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Joao Luiz Vieira - Capitulo Nova Historia Do Cinema Brasileiro - Versao de Trabalho
Joao Luiz Vieira - Capitulo Nova Historia Do Cinema Brasileiro - Versao de Trabalho
1
Cinearte. Rio de Janeiro, 9 out 1929, p.3 e 4.
otimistas. Aumentados foram apenas os custos, não só de produção de novos
filmes, mas, principalmente, de adaptação técnica das salas de exibição,
fortalecendo ainda mais a dependência tecnológica em relação aos Estados
Unidos e provocando o fechamento de muitos cinemas ligados a exibidores
de menor porte. A retração do público foi da ordem de 40% nos dois primeiros
anos da década e o número de cinemas caiu de 1.650 em 1930 para 1.370 em
1937, sendo que destes, 1.170 foram adaptados para o sonoro.2
2
Dados de Variety, 15 de out 1930 e 19 maio 1937.
Na historiografia clássica do cinema brasileiro quando nos referimos a
“cinema de estúdio”, apesar de várias experiências país afora, em geral são
três os nomes que imediatamente vem à tona: a Cinédia (1930) — exemplo
inaugural que se costuma considerar como modelo de um desejo de estúdio
de verdade, especialmente ao longo dos anos 30 e início dos anos 40—
seguida da Atlântida (1941), ao longo das décadas de 1940 e 1950, e
finalmente da Vera Cruz (1949). Testemunhamos outras experiências de
maior ou menor presença e continuidade, como, por exemplo, a Phebo Brasil
Film nos anos 1920, a Sonofilms (1937), a Brasil Vita Filmes (1934), ou, mais
tarde, a Companhia Cinematográfica Maristela (1949). Entretanto, a Cinédia
foi realmente a primeira experiência que permitiu essa comparação com o
modelo matricial norte-americano. Entre outras características que a
aproximam desse ideal de “cinema de estúdio” estão a construção de estrutura
arquitetônica especial que lembra galpões de fábricas, a importação de
equipamentos especializados de registro e iluminação, um regime de trabalho
onde atores e atrizes possuíam exclusividade, entre outros.
3 Para uma visão mais completa do papel do cinema educativo no Brasil a partir da criação do INCE, ver o
livro de Sheila Schvarzman, Humberto Mauro e as imagens do Brasil (São Paulo: UNESP, 2004), bem como
a dissertação de mestrado de Fernanda Caraline de Almeida Carvalhal, Luz, câmera, educação: o INCE e a
formação da cultura áudio-imagética escolar. Rio de Janeiro: UNESA, 2008. 311p.)
Ainda dentro de uma concepção e desejo de implantação e desenvolvimento
de uma indústria de cinema no Brasil, também seguindo o modelo bem
consolidado do cinema norte-americano, a construção de um mercado
consumidor no país foi alavancado pelo que Christian Metz chamou de
“terceira indústria”, ou seja, a mídia impressa, muito bem assentada por
publicações especiais, com destaque absoluto para Cinearte. Considerada
derivativa da similar norte-americana Photoplay (1911-1980), tanto em seu
aspecto gráfico quanto editorial, seu primeiro número se autoproclamava
como um mediador natural entre o mercado brasileiro e o produtor norte-
americano, exaltando e promovendo a universalidade do modelo de produção
de Hollywood porém sem perder de vista o interesse pelo cinema brasileiro.
Através de campanhas regulares em favor da produção de filmes no Brasil,
seus editores acreditavam no surgimento de uma verdadeira indústria
cinematográfica no país, sintonizados com o pensamento desenvolvimentista,
comum na época em outros setores que não exclusivamente cinematográfico.
Por outro lado, Cinearte, ao defender esses interesses, fazia-o
contraditoriamente identificada com os ideais do cinema dominante,
propondo um verdadeiro transplante desses ideais e legitimando a
universalidade de um modo específico de produção, moldado em Hollywood.
A revista faz apologia do cinema clássico da continuidade, da fluência e
clareza narrativas, apoiado em duas estruturas fortes do cinema hegemônico,
o estrelismo (star system) e o cinema de estúdio. O culto ao estrelismo—base
de venda dessas revistas mundo afora—foi adaptado, com maior ou menor
sucesso, ao cinema nacional e em suas páginas encontramos generoso
material para empreender diversos estudos sobre o culto às estrelas (não só
do cinema, mas também do rádio) na cultura audiovisual brasileira. E,
também de acordo com o que aqui chegava da produção dominante norte-
americana, celebrando um mal disfarçado racismo ao exaltar a hegemonia de
um padrão de beleza branco onde fotogenia era sinônimo de ambientes
luxuosos e higiênicos por onde circulavam, de preferência, corpos jovens e
saudáveis. A revista sugeriu, inúmeras vezes, que a criação de um bom
cinema no Brasil deveria ser um ato de purificação de nossa realidade social,
através de uma cuidadosa seleção do que deveria ou não ser mostrado nas
telas, enfatizando uma noção de progresso, de conquistas da engenharia
nacional, de uma inseparável relação entre as belezas naturais de nossas
paisagens geográficas e a paisagem social, branca e, por isso mesmo,
agradáveis de serem vistas e fotografadas. Tal esforço na construção de uma
imagem nacional só seria melhor conseguido por meio de um modelo
assentado no controle maior que a produção em estúdio garantia. Um cinema
de estúdio do tipo norte-americano, com interiores bem decorados e
habitados por gente agradável. A Cinédia, em diversos filmes, colocou esses
preceitos em pauta e, ao longo da década de 30, consolidou-se como o centro
de produção mais importante do Brasil. Bonequinha de Seda (1936), como
veremos mais adiante, pode ser o paradigma de quase todas essas intenções
ao materializar alguns dos padrões de qualidade discutidos e defendidos
durante anos por Adhemar Gonzaga na páginas de Cinearte. Especialmente a
cuidadosa elaboração de uma mise-en-scène onde cenografia, vestuário,
iluminação, movimentos de câmera, interpretações e enquadramentos foram
orquestrados na busca de um visual bem mais elaborado e inédito até então
no cinema brasileiro.4
Fazer um bom cinema no Brasil deve ser um ato de purificação de nossa realidade, através
da seleção daquilo que merece ser projetado na tela: o nosso progresso, as obras de
engenharia moderna, nossos brancos bonitos, nossa natureza. Nada de documentários,
pois não há controle total sobre o que se mostra e os elementos indesejáveis podem
infiltrar-se; é preciso um cinema de estúdio como o norte-americano, com interiores bem
decorados e habitados por gente simpática6.
Tudo que o grupo de Adhemar Gonzaga tinha arduamente apreendido durante os últimos
anos em matéria de técnica e estética conflui e se exprime nessa fita: scenario, collocações
de machina, sub-entendimento, symbolo e sofisma, a última de emprego mais recente,
significando as alusões dotadas de certa malícia. Esta, como o luxo, havia adquirido
importância, tendo em vista, por um lado, o meio social alto em que se desenrolava o
enredo e, por outro, o público de elite que se pretendia atingir, ambos muito vinculados
ao cinema norte-americano7.
7
Salles Gomes, Paulo Emílio. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1974,
p. 332.
É dentro desse quadro que Adhemar Gonzaga, lançando mão da doação de
500 contos de réis feita por seu pai, concessionário da Loteria Federal, funda
a Cinédia em 1930, e transforma o panorama da produção cinematográfica
brasileira da época ao criar uma empresa nos moldes norte-americanos,
trabalhando em palcos simultâneos e com equipamentos de qualidade. De
início, a produtora recebeu o nome de Cinearte Studio, por causa da revista
liderada por Gonzaga, mas logo passou a se chamar Cinédia, escolha feliz do
próprio Gonzaga, que significa “cinema em dia”. Totalmente dedicado à
realização desse projeto, Gonzaga presidiu todas as etapas da organização da
produtora, incluindo a escolha da marca da empresa, criada por J.Carlos,
célebre intérprete da vida mundana carioca através de desenhos e caricaturas.
