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Revista Portuguesa de Filosofia

Natureza Humana e Projeto: O Pseudodilema Kantiano e a Originalidade Tomista


Author(s): CARLOS FREDERICO GURGEL CALVET DA SILVEIRA and SERGIO DE SOUZA SALLES
Source: Revista Portuguesa de Filosofia, T. 68, Fasc. 3 (2012), pp. 391-410
Published by: Revista Portuguesa de Filosofia
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Natureza Humana e Projeto:
O Pseudodilema Kantiano
e a Originalidade Tomista

CARLOS FREDERICO GURGEL CALVET DA SILVEIRA*


SERGIO DE SOUZA SALLES**

Resumo
A naturezahumanaé fundamento e não meramente projetoregulador das ações.Ao se
considerarKanto divisorde águasparaumanovaconcepçãodo homem, na medidaem
que eledistingueo homemnumênico do homemfenoménico, reconhece-seque a tradição
filosófica passoua considerar
pós-kantiana a naturezahumananãocomofundamento mas
projetodo serhumano. Poroutrolado,pretende-semostrar aquiquea distinção kantianaé
devedora nãosomente do seuprincípiotranscendental,mastambém de certasfonteshistó-
ricasdo seupensamento, especialmentea escolástica.
Asfilosofias
posterioresao kantismo
desenvolveram esseidealda natureza
humanacomoprojeto, nestecaso,individual.
Apartir
da retomada do conceito denatureza
original humanafundada noatodeserdescoberto por
São TomásdeAquino, demonstrar
pretende-se quea dicotomiakantiana,nãoobstante toda
suainfluência podeserrevertida
histórica, emfavor da unidadedinâmica do sere doagirna
pessoahumana.
Palavras-chave
: Naturezahumana,ato de ser,homemnumênico, homemfenoménico,
projetohumano, Tomismo
Abstract
Humannatureis thefoundation and notmerely a projectregulatoryofhumanactions.
Whenweconsider Kanttheturning pointtoa newconception ofman,insofar as itdistin-
guishesnoumenal manfrom phenomenal man,itis recognized thatthepost-Kantian philo-
sophicaltradition
begantoconsider humannature notas thefoundation ofhumanactions
butas a project
ofhumanity.Moreover, weintend toshowherethattheKantiandistinction
is indebtednotonlyto itstranscendentalprinciple,butalso to certainhistoricalsources
ofhisthought, scholasticism.
especially Thepost-Kantian philosophiesdeveloped thisideal
ofhumannatureas a project, in thiscase,individual Fromtheresumption
project. ofthe
originalconceptofhumannaturefounded on theactofbeingdiscovered bySt. Thomas
Aquinas,we intendto demonstrate thattheKantiandichotomy, despiteall itshistorical
influence, in favorofthedynamic
canbe reversed unityofbeingandactinginthehuman
person.
Keywords : Humannature, actofbeing,noumenal man,phenomenal man,pumanproject,
Thomism

* Universidade
Católica RiodeJaneiro,carlos.silveira@ucp.br
dePetrópolis,
** Universidade RiodeJaneiro,sergio.salles@ucp.br
dePetrópolis,
Católica

Voi.
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Fase | 391-410

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Introdução

natureza humana é fundamento e não meramente projeto regu-


lador das ações. Esta tese guia a presente investigação que assume
A a questão "que é o homem?" como tema central para a análise
comparativa da antropologia pragmática de Kant e a antropologia meta-
física de Tomás de Aquino. Tal comparação adota como pressuposto que
uma adequada resolução da questão "que é o homem?" deve ser consis-
tente com a unidade ontológica do homem, tanto na consideração de seu
ser quanto na consideração de seu agir.
Ao se considerar Kant o divisorde águas para uma nova concepção do
homem, na medida em que ele distingue o homem numênico do homem
fenoménico, reconhece-se neste artigo que a tradição filosófica pós-
-kantiana passou a considerar a natureza humana não como fundamento
e, sim, como projeto do ser humano. Por essa razão, o artigo apresenta,
em primeiro lugar, os problemas da antropologia pragmática de Kant,
situando-os a partirda dicotomia entrea natureza fisiológica e a natureza
pragmática do homem.
Em segundo lugar,pretende-semostraraqui que a distinção kantiana
é devedora não somente do princípio transcendental de sua filosofia
crítica, mas também de certas fonteshistóricas do seu pensamento, espe-
cialmente a escolástica. Para tanto, expõe-se o desvio operado na própria
escolástica em relação à filosofiado ser, tal como essa originalmente é
proposta por Tomás de Aquino.
Em terceiro lugar, consideram-se certas filosofias posteriores ao
kantismo e o modo como desenvolveram o ideal kantiano da natureza
humana como projeto em sua dimensão propriamente individual em
oposição aos ideais universais da razão prática, instaurando, assim, na
história do pensamento ocidental, a derradeira dicotomia entrea natureza
(universal) e o indivíduo (particular).
Enfim,a partirda retomada do conceito original de natureza humana
fundada no ato de ser, descoberto por São Tomás de Aquino, pretende-se
demonstrar que a dicotomia kantiana, não obstante toda sua influência
histórica, pode ser revertida em favor da unidade dinâmica do ser e do
agir na pessoa humana.

Os problemas da antropologia pragmática de Kant

Em Antropologiado ponto vista Pragmático, Kant, ao distinguirentre


o homem fenomènico e o homem numênico, parece oferecerao problema
do reconhecimento da natureza humana universal uma solução cuja

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Kantianoe a Originalidade
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importância é maior no pensamento filosóficodos séculos que o seguem


do que propriamente em sua antropologia, ou ainda em sua filosofia
como um todo. Sua abordagem sobre o homem nesta obra é esclarecida,
como de costume, logo de início: "Uma doutrina do conhecimento do ser
humano sistematicamente composta (antropologia) pode ser tal do ponto
de vista fisiológico ou pragmático. - O conhecimento fisiológico do ser
humano trata de investigar o que a natureza humana faz do homem; o
pragmático, o que ele faz de si mesmo, ou pode e deve fazer como ser que
age livremente".1Nota-se de pronto uma dicotomia entre natureza e indi-
víduo ou pessoa, que rompe a unidade ontológica do ser humano.
É sempre viva em nossas mentes a perguntakantiana: que é o homem?
E Kant detém uma resposta igualmente rigorosa, que conserva, porém,
a mencionada dicotomia entre natureza e pessoa humana. Tal dicotomia
revela a insuficiência da resposta kantiana. Esta insuficiência no pensa-
mento kantiano foi resumida por Foucault em sua interpretaçãohistórica
de Kant como o grande forjador da ideia moderna de homem. Mas isto,
como nos mostra Louden em seu exaustivo estudo sobre a natureza
humana em Kant, não é suficientementeesclarecedor: "O compromisso
de Kant para com a existência de uma natureza humana também o põe
em oposição a historicistas,como Foucault, que sustentam que "o homem
é invenção de data recente". Do ponto de vista de Kant, os seres humanos
existem há muito tempo. No entanto, sua teoria sobre a natureza humana
não é certamente a-histórica. Ele reconhece que a vida humana mudou
profundamente ao longo de séculos, mas também afirma que um relato
corretoda natureza humana é aquele que inclui as fontesconceituais para
nos permitircompreender por que a mudança ocorreu".2
Este breve parágrafo permite-nosaprofundar alguns temas relativos
à penosa questão da concepção do homem por nós herdada. Em primeiro
lugar,o autor pretende mostrarum sentido da natureza humana em Kant
que está além, não só das interpretações mais correntes, mas também,
contra a própria concepção de alguns filósofoscontemporâneos de grande

