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INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 1

INTRODUÇÃO AO
PENSAMENTO JURÍDICO
CONTEMPORÂNEO
Sumários desenvolvidos

Introdução

A proposta deste curso é a de confrontar os alunos (num momento inicial da sua


formação jurídica) com a pluralidade de perspectivas de compreensão do direito que
hoje nos interpelam.

1. Podemos dizer que se trata de partir da circunstância presente de um


pensamento jurídico que — sendo discurso e prática (acervo de discursos e de práticas)
— perdeu (superou) o seu paradigma (sem o ter substituído por outro).

A) Um pensamento que é discurso e prática (acervo, certamente muito complexo, de discursos e de


práticas)? Importa acentuá-lo. Impondo-se-nos (atingindo-nos) como uma dimensão da nossa
prática — e de uma prática que se constrói e assume discursivamente (envolvendo, em patamares
distintos, acções e decisões, argumentos e juízos, compromissos e exempla humanamente
significativos... mas também «códigos» e cânones linguísticos e extralinguísticos... e outras tantas
situações institucionais) —, o direito não se nos oferece, com efeito, como uma realidade-objecto
que, na sua permanência, unidade e relevância delimitadoras, possamos de alguma forma separar
dos pensamentos e dos discursos que se lhe dirigem e dos projectos (ou concepções da juridicidade)
que estes levam a sério. Importa mesmo dizer que há aqui um «continuum» entre pensamentos e
práticas — como se os primeiros correspondessem (ou devessem corresponder) afinal a uma
intensificação auto-reflexiva, em planos mais ou menos distanciados, das possibilidades que as
segundas vão explorando! —... e que esse «continuum» nos fere ou nos atinge como
circularidade1...


Estes sumários incluem excertos (devidamente identificados) de C ASTANHEIRA NEVES, Teoria
do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998.
1
Com o alcance que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer, enquanto nos dá conta de
que o «objecto» da uma teoria do direito hoje possível (assumida como uma teoria crítico-reflexiva) não
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 2

B) Que paradigma é este que foi superado? O do legalismo normativista —


aquele, bem o sabemos, que encontrou no Método Jurídico do século XIX o seu núcleo
e a sua identidade triunfantes...
Um modelo integrado de compreensão da juridicidade que hoje sobrevive
(parcialmente embora) nalgumas rotinas da prática-discurso (em cujos cânones ou
códigos de institucionalização deixou vestígios mais ou menos significativos)... na
mesma medida no entanto também em que, ao ser tematizado como concepção plausível
(e ao poder apresentar-se-nos sob as mácara da «perspectiva tradicional»), se nos expõe
decerto como uma concepção entre outras (num espectro de concepções possíveis!).

Sendo certo que a experiência a ter em conta é menos a da consumação de um


discurso dominante («tido até não há muito pelo modus natural, se não mesmo
necessário, da juridicidade, nos seus momentos normativo e institucional, lógico-
dogmático e metodológico»2) do que a da reacção-resposta a esta perda: uma reacção
que terá multiplicado as propostas de compreensão do direito (e os projectos que as
especificam), enquanto permite que as práticas-labours dos juristas e das comunidades
dos juristas — e as situações institucionais que as estabilizam — sejam disputadas por
um espectro sem precedentes de possibilidades (com horizontes intencionais e
processos de racionalização inconfundíveis, se não incomensuráveis). Uma reacção que
condenaria o pensamento jurídico a um diagnóstico (mais ou menos nostálgico) de
perda de unidade — concentrado nos sinais-rastos da consumação-superação daquele
paradigma — se não o incitasse também — e às diversas instâncias (e patamares
reflexivos) que o integram — a participar numa experimentação assumida da
pluralidade.

2. Se o nosso percurso é uma tentativa introdutória de levar a sério esta


experimentação-testemunho da pluralidade, importa reconhecer desde já que as
simplificações a introduzir no seu desenvolvimento serão decerto muitas... e

pode ser «o direito, como que hipostasiado num em si e por si, mas as concepções práticas que o
manifestam e os pensamentos que o pensam»: «[A] uma ―teoria do Direito‖ compreendêmo-la hoje
sobretudo como a determinação crítico-reflexivamente metanormativa do Direito, i. é, das concepções e
das práticas constitutivas da juridicidade (…) e dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…)
[P]ois só na unidade histórico-cultural entre aquelas e estes o direito vem à sua existência, à sua
objectivação real e pode, já por isso, ser ―objecto‖ de uma reflexão teórica que nessa objectivação o
queira compreender…» [Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão
em fascículos) pp. 50-51, (versão em A4) p. 28].
2
ID., «O funcionalismo jurídico...», Digesta, vol. 3º, p. 200.
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necessárias! No plano global, a mais significativa é concerteza aquela que nos leva a
privilegiar o problema da jurisdição ou o modo como as distintas concepções do direito3
hoje relevantes (hoje em disputa... se não diferendo!) enfrentam este problema.
O problema da jurisdição? Antes um dos problemas que esta nos põe. Aquele
que reconhecemos quando discutimos a intenção de realização que esta jurisdição
deverá assumir, na mesma medida em que identificamos o discurso correspondente e o
tipo de racionalidade que lhe corresponde. Ao enfrentar assim o problema da jurisdição
— ao pretender identificar as «situações institucionais» que constituem (ou podem
constituir) o modus operandi deste discurso e o(s) «projectos» ou exigências de sentido
que iluminam (ou que devem iluminar) aquela intenção —, o pensamento jurídico do
nosso tempo expõe-nos, com efeito, a uma diversidade sem precedentes de
representações e de experiências possíveis. Será nestas (entenda-se, no traçado de um
mapa que nos permita compreendê-las na sua diversidade e nas suas opções mais
significativas!) que nos iremos concentrar. [Para uma autonomização do problema da
jurisdição como problema intencional ou interno («o problema da intencionalidade
material da própria jurisdição como jurisdição e o sentido que ela assume e realiza») —
em confronto com os problemas estruturais ou externos associados ao «fazer
jurisdicional» («que consideram o poder, a organização, a responsabilidade e o modo
desse exercício») —, ver CASTANHEIRA NEVES, «Entre o ―legislador‖, a ―sociedade‖ e o
―juiz‖ ou entre ―sistema‖, ―função‖ e ―problema‖ — os modelos actualmente
alternativos da realização jurisdicional do direito», Boletim da Faculdade de Direito
LXXIV, 1998, pp. 3-4].
«[N]ão está em causa, nem a sociologia — os pressupostos, as condições e os efeitos sociais —,
nem o sistema funcional — a estrutura organizatória, a funcionalidade e a eficiência —, e sim o
próprio sentido do poder-função judicial enquanto jurisdição (…). Não o contexto (a
possibilidade e as consequências), nem o como funcional (a estrutura e o funcionamento), mas o
que (sentido e tarefa) esses poder-função é chamado a realizar nas condições contextuais e
mediante aquela funcionalidade…» (C ASTANHEIRA NEVES, «Introdução ao Colóquio ―O poder
(função) judicial e o direito― » (21 de Abril de 2006), publicada em Reflexões - Revista
científica da Universidade Lusófona do Porto, ano 1, nº1, 1º semestre 2006,

3
Não será correcto dizer (como é frequente)... os diversos «conceitos de direito». Falar de
conceito implica, com efeito, partir de uma compreensão epistemológica cognitivista (que nos autorize a
perguntar «o que é o direito?» e a pressupô-lo como uma «realidade»-objecto auto-subsistente),
condicionando assim (implícita ou explicitamente) todo o desenvolvimento possível [Neste sentido (por
razões embora distintas) cfr. também Mario JORI / Anna PINTORE, Manuale di Teoria Generale del
Diritto, Torino, Giappichelli Editore, Torino 1995, pp.35 e ss. («Concetto di diritto»), pp. 51 e ss.
(«Concezioni del diritto»)]. Como veremos, algumas das mais significativas propostas do nosso tempo
(aquelas que poderemos designar por funcionalistas e jurisprudencialistas) recusam, com efeito (e com
importantes repercussões na perspectiva e nas soluções que defendem), a possibilidadede uma abordagem
cognitivista.
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3. Insistindo na urgência prático-cultural de expor o jurista encore à faire a esta


mediação-testemunho — e simultaneamente na exigência de não o precipitar assim no
abismo de uma complexidade indominável (que perverteria irrecuperavelmente aquela
urgência e as intenções que a conduzem!) —, uma palavra final leva-nos a insistir no
problema da selecção (-concentração) dos diálogos-confrontos a ter em conta, que é
também e antes de mais o do modelo ou dos modelos de identificação-distribuição dos
interlocutores indispensáveis. Como se se tratasse de, ao testemunhar o espectro de
possibilidades-caminhos com que estes interlocutores nos interpelam, agrupar-distribuir
tais caminhos (e os recursos mobilizados) em função das afinidades que vão
construindo (e que assim mesmo os responsabilizam). O que é ainda experimentar um
diagnóstico-mapping e o processo de simplificação-concentração a que este nos
expõe…
Ora um diagnóstico que vai assentar em três critérios-grelhas e nos três mapas
distintos que estes (estas) nos permitem traçar. Traçados sor sua vez que não se excluem
uns aos outros... que antes deverão sobrepor-se (e enriquecer-se reciprocamente)... como
se inscritos em folhas (de acetato?) transparentes...
Tratando-se, muito claramente, de distinguir três planos de organização
complementares (com exigências compreensivas e soluções de enquadramento
distintas), admitindo simultaneamente que estes possam dirigir-se-nos — e dirigir-se
aos interlocutores e aos problemas que distribuem e assimilam — respectivamente
como um filtro de relevância ou grelha principal [α)] e como duas grelhas de
relevância acessórias [β) e γ)]. Como um filtro ou grelha principal... muito
simplesmente porque é da sua distribuição que vamos partir... e é a esta mesma
distribuição que voltaremos no fim (enriquecidos pelos esclarecimentos das outras
duas!)... — na mesma medida em que mobilizaremos as suas propostas ainda como
uma espécie de (tranquilizador) baixo cifrado... ao longo de toda a travessia!

α) Quando falamos de grelha principal e do seu plano de organização [I Parte]


mobilizamos, com efeito, explicitamente uma certa proposta de diferenciação (e de
«explicitação sistemática») das perspectivas (se não «paradigmas») de compreensão
«pelas quais se oferece hoje a juridicidade» — aquela com que CASTANHEIRA NEVES
tem procurado corresponder ao desafio de uma teoria do direito crítico-reflexiva e à
determinação compreensiva que esta exige. Uma proposta que, como veremos, nos
autoriza precisamente a contrapor normativismo, funcionalismo e jurisprudencialismo,
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mas também a distribuir o segundo pelas modalidades principais do funcionalismo


material e do funcionalismo sistémico.
Uma proposta que, assumindo embora designações pouco habituais — a
começar decerto por aquela que nos permite falar de funcionalismo material (a
identificar compreensões do direito que não se reconheceriam sob este rótulo 4) — nos
oferece um enquadramento exemplar? Importa acentuá-lo. E acentuá-lo aqui e agora
muito especialmente para nos darmos conta de que o papel de interlocutor-guia
confiado à «teoria» do direito poderá encontrar nesta distribuição e nas possibilidades
que ela oferece uma mediação decisiva. Muito simplesmente porque invocar um
testemunho do diferendo que mobilize este mapa (ou que parta dos seus itinerários
principais) é, antes de mais nada, assumir uma preocupação constitutiva com o
problema da autonomia e com o compromisso prático da sua realização: identificar
caminhos que (em nome de um «isolamento» cognitivista da normatividade ou de uma
certa normatividade-ratio) hipertrofiam uma representação incondicionalmente formal
desta autonomia (normativismo), distinguindo-os daqueles que assumem uma
determinação instrumental e recusam explícita ou implicitamente a possibilidade de
uma experiência autónoma (funcionalismo material), para enfim confrontar ambos com
as propostas que procuram reinventar uma autonomia material e (ou) a articulação
constitutiva validade comunitária /realização que a torna possível (jurisprudencialismo).
Sem esquecer claro aquele caminho e aquela(s) proposta(s) que, partindo como os
segundos de uma representação (cientificamente construída) da realidade social — e da
inserção do direito nesta —, nos confronta(m) com o sucesso de uma autodiferenciação
e (ou) de uma realização autodiferenciadora, também ela só formalmente traduzível
(funcionalismo sistémico).

α)1 α)2 α)3


MATERIAIS α)2’
NORMATIVISMO(S) JURISPRUDENCIA-
FUNCIO- LISMO(S)
NALIS-
MO(S)- SISTÉMICO α)2’’

4
Bastaria invocar os exemplos da Law & Economics e (muito especialmente!) dos Critical Legal
Scholars!
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β) O diagnóstico-mapping ensaiado no segundo plano [II Parte A)],


convocando um filtro de inteligibilidade também (imediatamente) reconhecível pelas
nossas preocupações presentes, remete-nos em contrapartida para um contexto de
determinação menos específico (no qual a experiência prioritária deixa de ser a do
jurídico mas o do horizonte holisticamente representado em que este se integra). A
distribuição que permite (pela concentração do espectro interpelado em dois eixos
exemplarmente contrapostos) fornece-nos no entanto um quadro indispensável para
situar (e experimentar, positiva ou negativamente) o processo de realização da pretensão
da autonomia do direito (e o sentido de continuidade que o sustenta).
Que filtro de inteligibilidade? Aquele que mobiliza o contraponto sociedade /
comunidade (societas / communitas, Gesellschaft / Gemeinschaf). Um contraponto que
nos remete decerto para a «distribuição» consagrada por TÖNNIES, mas que nos remete
sobretudo para o debate plural que as teorias (políticas) da justiça autonomizaram (e
que hoje se nos tornou implacavelmente presente). Tratando-se de resto aqui e agora
menos de convocar os interlocutores deste debate (e as «soluções» individualistas e
comunitaristas que os seus tempos específicos nos permitem reconhecer) do que de
submeter as representações internas das práticas-discursos juridicamente relevantes —
e muito especialmente as representações da jurisdição (e os modelos ou «imagens» do
juiz que estas constroem) — a uma organização-demarcação justificada por exigências
e por recursos de integração (mas também por tipos de racionalidade) inconfundíveis
— precisamente aqueles que os referidos pólos justificam (ou atraem).

β)1 β) 2
Discursos Discursos da COMMUNITAS
da ou da dialéctica SOCIETAS /
COMMUNITAS
SOCIETAS

γ) Faltando ainda um terceiro filtro de inteligibilidade [II Parte B)]. Aquele que
(com os auxílios insuspeitos de KELSEN e de POSNER!) nos autoriza a reconhecer que
um «conjunto» muito significativo dos candidatos-interlocutores já reconhecidos —
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distribuídos em campos distintos pelas outras grelhas — convergem (mais ou menos


aproblematicamente) numa concepção-tratamento (se não «teoria») do direito como
moldura(-Rahmen) ou área aberta...

Mais do que admitir que o direito (a aplicar, a executar ou a realizar) possa ou


deva ser convocado como uma moldura ou como uma fronteira— capaz de delimitar
(enquadrar) um território… e este como um ensemble de possibilidades de decisão
(«todas elas») equivalentes» —, trata-se com efeito de reconhecer que é na fixação desta
moldura e (ou) na sua especificação cognitiva — uma especificação ainda protegida como
interpretação tout court ou já inscrita (como etapa apenas analiticamente reconhecível)
num processo de concretização-realização — que se consuma (que se esgota) a tarefa
autonomamente jurídica (internamente jurídica) de determinação do direito e dos seus
materiais.

Sendo certo que denunciar esta convergência é no entanto também


inevitavelmente fazer convergir num pólo oponente todos os candidatos-vozes que a
repudiam. Candidatos também eles separados (distribuídos em terrenos distintos) pelas
outras duas grelhas [α) e β)] e que no entanto podemos dizer comprometidos com a
autonomia normativa do direito e com a autonomia discursivo-cultural do pensamento
jurídico... e no limite ainda (et pour cause!) comprometidos com a possibilidade de
chegar à solução do problema-caso mobilizando intenções constitutivamente jurídicas
— candidatos que, à falta de melhor, poderemos desde já dizer juridistas ou
juridicistas....
Sem esquecer decerto que, apesar desta convergência (veremos exactamente em
que termos!), tais candidatos nos ferem por sua vez com um espectro (suficientemente
diferenciado) de compreensões do sistema, da dogmática, do juízo-julgamento e da
reflexão metódica. Diferenças que justificam opções por discursos e exigências de
racionalidade inconfundíveis? Certamente. Na mesma medida em que fazem
corresponder à pretensão de autonomia do direito — e ao desempenho da jurisdictio
enquanto garante desta autonomia — outras tantas intenções e problemas.

γ)1 γ) 2
Discursos da Discursos
moldura ou área juridistas
aberta ou juridicistas
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As sobreposições... que o nosso percurso irá surpreender (-construir)

α)

Normativismo(s) Funcionalismos materiais 2a


1
Funcionalismo sistémico 2c 2b

Jurisprudencialismo(s) 3

β) Discursos da societas – 1, 2a, 2c

Discursos da communitas -2b, 3 (e outros...)

γ) Discursos da moldura ou área aberta – 2a, 2b (e outros...)

Discursos juridistas ou juridicistas – 1, 2c, 3

PRIMEIRA PARTE
O CONTRAPONTO NORMATIVISMO / FUNCIONALISMO/
JURISPRUDENCIALISMO

Prolegómenos

As perguntas «básicas» e o sentido do contraponto (e do mapa que o assume).

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

« Na actual situação problemática do direito e do contexto cultural geral, com


toda a sua complexidade estrutural e a pluralidade das dimensões intencionais, são
reconhecíveis diversas perspectivas de consideração da juridicidade, com particular
acento no compromisso prático da sua realização. Daí que se nos imponha a
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diferenciação dessas diferentes perspectivas, numa analítica determinação


compreensiva, através de uma sistemática explicitação crítica dos respectivos sentidos
constitutivos e dos seus modelos operatórios.
Só que, sabemos que o complexo é uma pluralização desenvolvida e uma
articulação sobredeterminada do simples. Pelo que a redução ao simples, sendo decerto
condição de coerência – previnem-se as ambiguidades e são denunciáveis as
anfibiologias –, não é menos pressuposto de concludência – o resultado é sempre
função, na sua viabilidade e na sua validade, do fundamentalmente constitutivo. É ainda
isso elementar exigência de propedêutica clareza: importa saber do que exactamente se
fala e como nisso de que se fala vai implicado o que se deve falar. É o que se propõem –
redução ao simples, tentativa de clareza – as análises que aqui se oferecem a diferenciar
as perspectivas (o mimetismo intelectual levar-nos-ia a dizer ―paradigmas‖) pelas quais
se oferece hoje a juridicidade. Fá-lo-emos referindo três perguntas, as três mesmas
perguntas a cada uma dessas perspectivas possíveis e diferentes, perguntas às quais elas
respondem diversamente, e por isso mesmo se diferenciam. As perguntas são:
1) com que sentido ou de que modo intencionalmente constitutivo visam
o direito e, em consequência desse sentido e desse modus, em que
termos fundamentalmente o objectivam e compreendem?;
2) com que categoria ou categorias de inteligibilidade o pensam e o
determinam?;
3) como, em corolário operativo das respostas dadas às duas perguntas
anteriores, se estruturam metodologicamente, i. é, segundo que
modelo metódico o realizam e actuam?
Essas perspectivas – se quisermos considerar só as que no nosso tempo são
verdadeiramente relevantes e efectivamente convocáveis – são três: o normativismo, o
funcionalismo e o jurisprudencialismo...» (CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998, (versão em
fascículos) pp. 51-53, (versão em A4) p. 28-29))
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O modo como estas perspectivas se dirigem ao direito ou as grandes


perguntas condutoras...

2a Para que serve o direito? [Que conformação pragmático-


O que é -instrumental das possibilidades e situações institucionais disponíveis
Em que termos é que o direito- é adequada à prossecução de
o
-sistema social garante a sua auto- certas finalidades sociais (trans-
direito? diferenciação? juridicamente experimentadas e
compreendidas)?]
1 2c 2b

Que sentido normativamente material constitui o direito como


direito? [Como levar a sério na nossa circunstância o compromisso
com a procura comunitária de humanitas que autonomiza-distingue o direito?]

CAP. I / NORMATIVISMO(S)

1. O normativismo como cognitivismo ou objectivismo normativos ou o sentido e


as possibilidades de uma certa evolução-especificação histórico-cultural (do
cognitivismo jusracionalista ao cognitivismo normativista)

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

« O normativismo é uma das modalidades do objectivismo jurídico, e, dentro


deste, do cognitivismo normativo jurídico, que se tornou particularmente explícita e
dominante a partir do pensamento jurídico moderno, embora já insinuado, se é que não
terá mesmo obtido uma primeira expressão, no pensamento de legibus hermenêutico-
-lógico e abstracto-normativo e construtivista, dos juristas medievais e do direito
comum (sobre este ponto, v. E. EHRLICH, Die juristiche Logik, in Arch. f. civ. Praxis,
113, 172, ss.).
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Em todo o objectivismo jurídico o direito vai pressuposto como objecto. Como


uma entidade objectivamente subsistente ou um ―ente‖ (seja social, seja normativo-
-cultural) – e que, já por isso ou enquanto desse modo se postula como um ―em si‖
pressuposto, admite a interrogação (e a discussão) sobre o seu ser ou o seu modo-de-ser
– a interrogação ―o que é o direito?‖ – e exige uma determinação conceitual, uma
denotação significante que se enuncie no seu conceito em resposta àquela interrogação.
Pode todavia especificar-se esse objectivismo, consoante a índole intencional da
sua referência for normativa ou empírica. Teremos um cognitivismo normativo, se o
direito-objecto for entendido segundo uma objectividade normativa, com uma
pressuposta normatividade e no sentido específico desta: um sentido de dever-ser ou
regulativamente ―contra-factual‖. Teremos um cognitivismo empírico, se o direito-
-objecto se postular num qualquer modo-de-ser empírico ou ―factual‖ (―Law as fact‖ –
OLIVERCRONA): como uma factualidade psicológica, sociológica, inclusivamente
linguística (empírico-linguística) – embora esta última, através do prescritivismo que
predominantemente dá conteúdo a essa linguística factualidade, não deixe de certo
modo de pertencer também ao cognitivismo normativo-jurídico, pois se o direito é
empírico nos ―factos linguísticos‖ da sua manifestação, é normativo (prescritivo) na
significação que esses ―factos‖ exprimem...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 59-60,
(versão em A4) p. 32].

O cognitivismo jurídico mobiliza sempre um discurso teorético e a estrutura


sujeito / objecto que lhe corresponde — distinguindo-se o sujeito, implícita ou
explicitamente, por uma intenção cognitiva (contemplação, determinação racional,
explicação, eventualmente também compreensão)... e por uma intenção cognitiva que,
enquanto tal, se dirige ao direito (direito assim mesmo pressuposto e referido como
uma realidade-dado auto-subsistente).
Evitando especificações mais pormenorizadas (e sobretudo descurando outras
modalidades plausíveis de cognitivismo normativo) concentremo-nos no contraponto
entre o cognitivismo jusnaturalista e o cognitivismo normativista, privilegiando
também (como ponto de partida) as suas expressões mais fortes (e mais claras) —
aquela que corresponde ao discurso pré-moderno do direito natural e aquela que
culmina na ciência dogmática de normas do século XIX.
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Intenção-sujeito Realidade-objecto

Cognitivismo Teorético- Ordem de valores e princípios (e Jusnaturalista


outros critérios normativos) que é
normativo especulativa simultaneamente assumida como
(ontológico- ordem natural indisponível,
universal e ahistórica identificável
-metafísica) com a comunidade (polis, civitas,
respublica christiana) [ordem do Ser
SOPHIA cósmico ou ordem da Criação,
identidade Ser/ valor, monismo Ser/
dever-ser, Ser como realidade
essencial ou ontológico-substancial
normativa, distinta da facticidade
empírica]
Teorético- Normas-ratio enquanto enunciados Normativista
de dever-ser racionalmente auto-
científica -subsistentes, assumidos na
analítica completude-integridade de um
modo-de-ser abstracto (dualismo ser
EPISTEME [já / dever-ser, ser reconduzido ao plano
reconduzida à Ideia da facticidade empírica, dualismo )
moderna de ciência]
Cognitivismo Teorético- Comportamentos, decisões, factos
linguísticos, situações institucionais
empírico científica (a reconstituir explicativamente por
empírico- intenções sociológicas, psicológicas,
semióticas, etc)
explicativa
EPISTEME
[também já reconduzida
à Ideia moderna de
ciência] [...cujas
informações alimentam
uma operatória-
TECHNÉ]

Procuremos, em duas palavras, compreender a evolução que — com alguns


contributos introduzidos pelo romanismo medieval e a mediação decisiva do
jusracionalismo moderno-iluminista — permitiu que a cultura jurídica europeia passasse
de um horizonte de sentido dominado por um jusnaturalismo (com uma reflexão
especulativa perfeitamente integrada num discurso-praxis jurisprudencial, assim mesmo
capaz de garantir uma unidade intencional direito / pensamento jurídico) para um
universo prático-cultural alimentado por um cognitivismo normativista (que vive
claramente da cisão pensamento jurídico-ciência /direito-norma).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 13

1.1. A communitas pré-moderna e a unidade intencional direito /pensamento


jurídico.
Em que sentido se pode dizer que as concepções jusnaturalistas clássica e medieval
(e o cognitivismo normativo que lhes corresponde) assumem uma compreensão
monista?

No sentido de que descobrimos nestas um «ponto de vista metódico» segundo o qual o


Ser «abrange o plano dos valores e do dever-ser» (ELLSCHEID). Os princípios e os
valores-bens (que os princípios normativamente especificam) aparecer-nos-iam eles
próprios como entidades ou substâncias absolutamente transcendentes (com uma
racionalidade e uma organização próprias), que o sujeito deveria apenas contemplar (e
contemplar interpretando)...

«A natureza dos clássicos engloba sem excepção tudo o que existe no nosso mundo: não só os
objectos físicos materiais (como acontecerá com a concepção moderna, pós-cartesiana, de
natureza)... mas também a integridade do homem, enquanto corpo e espírito, as instituições
humanas e sociais... a polis... (...) [e] os valores... (...) A tarefa da metafísica é elaborar uma
representação desta natureza...» (Luis LACHANCE)

O tipo de pensamento que corresponde a este conhecimento da ordem cosmológica do Ser —


depois ordem da Criação divina no universo medieval — é o de um discurso teorético-
-especulativo — que lê-interpreta essa realidade absoluta, ahistórica e universal (realidade com
uma racionalidade inscrita nela própria) sem ter que a reconstruir (sem lhe impor qualquer
mediação culturalmente humana)... antes propondo-se reflecti-la num espelho-speculum
[Contemplação que se cumpre graças à filosofia primeira e à «virtude intelectual» da sophia-
-sapientia que (enquanto «disposição habitual»-hexis) a torna possível (virtude suprema,
construída como decantação de uma longa experiência de vida... e que habilitaria o pensamento
a contemplar a ordem do Ser na sua imutabilidade)].

