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"Nós que aqui estamos por vós esperamos.

"
por Nicolau Sevcenko

Com base na história e na psicanálise, Marcelo Masagão compôs um complexo mosaico de


memórias do século 20. Seu recurso à justaposição de imagens e seqüências fragmentadas, ao
invés de uma narrativa contínua e linear, capturou o âmago mesmo desse tempo turbulento. A
irrupção nele da cultura moderna indicava precisamente isso: a ruptura de todos os elos com o
passado; o imperativo da supremacia tecnológica; a penetração ampla e profunda em todas as
dimensões, macro e micro, da matéria, da vida e do universo; o anseio da aceleração, da
intensidade, e da conectividade; a abolição dos limites do tempo e do espaço. O que mais marca
este momento portanto, é justamente essa multiplicação de energias, a pluralidade das sensações
e das experiências, o esfacelamento da consciência e a interação com os mais diversificados
contextos.

A história se pulveriza numa miríade de registros e o inconsciente aflora, magnificado pela


potência das novas fontes de estimulação sensorial, bem como pelo choque traumático das forças
destrutivas deslaçadas sobre a humanidade.

Sensível e ponderado foi também o seu modo de jogar com as perspectivas de gentes simples e
anônimas, nascidas no torvelinho das grandes transformações, dragadas pelas engrenagens dos
gigantescos complexos industriais, as linhas de montagem, o lazer massificado, a publicidade, os
apelos do consumo, as alegrias da dança e do corpo liberado, os rigores trágicos das crises e da
guerra. Dando nome a essas criaturas minúsculas, ele ao mesmo tempo devolve o quinhão de
humanidade que lhes foi negado, como destaca o modo pelo qual a dinâmica social opera através
da modulação dos comportamentos, a rotinização do cotidiano e a galvanização das mentes.

Dentre a massa de personagens anônimos ressaltam alguns rostos e nomes famosos: artistas,
cientistas, intelectuais, líderes políticos e espirituais. Eles funcionam como chaves que articulam
tendências de ampla configuração em diferentes níveis da experiência social e cultural.
Catalisando processos em andamento, eles ao mesmo tempo dão voz às minorias silenciosas,
como sinalizam alternativas ou consolidam estados latentes de aspiração, conformação, revolta
ou ressentimento. A história é tramada nessa imprevisível dialética entre pressões estruturais,
decisões individuais, desejos, pavores e projeções subconscientes, tensões sociais e a polifonia
de vozes que dão forma e expressão às conjunturas.

A singela fórmula "nós que aqui estamos, por vós esperamos", gravada no portal do pequeno
cemitério de província, é outro dos achados cintilantes deste filme. Por um lado, ela oferece um
contraponto tocante às ambições grandiloqüentes do século 20 e de sua modernidade. Evoca a
fragilidade e os estreitos limites da condição humana, os quais têm sido sistematicamente
ignorados por poderes e ambições que atravessaram o período impondo demandas e sacrifícios
exorbitantes. Por outro lado, apresentada no final do filme, a frase ressoa e opera como um feixe
que conecta todos os fragmentos dispersos, nos transportado para dentro daquele mundo, como
mais uma memória que irá se somar a esse painel dramático, ligada a cada detalhe dele por
vínculos de solidariedade e compaixão. Os temas compulsivos e recursivos das músicas de Win
Mertens funcionam como o nexo emotivo que, se instila ritmo e vibração às imagens, também
nos põe em sintonia com os sonhos profundos que animaram nossos irmãos e irmãs nessa
aventura histórica ainda mal entendida e certamente inacabada, mas que obras como essa nos
ajudam a vislumbrar e a compreender melhor. Creio que é isso também que eles, lá na sombra
discreta do cemitério, esperam de nós.

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