1. Kant,Immanuel - Antropologia
deumPontode VistaPragmático,tradução de Clélia
Martins. 2006,p. 21.
São Paulo:Iluminuras,
2. Louden, Robert - KanťsHumanBeing:EssaysonhisTheory ofHumanNature. New
York:Oxford Press,2011,p.XIX:"Kant's
University commitment totheexistenceofa human
naturealsoputshiminopposition tohistoricists, whoholdthat'manis
suchas Foucault,
aninventionofrecent date'.OnKant'sview,humanbeingshaveexisted fora verylongtime.
histheory
Nevertheless, ofhumannatureis certainly He acknowledges
notahistorical. that
humanlifehas changedprofoundly buthe also holdsthata
overthecourseofcenturies,
accountofhumannature
correct theconceptual
is onethatincludes resourcestoenableus
tounderstand whychangehasoccurred."

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importância para as novas concepções do homem, como é o caso de


Foucault. É o que ele considera 'oposição'.
Em segundo lugar,o autor refere-seà mudança do ser humano em sua
história,reconhecida por Kant, que, porém, não é a base da sua concepção
da natureza humana, pois, ao contrário, sua concepção é a-histórica.
Esta perspectiva, contudo, precisa ser explicada, e, para tal, o primeiro
passo é evidenciar as influências e a originalidade com que Kant trata da
natureza humana. Ver-se-áque Kant opera uma dicotomia na concepção
do ser humano, que é consequência do seu ideal transcendental. A mera
oposição reconhecida por Louden entreo históricoe o a-históricoem Kant
refleteisto. Porém esta dicotomia é o resultado da filosofiatranscendental,
mais do que a causa da concepção kantiana do homem.
A terceira antinomia3da Crítica à Cosmologia Racional da Críticada
Razão Pura versa sobre a relação que surge ao considerarmos a origem do
mundo. Ela tem particular relevância aqui, pois, se aplicada ao homem
enquanto ser situado no espaço e no tempo, isto é, o homem fenomenal,
ou empírico, deve admitir-seque ele está submetido à causalidade neces-
sária, como qualquer outro ser da natureza. Porém o homem inteligível,o
homem numênico, ao contrário,é livre,porque a relação das ações no que
diz respeito às razões objetivas não é mera relação temporal.
A emergência do homem numenal como homem que se definepela
sua própria liberdade encontra-sena Religião dentrodos limitesda simples
razão , obra em que Kant compreende a natureza humana como "funda-
mento subjectivo do uso da sua liberdade em geral".4A "natureza humana"
deixa assim de ser entendida como uma realidade comum e estável nos
indivíduos humanos para ser identificada com a própria liberdade de
escolha das máximas morais, que torna possível ao homem ser "autor de
si próprio".5
A partir da nova definição de natureza humana, Kant infere sua
concepção da disposição moral como fundamento subjetivo último
da adoção de máximas. Como a disposição faz parte da estrutura origi-
nária da vontade e, portanto, é condição necessária das escolhas morais,
Kant estabelece que a disposição é uma condição necessária para a iden-
tidade do sujeito moral. Essa autoidentidade moral é uma conquista do
próprio homem e não algo dado pela "natureza" previamente ao próprio

3. Kant,Immanuel - Kritik
derreinen Darmstadt:
Vernunft. Wissenschftliche
Buchgesell-
1983,v.4,B 471-475.
schaft,
4. Kant,Immanuel- Religionwithintheboundaries of merereason.Cambridge:
Cambridge Press,1998,p.46.
University
5. Ibid.,p.47.

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uso da liberdade. Como não há identidade entre a natureza do homem


enquanto ser empírico (fisicamente considerado) com a natureza do
homem enquanto ser racional e inteligível (moralmente considerado),
o que permanece na "natureza humana" de cada um dos indivíduos
humanos depende necessariamente da disposição moral adquirida no uso
da liberdade.
Esta ruptura entre o racional e o natural parece ser corroborada por
Charles Taylor nos seguintes termos: "Kant insiste explicitamente que a
moralidade não pode ser encontrada na natureza, nem em coisa alguma
fora da vontade racional do homem. Essa é uma rejeição cabal de todas
as moralidades antigas. Não podemos aceitar que a ordem cósmica, ou
mesmo a ordem dos finsna "natureza" humana, determinenossos propó-
sitos normativos."6E arremata Taylor,nesta sua rigorosa abordagem das
fontes da identidade do homem moderno: "[...] a teoria de Kant é real-
mente uma das formulações mais diretas e intransigentesde uma postura
moderna".7 A natureza humana enquanto racionalidade, é um projeto a
ser realizado, um ideal, e não um ponto de partida para a realização da
pessoa humana.
Surgem, assim, embora com matizes bem distintos e, em certos
aspectos, em oposição a Kant, as filosofiasdo projeto, como mostraremos
em seguida. Usamos o termoprojeto,de origem sobretudo heideggeriana,8
para indicar não somente as filosofiasexistencialistas ou personalistas,
mas também aquelas que num momento recente, pensam o sujeito
humano como autodeterminação, como Charles Taylor tem mostrado em
suas obras, especialmente em As fontesdo Seife A Ética da Autenticidade.9
Por outro lado, como o próprio Kant defende no parágrafo pouco
acima citado, é importante retomar as fontes conceituais que promo-

6. Taylor,Charles- AsFontes doSelf:a Construçãoda Identidade Moderna. Tradução de


AdailSobrale DinahAzevedo. 3.aed.São Paulo:Loyola,2011,p. 466.
7. Ibid.,p.467.
8. Para Heidegger, o Entwurf ] é um constitutivo
[Projekt do Ser-aí.Cf.Heidegger,
Martin - SeinundZeit.Tubíngia:MaxNiemeyer 1993,31,p. 146.
Verlag,
9. Aocriticarescolhasquesebaseiamemmeraautodeterminação, e fazendo
referência
a Nietzsche, Taylorobservacriticamente a situaçãodo homemmoralcontemporâneo,
comprometido coma "autenticidade": "O agenteprocurasignificado na vida,tentando se
definirde maneira deveexistir
significativa, numhorizonte de questõesimportantes. Issoé
autodestruição nosmodosda cultura contemporânea quese concentram naautorrealização
emoposiçãoàs demandas da sociedade,ou da natureza,que bloqueiaa história e os laços
Essasformas
de solidariedade. autocentradas «narcisistas» e banali-
são de fatosuperficiais
zadas;são «niveladase restritas»,
comoBloomdiz".Taylor, Charles - ÉticadaAutenticidade,
tradução deTalytaCarvalho. 2011,p. 49.
São Paulo:É Realizações,

