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MÓDULO 2 – AULA 7– O FANTÁSTICO

Na organização das formas literárias na ficção, vimos que a complexidade


do uso de elementos singularizantes – isto é, a forma de narração, o
narrador, o tema, os personagens, o tempo, o espaço – conjuga-se com o
tipo de efeito que o autor quer obter e o tipo de público que quer alcançar.

A nova forma literária que estudaremos neste capítulo, a literatura


fantástica, entende-se muito bem com o tipo de estruturação e de proposta
literária do conto. E isso, por que?

O conto caracteriza-se por apresentar uma narrativa densa, complexa e


que envolva alguns personagens numa trama. Não importa que seja longo
ou curto, o que distingue o conto como narrativa é a intensidade.

Por exemplo, Machado de Assis é o escritor brasileiro que deixou várias


coletâneas de contos, como Contos fluminenses, Histórias da meia-noite,
Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas, Relíquias da casa
velha, Outros contos. Essas antologias reúnem contos de diversos formatos,
alguns mais breves, como o “Ideias do canário” – que lemos e comentamos
no capítulo sobre o maravilhoso (ver Aula 6 e o link
http://contobrasileiro.com.br/?p=305 ); há contos tão longos que o autor
divide em unidades de tempo-espaço-enredo, unidades a que Machado
chama de “Capítulo”. São deste porte os contos do livro Contos
fluminenses, por exemplo. Mas há os contos mais longos, de mais de cem
páginas, como “O parasita azul” e a maioria dos contos de Histórias da
meia-noite.

Antes de abordarmos as características do conto fantástico, estudaremos


um pouco mais o comportamento do narrador, já que no fantástico a
escolha do ponto de vista da narração pode ajudar muito na
obtenção de efeito.

7.1. O NARRADOR

Em relação aos elementos singularizantes da prosa de ficção que estudamos


na aula anterior, há uma pergunta que permanece, de resposta nem
sempre clara e possível: quem está contando a história? Quem é o
narrador? Quem é o sujeito da narrativa?

A narrativa revela um “ponto de vista” sobre a história narrada. Se na


poesia o desejo do poema é encontrar uma voz para os sentimentos do
mundo, na prosa, em geral, a linguagem busca aproximar o leitor de um
mundo e suas imagens, de sua organização e expressão. Ao contar uma
história, ainda que a motivação tenha sido um fato ou uma experiência
extraídos do real, o escritor não tem compromisso com a verdade. O
compromisso do escritor é com a organização do mundo que imaginou, com
a coerência entre suas partes, a fidelidade a esse universo que criou. O
narrador é a voz da ficção que organiza a narrativa.

O mundo criado faz sentido porque nele o leitor percebe o ambiente, o


tempo, o espaço, as pessoas envolvidas, isso é, as personagens, e a ação
em que vão se enredar para dar a conhecer seu modo de pensar, de sentir.
E o leitor entra em contato com esse mundo por meio de uma narração –
porta de entrada para uma situação que se oferece.

O que se pretende nesta etapa da Aula 7 é chamar a atenção para a


diversidade de formas de narração e de possíveis e mais genéricas
classificações de narrador. Para, na segunda etapa, podermos
perceber como se constrói a narrativa fantástica.

Machado de Assis é ótimo para exemplificar a questão da variação da forma


de apresentação de ponto de vista sobre a história narrada ou de vozes do
narrador e a classificação geral dos narradores será apresentada por meio
de exemplos das aberturas de contos do livro Contos fluminenses, que está
inteiramente disponível para leitura por meio do link
http://redememoria.bn.br/wp-content/uploads/2011/12/contos-
fluminenses.pdf. A classificação é sugestiva, obviamente a literatura estará
sempre combinando as formas possíveis das maneiras mais inusitadas. A
participação do leitor é fundamental para se restabelecerem as opções
usadas pelo autor numa narração.

