, jan-e delam. ― Ele se levantou e começou a
atravessar a sala em direção ao seu quarto. ― Agora vem. Temos maravilhas
para serem feitas e particularmente não me importo com quem faz, só que
façamos sem mais demora.
Ela foi, e logo não houve arrebatamento, mas paixão, e quando ele a levou
ao prazer a ponto de chorar, escondeu as lágrimas de desespero contra sua pele e
segurou-o com força.
Capítulo 29
O Sacrifício
A Verdade
O Campeão
Um Novo Acordo
Maio de 1828
Edimburgo, Escócia
― Lá. Aqui não. Lá. Bom Deus, Archie, não consegue ver?
― Sim, eu posso ver, senhorita Perfeição ― disse ele, levantando sua
atenção da ferida meio costurada para olhar para ela. ― Eu estou fazendo do
meu jeito, muito obrigado.
O paciente, um velho pescador envelhecido, olhou com cautela de um para
o outro.
― Está tudo bem, ― disse Libby a ele gentilmente. ― O Sr. Armstrong
costura uma sutura excepcionalmente boa. ― Ela cruzou os braços. ― Seria
muito mais rápido se ele permitisse que eu o fizesse.
― Sim, ― disse Archie. ― Mas nós dois seríamos suspensos deste lugar
por quinze dias. Novamente. Não arriscarei estando tão perto de me sentar para
os exames.
― Vai se sair bem.
― Chedham está à minha frente.
― Ele sempre esteve à sua frente.
― Feito! ― Ele se endireitou e acenou para o pescador. ― Como se sente?
O pescador dobrou o braço. ― Eu preferiria que a moça tivesse feito isso.
― Aha!
Archie revirou os olhos. Pegando seu kit de sutura, foi em direção ao
lavatório.
Archie secou as mãos. ― Seria o presidente deste lugar algum dia se....
― Se a faculdade permitisse que eu me tornasse uma colega. Não sei por
quanto tempo terei paciência para isso, Archie ― disse ela quando saíram do
prédio. ― Meus professores são todos maravilhosos, especialmente o Sr.
Bridges e o Sr. Syme.
― Bridges estava novamente se gabando do seu trabalho no outro dia. Não
pode medicar a si mesmo.
― Mas ser proibida de trabalhar na enfermaria, apesar de tudo, tenho
provado repetidamente, e mesmo assim sou privada de outros ensinamentos. ―
Esta manhã, ela havia recebido mais uma advertência conjunta do conselho da
cidade e da Igreja da Escócia de que, se tentasse realizar uma cirurgia em
qualquer instituição médica estabelecida, enfrentaria o desagrado total da lei. ―
Até a associação dos boticários fechou suas portas para mim. Não há lugar em
Edimburgo para uma mulher cirurgiã.
― O que vai fazer, Lib?
― Continuar a ajudar no hospital dos pobres em Leith e a estudar. ― E
esperar. Ela não podia dizer em voz alta, mas a verdade é que durante dois anos
ela esteve esperando. Esperando por um milagre.
Ela colou um sorriso em sua face, da mesma forma que uma vez colou
umas suíças.
― E eu vou continuar importunando-o e ao Pincushion para me deixarem
trabalhar em seus pacientes aqui, quando ninguém estiver assistindo.
― Algum dia nós vamos abrir nossa própria clínica cirúrgica privada, nós
três. George será nosso advogado e nós seremos os cirurgiões mais populares na
Escócia. ― Ela sorriu genuinamente agora.
Eles tinham chegado à esquina do seu quarteirão. ― Tem tempo para uma
cerveja? ― Perguntou Archie.
― Hoje não. Tenho que terminar de escrever notas sobre a hérnia
estrangulada que eu consertei ontem.
― Amanhã então.