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veram as mudanças na natureza humana. Certamente,escolásticas tardias


e indiretas de Kant são exploradas aqui, pois elas mais confirmaramdo
que se opuseram à sua tendência. O testemunho mais claro dessas fontes
kantianas é o opúsculo inacabado Os Progressosda Metafísica, onde são
dados créditos históricos a Leibniz e a Wolff:

O que concerneà análise dos puros conceitosde entendimento e dos


princípiosa priori utilizados para o conhecimentoda experiência
constituia ontologia;não pode negar-seaos dois filósofosnomeados
[Leibnize Wolff],
sobretudoao ilustreWolff,o grandeméritode terem
exercidomaiorclareza,precisãoe esforçopela solidez demonstrativa
do que algumavez aconteceraantes,ou forada Alemanha,no domínio
da metafísica.10

Não é o momento de se reconstituir todo o percurso que vai da


escolástica, especialmente a do século XVI e XVII, até Kant, passando
por Leibniz e Wolff.Mas a simples referência do próprio Kant a estes
dois pensadores é suficientepara que reconheçamos a linha que vai da
escolástica até ele, e identifiquemosaí os desvios no conceito de natureza
humana que precede ao próprio filósofoalemão.
Com efeito, o desvio da concepção da natureza humana na sua
unidade pessoal operou-se, paradoxalmente, na filosofia escolástica.
Várias disputas clássicas colaboraram para isso. A Querela dos Universais
e a distinção entre ser e essência defendida por São Tomás são as mais
importantesaqui para o nosso fim.Comecemos pela tese que imortalizou
filosofiatomista.
A escolástica introduziu esta dicotomia, repetimos,paradoxalmente,
dado que o objetivo da filosofiacristã do período era justamente o de dar
maior unidade à existência e às ações do homem, tal como exigiriaa moral
cristã. Kant, por sua vez, levou à sua plenitude o que já se tornara a forma
mentis do filosofarpós-cristão. Com efeito, as distinções entre númeno
e fenómeno; entre razão pura e prática; entre moral e fé são, ao mesmo
tempo, efeito de uma época e origem de uma nova era do pensamento
ocidental.
As três famosas interrogações11kantianas da segunda seção do
Cânone da Razão Pura consagram esta tendência. E o autor esclarece: a

10. Kant,Immanuel - Os Progressosda Metafísica,


traduçãode Artur
Morão.Lisboa:
Edições70,1985, A 68.
11. Kant,Immanuel - Kritikderreinen Darmstadt:
Vernunft. Wissenschftliche
Buchgesell-
schaft,1983,v. 4, B 833: "1. Waskannichwissen?2. Wassollichtun?3. Wasdarfich
hoffen?".

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primeira questão é especulativa; a segunda é prática; e a terceira,prática e


teórica. Pode dizer-se,então, que a primeiraconcerne à filosofiae à ciência;
e as outras duas, à moral e à religião, respectivamente.E a novidade aqui
está na autonomia dos saberes. Depois de séculos de reflexão filosófica,
tais perguntas marcam o fim do pensamento totalizante da filosofia.
E, como é inconcebível que Kant tenha negligenciado a grande tradição do
pensamento ocidental, na verdade, o que ele nos sugere é o novo sentido
dessas indagações. E "que é o homem?", a quarta pergunta kantiana surge
mais tarde, em sua Lógica , de 1800, como uma tomada de consciência do
que fora realizado até então. Kant declara que esta é, pois, a questão mais
importante.E isto tem um significadoespecial para o filósofoalemão, pois
o homem tornou-se o ponto de síntese das três áreas do conhecimento e
da ação que ele separara com as perguntas da Crítica.

A contribuição tomista e seu desvio

A tese, a que aludimos anteriormente,do desvio da escolástica em


relação ao conceito de natureza humana, com sua influência no pensa-
mento kantiano, precisa ser aprofundada e desenvolvida, distinguindo-se
o pensamento de São Tomás da escolástica em geral e também da própria
escola tomista. Para tal, importa retomar os elementos fundamentais
do pensamento de São Tomás. Para este, a síntese do conhecimento não
depende do sujeito cognoscente, tese que soluciona ao modo tomista o
problema histórico dos universais. Sua base, contudo, reside numa tese de
ordem metafísica original,a saber, a descoberta do ser como ato. Impende
considerar aqui as consequências destas duas teses tomistas numa teoria
contemporânea da natureza humana para que se possam julgar com mais
clareza os seus aportes à Modernidade.
Primeiramente, a grande contribuição de São Tomás ao pensa-
mento filosófico,explicitada com o movimento neotomista, permite ver
com maior clareza a atualidade de sua filosofia.Autores como Gilson,
De Finance, Fabro, entre muitos outros conseguiram identificar um
tomismo essencial que transcende qualquer sistema fechado ou "figura
histórica particular",inclusive a do próprio Tomás. Este tomismo essencial
é capaz de inserir-sena problemática da cultura moderna e de aprofundar
o "problema do começo" ou do fundamento,como queria Heidegger,que,
na verdade, envolve o problema do conhecimento tal como vimos aparecer
em Kant. Entretanto, no tomismo, a questão do conhecimento não se
separa da questão do ser.

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Assim, a intuição filosoficabásica de São Tomás, conhecida primei-