A) um narrador que assume sua voz de contador de história, não é


neutro porque se intromete com opinião própria no que vai ser dito,
e dirige-se diretamente ao leitor. Nesse caso o narrador é onisciente –
conhece tudo aquilo que vai ser contado. Mas, porque se mete na história
que conta, passa a ser um narrador onisciente intruso, porque faz
questão de dizer que está escolhendo o modo como deve contar e por quê.
Vejam como se inicia “Miss Dollar”:
Era conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo
sem saber quem era Miss Dollar. Mas por outro lado, sem a
apresentação de Miss Dollar, seria o autor obrigado a longas
digressões, que encheriam o papel sem adiantar a ação. Não há
hesitação possível: vou apresentar-lhes Miss Dollar.
O primeiro parágrafo é suficiente. Por ele percebe-se a sagacidade do
narrador de insinuar que é diferente do autor e se coloca como
responsável pela narração (“seria o autor obrigado a longas
digressões” e “apresentar-lhes Miss Dollar”). Numa economia de
linguagem surpreendente, também consegue aproveitar para teorizar
sobre a construção do texto – que ele chama de romance, ainda
que se trate de um conto - (“Era conveniente ao romance que o
leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar”). E com
isso mostra que é o “dono” da narrativa e e que é ele que escolhe
usar o recurso de adiar uma informação para alimentar a curiosidade
do leitor, sem se delongar excessivamente para não aborrecer.

Apesar de usar a primeira pessoa (“vou apresentar-lhes”) o resto da


narração se dá de forma neutra. De qualquer modo, esse narrador
assume a onisciência do que vai ser contado. Vejamos como
além de mostrar onisciência, isso é, que sabe tudo sobre a
história que vai narrar, também é intruso, quando intromete-se
na narrativa. Quer dizer, seu ponto de vista muda em relação à
distancia que se coloca, ora mantendo-se afastado, ora
aproximando-se. Como se vê na leitura de um parágrafo mais
adiante:

A descoberta seria excelente, se fosse exata [refere às


especulações que o leitor poderia fazer sobre quem seria Miss
Dollar]; mas infelizmente nem esta nem as outras são exatas.
A Miss Dollar do romance não é a menina romântica, nem a
mulher robusta, nem a velha literata, nem a brasileira rica.[...]
Para algumas pessoas a qualidade da heroína fará perder o
interesse do romance. Erro manifesto. Miss Dollar, apesar de
não ser mais que uma cadelinha galga, teve a honra de ver o
seu nome nos papéis públicos, antes de entrar para este livro
[logo a seguir, Machado publica o anúncio do desaparecimento
da cadelinha galga (ficção) publicado em dois “papéis públicos”
(jornais) da época O Jornal do Comércio e o Correio Mercantil
(dado real)].
Mais uma vez Machado dá aula de mestre e insinua sobre a natureza
da ficção. Na ficção tudo é inventado por se tratar de universo
criado pelas palavras, ainda que as palavras finjam trazer a
verdade. Então este narrador que sabe tudo intromete-se na história
que conta.

B) Há também um narrador que entra direto na história, uma história


que parece conhecer, como narrador onisciente, porém, neste caso,
um narrador neutro. Não se intromete apenas expõe os fatos,
escondendo-se atrás de apresentações, como temos na abertura do conto
“O segredo de Augusta”.

Nesse conto ele traz a história para o presente bem próximo de modo que o
leitor se aproxima do que está sendo narrado, como se fosse alguma coisa
imediata.

São onze horas da manhã.


D. Augusta Vasconcelos está reclinada sobre um sofá, com um
livro na mão. Adelaide, sua filha, passa os dedos pelo teclado
do piano.
- Papai já acordou? pergunta Adelaide à sua mãe.
- Não, responde esta sem levantar os olhos do livro. Adelaide
levantou-se e foi ter com Augusta.[...]
O narrador apenas indica movimentos, descreve detalhes do ambiente,
conta o que vê.

C) Já o conto “A mulher de preto”, também de Contos fluminenses, o


narrador tradicional onisciente neutro torna-se “testemunha” do
que ocorre, como se precisasse explicar, justificar cada ação,
pensamento, intenção dos personagens que apresenta. Não deixando
dúvida, pela segurança da narrativa, de que tudo o que o leitor quer ou
precisa saber ele dirá. Cabe a esse narrador detalhar época, costumes,
tempo, espaço, cenário onde as cosias acontecem, mas também as
intenções, os pensamentos. Ele toma a palavra e entra na conversa dos
personagens, no seu diálogo, onde eles deveriam se mostrar por si
mesmos.