― Amanhã, talvez. ― Ela o observou se afastar. Não se juntaria aos amigos
no pub amanhã, nem no dia seguinte, nem no outro dia. Ela os adorava. Eles
permaneceram companheiros leais, mesmo quando seus estudos particulares
levaram suas habilidades e conhecimentos para muito além da deles. Mas eles
eram tão jovens. Como Íris, eles brincavam na vida sem a compreenderem
completamente, enquanto ela era uma mulher adulta que conhecia seu coração e
mente, mas ainda estava esperando por um dia que nunca chegaria.
Era hora de sair de Edimburgo. A comunidade de homens médicos era
muito forte contra ela. De acordo com alguns em Edimburgo, ela ainda era uma
mulher antinatural e uma mulher decaída, disfarçando-se de homem apenas para
ser seduzida pelo Turco, depois abandonada e agora escandalosamente vivendo
sozinha. Que ela fosse acusada de ambos, lado a lado, era uma pilha de
irracionalidade. O pior, no entanto, foi a ignomínia que trouxe para seus
mentores e amigos por simplesmente se associar a eles.
Ela precisava ir para outro lugar, talvez para uma aldeia remota que
precisasse desesperadamente de uma curandeira, onde ninguém a castigasse por
isso. Sentiria saudades de Alice, Iris, Coira e da Sra. Coutts. Mas não podia mais
suportar essa vida parcial.
E ela precisava ir embora dos lugares em que não podia deixar de pensar
nele.
A dor de levantar-se todos os dias sem ele na casa não desaparecera
completamente. As lembranças continuavam frescas. Ela nem havia alterado o
seu estúdio. Ele estava governando um reino a milhares de quilômetros de
distância, mas ela não conseguia se desfazer de um único pincel.
Deixar Edimburgo era a solução mais sábia.
Ela poderia morar com o pai e Clarice em Londres. O senhor Bell
prometera contratá-la como assistente particular. Mas os hospitais e o College of
Surgeons também não a aceitariam e, de qualquer forma, ela não se importava
com Londres. Ela não queria deixar seus amigos aqui, a cafeteria na esquina, a
igrejinha onde ela gostava de se sentar no último banco e sua casa perfeita.
Ela não queria deixar para trás as memórias de seu retratista. Seu príncipe.
O Times de Londres anunciara o fim da guerra entre o Irã e a Rússia e
elogiava o justo governante de Tabir por ajudar a negociar o tratado.
A guerra estava se formando novamente entre a Rússia e os otomanos. Mas
por enquanto, a um mundo de distância, ele estava bem. Ela queria apenas isso.
Dois anos de espera foram longos o suficiente. A vida deve ser vivida.
Deslizando a mão em um ponto delicado em sua bochecha, ela subiu os
degraus até a porta da frente e procurou a chave no bolso.
― Está preparada para isso? ― Veio uma voz de trás dela - a voz mais
perfeita em todo o mundo.
Ela se virou e lá estava ele na calçada abaixo, uma figura alta, magra e
sombria de elegância excepcional com uma bengala com ponta dourada,
completamente imóvel e observando-a.
As mais extraordinárias sensações romperam seu coração e se espalharam
por todas as partes dela. Espanto. Desejo. Alegria.
― Preparada para viver inteiramente entre os homens? ― Ela disse, não
totalmente estável. ― Aprender seus caminhos e fingir ser o que não sou, para
que eles não me conheçam pelo que eu realmente sou? Estar sempre sozinha?
Ele ofereceu aquela linda inclinação de cabeça que ela sempre achou tão
principesco mesmo quando não sabia que ele era um príncipe.
― Não, ― disse ela. ― Por enquanto eu sei quem sou, e desejo apenas ser
eu mesma.
Ele subiu os degraus e ela permaneceu imóvel enquanto tudo dentro dela
era um tumulto. Tão perto agora era impossível não ver as mudanças que dois
anos haviam feito nele: seu cabelo estava mais comprido e bigodes curtos
emolduravam sua boca e mandíbula. Seu casaco era muito fino, o estilo régio,
seu colete com fios em ouro. Ele parecia um governante de um reino estrangeiro.
Como um estranho.
Ele estava olhando para ela como se ela fosse uma estranha também, seus
olhos escuros questionando. A incerteza hesitante pairava no ar entre eles.