ramente pela famosa tese da distinção entre ser e essência na criatura
ou a apreensão originária do ens como plexo de essentia-esse,tornou-se
no nosso século lugar teorético das questões filosóficasbásicas.12 Tomás
elevou o ser a ato e, a partirdos próprios princípios aristotélicos,superou
os limites da reflexão do Estagirita sobre o ser. De modo que, no pensa-
mento clássico, ato indica a essência, a forma,ou natureza, enquanto que,
no tomismo, o ato pertence primeiramente e, sobretudo, ao esse , ato de
todos os atos.
O descobrimento do ser como ato, esse ut actus , resposta ante-
cipada às exigências heideggerianas, põe o tomismo em situação privi-
legiada no pensamento contemporâneo. Confirma-o Cornelio Fabro:
"Concretamente, São Tomás supera a relação (ou tensão) aristotélica
entreato e potência, de modo que o ato não é intrinsecamenteinformante,
como para Aristóteles,mas é constitutivode si mesmo, de sua emergência
sobre qualquer potência/'.13
A importância filosófica desta tese tomista é considerável, pois
permitea Tomás realizar verdadeira revolução antropológica, que tecnica-
mente é identificadacom a teoria da unicidade da forma substancial. Esta
descoberta significaa unidade do sujeito, garantida pelo ato de ser: forma
dat esse, e é por ela que o homem é homem, animal, sensível, vivente,
racional.
A consequência desta revolução é a unidade ontológica do homem e
daí do processo cognoscitivo, que, ao partir da essência das coisas mate-
riais pode chegar ao ato de ser, que funda o próprio conhecer. O pensar,
para Tomás, é pensar o real. Permanece aí, contudo, certa tensão entre
transcendência e imanência.
Em segundo lugar, devemos reconhecer que a tomada de posição
tomista em relação ao conhecimento humano, de modo especial em
relação aos universais, depende intrinsecamenteda sua proposta filosófica
sobre o ser. Esta tomada de posição considera que os universais não são
entes subsistentes como defendem os realistas exagerados, mas também
não são meros nomes: os universais estão aptos para o conhecimento da
realidade como ela é.
Na verdade, todo conceito tem duas propriedades: a extensão, que
é o número de indivíduos que dele participa, e a compreensão, que é o

- Tomismo
12. Cf.Fabro,Cornelio e pensiero
moderno.Roma:P.U. Lateranense,
1969,
pp.5-9.
- "São Tomásde Aquino:ontem,
13. Fabro,Cornelio hoje,amanhã".HoraPresente,
16
(1974),p. 252.

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conteúdo que caracteriza a coisa. Feita essa distinção, os realistas mode-


rados defendem que, no caso do conhecimento abstrativohumano em que
formamos os universais, o que muda é a extensão e não a compreensão
do seu conceito. E como no conhecimento o que interessa é o conteúdo
da coisa (a compreensão) e não sua extensão (o número de indivíduos),
conclui-se que os universais nos fornecemo conhecimento da coisa como
é.
Algumas passagens das obras de Tomás podem corroborar esta tese:
"Fica, pois, assim evidenciado que o nome homem e o nome humanidade
significam a essência do homem, mas diversamente, porque o nome
homem a significacomo um todo, enquanto não prescinde da designação
da matéria, porém a esta contém implícita e indistintamente,como se
disse que género contém a diferença".14
É de se notar aí, a ênfase no termo "todo": a essência ou natureza
humana, quando aplicada ao indivíduo, deve supor tudo o que o indivíduo
é, isto é, sua realização concreta, donde a noção de natureza ou essência
é abstraída, a saber, o ato de ser,os acidentes e a própria essência que está
nele realizada por aquele ato. A noção só pode ser aplicada nesta condição.
A noção abstraía é parcial e, portanto, não representa a realidade como
ela é. Prossegue, então, Tomás:

Por isso,o nomehomemse predicados indivíduos.Mas o nomehuma-


nidade significaa essência do homemcomo uma parte,porque não
abrangeem sua significaçãosenão aquilo que é do homemenquanto
homem,e excluitoda designaçãode matéria.Por isso, não se predica
dos homensindividualizados.15

Ao tratar do bem como transcendental, Tomás reafirma o ser como


fundamento: "O ente segundo a razão tem prioridade sobre o bem.
A razão significadapor um nome é aquilo que o intelectoconcebe da coisa
e exprime mediante a palavra. Assim, tem prioridade segundo a razão o
que por primeiro o intelecto concebe. Ora, o que por primeiro o intelecto
concebe é o ente, pois algo é cognoscível na medida em que se encontra
em ato, como se diz no livro IX da Metafísica. Por conseguinte, o ente é o
objeto próprio do intelecto; ele é, pois o primeiro inteligível,como o som
é o primeiro objeto do próprio ouvido. Logo, segundo a razão, o ente tem

14. Tomás de Aquino - O entee a essência,


traduçãode OdilãoMoura.Rio de Janeiro:
Presença,1981,p. 73,n.29.
15. Ibid.

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prioridade sobre o bem".16E como o ente é participação no ser,entende-se


que o conhecimento é em ato em razão do ato de ser que funda o ente.
Em definitiva,o ser constitui o ato primeiro e mais íntimo do ente,
que, ab intra, confere ao sujeito toda sua perfeição, pois qualquer ato
ou perfeição antes deve ser, isto é, há de ter previamente o ato de ser, do
contrário,nada seria. Em contrapartida,os entes, porque menos perfeitos
do que o ser em si, possuem menos ser, têm menor grau de participação
no ser. Historicamente, tal concepção tomista do ser cedeu espaço a um
entendimento abstrato do ser, como o ser comum, que é, sobretudo, o
ser entendido extensivamente,com o mínimo de conteúdo. Esta teoria,
presente no final do pensamento medieval, formula-sede modo explícito
no racionalismo. Com distintos matizes, filósofoscomo Suárez, Leibniz,
Wolff,Kant, etc., passaram a entender o ser não como ato, senão como
efetividade(do esse ut actus ao esse actu).
Um dos inconvenientes principais desta postura é que o ente se
assimila ao pensamento, já que tal noção indeterminadíssima do ser
só existe na inteligência humana, como frutode uma abstração lógica.
Não se trata mais do ser real, senão do ser pensado, do ser possível, pois
a "possibilidade" é o caráter "não-contraditório"de uma noção, isto é, a
"possibilidade de que algo seja pensado ou concebido".
Por conseguinte, assistimos à substituição do conceito de ser pelo
de existir. Contudo, para o tomismo devidamente reconstruído, existir
designa somente aspecto mais exterior do ser, como uma consequência
sua: porque o ente tem ser, está aí realmente, fora do nada, e existe.
Interpretarser como existência, é um resultado lógico da posição indicada
anteriormente,que reduz o ente à essência possível, à margem do ato
de ser. Formam-se assim dois mundos: por um lado, a esfera ideal das
essências abstratas ou do pensamento puro; por outro lado, o mundo dos
fatos, da existência fática. Este segundo não é mais do que uma repro-
dução do primeiro: como dizia Kant, o conceito de cem táleres reais em
nada diferedo conceito de cem táleres simplesmente possíveis. Contudo,
a perenidade da filosofiade São Tomás deve-se a que o ser, por reunir
de modo cabal as características de ato, pode subsistir independente-
mente de toda potência. O ser é o ato de todos os demais atos do ente,
pois atualiza qualquer outra perfeição, fazendo-a ser. Por exemplo, o agir,
que é ato segundo, fundamenta-senas potências operativas - ato primeiro
na ordem dos acidentes -, e estas faculdades, com o resto das perfeições

- SumaTeológica,
16. Tomásde Aquino traduçãocoordenada
porCarlosJosaphat
de
Oliveira.São
Paulo:Loyola,2001,1,q. 5,a. 2.