«É assim claro que a sophia corresponde à perfeição suprema nas diversas ordens de
conhecimento (...) — aquela que conhece os objectos–coisas [que, por natureza, são os] mais
preciosos e mais importantes (aqueles que vêm em primeiro lugar). É preciso assim que o
«sábio»-sophos não só conheça o que deriva dos princípios primeiros como também os
conheça-contemple exactamente enquanto tal, desocultando-os...» (ARISTÓTELES, Ética a
Nicómaco, Livro VI, VII,1141a9)

Ao Ser (assim mesmo imediata e luminosamente transparente ao conhecimento-consciência)


corresponderia com efeito «uma ordem (cosmos) perfeita, definitiva e eterna, em que tudo e
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decerto também a acção encontraria o seu sentido, o seu critério e potencial determinação...»
(CASTANHEIRA NEVES)
A comunidade como «ordem natural» transcendente e o homem que nela se insere (e que nela
encontra a sua liberdade) como homo institutionalis: para um desenvolvimento ler
CASTANHEIRA NEVES, «A imagem do homem no universo prático», Digesta, vol. 1º,
Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 1º, 319-323 (II 1.) [e ainda ID., «O problema
da universalidade do direito – ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-
dialogante das culturas», Digesta, vol. 3º, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 111-114
(pontos 1.-3.)

Um contexto prático comunitariamente Um direito que se descobre e autonomiza


indisponível... sucessivamente...

A polis grega [O Ser como ordem ...como sentido e como especulação filosófica [O
pressuposta, definitiva e perfeita; o homem holismo metafísico-ético-político grego a assumir
como zoon politikon; a referência e a integrar-assimilar o jurídico como direito
ontológico-metafísica ao ser cósmico natural teoreticamente determinável.. O problema
(primeiro numa perspectiva ela própria da justiça. identificado com o da harmonia do Ser]
cosmológica, depois numa representação
antropológica), a identidade ser/valor.]

A civitas romana [ A ordem materialmente ...como prática jurisprudencial [A experiência


pressuposta, descoberta (como um «cosmos romana a impor a autonomia comunitária do
de instituições hipostasiadas») na jurídico enquanto tarefa de assimilação judicativa
experiência ontológica do caso e na (respondere/cavere/agere) de controvérsias-casos
tipologia substancializada que a traduz: o («No princípio era o caso») e a descobrir nesta
direito natural como a ipsa res justa (o justo assimilação uma explicitação correctiva
natural concreto, autêntico jus lido na (prudencial) de uma ordem materialmente
«natureza das coisas» pela prudentia dos pressuposta: o jurista-jurisconsulto como
jurisprudentes «segundo a situação e o intérprete autêntico da comunidade sustentado
curso das coisas humano-sociais, nas suas numa auctoritas e na articulação de virtudes
condições e situações particulares»).] morais e intelectuais que esta determina.]
A respublica christiana medieval [A ...como domínio cultural universitariamente
ordem da criação: a «transcendência» com reconstituído e comunicado [A trindade
um «nome pessoal». A ontologia teológico- sapientia /prudentia /scientia. A Scientia Juris
metafísica.] como interpretatio. A reconstrução prática
(hermenêutico-dialéctica) dos textos de autoridade
(do Corpus iuris civilis mas também do Corpus
iuris Canonici): o método escolástico.].
Procure explorar um pouco este quadro (à luz das leituras acima recomendadas)...
procurando perceber:
(a)... que é na experiência da civitas que o direito se autonomiza enquanto tal (como
prática de resolução-assimilação de controvérsias, constitutiva de um universo
intencionalmente específico, inconfundível com os da política, da ética e da filosofia e
com as dimensões práticas que lhe correspondem);
(b)... que a autonomização-Isolierung romana do jurídico associa à dimensão prático-
prudencial (ao exercício do respondere aos problemas-casos) uma representação do
direito natural também ela muito especial, muito marcada pela descoberta de uma
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 15

dimensão humanamente contingente — a de um direito natural que se revela na prática


sócio-prudencial (como «ordem» das «coisas» humanas que o jurisconsulto vai ler- -
interpretar enquanto responde aos problemas concretos)... ao ponto de nos permitir dizer
que as «entidades substancializadas» e indisponíveis passam a ser os próprios casos ou
tipos de casos no seu contexto de validade, indissociáveis dos nomes que os
identificam... (dizer que a controvérsia nos expõe a um problema de servidão ou de
legado é, ao fim e ao cabo, identificar realidades substancializadas, manifestadas nas
palavra-nomes ou na terminologia em que estes se integram... e encontrar assim um
sentido de solução aparentemente «natural»... e como tal indisponível...);

(c)... que o discurso jurídico medieval vai conferir à contemplatio do direito natural um
sentido ainda diferente, que não só o compreende como ordem da criação e
manifestação do divino (exigindo que a «filosofia especulativa passe a ser perspectivada
teologicamente») como também o integra (ou volta a integrar) num universo mais
global (no todo do Ser que corresponde à criação divina) [Embora se convoque um certo
jus naturalis para identificar a «natureza das coisas» associável ao «justo concreto»,
este direito já não é exclusivamente pensado como uma tipologia de casos-respostas... e
desde logo porque estabelece um contraponto normativamente fundamental com um
outro plano de determinação, no qual se conhecem valores-bens, princípios-generalia e
critérios-regulae auto-subsistentes, participantes directos do cosmos da Criação
(susceptíveis de serem determinados num plano normativamente mais abstracto,
independentemente das respostas e decisões mutáveis e contingentes que fundamentem)
— aquele plano (hierarquicamente superior) onde descobrimos a chamada lex
naturalis... (lex no sentido ético-prático de «mandamento», por sua vez compreendida
como uma objectivação da lex aeterna)].

Porque é que se pode dizer que o jusnaturalismo pré-moderno, não obstante


estas diferenças que acabamos de considerar, se mostra perfeitamente compossível
com (e mesmo perfeitamente integrado num) um discurso-praxis jurisprudencial?

São duas as ordens de razões a ter em conta.


(a) A primeira tem a ver com o sentido global do problema das racionalidades. Embora
entendendo que o «sentido (onto-teleologicamente) decisivo das coisas» (das acções, dos
pensamentos, dos juízos, dos acontecimentos...) se manifesta (enquanto validade-Bem) na
ordem necessária e eterna da communitas (polis, civitas ou respublica christiana)... e se desvela
no conhecimento metafísico (com a mediação de um discurso teorético-especulativo), a
compreensão-experiência pré-moderna (sobretudo depois da «secularização-autonomização da
praxis assumida por ARISTÓTELES!) reconhece-exige harmonicamente o contributo de outros
tipos de racionalidade e das virtudes intelectuais correspondentes. É entre as virtudes «relativas
a objectos mutáveis e contingentes» (to praktikon dianoètikon) que nos aparece a prudência
(phronesis, prudentia) [virtude-energeia da acção e da decisão correctas (nuclearmente
cumprida em concreto)... e que, consumando-se nessa mesma acção-decisão, diz respeito ao
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 16

que, na ordem das coisas humanas, se pode afinal dizer bom e mau, justo e injusto...]... como é
na racionalização imediata desta prática de acções e decisões que intervêm os discursos (sujeito
/sujeito) racionalmente desenvolvidos pelas tópica, dialéctica e retórica... [Se os princípios
últimos são levados na sério na sua imutabilidade, a projecção destes princípios na prática das
acções humanas exige uma mediação argumentativa... que culmina numa construção-
-manifestação de juízos-julgamentos não necessários (apenas prováveis ou verosímeis)... É
assim que, desde o início, a experiência de autonomização do direito como tarefa prática de
resposta a controvérsias, nos aparece associada a um discurso casuístico prático-prudencial...]
(B) A segunda tem a ver com a índole da própria reflexão filosófica que, neste imenso
ciclo, se dirige ao «objecto» direito natural. É que tal reflexão não tem apenas intenções
teorético-especulativas, tem também intenções normativas...

« O ―direito natural‖ foi sempre pensado (...) numa dupla intenção. Numa
intenção filosófica, de compreensão essencial e absoluta do direito pela explicitação
dos seus constitutivos fundamentos ontológicos (fosse uma ontologia metafísica nos
gregos, fosse uma ontologia já de sentido teológico-metafísico, já mais cingida à
―natura rerum‖, na Idade Média cristã (...)), que logo se projectava numa intenção
normativa ― intenção normativa esta que, tendo naquela outra primeira o seu
fundamento regulativo, se traduzia na determinação de uma normatividade válida
por si mesma, porque referida àquele fundamento ontológico e filosófico-
especulativamente explicitado. Normatividade que procurava objectivar-se [em
princípios e critérios] (...) e que constituiria tanto o cânone regulativo como o
critério da validade de qualquer ordem histórica de convivência prática. Ou seja,
o direito era nestes termos imputado a uma filosofia que definia anteriormente a
nomos da prática, e que ia compreendida no seu sentido e função como uma
normativa ―filosofia prática‖...» (CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do
direito. Um curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1994)

Para o «filósofo» (que cultiva a sophia ou sapientia) não se trata com efeito apenas de se
entregar à felicidade suprema da contemplação pura (de ceder ao «espanto» provocado pela Luz
dos princípios primeiros e de a procurar reflectir num «espelho» acessível a todos), trata-se
também de exigir que estes princípios primeiros se precipitem numa «normatividade válida por
si mesma»... e numa normatividade que, constituída por fundamentos e critérios jurídicos muito
diversos [princípios (generalia e dogmata), «normas» (regras e brocardos), exemplos-
-precedentes jurisprudenciais ou casos paralelos, comportamentos-acções exemplares
consuetudinariamente constituídos, cânones argumentativos, depois também modelos doutrinais
ou opiniões-dicta de juristas reconhecidos], se vá objectivando em degraus cada vez mais
específicos até atingir a prática das acções e decisões juridicamente relevantes (e fundamentar
assim as soluções prático-argumentativamente construídas para as controvérsias). Acentuação
que nos permite perceber duas notas capitais:
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 17

(a) a unidade que sustenta todas estas manifestações da juridicidade — a concepção-


experiência de um único direito, constituído por vários-níveis ou degraus que se nos expõem
numa continuidade plenamente integrada (não obstante a pluralidade dos seus modos de
constituição e manifestação) [o «direito absoluto» é o «direito radicado no Ser» (o direito
natural)... mas este não estabelece um dualismo com outro direito, antes se especifica
sucessivamente em vários degraus («desde a ―natural‖ ou essencial normatividade
fundamentante à positiva normatividade determinada e concretizadora, que culmina no juízo-
julgamento)][não há assim um dualismo direito natural /direito positivo, mas uma unidade na
pluralidade];
(b) a concepção jurisprudencial do direito (e do pensamento jurídico como
jurisprudentia), determinada pela prioridade do problema (controvérsia real ou questão
reconstituída na Escola)... e assim também pelo reconhecimento de que esse direito (embora
iluminado por princípios eternos) é nuclearmente uma tarefa prática de resolução de
controvérsias — tarefa na qual todos os juristas colaboram, desde o cultor da filosofia prática
(aquele que «conhece» o direito natural enquanto tal) até ao titular da jurisdictio (aquele que
diz o direito na controvérsia concreta), passando muito significativamente pelo jurisconsulto
(aquele que, na civitas romana, respondia judicativamente a problemas-concretos... sem dispor
no entanto da potestas para os decidir!) e pelo legista universitário (aquele que, na respublica
christiana medieval, partia de questões-problemas para reconstituir problemático-
-dialecticamente os textos do direito comum). Ao ponto de podermos dizer que todos estes
juristas nos apareciam a assumir as intenções prático-normativas do direito e a responsabilizar-
-se constitutivamente pela sua manifestação (mesmo aqueles que apenas contemplavam
especulativamente os seus princípios primeiros). O que é ainda concluir que se tratava assim de
assumir-praticar uma autêntica unidade intencional entre direito e pensamento jurídico! [O
direito como juris-prudência que assume (ora mais judicativamente ora mais hermenêutico-
dialecticamente) a prática comunitária] [Uma unidade (se não mesmo luminosa circularidade)
direito / pensamento jurídico que só será posta verdadeiramente em causa no final do século
XVIII (com a consumação da filosofia prática e a emergência em esboço da ciência dogmática
do direito do século XIX...)...]

1.2. Algumas mudanças fundamentais introduzidas pelo discurso jurídico


medieval.

1.2.1. Uma alusão à reconstituição proposta por E. EHRLICH em Die juristische


Logik (1917-18).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 18

Nesta obra capital, EHRLICH preocupa-se em reconhecer no modelo discursivo


do direito comum europeu (tal como foi assumido pelas Universidades na Baixa Idade
Média) um antecedente indispensável do normativismo, na mesma medida em que nos
expõe assim à ideia de um grande ciclo harmónico de construção-institutucionalização
de uma «lógica jurídica» tradicional, «lógica» esta que (baseada numa reconstrução do
Corpus Juris Civilis) se estenderia desde o século XI até ao início do século XX (dos
Glosadores e Comentadores à Pandectística do século XIX, passando pelo
construtivismo «axiomático» dos jusracionalismos) [uma «lógica» para a qual o mesmo
EHRLICH se propunha encontrar uma «alternativa»...] .

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«Mostra-se [em Die juristische Logik] que no romanismo medieval (e do direito


comum) se formaram três ideias novas para toda a história do direito até então e que
constituíram os elementos básicos do normativismo: a ideia de que o direito se
manifestava ao jurista inteiramente já dado numa objectivação normativa expressa, em
primeiro lugar; que essa objectivação pressuposta o era de uma totalidade absoluta de
regras ou normas jurídicas, em segundo lugar; que ajuizar e decidir juridicamente se
traduzia na aplicação lógica (dedutiva) dessas normas ou regras prévias a casos ou
interesses particulares, em terceiro lugar.
A primeira ideia era a própria expressão do modo como os juristas de então viam
os ―livros do direito romano‖ e da importância que atribuíam à recepção deste – ―O
pensamento determinante da recepção do direito romano, formado por inteiro segundo o
espírito medieval, era o de que o direito todo estaria contido sem lacunas nos livros
romanos do direito‖ (pág. 176). O que bem se compreende, se tivermos presente que, na
linha do ―princípio da autoridade‖ que informava o espírito da cultura medieval, o
corpus iuris civilis era, tal como a Bíblia para a teologia, o ―texto de autoridade‖ por
excelência para o jurídico. Texto que o direito canónico, no corpus iuris canonici, e o
direito estatutário só complementariam.
A segunda ideia foi o resultado de uma certa perspectiva e de um particular
tratamento dogmático desse direito postuladamente dado nos seus textos de autoridade,
e em que o direito como que se revelaria em último termo, posto que sob o modus de
norma ou regra quanto ao entendimento da juridicidade, como um doutrinal ―direito de
juristas‖: se o direito romano legado e recebido se constituíra como um direito de
actiones, em paralelo à constituição da common law mediante a concessão de writs – e
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 19

assim dirigido à tutela de interesses e controvérsias bem determinados e


especificamente concretos em que os aspectos materiais e processuais entre si se não
diferenciavam –, só uma abstracção generalizante desses critérios jurídicos permitiria
que eles pudessem ser invocados para interesses e controvérsias diferentes daqueles a
que iam originariamente referidos e com que outras sociedades e outro tempo histórico
passaram a confrontar os juristas. Abstracção generalizante que estes realizaram
autonomizando justamente a dimensão material dos momentos processuais, ou o critério
jurídico-material, enquanto tal, do caso ou possíveis casos a que pudessem aplicar-se, e
isso através de uma doutrinal reelaboração constitutivo-dogmática que concluía por ver
nesses critérios regras gerais, i. é, normas jurídicas.
A terceira ideia foi um simples corolário metódico-jurídico das duas ideias
anteriores, pois o direito pressuposto não era agora um conjunto delimitado de meios
concretos de tutela jurídica que permitia, e exigia, por essa sua mesma limitação, uma
ampla actividade jurisprudencial autónoma, era antes uma totalidade de normas
jurídicas, regras materiais abstracto-gerais – totalidade que se postulava virtualmente
completa na definição do direito e normas que assim se haviam sempre de convocar
como fundamento das decisões concretas, ao mesmo tempo que essas decisões deveriam
resultar da aplicação dedutiva desses fundamentos normativos gerais.
Deste modo e por todas estas razões, poderá ainda concluir-se, com EHRLICH,
que ―pela primeira vez se depara à humanidade que todo o direito é composto
exclusivamente de normas jurídicas‖ e se fixaria ainda ―o pensamento, dominante até
aos dias de hoje, de que uma decisão judicial que não seja obtida através de uma norma
jurídica nada mais será do que puro arbítrio‖ (p. 177, ss.). Sendo essa a ―lógica
jurídica‖, que tanto é dizer o modelo da racionalidade jurídica desde então adquirida...»
[CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 59-60, (versão em A4) pp. 37-38].

1.2.2. Por mais impressivo e concludente que este diagnóstico de EHRLICH se


nos imponha ainda hoje, importa porém que nos distanciemos significativamente dele e
das suas formulações... Se é certo que algumas novidades introduzidas pelo discurso
jurídico-medieval nos oferecem verdadeiras aquisições precursoras — que os
normativismos jusracionalista e pandectista virão a assimilar (ou a pressupor como
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 20

portas-caminhos indispensáveis) —, se é indiscutível que a chamada ciência jurídica


europeia de índole doutrinal-dogmática (capaz de converter a herança do Direito
Romano num assumido direito comum ) nasceu com a «reescrita» medieval do Corpus
iuris civilis, não é menos verdade que dificilmente poderemos reconhecer nas
concepções-práticas da Escola dos Glosadores e da Escola dos Comentadores
autênticos normativismos avant la lettre.
O discurso universitário dos séculos XII-XIV traz-nos, com efeito...
— um novo tipo de jurista-legista, ocupado com o domínio cognitivo-
-intelectual (scientia) de um direito-texto (que diz lex)...
— ... e a identificação racional da juridicidade (ou pelo menos do direito
comum) com a textualidade (Corpus Juris civilis, Corpus Juris
Canonici)... e uma textualidade que se presume prescrita (iluminada
pela memória nostálgica do Império «perdido») ...

«...Trata-se do modo-de-ser textual que, a partir igualmente da Idade Média, o direito


assumiria ou se passou a entender ser o modo essencial da sua manifestação...»
(CASTANHEIRA NEVES)
— ... mas também a exigência de separar este direito material
cognitivamente pressuposto (e dogmaticamente reconstituído) da sua
posterior realização em concreto (e então e assim também dos
aspectos processuais-adjectivos que esta realização inevitavelmente
envolve).
Sem a assimilação destes três pressupostos (ou dos caminhos novos que estes
impõem) não seria decerto possível a representação normativista (no seu sentido
rigoroso) O modo como o pensamento jurídico medieval assume estas suas
«aquisições» distingue-o porém radicalmente dessa assimilação posterior (e então e
assim também do discurso «dominante»... que os normativismos dos séculos XVII ao
século XIX vão construir e especificar) [O discurso «dominante» que E HRLICH tem
sobretudo como alvo ... quando invoca a «lógica jurídica» que o distingue!] . Bastará
termos presente que o domínio cognitivo-dogmático do direito-texto inventado pelas
Universidades medievais (um domínio cognitivo que se diz scientia e se cumpre como
interpretatio)...
(a) se integra harmonicamente (sem qualquer exclusividade ou
supremacia) num «triângulo»-trindade de possibilidades de
determinação-especificação do jurídico (aquele que é definido pelo
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 21

contraponto sapientia / scientia / prudentia) [correspondendo a


primeira (sapientia) à reflexão filosófico-especulativa
teologicamente perspectivada dirigida ao direito natural... e a última
(prudentia) à construção do respondere singular e concreto que
assimila-supera judicativamente a controvérsia]...

«Se para os gregos o direito era um problema filosófico — intencionalidade que se


mantém na dimensão teológico-filosófica— e para os romanos era uma prática, uma experiência
socialmente prudencial, volve-se agora numa dogmática (numa dogmática hermenêutica). Pelo
que a autonomia do direito passa a ser uma autonomia cultural: o direito não se especula
apenas[(sapientia)], nem se pratica só prudencialmente[(prudentia)], estuda-se e reconstitui-se
dialéctico-culturalmente [(scientia)] — o logos jurídico torna-se hermenêutico-dialéctico. O que
se manifesta secularmente no ius commune…» [CASTANHEIRA NEVES, Sumário
desenvolvido proposto na primeira sessão do II Programa de Doutoramento (Faculdade de
Direito de Coimbra, ano lectivo de 2001/2002), «O actual problema da autonomia do direito», I)
Introdução, 1.a), b) e c), 4)].

(b) ... na mesma medida em que assume uma concepção hermenêutico-


-dialéctica dos textos a reconstituir (iluminada pelo prius do homem
da controvérsia)...[os textos vão ser interrogados na perspectiva de
quaestiones, problemas doutrinais «abstractamente» concebidos ...
mas que nunca perdem uma analogia constitutiva com as
controvérsias reais... e todo o desenvolvimento (mobilizando a
metodologia escolástica) se cumpre numa estrutura argumentativo-
dialógica, mobilizando argumentos a favor e contra e o tecido de
critérios e fundamentos que permitem sustentá-los...]...
A disputatio sobre quastiones
«A interpretação dos textos (...) implicava (...) a utilização de um instrumental lógico-dialéctico muito
complexo (...). Tal instrumento foi fornecido pela dialéctica aristotélico-escolástica. (...) A dialéctica é,
para a tradição aristotélico-ciceroniana, a arte de discutir. A discussão caracteriza-se (...) materialmente
(...) porque incide sobre assuntos discutíveis, ou seja, assuntos sobre os quais não há afirmações
necessariamente certas. Uma vez que não há, nos assuntos dialécticos, afirmações indiscutivelmente
verdadeiras, que cortem definitivamente as questões (pois então a própria discussão seria impensável), é
sempre possível encarar os problemas em aberto a partir de vários pontos de vista, ou seja, progredir
para a sua solução com base em argumentos distintos e, por vezes, até opostos. A discussão é, portanto,
um andar à volta da questão, perspectivando-a de diversos pontos de vista, atacando-a a partir de
diferentes considerações (ou argumentos). Sendo assim, a tarefa mais importante da teoria da discussão
(ou dialéctica) é encontrar os pontos de vista, os argumentos, a partir dos quais as questões podem ser
consideradas. Tal tarefa é designada na linguagem aristotélico-ciceroniana, por ars inveniendi ou tópica,
sendo esses pontos de vista, directores da argumentação, designados por lugares (loci) ou tópicos
(topoi). O pensamento jurídico da Baixa Idade Média recorreu continuamente aos processos dialécticos
e, nomeadamente, aos métodos propostos pela tópica, para encontrar os argumentos...» (António M.
Hespanha, Panorama histórico da cultura jurídica europeia, Lisboa 1968, pp.121-122).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 22

(c) ... na mesma medida ainda em que pensa uma unidade (na
pluralidade) prático-prudencialmente concebida [justificada não por
um plano ou sistema prévios mas por um autêntico princípio da
adição (que vai acrescentando novos elementos ao todo... e
reflectindo-experimentando as identidades e diferenças que os
singularizam)].
Passando embora a descobrir o direito em textos de autoridade anteriores à sua
realização em concreto, o discurso jurídico medieval não deixa de se levar a
sério como juris-prudentia (e de preservar assim tanto a prespectiva
problemático–prudencial quanto a unidade intencional direito / pensamento
jurídico).
Para um esclarecimento indispensável destes pontos ver C ASTANHEIRA
NEVES, «Método Jurídico», Digesta, volume 2º, pp. 292-295.

1.3. A construção de um autêntico normativismo: o contributo decisivo do


jusracionalismo.