― Tem gesso grudado na sua bochecha, ― ele disse em um silêncio
constrangedor, sua voz um pouco tremida também. Ele estendeu a mão e tirou-o
da pele, e as pontas dos dedos permaneceram por um instante - por apenas um
instante - por tempo suficiente.
A incerteza vacilou, depois desapareceu.
― Esqueci de me olhar no espelho antes de sair da enfermaria ― disse ela,
atraindo o cheiro dele para ela e ficando tonta. ― O paciente de Archie estava
uivando, então eu misturei o gesso mesmo que tenha sido proibida de ajudá-lo.
Foi horas atrás. Mas eu estava distraída. Na verdade, fiquei distraída o dia todo.
Ele inclinou a cabeça e ela viu a mudança de músculos em sua mandíbula.
― Diga-me que é porque hoje é o aniversário do dia em que parti.
― É porque hoje é o aniversário do dia que partiu. ― Com os dedos
trêmulos, ela colocou um cacho solto atrás da orelha e a esperança bateu nela. ―
Não é possível que tenha chegado hoje por coincidência.
― Na verdade, foi necessário um esforço bastante significativo da minha
parte até para chegar hoje. Os ventos nem sempre sopram na direção que se
deseja.
Formigamentos de felicidade estavam se espalhando dentro dela. ―
Metáforas de novo?
― Ventos reais também, como aconteceu. Meu navio atrasou a chegada ao
porto. Fui obrigado a cavalgar de Newcastle para chegar aqui hoje.
― Ainda nem mudou de roupa. Cheira a cavalo.
― E a senhorita cheira a cânfora. ― Seus olhos sorriam. A alegria era
selvagem em seu peito.
― Tenho acompanhado as notícias da guerra. ― Perseguido. Devorado.
Tinha medo de que um dia lesse que Tabir havia caído, que ele se fora para
sempre. ― Eu f- fiquei feliz em ler sobre o tratado, q- que seu reino está bem e
seu - seu povo.
― Gagueira? ― Ele levantou uma sobrancelha. ― Quando isso começou?
― Neste momento. Isso é extraordinário. Eu realmente nunca pensei em
nunca mais vê-lo novamente.
― Claro que pensou.
― Eu não o fiz. Eu queria. Eu imaginei isso. Claro. Eu pensava todos os
dias em como essa conversa poderia acontecer se voltasse: o que diria para mim,
o que eu lhe diria, onde aconteceria, todos os detalhes. Às vezes eu pensava
nisso a cada hora. Eventualmente, tornou-se tão angustiante que fui obrigada a
me recompensar para não permitir que minha mente girasse em torno dessa
potencial conversa.
― Superou isso.
― Sim, primeiro, me permitindo passar um quarto de hora por dia
escrevendo o que eu imaginava que diríamos um ao outro. Nos quinze dias
seguintes, permiti-me apenas pensar nisso por um quarto de hora por dia. Mas o
último se mostrou impossível, pois estava sempre em minha mente de qualquer
maneira. Finalmente, me permiti lembrá-lo sempre, exceto imaginar essa
conversa.
― Essa conversa é parecida com o que imaginou?
― Pedaços dela. A parte em que disse que fez um esforço significativo para
voltar, sim. Não a parte sobre gesso.
Sua boca estava resistindo a um sorriso. ― Como eu senti sua falta, ― ele
disse muito bem e estendeu a mão para enrolar o cacho errante atrás da orelha
dela. Desta vez, as pontas dos dedos demoraram-se por mais de um momento,
acariciando a inclinação de sua mandíbula e enviando faíscas de prazer através
dela.
Ela colocou a palma da mão sobre o peito dele, e a sua sólida realidade a
preencheu enquanto seus pulmões enchiam profundamente sob sua mão.
― Está aqui, ― ela sussurrou.
― Eu estou aqui, ― ele respondeu suavemente.
― Esse é um casaco lindo, não importa que cheire a cavalo. Está vestido
magnificamente. Regiamente. Essa bengala é a peça entalhada mais bonita que
eu já vi.