Funcionando inicialmente como firma produtora, Gonzaga trouxe para a
Cinédia, diretamente de Cataguases, o jovem amigo Humberto Mauro, que se
responsabilizaria pela direção de Lábios sem beijos (1929), substituindo
Gonzaga, então sobrecarregado pelos trabalhos de instalação dos estúdios. A
essa altura, Mauro já era, sem sombra de dúvidas, o profissional mais
completo do cinema brasileiro, com experiência notável adquirida no ciclo de
filmes por ele realizado na cidade de Cataguases.
Lábios sem beijos marcava sua estreia carioca, anunciada por Cinearte com
grande expectativa, promovendo um “Humberto Mauro de casaca”, num
filme “moderno”, bem ao gosto da revista. Era a primeira produção da
promissora empresa – antes mesmo da construção do estúdio – e a segunda
versão de uma história escrita por Gonzaga, sobre os mal-entendidos
provocados por troca de nomes. Lelita (Lelita Rosa), jovem rica que se
apaixona pelo conquistador Paulo (Paulo Morano, pseudônimo de um primo-
irmão de Gonzaga, Francisco Paulo Guimarães Barreto), por uma
coincidência de nomes, acredita que sua irmã mais nova também gosta do
mesmo rapaz e o rejeita. Apesar de acusado de “fútil” por um crítico de A
Gazeta, o filme foi considerado por Cinearte como o passo mais avançado e
sólido da indústria do cinema no Brasil, mostrando um Mauro caminhando
no sentido de buscar um sensualismo já muito além de sua época e que
explodiria no seu filme seguinte, o clássico, Ganga bruta (1933). A boa
recepção do filme motivou ainda mais a conclusão dos estúdios em São
Cristóvão e um animado Gonzaga, além da contratação de Humberto Mauro,
dá início a importação, nos anos seguintes, de uma série de equipamentos
sofisticados e pioneiros no Brasil.
Antes da realização de Ganga bruta, Mauro responsabilizou-se pela
fotografia da segunda produção da Cinédia, Mulher (1931), dirigida por
Otávio Gabus Mendes, com roteiro deste e de Gonzaga, sonorizada com
discos que reproduziam orquestrações e trechos de diálogos dos atores.
Estrelado por Carmem Violeta e Celso Guimarães, o filme utilizava como
roteiro uma história “forte”, onde uma jovem, expulsa de casa por resistir aos
avanços amorosos do padrasto (interpretado por Humberto Mauro), encontra
um jovem rico, de quem se torna amante, passando a frequentar o círculo
social do rapaz. Ele acaba conhecendo uma rica herdeira, e Carmem dele se
afasta, obrigando o rapaz a ter de escolher entre as duas. Expondo uma série
de preconceitos de ordem moral e social, intrigas e infortúnios, com algumas
cenas consideradas bastante ousadas para o padrão da época, Mulher é um
filme importante na representação do erotismo no cinema brasileiro.
quando começou a febre de Freud, andei lendo tudo o que dele nos chegava. Procurei ver
o que se poderia aplicar em cinema. Em Ganga bruta, quis ver se conseguia alguns efeitos
freudianos, principalmente através de símbolos fálicos, como guindastes objetos,
composições e movimentos verticais da câmara. Os efeitos foram obtidos, acho, mas caí
na asneira de falar nisso com os outros, e não faltou quem não me chamasse de Freud de
Cascadura8.
9
Para uma leitura mais detalhada, ver o capítulo Brazil, de João Luiz Vieira na antologia The International
Film Musical, organizado por Corey K. Creekmur e Linda Y. Mokdad (Edinburgh: Edinburgh University Press,
2012) pp. 141-154
Outra estratégia da Cinédia foi o esquema de co-produções, tentado com
sucesso a partir de 1935. A empresa entrava com seu capital, investido sob a
forma de serviços de laboratórios, técnicos, maquinaria e estúdios, enquanto
ficavam por conta da outra empresa os custos maiores da produção. Nesse
esquema, a associação entre a Cinédia e o produtor Wallace Downey tornou-
se fundamental para o sucesso da nova experiência. Chegando ao Rio de
Janeiro com equipamento importado Movietone (que permitia a gravação
sonora diretamente na película, ao invés do som gravado em discos do antigo
sistema Vitaphone), Downey, numa produção conjunta Waldow Filme-
Cinédia, dirige Alô, alô, Brasil (1935), consolidando de vez a presença do
rádio no cinema brasileiro, através não só da saudação característica do “alô”,
mas principalmente pela visibilidade dada a uma verdadeira constelação de
astros e estrelas do rádio e do disco.
O sucesso do lançamento do filme às vésperas do Carnaval motivou a
repetição do esquema no meio do ano, a fim de aproveitar a mobilização em
torno das festas juninas e transformar o cinema num suporte do disco mensal
e da promoção radiofônica, num momento em que o rádio começava a
penetrar nos lares e influir no comportamento dos habitantes das metrópoles
brasileiras em organização. Em 1936 iniciam-se as transmissões de A Voz do
Brasil (mais tarde A Hora do Brasil) e inaugura-se no Rio de Janeiro a Rádio
Nacional, que por mais de 20 anos exercerá papel de liderança na
comunicação radiofônica brasileira. Em julho desse mesmo ano, a Waldow
Filme-Cinédia, menos de seis meses após a estreia de Alô, alô, Brasil, lança
Estudantes (1935), novamente dirigido por Wallace Downey, repetindo aqui
um ciclo de filmes sobre a vida estudantil também tentado em diversos países
como nos Estados Unidos e no Japão. Aqui o roteiro girava em torno dos
problemas e romances colegiais passados numa república universitária tendo
como pano de fundo as festas juninas embaladas em música popular
brasileira. Aurora Miranda namorava, de forma muito vaga, Jorge Murad, ao
passo que Barbosa Júnior e Mesquitinha faziam declarações de amor a
Carmem Miranda, que, no entanto, preferia o galã Mário Reis. Carmen, pela
primeira vez, além de cantar, interpretava o papel de uma garota do rádio
colecionando namorados. E o público podia ouvir, entre outras canções, o
galã Mário Reis cantando para Carmem Miranda a famosa Cadê Mimi?
primeiro filme carioca a aproveitar um dos aspectos mais trágicos, exuberantes e musicais
da vida na capital do Brasil: o morro (...) marco importantíssimo, não só para construir
a coisa mais séria dos primeiros anos do período sonoro, mas também por seu sentido
popular, que apontava um rumo verdadeiro a nossos homens de cinema.10
10
Viany, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1959, pp. 107-8.
Carmen Santos. Elegante e abnegada, ela desperta o amor de dois homens,
um estudante e um sambista, projetando uma tensão que voltaria com nuances
diferentes em outros momentos do cinema brasileiro. A direção de Humberto
Mauro parece ter conseguido momentos de brilho, conforme os relatos de
Alex Viany e Adhemar Gonzaga, misturando cenas cômicas e climas
sentimentais a um enredo dramático, onde se destacava a sequência final, o
enterro do compositor, vivido por Armando Louzada (24).
Outro espectador famoso que, na época cobriu o filme de elogios, foi Jorge
Amado. Apesar de mencionar a existência de alguns defeitos no filme, sem
no entanto analisá-los, o escritor afirmava que a soma dos defeitos era mínima
em relação às suas virtudes:
11
Amado, Jorge. Favela dos meus amores. Boletim de Ariel, s.d.p. 30
por Jaime Costa, para montar uma revista elaborada pelos dois e intitulada
Banana da terra. O empresário, na verdade, estava mais interessado no canto
lírico e não em espetáculo popular. No entanto, como a cantora contratada por
ele não chegara da França, acaba cedendo e corre em busca dos dois autores,
decidido a montar a revista, para a alegria de um embriagado espectador no
Cassino, interpretado por Oscarito, em sua segunda aparição cinematográfica.