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

« Mas em breve o pensamento jurídico se afirmaria num normativismo


sistemático explícito, em que a própria dimensão jurisprudencial se perde e a índole
hermenêutica de todo se secundariza, ao assimilar também ele a razão moderna, a
sistemática racionalidade moderna. Reproduzimos a este propósito o que em outra
oportunidade já escrevemos: ―Com um primeiro impulso no Humanismo – a proclamar
a libertação dos valores e a recuperar, contra a ontológico-predicativa dialéctica
aristotélica, o racionalismo clássico, tanto do idealismo platónico como do idealismo
estóico –, o sistema de pensamento que o homem moderno instituiu do séc. XVI ao séc.
XVIII radica o seu fundamento último no postulado da sua própria autonomia:
rompendo com a pressuposição de ordens sociais ―naturais‖ e transcendentes – fosse a
ordem ético-ontológica da polis, fosse a ordem histórico-política da civitas, fosse a
ordem teológica-política da respublica christiana –, o homem moderno volve-se para
si próprio, postulando como valores decisivos os valores da sua plena realização
temporal e como fundamentos únicos, do seu saber e da sua acção, a razão e a
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 23

experiência. Razão cuja objectividade se viria a identificar com a sua subjectividade


do principium reddendae rationis em LEIBNIZ e que seria transcendentalmente
constitutiva em KANT. Ou seja, e em geral, a razão não seria já razão material (a
intelligere o ser heterónomo) e judicativa, no horizonte da ordinatio natural, mas a
razão auto-fundamentada nos seus axiomas ou verdades criticamente primeiras e
sistematicamente constituinte nos seus desenvolvimentos dedutivos (a razão cartesiana e
base também da ciência moderna, galileica ou físico-matemática e empírico-analítica).
Não foi, na verdade, com outra base antropológica e noutra perspectiva cultural que de
GRÓCIO a PUFENDORF, WOLFF e tantos outros se construíram sistemas de direito natural
– mantendo-se embora a expressão clássica, o sentido era agora bem diferente, pois
tratava-se verdadeiramente de um jusracionalismo (...) – elaborados a partir de
evidências ou axiomas antropológicos (a ―natureza do homem‖), em termos axiomático-
sistematicamente deduzidos, e que se dualizavam perante o direito positivo. E se,
quanto a este último direito, se continuou no essencial a metódica hermenêutica e
dogmática do romanístico ius commune, o certo é que aquele direito natural, que do
direito positivo se distinguia como um direito superior, passou a ser compreendido já
como princípio e modelo, já como o último horizonte hermenêutico do próprio direito


É a narrativa de uma criação a partir do «nada» (ex nihilo), que nos traz a
compreensão do homem desvinculado anterior a qualquer vínculo social... mas também
livre de qualquer tradição... Não esquecer:
(a) a passagem da comunidade — dada enquanto dimensão integrante da
ordem natural indisponível (na qual o homem se inscreve-integra como homo
institutionalis) — à sociedade (enquanto artefacto construído prático-culturalmente
pelo homem)...
(b) ... e o auto-projecto regulativo (a ideia) do homem desvinculado,
onerado com a invenção-construção da societas ― o homem do estado de natureza,
«composto» pelas dimensões irredutíveis dos interesses, da liberdade-voluntas e da
razão-ratio (axiomaticamente autofundamentante).
Não esquecer ainda os «papéis» distintos que estas últimas dimensões
desempenham (ou os diversos equilíbrios de institucionalização que histórico-
-culturalmente propiciam):
(1) O homem dos interesses emancipados (das necessidades subjectivas) como
núcleo de reinvenção-construção da societas: a lição de HOBBES (de pensar a societas-
artefacto e o Estado-Leviathan a partir do dado do homem dos interesses egoistas e do seu ius
omnium in omnia, se não já da «guerra de todos contra todos»), uma lição que só o utilitarismo
de BENTHAM (com outros pressupostos e em nome de um outro projecto) virá a prosseguir... e
que, prolongada pelo pragmatismo norte-americano do século XIX (PEIRCE, JAMES,
HOLMES), encontrará no funcionalismo pragmático (e pragmático-económico) do nosso
tempo a sua expressão mais acabada.
(2) A autonomia da voluntas e (ou) da ratio (e da concertação que estas autorizam)
hipertrofiada num individualismo e secularizada na imanência.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 24

positivo e não era outro, no fundo, o sentido do cânone, ao tempo divulgado, da


interpretação do direito positivo segundo a ―recta razão‖. Assim, o jusnaturalismo ou
jusracionalismo moderno, enquanto implicava que no ―direito natural‖ se haviam de
procurar os fundamentos normativos da juridicidade, fazia, por um lado, com que o
direito se compreendesse em último termo como filosófico-especulativamente
constituído – o direito como que era ele próprio uma filosofia (decerto uma filosofia
prática) – por outro lado, o pensamento jurídico ou a ―razão jurídica‖, ao assimilar
a axiomática razão moderna, tornou-se, como esta, um pensamento ou uma razão
sistematicamente dedutiva; por outro lado ainda, o direito deste modo constituído e
pensado adquiriu a índole de um sistema de normatividade lógico-sistematicamente
enunciado em proposições lógico-normativas (normas) que permitiam e suscitavam um
tratamento analítico-dedutivo. O direito passou a ser um sistema de normas que se havia
de cumprir positivamente numa legislação sistemática, numa codificação – sabe-se
como o pensamento jurídico moderno-iluminista culminou efectivamente na
codificação. Em conclusão, não já um conjunto de decisões prudenciais ou sequer um
sistema de critérios dogmáticos exegético-doutrinalmente elaborados, mas um sistema
lógico de normas a prescrever ou prescritas – o direito como um sistema
axiomaticamente enunciado de normas e o pensar juridicamente como o analítico
deduzir de soluções dessas normas. Tal foi o normativismo que o pensamento jurídico
moderno e a respectiva metódica instituíram.‖...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do
Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp.
72-75, (versão em A4) pp. 39-41].

Ler com muita atenção CASTANHEIRA NEVES, «Entre o ―legislador‖, a


―sociedade‖ e o ―juiz‖ ou entre ―sistema‖, ―função‖ e ―problema‖ — os
modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito»,
Boletim da Faculdade de Direito LXXIV, 1998, pp. 15-16 (1)) [também em
Digesta, vol.3º, Coimbra 2008, pp.174-175 (1))]. Para um esclarecimento
indispensável destes pontos ver ainda Sumários desenvolvidos de
Introdução ao Direito I (incluídos no Material de Apoio da disciplina de
Introdução ao Direito I – segunda turma teórica), todo o ponto 2. («Os
factores determinantes do legalismo e do normativismo positivistas
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 25

reconstituídos no contexto prático-cultural do pensamento moderno-


iluminista»), pp. 29-40.

1.4. A construção de um autêntico normativismo: o contributo decisivo de uma


institucionalização política.

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«A estes dois factores, que podemos considerar sobretudo de índole cultural,


afirmados em épocas diferentes – a textualidade do direito assumida numa hermenêutica
lógico-dialecticamente jurisprudencial, na Idade Média e na sua sequência do direito
comum, a racionalidade sistemática da juridicidade determinada pela razão moderna –,
há que acrescentar dois outros factores já mais directamente políticos (político-
-jurídicos), ainda que também eles potenciados por movimentos culturais: por aquele
mesmo racionalismo jurídico-sistemático de modernidade, um deles, e pelo
contratualismo iluminista liberal, o outro.
Referimo-nos, respectivamente, à codificação do ―despotismo esclarecido‖, que
foi a primeira projecção político-legislativa daquela moderna racionalidade jurídica
sistemática, e à legalidade (ao princípio da legalidade) dos novos Estados de legislação,
que foi, por sua vez, a projecção revolucionária ou pós-revolucionária daquele
contratualismo. Ambos foram a expressão da estadualização do direito através da sua
identificação à legislação, posto que a legislação de um Estado absoluto que assumia a
modernidade, num caso, e a legislação de um Estado demo-liberal, representativo e
estruturado segundo um princípio de separação de poderes, no outro caso. (...) E o que
importa acentuar é que deste modo o normativismo – o direito é um sistema de normas
enunciado previamente para uma eventual ―aplicação‖ sucessiva e futura, subsistente no
próprio sistema normativo dessa enunciação e assim de uma juridicidade autónoma da
sua concreta realização – só se viu reforçado ao tornar-se assim um normativismo
prescrito, não apenas um normativismo metodicamente construído ou intencionalmente
pensado, mas imperativamente imposto...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 75-76,
(versão em A4) p. 41].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 26

2. As categorias de inteligibilidade do normativismo (com uma incidência


fundamental no normativismo da Pandectística do século XIX) [aquele que
foi responsável pela construção do paradigma do Método Jurídico]

2.1. A categoria norma


2.1.1. O contraponto norma / imperativo /regra

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«...Pode dizer-se muito em geral que o normativismo é aquela perspectiva que


compreende o direito como um autonomamente objectivo e sistemático ―conjunto de
normas‖ – não como um complexo casuístico de decisões concretas, não como uma
aberta e judicativo-doutrinal jurisprudência normativamente constitutiva, não como uma
determinável e estruturante instituição, etc...
(...). Segundo a compreensão normativista, o direito constituir-se-ia e
manifestar-se-ia mediante normas e deveria ser pensado como norma. ―Norma‖ decerto
enquanto objectivação de uma normatividade (...), de um dever-ser, e norma ela própria
segundo um entendimento específico, e rigorosamente diferenciador, que não só
exigirá (...) a sua distinção dos imperativos – embora também o possa ser, ou melhor,
possa ter em imperativos a sua origem – (...) como não admitirá a sua confusão
simplesmente com ―regra‖ – posto igualmente não lhe esteja excluído operar como
tal...
―Norma‖ em sentido estrito implica uma intencional e constitutiva racionalidade
– norma é ratio, uma ratio que a sua normatividade assimilaria e ela exprimiria. (...).
[entenda-se], uma ratio constitutiva da sua normatividade e que, pelo fundamento
objectivo que essa ratio conferiria, lhe sustenta ou fundamenta também a sua validade
(enquanto validade normativa (...), a validade do seu jurídico dever-ser. (...) Mas a
norma-prescrição poderá ser entendida com outro sentido – pelo menos com dois outros
sentidos –: como ―imperativo‖ e como ―regra‖, tomadas estas expressões, ou os
conceitos que exprimem, também em sentido estrito.
Imperativo implica um poder e imputa a exigência ou imposição de um
determinado comportamento, que a sua prescrição enuncia, à voluntas de uma potestas
[―nenhum imperativo sem imperador‖ (V. KUBES) (...)]. A significar também que
imperativo é um comando, uma ordem de uma determinada entidade, que se arroga o
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 27

poder para tanto, dirigido a certos destinatários, os quais se supõem no dever de lhe
obedecer. (...) Conexão entre imperativo e poder (...) que se fez claramente explícita a
partir de HOBBES e foi como que confirmada na teorias do direito por John AUSTIN.
(...) Por sua vez, ―regra‖ é uma directiva para a acção, qualquer tipo de acção,
que nem se funda numa específica racionalidade ou a exprime (como a norma), nem é
imposta por um poder (como o imperativo), mas traduz uma mera convencionalidade e
que se esgota na prescritividade dela resultante... (...) [Neste] sentido se dizem ―regras‖
os critérios de um qualquer jogo para todos os que aceitam jogá-lo, pois participando
nele implicitamente todos convencionam entre si (aceitam uns perante os outros) a
validade dessas regras do jogo. Pelo que no universo jurídico só haverá lugar a falar de
regras em sentido próprio (―regras jurídicas‖) para abranger as suas prescrições em geral
ou todos os seus critérios práticos, se a juridicidade remeter em último termo a uma
convencionalidade ou for compreendida como tal, e assim com o seu sentido último
num consensus. (...)
Em síntese: a ―norma‖ será a expressão de um dever-ser racional (ou com uma
qualquer pretensão de objectiva racionalidade), referido a uma veritas-ratio; o
―imperativo‖ será a expressão de uma ordem prescritiva, referida à voluntas de uma
autoritade-poder; a ―regra‖ será a expressão de um regulativo convencional, referido a
um qualquer consensus de auto-determinação...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do
Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos)
pp.67, 76-77, 83, 87, 88 (versão em A4) pp.37, 42, 45-46, 48-49 ].

«A law or rule, properly so called (…), is a command which obliges a person or


persons to a course of conduct (...). Laws and other commands are said to proceed from
superiors and to bind and oblige inferiors…» (John AUSTIN)

2.1.2. A especificidade da norma-ratio (a norma não deve referir nada para além
da sua racional normatividade e do campo que intensionalmente esta cria)

2.1.2.1. A herança iluminista. A lei encore à faire de ROUSSEAU (1712-1778)


como uma prescrição-imperativo que adquire a sua validade normativa (se não mesmo a
sua juridicidade) enquanto se exprime constitutivamente através do texto de uma
norma-ratio (consumando-se assim a racionalização da vontade de todos que
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 28

corresponde à vontade geral) . A juridicidade a corresponder à dinâmica constitutiva da


obediência a si próprio (que só a norma geral e abstracta poderá garantir). A volonté
génerale em ROUSSEAU [ inconfundível com as vontades empíricas, reais (determinadas
por um interesse privado) [volonté particuliére, volonté de tous, (volonté de la
majorité)]... e então e assim a impor-se como uma «racionalização da volonté de tous».
A recuperação do contratualismo já não como o pactum histórico homologador
da convivência político-comunitária mas como «acordo racional de vontades»: a
criação-constituição de um novo poder que resultasse da liberdade e fosse por ela
legitimado. A concentração exemplar do problema em ROUSSEAU: «Encontrar uma
forma de associação que defenda e proteja (...) a pessoa e os bens de cada associado e
pela qual cada um, ao unir-se (e enquanto se une) a todos os outros não obedeça no
entanto senão a si próprio e permaneça tão livre como antes. Tal é o problema
fundamental para o qual o contrato social representa a solução...» [Du Contrat social ou
principes du droit politique (1762), Livre premier, Chapitre VI («Du pacte social»)]
Uma nova concepção da lei como expressão de um poder legislativo (de uma
voluntas legítima) que só se constitui na sua juridicidade quando o seu texto assimila a
estrutura universalmente racional de uma norma.
O sentido da universalidade racional em ROUSSEAU e KANT [generalidade
/abstracção/ formalidade em sentido estrito]. A solução de ROUSSEAU (o direito com
fundamento na volonté générale) e a solução de KANT (o direito com fundamento na
universalização racional das liberdades). A solução convergente: um direito-legalidade
que se constitui racionalmente através de normas gerais, abstractas e formais.
►«Actos de todo o povo para (e sobre) todo o povo...» (generalidade) «...que tratam de
uma matéria comum...» (abstracção)... [ROUSSEAU].

«Mais quand tout le peuple statue sur tout le peuple il ne considère que lui-même, et s'il
se forme alors un rapport, c'est de l'objet entier sous un point de vue à l'objet entier sous
un autre point de vue, sans aucune division du tout. Alors la matière sur laquelle on statue
est générale comme la volonté qui statue. C'est cet acte que j'appelle une loi. Quand je dis
que l'objet des lois est toujours général j'entends que la loi considère les sujets en corps et
les actions comme abstraites, jamais un homme comme individu ni une action
particulière. Ainsi la loi peut bien statuer qu'il y aura des privilèges, mais elle n'en peut
donner nommément à personne; la loi peut faire plusieurs classes de citoyens, assigner
même les qualités qui donneront droit à ces classes, mais elle ne peut nommer tels et tels
pour y être admis; elle peut établir un gouvernement royal et une succession héréditaire,
mais elle ne peut élire un roi ni nommer une famille royale; en un mot toute fonction qui
se rapporte à un objet individuel n'appartient point à la puissance législative…» (Du
Contrat social, cit., Livro II, cap. VI)
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 29

►... mas também actos da vontade legisladora geral que enquadram a acção sem lhe imporem
previamente um conteúdo (antes confiando este à livre autodeterminação dos interesses e dos
fins de cada sujeito) A exigência de abstrair do arbítrio, do «fim que cada um se pode propor no
que quer», para se considerar «apenas a forma na relação dos arbítrios» e a forma que confere a
estes a sua «liberdade racional»: «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre
ser considerada como um princípio de legislação universal» (princípio da moralidade) / «Age
exteriormente de tal sorte que o livre uso do teu arbítrio possa concordar com a liberdade do
outro segundo uma lei geral de liberdade» (princípio do direito) [KANT]}.
«O conceito de Direito (...) diz respeito , em primeiro lugar, à relação externa (...) . [Em]
segundo lugar (...) à relação do arbítrio pura e simplesmente com o arbítrio do outro. Em
terceiro lugar, nesta relação recíproca dos arbítrios não se atende, de todo em todo, à matéria do
arbítrio, quer dizer, ao fim que cada qual se propõe com o objecto que quer; por exemplo, não se
pergunta se alguém pode ou não retirar benefícios da mercadoria que me compra para o seu
próprio negócio, mas pergunta-se apenas pela forma na relação entre os arbítrios de ambas as
partes, na medida em que tais arbítrios são considerados simplesmente como livres, e se, com
isso, a acção de cada um se pode conciliar com a liberdade do outro segundo uma lei
universal...» (KANT, Metafísica dos costumes, cit., Introdução à doutrina do direito, § C.)

2.1.2.2. O sentido desta universalidade racional preservado pelo positivismo legalista


do século XIX (e pelo individualismo que este consagra).. A racionalidade da lei a
«consubstanciar» as exigências normativas da juridicidade («a justiça racional da
universalidade-igualdade e da segurança»).

α) A generalidade (universalidade racional na perspectiva dos sujeitos) a


fundar-se na liberdade (que inventa a societas) [o sujeito titular da lei é o povo (a
associação de vontades livres e racionais que corresponde ao contrato)] mas também a
excluir o arbítrio e os «privilégios» e a consumar (na sua auto-subsistência) uma
exigência de igualdade [a prescrição dirige-se sem excepção a todos os sujeitos-
cidadãos... que assim mesmo não obedecem senão a si próprios].
β) A abstracção (na antecipação hipotética de um tipo de problema ou de
situação) a assimilar o comum racionalmente parificador (outra das dimensões da
igualdade) mas também a «atingir o futuro e a assegurar a permanência» [não
identificando-antecipando situações concretas (ou os casos singulares e irrepetíveis que
destas emergem), a norma autonomiza hipoteticamente o elenco de características
juridicamente relevantes que definem cada tipo de situação ou de problema
(dependendo a relevância jurídica dos casos singulares presentes e futuros da
«verificação»-determinação dessas características)].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 30

γ) A formalidade a definir o «status ou o quadro normativo» das possibilidades


de actuação-autodeterminação dos sujeitos («as estruturas genérico-abstractas ou
objectivo-formais dos direitos e liberdades, fossem os direitos e liberdades
fundamentais, fossem os direitos e liberdades comuns, e igualmente as obrigações e
responsabilidades») sem impor fins, antes permitindo a cada um a prossecução dos seus
fins (subjectivamente emancipados) e a realização lograda dos seus arbítrios: a lei a
afirmar a pureza jurídica da sua intencionalidade enquanto norma (a «assegurar
negativamente a garantia dos direitos, protegendo os direitos de cada um contra os
ataques dos outros») e então e assim a desempenhar uma função político-socialmente
estatutária de garantia (a garantir a ordem das «liberdades» de um «modo igual e
objectivo, permanente e seguro»).

2.1.2.3. A compreensão normativista da norma a exigir uma fundamentação


imanente.
A norma como prius, «ponto de partida» constituinte da juridicidade... e
critério racionalmente auto-suficiente, não só irredutível à decisão que a prescreve (ou
ao acto de vontade que a assume)... mas também capaz de encontrar em si mesma a
validade fundamentante de que precisa (de que precisa para se afirmar-constituir e
reconhecer como jurídica) [«A objectividade, não é sustentada por fundamentos
―transcendentes‖ (...) mas por um fundamento ―imanente‖, ou por uma veritas
constitutivamente imanente em que a racionalidade normativo-jurídica se manifestaria
como que em si mesma ou numa sua autoconstituição...» (CASTANHEIRA NEVES)]

2.1.2.3. 1. O que é que assim se recusa?


(A) Por um lado e numa das frentes... recusa-se uma redução das
prescrições jurídicas a meros imperativos. Se levarmos a sério uma
concepção das prescrições legais como meros imperativos
sancionados [e AUSTIN exige que compreendamos a sanção sempre
como sanção negativa (the command as (...) a wish conceived by
one, and expresse or intimated to another, with an evil to be inflicted
and incurred in case the wish be disregarded)], o problema da
validade-fundamentação normativa de tais prescrições não chega a
ser posto: tais prescrições sustentam-se (a juridicidade de tais
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 31

prescrições sustenta-se) exclusivamente na autoridade-poder (no


«soberano» ou na «soberania») que as proclama. Ainda que a
concepção normativista não possa prescindir de fontes prescritivas
(efectivas ou hipotéticas) que proclamem os critérios-normas, a
juridicidade-validade destas normas é sempre pensada-
-experimentada independentemente da legitimidade das decisões que
as prescreveram ou da adequação ou eficácia político-estratégica dos
seus conteúdos-soluções.
(B) Por outro lado e na outra frente recusa-se uma compreensão da
validade normativa das prescrições (do fundamento objectivo das
prescrições)... que seja procurada fora da norma (e que como tal se
diga ou possa dizer-se transcendente)...

Exemplos de fundamentação «transcendente» («não imanente»):


(a) a procura da validade-juridicidade da prescrição numa ordem
natural indisponível (a prescrição como interpretação de uma ordem
do Ser ou da Criação que lhe é anterior e que esta prescrição se
deverá limitar a interpretar-especificar) [a solução do jusnaturalismo
clássico]:
(b) a procura da validade-juridicidade da prescrição (enquanto direito
que a vontade cria) num direito racionalmente indisponível (o
direito que a Razão conhece) [a solução do jusracionalismo
moderno... de GRÓCIO até WOLF (enquanto verdadeiro direito natural
racional)... sem incluir portanto o jusracionalismo iluminista (este já


«O normativismo puro [pode], paradoxalmente, [exigir] prévias fontes do direito que criem as
normas, pois só uma vez elas criadas se poderá atingir a sua específica normativa racionalidade. Daí que o
normativismo de uma estrita compreensão racional da normatividade das normas, e da sua validade, possa
ir simultânea com um radical voluntarismo, se não decisionismo, quanto às suas fontes. É o que se vê
expressamente em KELSEN, quando, ao sustentar que ―o dever-ser, a norma, é o sentido de uma vontade,
de um acto de vontade‖, pretende com isso significar, por um lado, que as normas são a criação de um
acto natural ou empírico de prescrição e, por outro lado, que só no sentido do dever-ser que manifestam
se pode pensar a sua normatividade, aquela normatividade que adquire ―vigência‖ (Geltung) enquanto ―a
existência específica da norma‖ – vigência normativa essa que, desse modo, ―deve ser distinguida da
existência dos factos naturais, e especialmente da existência dos factos através dos quais ela foi criada‖
(Allgemeine Theorie der Normen, 1979, 2 e ss.). Daí também que no legalismo, a postular sempre um
elenco de fontes em que se afirma a imperatividade do poder político, [a normatividade jurídica das
prescrições legais] seja susceptível de ser pensada, e tenha mesmo em geral sido pensada, (...) em termos
normativistas estritos...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 82-83, (versão em A4) p. 45].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 32

a assumir um direito formalmente racional e um puro imanentismo


normativista)];
(c) a procura da validade-juridicidade da prescrição num concretum
indisponível ou nas estruturas ordenadoras que prático-
-institucionalmente lhe correspondem [a solução do pensamento da
natureza das coisas]
(d) a procura da validade-juridicidade da prescrição na experiência
histórico-cultural (em permanente realização constititiva) de uma
validade comunitária e nos princípios normativos que (enquanto
estrato do sistema jurídico) directamente a especificam-estabilizam [a
solução do jurisprudencialismo e outras jurisprudence(s) of
principles];
(e) a procura da validade-adequação (se não eficácia) da prescrição nas
regularidades (empírico-explicativamente reconstruídas) do
tecido social ao qual a prescrição se dirige ou no qual vai encontrar
os seus destinatários [«A objectividade sociológica da situação
―normal‖ ou do tipo ―normal‖ de comportamento que a norma
pressuporia e no fundo apenas exprimiria, se a sua normatividade
afirmasse a normalidade das situações e dos comportamentos como
padrões normativos (critérios de validade) das situações e dos
comportamentos da mesma índole. (...) As normas jurídicas seriam
afinal um certo tipo das ―normas sociais‖...» (CASTANHEIRA NEVES)
[a objectividade reivindicada por algumas concepções sociológicas
ou linguístico-semióticas (a norma a corresponder ou a dever
corresponder às tipificações narrativas da acção dominantes nos
diversos grupos semióticos.. se não já, com FOUCAULT e EWALD, a
corresponder a uma prática-estrutura de contrôle normalizador].

2.1.2.3.2. Em que dimensões ou perspectivas da norma (já postulada ou


pressuposta na sua existência) encontra afinal o puro normativismo esta racionalidade
imanente?


«É certo que neste normativismo puro, ou normativismo tout court – só nele as normas são
pensadas em si numa autónoma normatividade e não remetem para algo que as transcenda e que lhes
confira constitutivamente a sua normatividade –, o fundamento racional da normatividade, o fundamento
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 33

São diversas as dimensões a ter em conta — sendo certo que no seu


reconhecimento vemos sempre possibilidades convergentes (ainda que diversamente
acentuadas pelos também diversos normativismos)... e nunca possibilidades
alternativas....

(a) A ratio em causa impõe-se-nos desde logo como um correlato da completude


(e auto-suficiência) do critério que cada norma autónoma constitui, se não mesmo
directamente da estrutura lógica que corresponde a esse critério — diríamos hoje, da
possibilidade de experimentar-pressupor cada norma-premissa como um autêntico
programa condicional [A articulação hipotético-condicional se...→então (hipótese ou
previsão → estatuição ou injunção): se ocorrerem determinados acontecimentos na
realidade — delimitados na sua relevância problemática e comprovados na sua
referencialidade (como puros factos discretos nos quais reconhecemos as características
antecipadas na hipótese da norma... e que organizamos a partir desta ou da perspectiva
que esta permite)—... → então a resposta-solução do direito será esta...].

(b) Auto-suficiência do enunciado normativo-critério que não seria pensável


sem reconduzir o jurídico a um puro dever-ser, com um modo-de-«existência» (racional
e contra-factual) inteiramente cumprido em abstracto [ver supra quadro inserido na
p.12] — de tal modo que, uma vez rejeitada a «objectividade transcendente» de uma
realidade-Ser essencial (metafísicamente contemplada) e a unidade ser / dever-ser que
esta pressupõe, passemos a confrontar-nos com uma solução inequívoca de dualismo
metódico. O dever-ser das normas é integralmente autónomo, não é deduzível ou
inferível de uma qualquer realidade-ser... e a realidade-«ser» a que as normas
(através das características enunciadas no tipo-hipótese) se dirigem não é já uma
realidade essencial ou substancial (nem sequer a das estruturas institucionais da
«natureza das coisas»)...— é muito claramente a realidade dos factos empíricos e
discretos (que só se organizam e articulam na medida da sua relevância jurídica, uma
relevância que corresponde ao «preenchimento» em concreto de tais características
hipoteticamente antecipadas). De tal modo que ao monismo do cognitivismo
jusnaturalista [que descobre nos valores-bens uma normatividade e uma realidade

que ela exibe na sua ratio constitutiva, se manifesta na pressuposição das próprias normas ou postulando
já a existência delas...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) p.82, (versão em A4) p. 45].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 34

inseparáveis]... se oponha agora o dualismo do cognitivismo normativista [enquanto


contraponto-confronto direito racionalmente auto-subsistente / facticidade, normas
intrinsecamente racionais / factos desarticulados ou discretos] — um dualismo que
culminará na «dualização» do «direito-norma perante a realidade da sua aplicação» e na
assunção da «irrelevância desta realidade (i.e., dos problemas práticos que ela suscita)
para a compreensão e (...) reconstituição da normatividade jurídica».