Vol.
68
3 ffŘ?F 2012
Fase

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: O Pseudodilema
NaturezaHumanae Projeto Tomista 401
Kantianoe a Originalidade

acidentais, recebem sua propria atualidade da forma substancial, que é


o ato primeiro da essência. Destarte, toda a perfeição da essência deriva
do ser,que é por isso, com propriedade, ato último e ato de todos os atos
do ente.
Por fim, devemos considerar o destino que estas teses tiveram na
escola tomista e, a partir daí, na filosofiaem geral. Verificaremos,com
facilidade, um distanciamento desta doutrina do esse como actus essendi
ao longo da história do tomismo até o século XX na própria escola tomista.
Cornelio Fabro identifica momentos de ruptura ou de obscurecimento
da descoberta original do tomismo primeiramentelogo após a morte do
Doutor Angélico, e depois, já como consequência ulteriordesse primeiro
período, na escolástica do Renascimento. A estas rupturas Cornelio Fabro
dá o nome de flexões,17distanciamentos que permanecem na própria
escola. Em outras palavras, para Fabro, são os próprios tomistas que
manifestam,em relação ao tema do ser,uma atitude antitomista.
A origem remota do obscurecimento do ser no tomismo é identificada
com a figura de um suposto discípulo de Sao Tomás, Egídio Romano,
arcebispo de Bourges, filósofo e teólogo e primeiro mestre agostiniano
na Universidade de Paris. Sua importância para a história do tomismo
é incomparável, não somente porque se trata de autoridade eclesiástica,
mas sobretudo porque, segundo testemunhos históricos, foi aluno de
São Tomás em Paris, de 1269 a 1272. Em polémica com Henrique de
Gand, Egídio está convencido, com São Tomás que há distinção real
entre essência e ser nas criaturas. Considerado inicialmente um grande
expoente do tomismo nascente, na verdade, sua atitude é ambígua.
Essa ambiguidade é, por um lado, frutoda própria tendência agostinista
de seu pensamento e, por outro, da polémica que travou com Henrique de
Gand na defesa do tomismo. Nesta defesa, ao usar terminologia própria
e, às vezes, tiradas de seu opositor (esse essentiae; esse existentiae), Egídio
gera profundo distanciamento da filosofia original de São Tomás, a
primeira flexão do tomismo, que terá graves consequências na Segunda
Escolástica (séculos XVI-XVIII).
Na Segunda Escolástica, verifica-se, pois, a segunda flexão do
tomismo. Tomás de Vio, Cardeal Caetano, OP, t 1534 é a figura mais
influentedo tomismo deste período. Suas posturas resumem o espírito
de toda a época em meios cristãos. Entretanto, Caetano deve ser consi-
derado um tomista aristotelizante,ou seja, um tomista que procura fazer

- Introduzione
17. Fabro,Cornelio a San Tommaso:La metafisica & ilpensiero
tomista
moderno.Milão:Ares,1997,p. 110.E, também: - "São Tomásde Aquino:
Fabro,Cornelio
hoje,amanhã".
ontem, HoraPresente 16(1974):passim.

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68
3 Q RPF 2012
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402 Carlos FredericoGurgelCalvetda Silveira | Sergiode SouzaSalles

exegese tomista sempre à luz de Aristóteles,afastando-se, portanto da


originalidade do Doutor Angélico, especialmente no que tange ao ser.
Duvida até mesmo das provas da imortalidade da alma: talvez apenas pela
fé possamos chegar a tal sentença. Sua tendência formalisticae altamente
sistemática toma o lugar da sobriedade original do textotomista.
Não é de admirarque os tomistasdos séculos XV-XVII tenhamdeixado
de lado a distinção real entreessência e ser, seguindo a tendência de Egídio
Romano (embora ainda mais distantes do tomismo original do que este),
em favor de uma distinção (real ou de razão) entre essência e existência.
É a segunda flexão do tomismo, na expressão de Cornélio Fabro, o qual
não exime de responsabilidade neste caso nem mesmo João de São Tomás.
Mas não somente os comentadores da Segunda Escolástica estão marcados
por tal desvio. É surpreendente que ainda hoje distintos autores usem
esta distorção da intuição tomista e pretendam, a partir dela, solucionar
questões candentes como a que aqui nos ocupa. Assim, com frequência,
porque lhes escapa o fundamental- que a unidade da natureza humana
encontra-se no ato de ser, a discussão sobre a natureza humana como
fundamentoda moralidade, tão caíra à filosofiatomista, torna-se,embora
verdadeira,uma discussão tangencial. Um exemplo é o que escreveu M. B.
Crowe, em importanteartigo sobre a mutabilidade da natureza humana
consoante o pensamento de São Tomás. Neste artigo o autor,ao discutiro
tema da mutabilidade ou não da natureza humana, defende a concretude
da concepção do homem em oposição à ideia abstraía da natureza humana:
"O problema ainda é o mesmo: em que sentido natureza é invariávele em
que sentido variável? Uma maneira óbvia de responder à pergunta é pela
distinção entre 'natureza abstrata , que é bastante invariável,e [natureza]
'real', ou 'natureza concreta',que não o é."ia

Kant e as filosofias do projeto e da construção da subjetividade

A Crítica da Razão Pura , ao inaugurar uma nova era do pensamento


ocidental, pôs em xeque de modo especial o estatuto do sujeito cognos-
cente, ou seja, daquela realidade entendida como o substrato, o susten-
táculo das experiências cognoscitivas humanas, sobretudo do sujeito como
polo oposto ao objeto no processo humano de conhecimento.

18. Crowe,M.B. - "Human Nature - Immutable ormutable".


IrishTheological
Quartely,
30 (1963),p. 227:"Theproblem is stillthesameone:inwhatsenseis 'nature'invariable
and
inwhatsensevariable? Oneobvious wayofanswering thequestion
isbya distinction
between
'abstract whichisquiteinvariable
nature', and'real'or'concrete
nature'
whichisnot."