Os números musicais constituíram o forte do filme, além da sutil tensão entre
cultura de elite e cultura popular (canto lírico versus música popular).12 Em
meio a diversos números musicais, vemos o Bando da Lua e Aurora e Carmen
Miranda diante de um cenário modernista de J. Carlos e Emílio Casalegno,
fazendo uma apologia apoteótica do rádio através da marcha Cantoras do
rádio. Ainda nesse filme, Carmem define a persona com a qual seu nome se
identificaria para sempre no cinema, ou seja, a mulher de olhos vivos e
espertos, com um sorriso nos lábios e com timbre expressivo, sempre
consciente da importância do figurino (aqui um palazzo pijama de lamê),
requebrando no solo Querido Adão. Quase obrigando a câmera a seguir seus
movimentos, ao contrário dos esperados números musicais estáticos, ela criou
uma expressão visual dinâmica para as letras dessa marcha e o filme ganha
seus momentos altos na combinação do movimento da cantora com a ironia
de frases como “Adão, meu querido Adão/ Todo mundo sabe quer perdeste o
juízo/ Por causa da serpente tentadora/ O nosso mestre te expulsou do
paraíso...”.
Após a consagração popular do filme, a Cinédia tenta diversificar sua
produção com a comédia romântica e musical Bonequinha de seda (1936, de
Oduvaldo Vianna), um bom exemplo de realização que buscava tornar
realidade os padrões ditados por Cinearte, principalmente no que se refere a
valores cenográficos. A história passava-se em ambientes luxuosos, interiores
refinados criados pelo cenógrafo Hipólito Colomb, com destaque para uma
sala com grande janela de vidro circular, uma escadaria com corrimão art-
déco e móveis modernos, que lembravam o design da Bauhaus e por onde
circulavam figuras da alta sociedade carioca. A fotografia e a excelente
iluminação ficaram a cargo de Edgar Brasil, já nessa época o melhor fotógrafo
do cinema brasileiro desse período. Utilizando técnicas ainda pioneiras por
aqui, como o back projection (projeção de fundo) e movimentos de grua, o
filme estreou com estardalhaço em 26 de outubro de 1936, no antigo Palácio
Teatro ali permanecendo em cartaz por cinco semanas seguidas. O sucesso de
Bonequinha de seda fez com que a Cinédia insistisse em diversificar sua
12
Para ficarmos apenas em um tipo recorrente dessa tensão que alimentou inúmeras comédias do cinema
brasileiro, cito os exemplos de Futebol em família (dir. Ruy Costa, 1938) e De vento em popa (dir. Carlos
Manga, 1957). No primeiro, a personagem de Leônidas Jaú abandona a escolar e a pressão da família que o
queria professor, para dedicar-se ao futebol. No segundo, Cyll Farney retorna de seus estudos de física nuclear
e, no navio que o traz de volta da Europa, demonstra interesse por música popular e decide abrir uma boate.
produção nos anos seguintes, sem abandonar de todo os esquemas
estritamente carnavalescos.
Logo depois de Alô, alô, carnaval, Wallace Downey interrompe o esquema
de co-produção com a Cinédia, trabalhando por conta própria na sua Waldow
Filme, utilizando elenco, técnicos e argumentistas próprios (30). E produz,
em 1937, o filme João Ninguém, comédia dramática cuja maior curiosidade
reside no fato de introduzir uma experiência pioneira a cores no Brasil, numa
sequência de sonho. Além de alguns números musicais, surgem
características narrativas que definirão o tipo de comédia que consagrará a
Atlântida a partir de Carnaval no fogo (1949). É o caso, por exemplo, do
romance sentimental envolvendo o herói, a mocinha e o vilão, tendo como
pano de fundo a música não propriamente carnavalesca. Talvez, junto com
Favela dos meus amores, este filme tenha sido mais uma tentativa verdadeira
de registrar alguns aspectos característicos da vida na Capital Federal,
captando um temperamento e um modo de ser tipicamente cariocas.
O assunto levantado por Adhemar já não era novidade nessa época. Desde o
início da década de 1930, pensou-se em adotar leis protecionistas. Mas foi só
através do artigo 34 do decreto-lei 1949, de 30 de dezembro de 1939, que se
estabeleceu a quota de exibição nos cinemas de um longa-metragem brasileiro
por ano. Entretanto, essa ideologia do protecionismo já se mostrava
equivocada, uma vez que acabava restringindo a produção brasileira e não a
14
Conforme registra o programa da mostra retrospectiva 50 Anos da Cinédia.
estrangeira, como se esta fosse detentora natural do mercado numa época em
que os filmes brasileiros já dispunham de várias empresas que produziam
anualmente, de forma regular.
Havia também o trabalho dos independentes. Em 1939, Raul Roulien realizou
Aves sem ninho, contando com a popularidade de seu nome, já bastante
conhecido do público brasileiro através de seus filmes norte-americanos
falados e cantados em espanhol ou em inglês—como Voando para o Rio
(1933, de Thornton Freeland). De volta aqui, se animou com as perspectivas
de fazer cinema não mais apenas como ator. Em 1937 ele dirigiu seu primeiro
filme como diretor e roteirista, O grito da mocidade, atuando ao lado de
Conchita Montenegro, Jaime Costa e Jorge Murad.
Paralelamente ao trabalho no INCE, Humberto Mauro dirige a produção de
Carmen Santos, Argila (1940), onde é visível a experiência com os curtas
educativos e, principalmente, a intenção nacionalista e pedagógica de revelar
um Brasil desconhecido através de elementos culturais como, no caso, a
cerâmica marajoara, ao som de Villa-Lobos. Estreado dois anos depois, em
28 de maio de 1942 no Cine Capitólio, Argila contava a história de uma jovem
e rica viúva, incentivadora das artes e da produção cultural brasileira,
personagem que, de certa forma, se confundia com a própria Carmen Santos
em sua atuação fora das câmeras. Ela faz uma sofisticada viúva, às voltas com
um empregado por ela protegido (Celso Guimarães), talentoso artesão
interessado nas formas marajoaras e trabalhando na produção de cerâmica na
região de Correias, no Estado do Rio de Janeiro. O rapaz, apesar de namorar
uma moça da região, sente-se atraído pela viúva, que afinal o recusa, numa
atitude de nobre sacrifício.15
A chegada da Atlântida
...na hora presente, mais do que qualquer outra instituição, as nações reúnem e exaltam
os seus elementos nacionalizantes mais expressivos. Não precisaríamos aqui, numa
simples explanação de nossos propósitos, realçar todos os fatores que fazem do cinema
um desses fortes elementos. Lembramos, porém, que a arte completa o nível de cultura
superior e constitui com a ciência, a política e a religião, todo o patrimônio moral e
intelectual de uma época, de um povo. O cinema, arte resultante de todas as artes e com
maior poder dentre todas, para objetivar e divulgar, adquiriu métodos próprios de
expressão, fez-se arte independente e, por esse grande poder de penetrar e persuadir as
mais diversas multidões, tornou-se indústria de vulto universal, órgão essencial de
educação coletiva.
A finalidade da Atlântida é a produção de filmes cinematográficos—documentários,
noticiosos, artístico-culturais, de longa e pequena metragem, desenhos animados,
dublagem de produções estrangeiras e atividades afins—implantando uma indústria e uma
arte de cinema no Brasil.
A isso nos propomos levados pelo que vimos nos referindo e pelo grande ideal de
levantarmos as paredes dessa grandiosa construção que será o cinema brasileiro, cujos
alicerces já estão lançados—o nosso meio social.
16
Conforme transcrito das páginas 122-123 da recente biografia de Luiz Severiano Ribeiro, O Rei do Cinema,
de Toninho Vaz (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2008) que reproduz uma imagem do original do documento
intitulado Estatutos da Atlântida.
e vários outros nomes de grande popularidade no rádio.