(c) Podemos dizer depois que a racionalidade resulta da textualidade enquanto


tal :
— não tanto porque as formulações mobilizadas manifestem as (se nos
imponham como sinais inequívocos das) exigências da universalidade
racional [ao ler o enunciado textual nós conseguimos perceber assuas
características de generalidade e de abstracção!]...
— ... mas porque tais formulações e as significações que exprimem
constituem elas próprias esta universalidade (que não existe antes do
texto e das significações nele imanentes).
Duas notas a reter:
— uma compreensão constitutiva do texto [«O texto é compreendido em
termos não apenas expressivos, mas constitutivos: (...) a significação
jurídica é constituída exclusivamente pelo texto e só no texto, no seu
conteúdo significativo, deve ser procurada...»];
— uma compreensão global do texto (e do binómio intra-/ extra-textual)
— sendo certo que por texto importa entender o conjunto das
significações ou dos conteúdos significativos imanentes à norma
legal como prescrição auto-subsistente e não apenas a letra (como por
vezes apressadamente se conclui). Recorrendo à célebre tipologia dos
elementos autonomizada por SAVIGNY, podemos dizer com efeito que
as significações textuais são indiscutivelmente compostas pelo
elemento gramatical [a letra, o texto na sua relevância filológico-
gramatical, depois reconduzido aos (ou integrado nos) usos
linguísticos, que podem ser gerais (comuns, quotidianos) e(ou)
especiais (especializados, entenda-se, ligados ao contexto de


CASTANHEIRA NEVES, «Matéria de facto — Matéria de direito», Digesta, vol. 3º, p.323.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 35

significações da «linguagem técnico-jurídica»)], pelo elemento


histórico [o texto na sua relevância histórica, vinculado às
«circunstâncias históricas do seu aparecimento» e ao precurso que
culminou na sua produção-constituição]... mas também e muito
significativamente pelos elementos lógico e sistemático (depois
fundidos num único, que passa a dizer-se sistemático) — este(s) enfim
já preocupado(s) com a unidade lógico-estrutural da norma mas
sobretudo com a sua ratio imanente, entenda-se, com a inserção
dogmática da norma no sistema das normas e (depois) na pirâmide
dos conceitos (o texto na sua relevância lógico-sistemática) [«a
interpretação precisa de conhecer tanto as particularidades como o
significado de cada texto para o conjunto, pois a ―legislação só se
exprime ao nível de um todo‖].
Fora do texto — reconhecendo-se então como um perigoso elemento extra-textual,
comprometido com elementos materiais (interesses, valorações práticas, decisões,
intenções ideológicas, se não programas sociais) e assim capaz de perverter a
objectividade do processo hermenêutico — aparece-nos já o elemento racional-
-teleológico. Este ocupa-se com o motivo ou com o fim da norma e S AVIGNY ensina-nos
a «excluí-lo» do jogo discursivo iluminado pelos outros factores. É que esse fim ou razão,
afirma S AVIGNY, não faz parte por via de regra do conteúdo da norma: por conseguinte,
tem de ser ―encontrado e aposto artificialmente‖ pelo intérprete (...). Aliás, mesmo
quando o legislador indicou a razão da lei, não o fez para a constituir ―numa regra
comum‖, mas apenas para que a regra constituída se esclarecesse por esse meio; daí não
dever ser utilizada como uma regra autêntica. Desta maneira condena S AVIGNY uma
interpretação ―teleológica‖: o juiz deve atender, não ao que o legislador busca atingir,
mas só ao que na realidade preceituou; ou mais precisamente: ao que nas palavras da lei,
segundo o seu sentido lógico, gramatical e a extrair da articulação do sistema,
verdadeiramente encontrou expressão como conteúdo do seu dispositivo. O juiz não tem,
como um criador, que aperfeiçoar a lei, tem apenas que executá-la: ―um aperfeiçoamento
da lei é, decerto, possível, mas deve ser obra unicamente do legislador, em nenhum caso
do julgador‖...» (LARENZ)

(d) Faltando autonomizar uma última dimensão, capital embora (aquela que já
pudemos surpreender quando invocámos o texto na sua relevância sistemática). A
racionalidade imanente de cada uma das normas só pode com efeito plenamente
entender-se quando compreendemos essa norma inserida na unidade constituída pelas
outras normas... sob o modus de um sistema (unidimensional).[Para a concepção
normativista (seja qual for a representação da unidade que defende!) o direito é
constituído integralmente por normas... correspondendo-lhe assim um modo-de-ser-
abstracto (o direito existe nas suas proposições normativas e existe independentemente
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 36

da sua realização concreta, que nada há-de poder acrescentar-lhe no plano da


normatividade-juridicidade)]. A norma pensa a sua «validade a sustentar-se numa
unidade e consistência/coerência sistemáticas, ou em termos de ela se afirmar
autoconstituída pela racional sistematicidade da própria normatividade».

A UNIDADE POR CONSISTÊNCIA E A UNIDADE POR COERÊNCIA

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

« Podendo, no entanto, esta auto-racionalidade ser considerada em dois sentidos


diferentes ou mais em sentido formal e lógico-sistemático, com acentuação assim da
consistência (da validade como consistência) e em que a estrutura da normatividade
seria uma estrutura sobretudo lógica (lógico-normativa) – posto que a distinguir ainda
aqui uma formal consistência lógico-sistemática ou de sentido dedutivo
(axiomaticamente dedutivo, a partir de axiomas ou premissas-fundamentos postulados)
de uma outra de sentido puramente sintáctico, na qual a consistência sistemática será
garantida pela sua própria estrutura ou apenas pela sistematicidade enquanto tal. Ou
mais em sentido materialmente intencional e fundamentante, se não mesmo
razoavelmente argumentativo, com acentuação por sua vez da coerência (da validade
como coerência) e em que a normatividade exprimiria regulativamente um todo de
material intencionalidade normativa...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito.
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp.79-80,
(versão em A4) pp.43-44].
]
ALGUNS EXEMPLOS (entre muitos outros possíveis), DISTRIBUÍDOS PELOS DIVERSOS
NORMATIVISMOS

O normativismo Unidade por consistência axiomático-dedutiva


jusracionalista o ponto de partida são axiomas antropológicos (empírico-
(direito natural «naturalisticamente» descobertos e comprovados e/ou ético-
racional) -racionalmente assumidos) e a compossibilidade das diversas
normas é aferida pela desimplicação lógico-dedutiva referida ao
pressuposto comum
O normativismo do Unidade horizontal por coerência categorial-estática
Positivismo científico Unidade garantida pela unidade de significações categoriais
do século XIX que as normas repetem [as normas ou proposições normativas
pressupõem um sistema comum de «corpos jurídicos»
(institutos e conceitos) ... que a ciência dogmática do direito
deverá descobrir-construir]
O normativismo da Unidade vertical por consistência «sintáctico»-
Teoria pura de Hans arquitectónica
KELSEN Unidade garantida pela institucionalização dinâmica de um
processo normativamente estruturado de aplicação-produção do
direito [que a ciência do direito reconstitui analiticamente
invocando a pressuposição transcendental de uma Grundnorm
ou norma fundamental]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 37

2.2. As categorias conceito e sistema.


Ter em atenção que, se a categoria norma corresponde substancialmente ao
objecto interrogado ou cognitivo-analiticamente reconstruído (o direito-objecto referido
é constituído por normas na sua auto-subsistência racional), as categorias conceito e
sistema «situam-nos» em contrapartida no plano da perspectiva-sujeito: ou porventura
mais do que isso, aparecem-nos como pressupostos-construções indispensáveis (se não
como verdadeiras condições de possibilidade) para poder pensar-desenvolver uma
autêntica ciência de normas — a ciência dogmática do direito do século XIX.
[acompanhada, no último quartel deste século, pela tentativa da teoria-doutrina geral
(allgemeine Rechtslehre)]... mas também (e até certo ponto!) [mobilizando a categoria
de inteligibilidade proposição normativa] a teoria pura do direito projectada por
KELSEN...

2.2.1. A categoria conceito

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

« Só que o normativismo não opera apenas com a categoria ―norma‖, que


considerámos. Essa é, poderá dizer-se, a sua categoria substancial – o direito seria
substancialmente norma ou um complexo de normas. Uma outra categoria é já
estritamente lógica e por ela visa o domínio ou a determinação [científico-]dogmática
daquele elemento substancial. Trata-se da categoria ―conceito‖, de um certo tipo de
conceitos pelos quais se realizaria a inteligibilidade dogmática das normas jurídicas
pressupostas, e em termos de a imediata intenção prático-normativa destas se converter
numa objectivação lógico-conceitual e por cuja mediação o pensamento jurídico
passaria exclusivamente a operar.
Assim, decerto que na génese das normas jurídicas há uma valoração prática
intencionando a ―justiça‖ ou a ―injustiça‖, a validade ou a invalidade, etc., de certas
situações e comportamentos que sustentam o sentido regulativo que as normas
prescrevem para situações ou comportamentos futuros do mesmo tipo, mas o
característico da posição dogmática do normativismo está em pôr como que entre
parêntesis essa dimensão prático-normativa e substituí-la por uma conceitualização e,
desse modo, o sentido normativo stricto sensu por um sentido lógico – a estrutura
normativa por uma estrutura conceitual, o prático pelo lógico. E de dois modos
convergentes.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 38

[A)] Por um lado, os conjuntos de normas em unidade regulativa pela referência


a um certo domínio prático formam o que se dizem os ―institutos jurídicos‖,
susceptíveis como tais de uma objectivação conceitualizável – p. ex., o conjunto de
normas que prevêem e regulam o acordo entre duas ou mais pessoas que reciprocamente
se autovinculam com vista a certos efeitos objectiva normativamente um instituto
jurídico que logicamente se representa e determina pelo conceito de ―contrato‖; as
normas que regulam uma particular relação das pessoas com as coisas com
determinados efeitos da disponibilidade e outros constituem o instituto que na sua
objectivação prático-jurídica se determinará logicamente pelo conceito de
―propriedade‖; e do mesmo modo os institutos e os conceitos de ―sociedade‖, de ―acto
administrativo‖, de ―delito‖ (dos vários tipos de delitos criminais), de ―acções‖, de
―acusação‖, etc., etc. Conceitualização que analiticamente se desenvolve numa
complexa e apertada teia dogmática com que se pretende apreender lógico-
conceitualmente toda a normatividade jurídica vigente e que culmina, mediante ou uma
abstracção generalizante ou uma dedução transcendental que atingiria o a priori, na
enunciação dos jurídicos ―conceitos fundamentais‖ de que se encarregariam as ―terias
gerais do direito‖ – os conceitos fundamentais de ―sujeito de direito‖, de ―direito
subjectivo‖, de ―relação jurídica‖, etc., e que o pensamento jurídico passaria a
considerar como que analíticas ―verités de raison‖ do seu universo dogmático e das
quais esse universo logicamente dependeria. Com duas notas mais: a reelaboração
lógico-conceitual das normas e os correlativos institutos jurídicos, nos termos aludidos,
considerava-se a tarefa dogmático-científica da ―construção‖ jurídica e a reflexiva
recondução ou subsunção de uma qualquer entidade jurídica aos conceitos
dogmaticamente já adquiridos dizia-se a determinação jurídico-dogmática da ―natureza
jurídica‖ dessa entidade. Tudo o que significava, pois, e como já claramente se pode
compreender, a conversão do prático-normativo ao lógico-conceitual – isto em
obediência a uma estrita intenção dogmática que o cognitivismo objectivista assimilado
pelo normativismo exigia que tivesse essa expressão conceitual.

[B)] Por outro lado, as próprias normas eram entendidas de tal modo que
permitiriam a sua imediata tradução numa estrutura ou esquema lógico: a norma seria
uma certa forma de enunciar uma intenção normativa (prático-normativa) graças à qual
poderia abstrair-se na norma dessa intenção prático-normativa, que foi a sua causa ou o
seu fundamento, para ser considerada apenas na sua enunciação lógica, tão-só no seu
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 39

conteúdo lógico-apofanticamente enunciado. A expressão acabada desta atitude temo-la


na conhecida distinção teórica de KELSEN (v. Reine Rechtslehre, 2.ª ed., 73, ss.);
Allgemeine Theorie der Normen, 119, ss.) entre ―norma jurídica‖, enquanto a prescrição
prática, e a ―proposição jurídica‖ (Rechtssatz) com que a ―ciência do direito‖ conheceria
descriticamente aquela – proposição que, como ―juízo lógico‖ e segundo o esquema
―se/então‖, substituiria científico-dogmaticamente o acto prático-normativo da norma
enquanto tal. E o considerar as normas nessa sua autonomia formal por conversão
lógica, e não querer laborar senão com essa específica autonomia, é o que justamente
caracteriza dogmaticamente o normativismo...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do


«O que só é pensável porque o sentido da norma deixa de ser entendido como um princípio ou
critério axiológico-normativamente prático – como tal implicaria, ou só teria relevo numa tensão
valoradora perante uma realidade autonomamente pressuposta e actual –, e simplesmente como o
conteúdo conceitual de uma determinação lógica de realidade, como o enunciado descritivo-conceitual de
uma certa realidade, que seria imediatamente em si a condição (o ―pressuposto‖) de um efeito impositivo
– oferecendo-se assim a normatividade jurídica nos termos de um programa condicional (...). Decerto que
a realidade aí pensada e determinada é aquela que uma valoração prévia considerou normativamente
relevante (e assim digna do efeito prescrito), mas não será a ponderação desse juízo axiológico, nem uma
sua qualquer reconstituição também justificadamente fundada perante uma actual e autónoma situação
real, o que a norma cometeria ao seu destinatário; a este apenas lhe autorizava que da realidade
conceitualizada pela norma e tal como ela ia aí conceitualizada (em virtude, naturalmente, do juízo
axiológico prévio) fizesse a condição de que apenas dependia o efeito normativo. Embora na ordem
axiológico-normativa a norma surgisse como o resultado de uma certa posição ou juízo de valor,
convertia-se agora – nesta perspectiva dogmática – numa definição normativa implícita, num postulado
mediante o qual uma relevância jurídica ia ligada ―por definição‖ (por definição dogmática) a um
determinado objecto relevante.
Daí que ao pensamento jurídico bastaria conhecer o objecto relevante, a realidade tal como viera
a ser conceitualizada através daquele prévio juízo de relevância, para lhe poder logicamente impor as
consequências normativas. E se deste modo o conteúdo significativo da norma ia entendido tão-só como a
definição conceitual do pressuposto objectivo que justificaria sem mais o efeito jurídico, não só o jurista
podia supor que julgava conhecendo, que decidia juridicamente limitando-se a conhecer a
conceitualização normativa e através desta a realidade conceitualizada, como vinha ainda a imputar ao
próprio direito – identificado como as normas definitórias – uma verdadeira dimensão gnoseológica. Se o
pensar e decidir jurídicos vinham a reduzir-se, em último termo, à cognitiva determinação da realidade
mediante uma certa conceitualização – aquela conceitualização que o direito já em si oferecia –, também
o direito se revelava afinal tão gnoseologicamente conceitual como a ciência dele.
Devendo observar-se ainda que, não obstante esta referência conceitual à realidade, não seria a
realidade no seu autónomo conteúdo e existência prática que interessaria ao pensamento jurídico; este
apenas directamente se ocuparia da conceitualização dela que as normas enunciem. Sem dúvida que as
normas só poderão aplicar-se a uma realidade efectivamente existente, mas para que a aplicação se
houvesse de considerar válida bastaria averiguar se aquela realidade pensada na norma, e tal como aí vai
pensada, se tinha ou não verificado; e como esta verificação se reduzia a um juízo de existência ou de não
existência da realidade conceitualmente pensada, não afectaria ela em nada o conteúdo material que a
conceitualização ou significação normativa em si mesma, ou independentemente dessa verificação, desde
logo formulava – esse momento de verificação (a aplicação normativa) seria, pois, um momento
secundário, ―meramente prático‖, que deixava intocado e se passava de todo à margem dos conteúdos
jurídicos, oferecidos única e totalmente pelas normas. Quer dizer, por este outro lado era da própria
realidade (histórico-social), enquanto tal, que o pensamento jurídico normativista se desinteressava. O
direito seria para ele tão-somente ―um complexo de puras significações‖ oferecido pelas normas.
Vemos, assim, que se o normativismo pode conceber o direito deste modo e se acaba por
recolher-se a um plano de elaboração lógico-dogmática, só o consegue à custa duma dupla demissão. Por
um lado, alheia-se do juízo axiológico-normativo e prático, aquele que verdadeiramente faz com que o
direito seja direito, impondo em seu lugar uma axiomática determinação conceitual; por outro lado,
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 40

Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos)


pp.94-98 (versão em A4) pp.51-53].

Exploremos um pouco as duas possibilidades invocadas neste texto:


[A)] A solução do Positivismo científico [através da distribuição consagrada por
JHERING na segunda parte do Geist des römischen Rechts].

Jurisprudência inferior Jurisprudência


Estádios de determinação racional inferiores superior
Estádios de
agregação superiores

Materiais Proposições jurídicas (estrutura


hipotético-condicional, «forma imediatamente Institutos
jurídicos- prática e imperativa»)
dados + + Corpos
(contingentes) jurídicos
Princípios gerais do direito
Os materiais que [proposições jurídicas mais gerais, que
emergem das sintetizam racionalmente os conteúdos-
experiências -significações (Gedanke) de outras proposições Conceitos
consuetudinária e jurídicas (menos gerais) e dos conjuntos que
legislativa estas formam]

DIREITO- DIREITO (OBJECTIVO) DADO DIREITO-


OBJECTO
posto e imposto
[já como uma primeira organização racional
construída pela perspectiva-sujeito]
-DOGMA
Mundo novo (de «individualidades
lógicas») criado pela perspectiva-
-sujeito

alheia-se da consideração autónoma da realidade histórico-social que solicita o direito e perante a qual em
último termo ele se terá de justificar pressupondo essa consideração. Sendo certo, por último, que aquela
conceitualização dogmática e esta conceitualização metódica se articulavam numa global coerência – esta
segunda conceitualização seria o ponto de partida para aquela primeira e acabaria, circularmente, por a
possibilitar sistematicamente...» [Ibidem, pp. 98-100 (versão em A4) pp. 53-55]

Podemos dizer que estes materiais-dados, emergindo das experiências consuetudinária e
legislativa (e dos modos-de-ser do direitos que estas legitimam), constituem o direito posto e (ou) imposto
imputável ao (histórico-comunitário) «elemento político»: um direito eventualmente já disponibilizado
em estruturas de ordenação contingentes (instituições historicamente reais, ordens orgânicas, colectâneas,
códigos)… e que, no entanto, só se torna racionalmente «cognoscível» — e assim filtrado como um
autêntico objectum epistemológico (dominado pelo modelo auto-subsistente da norma-ratio e pelas
possibilidades ordenadoras que este sustenta) — quando aqueles materiais se convertem em (quando são
explicitados e determinados como) proposições jurídicas (Rechtssätzen). Proposições estas que em si
mesmas (na sua estrutura hipotétco-condicional) e nos conjuntos que autorizam — iluminados explicita
ou implicitamente pelos princípios gerais — … mas então também (e muito especialmente) na coerência
por vizinhança (Verwandschaft) com que horizontalmente se relacionam… compõem o território por
excelência do direito (objectivo) dado
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 41

Uma «solução» que nos obriga a distinguir dois grandes domínios do


pensamento jurídico-sujeito (o da «jurisprudência» inferior e o da «jurisprudência»
superior, só o último correspondendo a um autêntico tratamento «científico» dos
materiais-objecto)... mas que também nos ajuda a perceber o significado dos princípios
gerais do direito assumidos pelo positivismo normativista... e a posição destes
princípios (revelados por interpretação, análise e concentração pela jurisprudência
inferior) não só em relação às normas (estas sim autêntico direito!)... mas também
relativamente aos institutos e aos conceitos (estes já como autênticos «corpos jurídicos»
construídos e sistematizados indutivamente pela «jurisprudência» superior).
Recordemos com efeito que os princípios gerais do direito nos aparecem aqui
como axiomas lógico-normativos da unidade dogmático-científica que nos permite
determinar cognitivamente um sistema jurídico unidimensional (a «admitirem a
possibilidade de um monismo normativista entre eles e as normas»)... e então e assim...
a revelarem-se-nos como correlatos das operações de conhecimento do direito-objecto
que são desenvolvidas pelo pensamento jurídico-sujeito (um pensamento jurídico que se
quer ciência dogmática do direito)...

As concepções que vêem nos princípios apenas ratio (condições epistemológicas de


uma racionalização cognitivo-sistemática das normas legais) são herdeiras da
compreensão normativística dos princípios (e muito especialmente daquela que o
positivismo conceitual desenvolveu na segunda metade do século XIX) — uma
compreensão que reduz o direito ao estrato das normas para ver nos princípios gerais
«normas mais abstractas e mais gerais» obtidas por abstracção generalizante ou
concentração-classificação (se não por indução) a partir das normas vigentes e com o
objectivo claro de conseguir um domínio cognitivo racionalmente mais logrado destas
últimas e da unidade horizontal (por coerência) que estas constituem… Normas que
assim mesmo os princípios gerais não excedem normativamente, às quais nada
acrescentam no plano das «soluções» prático-normativas, com as quais (enquanto
axiomas racionalmente imanentes) nunca entram em confronto (às quais nunca põem
exigências de validade!)... cujas significações se limitam a reproduzir-sintetizar...
Importando ainda acrescentar que os institutos e os conceitos são levados a sério
como se constituissem um mundo novo de «individualidades lógicas», se não de
«existências» e «essências jurídicas» (susceptíveis de serem representados no seu «ser e
vida individuais»). Aquele mundo que a «jurisprudência» superior contrapõe ao mundo
das proposições e dos princípios gerais oferecido pela jurisprudência inferior? Importa
acentuá-lo. Tratando-se certamente assim de descobrir naquele mundo — e (ou) na
classificação que o ordena (als systematische Klassifikation des Stoffs) — um autêntico
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 42

sistema de corpos jurídicos (juristische oder Rechts-körper). Um sistema de corpos


jurídicos em sentido estrito que, não constituindo já substancialmente direito positivo
— não participando (já) da substância jurídica originária que distingue este último —,
se mostra no entanto apto a conferir a tal direito e à «massa» exterior dos «materiais»
que o integram, nos seus distintos degraus de objectivação e (ou) de «concentração»
(direitos subjectivos, relações, instituições, normas legais, princípios), a sua decisiva
transparência racional — precisamente aquela que (abstraindo da forma prática exterior
das proposições jurídicas, e neste sentido também da dimensão de imperativo que com
elas concorre) nos permite compreender este direito como um unidimensional sistema
de normas, se não como o Sistema por antonomásia. Sendo certo que tais «corpos» se
nos oferecem em dois degraus inseparáveis: o dos institutos (-estruturas) — que,
podendo embora preservar o nome originário, se nos expõem (enquanto
individualidades lógicas) emancipados da sua «organicidade» histórica e da sua
contingência empírica, mas também do modo-de-ser substancial (substantielles Dasein)
das proposições jurídicas — e o dos conceitos qua tale — núcleos auto-subsistentes de
«qualidades» e de «forças» que, enquanto «existências»-objecto, traduzindo, na sua
auto-subsistência («für sich sein»), a «quinta-essência lógica do corpo» (die logische
Quintessenz des Körpers), se nos impõem como os correlatos-limite de uma
interpelação anatómica e desta como rigorosa «teoria científica dos meios» (Theorie der
Mittel). Teoria esta que — na sua privilegiada convergência de juridicidade e de
cientificidade — nos autoriza (nos obriga) enfim a abstrair do «momento dos fins» em
sentido forte (e do problema, por vezes invencível, da sua determinação) para considerar
os «institutos» e os «conceitos» enquanto tal («naquilo que eles são», nos seus
conteúdos e significações auto-subsistentes).

[B)] A proposta de KELSEN...


Ter presente que se trata aqui de assumir uma distinção capital entre a
perspectiva-sujeito (ainda a de uma ciência que apreende o seu objecto juridicamente) e
o direito-objecto («o Direito como um sistema de normas em vigor», incluindo-se nestas
normas aquelas que regulam a dinâmica da produção e aplicação)... mas também de
purificar a primeira perspectiva, desvinculando-a de qualquer intenção-tarefa de
racionalização teorética da praxis [Para a Positivismo científico do século XIX, a
Technik que culminava na construção conceitual era nuclearmente entendida como uma
condição de possibilidade de uma prática racional (entendendo-se neste sentido, como
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 43

veremos já a seguir, que tal construção tinha como «finalidade» também a «aplicação
formal do direito ao caso concreto» ou a possibilidade de uma realizabilidade ou
practicabilidade objectiva). O que não acontece de todo com KELSEN!].
Como complemento da leitura, que se recomenda, da Teoria Pura do Direito
(ed. de 1960) [ler na trad. portuguesa de BAPTISTA MACHADO, Coimbra, 1976, III..
Direito e ciência, sobretudo o § 16 («Norma jurídica e proposição jurídica»)], ter
presente a distribuição sintetizada no quadro seguinte:
Direito-objecto Perspectiva-sujeito
RECHTSNORMEN RECHTSSÄTZE
O Direito constituído por... A ciência do direito constituída por...
normas jurídicas como proposições jurídicas como enunciados
prescrições do poder nos quais esta ciência descreve as
(comandos-imperativos, normas ou as interpretações
permissões, puramente normativas dos factos que
atribuições de poderes tais normas determinam e relacionam
e competências) (as proposições jurídicas como «juízos
hipotéticos que, em conformidade com o
sentido de uma ordem de direito (...) dada ao
conhecimento jurídico, enunciam ou
traduzem que, uma vez verificados certos
pressupostos ou condições fixados por esse
ordenamento, devem intervir certas
consequências, também elas determinadas
pelo mesmo ordenamento...»)
O Direito prescreve... («permite, confere A ciência do direito conhece descritiva
poderes ou competências») e analiticamente («ensina»...)
SENTIDO PRESCRITIVO SENTIDO DESCRITIVO
Função de autoridade (desempenhada por Função de conhecimento jurídico:
orgãos da comunidade jurídica):produzir o conhecer de fora o Direito e descrevê-
Direito [do legislador que produz uma norma -lo [a ciência do direito não prescreve seja o
jurídica geral ao juiz que produz uma norma que for...]
jurídica individual]
As normas jurídicas enquanto tais não Só através das proposições jurídicas
constituem uma unidade lógica, integram (e assim só indirectamente) podem as
antes uma estrutura arquitectónica de normas ser apresentadas num
institucionalização de factos produtores de encadeamento lógico-dedutivo («uma
normas (que atribui poderes a autoridades norma pode ser deduzida de outra
prescritivas ). Sistema de normas de tipo quando as proposições que as
dinâmico [o conteúdo das normas não é deduzido descrevem podem entrar num
de uma norma superior; a norma não vale porque o silogismo lógico»)
seu conteúdo possa ser deduzido pela via do
raciocínio lógico de uma norma fundamental... mas
porque é criada por uma forma determinada (uma
forma fixada, em última instância, por uma norma
fundamental pressuposta)]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 44

2.2.2. A categoria sistema

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«Se o direito se oferece em normas e se determina conceitual-dogmaticamente,


nos termos que acabamos de ver, a racionalidade lógica que já assim se postula na sua
normatividade – se não forçosamente uma racionalidade constitutiva e fundamentante,
decerto uma racionalidade intencional de relevo determinativo e dogmático – exclui,
pela própria logicidade assumida, o que se poderia dizer uma qualquer pontualização ou
dispersão intencional e bem assim uma contingência de manifestação – dispersão e
contingência que permitiriam, ou não excluiriam necessariamente, incoerências
intencionais, antinomias normativas, insuficiências ou lacunas referenciais, etc.,
incompatíveis todas elas com essa racionalidade lógica postulada. Tanto é dizer que o
normativismo implica a ideia de sistema – é esta a sua terceira categoria fundamental.
Vimos já, aliás, como o normativismo sempre foi associado à ideia sistema, a
um qualquer modus sistemático, pois sem lograr atingir a unidade sistemática a
racionalidade intencionada seria precária e em último termo insubsistente. A
juridicidade seria, pois, sistemática – sistemática de sentido axiomático imediatamente
nas normas e sistemática de sentido abstracto-conceitual na sua dogmática – e as
normas, nessa sua determinação dogmática, totalizariam o direito num sistema
normativo dogmático que se diria o sistema jurídico. Depois, pela exclusiva referência a
normas que dogmático-conceitualmente se determinariam – tratar-se-ia de um sistema
unidimensional, um sistema constituído por normas relacionadas com normas num todo
racional-conceitualmente unitário de normas. Fosse essa unidade horizontal (normas em
conexão com normas no mesmo plano lógico), fosse ela unidade vertical ou
hierárquica/gradual (normas como pressuposição e fundamento de normas: ex.: na
Stufenbau de MERKL e KELSEN). No primeiro caso, a unidade racional terá por
fundamento constitutivo a identidade formal e conceitual, no segundo caso a redução a
um único fundamento ou última norma (Grundnorm). Sempre, no entanto, um sistema
constituído e subsistente dogmaticamente numa lógica racionalidade e apenas nela...»
[CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 100-102, (versão em A4) pp. 55-56].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 45