― Eu queria impressioná-la.
― A mim?
― Quando nos conhecemos, eu desenhei seu rosto para impressioná-la.
Depois disso, não consegui me esquecer de nenhum detalhe dessas
características. Sim, sempre quis impressioná-la, jan-e delam.
Ela enrolou os dedos ao redor da lapela de seu casaco, sabendo que não
deveria fazer isso aqui na varanda, mas incapaz de libertá-lo, e de qualquer
maneira tinha passado uma vida fazendo o que não deveria.
― Eu pedi notícias suas, ― ele disse.
― Pediu? Do duque?
― Toda quinzena.
― Cada quinzena? O que ele relatou?
― Que permanecia destemida. Que continuou seus estudos. Que é
brilhante.
― Já estava ciente do último.
― E que não se casou.
― Por que eu deveria?
O sorriso relutante que ela tanto amava enrugou sua bochecha. ― Por que
deveria, de fato. ― Não era realmente uma pergunta.
― Sua irmã e filhos estão bem?
― Muito bem. ― Seu olhar estava viajando em seu rosto lentamente. ―
Depois do tratado, quando me garantiram que tudo estava estável, abdiquei.
Seu braço caiu. Ela ficou boquiaberta. ― Fez – o que – com ...
― Precisamos fazer algo sobre essa gagueira. Não lhe cai bem.
― Abdicou? Mas pode fazer isso?
― Eu fiz. Então sim, eu posso. Isto é, primeiro eu formei um parlamento.
Isso levou algum tempo, é claro ― ele disse calmamente, como se estivesse
recitando recados. ― Quando isso foi resolvido, escrevi uma petição ao
parlamento dizendo que minha irmã deveria servir como regente até que seus
filhos atingissem a maioridade e, em seu primeiro ato oficial, os membros o
ratificaram. Tudo correu muito bem, na verdade. Esta é a era moderna, sabe. As
monarquias constitucionais são muito populares.
― Não deve brincar sobre isso.
― Não estou brincando.
― Abdicou.
― Como pode duvidar? ― Ele disse, agora sóbrio.
― Não se abdica simplesmente!
― Se faz quando a mulher que se quer está do outro lado do mundo. ― Ele
levou a mão dela aos lábios e a beijou com ternura - tão ternamente. ― Não sou
o primeiro monarca a abdicar por amor.
Por amor.
Isso não poderia ser real.
― Quando saiu daqui, ― ela disse, ― eu acreditava que nunca voltaria.
― Quando saí daqui, soube a menos de um quilômetro que não sou
ninguém se não estiver ao seu lado. ― Ele inclinou a cabeça para que suas
sobrancelhas quase se toquem. ― Preenche meu coração, Elizabeth Shaw. Enche
minha cabeça. Só pensei em você, só queria você. Longe de você, eu tenho sido
como um homem dormindo enquanto acordado, sempre em um sonho terrível do
qual não conseguia acordar. Sem você sou meia alma. Com você eu sou inteiro.
― Ele olhou em seus olhos. ― Estou em casa.
Ela não conseguia respirar. ― Mas não pode ter desistido da sua coroa.
― Eu desistiria de mais que uma coroa. Por você, eu desistiria do mundo.
Com um grito de alegria, ela jogou os braços sobre ele. Ele beijou sua testa,
sua bochecha. ― Eu não estou atrasado?
― Nunca teria chegado tarde demais.
― Me aceitará? ― Ele perguntou com ferocidade linda. ― Permitirá que
eu a cuide e faça amor contigo e que a veja ser extraordinária no mundo, desta
vez por toda a vida?
― Sim, sim, eu vou, claro, agora me beije. Pois esta foi a parte que
imaginei todas as vezes.
Ele sorriu e a beijou sorrindo, e acariciou a ponta do polegar sobre o lábio
inferior.
― Então temos um acordo? ― Ele perguntou.