Na Atlântida sob Severiano Ribeiro Jr. os filmes eram revelados pelo próprio
estúdio e enrolados à mão. Ribeiro, com essa estratégia de manter os custos
baixos para obter lucros cada vez maiores, não quis se beneficiar, ao contrário
da Vera Cruz, da isenção de impostos para importação de equipamento e
material cinematográfico conseguida pelo Sindicato Nacional da Indústria
Cinematográfica em 1949. E diretores como Watson Macedo, que
manifestavam maiores ambições em seus projetos, tiveram que postergar suas
aspirações cinematográficas. Ou então sair de vez, como foi o caso de Moacyr
Fenelon, que, independente, realizou oito filmes entre 1948 e 1950.
A garantia de exibição resolveu, durante pelo menos duas décadas, um eterno
“calcanhar de Aquiles” da atividade cinematográfica brasileira. A experiência
da Atlântida, em termos de pensamento industrial, materializou um
conhecimento prático das condições reais e possíveis de um mercado
periférico, especialmente se comparadas a outras tentativas de implantação e
defesa de um cinema mais sofisticado e ambicioso. A consciência e
demonstração desse conhecimento e dessa prática estão presentes
tematicamente e de forma reflexiva num filme emblemático de José Carlos
Burle, realizado em 1952, chamado Carnaval Atlântida ao qual voltaremos
adiante.
Um pouco de história
Produzindo de início o cinejornal Atualidades Atlântida, a empresa logo passa
para o longa-metragem, numa reportagem chamada IV Congresso Eucarístico
Nacional de São Paulo (1942), acompanhado entretanto por um média-
metragem de natureza profana, Astros em revista (1942). O filme, ao
apresentar números musicais de Luís Gonzaga, do conjunto Quatro Ases e
Um Coringa e de Emilinha Borba, entre outros destaques, sinalizava o que
seria, de fato, a principal linha de produção da nova companhia.
O primeiro filme da Atlântida a obter repercussão data de 1943, o célebre e
igualmente desaparecido Moleque Tião, dirigido por José Carlos Burle, com
fotografia de Edgar Brasil, filmado em locações e num precário estúdio
localizado no centro do Rio. O roteiro, de Alinor Azevedo, Nélson Schultz e
do próprio Burle, era inspirado numa reportagem de Joel Silveira e Samuel
Wainer publicada em Diretrizes, baseada em dados biográficos da vida e da
difícil trajetória até a consagração de um garoto de Minas Gerais, Grande
Othelo (pseudônimo de Sebastião Prata). Segundo Burle, o enredo consistia
na história de um “negrinho do interior, fascinado pela ideia de ser artista e
que, tendo visto no jornal a notícia de que uma Companhia Negra de Revistas
vinha obtendo grande sucesso no Rio, para lá se dirige pegando carona nos
mais variados meios de transporte”. Pelas mãos de um maestro, consegue,
depois de muito sofrimento, apresentar-se num espetáculo com sucesso,
sendo assistido pela mãe que viera do interior.
Em artigo especial sobre a Atlântida, José Sanz destacou a novidade que o
filme lançava no cinema brasileiro, introduzindo alguns elementos do neo-
realismo italiano, como a filmagem em locações e o privilégio de uma
ambientação mais pobre, identificada com as classes trabalhadoras. De fato,
a lembrança que Othelo guarda do filme permite que se reconstitua, ainda que
com muito esforço, um pouco do seu clima neo-realista e da crueza do seu
diálogo:
“Eu era marmiteiro de uma pensão, mas deixava a marmita para jogar figurinha com os
outros moleques na rua. Numa cena, o pai do personagem Zé Laranja morria atropelado
e eu dizia pra ele ‘que é que tem ficar sem pai? Pai às vezes até atrapalha”.17
Mestre de um tipo de humor escrachado e visual, sua genialidade pode ser vista
em performances memoráveis, tais como no humor físico de sua paródia da dança
‘moderna’ de Nijinsky (em A dupla do barulho), ou dos maneirismos de Elvis
Presley em sua tempestuosa personificação da estrela do rock em De vento em
popa (1957), com o desinibido Melves Prestes. O repertório é grande com
destaque para sua imitação de Getúlio Vargas, cuja eloquência verbal e gestual,
Oscarito reproduziu com boa dose de histrionismo em Nem Sansão nem Dalila
(1954).
A química perfeita com Othelo, com quem já havia trabalhado anteriormente em
Noites cariocas (1953), e em Céu azul, começou a ser moldada na Atlântida
durante a produção de Tristezas não pagam dívidas (1943). Após a entrada de
Severiano Ribeiro Jr. na Atlântida, Oscarito foi promovido ao patamar de uma
verdadeira estrela, mesmo em um papel secundário em O caçula do barulho
(1948), um ano antes de Carnaval de fogo. Em numerosas chanchadas
produzidas pelo estúdio, a dupla de comediantes representava uma inversão
paródica de raça e gênero, como na festejada cena do balcão de Romeu e Julieta
em Carnaval de fogo, onde Othelo surge, faceira, usando uma absurda peruca
loira trançada.
Em Aviso aos Navegantes, Othelo faz o papel de um cozinheiro a bordo de um
18
Dennison, Stephanie e Lisa Shaw. Popular Cinema in Brazil. Manchester: Manchester University Press,
2004, p.65-66.
navio onde Oscarito viaja clandestino. Ao descobri-lo, o cozinheiro tira proveito
da situação, em um caso clássico de inversão carnavalesca no contexto histórico
pós-colonial brasileiro (o homem negro forçando o branco a trabalhar para ele).
Entretanto, os dois personagens tornam-se parceiros, algo que Othelo diz nunca
ter acontecido fora das telas; os atores se respeitavam, e até mesmo gostavam um
do outro, mas tinham personalidades diferentes e eram bastante competitivos.
Em consequência da cor de sua pele, Othelo parecia fadado a ser o companheiro
engraçado de Oscarito. Em A dupla do barulho Othelo abandonou as filmagens
antes que elas fossem concluídas, alegando problemas entre os dois. A narrativa
fílmica capitaliza, em parte, o ressentimento de Othelo, ao contar a história das
desventuras de uma dupla de artistas itinerantes, Tonico (Oscarito) e Tião
(Grande Othelo), que viajam ao redor do Brasil em busca de fama e fortuna. A
viagem dos dois é prejudicada por situações cômicas porém difíceis,
especialmente quando Tião começa a se sentir negligenciado por seu parceiro.
Aparentemente, a Atlântida obtinha frutos com a exploração dos conflitos entre
suas duas estrelas da comédia e promoveu uma imagem pública da dupla como
rivais. Uma sequência de um dos cinejornais da Atlântida mostra a equipe e os
atores do estúdio juntos para celebrar os projetos de expansão da empresa (nunca
concluídos), e, antes de posar para uma foto oficial, todo o elenco principal do
estúdio aparece visitando as obras, com Oscarito e Othelo inicialmente fingindo
uma discussão, algo como uma briga encenada na qual eles disputavam a
proximidade do patrão, Luiz Severiano Ribeiro Jr.
A última aparição da dupla foi em Matar ou correr. Nesta paródia do western,
os dois contracenam em momentos hilários que sintetizam a parceria,
culminando com um interrompido beijo acidental, quando Kid Bolha (Oscarito),
o medroso xerife do vilarejo de City Down, de olhos fechados, por pouco não
acaba beijando o parceiro Cisco Kada (Grande Othelo), confundido com a
protagonista feminina.
O protagonismo de Cinelândia
19
Cinelândia. Rio de Janeiro, n.11, 1953, p. 39
20
Cinelândia, n.14, 1953, p. 10
Direito, vestindo um terno branco impecável, sai de casa em direção ao baile
de formatura. Do lado de fora há um lamaçal e seus amigos e vizinhos
improvisam uma passagem para ele com uma placa de madeira de modo que
Renato consiga atravessar em segurança, encenando um verdadeiro rito de
passagem que materializa sua posição social ascendente. Todos lhe
cumprimentam com palmas, referindo-se a ele como “o orgulho da
comunidade”. Miro, contudo, sempre foi mais inclinado ao jogo, música e
bebida. Tanto o roteiro quanto a direção criam um contraste entre o processo
de ‘embranquecimento’ de Renato com a revolta de Miro e o orgulho que
este tem de seu ‘sangue negro’. Verdadeiro melodrama racial, o filme não fez
sucesso de bilheteria, porque, segundo Burle, “os brancos se sentiam
inconfortavelmente atingidos com a denúncia, e os negros não se
encontravam suficientemente politizados para alcançar sua mensagem”.21 No
entanto, Também somos irmãos foi considerado o melhor filme de 1949 pela
Associação Brasileira de Críticos Cinematográficos (59) e a atuação de
Othelo também festejada e merecedora do prêmio de melhor ator de 1949
dado pela crítica.