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3 Q RPF 2012
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NaturezaHumanae Projeto
: O Pseudodilema Tomista 403
Kantianoe a Originalidade

A concepção clássica do sujeito cognoscente tem sua origem no


processo de conhecimento analógico da realidade, que, desde os gregos
antigos, supôs que tudo aquilo que existe ou existe em si ou em um subs-
trato: ou são substâncias, indivíduos, ou são acidentes. Assim, um cão,
enquanto substrato,seria um sujeito com as características da sua espécie
acrescido da existência singularizada. Por outro lado, suas características,
como cor,tamanho, cheiro etc. seriam acidentes, tudo aquilo que comple-
taria sua individualidade. É bom lembrar que indivíduo é definido como
o "sujeito com todas as suas perfeições", o ser, a essência e os acidentes.
Esta teorização do substrato ganha sua formulação mais acabada em
Aristóteles,de onde nascem as mais importantes teorias do sujeito em
geral e dos múltiplos sentidos de sujeito, o gramatical, inclusive.
Se seguirmos essa inspiração fundamental,o que Aristótelesnos diz
a respeito do sujeito cognoscente seria uma aplicação precisa dessa teoria
geral, a saber: o sujeito cognoscente é um indivíduo que sustenta, pois,
todos os conhecimentos, que são vistos aqui como meros acidentes seus.
Deduz-se daí, que esse indivíduo é um permanens,que, por sustentaresses
conhecimentos e esses acidentes, transcende o próprio processo de conhe-
cimento.
Ora, o que a Críticaestabelece é a impossibilidade da existência de tal
sujeito como suporte desses acidentes, pois o próprio sujeito, na medida
em que é pensado, é um acidente. Acontece aqui, como diz o próprio Kant,
uma revolução copernicana em Filosofia e em toda a cultura ocidental.
A Críticavem destruira possibilidade de se entender o conceito de sujeito
sem um objeto de pensamento. Não se trata de uma negação absoluta da
nossa possibilidade de autoconhecimento, como se Kant negasse o moto
socrático "conhece-te a ti mesmo"; trata-se simplesmente do reconheci-
mento de que esse ideal está limitado pelas próprias pretensões de conhe-
cimento em geral. Ou seja, não se deve mais falar de um mundo em si, de
Deus em si, do sujeito em si como objeto de conhecimento, mas somente
como ideais que não podem ser verificados pelo próprio conhecimento
humano.
Não obstante, esses ideais podem-nos servir como ideias regu-
lativas para uma outra dimensão do humano, que é a dimensão moral.
Nasce, assim, a Crítica da Razão Prática, onde, pela primeira vez, a moral
aparece livre de toda fundamentação teórica. Quase como se trabalhasse
de modo inverso ao da especulação: primeiro o agir, depois os ideais,
as teorias. Kant pretende, assim, libertar a moral de uma fundamen-
tação limitadora do nosso agir. Contrariamente à ciência e suas teorias,
a moral não se baseia em nenhuma experiência prévia, ou mesmo em
premissas teóricas. Ela é autofundante e, por conseguinte, o agente moral

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Vol.
3 S RPF 2012
Fase

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404 CarlosFredericoGurgelCalvetda Silveira [ Sergiode SouzaSalles

não depende da experiência à qual a ciência é adstrita e, por isso mesmo,


limitada. O reino da moral é o reino da liberdade e, portanto, o reino em
que se constrói o que é propriamentehumano. O agir moral, ao contrário
da ciência, permite ao homem construirum mundo que tem a sua face,
o reino dos homens, onde Deus aparece como postulado prático que lhe
indica o sentido.
O céu estrelado, com toda a sua "infinitude",é limitado se comparado
à grandeza das possibilidades humanas, uma vez que estas não são limi-
tadas pelas experiências materiais. Por isso, Kant completa dizendo que
também a lei moral lhe causa sempre maior admiração, respeito e vene-
ração, como se dissesse que, se o ilimitado céu condicionado às nossas
experiências é capaz de nos causar tamanha surpresa, o mundo incondi-
cionado da moralidade desvela toda a potencialidade do humano.
O sujeito cognoscente toma, assim, por um lado, uma dimensão
menor,limitada, por outro, porém abre-se o espaço para o agente moral,
que vai constituindo sua subjetividade e sua alteridade no reino universal
da justiça e da moralidade, o qual não é limitado às experiências indi-
viduais como pré-requisito para o agir. Pode dizer-se que, no reino do
humano, ou seja, no reino da moralidade, somos como agimos. Ou ainda,
significaque o agir precede o ser.
O pensamento filosóficocontemporâneo desenvolveu-se em relação
ao limite do fenomeno e do transcendental, o qual podemos entender
como um horizonte. A força desse limite-horizontetalvez seja o que mais
caracteriza a nossa consciência filosóficaem relação ao kantismo: não
ultrapassar os limites do transcendental foi de fato fonte de esperança
filosófica,de recuperação do conhecimento científico,de ciência rigorosa.
E este é realmente o valor da descoberta kantiana. Entretanto,os efeitos
que produziu nem sempre exprimiram fielmenteessa orientação, mas,
ao contrário, se pensarmos no caso de Nietzsche, surge imediatamente
a pergunta sobre a relação paradoxal entre niilismo e transcendental.
Com Nietzsche, a proposta kantiana desemboca involuntariamenteno
niilismo, ou seja, aquilo que serviria para assegurar um conhecimento
mais rigoroso nos levou a uma negação do conhecimento,ou ao menos de
seus fundamentos,o que, em certo sentido,é completamenteantikantiano.
Destarte,o princípio geral que permiteuma nova antropologia é para-
doxal: a imanência que se abre à transcendência. Em linguagem kantiana
poderíamos dizer "imanência metódica e transcendência regulativa", ou
seja,

[...] a imanênciametódicaentendidacomo momentoheurísticopara


explicitaro sentidoe os limitesda condiçãohumana,e a transcendência

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NaturezaHumanae Projeto:O Pseudodilema
Kantianoe a Originalidade
Tomista 405

como êxitofinalda pesquisa,a que corresponde,


regulativa, sob o plano
do estatutoontológicoe, portanto,metafísicoda condição humana,a
aberturaà transcendência.19

Esta transcendência consiste, entretanto,num lançar-se para frente,cuja


meta há de ser dada pelo próprio agente. As consequências para a nova
concepção da natureza humana são evidentes, e consistem justamente
em boa parte do que as filosofiasdepois de Kant trataram de desenvolver.
Em outras palavras, o transcendentalcomo critériode rigorcientífico
tende a uma fundamentação racionalista dicotomica que impede que a
natureza humana seja concebida como algo real, concreto,e abre caminho
para as filosofiasdo "projeto humano". Filosofias que não existiriamsem
as contribuições de Fichte e Hegel, sobretudo no tocante à projeção do
absoluto no outro.
Na Vorrededa Fenomenologiado Espírito, Hegel proporciona-nos uma
visão total de seu sistema. E o traço marcante da Vorredeé a reivindicação
do caráter sistemático da filosofia.Com isso, Hegel pretende que a filosofia
deixe de ser mero amor à sabedoria {Liebe zum Wissen) para se tornar
saber real ( wirklichesWissen): "A figuraautêntica em que a verdade pode
existiré somente o sistema científicoda verdade mesma."20E o que permi-
tiria à filosofiaa passagem do nível do sentimento ao nível da ciência?
A sua sistematização! - instrumentopelo qual se atinge a síntese da cons-
ciência.
Ora, o sistema de Hegel funda-se na diatètica, pois o movimento
dialético é o movimento próprio do Conceito, do Absoluto. Manifesta-se
aí a mais importantedescoberta hegeliana, a supra assunção ( Aufhebung ),
um terceiro elemento no movimento do saber, que não é mera oposição,
é um superar-assumindo, o saber se torna processo dialético, o retorno
da consciência a si mesma. O movimento dialético é o caminho que se
produz a si mesmo, que se projeta e retornaa si, seu elemento é o Conceito
Puro, e seu conteúdo é em si mesmo, em tudo e para tudo sujeito.21
Nada mais transcende ao conceito: a filosofiaé, pois, ciência.
Comenta Valerio Verra: "Mas como o espírito não se pode não mover
da consciência como relação à alteridade, e deve superar tal relação de alie-
nação, atingindo os resultados de sua função dialética com um processo

19. Rigobello,Armando- Immanenzametodicae trascendenza Roma:


regolativa.
Studium, 2004,passim.
20. Hegel,WilhelmF. - Fenomenologia traduçãode Paulo Meneses.
do Espírito,
São Paulo:Loyola,vol.I, p. 23.
21. Ibid.