― Temos um acordo. ― Ela puxou a chave do bolso e apertou-a na palma
da mão dele. ― Bem-vindo a nossa casa. ― Ela alisou as mãos no peito dele e
sentiu toda a sua força gloriosa. ― Onde está o meu retrato que levou contigo?
Ele a beijou novamente, saboreando seus lábios. Suas mãos envolveram sua
cintura e ele a puxou confortavelmente para ele. ― Pendurado em uma galeria
em Paris, ― disse ele entre beijos. ― Por que pergunta?
Ela se agarrou a seus ombros e aceitou sua boca em seu pescoço. ―
Ultimamente eu tenho desejado um retrato meu.
― Tem?
― Sim. Porém, apenas do meu queixo.
Ele beijou seu queixo. ― Este belo queixo.
― Também o lóbulo da minha orelha.
― Lóbulo da orelha requintado, ― ele murmurou, arrastando a língua ao
longo do apêndice sensível.
― E talvez meu tornozelo esquerdo.
― E esses lábios, ― disse ele, beijando-os novamente. ― Esses lábios
perfeitos.
― Lábios também ― ela disse com um suspiro porque aqueles lábios
estavam no céu sob os dele.
― Eu conheço um artista que pode fazer esses retratos. ― Seu timbre era
rico e rouco, do jeito que ela amava.
― Eu esperava que sim.
― Ele está disponível agora.
― Esplêndido, ela disse. ― Vamos cuidar disso imediatamente. ― Não há
tempo a perder.
Eles entraram.
Não chegaram ao estúdio. Não diretamente, pelo menos. De alguma forma,
foram pegos nos braços um do outro e a sala de estar estava perto, e a ânsia de
confirmar seu novo acordo foi muito além da necessidade de um aperto de mão
cavalheiresco.
Mais tarde, havia chá para ser saboreado e depois uma grande quantidade
de beijos na cozinha também, já que era difícil deixarem de se tocar até para
beber uma xícara de chá. No meio disto tudo, eles redescobriram um ao outro,
imprimindo em seus sentidos novamente a cadência do riso, a textura da pele, a
beleza dos suspiros, o vislumbre de afeição nos olhos azuis e marrons, e o brilho
do amor.
Finalmente, eles chegaram ao estúdio. Ela havia instalado um sofá bem
acolchoado no quarto e explicou que era porque gostava de descansar ali à tarde,
às vezes para ler, e às vezes para catalogar mentalmente os galhos das árvores no
jardim e fingir que não estava pensando nele.
Eles fizeram amor novamente naquele sofá. Beijando-a, ele murmurou as
palavras atashe delam. Quando ela perguntou a ele o significado daquilo, ele
disse que ela era o fogo de seu coração, e então mostrou a ela.
Mais tarde, quando estava corada, quente, úmida e totalmente satisfeita, ele
foi até a sala de trabalho, tirou lona e lápis e começou um novo retrato.
Os dias seguintes foram muito parecidos, incluindo uma eficiente visita a
um pároco em meio às sessões de namoro e amor.
Quando o retrato foi concluído, Ziyaeddin pendurou-o na parede do quarto
principal. Libby disse que era tolice ter uma grande pintura nua de si mesma em
seu quarto, mais ainda, uma pintura em que ela obviamente estava sofrendo de
gratificação sexual. Ele respondeu que devia permanecer ali, pois sempre que ela
estivesse longe de casa até tarde da noite na cabeceira de um paciente, isso lhe
faria companhia e lhe proporcionaria enorme prazer. Ela brincou com ele, e ele a
pegou em seus braços e disse a ela que a amava, que estava louco por ela, e que
ordenava que ela o obedecesse, porque ele era, afinal, de sangue real. Ela disse
que nunca concordaria em obedecê-lo em nada, mas que faria amor com ele
imediatamente, e então talvez eles pudessem tomar chá e biscoitos, sentar no
sofá e ler um para o outro, e então provavelmente fazer amor novamente e isso
não seria muito mais divertido?
Para isso, seu príncipe respondeu como ela desejava.
Epílogo
Maio de 1868
Escócia