Também a adaptação literária foi tentada pela Atlântida nesse período em
duas outras produções, Terra violenta (1948) e A sombra da outra (1950). A
primeira traduziu para a tela o romance de Jorge Amado, Terras do sem fim,
com direção do norte-americano, Edmond Bernoudy. A sombra da outra,
filme predileto de Watson Macedo, era uma versão do romance de Gastão
Cruls, Elza e Helena, adaptado para o cinema por Amaral Gurgel. Eliana
desempenhava um papel diferente daquele a que estava acostumada nos
musicais, desafio interpretativo de dar vida ao drama psicológico enfrentado
por uma personagem de dupla personalidade. Com esse filme, Macedo
recebeu o prêmio de melhor diretor em 1950, oferecido pela Associação
Brasileira de Cronistas Cinematográficos. Antes de sair de vez da companhia
e tornar-se seu próprio produtor, ele dirigiu mais dois musicais para a
Atlântida, Aviso aos navegantes (1950) e Aí vem o barão (1951). Esses filmes
consolidaram a dupla formada por Oscarito e Grande Otelo, que, de 1944 a
1954, representou o verdadeiro fenômeno de bilheteria para o cinema
brasileiro. Alex Viany sintetizaria muito bem, em 1970, quando da morte de
Oscarito, a importância da dupla, ao afirmar que:
Oscarito, com suas caretas e seus passinhos de urubu malandro, Otelo com seu gênio
trágico-satírico, representavam um fenômeno de comunicação popular, apreendendo o
jeito de falar e agir, de pensar e sonhar, do típico malandro do Rio de janeiro.22
21
Para uma leitura definitiva do papel seminal de Alinor Azevedo não só durante os anos da Atlântida, ver a
dissertação de mestrado de Luís Alberto Rocha Melo, Argumento e roteiro: o escritor de cinema Alinor
Azevedo (Niterói: IACS/PPGCOM, 2006), 349 p.
22
Viany, Alex. Carnaval Atlântida. Jornal do Brasil, RJ, 6 de agosto de 1970.
Fora da Atlântida, entre os independentes, Silveira Sampaio o médico
cineasta que havia escrito o argumento O gol da vitória para José Carlos
Burle, prosseguiu sua carreira realizando um dos mais curiosos filmes da
década. Uma aventura aos quarenta (1947), comédia sofisticada com toques
de Ernst Lubitsch notados por alguns críticos, mas que, segundo Alex Viany
diluíam-se em inúmeras passagens de mau gosto. Última experiência
cinematográfica do fotógrafo pioneiro Antônio Leal, Uma aventura aos
quarenta, de certa maneira antecipa, em sua auto-referencialidade, Carnaval
Atlântida (1952). No início, inclusive, é feita uma crítica ao próprio filme,
que, sem créditos, apresentava os personagens dirigindo-se diretamente aos
espectadores e advertindo-os de que todos ali na tela eram espectadores como
os da plateia, com a intenção de realizar o melhor filme do mundo. “Mas
falhamos... na próxima vez, melhoraremos”, anunciava o filme.
23
Em depoimento de José Carlos Burle ao MIS-Museu de Imagem e Som do Rio de Janeiro, 1979.
localizava-se no meio dos desocupados e transformava os excluídos (Oscarito
e Othelo) em portadores de uma carga simbólica, onde a própria nomeação
dos oscilantes personagens transitava entre representações do “bom”
(chamado Rapadura) e do “mau” (intitulado Milk-Shake), ambos
interpretados por Grande Othelo.
Burle realizou, com Carnaval Atlântida, um filme-chave para o entendimento
de bom número de comédias carnavalescas produzidas na década de 1950.
Trata-se de um filme em que as relações existentes entre paródia, chanchada
e carnaval tornam-se transparentes, apresentadas de tal forma que cada termo
é absorvido e explicado dentro dos limites e desdobramentos dos outros.
Assim, a paródia, traço fundamental que vai caracterizar essa produção, surge
como a única resposta subdesenvolvida possível de um cinema que, ao
procurar imitar o cinema dominante, acaba rindo de si próprio. Isto dentro de
um gênero específico, a chanchada, que, por sua vez está inserida no universo
maior do carnaval, de longa tradição no cinema carioca e na cultura brasileira
como um todo.
É a linguagem do carnaval, com seus códigos culturais específicos, que
alimentou grande parte da produção dessas comédias, desde a época de A voz
do carnaval (1933) até os derradeiros exemplares do gênero, com
desdobramentos que influenciarão o cinema brasileiro daí para a frente.
Dentro do universo maior do Carnaval, por exemplo, com sua dinâmica
própria de inversões, sátiras e paródias, esses filmes denunciavam, ainda que
na maioria das vezes de forma bastante ingênua, a existência de aspectos
críticos do funcionamento da estrutura social. Há, na maioria desses filmes,
críticas e observações frequentes sobre a vida política e administrativa do Rio
de Janeiro, a Capital Federal da época, a eterna “cidade maravilhosa” que,
apesar de igualmente idealizada, tinha problemas graves e endêmicos de falta
de luz e água em muitos bairros da cidade, ruas constantemente esburacadas
e falta de segurança, questões endêmicas que, infelizmente estendem-se até
os dias de hoje. Os problemas do país também não eram deixados de lado,
como a inflação, a retórica oportunista e populista de certos políticos, a
mudança da capital para Brasília, diferenças gritantes de classe, a burocracia,
as críticas ao funcionalismo público e referências aos cabides de emprego,
racismo e a situação do negro na sociedade brasileira, a família opressiva
entre outros sintomas de uma sociedade conservadora.
Utilizando-se bem desse “poder dos fracos”, o jovem diretor quase estreante
Carlos Manga dirige em 1954, na Atlântida, dois filmes que podem também
ser considerados paradigmáticos do uso da linguagem carnavalesca para fins
que extrapolam a mera gargalhada despretensiosa: Nem Sansão nem Dalila e
Matar ou correr. Manga, então com 26 anos, havia sido levado para a
Atlântida por Cyll Farney e lá passou por praticamente todos os cargos
técnicos da empresa, de assistente de contra-regra até ajudante de maquinista
e vigia de almoxarifado, vendo e participando de todas as etapas de uma
filmagem, experiência que, segundo ele, foi a melhor forma de aprender a
trabalhar com o cinema até conseguir a assistência de direção e de montagem
no filme policial Amei um bicheiro (1952, de Jorge Ileli). 24 Em seguida,
dirigiu os números musicais de Carnaval Atlântida, com destaque para
Alguém como tu, samba-canção interpretado por Dick Farney, onde Manga
idealizou um efeito de “iluminação” que, na verdade, era provocado por
círculos brancos pintados no chão preto, uma ideia que surgiu da visão do
clássico Metrópolis (1927), de Fritz Lang. Seu primeiro filme como diretor
foi A dupla do barulho, onde já demonstrava muito bem o aprendizado dos
principais códigos narrativos do cinema clássico. A trajetória da dupla do
título, Oscarito e Othelo, que viajava de trem pelo interior do país levando um
show por várias cidades antes da grande estreia no Rio de Janeiro, era
mostrada em rápida sucessão através de placas com os nomes das cidades por
onde o grupo se apresentava, numa forma tradicional de narrativa. É esse
aprendizado com o cinema de Hollywood que, esteticamente, marca o diálogo
do cinema brasileiro com a indústria cinematográfica norte-americana, numa
tensão problematizada de forma muito especial na década de 1950 por Carlos
Manga.
