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Pólicles - Texto 1
Pólicles - Texto 1
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Originalmente publicado em Seara Nova, revista de doutrina e crítica. Lisboa, ano XIII, n.
374, 1 de fevereiro de 1934, p. 214-22. Assinado com o pseudônimo Marcos. [N. do O.]
PARTE I | LIVROS | PÓLICLES
cruzou pela primeira vez a porta da Academia. Mas sei também que para
Platão nenhum prazer seria maior que o de me ver liberto dele; ajudou-
-me a empurrar o barco sobre a praia, deu ao meu braço fraco o auxílio
do seu braço forte, enquanto o fundo roçou pela areia; depois, com um
último impulso em que lhe ia toda a alma, lançou-me a boiar sobre o mar
imenso do pensamento; julgas que devo esforçar-me por voltar de novo à
praia? Não, Menêxeno, eu darei a felicidade a Platão se desfraldar toda a
vela, a deixar inchar-se ao vento do meu espírito, e logo à flor das vagas,
deslizando, me sumir e perder no horizonte.
MENÊXENO – Só o poderás fazer se, como Ulisses, encheres os ouvidos de cera
e te amarrares ao mastro grande.
PÓLICLES – Há outra sereia mais feiticeira que Platão; sabes tu qual é? O pen-
samento de Platão; e essa manda-me seguir e seguir sempre, ir mais longe
do que ele, se puder, explorar as paragens onde não conseguiu chegar,
porque uma parte do seu esforço se despendeu conosco. Que seja cada
um de nós diante de Platão o que ele quis ser diante de Sócrates.
MENÊXENO – Bom seria então, Pólicles, que não fosse tão grande mestre...
PÓLICLES – Se não fosse tão grande mestre, jamais os seus discípulos sentiriam
o anseio sagrado de o ultrapassar; acredita, Menêxeno: o mestre vulgar é
como os passarinheiros que cortam as asas das pombas, para que as pom-
bas não voem até onde eles as não possam alcançar. Mas Platão só deseja
que se banhem no azul dos céus e tão alto subam que toda a terra se des-
dobre e revele a seus olhos.
MENÊXENO – Mas não deve ser o fim do mestre ver-se rodeado de discípulos
que tenha modelado à sua semelhança?
PÓLICLES – Não o creio, Menêxeno. Ele atingirá plenamente o seu objetivo se
criar discípulos que lhe sejam semelhantes num ponto apenas: no desejo
de não quererem tornar ninguém semelhante a si próprios. Não ansia-
mos nós todos pela liberdade como pelo bem supremo? Pois a liberdade
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é, mais do que tudo, a obrigação em que nos sentimos de não dispor dos
outros. E o mestre que pretende modelar os discípulos como imagens da
sua própria maneira de ser, não os incitando a buscar outros rumos, tem
alma de tirano; não liberta espíritos, arrebanha escravos.
MENÊXENO – Sempre julguei o mestre irmão do estatuário; a um dão o bloco
de mármore para que o desbaste, o amacie em curvas, e a pouco e pouco,
na luta contra a dificuldade, fazendo dela até uma arma, mostre na estátua
da deusa ou do herói toda a beleza e toda a criadora força do seu espírito;
ao outro, entregam a criança...
PÓLICLES – ... mas ouve, Menêxeno...
MENÊXENO – ... para que de igual modo nela mostre o valor da sua alma, a ver-
dade da sua doutrina, a eficácia do seu método.
PÓLICLES – Parece-te que Fídias tenha esculpido a sua Palas num desejo de
presente ou num desejo de futuro?
MENÊXENO – Gostaria de que fossem mais claras as tuas palavras...
PÓLICLES – Foi a ambição de Fídias realizar uma estátua da deusa que expri-
misse o seu próprio ideal e o ideal do seu tempo e nada mais, ou uma
estátua em que o ideal de todos os tempos encontrasse a sua mais perfeita,
a sua mais pura representação? Por outras palavras ainda, meu amigo, quis
fazer uma Palas que nada significasse ao cabo de cem anos ou uma Palas
que até o fim dos fins fosse para a alma de cada homem uma interrogação
e um modelo?
MENÊXENO – Quero bem crer, Pólicles, que foi essa última a intenção de
Fídias.
PÓLICLES – E conseguiu realizar a deusa, esculpindo-a apenas segundo o
seu ideal, segundo o arquétipo que se lhe ergueu no espírito logo à
primeira vez que o projeto o seduziu, ou estudando primeiro o ideal
dos outros homens?
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MENÊXENO – Pelo que sei de Fídias, pendo a supor que teria estudado, antes de
pôr mão na obra, o ideal dos outros homens.
PÓLICLES – Dos seus amigos e dos seus inimigos, dos seus parentes e dos que
lhe não eram nada, dos vivos e dos mortos?