A primeira vez que o Dr. Estevão Soares falou ao deputado


Meneses foi no Teatro Lírico no tempo da memorável luta entre
lagruístas e chartonistas. Um amigo comum os apresentou um
ao outro. No fim da noite separaram-se oferecendo cada um
deles os seus serviços e trocando os respectivos cartões de
visita.
Só dois meses depois encontraram-se outra vez.
Estevão Soares teve de ir à casa de um ministro de Estado para
saber de uns papéis relativos a um parente da província, e aí
encontrou o deputado Meneses, que acabava de ter uma
conferência política. Houve sincero prazer em ambos
encontrando-se pela segunda vez; e Meneses arrancou de
Estevão a promessa de que iria à casa dele daí a poucos dias
[...].
Este é o narrador que observa, testemunha o ocorrido, e vai narrando ao
leitor, apenas dá as entradas das falas das personagens, aponta os
semitons da história sobretudo pelo uso dos adjetivos e dos advérbios (Só
dois meses depois...sincero prazer em ambos...)

D) E não se pode deixar de mencionar o narrador que fala em primeira


pessoa, recurso que Machado usa escrevendo “Confissões de uma viúva
moça”:

Há dois anos tomei uma resolução singular: fui residir em


Petrópolis em pleno mês de junho. Esta resolução abriu largo
campo às conjecturas. Tu mesma, nas cartas que me
escreveste para aqui, deitaste o espírito a adivinhar e figuraste
mil razões, cada qual mais absurda. A estas cartas, em que a
tua solicitude traía a um tempo dois sentimentos, a afeição da
amiga e a curiosidade de mulher, a essas cartas não respondi e
nem podia responder. Não era oportuno abrir-te o meu coração
nem desfiar-te a série de motivos que me arredou da Corte,
onde as óperas do teatro Lírico, as tuas partidas e os serões
familiares do primo Barroso deviam distrair-me da recente
viuvez.
Lê-se uma narração subjetiva que revela uma narradora abrindo o
próprio coração, nada mais certo de que este seja o verdadeiro
exemplo de narrador onisciente, não é mesmo?

7.2 A NARRATIVA FANTÁSTICA: O USO DIFERENCIADO DE


ELEMENTOS SINGULARIZANTES

Dissemos que o relato maravilhoso é real, se transforma em realismo


maravilhoso, quando ele torna natural na constituição da narrativa a
convivência dos elementos mágicos com os elementos do cotidiano.
Distinguimos, de algum modo, o maravilhoso “puro” que se apresenta
quando todo universo é especial, feérico, extraordinário, como no mundo
das fadas.

De que se trata agora, quando falamos em narrativa fantástica. O que esta


narrativa propõe, que a distingue da criação do mundo ficcional de caráter
realista, verossímil, lógico? Podemos começar pelo efeito que esta narrativa
produz ou pretende produzir no leitor. Diz Irlemar Chiampi (1980, p.53):

O ponto chave para a definição do fantástico é dado pelo princípio


psicológico que lhe garante a percepção do estético: a
fantasticidade é, fundamentalmente, um modo de produzir no
leitor uma inquietação física (medo e variantes), através de uma
inquietação intelectual (dúvida). [...] O medo é entendido aqui
em acepção intratextual, ou seja, como um efeito discursivo (um
modo de...) elaborado pelo narrador, a partir de um
acontecimento de duplo referencial (natural e sobrenatural).

Dizendo mais claramente, se o leitor sente uma sensação de estranho


acentuado, de suspense, de constrangimento, de inquietação forte,
todos esses sentimentos são produzidos pelas palavras escritas no
texto e seu modo de organização para produzir esse efeito. O texto
cria esse efeito apresentando “uma presença insólita” ou “mistério
sobrenatural” ou um “poder de origem duvidosa” (Nodier, 1974).

Esses elementos estranhos evocados são monstros, fantasmas, e


demônios, e os personagens os pressentem, desconfiam, e esses
elementos, diferente do que ocorre no maravilhoso, não parecem
oferecer a harmonia com a natureza, com as cosias do real. Pelo
contrário, esses elementos quebram a harmonia e, em seu lugar,
desestabilizam, enfraquecem, atemorizam, aterrorizam.