Nem Sansão nem Dalila, paródia da superprodução de Cecil B. De Mille,
Sansão e Dalila (1949), é um dos melhores exemplos de filmes
declaradamente políticos no Brasil, pois exibe, com clareza didática, as
manobras de um golpe populista, bem como os mecanismos de um contra-
golpe. Partindo de vários pontos de contato com o original norte-americano
(inclusive musicais, na trilha composta por Lírio Panicali e algumas
sequências “espetaculares”, como danças no palácio e a queda e a destruição
do templo no final), Manga elaborou uma paródia alegórica onde Sansão
(Oscarito), devido à sua força, é nomeado governante do reino fictício de
Gaza e escolhe como secretária particular a bela Miriam (Fada Santoro), irmã
morena da loura Dalila (Eliana), ambas filhas de um rico mercador. Com o
poder nas mãos e na cabeça, Sansão passa a ser constantemente vigiado pelo
poder instituído, anteriormente composto pelo rei e pelos líderes militares e
religiosos. Obviamente é o líder militar quem aspira ao poder total. Ingênuo
e desavisado, Sansão não percebe as intenções do militar, claramente
contrárias às medidas tomadas pelo herói no interesse do povo. Inúmeras são
as referências satíricas à gestão do então presidente Getúlio Vargas, como por
exemplo a criação da aposentadoria, a euforia desenvolvimentista no
incentivo ao consumo de eletrodomésticos, a instituição de feriados todos os
dias do ano à exceção do dia do trabalho, a redução no preço do pão e do
farelo, enfim, medidas que desagradam diretamente os comerciantes. Estes
reclamam e a corte mostra-se insatisfeita, preparando-se para derrubar
Sansão. Dalila, sob tortura, é compelida a descobrir onde reside a força de
24
Em depoimento ao MIS, 10 de março de 1975.
Sansão, que acaba levando uma paulada na cabeça enquanto dorme e perde a
peruca para o chefe militar. Sempre atual, pois “os problemas de Gaza são
iguais as de uma terra que conheço”, adverte Sansão, o filme ainda discute a
relação complexa entre mídia e poder. Denuncia escândalos endêmicos como
a mistura de água no leite e o enfraquecimento da moeda local, o guinar, que
por sugestão de Sansão deve ser imediatamente trocado por dólares. Além
disso, Nem Sansão nem Dalila, através de uma narrativa onírica, dá forma ao
sonho de Oscarito, que, enquanto empregado como barbeiro no Salão Dalila
aspira chegar ao poder um dia, derrubar seu patrão, o senhor Artur (que, no
sonho, ocupa exatamente a posição do líder militar) e construir uma sociedade
mais justa. O filme torna-se um bom exemplo do potencial da comédia – no
caso, através da paródia a um filme norte-americano – na abordagem de certos
temas que, alguns anos mais tarde, iriam povoar muitas narrativas do Cinema
Novo de forma radicalmente diversa.
No mesmo ano em que realizou Nem Sansão nem Dalila, Carlos Manga
dirigiu outra comédia, Matar ou correr (1954), desta vez parodiando o
western Matar ou morrer (1952, de Fred Zinnemann). Porém, ao contrário do
primeiro filme, este faroeste tropical exibe uma desconcertante ambiguidade
em relação ao filme original, na medida que respeitava muito mais a
integridade do filme norte-americano, em especial sua linguagem e estética,
repleta de códigos narrativos do gênero de amplo domínio das plateias. Os
elementos cômicos presentes na narrativa são os personagens de Oscarito e
Othelo, enquanto a galeria de tipos do gênero mantém-se intacta, levando todo
o filme muito a sério em sua competência cenográfica. O vilarejo do faroeste,
City Down, ainda hoje impressiona pela sua detalhada construção e respeito
à iconografia genérica do western. À época de seu lançamento, alguns
espectadores acreditaram que, em pelo menos um trecho do filme, o da
diligência cruzando a paisagem no início, as imagens tivessem sido
pirateadas de um filme norte-americano.
Em 1952, Moacyr Fenelon inaugurou auspiciosamente a sua Flama Filmes
com Tudo azul, concebido para o carnaval daquele ano e estrelado por
Marlene e Luís Delfino. Com argumento e roteiro de Alinor Azevedo e
Henrique Pongetti, é uma crônica sobre um compositor infeliz que vê “tudo
azul”, sonhando com o dia em que gravará suas próprias composições.
Recheado de números musicais, recebeu do crítico Mário Nunes do Jornal do
Brasil, alguns elogios nos quais afirmava que, apesar de apresentar apenas um
passatempo explorando, uma vez mais, a popularidade das canções
carnavalescas, revelava também as possibilidades da nova produtora de
Fenelon, num espetáculo a que se assistia com prazer e muito bem realizado
tecnicamente.
Um ano antes, uma novidade acontece com a produção de Adhemar Gonzaga
para a adaptação que Luiz de Barros dirigia do romance Lucíola, de José de
Alencar. Estrelado por Virgínia Lane, no papel de Lucíola, Anjo do lodo
(1951) apresentava uma cena de nudez, que, apesar de insinuada por uma
silhueta refletida na parede, foi o bastante para não só provocar sua interdição
para maiores de 18 anos, como para retirar o filme de cartaz sob campanha
pública liderada pelo então deputado democrata-cristão Jânio Quadros.
Alguns intelectuais, como José Lins do Rego e Antônio Olinto, defenderam
o filme, que acabou sendo liberado com o corte da cena em que, segundo Luiz
de Barros, a mão do galã aparecia a um palmo do seio da atriz.
Também a Atlântida voltava-se esporadicamente ao filme não musical. Amei
um bicheiro (1952), dirigido por Jorge Ileli e Paulo Wanderley, é o exemplo
mais célebre da década de 1950. Há nesse filme a visível integração de expor
a fórmula do submundo carioca ligado ao jogo: marginais explorados por um
poder econômico maior, mulheres fatais e personagens ingênuos, como o
casal principal, interpretado por Cyll Farney e Eliana. Estes, vindo do interior,
tornam-se vítimas fáceis da corrupção da cidade grande, numa dicotomia
clássica do melodrama. O elenco era basicamente o mesmo das comédias,
incluindo um notável desempenho de Grande Othelo no papel de Passarinho,
o ajudante dos bicheiros que, durante uma batida policial enconde-se na
apertada caixa do medidor de gás e acaba morrendo por asfixia. Nessa
memorável sequência, Othelo consegue mostrar toda a riqueza interpretativa
de um ator dramático de primeira linha, mostrando uma vez mais sua
fantástica versatilidade e repertório performático. Apesar das intenções
reveladas no tema e num certo realismo observado em locações pela cidade,
o clima do filme lembrava mais o policial norte-americano – com incursões,
inclusive, pelo filme noir (como na sequência da perseguição de carros a noite
pelas ruas molhadas da cidade), ou mesmo na presença da loura fatal,
interpretada por Josette Bertal) – do que o neo-realismo que estava prestes a
se esboçar no cinema carioca.
Há transformações notáveis também com relação às comédias no decorrer da
década. A própria utilização de música, por exemplo, não excluía do samba e
do carnaval ritmos internacionais como a rumba, no início da década
(Carnaval Atlântida), ou mais para o final, o rock (De vento em popa, de
Carlos Manga, ou Alegria de viver, de Watson Macedo). Com Macedo e
Manga, as comédias vão se tornando mais sofisticadas ao exibir cada vez
mais um maior apuro técnico. Muitos desses filmes abandonaram a música,
porém não totalmente o espírito carnavalesco das paródias e inversões de
sentido ao ampliarem seu olhar para o cotidiano da vida carioca e seus tipos
populares.
Com Aí vem o barão (1951), premiado como o “melhor filme do ano” no
Festival Cinematográfico do Distrito Federal, Watson Macedo apresentava
Cyll Farney como o novo galã de Eliana, e o filme fazia sucesso nas
bilheterias. Este seria o derradeiro trabalho de Macedo para a Atlântida, antes
de se tornar um “independente”, insatisfeito com as condições financeiras
impostas na produtora, que não compartilhava os lucros da empresa com seus
diretores. Posteriormente, Watson Macedo afirmaria, num raro depoimento
de televisão, que dirigiu de graça durante os sete anos em que permaneceu na
Atlântida.