O normativismo do Positivismo científico do século XIX


Unidade horizontal por coerência categorial-estática
Ver supra, pp. 36 e 40

Normas-proposições jurídicas situadas umas ao lado das outras


Direito Norma a ........Norma b ........Norma c ............. Norma d ............................ Norma n

Princípio 1 Princípio 2

Instituto y Conceito α Conceito β

O normativismo da Teoria pura de Hans KELSEN


Unidade vertical por consistência «sintáctico»-arquitectónica
Unidade garantida pela institucionalização dinâmica de um processo normativamente
estruturado de aplicação-produção do direito [que a ciência do direito reconstitui analiticamente
através de proposições jurídicas (ver supra, pp )invocando a pressuposição transcendental de uma
Grundnorm ou norma fundamental] «A norma fundamental não tem por conteúdo senão a
instituição de um facto produtor de normas...» (Teoria Pura, cit., § 34, p.271).«Dado o carácter
dinâmico do direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por
uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma: esta outra norma
representa o fundamento imediato da validade daquela. A relação entre a norma que regula a
produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem
espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma
produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um
sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras,
mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua
unidade é produto da conexão de dependência que resulta do facto de a validade de uma norma,
que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção é
por sua vez determinada por outra; e assim por diante, até chegar finalmente à norma fundamental
— pressuposta. A norma fundamental — hipotética, nestes termos —é portanto o fundamento de
validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora....» (Teoria Pura, cit., § 35, pp
.309 e ss.)
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 46

Uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas

Norma fundamental

Constituição em sentido material


[a norma positiva através da qual é regulada a produção das normas jurídicas gerais]....:
(a) não (b) escrita (produzida por acto legislativo)
escrita [Constituição em sentido formal: uma constituição-forma escrita ... que, para além
(produzida das normas que regulam a produção das normas jurídicas gerais, pode conter normas
por via que se referem a outros assuntos (pode mesmo assumir qualquer conteúdo!)]
consuetu-
dinária)...
Normas gerais criadas pela via legislativa (como lei e decreto) [a criação de
.....................
................... normas jurídicas gerais como aplicação da Constituição]
....................
.................... Normas individuais [a aplicação de uma norma geral a um caso concreto através
.....................
.................... de um acto judicial ou administrativo consiste na produção de uma norma
individual]

Execução dos actos coercivos estatuídos pelas normas individuais

■«Uma norma que regula a produção de outra norma é aplicada na produção, que ela regula, dessa outra
norma. A aplicação de direito é simultaneamente produção de direito. Estes dois conceitos não
representam, como pensava a teoria tradicional, uma oposição absoluta. É desacertado distinguir
entre actos de criação e actos de aplicação do Direito. Com efeito, se deixarmos de lado os casos-limite
— a pressuposição da norma fundamental e a execução do acto coercivo — entre os quais se desenvolve o
processo jurídico, todo o acto jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção,
regulada por esta norma, de uma norma inferior...» (Ibidem, p.325)
■■ «A norma fundamental não é uma norma querida (...);se a sua afirmação (...) é logicamente indispensável
para a fundamentação da validade objectiva das normas jurídicas positivas, ela apenas pode ser uma norma
pensada, e uma norma que é pensada como pressuposto quando uma ordem coercitiva globalmente eficaz é
interpretada como um sistema de normas jurídicas válidas...(a norma fundamental como pressuposição
lógico-transcendental)» (Ibidem, pp .281-284)


O normativismo legalista do século XIX distingue claramente entre criação do Direito
(criação de normas gerais e abstractas por via legislativa) e aplicação em concreto (não correspondendo
a decisão do julgador a um acto de criação de Direito... mas apenas a um exercício de aplicação).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 47

3. Tipo de racionalidade [3.1.], modus operandi [3.2.], e realidade pressuposta


[3.3.] pelas concepções normativistas

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

[3.1.] Tendo presentes as categorias de inteligibilidade próprias do


normativismo, para que chamámos a atenção, fácil é concluir que o tipo de
racionalidade assumido pelo mesmo normativismo é manifestamente o de um
racionalismo que o remete para a razão teórica. A razão jurídica seria assim, ou nessa
perspectiva normativística, uma modalidade racionalística da razão teórica: objectivo-
cognitiva na referência e sistemático-construtivística, lógico-conceitual e formal-
dedutiva na intencionalidade – como, aliás, o modelo metódico a considerar a seguir
bem irá confirmar.
E desse modo se pensava ainda garantir ao pensamento jurídico o estatuto
científico. O pensamento jurídico constituir-se-ia como uma dogmática ―ciência do
direito‖, porque o direito era pensado através de um pensamento sistemático que
procedia em termos rigorosamente lógico-racionais. E nem a pressuposição, nem a
intencionalidade dogmáticas implicadas pela vinculação normativa fariam obstáculo à
cientificidade, uma vez que o dogmático se submetia, nos termos que vimos, a uma
conversão conceitual que permitiria a elaboração lógico-sistemática.
Sem deixar ainda de anotar que essa índole teórica, com que a juridicidade é
assimilada pelo normativismo, se afirmava também com um particular relevo prático –
sobretudo assim no sistemático normativismo horizontal. A sua racionalidade (a sua
construção e o seu desenvolvimento racionalmente subsistentes, em último termo, numa
lógica identidade) garantiria a objectividade (a imparcial transubjectividade imposta
pela sua estrutura objectivo-racional), a segurança (a certeza ou a previsibilidade
oferecida pela sua imanente coerência), a igualdade (imediatamente implicada pela sua
constitutiva identidade lógica) e a plenitude e suficiência (o sistema jurídico pensava, na
sua logicidade, uma normatividade virtualmente conclusa) à juridicidade que
determinantemente manifestava. No sistemático normativismo vertical, já as coisas
poderiam ser diferentes, uma vez que, se cada nível da estrutura hierárquica
condicionava e fundava a normatividade de nível imediatamente inferior, não a
determinaria totalmente e antes se exigiria sempre um acto normativo relativamente
autónomo e de índole não racionalmente teorética numa intenção especificadora-
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 48

-concretizadora a esse outro nível. É essa expressamente, como se sabe, a posição de


KELSEN, com as também conhecidas implicações na sua ―teoria da interpretação‖ e na
aplicação e execução concretas do direito.

[3.2.] Em resposta (...) [ao problema do modus operandi], o que há a dizer é que
o normativismo nos oferece um paradigma de aplicação – um esquema metódico de
lógico-dedutiva aplicação de normas pressupostas, enquanto o paradigma metodológico
e o esquema metódico para a operatória realização concreta do direito. O que é, com
efeito, um corolário metodológico das suas respostas aos pontos anteriores, mas importa
bem compreender pela acentuação de algumas notas mais.
α) Se o direito se constitui e se manifesta num sistema de normas – se ele é esse
sistema de normas e nele exclusivamente se objectiva –, então decerto que o direito é
pensado como um sistema autónomo perante a realidade histórico-social da sua eventual
realização, ou sem que, quer as exigências práticas provindas dessa realidade, quer a
problemática normativamente específica da sua concreta realização nessa mesma
realidade se reconheçam com qualquer influência codeterminante da sua sistemática-
-racional normatividade. É, pois, esta autonomia com que o normativismo pensa o
direito, ou o seu sistema abstracto-racional de normatividade, a primeira nota a
sublinhar – e o próprio pressuposto de uma segunda nota em que o paradigma da
aplicação estrita já claramente se define.
Com efeito, essa autonomia implica que na projecção do direito na realidade
histórico-social se exclua qualquer possibilidade juridicamente constitutiva; com
fundamento nela será antes necessário que o direito pressuposto nas normas e no seu
sistema, e tal como aí se manifesta e se objectiva pela sua determinação hermenêutica e
dogmática, apenas se repita na solução concreta. Que o mesmo é dizer que essa solução
deverá obter-se por mera aplicação, ou sem nenhuma mediação normativo-
-juridicamente constitutiva – pois de contrário o direito realizado não existiria
totalmente ou não estaria afinal de todo já existente e objectivado nas normas do sistema
(o direito ―que é‖). E se o objecto da aplicação ou decidendo se oferece, como tal, numa
particularidade concreta que o diferencia do geral-abstracto das normas, impõe-se então
que aquela ―aplicação‖ opere segundo um esquema que garanta a relação entre este
geral e aquele particular sem implicações normativas, ou de modo que subsista uma
identidade entre o pressuposto aplicando e o resultado da aplicação. O que só a
lógica dedutiva (a relação lógico-dedutiva do geral para o particular) pode lograr. Foi o
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 49

que sempre se pretendeu através da convocação do silogismo e da subsunção (do


silogismo subsuntivo) enquanto esquemas metódicos da aplicação das normas jurídicas.
Com o que temos:
1) postula-se um (...) platonismo de normas, ao pensar-se que o direito
existe inteiramente e em si no sistema das normas jurídicas
independentemente da sua realização concreta, da sua ―aplicação‖ –
esta nada lhe acrescentaria de jurídica normatividade, nem mesmo
verdadeiramente suscitaria qualquer problema, na sua estrita
logicidade ou dedutividade (...) ;
2) pensa-se a sua realidade e modo de existência como uma realidade e
uma existência racional-abstracta – o direito é um abstractum;
3) essa sua realidade pressuposta na abstracta idealidade sistemática
das normas, e que só nessa abstracção existe, é objecto do
conhecimento jurídico (objecto da ―ciência do direito‖) [Segundo
dois momentos metódicos diferenciados e sucessivos – um primeiro
momento hermenêutico (a interpretação das normas pressupostas,
e que para o legalismo se reduzia à ―interpretação da lei‖) e um
segundo momento dogmático (a construção conceitual e
sistemática)];
4) ao que se segue, por exigência prática, uma sua aplicação ao
concreto-particular da realidade histórico-social – ao prius da
subsistência do direito nas normas do sistema jurídico, e nela única e
totalmente conhecido, segue-se o posterius da sua aplicação [E isto
se dirá o dualismo normativista: ser do direito nas normas e
conhecimento dele nestas, primeiro, e a sua aplicação, depois –
dualismo de entidades, de momentos, de actos];
5) .... aplicação que deverá ser lógico-dedutiva, nos termos já referidos.

Por tudo isto, uma implicação bem conhecida: a consideração


judicativamente decisória da especificidade do caso jurídico concreto, de
que se haveria de abstrair numa estrita aplicação lógica e genérico-
-abstracta das normas jurídicas, tomadas estas na sua normativística
racionalidade, não seria decisão ―de direito‖, mas decisão de ―equidade‖
e esta considerada assim como que uma espécie de antítese do direito qua
tale e da sua aplicação – p. ex. MANUEL DE ANDRADE, Fontes de direito,
vigência, interpretação e aplicação do direito (trabalho preparatório do
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 50

actual Código Civil), ao dizer, pág. 14, que ―a equidade não constitui um
sistema normativo (um ordenamento), pois é tomada aqui no sentido (...)
de justiça do caso concreto‖; e daí também a exigência de prévia
formulação de uma ―norma‖ aplicanda pelo próprio julgador mesmo na
sua actividade de integração do direito para além da analogia (ob. cit.,
pág. 9, no enunciado do artigo 9.°, IV, desse trabalho preparatório e de
que resultou o n.° 3 do artigo 10.° do actual Código; cfr. pág. 15); e
OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 7.ª ed.,
quando considera: ―A resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-
-se à resolução dos casos segundo o direito estrito. Pode haver regras e
haver equidade, quando o juiz estiver autorizado a afastar-se da solução
legal e a decidir de harmonia com as circunstâncias do caso singular.‖
(pág. 221) ―(...) na equidade (...) não há por natureza aplicação da regra,
antes há uma criação para o caso singular‖ (pág. 222), e por isso a
―equidade‖ não seria fonte do direito: ―Se fontes do Direito são os modos
de formação e revelação de regras jurídicas, a equidade, como critério
formal de decisão, está fora desta noção. Não só através dela não se
determinam regras, como a própria solução do caso não se faz através da
mediação de uma regra‖ (pág. 238).

[3.3.] Tudo isto quanto ao sistema das normas, que o direito seria, e à sua
aplicação. Mas uma outra nota se terá de considerar ainda. E que é esta: a realidade
histórico-social da aplicação do direito vai concebida como uma realidade analisável em
termos de factos (como ―meros factos‖, observa também CARL SCHMITT (...)), como um
conjunto de factos autónomos entre si e correlativos à racional abstracção das normas
ou como a correlativa factualidade (empírica) da idealidade lógica (racional) das normas
(da sua lógico-conceitual representatividade e previsibilidade normativo-regulativa).
Ora, a realidade histórico-social não se oferece fenomenologicamente desse
modo, como um conjunto aleatório de ―factos‖ discretos, mas em unidades de
acontecimentos histórico-socialmente estruturados, em especificados casos prático-
-sociais em que se polariza a inter-acção. Pelo que essa forma de ver a realidade traduz
uma analítica decomposição dessas unidades e desses casos em meros elementos
empíricos diferenciados uns dos outros, e isso assim porque era igualmente própria dos
racionalismos moderno e epistemológico-positivista, em que o normativismo encontrou
a sua possibilidade epistemológica e metodológica, uma análoga dicotomia razão
(lógica)-factos (empíricos) – dicotomia que o pensamento jurídico normativista se
limitou a converter na sua dicotomia normas-factos. (...).
Por outro lado, reconhecer-se-á ainda que desse modo a realidade prática (a
praxis) histórico-social, que a coerência do sentido prático-normativo do direito
implicará que nele se considere – porque é essa realidade, com os problemas também
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 51

práticos que suscita, a exigir a normatividade jurídica como indispensável regulativo de


validade e é nessa mesma realidade que o direito se projecta como dimensão
constitutiva (o direito como dimensão da prática humana) –, é ignorada no que
especificamente a caracteriza e substituída por uma realidade tão-só empírica – com a
mesma só empiricidade com que os ―factos‖ são referidos pela lógica e aplicação das
normas. O que, por sua vez, é a consequência do fechamento do pensamento
normativista no mundo lógico-sistemático das normas, nos termos que vimos, já que
isso o leva a abstrair da intenção prático-normativa da juridicidade e correlativamente
da tensão problemática de validade própria dessa intenção e em que haveria de atender,
num diálogo prático-normativo, também à problemática específica da realidade prática
– aquela realidade, repita-se, que nessa sua problemática solicita o direito como solução
e dimensão constitutiva. Resultado, pois, do alheamento do normativismo perante a
realidade, que já havíamos sublinhado, ao considerar apenas a conceitualização que dela
fazem as normas. O que significa, afinal, que mesmo quanto à realidade do
cumprimento do direito o normativismo não vai além das normas, que mesmo nesse
ponto se mantém nelas enclausurado.

Conjuguem-se as notas antes enunciadas, relativamente ao sistema das normas e


à sua aplicação, com a dicotomia norma/factos e a estrita empiricidade desses factos
acabados de referir, e teremos o que exactamente se deverá entender por paradigma da
aplicação, enquanto o paradigma metodológico do normativismo...» [CASTANHEIRA
NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão
em fascículos) pp. 102-110, (versão em A4) pp. 57-60]

Na leitura destes textos, não deixe de ter em atenção a diferença que separa o paradigma da
aplicação assumido pelo normativismo do século XIX da proposta de KELSEN (esta já nas fronteiras
de um verdadeiro paradigma da decisão)...

► O paradigma da aplicação assumido pelo normativismo do século XIX:


(a) o direito-lei pré-determinado (reconstruído racionalmente e
interpretado em abstracto) sem qualquer interferência do mundo dos
casos concretos (ou da perspectiva que estes autorizam) [a exigência
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 52

do julgador abstrair do problema que o pré-ocupa para poder


interpretar a norma em abstracto, garantindo a esta a sua plena
inteligibilidade racional e a juridicidade que resulta da sua
universalidade];
(b) a exigência de reconduzir o mundo dos casos-acontecimentos a um
acervo de factos empíricos desarticulados (factos discretos), factos
que o juiz-sujeito irá «organizar» à luz da perspectiva de relevância e
das exigências de articulação que a hipótese da norma lhe oferece (o
contraponto normas /factos);
(c) o esquema lógico-dedutivo do silogismo subsuntivo a garantir a
relação entre o geral e o particular sem implicações normativas;
(d) a exigência de isolar as tarefas da interpretação e da aplicação em
compartimentos analítica e cronologicamente estanques, que é
também a de exigir que a interpretação em abstracto chegue à
determinação rigorosa de um único sentido [Se o resultado da
interpretação admitisse diversas alternativas, cada uma delas seria
susceptível de ser mobilizada como premissa maior de um diferente
silogismo, retirando assim objectividade ao processo de aplicação
(entregando a escolha final ao arbítrio do julgador)].

► ► A proposta de K ELSEN: o «Direito a aplicar como uma moldura dentro da qual


há várias possibilidades de aplicação» (sendo estas livremente apreciadas pelo aplicador) [a
superação de um paradigma de aplicação por um paradigma de decisão...]
«O Direito a aplicar forma uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação (...).
Se por ―interpretação‖ se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objecto a interpretar, o resultado de
uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e,
consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a
interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução como sendo a única correcta, mas
possivelmente a várias soluções que (...) têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no
acto do (...) tribunal. Dizer que uma sentença judicial é fundada na lei, não significa, na verdade, senão que ela se
contém dentro da moldura ou quadro que a lei representa — não significa que ela é a norma individual, mas apenas
que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral. (...) Relativamente
(...) [ao Direito positivo], a produção do acto jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é,
realiza-se segundo a livre apreciação do orgão chamado a produzir o acto...» (Teoria Pura, cit., § 45, pp. 466-467,
470).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 53

APÊNDICE
ESQUEMA DO SILOGISMO SUBSUNTIVO

PREMISSA A proposição normativa reconhecida na sua estrutura (hoje


MAIOR diríamos no seu programa condicional): à hipótese H («se...»)
corresponde a consequência (-solução) jurídica C («então...»)

PREMISSA A subsunção propriamente dita


MENOR (cujo núcleo é ainda e por sua vez
constituído por um silogismo • H está caracterizado de
lógico): o problema P (determinado modo pleno pelas notas(-
e comprovado na sua factualidade qualidades) x, y e z.
empírica) é uma espécie (é um •• P apresenta as notas (-
exemplar) do género H — entenda- qualidades) x, y e z.
se, é assimilado pelas possibilidades ••• Logo P é um caso singular
de «representação» ou de «previsão» e concreto inscrito na hipótese
da norma em causa (ou pela tra- geral e abstracta H
dução sistemático-categorialmente
plausível, e não obstante única,
destas possibilidades).
CONCLUSÃO Para o problema concreto P vigora (impõe-se-nos) a solução tipificada
C (ou uma desimplicação lógica desta)

CAP. II / FUNCIONALISMO(S)

1. Notas prévias e pressupostos (prático-culturais e institucionais)

1.1. Uma distinção de base: funcionalismos materiais versus funcionalismo


sistémico
«O normativismo fecha a normatividade jurídica numa sua postulada autonomia
lógico-normativa que subsiste num auto-determinação dogmática [...]. Ora o propósito
de superar tal compreensão da autonomia, com a sua censurada ―cegueira ao social‖,
referindo antes o direito à complexa realidade do actual mundo humano-social, à
«sociedade» enquanto (...) o seu ―englobante‖ prático, em que ele se havia de
comprometer e para lhe oferecer as respostas funcionalmente exigidas e adequadas, foi
o que determinou uma outra perspectiva da juridicidade, que se designará por
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 54

funcionalismo jurídico...» (Castanheira Neves, «O funcionalismo jurídico...», Digesta,


vol. 3º, pp. 207-208).

Um pressuposto comum: o direito inscrito no tecido das possibilidades sociais ,


sendo esta sociedade identificada pelas (ou reconstituída através das) informações dos
discursos científicos.
Duas perspectivas contrárias...

FUNCIONALISMOS MATERIAIS FUNCIONALISMO SISTÉMICO


A funcionalização do direito às exigências O direito como sistema auto-diferenciado
sociais (o «direito» a convocar a sociedade situado na sociedade (reconstituído a partir
e a assumir-se como um instrumento desta) de uma concepção autopoiética da teoria
dos sistemas)
A compreensão-experiência da lei como A compreensão-experiência da lei como
um programa de fins um programa condicional
A recusa explícita ou implícita do A exigência de garantir a autonomia do
problema da autonomia do direito direito como auto-diferenciação

Começaremos por incidir exclusivamente nos primeiros, convocando o último


apenas na etapa final, quando aludirmos a um espectro indispensável de modalidades.

1.2. Pressupostos do funcionalismo material (com uma alusão brevíssima a algumas


experiências precursoras).

1.2.1. A viragem (aberta pela primeira modernidade e radicalizada no século


XX) para uma racionalidade dominantemente transformadora.

Excerto de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«O homem deixa de ser um homem simplesmente contemplativo que procura a


verdade e que no conhecimento teórico da verdade absoluta teria a sua plena realização
e a sua felicidade ((como nos ensinava]ARISTÓTELES), para se assumir como um homem
agente capaz de uma intenção de mobilização criadora, uma intenção que a própria
ciência, projectada na técnica (...) permitiria – recorde-se o scientia propter potentiam
de F. BACON e que teve a sua expressão forte (e também ingénua, sabe-se igualmente
hoje!) na fé iluminista na razão-ciência e no ―progresso‖ que ela parecia prometer; e não
menos, ainda que com a intervenção também de outros pressupostos, na mutação de
sentido proposta pelo marxismo e enunciada na conhecida tese XI sobre FEUERBACH
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 55

(―os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes modos, e trata-se
agora de o transformar‖). Um homem, pois, senhor do seu destino (daí resultou, em
perspectiva religiosa, a secularização!) que é o construtor do seu mundo, que vive
exclusivamente na história (o imanentismo metafísico de acabada expressão em HEGEL)
e como ser histórico ou da história (mais do que como ser de uma ―natureza‖) e que a
orienta funcionalmente segundo a opção dos seus projectos...» [CASTANHEIRA NEVES,
Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em
fascículos) pp. 131-132, (versão em A4) p. 72]

1.2.2. A libertação dos interesses (das necessidades subjectivas e da


racionalidade instrumental-estratégica) cumprida pela societas
moderna (associada à autonomização-descentralização do sistema
económico)...
1.2.3. A prevalência das componentes ratio e voluntas-liberdade (iluminada
pelo triunfo indiscutível dos argumentos de ROUSSEAU e de KANT)... a
favorecer uma compreensão contratualista (normativístico-
contratualista) da sociedade e do Estado... e a impedir que a procura
de uma ordem social baseada integralmente no dado do homem dos
interesses possa constituir-se como uma solução dominante.
1.2.4. A primeira grande tentativa para pensar integralmente a societas a
partir do homem dos interesses (e para conferir ao direito um sentido
instrumental, justificado por uma adaptação a fins): a proposta
utilitarista da censorial jurisprudence (e art of legislation) de
BENTHAM [1748-1832] (orientada pelo princípio da maior felicidade
do maior número) .

«Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and
pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine
what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the
chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in
all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will
serve but to demonstrate and confirm it. In words a man may pretend to abjure their
empire: but in reality he will remain subject to it all the while. The principle of utility
recognizes this subjection, and assumes it for the foundation of that system, the object
of which is to rear the fabric of felicity by the hands of reason and of law. (…) By utility
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 56

is meant that property in any object, whereby it tends to produce benefit, advantage,
pleasure, good, or happiness, (all this in the present case comes to the same thing) or
(what comes again to the same thing) to prevent the happening of mischief, pain, evil, or
unhappiness to the party whose interest is considered: if that party be the community in
general, then the happiness of the community: if a particular individual, then the
happiness of that individual. The interest of the community is one of the most general
expressions that can occur in the phraseology of morals: no wonder that the meaning of
it is often lost. When it has a meaning, it is this. The community is a fictitious body,
composed of the individual persons who are considered as constituting as it
were its members. The interest of the community then is, what is it? — the sum
of the interests of the several members who compose it. It is in vain to talk of the
interest of the community, without understanding what is the interest of the individual. A
thing is said to promote the interest, or to be for the interest, of an individual,
when it tends to add to the sum total of his pleasures: or, what comes to the
same thing, to diminish the sum total of his pains. An action then may be said to be
conformable to then principle of utility, or, for shortness sake, to utility, (meaning with
respect to the community at large) when the tendency it has to augment the happiness
of the community is greater than any it has to diminish it. (…) The general object
which all laws have, or ought to have, in common, is to augment the total
happiness of the community; and therefore, in the first place, to exclude, as far
as may be, every thing that tends to subtract from that happiness: in other
words, to exclude mischief…» (BENTHAM, An Introduction to the Principles
of Morals and Legislation, 1781)

«As principais objecções ao utilitarismo positivo (como é o de Bentham) são estas duas:
a) a felicidade não se pode universalizar a menos que a entendamos sem qualquer conteúdo. Para
uns a felicidade é marcar golos; para outros é ler Platão.
b) O interesse deste utilitarismo é apenas o de que a maioria, o maior número possível, seja feliz.
O utilitarismo não se preocupa com a minoria que não é feliz (...). Não se pode fundamentar de
forma utilitarista uma tutela de minorias, podendo aliás a minoria ser combatida quando tal seja
ùtil tendo em vista a ―felicidade‖ da maioria...» (KAUFMANN)

1.2.5. A viragem metodológica para o finalismo


A exigência de superar o normativismo como um pensamento jurídico
formalista e de abrir as portas a um discurso finalista (teleológico).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 57

Uma superação em duas frentes complementares:


— no plano do direito [para que este deixe de ser o estatuto-ordem, universalmente
racional, da compossibilidade relacional entre os arbítrios (ao qual só a forma na
relação entre os arbítrios importava)];
— no plano do pensamento jurídico [para que este deixe de ser uma ciência jurídica
de normas-textos (preocupada apenas com a estrutura categorial que sustenta a
relação horizontal dos significantes e significados das normas) ].