PÓLICLES – E como o fez? Modelou o nariz segundo o ideal dum e a boca segun-
do o ideal doutro? Esculpiu o capacete como o teria concebido Pitágoras
e o manto como pensaria Sólon? Ou procurou o que havia de comum em
todos os ideais, em todos os tipos da deusa que encontrou pelo mundo?
MENÊXENO – Criou Palas segundo o que havia de comum, Pólicles, não segun-
do o que havia de diferente; só o comum é eterno.
MENÊXENO – O mesmo seria criar uma contradição. Mas agora sou eu quem
te pergunta, Pólicles, como vais comparar o que sucedeu com Fídias com
o que sucedeu ao mestre; porque suponho que não crês, como eu, que a
arte de ambos seja a mesma...
PÓLICLES – Por que o não havia de crer? E só te peço que percorras quanto
ao mestre o caminho que percorreste quanto ao escultor. Mas antes: se,
em lugar da estátua de Palas, Fídias quisesse realizar a estátua de Apolo,
procederia do mesmo modo?
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harmonizar entre si todas as partes dos objetos que fabrica, põe em jogo
a mesma atividade que levou o filósofo a encontrar uma ordem entre
todas as partes do universo.
PÓLICLES – Assim o julgo. Vamos, Menêxeno, corre de novo à proa, já toda a
ilha desabrocha rosa e ouro sobre o mar. Dize-me o que vês.
MENÊXENO – Vejo que todos os homens têm entre si de comum o pensa-
mento; vejo nas cumeeiras da ilha, entre ciprestes e loureiros, o tem-
plo de Palas.
PÓLICLES – E vês também que o mestre não deve formar os discípulos à ima-
gem de Heráclito ou do sapateiro ou à sua própria imagem, deve fazer
alguma coisa de mais alto e de mais belo – e também, ó Menêxeno, de
mais difícil; deve-lhes dar o hábito e o amor do pensamento, desenvolver
o que neles há de verdadeiramente humano; deve acostumá-los a chega-
rem sempre ao fim dos seus raciocínios, a não se cansarem e desistirem
a meio; deve levá-los a que tenham as ideias como guias da vida; todo o
homem que pensa e se obedece é caminheiro da estrada da verdade, venha
donde vier, venha por onde vier. O nosso mal, meu amigo, está em que
não pensa a maior parte dos homens.
MENÊXENO – Há outro mal ainda, Pólicles. Os que pensam não põem a sua
vida de acordo com o pensamento.
PÓLICLES – Chamas a isso pensar? Pelos deuses, Menêxeno, não confundas o
pensar com o dizer pensamento; seria tão grosseiro como não distinguir
Homero dos rapsodos e Lísias dos réus dos tribunais. Pensar é viver: ao
pensamento perfeito corresponde a perfeita vida. Nenhum homem... Não
ouviste chamar?
MENÊXENO – Creio que sim... Dentre as árvores, além. Não se vê com o sol.
PÓLICLES – É Aristóxeno.
MENÊXENO – Não é, é Crítias... Crítias!
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PÓLICLES – O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens; é tê-las feito.
Falhando, Platão vale mais do que nós, que não falhamos porque não ergue-
mos o braço nem a voz; ganhou experiência, ficará conhecendo-se melhor.
CRÍTIAS – Mas o ideal da vida deve ser acima de tudo a serenidade; é o porto
a que voga Platão. E temo que a viagem da Sicília o tenha afastado desse
caminho da serenidade.
MENÊXENO – Crítias tem razão. A alma deve-lhe ter ficado perturbada e revol-
ta como lago em que se despenhasse uma fraga dos montes.
PÓLICLES – Não chamo serenas às águas de que nada vem cortar o repouso; de-
trás da serenidade há sempre a força; águas serenas serão para mim as que
dominam o movimento, as que superam o obstáculo. Nos lagos da alma,
todo o penedo se deve desfazer em branca e fofa areia, fina, onde bailem
as ninfas. O homem olímpico não ignora o seu contrário, não foge à sua
dor: utiliza-a como a um instrumento de perfeição.
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PÓLICLES – Platão foi decerto um dos que viu a seta de ouro passando entre as
estrelas; nós, pelo menos, a colhemos refletida em seus olhos. O nosso
dever é seguir o caminho que nos aponta; e para mim não há estrada mais
lisa, nem tarefa mais alta.
PÓLICLES – E tu, meu Crítias, se fosses Píndaro ou Hesíodo, não poderias contar-
-nos uma bela história de hamadríades cujo sossego nós vimos perturbar?
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fim, não dou pelas árvores que passam e nem sequer me lembro de que a
muralha me possa embargar a carreira. E subitamente descobrirei o vasto
plaino, talvez o mar.
MENÊXENO – Tão distante o mar...