Recebia em folha apenas os vencimentos de montador. No sétimo ano, nos dois últimos
filmes, incluíram no orçamento a soma ridícula de dez contos de réis para o meu trabalho
como diretor. Eu me sujeitei a isso porque esperava a chance de realizar A sombra da
outra. Saí pobre da Atlântida” 25.
25
Depoimento transcrito por José Carlos Monteiro. O Globo, Rio de Janeiro, 9 abr 1981, p. 31.
desabar justamente no galinheiro do Sr. Anastácio (Oscarito) e de sua patroa,
Dona Clecy (Zezé Macedo) nos arredores de Campo Grande, então zona rural
do Rio de Janeiro. Ali, o matuto e simplório casal bendizia a sorte que “caiu
dos céus” – ainda que por pouco tempo e de forma equivocada – e sonhava,
no caso dela, com a ascensão representada pela notoriedade que certamente
alcançaria no high-society da capital através da coluna social do cronista
Jacinto Puxar (Cyll Farney), enquanto Anastácio, mais modesto, só queria
uma nova chocadeira para suas galinhas.
Russos, norte-americanos e franceses mandavam seus agentes ao Rio de
Janeiro na tentativa de resgatar o satélite. Nada escapa ao olhar corrosivo
dessa comédia. Do sotaque à caracterização dos soviéticos, que ainda em
Moscou escondiam garrafas de bebida (incluindo Coca-Cola) por trás de
falsas estantes, em cenários pomposos, enquadrados e iluminados de forma
dura, enfatizando sombras, câmera baixa “dignificando” os soviéticos à
maneira do realismo socialista. Já os norte-americanos, são infantilizados,
rodeados de gadgets e identificados a uma insígnia com a representação de
uma águia – cujo corpo era composto por uma garrafa de Coca-Cola, torres
de petróleo e um saco de dinheiro, onde se percebiam com clareza, as
legendas “USA e ABUSA”.26 Os franceses vinham com perfumarias, moda e
principalmente Brigitte Bardot, outro ícone cinematográfico parodiado com
garra por Norma Bengell, estreando no cinema depois de aparecer na televisão
brasileira em um comercial de um achocolatado, ao lado de Márcia de
Windsor. Uma sequencia onde ela canta para uma plateia no Copacabana
Palace, tendo Anastácio como espectador privilegiado e completamente
embasbacado pela sedutora BB, repete o mesmo modelo do comercial, com
uma abertura na frente para mostrar as belas pernas de vedete do teatro de
revista que fizeram a fama da então jovem atriz e construíram para sempre
sua persona e texto estelar como ícone erótico. A comicidade de duplo
sentido permitido pelo trocadilho BB aparecia no filme numa de suas mais
brilhantes utilizações. Quando apresentada a Anastácio sob o olhar vigilante
da patroa, Dona Clecy imediatamente intervém e adverte a francesa para ir
beber outro marido, pois o dela não era refresco.
Nessa segunda metade da década de 1950, a comédia carioca ampliou o leque
de personagens à disposição das tramas com a entrada de novos produtores e
diretores, a formação de novas duplas cômicas e também maior definição dos
tipos já esboçados por alguns atores e atrizes no período anterior. A década
iniciava com o retorno de Getúlio Vargas ao poder, eleito pelo voto direto,
dando prosseguimento à democracia populista que caracterizou seus governos
anteriores. E em todo o seu decorrer, na economia, o setor industrial
começava a tomar pé, provocando de imediato um crescimento demográfico
generalizado nas principais cidades brasileiras. Fato agravado pelo aumento
26
Em depoimento a mim prestado em 1980, Manga diria que, na época, a repercussão negativa dessa imagem e
trocadilho lhe custou uma bolsa de estudos nos EUA.
gradativo de levas migratórias, o que forçou a abertura de um relativo espaço
cultural e político para a expressão de classes populares. O cinema brasileiro
marcou esse espaço de inserção do homem simples brasileiro em suas
narrativas e na constituição de um mercado consumidor para os filmes.
Jogando habilmente com o processo de identificação entre o mundo da tela e
o universo do espectador, a comédia carioca consagrou tipos populares como
o herói espertalhão e desocupado, os mulherengos e preguiçosos, imigrantes
ingênuos, sovinas ou espertalhões, as empregadas domésticas e as donas de
pensão, os nordestinos, além de outros tipos que viviam os dramas e a
experiência do desenvolvimento urbano.
Dentro da comicidade geral desses filmes, destacam-se três desdobramentos
que, ao lado dos principais tipos desenvolvidos e consagrados pela Atlântida
a partir de Carnaval no fogo, delinearão com contornos mais precisos a
persona cinematográfica de atores como Zé Trindade ou atrizes como Violeta
Ferraz e Zezé Macedo, em alguns filmes que, paralelamente ao trabalho da
Atlântida, introduziram novos atores e atrizes no gênero, como Ankito,
Ronald Golias, Costinha, Consuelo Leandro, Vera Regina e os palhaços Fred
e Carequinha, ou diretores como J. B. Tanko, Victor Lima, Aloísio Carvalho,
Roberto Farias ou Eurides Ramos, além de produtores como Herbert Richers,
entre outros. Os tipos desenvolvidos por Zé Trindade, Violeta Ferraz e Zezé
Macedo giram em torno de representações mais ou menos homogêneas a
serviço de uma tipificação de gênero em funções narrativas para os papéis
caricatos de casais maduros e de empregados domésticos. A “coroa”, poderia
tanto ser a “patroa” quanto a “viúva”, igualmente dominadoras e opressoras,
exercendo sua prepotência sobre os homens em sua órbita de poder (marido,
genro, filho, empregado, etc.). O “coroa” era muitas vezes seu parceiro,
oprimido em casa e liberado na rua, confiante em si mesmo e, por isso,
obtendo sucesso instantâneo com as mulheres. E a “empregada” poderia ser
magra, com voz estridente, normalmente acentuando um contraste com outra
empregada mais jovem e atraente, ou mesmo com a heroína do filme.
Todos esses tipos eram caricaturas na medida em que suas atuações
satirizavam os próprios tipos representados, forçando determinados efeitos
cômicos, como por exemplo a piada seguida de uma careta, herança das raízes
populares dessas comédias, encontradas no teatro de revista, no rádio ou no
circo. Violeta Ferraz era pródiga em produzir caretas, pela utilização de seu
rosto redondo e maleável, criando os mais diferentes efeitos cômicos a partir
de situações dramáticas que envolviam choro e briga. As sobrancelhas
levantadas e curvas faziam contraponto com a linha da boca, recriando a
máscara “triste” do teatro clássico. O caráter cômico e grotesco dessa
excelente atriz era acentuado por uma estética do excesso, com penteados e
acessórios de vestuário, chapéus, laçarotes no cabelo e na roupa, lenços
amarrados, brincos e flores exageradamente grandes colocadas na lapela, em
filmes como O golpe (de Carlos Manga, 1955), O batedor de carteiras, Minha
sogra é da polícia, ambos realizados em 1958 por Aloísio Carvalho. Ou na
percepção cômica de seus quadris rebolantes em Rico ri à toa (1957), de
Roberto Farias, então estreando na direção. Já o “coroa”, na pele de Zé
Trindade, era a própria imagem do cafajeste maduro, esperto, cheio de
sabedoria popular, criando um tipo bastante idealizado pelo público nos
diversos papéis que representou. Seu olhar e sorriso variavam da apreensão e
desapontamento para a satisfação e malícia, dependendo ou não da presença
repressora da “patroa” que flagrava, invariavelmente, a paquera em cima da
“mulher boa”. O rosto de Zé Trindade não escondia propositadamente as
marcas da idade, necessárias à caracterização de seus personagens, nem as
espinhas, que acentuavam tipos meio rudes. O sotaque somava, ao modo de
falar carioca, traços linguísticos de outras regiões brasileiras. O filme mais
representativo das situações frequentes que envolveram os tipos de Violeta
Ferraz e de Zé Trindade talvez seja Rico ri à toa. Mas Zé Trindade, nesse
mesmo ano, já teria o seu tipo definido em Maluco por mulher (1957, de
Aloísio de Carvalho) e reiterado, sempre com muito sucesso, em Tem boi na
linha (1957) do mesmo diretor, ou contracenando com Ronaldo Lupo em O
camelô da Rua Larga (1958, de Eurides Ramos), Mulheres à vista (1959, de
J. B. Tanko,) e Massagista de madame (1959, de Victor Lima,). Quanto a
Zezé Macedo, a atriz realçava mais ainda a magreza em figurinos escuros ou
uniformes de empregada que exibiam linhas verticais, como, uma vez mais,
em Rico ri à toa. Seus grandes brincos, aliados a uma voz invariavelmente
estridente, tornavam-na ainda mais engraçada.