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406 Carlos FredericoGurgelCalvetda Silveira | Sergiode SouzaSalles

internoao devir do saber," - esta interioridadeé o sentido mais profundo


do sistema, por isso "compete à fenomenologia descrever as passagens
necessárias pelas quais tal processo é cumprido permanecendo 'interio-
rizado' no próprio espírito".22
O percurso fenomenologico é, então, longo, verdadeiro calvário, a
"Sexta-feira Santa", na significativaexpressão hegeliana, para se chegar
à glória, isto é, à universalidade do conceito, ao pensamento sistemático.
Desta sorte,o ser,que depende da consciência, ganha a segurança do cogito
e perde sua individualidade na universalidade anuladora do sistema, no
seu acabamento, ou seja, no fechar-sesobre si mesmo: eis o saber absoluto,
identidade entretranscendência e imanência.
Marcada por uma tentativa de ruptura com o idealismo e com o
humanismo, a Filosofia de Heidegger,por sua vez, transformaa pergunta
kantiana que posso conhecer? em que significapensar?}1 O sentido da
pergunta heideggeriana torna-se mais evidente ao se retomar o aspecto
crítico que ele pressupõe, isto é, a acusação de desvio de rumo lançada
contra a história da filosofia, conhecida por Vergessenheitdes Seins
- esquecimento do ser. A filosofiaabandonou o problema fundamental
que importava investigar,enveredando pelo caminho do ente e, por conse-
guinte,pela essencialização da metafísica:

transformação da questão sobre o Ser como tal tendea identificar-se


com a questãosobreo entecomo tal,principalmente porquea proveni-
ência essencialda questão sobreo ente,como tal,e com ela a essencia-
lização da metafísica,
continuamna obscuridade.A essencializaçãoda
metafísicaarrastapara o indeterminado todainvestigação,que se refira
ao Ser.24

No ensaio Que quer dizerpensar? (Was heisstDenken?), Heidegger afirmaa


necessidade de se reaprendera pensar,em uma época em que a ciência e a
tecnologia massacraram o pensamento. Mas a premissa metafísicaem que
se funda tal apelo é a já citada questão fundamentaldo ser,que se traduz
na questão sobre o pensamento, considerado como envio do ser,mas que
não o esgota e nem encontra na figurado espírito humano sua expressão
definitiva.Do ponto de vista histórico, é mais que clara, por isso, a sua

22. Verra, - Introduzione


Valerio a Hegel.5.aed.Roma-Bari:
Laterza,1994,p. 39.
23. Heidegger,
Martin- Ensaiose Conferências, de Emmanuel
tradução Carneiro Leão
etal. Petrópolis:
Vozes,2002,p. 111.
24. Heidegger,
Martin- Introduçãoà Metafísica, deEmmanuel
tradução Carneiro Leão.
RiodeJaneiro: Tempo 1987,p.48.
Brasileiro,

VoL
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NaturezaHumanae Projeto
: O Pseudodilema
Kantianoe a Originalidade
Tomista 407

oposição ao saber absoluto de Hegel, não obstante todo o influxoque dele


possa ter recebido, direta ou indiretamente,seja na elaboração de uma
historicidade do Ser, seja na aspiração originalmente totalizante de seu
projeto de investigação fundamentalacerca do ser.
Justamenteo pensar aqui é abertura para o ser dos entes:

Que o pensamentoaté hojevigentese fundano representar e que estese


fundana reapresentação- istotemlongasua longaproveniência.Esta
proveniênciase encobrenum acontecimentoinaparente:no começo
da históriado Ocidente,o ser do real aparece ao longodesse percurso
comopresença,comovigência.Esse aparecerdo sercomoa vigênciado
vigenteé o própriocomeçoda históriaocidental,desde que compreen-
damos a histórianão só segundoos seus eventos,mas que a pensemos,
primeiroe sobretudo,segundoo que atravésdela antecipadamente se
envia sob a formade destino,atravessandoassim todos os eventose
nelespredominando.25

De certa forma,o pensamento heideggeriano tentarompercom a tendência


imanentista que se extremou com Hegel. Taylor compreende isto nestes
termos:

Desse modo, uma das mais profundasmotivaçõesdo pensamentode


Heideggeré nos levaralém da dominaçãoe da objetificaçãoem relação
à natureza,que ele julgavaimplícitaem nossa tradiçãometafísicae em
sua ramificação,a civilizaçãotecnológica,e inaugurar(ou recobrar)
um modo de existênciano qual a maiorconsciênciaé uma maneirade
"deixarque as coisas sejam",de abertura.[...] mas a interpretaçãode
Heideggeré sistematicamente diferenteda de Hegel,pois ele rejeitaa
culminaçãohegelianana totalauto clareza da subjetividade.Antes,ele
vê nisso uma expressãoextrema- com efeito,insuperável- da atitude
metafísicada objetivação.26

Contudo, o passo mais contemporâneo, mais pessimista, para além


de Hegel, foi o fim do sentido último de qualquer projeto e, portanto, o
projeto humano enquanto projeto. Uma passagem de Camus pretende
caracterizar este modo de ser:

sobreo sentidoda vida.