«O finalismo como modo determinante de uma funcionalidade foi convocado no pensamento
jurídico, poderá dizer-se pela primeira vez, por R. IHERING, na sua célebre e tão influente monografia dos
fins do séc. XIX (1877) Zweck im Recht. Distinguiam-se aí, como formas diferenciadas da ―razão
suficiente‖, ou de inteligibilidade em geral, a ―lei da causalidade‖, para o mundo físico-objectivo, a ―lei
da finalidade‖, para o domínio da acção e da vontade – aquela lei postularia que ―não há efeito sem
causas‖ e permitiria responder à pergunta ―porquê‖ que sempre se dirigiria àquele mundo, esta segunda
que ―não há querer ou não há acção sem um fim‖ e a pergunta a que haveria de responder-se, no domínio
da acção e da vontade, já seria ―para quê‖ (―o homem não age porque, mas para que‖). Distinção que
seria retomada por muitos outros (inclusive por R. STAMMLER, posto que no quadro do seu neokantismo
formal, v. Theorie der Rechtswissenschaft, 2.ª ed., 30, ss.; Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.ª ed., 56,
ss.) e que implicava uma clara concepção funcionalmente instrumental da acção (―A satisfação que espera
aquele que quer é o fim do seu querer. Nunca a acção em si mesma é um fim, mas simplesmente um meio
de o atingir. Em verdade, aquele que bebe quer beber, mas só quer beber para alcançar o resultado que
desse facto espera. Por outras palavras, em cada acção nós queremos não essa acção mesma, mas somente
o efeito que dela nos resulta‖ afirmava IHERING, e de modo análogo oporia STAMMLER à ―forma de
pensamento‖ da ―causa e efeito‖ no mundo natural a de ―fim e meio‖ no mundo prático da vontade, Ibid.
30). E com base nela, entendia IHERING que a lei de finalidade se ―deveria aplicar ao direito e para ser ele
pensado em termos finalísticos‖ (―o direito não exprime a verdade absoluta, a sua verdade é apenas
relativa e mede-se pelo seu fim‖; ―no domínio do direito nada existe senão pelo fim e para o fim, todo o
direito não é mais do que uma criação do fim...‖) e a postular, por sua vez, uma concepção funcionalística
não menos clara do próprio direito (―Qual é o fim do direito?... podemos dizer que o direito representa a
forma da garantia das condições de vida da sociedade, assegurada pelo poder de coacção de que o Estado
dispõe‖).
Finalismo que haveria de ter, todavia, uma particular conversão metodológica na ―Jurisprudência
dos interesses‖ – posto que declaradamente ela se dissesse, por HECK, inspirada em IHERING –: por um
lado, ao ―fim‖ visado substituíram-se os ―interesses‖ reconhecidos ou reconhecíveis pelo direito e este
seria chamado, não a garantir de forma geral as ―condições de vida da sociedade‖, mas a decidir
valoradoramente ―conflitos de interesses‖; por outro lado, os interesses a considerar seriam aqueles que o
direito considerasse relevantes e assim, como que numa ―interiorização‖ dos interesses pelo jurídico, o
prius continuava a poder ver-se neste, nas normas que previamente decidiam dos conflitos de interesses;
desse modo o finalismo via-se amortecido ao deixar de avultar no primeiro plano a favor de uma
hermenêutica teleológica do direito vigente, e isto graças à simultânea relevância, nota bem característica
da ―Jurisprudência dos interesses‖, dada ao Gebotseite e ao Interessenseite. (Sobre este ponto, v.
―Jurisprudência dos Interesses‖, in Digesta, II, 225, ss.) já que o funcional finalismo se via como que
neutralizado ao submeter-se assim ao que se dirá uma sua legitimação jurídica. Não do mesmo modo no
―direito livre‖, na ―jurisprudência sociológica‖, etc., em que o prius era já visto manifestamente nos fins,
nos interesses sociais a impor ao direito e em ordem aos quais ele deveria ser funcionalmente pensado e
realizado. E foi para esta contraposição que H. KANTOROWICZ chamou a atenção (recorde-se que
KANTOROWICZ foi um nome importante no ―movimento do direito livre‖, tendo sido mesmo o autor do
que se pode considerar o seu manifesto, o ensaio Der Kampf um die Rechtswissenschaft) através da
distinção entre dois tipos básicos que se teriam de reconhecer no pensamento jurídico, o tipo do
pensamento jurídico formalístico (...) e o tipo do pensamento jurídico finalístico (...). Funcional finalismo
este (...) que o actual funcionalismo jurídico material só radicalizou...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do
Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. , (versão em
A4) pp. 90-92]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 58

A VIRAGEM FINALISTA

Rudolf von IEHRING Oliver Wendell HOLMES Jr


Das Zweck im Recht (1883) The Common Law (1881)
«…The object of this book is to present a
«The fundamental idea of the present work general view of the Common Law. To
consists in the thought that Purpose is the accomplish the task, other tools are needed
creator of the entire law; that there is no besides logic. It is something to show that
legal rule which does not owe its the consistency of a system requires a
origin to a purpose, i. e., to a practical particular result, but it is not all. The life of
motive. (…) the law has not been logic: it has been
Law is the sum experience. The felt necessities of the
of the conditions of social life in the time, the prevalent moral and political
widest sense of the term, as secured by theories, intuitions of public policy,
the power of the State through the means avowed or unconscious, even the
of external compulsion…» prejudices which judges share with their
(trad. inglesa de Isaac Husik, Law fellow-men, have had a good deal more to
As a Means To An End) do than the syllogism in determining the
rules by which men should be
governed….»
.

Jurisprudência dos Interesses Sociological Jurisprudence


Movimento do Direito Livre
Legal Realism
Pensamento Jurídico-causal Progressive Legal Realism
Radical Legal Realism

Uma alusão à conhecida classificação de KANTOROWICZ [em Die Epochen


der Rechtswissenshaft (1914)]:
— o pensamento jurídico formalista a partir de uma estrutura dogmática
auto-subsistente (norma-texto, sistema de conceitos) e a «procurar um
sentido para a fórmula dada» (e então e assim a fechar o direito num
sistema formalmente autónomo)...
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 59

«O formalismo parte de uma norma jurídica enunciada, que é quase sempre


um texto legislativo» e pergunta-se ―como devo interpretar este texto para
me ajustar à vontade que o formulou?‖; partindo dessa vontade constrói, por
procedimentos aparentemente lógicos, um sistema cerrado de conceitos e de
princípios gerais dos quais deverão resultar em termos necessários a decisão
de qualquer questão jurídica real ou imaginada»
— ... o pensamento jurídico finalista a partir de um «sentido» (da
realidade material dos fins, exigências e compromissos práticos, que
podem ser também valores comunitários) e a «procurar uma fórmula»
para a solução (-«sentido material») que encontra (ou experimenta)... e
então e assim a assumir a conexão direito/realidade social (nas suas
dimensões política, económica, ética, científica, cultural, axiológica...).

«O finalismo parte do‖sentido‖ e não do livro, parte da realidade, dos fins e


das necessidades da vida social, espiritual e moral e pergunta como devo
manejar e modelar o direito para dar satisfação aos fins da ―vida‖; e
ajustando-se a esses fins, resolve as inumeráveis dúvidas do direito formal e
preenche as suas incontáveis lacunas...»

Uma alusão à diversidade de caminhos que este teleologismo pode percorrer,


com dois pólos de atracção claríssimos:
(a) o primeiro [aquele que está explicitamente invocado no quadro acima
proposto (e que corresponde à assunção explícita das heranças de
JHERING e HOLMES)] a atender exclusivamente a fins ou fins-interesses...
(b) O segundo [aberto pela viragem protagonizada pela jurisprudência da
valoração] a atender a fins e a valores... e a exigir uma compreensão do
direito em que se volte a falar de validade comunitária (de um regresso
da communitas, diferente embora daquela que o arco pré-moderno
consagrara!)... mas então também a exigir que se leve a sério o
contraponto sociedade / comunidade.

Ora estes caminhos vão-se separar (ao ponto de hoje serem protagonizados por
verdadeiros interlocutores-oponentes)! Importando esclarecer que, quando falamos «de
funcionalismo material, só o primeiro destes dois caminhos importa (o segundo conduz-
nos, com efeito, a concepções do direito próximas da proposta jurisprudencialista).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 60

1.2.6. O ciclo do Estado providência (Welfare State)


1.2.6.1. Uma nova imagem do homem (homo socialis) convertida em projecto da
societas e do Estado. O projecto-promessa de institucionalização de uma justiça
distributiva e da igualdade mas também da «libertação da carência» que a especificam.
O processo de socialização. A hipertrofia de uma racionalidade finalística (estratégico-
táctica). A felicidade «medida pela qualidade da vida e do bem-estar» (pela
maximização dos benefícios e redução dos custos).

1.2.6.2. A intervenção estadual determinada por uma planificação selectiva dos


fins — que não o é menos a de uma previsão cientificamente informada dos efeitos e
das diversas alternativas que lhes correspondem (o legislador estratega) — e por uma
concepção holística da realidade social (que descobre a sociedade como uma espécie de
sujeito individual macroscópico, a seleccionar as necessidades-fins e a mobilizar os
meios e as alternativas de decisão eficientes).

1.2.6.3. A superação do conceito iluminista (jurídico) de lei-norma (uma nova


lei que «deixa de querer ser o mero estatuto formal das liberdades»... e que renuncia à
generalidade e à abstracção... mas também à permanência): o exemplo das leis-
-plano e das leis-medida.

1.3. A perspectiva e a pergunta: uma compreensão do problema das funções


do direito numa perspectiva regulativo-pragmática... a culminar na pergunta «para que
serve o direito?»

Excertos de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«Uma coisa é perguntar pelas funções que o direito desempenha ou se lhe podem
imputar tal como é, ou tal como ele se manifesta na realidade humano-social e sem
pretender que ele seja diferente do que se mostra ser nessa realidade; outra coisa é
perguntar pelas funções que ele deverá ser chamado a cumprir em ordem a certos
objectivos que se pretendam ou programaticamente se visem, ou como ele deverá
ser (como se deverá constituir, organizar e operar) para que esses objectivos sejam
alcançados. Num caso trata-se de uma intenção já descritiva (sociologicamente
analítico-descritiva), já determinativa (reflexivo-determinativa), pois o que interessa
saber é que funções se reconhecerá que o direito desempenha na realidade social pelo
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 61

facto de ser aí direito, a função ou funções que ele na realidade social efectivamente
realizará por ser direito – ao direito, quer no seu sentido próprio, quer na sua objectiva
existência social, reconhecem-se certas funções! –; no outro caso, a intenção é
regulativa, uma vez que o relevante será antes constituir e organizar o direito, ou
um certo direito, e operar com ele assim, de modo a que possa cumprir certa
função ou funções que programaticamente se pretenda que ele cumpra ou logre
realizar. Por outras palavras ainda, num caso as funções (reconhecíveis) são um
resultado do direito (implicadas na sua presunção como direito, ou considerado ele
independentemente e antes de se interrogarem as suas funções), no outro caso o direito
deverá ser o resultado das funções pretendidas (constituído para se realizarem essas
funções e como um meio ou instrumento para essa realização).
E é com esta segunda perspectiva, não com aquela primeira, que tem a ver o
funcionalismo jurídico.
(...) O direito não será tratado funcionalisticamente quando simplesmente se lhe
reconhecem funções ou se quer vê-lo a cumprir a ―sua função‖ e sim quando é
convocado para certas funções que se pretende que ele realize – quando não é visto
em si mas como elemento numa relação ou num contexto sistemicamente funcional. Só
assim o direito será submetido a uma perspectiva funcional e com a consequência
decisiva de os objectivos ou os fins, os resultados ou os efeitos relevantes não serem
também em si jurídicos, mas transjurídicos, sejam eles políticos, sociais,
económicos, etc. (―certain non juridical purposes‖ – HOLMES), posto que visados e
porventura realizáveis do modus jurídico, através do (funcionalmente ou
instrumentalmente pelo) direito.
(...) Assim, [importa reconhecer] que o funcionalismo jurídico responde em
geral à pergunta básica, sobre a concepção do direito, convertendo-a numa outra, que é
esta: o direito para que serve? Não o preocupa particularmente saber o que é o direito e
determiná-lo pelo seu conceito, duvida mesmo que tenha validade o pressuposto exigido
por essa determinante conceitualização, a subsistência objectiva do direito como algo
que seja e se imponha heterónoma e autonomamente em si, independentemente da sua
finalística instrumentalidade e funcional operacionalidade. Já que o direito é agora
concebido como instrumento e função, e assim com toda a relatividade, dependência e
contingência implicadas na possível disponibilidade e variação dos fins, dos objectivos
sociais a realizar com ele na sua instrumentalidade, na mutável correlatividade da sua
posição no todo da realidade social, das opções que nessa realidade o mobilizem na sua
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 62

funcionalidade. Poderá dizer-se nestes termos e com L. RECASENS SICHES (...), que ―o
jurídico não é um fim, e sim um meio para a realização de fins diversos‖...»n
[CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 145-154, (versão em A4) pp.80-85]

A pergunta condutora: como é que vamos mobilizar as possibilidades já


institucionalizadas (nas práticas, nas estruturas ordenadoras, nas linguagens e nos
discursos que se cumprem em nome do direito) — e que novas possibilidades vamos
afinal poder introduzir (e com que consequências transformadoras) — para
corresponder a uma determinada selecção-organização das expectativas sociais na sua
inteligibilidade transjurídica? E quais são os pólos de determinação desta selecção de
objectivos que vamos privilegiar? Um pólo político ou ético-político, justificado por
distintas reduções do jurídico à política ou à moralidade política (funcionalismo
político)? Um pólo puramente social, iluminado pelas possibilidades reflexivas e
metódicas da tecno-ciência (funcionalismo tecnológico-social)? Um pólo pragmático-
económico, justificado pelo filtro de inteligibilidade do mercado competitivo perfeito
(funcionalismo económico)?

Uma pergunta ou sequência de perguntas que pressupõem explicita ou


implicitamente que o direito é um puro regulativo contingente, privado de intenções ou
projectos específicos (privado de ADN!).. um puro «servidor da necessidade social» (e
das expectativas que lhe vão correspondendo)… assim também emancipado de uma
qualquer dependência constitutiva em relação ao passado (de qualquer sentido de
continuidade)... Veja-se o que neste sentido o juiz POSNER nos ensina:
«Past dependence in law resembles another important concept, that of law‘s
autonomy. To the extent that a practice or field, whether it be music, mathematics, or
law, is autonomous, developing in accordance with its internal laws, its ―program‖, its
―DNA‖, its current state will bear an organic relation to its previous states. Many legal
thinkers have aspired to make law an autonomous discipline in this sense. It is a
questionable aspiration and my own view is that law is better regarded as a servant
of social need, a conception that severs the law from any inherent dependence on its
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 63

past…» (POSNER, Frontiers of Legal Theory, Harvard University Press, Cambridge


Massachusetts/ London 2001, p.159)

2. As categorias de inteligibilidade dos funcionalismos materiais: uma


acentuação do papel dos programas finais

SABER “NOMOLÓGICO” AUTO-SUBSISTENTE

Necessidades
FINS
PROGRAMAS FINAIS
Interesses
Ideologias
Expectativas
equivalentes
e «livres» Eficácia

MEIOS
FUNÇÕES
ALTERNATIVAS
ESTRA-
Eficiência DE DECISÃO TÉGIA

Regras de optimização
Eficácia

EFEITOS
Crítica de
EFEITOS ideologia

Critérios de regulação e de contrôle


TÁCTICA
Consideração situada das DECISÃO
coordenadas,
factores e máximas CONCRETA
da decisão

2.1. A superação dos valores por fins


A acentuação exclusiva dos fins (vinculada a um diagnóstico de pluralismo
radical ou de erosão irreversível dos valores ou compromissos integrantes) leva
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 64

inevitavelmente a uma concepção instrumental do direito e a uma renúncia à autonomia


deste — a uma compreensão do direito como prática-instrumento, ao serviço de
finalidades transjurídicas.

VALORES FINS-OBJECTIVOS
CONVICÇÕES-PROJECTOS NECESSIDADES SUBJECTIVAS

COMPROMISSOS PRÁTICOS TRANS- INTERESSES (RELAÇÃO COM OS


INDIVIDUAIS «OBJECTOS»-- -RECURSOS
FUNCIONALMENTE APTOS A SATISFAZER
AS NECESSIDADES)

O OUTRO COMO SUJEITO NUM MUNDO ESCASSEZ DOS OBJECTOS


PRÁTICO DE COMUNICAÇÃO- O OUTRO SUJEITO COMO MEIO E COMO
INTERRELAÇÃO OBSTÁCULO
[colaborador indispensável na satisfação das
necessidades (divisão do trabalho,
complementaridade) e obstáculo (enquanto impede
a satisfação plena de todas as necessidades de
cada um dos sujeitos-indivíduos]
TAREFAS ANTECIPAÇÕES PROGRAMADAS DE
RESPONSABILIDADES ORDENS DE PREFERÊNCIAS
VÍNCULOS INTEGRANTES
HIERARQUIZAÇÃO DOS FINS EQUIVALÊNCIA DOS FINS
EXIGÊNCIA DE DECISÕES QUE
HIERARQUIZEM OS FINS

RACIONALIDADE PRÁTICA SUJEITO / RACIONALIDADE INSTRUMENTAL-


SUJEITO ESTRATÉGICA

COMMUNITAS SOCIETAS

«Desde logo, e fundamentalmente, aos valores substituem-se os fins (...). Se os


valores referem uma transindividual vinculação ético-normativa que responsabiliza e
que convoca a prática para o desempenho irrenunciável de ―tarefas‖ (...) em que se
projecta essa sua vinculação ou compromisso, os fins — desvinculados da teleologia
ontológica pelo ―mecanicismo‖ moderno — são agora tão-só opções decididas pela
subjectividade que programa os seus objectivos (...), decerto sempre condicionados por
um certo contexto mas em último termo justificados por interesses e em vista deles —
comunga-se nos valores, diverge-se nos fins e nos interesses...» (CASTANHEIRA NEVES,
Teoria do direito (versão em fascículos), pp. 154-155, (versão em A4), pp.85-86]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 65

A compreensão da societas que assume este diagnóstico de pluralidade e


heterogeneidade radicais (e com ele a impossibilidade de convocar compromissos
transsubjectivos integrantes que hierarquizem os fins) passa a tratar as nossas
convicções éticas, filosóficas, religiosas (e os princípios, narrativas ou juízos avaliativos
que as sustentam) como se fossem meras perspectivas, pontos de vista ou opções
subjectivas socialmente permitidas (e como tal equivalentes). Perspectivas que são
relevantes para cada sujeito envolvido, quer se trate de um indivíduo ou de um grupo —
este último sempre tratado como uma mera soma de sujeitos-indivíduos (ou como uma
acumulação de necessidades) —... mas que só são relevantes porque determinam a
ordem de preferências que cada indivíduo vai assumir!
Sendo certo que a compossibilidade hierarquizadora de tal acervo de sujeitos
(e das necessidades que estes reivindicam) vai exigir sempre decisões... e decisões que
(embora pragmaticamente racionalizadas) sejam causa de si próprias (a começar decerto
por aquelas que correspondem à grande estratégia constitucional)...

2.2. A superação dos fundamentos por efeitos e a assunção de uma «lógica»


consequencialista

VALORES FINS-OBJECTIVOS
Fundamentos Efeitos
VALIDADE CONSEQUENCIALIDADE

«A validade implica «A consequencialidade contrapõe aos argumentos de validade


uma pressuposta normativa (...) os ―argumentos consequencialistas‖, ou seja, a
normatividade em que prática não seria ajuizada por referência a uma validade
encontra expressão normativa, mas pelas consequências ou os efeitos da acção; da
uma axiologia e afere a ―consideração dos efeitos‖, da ―legitimação pelos efeitos‖, da
prática pelas ―orientação pelos efeitos‖, etc., dependeria o juízo sobre a
polaridades, justamente correcção ou incorrecção prática em geral - até porque, assim
de validade normativa, se sustenta (...), só desse modo as valorações seriam
de justo/injusto, de susceptíveis de uma verdadeira racionalização que as
lícito/ilícito...» subtraísse à irracionalidade emotiva...».
«Depois, aos fundamentos [substituem-se] os efeitos. (...) Os fundamentos
traduzem pressuposições de validade, teórica ou prática, que por uma mediação
discursivo-argumentativa hão-de sustentar a concludência material do juízo ou o sentido
da acção, enquanto que os efeitos são resultados empiricamente comprováveis pelos
quais se logra ou não a realização eficaz de fins / objectivos...»[CASTANHEIRA NEVES,
Teoria do direito (versão em fascículos), pp. 154-155 , (versão em A4), pp.85-86].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 66

2.3. A exigência de tratar a prescrição legislativa como um autêntico programa de


fins
A inevitabilidade da prescrição legislativa enquanto decisão «selectiva e
hierarquizadora» (numa prática condenada à imanência dos fins). [«Se estamos
divididos pelas nossas convicções e pelas ordens de preferências que as estabilizam,
temos que mobilizar decisões (e as vontades legítimas que as produzem) para podermos
estabelecer uma hierarquização socialmente vinculante das necessidades a
satisfazer!...»]. A legislação como estratégia. A Constituição enquanto grande
estratégia social.

«No plano da determinação, ou do conteúdo que o jurídico será chamado a


objectivar e a actuar, o decisivo estará na intencionalidade definida por um
Zweckprogramm (programa finalístico ou programa de fins-objectivos
seleccionados e postulados). Trata-se de uma categoria que é intencionalmente
especificante da funcionalidade e instrumentalidade do direito – tal como para o
normativismo o era um sistema de normas pressuposto e a exigir uma ―aplicação‖
lógico-dedutiva segundo o esquema ―se / então‖ e que, justamente em contraste com um
programa de fins se oferecia como um programa condicional (Konditionalprogramm
que, porém, irá ser retomado pelo funcionalismo sistémico). No Zweckprogramm o
importante não é uma normatividade que se pressuponha a afirmar uma qualquer
validade vinculante e que, como tal, se haja simplesmente de cumprir, mas antes os
objectivos que se visem atingir mediante uma actuação adequada, sejam esses
objectivos práticos fins pré-fixados, interesses reivindicados, expectativas invocadas,
etc. Sabendo também já que esses fins/objectivos, como referências ideais, só serão
atingidos pela mediação dos efeitos/resultados que no plano da realidade aquela
actuação efectivamente (empiricamente) produza – pelo que a relação entre fins e
efeitos é aqui fundamental. E a mostrar-nos, por isso, que a perspectivação de um
programa finalístico só em abstracto, ou como um abstractum, sem a consideração da
sua realização concreta nos efeitos/resultados, seria uma forma inaceitavelmente
truncada de o entender – mais uma nota de clara distinção relativamente ao plano
apenas abstracto em que intencionalmente opera o normativismo. E daí a importância
que veremos ter no funcionalismo em geral o momento, e de uma particular autonomia,
da realização concreta...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas
no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp., (versão em A4) p. 90].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 67

A forma para que (Um... zu, in order to, afin de) : «Introduz-se este novo
regime normativo e mobilizam-se estes recursos (especificados em outras tantas
alternativas de acção-decisão)... para atingir (para que se atinja) este objectivo x, ou o
que é o mesmo, para produzir (para que se produzam) estes efeitos sociais ou empíricos
[efeitos que correspondem a uma projecção-realização do fim antecipado, cuja
previsibilidade maior ou menor dependerá dos saberes nomológicos (das informações
empíricas ou dos contextos de explicação cientificamente disponíveis ou
mobilizáveis)...» [«O sistema de avaliação do desempenho (...) dos serviços da
Administração Pública (...) previsto na presente lei tem como objectivos (...) potenciar o
trabalho em equipa [e] fomentar uma cultura de exigência, motivação e reconhecimento
de mérito...»]
A forma para que... pode estar explícita (numa identificação de objectivos-goals
e numa determinação dos recursos afectáveis, especificados num elenco mais ou menos
amplo de alternativas de decisão possíveis)....ou pode estar apenas implícita,
eventualmente sob a máscara se.... então. A experimentação pragmático-funcional
(assumida pelos funcionalismos materiais) exige que reconstruamos esta prescrição na
sua inteligibilidade final (convertendo a possível exploração do elemento racional-
teleológico da lei na revelação-decomposição analítica de um programa de fins).

A possibilidade de, na perspectiva do programa de fins, se problematizar desde


logo a instrumentalidade (a eficácia) dos recursos mobilizáveis [a aptidão instrumental
dos meios seleccionados relativamente à prossecução do fim pré-determinado]...

EFICÁCIA / A RELAÇÃO TÉCNICA MEIO / FIM

As perguntas possíveis: o estado actual das informações cientificamente mobilizáveis permite-


-me dizer que o meio-recurso x (normativamente previsto) é apto a prosseguir o fim-goal
racionalmente antecipado na prescrição legislativa? qual é a relação que, em termos de
probabilidade (científicamente comprovada), pode(re)mos estabelecer entre um recurso de tipo
x e um efeito empírico-social de tipo y (o efeito correlativo ao fim-goal legislativamente
antecipado)? são aquela aptidão e esta relação explicáveis, tendo em atenção as informações do
saber nomológico hoje disponível? quer dizer, permitem-me tais informações conexionar em
termos universalmente objectivos (no plano de inteligibilidade da comunidade dos cientistas)
este meio-instrumento e o fim proposto?

FINS MEIOS
Eficácia FUNÇÕES
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 68

...e de, para além desta instrumentalidade, se exigir eventualmente ainda que
seja tematizada (discutida) a eficiência, entenda-se, a articulação maximizadora das
alternativas de decisão programadas (das alternativas de decisão que especificam os
meios-recursos mobilizados)… na sua relação explícita com os efeitos sociais ou
empíricos e com o contexto real em que estes se irão produzir (isto é, com os efeitos a
produzir naquele tecido social específico)...

EFICIÊNCIA / A RELAÇÃO ESTRATÉGICA ALTERNATIVAS DE DECISÃO /EFEITOS

Especificando-se cada uma das antecipações de recursos-meios numa série-espectro de


alternativas de decisão, importará distinguir estas de acordo com os efeitos que previsivelmente
virão a produzir naquela realidade social específica. As perguntas possíveis: tendo em atenção
uma antecipação cientificamente plausível da (ou do tipo da) situação concreta de execução-
realização do programa de fins, que alternativa ou alternativas de decisão permitirão realizar o
programa de fins com os menores custos e os máximos benefícios? que custos e benefícios
devem ao fim e ao cabo ser tidos em conta? que regras de optimização (de potenciação dos
benefícios relevantes) prevê o programa final? é este programa ao fim e ao cabo realizável
naquele contexto de circunstâncias (com todas as suas variáveis)? Se os custos antecipáveis
forem excessivos, o programa não será decerto realizável (não obstante a relação de
explicabilidade que sustenta e conexiona fins e meios)!