O fato de encontrar tipos populares que se tornavam frequentes na produção
cinematográfica brasileira encontrava enorme aceitação no público enquanto
esse fenômeno durou. Apesar de ter feito a fortuna de poucas pessoas, esse
gênero permitiu o aparecimento e desenvolvimento de talentos por mais de
30 anos. Mesmo ostensivamente apoiado em códigos do cinema dominante
norte-americano, principalmente na década de 1950, em função da tipificação
do triângulo principal construído em torno de “galãs”, “mocinhas” e “vilões”,
a comédia produzida no Rio de Janeiro expressou muito bem uma visão
irônica e crítica da realidade brasileira nesse período. Com exceção do
cômico, os heróis masculinos e femininos, em geral, não acompanharam as
transformações que se operavam no cinema norte-americano desde a década
de 1930, como sutilezas na representação da “mulher fatal” ou mesmo com o
“vilão” e a “mocinha”. Pelo contrário, nessas comédias, uma heroína como
Eliana sempre reforçava sua eterna juventude como nos constantes bailes de
aniversário, ao completar 21 anos em Carnaval Atlântida em 1952, ou três
anos mais tarde encarnando uma jovem de 17 anos em Sinfonia carioca. Não
se operou nessas comédias, a alquimia que superpôs o bom e o mau no cinema
norte-americano da década de 1940. Repetimos aqui a moral anterior à década
de 1930, vigente em Hollywood, segundo a qual, por exemplo, o sexo era
visto como um apelo bestial e destrutivo, a ser personificado apenas pelo
vilão. Tal dicotomia simplista é clara em Amei um bicheiro, onde a “mulher
fatal” (Josette Bertal), amante do banqueiro (José Lewgoy), tenta conquistar
o ingênuo Cyll Farney, vestida em um négligée preto, sexualmente liberada
por oposição à personagem de Eliana, dona de casa, pura, vinda do interior e
grávida, vivendo somente para o lar. A erotização dos heróis norte-
americanos, ocorrida na década de 1940, não afetou os correspondentes
brasileiros. Muito diferente do que já começava a ocorrer nos palcos cariocas
com as encenações de, entre outros, Nelson Rodrigues. Há, entretanto, uma
evolução na ingenuidade de um Anselmo Duarte, de Carnaval no fogo e Aviso
aos navegantes, para a esperteza do personagem Zé Bomba em Depois eu
conto (de José Carlos Burle, 1956), que se fazia passar por rico ao desfilar
com carro dos clientes do posto de gasolina onde trabalhava como frentista.
Em Os dois ladrões, Cyll Farney continua sendo o “galã” de sempre, porém
na pele de um simpático ladrão.
De resto, o gênero começou a envelhecer ao final da década devido,
principalmente, à repetição exagerada dos mesmos esquemas de sempre,
numa linguagem que começava a dar sinais de exaustão. A partir da realização
dos dois congressos do cinema brasileiro (1952, no Rio de Janeiro, e 1963,
em São Paulo) surge uma consciência maior dos vários problemas que afetam
o cinema e toma corpo a ideia de que não bastava a viabilização de um cinema
industrial, com bons equipamentos, técnicos, instalações modernas, para a
materialização de um cinema culturalmente forte e economicamente viável,
se não fossem alterados os limites impostos no mercado pela dominação do
cinema estrangeiro. Este processo levou inevitavelmente, entre outras
ambições, a uma descoberta e reflexão sobre outras possibilidades e desejos
de cinema no Brasil. E, sob o impacto do neo-realismo italiano, já se
esboçavam no Rio de Janeiro, ainda na primeira metade da década de 1950,
obras que antecipariam o cinema do final da década, como as crônicas urbanas
Agulha no palheiro (1953, de Alex Viany) ou até mesmo Amei um bicheiro.
No primeiro filme, como assistente de Alex Viany, encontramos a figura
central de Nelson Pereira dos Santos, que dois anos depois inauguraria, de
fato, um cinema muito mais preocupado como instrumento de expressão e
denúncia social do que os musicais e comédias de sucesso. Rio, 40 graus
(1955) e Rio Zona Norte (1957), assim como, em São Paulo, O grande
momento (direção de Roberto Santos, 1958), também produzido por Nelson,
plantavam as sementes do que viria ser um novo cinema que explodiria nos
primeiros anos da década de 1960.
O final da década de 1950 testemunhava a concretização do sonho de
construção de uma nova capital para o país em Brasília, num contexto de
renovação cultural fortalecido pela eleição de Juscelino Kubitschek em 1955. O
presidente eleito administrava o Brasil aproveitando o clima favorável à
expansão econômica e à industrialização, sustentado por uma ideologia de
desenvolvimentismo. Embora motivada por um sentimento nacionalista, esta
era, contraditoriamente, montada em cima de investimentos de capital
estrangeiro, cujo melhor exemplo é a consolidação da indústria automobilística
em São Paulo. Muitos setores se opunham a esses programas, e o período
testemunha também maior conscientização política da classe média em torno de
problemas de natureza econômica, como o papel do capital estrangeiro na
economia do país e a inflação. O Brasil mudava, e é em torno de 1960 que a
televisão estende-se em todas as direções, transformando-se rapidamente no
meio de comunicação mais eficaz e poderoso do país. Chanchadas continuaram
sendo produzidas na década de 1960 mas as filas diminuíram. Para a televisão
migraram não só diretores e estrelas (Chico Anísio, Jô Soares, Costinha, Renato
Aragão, ou bem mais tarde, Carlos Manga e Roberto Farias) como,
principalmente, estratégias de humor, ironia e paródia que definiram uma
linguagem de grande apelo e eficácia populares e que haviam sustentado
durante mais de três décadas a sobrevivência do cinema brasileiro na primeira
metade do século passado. Com o final da Atlântida enquanto produtora de
longas-metragens em 1962, pode-se afirmar que a chanchada e o carnaval
eclipsaram no cinema brasileiro. Aqui e ali alguma sobrevida apareceu em
títulos de veteranos como J.B.Tanko em Bom mesmo é carnaval e Carnaval
barra limpa (1967) e Victor Lima em 007 e meio no carnaval (1966), para
reaparecer em outra chave, como na co-produção Carnaval de assassinos (de
Robert Lynn, 1969) ou no cinema marginal de Carnaval na lama (de Rogerio
Sganzerla, 1970). E, claro, na linha do erotismo soft ou hardcore,
como Carnaval das taras (de Roberto Machado, 1983) ou Carnaval do sexo
(1986) enquanto que a paródia retornou voltada parao cinema de efeitos
especiais como em Bacalhau (de Adriano Stuart, 1976), entre outros.
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Rodrigues, João Carlos. “Arrasando quarteirões”. Filme Cultura, Rio de Janeiro, 2010, p.62-65.
mercado. Se antes poderíamos afirmar a existência e o sucesso do cinema
brasileiro apoiado no rádio, hoje não há como falar de um cinema brasileiro
economicamente dominante que não passe por um cinema de televisão.