Todos os heróisde Dostoievskiinterrogam-se
É nisto que eles são modernos:eles não tememo ridículo.O que

Martin
25. Heidegger, - Ensaiose Conferências
, ed.cit.,p. 123.
26. Taylor,Charles- Hegele a SociedadeModerna, traduçãode LucianaPudenzi.
2005,p. 207,n. 14.
São Paulo:Loyola,

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408 Carlos FredericoGurgelCalvetda Silveira | Sergiode SouzaSalles

distinguea sensibilidademodernada sensibilidadeclássica,é que esta


se alimentade problemasmoraise aquela, de problemasmetafísicos.27

Certamente, a metafísica a que alude Carnus não é a especulação onto-


lógica, e sim a busca do sentido da vida. Sendo assim, deveríamos inverter
a citação camusiana. Com efeito,a sensibilidade metafísica não pertence
à nossa época, a qual se tornou extremamentemoral, até mesmo mora-
lista. E Kant foi o criador da nova sensibilidade, a sensibilidade moral,
separada da metafísica,isto é, da ontologia.
A base da obra narrativa de Camus é a problemática do absurdo: o
homem procura justificativaspara o sofrimentoe não as encontra,tornan-
do-se tão estranho a si mesmo que é capaz de matar um semelhante e se
deixar condenar à morte.É o que se pode verificarna angustiantenarrativa
de O Estrangeiro. Entretanto, é possível viver com certa moralidade e
heroísmo - o importanteé estar consciente do absurdo, ou seja, que todos
os esforços humanos nada mudam neste mundo. O modelo desse esforço
vão é Sisifo, daí o título de sua obra insuperável enquanto caracterização
da situação do homem moderno, O Mito de Sisifo. Por tudo isto, a única
atitude digna do ser humano é a revolta, a qual promoveria certa solida-
riedade entre os homens.
E é nesta ordem de coisas que Sartre pode ser lembrado. Dado que o
homem não é uma essência fixa,ele é o que projeta ser. Em certo sentido,
Sartre nega que exista algo como a "natureza humana". Trata-se aqui da
refutação existencialista às teses gerais sobre o homem, pois a existência
precede a essência. Há uma evidente conexão com Kant que consiste
justamente em duas teses comuns compartilhadas pelos autores de Ser e
Nada e A religião nos limitesda simples razão . Afinal,tanto Sartre quanto
Kant negam a existência de uma realidade metafísica comum subjacente
e determinante com relação ao exercício das liberdades individuais.
Tanto um quanto outro afirmaque o homem é o autor de si próprio,já que
se definemediante suas escolhas originárias. É claro que as aproximações
devem conservar a distância que separa o moralismo de Kant (que define
o caráter moral em razão da disposição moral e essa em razão da relação
entrea vontade e a escolha original das máximas morais) do voluntarismo
de Sartre (para quem os valores morais são criados originariamenteinde-
pendentementedas regras morais).

27. Camus, Albert- Le Mythe de Sisyphe : Essai surVabsurd.Paris:Gallimard, 1985,


p. 142:"Tousleshérosde Dostoievski s'interrogentsurle sensde la vie.C'esten celaqu'ils
sontmodernes: ils ne craignentpas le ridicule.Ce qui distinguela sensibilitémoderne
de la sensibilité
classique,c'estque celle-cise nourritde problèmes morauxet celle-làde
problèmes métaphysiques."

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Kantianoe a Originalidade
NaturezaHumanae Projeto:O Pseudodilema Tomista 409

A dicotomia entre natureza e projeto é tão marcante neste filósofo


que a proposição de que a existência precede a essência conduz inexo-
ravelmente à própria negação da natureza humana. Nunca será possível
explicar um projeto humano com referênciaa uma natureza humana dada
e não modificável:não temos justificações, nem desculpas, pois o homem
está condenado a ser livre. E é assim que o homem inventa o homem.

A natureza humana como fundamento e como projeto

A vantagem metafísica da concepção tomista do ser está no que


poderíamos chamar de maleabilidade, na medida em que não restringe
a natureza humana nos limites do humano, mas justamente é o que lhe
permite ser o que ele é e, ao mesmo tempo, transcender-se.E, embora,
Tomás não sofra as exigências da cultura contemporânea, sua cultura
é marcadamente metafísica e religiosa, sua teoria do ser reveste-se das
características e contém os ingredientes das mais importantes filosofias
contemporâneas com suas legítimas exigências de construção da subje-
tividade e de projeto. O descobrimento do ser como ato, esse ut actus ,
resposta antecipada às exigências heideggerianas, deixa o tomismo
em situação privilegiada no pensamento contemporâneo. Confirma-o
Cornelio Fabro: "Concretamente,São Tomás supera a relação (ou tensão)
aristotélica entreato e potência, de modo que o ato não é intrinsecamente
informante,como para Aristóteles,mas é constitutivode si mesmo, de sua
emergência sobre qualquer potência/'28A tensão entre transcendência e
imanência se explica e resolve no ato de ser fundante do ens, também no
conhecimento, que remete necessariamente ao Ipsum Esse Subsistens,
através da participação.
A importância filosófica desta tese tomista é considerável para o
nosso tema, pois permiteuma verdadeira revolução antropológica, que foi
identificadacom a teoria da unicidade da forma substancial. Do ponto de
vista ético e antropológico, esta descoberta significaa unidade do sujeito,
garantida pelo ato de ser:formadat esse, e é por ela que o homem é homem,
animal, sensível,vivente,racional:

Deve-seresponderque o ser é o que há de mais perfeitoentretodas as


coisas, pois a todas se referecomo ato. E nada tematualidadesenão
enquantoé; o ser é, portanto,a atualidadede todas as coisas, até das

- "São Tomásde Aquino:ontem,


28. Fabro,Cornelio 16
HoraPresente,
hoje,amanhã".
(1974),p. 252.

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(10 Carlos FredericoGurgelCalvetda Silveira | Sergiode SouzaSalles

formas.Portantonão se refereàs coisas como o recipienteao que é


recebido,e sim como o é que recebidoao recipiente.Quando digo,por
exemplo,o serdo homemou do cavalo,ou de qualqueroutro,conside-
rate o sercomo princípioformale como o que é recebido,não como a
algo a que competiriaser.29

A consequência dessa revolução é a unidade ontológica do homem e daí


do processo cognoscitivo, que partindo da essência das coisas materiais
pode chegar ao ato de ser, que funda o próprio conhecer. O pensar, para
Tomás, é pensar o real. Permanece aí certa tensão entre transcendência
e imanência, que, em termos gnosiológicos, se manifesta na intenciona-
lidade do conhecimento.
O projeto humano, a construção da subjetividade, na cultura contem-
porânea, embora esboce em primeiro lugar a rejeição de sua funda-
mentação na natureza humana, na verdade só se realiza em base a ela.
Qualquer distanciamento da natureza humana é um distanciamento da
liberdade concreta que cada pessoa pode conquistar com suas ações e
opções.
Na verdade, cultura filosófica moderna, ao rejeitar a natureza
humana como fundamento do agir humano, rejeita a concepção raciona-
lista e dicotomica que foi tomando feição no final da filosofiaescolástica
medieval e, sobretudo, na segunda escolástica e da qual Kant é o principal
fautor.A concepção original tomista da natureza humana como partici-
pação no ato de ser,que pertence a cada pessoa, recupera a originalidade
deste fundamento do agir e torna-se,ao mesmo tempo, princípio fecundo
para responder às questões candentes da ética e da antropologia contem-
porâneas, sem recusar as legítimas conquistas da filosofiado nosso tempo.

29. Tomás - SumaTeológica


deAquino , ed.cit.,I, q. 4,a. 1,ad 3m.

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