MEIOS ALTERNATIVAS
Eficiência DE DECISÃO

Regras de optimização

EFEITOS
EFEITOS

«Em referência aos resultados a atingir na realização concreta, importa distinguir


a eficácia e a eficiência. A eficácia é uma categoria sobretudo técnica e refere, como é
bem sabido, a capacidade de atingir ou realizar os fins/objectivos através dos meios ou
instrumentos mobilizáveis, o que na linguagem tecnológica dos nossos dias se diz
também performance; já a eficiência é uma categoria estratégica e para pensar a
realização dos objectivos num certo todo de realidade, num certo contexto de
circunstâncias com que se tem de contar pelo seu relevo já potenciador, já desviante, já
impeditivo, e que, por isso, exigirá a definição de um ―princípio de optimização‖, i. é, a
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 69

intenção da melhor ou da máxima realização dos objectivos naquele contexto


circunstancial em referência aos efeitos aí possíveis. Se a eficácia é uma categoria
comum a qualquer funcional instrumentalização, a eficiência é principalmente invocada
no domínio da economia, razão por que a reencontraremos sobretudo no funcionalismo
jurídico social-económico...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições
proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp., (versão em
A4) p. 92].

2.4. A relação estratégia / táctica


O legislador-programador como estratega; os agentes da administração e os
juízes como tácticos.

Excertos de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«A relação entre, por um lado, o programa finalístico que pré-determina, numa


pressuposição selectiva e estratégica, os objectivos políticos, sociais, económicos, etc. –
objectivos que traduzem as opções jurídicas vinculantes impostas pelos órgãos com
legitimidade político-jurídica para tanto e que se especificam criteriologicamente nas
prescrições, de novo legislativas ou outras (regulamentares, estatutárias, etc.) – e, por
outro lado, a decisão em concreto será do tipo que em geral corresponde à relação
estratégia / táctica. A estratégia, agora como programa/planificação e não como
racionalidade, diz respeito - em todos os domínios práticos em que há que seleccionar e
decidir objectivos - a uma opção entre objectivos alternativos(...) [e a] uma coordenação
ou ordem de preferência (...) entre os objectivos seleccionados. A táctica, por sua vez,
considera as decisões que, no terreno ou nas suas circunstâncias particulares, e
actuando mediante complementos, correcções, desvios, etc. que essas circunstâncias
justificam, procuram que o êxito dos objectivos programados seja alcançado em
concreto ou eles se realizem da melhor forma ou adequação concretamente
possível. Assim, se o programa jurídico finalístico e a sua prescrição definirão a
estratégia jurídica a realizar, à decisão caberá a sua táctica realização concreta – e
pensa-se naturalmente na decisão dos órgãos jurídicos que a ela são especialmente
convocados, as entidades administrativas de execução e os juízes...» [CASTANHEIRA
NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão
em fascículos) pp., (versão em A4) p. 92].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 70

2.5. A exigência de um plano-núcleo intermédio... entre a planificação auto-


-subsistente da estratégia social e a execução táctica.
Indeterminado: (a) a indeterminação de uma planificação
PROGRAMA DE cujo tempo é o futuro;
(b) a indeterminação de um texto que, devendo ser muito
FINS rigoroso na identificação dos fins, mobiliza deliberadamente
fórmulas abertas (conceitos indeterminados, standards)

PLANO-NÚCLEO CRITÉRIOS DE RACIONALIZAÇÃO E DE CONTRÔLE DA


EXECUÇÃO TÁCTICA
INTERMÉDIO PRESCRIÇÕES Especificações introduzidas por
outros instrumentos legislativos
REGRAS E MODELOS Sistemas de enunciados
«tecnológicos» construídos pelo pensamento jurídico (ele
próprio justificado como uma tecnologia social)

«Os sistemas de enunciados tecnológicos são, em duas


palavras, sistemas de afirmações-Ausagen que consideram
possibilidades de acção... e que podem ser obtidos quando se
projectam afirmações teoréticas [i.e., informações dos discursos
empírico-explicativos) em ―contextos‖ de realização. Respondem
à pergunta : o que é que se pode ou o que é que se tem que fazer
para atingir determinados fins ou objectivos (Ziele). Afirmações
deste tipo são assim mobilizáveis para preparar decisões. Não
dizem ao sujeito-agente aquilo que ele deve (soll) fazer mas
aquilo que ele pode (kann) fazer ou tem (muβ) que fazer para
atingir esses fins específicos (...) ou pasa os atingir com um
determinado grau de êxito (maximizador)...» (Hans ALBERT)
Nas propostas associadas ao funcionalismo político,
também MODELOS DE PENSAMENTO/ACÇÃO
alimentados pelas reflexões-diagnósticos de uma
CRÍTICA DE IDEOLOGIA

EXECUÇÃO DECISÃO MAXIMIZADORA


TÁCTICA (ORIENTADA POR EFEITOS)
Consideração situada das Uma decisão que se traduz na escolha da alternativa que
coordenadas, factores e mais se aproxima da realização de certo tipo de benefícios
máximas da decisão (políticos, económicos, sociais) na mesma medida em que
evita ou reduz os custos correlativos
Excertos de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

«Só que o funcionalismo não fica, nem poderia ficar só pela determinação em
geral. Pois se pela programação (programação finalística), que procura eficácia e
quer ser eficiente, se pretende a racionalização dos objectivos e também da prática que
os visa, o certo é que a insuperável indeterminação desse plano, dado que a
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 71

determinação dos objectivos apenas se pode fazer aí com a generalidade que a


referência ao futuro unicamente admite, exige-se já por isso um outro plano de
racionalização, um outro contrôle dos comportamentos e das decisões. A tanto são
chamados os critérios que o funcionalismo, no seu particular projecto de racionalização
da prática, também não dispensa. Estamos aqui perante uma segunda exigência que o
normativismo não conhecia, já que para ele a determinação jurídica pelas normas (o
sistema dogmático de normas) oferecia uno actu também o critério jurídico nas normas
– as normas eram simultaneamente a determinação normativa e o critério normativo do
jurídico. Vimos como se tinha por viável esse monismo de determinação e critério –
abstraindo da intenção prático-normativa do direito numa conversão dogmático-
conceitual ou conversão lógico-dogmática da sua normatividade. O que o funcionalismo
não pode fazer, que seria mesmo contraditório com o seu entendimento da praxis
jurídico-social e com a funcionalização do direito. A materialização funcional do direito
exclui uma dogmática lógico-conceitual que neutralizasse tanto o compromisso prático
dos objectivos como a necessária mediação do acto concreto da sua realização – pelo
que será sempre própria dessa materialização funcional uma abertura, uma aberta
indeterminação que só esforços sucessivos, e em planos diversos, de racionalização
poderá minimizar, sem todavia a superar nunca de todo. Daí, justamente, que à
programação dos fins/objectivos acresçam critérios regulativos e de contrôle:
prescrições (legislativas ou outras) pelas quais o poder funcionalmente mobilizante do
direito imponha especificações à programação ou planificação; regras pelas quais o
pensamento jurídico, pensado e actuando também funcionalmente, procura uma melhor
racionalização finalística dos comportamentos e das decisões; modelos de
pensamento/acção ou estruturantes de um pensamento que o é de acção prática (...). Não
é impossível designar aquelas prescrições e regras também por ―normas‖ – o conceito
amplo de norma (...) não deixa de o admitir. Simplesmente, não confundindo também o
que há de diferente no sentido de normatividade constitutiva do conceito específico de
―norma‖ relativamente à racional funcionalidade que aqui está tão-só em causa – não
normas a definir uma normatividade que se pretende vinculante e imediatamente
aplicável, mas normas a orientar, num plano intermédio, a racional realização de uma
finalística programação ou planificação de objectivos.
Num plano intermédio, acabamos de dizer, pois que ao plano dos critérios terá
de acrescentar-se o plano da realização – e este também com especificação categorial.
Que, aliás, se reduz a uma categoria fundamental – a categoria de decisão. E
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 72

considerada esta no seu sentido específico, o acto com efeitos exteriores determinado
por um núcleo irredutível de voluntas e a traduzir-se materialmente, ou quanto ao
conteúdo, na opção entre alternativas possíveis. Pelo seu momento nuclear de
voluntas, a decisão será insusceptível de uma total redução racional que exclua o factor
pessoal e infungível do decidente; não admite nunca a sua determinação por necessidade
lógica, ou em termos de pensar-se ela uma mera ―aplicação‖ dedutiva de premissas,
embora seja objecto de formas de racionalização (pela ―teoria racional da decisão‖ (...))
através da conjugada atenção dada aos objectivos, aos critérios-regras e aos efeitos
previsíveis – o que todavia será sempre um contrôle só exterior, insusceptível de anular
aquele núcleo determinante último do seu conteúdo. A significar isto que à decisão
corresponde uma autonomia também irredutível, não obstante aquele contrôle.
Autonomia que o funcionalismo não recusará, pois vai ela decerto na sua própria lógica:
sem essa autonomia do decisor no caso concreto e nas circunstâncias da decisão ficaria
impossibilitada a adequada realização dos fins/objectivos nessas mesmas circunstâncias,
nas quais, e pelos efeitos que aí provoquem, aqueles unicamente se poderão ver ou não
logrados. Pelo que os três planos considerados, o da programação finalística, o dos
critérios e o da realização por decisão se nos ofereçam numa diferenciação
insusceptível de uma qualquer reductio ad unum, de um qualquer monismo
determinante – o programa/planificação, os critérios e a decisão são todos
complementarmente necessários e cada um na sua especificidade. A ter de reconhecer-
se assim que o funcionalismo é categorialmente de uma muito particular
complexidade...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano
lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp., (versão em A4) p. 93-94].

3. Tipo de racionalidade [3.1.], modus operandi [3.2.] e realidade


pressuposta [3.3.] pelos funcionalismos materiais.

Excertos de CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito...:

[3.1. O tipo de racionalidade: o sacrifício da Wertrationalität (a


racionalidade axiológico-normativa) à Zweckrationalität (a racionalidade
pragmático -finalística)]
« Referimos as categorias de inteligibilidade do funcionalismo jurídico em geral.
Pressupõem elas, no entanto, e estão ao serviço de um tipo específico de racionalidade.
Não já a racionalidade abstracto-genericamente conceitual ou axiomático-dedutiva que
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 73

vimos corresponder ao racionalismo normativista; não também a racionalidade


fundamentante e judicativa (fundamentantemente judicativa, segundo o esquema
fundamento-concludência concreta pela mediação de um juízo e em que a prioridade
racional é dada aos fundamentos e não aos fins ou aos efeitos), que reconheceremos
própria de uma juridicidade de sentido axiológico-normativo e a convocar uma
perspectiva jurisprudencialista; mas uma racionalidade que em termos gerais se dirá
finalístico-funcional, e a traduzir-se quer na ―razão instrumental‖ quer na ―razão
finalística‖ (Zweckrationalität) que, respectivamente, MAX HORKHEIMER e MAX WEBER
caracterizaram (...).
No prefácio à 2.ª edição do seu ensaio Zur Kritik der instrumentellen Vernunft,
começa HORKHEIMER por dizer melancolicamente: ―O facto de perceber – e de aceitar
dentro de si – ideias eternas que serviriam ao homem como metas era chamado, desde
há muito tempo, razão. Hoje, porém, considera-se que a tarefa, e inclusivamente a
verdadeira essência da razão, consiste em encontrar meios para lograr os objectivos
propostos em cada caso‖ – deste modo ―a razão realiza-se a si mesma quando nega a sua
própria condição absoluta (...) e se considera como mero instrumento‖. (...)
E resultados análogos obteremos invocando, já directamente no domínio da
razão prática, a Zweckrationalität definida por MAX WEBER. Importa, por isso, retomar
igualmente essa diferenciação e nos termos mesmos em que ela foi proposta em
confronto com a racionalidade também por MAX WEBER dita ―racionalidade axiológica‖
(Wertrationalität). Assim, a acção será zweckrational ―através de expectativas postas no
comportamento dos objectos do mundo exterior e dos outros homens e mediante a
utilização dessas expectativas como ‗condições‘ ou como ‗meio‘ para os próprios fins
aspirados ou considerados racionalmente como resultado‖; ou merece essa qualificação
―a acção orientada segundo meios, tidos subjectivamente por adequados para alcançar
fins subjectiva e claramente concebidos‖. A acção será wertrational, se determinada
―através da crença consciente no próprio valor incondicionado, em sentido ético,
religioso ou outro, de um determinado comportamento puramente como tal e
independentemente do resultado‖ (...). Sentidos e conceitos estes por muitos depois
retomados e reelaborados (...) e que encontraram em W. MAIHOFER (...) esta formulação
precisa: integra-se no primeiro tipo de racionalidade o comportamento humano que
―tem o seu fundamento no benefício ou no prejuízo, fundamento segundo o qual o
homem se deixa determinar como um sujeito inteligente (Verstandessubjeckt = sujeito
de razão abstracta ou de inteligência e utilidade): eu quero, porque isto me é útil‖,
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 74

integra-se no segundo tipo o comportamento que ―tem o seu fundamento em princípios


ou normas, fundamento segundo o qual o homem se determina como uma pessoa de
razão (Vernunftsperson = sujeito e pessoa de razão espiritual ou cultural) que
compreende o mundo do global ponto de vista da rectidão e moralidade: eu quero
porque tenho isto por recto, por bem‖...»

Os dois patamares da racionalidade finalística:

(a) instrumental (a pergunta pela eficácia) [relação meio /fim]


(b) estratégico tout court (a pergunta pela eficiência) [«O comportamento
racionalizado segundo [o esquema] meio/fim converte-se em comportamento
racional estratégico (...) quando (...) o ―meio‖ se especifica em diversas
possibilidades de acção entre os quais se opta em termos hipotético-
-condicionados pelos efeitos e segundo pontos de vista orientadores ou
regras que visam optimizar com essas possibilidades a prossecução do ―fim‖
ou do objectivo...»

[3.2. O modus operandi] « A terceira pergunta interroga pelo modelo metódico.


E é aquela que menos admitirá uma resposta geral, já que, sendo várias as modalidades
do funcionalismo jurídico que teremos de considerar, também em cada uma dessas
modalidades ele se revela com uma operatória específica. O que não exclui em absoluto
a referência a um esquema metódico fundamental em que, com mais ou menos adesão,
todas as modalidades do funcionalismo material comungam. (...)
Nesse sentido, diremos que em contraposição ao ―paradigma de aplicação‖,
próprio do normativismo, ocorre agora o ―paradigma de decisão‖ – o que era ali
―aplicação‖, a repetição em concreto e de modo logicamente determinado de uma
normatividade abstracta, é aqui a ―decisão‖, a continuação em concreto e em termos
decisórios de uma transitividade programática. Já o tínhamos compreendido: se no
normativismo a actuação jurídica culmina na aplicação a uma correlativa factualidade
de um dogmático sistema de normas, no funcionalismo culmina na decisão que assume
numa particular situação concreta o programa finalístico...»
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 75

Não apenas uma indeterminação inevitável


A indeterminação (correspondente ao seu carácter textual e /ou
programático)...
indispensável tanto ...também uma indeterminação (flexibilidade)
do deliberada....justificada pela antecipação da táctica
(ou pela exigência de ver na decisão concreta o
PROGRAMA DE FINS culminar de uma execução táctico-consequencial)
(ESTRATÉGIA) quanto das
prescrições, regras ou modelos
intermédios
«A intenção de performatividade e de eficiência, tendo de novo em conta a diversidade, a
variação e a sempre possível evolução dos contextos e das circunstâncias, exigirá uma qualquer
abertura, uma flexibilidade e mesmo uma indeterminação dos critérios, sejam eles prescrições
imperativas ou regras doutrinais – como que numa analogia com as comuns ―cláusulas gerais‖ –
, que permita a imputação de uma indispensável e irredutível autonomia decisória ao operador
concreto (ao decisor táctico), que é chamado a garantir e deverá orientar-se sempre, em último e
decisivo termo, pelo êxito funcional...»

O táctico, a actuar no terreno... deverá poder considerar um espectro de


alternativas de decisão (todas elas instrumentalmente adequadas) [eficazes]...
devendo optar por aquela que em concreto (e tendo em atenção uma certa
distribuição relevante de custos e de benefícios) se puder prever como a mais
eficiente (capaz de atingir o objectivo com menos custos)
« O que será estruturado fundamentalmente por dois tipos de esquemas metódicos
específicos. Um esquema decisório de índole especialmente técnica, se centrada a
perspectiva exclusiva e directamente nos objectivos seleccionados e programados, pois
que então, importando antes de mais a lograda realização imediata desses objectivos, o
esquema eficaz será o que se define pela adequada relação meio/fim. Um esquema de
índole especialmente estratégica (agora de racionalidade estratégica) quando, com
maior atenção às circunstâncias concretas do decidir ou operar que possam condicionar
a realização dos objectivos, e bem assim aos efeitos ou resultados efectivos que elas
permitam ou impeçam, o esquema mais eficiente já será o que se defina segundo um
princípio de optimização daquela realização tendo em conta os efeitos (os efeitos que
sejam possíveis e se vão verificando em concreto)....»

A execução táctica como decisão orientada por efeitos

« Tendo em conta os efeitos político-sociais, estritamente sociais, económicos, etc., que


previsivelmente, e mediante hipóteses alternativas de resultados, a decisão possa
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 76

provocar, assim esta, no espaço de autonomia que se lhe reconhece, deverá ser uma ou
outra, aquela que permita ou impeça os efeitos desejáveis ou indesejáveis – a decisão,
no seu próprio conteúdo, deverá ser função dos seus possíveis efeitos...»
A conversão da decisão judicial numa execução táctico-consequencial... a
aproximá-la implacavelmente da decisão administrativa: uma decisão que deixa de
corresponder ao tratamento imparcial de uma controvérsia concreta entre dois
sujeitos singulares... para ver nesta controvérsia apenas a situação-terreno (ou
uma das dimensões da situação-terreno) na qual o programa de fins vai ser
prosseguido e (eficientemente) realizado...

[3.3. A realidade pressuposta] « A um último ponto importa ainda atender


nesta caracterização geral do funcionalismo jurídico. É o que tem a ver com o modo
como ele vê a realidade referida pelo direito. Se o direito, como quer que se entenda,
não pode deixar de referir-se à realidade humano-social que o convoca, como sua
dimensão prático-regulativa, e em que ele terá de projectar a sua actuação, essa
realidade não é, porém, considerada sempre no mesmo e decisivo sentido pelo
pensamento jurídico. Antes cada perspectiva de compreensão da juridicidade terá como
correlato da sua intencionalidade prática uma visão específica dessa realidade. Foi assim
que vimos o normativismo a reduzi-la a um acervo analítico de ―factos‖, os factos
empíricos correlativos dos hipotéticos enunciados lógicos das normas – não a realidade
prática em que se manifesta a praxis humano-social da inter-acção, com as suas
dimensões próprias e os seus problemas práticos específicos, mas os factos apenas
admitidos pela subsunção nas normas e a provar empiricamente. O normativismo
verdadeiramente ignora, como podemos compreender, essa realidade na sua
especificidade – é ela para ele tão-só o campo de aplicação das normas. Enquanto que o
funcionalismo, bem ao contrário, não pensa o direito independentemente da realidade
social, nem a reduz a factos discretos, antes o vê em função dessa realidade pressuposta
na sua autonomia determinante, como o todo em que decorre a existência humana, com
as suas dimensões práticas independentes e a imporem-se como tais ao direito, as
dimensões política, cultural, social, económica, etc., que nessa sua pressuposição lhe
dirigem exigências e às quais ele se deverá funcionalizar. O funcionalismo pretende,
sabemo-lo já, que o direito assuma e satisfaça funcionalmente essas exigências e em
todos os seus planos de determinação e de realização. O que nos permite compreender o
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 77

seu apertado diálogo com a política, a sociologia, a economia, numa atitude


interdisciplinar, se é que não acaba mesmo por converter-se, nas suas formas mais
radicalizadas, numa ―ciência política‖, numa jurídico-sociologia, numa jurídico-
economia, numa teoria sistémico-jurídica....» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito
Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em A4) pp. 95, 97, 102 e
ss., 105 ]

4. Alusão brevíssima às possibilidades dos funcionalismos materiais: (a) os


funcionalismos políticos concentrados noutras tantas imagens do juiz político

«O funcionalismo jurídico político compreende o direito como um


instrumento político, em sentido estrito, e numa intenção expressa de politização da
juridicidade. E exactamente neste sentido: o direito assumiria um programa finalístico
de carácter político, os seus critérios seriam políticos e as suas decisões também de
sentido político. Não se limita, pois, a sublinhar a função política que o direito sem
dúvida sempre desempenha, enquanto um dos mais relevantes elementos de
organização, de garantia e de solução, de definição e de tutela dos padrões da existência
e da vida comunitária, enquanto é ele um capital elemento estruturante da polis – nem
era outro o autêntico sentido de dikaion politikon, traduzido para o latim por jus civile
[ius da civitas]; ou sequer significa apenas o reconhecimento dos efeitos políticos que a
existência e a realização do direito decerto também produzem ao intervirem na vida
social, tomando posição perante ela ou orientando-a num certo sentido; visa sim afirmar
que ao direito compete imediatamente e no seu específico sentido um objectivo político
– o seu objectivo constitutivo seria a realização normativa de um particular projecto e de
uma teleologia políticos – e ainda que, já por isso, os seus critérios seriam, a todos os
níveis da ordem jurídica, critérios políticos, assim como as decisões jurídicas da sua
realização concreta não menos, em último termo, do que decisões políticas, decisões de
compromisso político...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no
ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em A4) p.]

4.1. O juiz político táctico da Constituição: a solução em que convergem alguns dos
mais radicais neoconstitucionalismos do nosso tempo.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 78

«À Constituição caberia hoje definir o projecto político-social-jurídico das


sociedades independentes (politicamente independentes) e o direito não seria mais do
que o global sistema normativo em que esse projecto se assumiria e se haveria de
realizar. E segundo o processo de determinação e de realização que vimos próprio do
funcionalismo em geral: a Constituição definiria em termos fundamentais o
Zweckprogramm, programa político-social que o legislador, as instâncias prescritivo-
legislativas, determinariam subordinadamente através da lei, das prescrições
legislativas, e que os juízes realizariam, com fundamento imediato na lei mas em último
termo e decisivamente segundo a teleologia constitucional, nas suas decisões concretas.
O que se haveria ainda de entender com uma dupla significação. No projecto político-
constitucional encontrariam a sua definição todos os valores, os princípios, os fins e
objectivos com que a ordem político-jurídica se comprometeria e lhe impunham a sua
intencionalidade constitutiva – que tanto é dizer que a ―justiça‖ por que a ordem social
se deveria orientar não seria outra do que a justiça político-constitucional, a justiça tal
como a definia a Constituição (....). O que significaria não só a passagem do ―Estado-
de-direito‖, como ―Estado-de-legislação‖, para o ―Estado-de-constituição‖ ou o ―Estado
constitucional‖, como ainda a identificação em último termo da juridicidade com a
constitucionalidade, e a dizer-nos, portanto, que o sentido político, enquanto em último
termo o sentido decisivo desta, seria igualmente o sentido decisivo daquela. Esta uma
primeira significação. Uma segunda significação estaria na circunstância de as decisões
judiciais chamadas à realização concreta, com a relativa autonomia constitutiva ou
normativamente criadora que definitivamente se lhes reconhece – como já vimos, e a
poder dizer-se que ―a evolução do juiz como aplicador do direito para o juiz como
criador do direito é um problema do nosso tempo‖, que ―o direito judicial (Richterrecht)
se tornou o nosso destino‖ (R. WASSERMANN, Der politische Richter, 1972, pp. 32, ss.)
–, se haverem de orientar nessa sua constitutiva actividade decisória pelo projecto
político-constitucional, assumindo-o como o critério fundamental da sua
intencionalidade decisória. O que faria do juiz, e porque determinado nestes termos pelo
projecto político do programa político-constitucional, um ―juiz-político‖: se a
Constituição define um projecto político e programa normativamente assumir esse
projecto político-constitucional (ainda que pela mediação das determinações
legislativas, mas sempre constitutivamente para além destas), fazendo-o critério capital
da sua actuação normativo-decisória, seria a politicização que se exigiria do juiz e que
faria dele um ―juiz político‖ (R. WASSERMANN, Der politische Richter, cit. ). Tudo o
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 79

que implicaria o reconhecimento, e reconhecimento expresso (...) do carácter


politicamente instrumental do direito – o direito não seria mais do que o sistema
normativo-global em que se encontraria expressão regulativa e decisória um
programado projecto político...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições
proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em A4) pp. 120-121]

Estratégia social global: a Constituição [como programa político material


consensualmente determinado]. O juiz como táctico da Constituição (a generalização
do cânone «interpretação conforme à Constituição»).
Leitura indispensável: CASTANHEIRA NEVES, «A redução política do
pensamento metodológico-jurídico», Digesta, vol 2º, pp. 404-409 (na separata, págs.
33-40).
[A exigência de distinguir neoconstitucionalismos materiais, sustentados
numa racionalidade estratégica (aqueles que estamos a considerar presentemente e que
cabem com toda a propriedade no território dos funcionalismos políticos)... de outros
neoconstitucionalismos de sentido formal-procedimental (como aquele que vemos hoje
sustentado pelo paradigma comunicativo-discursivo de HABERMAS ]

Breve apontamento crítico


Uma atenção particular aos limites intencionais da Constituição enquanto
programa e texto que tem de ser interpretado e concretizado-realizado (e ao modo
como esta indeterminação ou open texture nos condena afinal ao círculo do pluralismo e
da diferença que se pretendia ter superado com a referência à voluntas do poder
constituinte e à hierarquização das necessidades-fins que este determinara): uma alusão
exemplar ao debate constitutional protestantism/ constitutional catholicism» (a hipótese
da «real Constitution» assumida por LEVINSON).
►►►►
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 80

Excurso: SANFORD LEVINSON e a crença


«protestante» na «verdadeira» Constituição
Ver http://www.utexas.edu/law/faculty/slevinson/

LEVINSON entende que o último referente da normatividade se nos oferece


precisamente na ordem-ordinans política e moral da «real» American Constitution —
ou mais rigorosamente, na mediação comunitariamente plural (e heterogénea) que
constrói essa ordem e que incessantemente a transforma (as a (…) «protestant» (…)
belief in the «real» Constitution, a Constitution that is not determined by those who
control it momentarily).
Significa isto reconhecer na judicial opinion do (United States) Supreme Court
— e no «cânone constitucional» que esta autoritariamente constrói (e que domina o
tratamento universitário do direito constitucional) — apenas uma mediação
hermenêutica possível… entre outras mediações hermenêuticas «igualmente legítimas».
Mas então e muito especialmente assumir a possibilidade e a «desejabilidade» de uma
espécie de protestantismo constitucional (which view each citizen as having the duty to
interpret the Constitution for herself) [«A protestant view of Court‘s authority (…)
assuming the legitimacy of individualized (or at least non hierarchical communal)
interpretation»)] — protestantismo hermenêutico este que, enquanto «tipo ideal», se
contrapõe precisamente a uma leitura católica (se não mesmo papista) dos fundamentos
e critérios da Constituição (ou à juricentric ou courtcentered view of the world que aqui
e agora corresponde a esta leitura) [«Under this view, interpretive ―catholics‖ look to a
central source of interpretive authority — for example, the United States Supreme
Court‘s interpretation of the Constitution, while interpretive ―protestants‖ might
recognize the authority of the political branches, social movements, and even individual
citizens to interpret the Constitution.(…) Sandy‘s [i.e, Sanford Levinson] articulation of
constitutional protestantism has struck a sympathetic chord with constitutional thinkers
who are critical of judicial supremacy and judicial review, and who seek to discover
alternative constitutional values in the work of legislatures, executive officials, social
movements, and ordinary citizens. Constitutional protestantism, which celebrates
individual conscience and constitutional values that arise from the bottom up, seems an
altogether useful corrective to constitutional catholicism, which, in the hands of the
current Supreme Court, at least, insists on a unitary meaning of the Constitution that
comes from the top down….» (BALKIN, «Idolatry and Faith: The Jurisprudence of
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 81

Sanford Levinson», Tulsa Law Review, vol. 38, 2003, 553 e ss. — texto escrito para um
volume de homenagem a LEVINSON, cit. na paginação proposta na Jack Balkin Home
Page, http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/idolatryandfaith1.pdf (extraído em
15-04-2004), 119)].
Cfr. «A Dialogue with the People, or a Juricentric View of the World? Why The Supreme
Court Should be Televised When it Announces Its Opinions» (23 de Julho de 2002) e «Why I Did
Not Sign the Constitution: With a Chance to Endorse It, I Had to Decline» (23 de Setembro de
2003), dois brevíssimos comentários publicados em Writ: Findlaw’s Legal Commentary,
http://writ.news. findlaw.com/commentary (extraídos em 10-04-2004).