PÓLICLES – Também o digo – tão distante o mar! Mas sabem os deuses o fervor
com que lhes agradeço o terem colocado um início de futuro dentro de
cada passado, como no branco floco que se desprende duma árvore vaga,
ao sabor da aragem, a semente doutra árvore. Pensaste alguma vez, Crí-
tias, no horror que seria a nossa vida se entre geração e geração houves-
se um intervalo em que se ouvisse apenas, no grande silêncio do mundo
abandonado, o ruído do mar quebrando nos rochedos? Nem um hálito,
nem um palpitar de asa, nem a doce fala ateniense lançando a sua música
nos ares. Os filhos teriam de recomeçar eternamente a experiência dos
pais, estes em nada poderiam influir na de seus filhos; uns por completo
ignorariam os outros. Que faríamos nós, Crítias? Para quê o esforço, para
quê viver? Seríamos como os marinheiros dum navio que soubessem con-
denado a ir a pique sem avistar jamais a costa e que nada pudessem fazer
contra o destino.
CRÍTIAS – E que somos afinal no mundo senão isso? O que sucederia ao teu
navio, Aristarco o predisse para a Terra; outro virá que o há de predizer
para o Sol e para todos os astros...
PÓLICLES – O mais importante do mundo não é a Terra nem o Sol; o nosso
navio não é, como tu julgas, este solo da Ática ou os muros de Esparta...
Cada um de nós traz dentro da sua alma a galera que nenhuma tempes-
tade há de fazer naufragar; e o problema, para todo o homem que pen-
se, está em a alargar de tal modo que o seu convés possa acolher toda a
imensa multidão dos seres; quando todos o tiverem conseguido – e, com
o homem, as árvores dos bosques, as aves dos céus, as pedras das mon-
tanhas – então, ó Crítias, o mundo será salvo. Apressemos a chegada da
hora. Que a geração que vem depois de nós seja melhor do que a nossa.
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PÓLICLES – Noto-o sempre; nada me faz lembrar mais a tarde em que meu
irmão pequenino entrou em casa, também rouco dos gritos que dera para
que lhe não fugissem as pombas; e todas fugiram...
CRÍTIAS – Queres dizer que a prisão dos pedagogos gera a rebeldia dos moços?
Jurarei então que nunca os observaste, Pólicles; repito o que disse, meu
amigo: em má terra pensaste.
PÓLICLES – Responde-me a uma pergunta, Crítias: é verdade que te prendeste
de amor a Ixiôte?
CRÍTIAS – Que Ixiôte? A velha que vende figos à porta do teatro?
PÓLICLES – Foi o que disseram – que Ixiôte e Crítias...
CRÍTIAS – Ó Pólicles, como o pudeste acreditar? Nunca a olhei senão com des-
prezo e repugnância.
PÓLICLES – É naturalmente o mesmo que te acontece com Pasitoe, a dançarina...
CRÍTIAS – Com essa não, bem o sabes... Via-a dançar em casa de Apolodoro
e segui com interesse o baile harmonioso e ligeiro, e o corpo que de
momento a momento se parecia querer dispersar, entre os perfumes
do vinho e das flores, e logo a vontade da alma mantinha divino na
curva rítmica, à cadência voluptuosa das flautas da Lígia. Olhei-a ape-
nas, no entanto, como o artista a uma forma plena de beleza; e nem
sequer indaguei, meus amigos, onde a tinha descoberto Apolodoro.
Encontrei-a depois no festim de Erixímaco, quando as Bacantes ga-
nharam o concurso; e foi como uma bacante que dançou; com a pele
de tigre mal presa dos ombros, o cabelo desfeito, a boca vermelha de
Quios; e nós batíamos as mãos, acelerando o ritmo, “Evoé, Dioniso,
Evoé!”. O meu interesse cresceu, fiz-me convidar para todos os ban-
quetes em que Pasitoe dançou...
PÓLICLES – Não te parece, Menêxeno, que devemos intervir, para que a alma do
nosso amigo se não exalte e seja como uma nota violenta no coro sereno
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MENÊXENO – Nem só com almas terás que lidar, Pólicles. É impossível despre-
zar os corpos.
PÓLICLES – Crês tu que os corpos sejam mais do que um dom da alma? Sabes,
se não receasse assemelhar-me aos que se deixam apoderar do delírio sa-
grado de Dioniso, dir-te-ia que vejo no corpo a piedade dos deuses pelo
espírito grosseiro e imperfeito dos homens. Héracles, ao tornar-se deus,
reconheceu que não precisava do corpo e voluntariamente se despojou
dele na fogueira do Eta.
CRÍTIAS – Sem dúvida, Pólicles. Como o mercador que um momento sem di-
nheiro o recebe de empréstimo e logo se aventura ao mar para satisfazer
a sua dívida.
PÓLICLES – É esse o meu pensamento. Que a ginástica sirva para que o corpo
se não faça sentir, seja como inexistente, e para que a alma se fortifique e
desenvolva. E, a propósito, me ocorre perguntar-te, Menêxeno, a ti que
foste dos efebos o mais perfeito no lançamento do dardo: que procuravas
de cada vez que repetias o exercício?
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