Examinando exemplos dessa poética da incerteza, do


estranhamento (extremado) do leitor, do efeito de calafrio,
medo ou terror.

Também aí veremos que a Literatura, que não segue normas rígidas,


cria o gênero e suas variações.

O terror clássico será O médico e o monstro, de Robert Lewis


Stevenson, um escritor escocês do final do século XIX. Este livro está
disponível na internet em versão pdf, procure e verá como sua
narrativa obscura induz a um clima de amedrontamento. Mas vamos
colocá-lo na sala de aula do Modulo 2, ao lado da Aula 7, para
quem quiser conhecer o texto integral.

O importante é perceber, nos textos abaixo, o indicativo do clima


soturno; de uma história que se ouviu contar, de origem duvidosa:

Aconteceu que num desses passeios dominicais foram dar a uma


rua sinuosa de um dos bairros mais concorridos e animados de
Londres.
Ao se apresentarem os personagens principais, o tom da narrativa via
preparando o caminho para o desenrolar da história:

O documento não só dispunha que, em caso de falecimento de


Henry Jekyll, Dr. Em Medicina, Dr. em Direito, Dr. em Letras e
membro da Royal Society, todos os seus bens fossem parar às
mãos do seu «amigo e benfeitor, Edward Hyde», como também
que, em caso do «desaparecimento ou ausência inexplicável» do
Doutor Jekyll durante um período de tempo superior a três
meses», o sobredito Edward Hyde entraria de posse dos bens
daquele, sem mais dilação, e livre de obrigações para além do
pagamento de uma pequena soma ao pessoal ao serviço do
doutor.
Quem ler a narrativa vai verificar que tudo é feito de modo a não
prestar esclarecimentos, mas manter o mistério, a confusão entre as
identidades de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, que são a mesma pessoa com
misteriosa dupla identidade.

Emitiu um grito lancinante, cambaleou, procurou agarrar-se à


mesa e ali se ficou, fitando fixamente o vazio, com os olhos
injetados de sangue e respirando com dificuldade. Perante os
meus olhos atônitos, teve então lugar uma brusca transformação:
o seu rosto começou a inchar e as feições pareciam alterar-se a
ponto de desaparecerem. Nesse mesmo instante, ergui-me de um
pulo e recuei até à parede com o braço erguido como um escudo,
aterrorizado ante semelhante prodígio e gritando sem parar: -
Meu Deus! Meu Deus! Diante de mim, pálido e a tremer, prestes
a desmaiar, avançando a custo como um ressuscitado, estava
Henry Jekyll. Quanto ao que me disse depois, durante a hora
seguinte, sinto-me mentalmente incapaz de o transcrever. Vi o
que vi, ouvi o que ouvi e o meu espírito encheu-se então de
náuseas. Agora, porém, quando aquela cena se desvaneceu
perante os meus olhos, interrogo-me se creio nele e não sei que
responder.
A experiência do narrador com as poções do médico tornam-no um
duplo daquele fenômeno de transformação, e que o faz discutir a
relação do bem e do mal:

Daí que, apesar de possuir agora duas personalidades, bem como


duas aparências, uma era por completo o mal, enquanto a outra
continuava a ser o antigo Henry Jekyll, essa mistura incongruente
de cuja capacidade para se modificar e melhorar eu havia já
desesperado.
Essa relação polarizada entre o bem e o mal é ainda uma caraterística
do fantástico, uma literatura que se aproxima do terror e do mistério.
A versão juvenil mais conhecida desse gênero é, sem dúvida, é Harry
Porter. Verifique!

Concluindo

Se o realismo aproxima do que se convenciona chamar de real, o


maravilhoso destorce o real por colocar lado a lado, em convivência
harmoniosa, a magia e as coisas corriqueiras do mundo, e o fantástico
apela para os fenômenos que, de tão estranhos, geram receio, medo,
espanto, terror. Tudo isso varia em intensidade, a depender do uso da
linguagem na concepção do narrador, seu vocabulário, seu ponto de
vista, varia do estranhamento corrente do texto literário em
comparação com o texto não literário, ao mais rebuscado
encantamento e ao mais horripilante personagem do fantástico.

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