Ver ainda «What Is The Constitution's Role In Wartime?:

Why Free Speech And Other Rights Are Not As Safe As You Might
Think» http://writ.news.findlaw.com/commentary/20011017_levinson.html. Sem esquecer as
duas importantes especificações problemáticas da constitutional protestant interpretation
enfrentadas por LEVINSON e BALKIN em «Constitutional Canons and Constitutional Thought»
(1998), in BALKIN/ LEVINSON (ed.), Legal Canons, New York, 2000, 400 e ss. e
«Understanding the Constitutional Revolution», Virginia Law Review , vol. 87, 2001, 1045 e ss.

4.2. A relação legislador estratega / juiz táctico «perturbada» por «estratégias»


alternativas. A(s) herança(s) do materialismo dialéctico.

Estratégia (política) dominante


ou hegemónica
Ordem jurídica estadual protegida pela máscara
de um pensamento jurídico formalista
... ferida de muitas aberturas, indeterminações e
incoerências...

Estratégia (política) alternativa


«Projectar uma prática jurídica alternativa à cultura
e prática dominantes ou hegemónicas a fim de, sem
romper a legalidade estabelecida, privilegiar os
interesses e situações daqueles sujeitos jurídicos
que se encontram submetidos por relações sociais
de dominação...»
Táctica Judicial Desafiada pelas duas estratégias... e então e assim (a) a assumir a
atitude politicamente conservadora que executa apenas a primeira... ou (b) a levar a
sério a atitude politicamente progressista que responde às indeterminações e
insuficiências da ordem jurídica dominante optando pela segunda (escolhendo as
alternativas de decisão cujos efeitos empírico-sociais mais claramente se aproximem da
segunda)... Juiz político
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 82

4.2.1. O movimento do «uso alternativo do direito» (enquanto movimento da


magistratura italiana, ligado à associação Magistratura Democrática, criada em 1964)..
Um ponto de partida heterogéneo (se não mesmo pluralista), que depois se especifica
numa autêntica «jurisprudência alternativa». A influência de G RAMSCI (e da «guerra de
posição») [«o direito como locus de disputa ideológica na ―guerra de posições‖, dentro
da sociedade civil, entre as classes em luta»]. A crítica à ciência do direito formalista e
muito especialmente ao normativismo. O sentido dominantemente metodológico do
movimento: a concertação (impossível?) de uma «teoria da interpretação ainda
tradicional» — apenas iluminada pelo reconhecimento da «indeterminação» dos textos e
pela denúncia da falsa unidade do ordenamento jurídico — com uma concepção
materialista-dialéctica da história e dos conflitos sociais (baseada nas categorias de
inteligibilidade «contradição», «totalidade», «superação», «praxis», «estratégia de luta»,
«direito hegemónico»)? A resposta de BARCELLONA: a exigência de superar a
caracterização puramente metodológica do movimento e de responsabilizar este por um
discurso (de emancipação) global [A aproximação recíproca entre as «massas» e os
magistrati del dissenso, a romper a barreira da especialização e os postulados da
«neutralidade» e do «isolamento» do juiz].

4.2. 2. Brevíssima alusão à experiência do alternativismo brasileiro. O horizonte global


de um pluralismo de critérios (a ordem das favelas, a «cultura» jurídica
institucionalizada dos Novos Movimentos Sociais) [«...o direito encontra-se inserido na
sociedade, transcende os órgãos estatais e caracteriza-se pela coexistência de diversos
sistemas jurídicos no mesmo espaço social...» (Luiz Fernando COELHO)], a permitir as
experiências-limite do «direito insurgente» e do «direito achado na rua» [o pluralismo
alternativista a reconhecer uma normatividade construída à margem do direito oficial, e,
por isso, alternativa relativamente a este último (capaz mesmo de se «insurgir contra
este)]. Uma matriz teorética mais heterogénea (que pode ir de uma assimilação da teoria
dos sistemas às propostas da «teologia da libertação»). O alternativismo a permitir a
«luta pelos direitos dos excluídos, numa prática judiciária contra o direito hegemónico».

4.2. 3. Um exemplo de «teoria crítica» centrada na «imagem» do juiz (João B APTISTA


HERKENHOFF).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 83

Excurso: A «TRÍPLICE PERSPECTIVA» DA «APLICAÇÃO DO DIREITO»


PROPOSTA POR JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF

«[O] juiz, ao aplicar o Direito, deve fazê-lo, simultaneamente, sob três


perspectivas: axiológica, fenomenológica e sociológico-política» (HERKENHOFF,
Como aplicar o direito..., Rio de Janeiro, 1986, pág. 83).
A perspectiva axiológica: o juiz a «ajustar a lei» à sua mundividência pessoal
(«aos seus valores», à sua «consciência», ao seu «mundo»). Uma compreensão da
dimensão axiológica sustentada exclusivamente numa representação subjectiva das
«valorações» (confundida com a inevitabilidade dos juízos de valor e das ponderações
práticas, se não mesmo da «crítica valorativa») [«A sentença do juiz (...) tem [sempre]
conteúdo axiológico, subjectivo, político. (...) Nunca deverá o juiz decidir com a norma
contra o que, em consciência, acredite ser a Justiça...»» (Ibidem, 84, 85 sublinhados
nossos)].
A «fixação na norma» como «posicionamento ideológico (...) conservador» e a
exigência de assumir, «com honestidade», uma opção «progressista» («uma pauta
axiológica e uma visão sócio-política de compromisso do Direito com o povo, não com
os privilégios») [«A lei é estática; o Direito é dinâmico. A lei estabiliza relações sociais,
garantindo o predomínio da classe e dos grupos que mais influíram na sua elaboração; o
Direito é história. (...). Defendo uma ideologia progressista, como a melhor escolha
axiológica que o juiz pode fazer...» (Ibidem, 96)]. Uma concepção particular da relação
ideologia (como horizonte de inteligibilidade intersubjectivamente assumido,
contraposto a outros horizontes de inteligibilidade) /axiologia (enquanto valoração
pessoal, subjectivamente consumada).
A insistência no problema da indeterminação dos textos legais e nas
possibilidades (na «quota de arbítrio») que estes oferecem: «a aplicação axiológica do
Direito não nega que o juiz deve manter-se dentro do sistema jurídico» (Ibidem, 95). A
impossibilidade de propor um modelo metódico (a preservação a problemática da
«teoria tradicional»): a norma como «linha de referência» ou «núcleo central do
ordenamento jurídico» [«Não se desprezará esse núcleo, como matéria-prima do labor
sistematizador do cientista do Direito. Mantido esse núcleo central, são, entretanto
amplíssimas as possibilidades valorativas e criativas do juiz...» (Ibidem, 95)].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 84

A perspectiva fenomenológica: o juiz a «ajustar a lei» à singularidade (à


«desigualdade social e humana») dos sujeitos julgados [«Tentar reencontrar a verdade,
nos dados originários da experiência. Descer ao homem julgado (...) na sua condição
humana (...). Interpelar a sua vida, o seu mundo, as suas circunstâncias (...), as suas
motivações (...), ingressar no campo geográfico da pessoa. (...) Fugir da violência de
exigir que o homem julgado suba à pauta dos valores do juiz, ou dos que fizeram a lei,
ou daqueles para os quais a lei foi feita...» (Ibidem, 100-101) ]. A aplicação dos critérios
jurídicos comprometida com a procura singular de um homo humanus (que a
«generalização e uniformização» dos critérios não está em condições de assumir).
Ficando por saber se essa «procura» se cumpre efectivamente como uma procura
irrepetível... ou se traduz antes uma projecção-especificação de «cânomes ideológicos»
pré-determinados...
A perspectiva sociológico-política: o intérprete-aplicador como «elo entre a
linguagem da lei (...) e a linguagem das aspirações e necessidades sociais»; a
compreensão do jurídico como «facto social» [«O sistema jurídico não é um sistema
fechado, mas aberto, penetrado pelo conjunto do sistema social. A decisão não se isola,
não se [converte numa] ilha: é condicionada pelos diversos fenómenos sociais, a
começar pelo económico... e actua (...) — produz efeitos — (...) para além do sistema
jurídico (Ibidem, 83, 103).] Uma orientação pelos efeitos sociais cientificamente
informada e político-ideologicamente sustentada [«Pode e deve o juiz descobrir o
Direito vivido pelo povo (...), se não mesmo o sentimento de justiça da comunidade (...).
Para o desempenho deste trabalho, há de ser um cientista e um artista. Cientista para, à
luz dos dados da economia, da sociologia e da política, entender que o direito não é um
departamento ilhado, dentro da estrutura social, razão pela qual a sentença judicial não
se pode desligar do contexto social global. Artista, cheio de poder criador, com
sensibilidade humana e antenas ligadas à alma do povo, para traduzir e sentir suas
aspirações. (...) A aplicação sociológico-política pode estabelecer uma maior
aproximação entre o direito e o facto social. Pode minimizar a tensão entre o direito
estatal e o direito social, reduzir o abismo entre os símbolos do legislador e os do povo,
contemplar a multiplicidade de culturas...» ((Ibidem, 108, 109,117)].
A simultaneidade convergente (se não circularidade) destas três perspectivas.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 85

4.3. O juiz político dos «Critical Legal Studies» (UNGER, KENNEDY, BALKIN):
brevíssima alusão

4.3.1. O movimento e as gerações de Scholars [(a) a geração moderna do compromisso


prático com a transformação (the leftist project); (b) a geração pós-moderna da
indeterninação (aesthetic experience / textual deconstruction); (c) a fragmentação (o
diferendo entre uma reflexão «universalista» e o critério da identidade]. Brevíssima
alusão aos movimentos dissidentes (concentrada no exemplo das Feminists Jurispru-
dences).

4.3.2. Uma postura reflexiva sustentada numa microcratologia e a determinar uma


crítica local (imanente) e uma teoria jurídica aplicada (que seja expressão das lutas
político-sociais). A exigência de propor (-«inventar») uma crítica e um pensamento
crítico que possam reconhecer-se dimensão dessa prática-teia sem lhe impor as
«promessas de reconciliação» de um código holístico. Os desafios da
microfenomenologia crítica e as respostas que estes permitem. As heranças de
NIETZSCHE e FOUCAULT.

4.3.3. Realismo e desconstrução: um diferendo ou um litígio, susceptível de ser tratado?


A herança de DERRIDA e de uma ética da alteridade, já para além do direito (enquanto
respeito incondicional pela singularidade e pela diferença).

4.3.4. Comunidade e moralidade política.

Para um desenvolvimento de alguns destes pontos, ler: Ana Margarida GAUDÊNCIO,


«―Law is politics‖: propostas do Critical Legal Studies Movement», disponível no nosso
Material de Apoio [ler todo o texto, concentrando-se muito especialmente nos temas
tratados nas pp. 1-4, 23-29].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 86

3. Alusão brevíssima às possibilidades dos funcionalismos materiais: (b) Os


funcionalismos tecnológico-sociais (a «alternativa da ciência» — uma
pragmática de fins e efeitos interdisciplinarmente esclarecida)

Para uma síntese, ler «Entre o ―legislador‖, a ―sociedade‖ e o ―juiz‖ ou entre


―sistema‖, ―função‖ e ―problema‖ — os modelos actualmente alternativos da realização
jurisdicional do direito», cit., pp.27-28 («Diferente é o funcionalismo social...») [também
disponível em http://www.uc.pt/fduc/galeria_retratos/castanheira_neves/artigos]

3.1. Funcionalismo tecnológico em sentido estrito: o exemplo do teleologismo


tecnológico de Hans ALBERT

3.1.1. A reafirmação metódica (crítico-epistemologicamente sustentada) da


especificidade e da unidade (empírico-explicativa) do(s) discurso(s) científico(s). Uma
concepção do discurso científico assimilada de POPPER e assim baseada no método
crítico da tentativa e do erro e na ideia da «sociedade aberta».
░«Como todas as grandes ideias, a da auto-emancipação pelo conhecimento tem, como sabemos, os
seus perigos evidentes. É, não obstante, uma excelente ideia. De qualquer modo, adoptámo-la. (...) A
tarefa mais importante para os cientistas (...) é evidentemente fazer um bom trabalho nos seus campos
específicos. A segunda tarefa é evitar o perigo de uma especialização estreita: um cientista que não
tenha um interesse ardente pelos outros campos da ciência exclui-se da participação nessa
autolibertação através do conhecimento, que é tarefa cultural da ciência. Uma terceira tarefa consiste
em ajudar os outros a entender o seu campo e o seu trabalho, o que não é fácil. Significa reduzir o
jargão científico ao mínimo o jargão de que muitos nos orgulhamos, quase como se de um brasão ou
sotaque de Oxford se tratasse. (...) Uma sociedade aberta (isto é, uma sociedade baseada na ideia
de respeito pelas opiniões dissidentes e não na sua simples tolerância) e uma democracia (isto é,
uma forma de governo dedicada à protecção de uma sociedade aberta) não podem florescer se a
ciência se tornar posse exclusiva de um conjunto fechado de especialistas...» (The Myth of the
Framework, London,1996, cit. na tradução port. O mito do contexto, Lisboa, 1999,pp. 139-
140).
▓«There can be no human society without conflict. Such a society would be a socioety not of friends
but of ants. Even if it were attainable, there are human values of the greatest importance which would
be destroyed by its attainment, and which therefore should prevent us from attempting to bring it
about. On the other hand, we certainly ought to bring about a reduction of conflict. So alredy we have
here an example of a clash of values and principles. This example also shows that clashes of values
and principles may be valuable, and indeed essential for an open society. One of the main arguments
of The Open Society is directed against moral relativism. The fact that moral values or principles
may clash does not invalidate them. Moral values or principles may be discovered or even invented.
They may be relevant to a certain situation, and irrelevant to other situations. They may be accessible
to some people and inaccessible to others. But all this is quite distinct from relativism; this is, from
athe doctrine that any set of values can be defended… » (Unended Quest. An Intellectual
Autobiography, London, 6ª ed., 1982, cit., p. 116)
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 87

Hans ALBERT (empobrecendo a lição de POPPER?) confunde o Direito que


civilizacionalmente nos interpela e responsabiliza com as exigências do Estado-de-direito projectado
pelo Iluminismo (e com a experiência histórica do constitucionalismo)... vendo na Jurisprudenz
tecnologicamente concebida um elemento-condição imprescindível de assimilação lograda dessa
herança: «O pensamento jurídico (Jurisprudenz) de que estamos a falar (...) é um resultado do
desenvolvimento europeu do direito e do seu discurso bem como do Estado-de-Direito e do Estado-de-
Constituição da modernidade, um desenvolvimento que, considerado na perspectiva da história
universal, representa decerto uma excepção. (...) A emergência do Estado-de-Direito é um resultado do
caminho específico percorrido pela Europa, um resultado, se quisermos, do ―milagre europeu‖… mas
é também um produto da cultura europeia que só com dificuldade pode ser exportado, ainda que a
discussão mundial em torno dos direitos do homem mostre que por toda a parte se manifestam fortes
interesses em o seguir (...) O constitucionalismo, que envolve o compromisso da política (e então
também do exercício do poder-domínio) com o direito, pertence evidentemente e desde o início
àqueles ideais que influenciaram um tal desenvolvimento, permitindo e cunhando uma autêntica
cultura jurídica europeia transnacional. (...) Como é que o pensamento jurídico, no quadro desta
cultura específica, pode hoje cumprir melhor a sua função?(...) Na minha opinião (...) mobilizando os
meios de uma tecnologia social (sozialtechnologishen Mitteln)...» (Hans ALBERT,
Rechtswissenshaft als Realwissenschaft. pp. 24 e ss)

A metodologia clássica do pensamento racional: a «procura de um ponto arquimédico para o


domínio-Bereich do conhecimento sustentada nos postulados da razão suficiente (principium rationis
sufficientis) [«Procura uma fundamentação suficiente para todas as tuas convicções e (ou) para os
enunciados que as traduzem» (Suche stets nach einer zureichenden Begründung aller deiner
Überzeugungen)] e do monismo teorético [«Se solucionas um problema e a tua solução é
fundamentada, esta não precisa de voltar a ser posta em questão. Todos os enunciados que a recusem
são falsos... » «É exigível que cada concepção verdadeira aspire a constituir-se como a teoria certa
(richtige) para o domínio a que diz respeito, excluindo (recusando) assim todas as possíveis
alternativas. À verdade só se podem com efeito contrapor falsas alternativas. Mais do que isso, um
pensamento que se desenvolve explorando alternativas (ein Denken in Alternativen) é incompatível
com a ideia de verdade...»]. A superação deste método defendida por Hans ALBERT: um discurso
sustentado no princípio da experimentação crítica (Das Prinzip der Kritischen Prüfung) e no postulado
do pluralismo teorético (als theoretischen Pluralismus). A discussão crítica que «questiona todos os
enunciados», que «renuncia a todas as certezas autoproduzidas» e que (iluminada pela provação da
«tentativa e do erro») nos «aproxima da verdade» («sem nos proporcionar certezas»). Uma dialéctica
que se cumpre na tarefa da falsificação (sem se confundir assim com qualquer outro modelo
dialéctico) [«uma procura de instâncias que não sejam unânimes», «uma procura de contradições-
Widersprüchen, indispensáveis se quisermos aproximar-nos da verdade» ou «assumir o seu desafio
condutor»]. Mas uma dialéctica então que exige mais do que uma procura de «factos-fenómenos
contrários» (konträren Tatsachen)... que exige também a «procura de concepções teoréticas
alternativas» (capazes elas próprias de iluminar outros problemas ou outras dimensões do problema»).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 88

3.1.2. A unidade metódica das decisões legislativa, administrativa e judicial


3.1.2.1. O núcleo do processo de racionalização: a intervenção legislativa. A
planificação auto-subsistente da estratégia social (também na sua expressão
«constitucional»), a exigir o contributo decisivo de um discurso jurídico
tecnologicamente determinado. Um discurso (eine sozialtechnologishe Disziplin) capaz
de articular o rigor cognitivo de um saber nomológico com a especificação «prática» de
uma ordem de fins e de um sistema de meios e alternativas de decisão, quando não já
com uma consciência auto-reflectida das «características de desempenho-performance»
(Leistungsmerkmalen) que a articulação destes elementos (instrumentais e estratégicos)
vai permitir.

3.1.2.2. A exigência de compreender os problemas da execução administrativa e


da realização jurisdicional na perspectiva de um teleologismo tecnológico (incompatível
com a especificidade «dogmática, normativa e hermenêutica» do pensamento jurídico
tradicional e com os recursos que este mobiliza). Como se apenas uma «diferença de
grau» (e não uma «diferença essencial») separasse estes dois problemas
(inevitavelmente confundidos nos seus processos de decisão e nos exercícios de
«fantasia prática» que justificam) daquele que corresponde à construção (-
determinação) da estratégia legislativa.

3.1.2.3. A possibilidade de racionalizar o programa de fins do projecto


legislativo mobilizando uma espécie de princípios-ponte
(explicabilidade/realizabilidade/congruência) e com eles três exercícios de
experimentação-contextualização sustentados em planos inconfundíveis:
— o da possibilidade empírico-explicativa (reconhecida na universalidade
relacional dos elementos objectivos que a própria explicação conexiona) [a perguntar
se o projecto legislativo assenta numa conexão cientificamente comprovada (se há uma
hipótese explicativa cientificamente corroborada que articule meios e fins, alternativas
de decisão antecipadas e efeitos desejados): «se mobilizarmos estes recursos-meios, que
probabilidades cientificamente testadas temos de atingir os fins seleccionados e os
efeitos empíricos que os traduzem? ];
— o da eficiência da execução-realização (justificada como uma antecipação da
situação concreta e da táctica que esta determina, no contexto relacional das diversas
decisões possíveis) [a perguntar se o projecto legislativo cientficamente possível é afinal
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 89

realizável naquele tecido social específico e no cruzamento de circunstâncias que o


constituem («até que ponto é que a realização deste projecto não implica mais custos do
que benefícios?») ];
— o da interpretação «objectiva» do mundo [um programa de fins do nosso
tempo tem de ser congruente com as intenções dos discursos científicos, não pode
continuar a viver de «sobrevivências metafísicas», mobilizando conceitos como os de
«autonomia», «culpa», «responsabilidade»...].
Leitura indispensável: CASTANHEIRA NEVES, «Apontamentos complementares de
Teoria do Direito (Sumários e Textos)», disponível no nosso Material de Apoio , pp.
10-13.

3.2. Funcionalismo tecnológico em sentido estrito e jurisdição


A reconversão do poder judicial (aberta pelas possibilidades-exigências do Estado
Providência) de que OST nos dá conta quando caracteriza o juge-entraineur.
Os «três modelos de juiz» (ou «tipos ideais de justiça») e os critérios jurídicos e
políticos que os sustentam: um modelo de justiça «consuetudinária»-tradicional (juiz
pacificador, sociedade fortemente integrada, interiorização-assimilação de uma ordem
de valores, economia pré-capitalista), um modelo de justiça legalista-liberal (juiz
árbitro, sistema político autónomo, «societas» como «colecção de indivíduos»,
separação dos poderes, lei como expressão de uma universalidade racional e de uma
«volonté génerale», paradigma da aplicação, economia de mercado, «libertação dos
arbítrios»), um modelo de justiça «normativa»-tecnocrática (juiz empreendedor ou juiz
gestor, sociedade pós-industrial, Estado planificador e intervencionista, lei como
programa final, direito como «instrumento activo da mudança social» e como «técnica
de gestão»). A unidade das decisões legislativa, administrativa e judicial: a
radicalização do modelo do juiz táctico.

Para uma síntese, ler «Entre o ―legislador‖, a ―sociedade‖ e o ―juiz‖ ou entre


―sistema‖, ―função‖ e ―problema‖ — os modelos actualmente alternativos da realização
jurisdicional do direito», cit., p.30 [também disponível em
http://www.uc.pt/fduc/galeria_retratos/castanheira_neves/artigos]
Para saber um pouco mais sobre a compreensão do juiz administrador (juge
entraîneur), ler CASTANHEIRA NEVES, «Apontamentos complementares de Teoria do
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 90

Direito (Sumários e Textos)», disponível no nosso Material de Apoio , pp. 14-16


(«Relativamente à função judicial, é bem elucidativo o modelo de juiz tecnocrata...»)

3.3. Análise económica do direito e jurisdição: brevíssima alusão à concepção de


POSNER

Comece por ler CASTANHEIRA NEVES, «Apontamentos complementares de


Teoria do Direito (Sumários e Textos)», disponível no nosso Material de Apoio , pp. 17-
21. A seguir, procure compreender a proposta (regulativa) de P OSNER relativa à decisão
judicial e aos efeitos (de maximização da riqueza) que esta deverá privilegiar (no
quadro das possibilidades que os materiais jurídicos vinculantes admitem ou no quadro
que a indeterminação destes materiais converte numa espécie de área aberta). Para
compreender tal modelo de decisão, é indispensável ter presente que este parte de uma
reconstituição hipotética do caso-controvérsia (e das posições das partes) submetida ao
modelo ideal do mercado competitivo perfeito (na mesma medida em que baseada na
presunção de que estas partes se devem compreender como sujeitos racionais
maximizadores): uma reconstituição que há-de ser capaz de atribuir a cada uma das
partes uma pretensão de valor (relativa ao bem ou serviço cuja titularidade jurídica se
«transacciona»)... Uma pretensão à qual as noções de riqueza, maximização e valor
conferem uma transparência exemplar. Ora estas noções... inscritas num programa
complexo (mas cada vez mais nítido) de ruptura, com o utilitarismo em geral e com a
herança de BENTHAM em particular (cuja «repulsive logic» haverá por assim dizer que
superar... e não apenas que corrigir!5).

5
POSNER, Frontiers of Legal Theory, pp. 97-98. «Since utility is more difficult to estimate
than wealth, a system of wealth maximization may seem a proxy for utilitarian system, but it is
more; its spirit is different. Wealth maximization is an ethic of productivity and social
cooperation — to have a claim on society‘s goods and services you must be able to offer
something that other people value — while utilitarianism is a hedonistic, unsocial ethic...» (The
Problems of Jurisprudence, p. 391). Importa ter presente que o percurso de POSNER (a partir do
«salto» assumido na edição de 1972 da Economic Analysis of Law) corresponde a uma
exigência de superar o utilitarismo hedonista e cardinal de BENTHAM sustentada em duas frentes
de argumentação distintas: α) a primeira a «demonstrar» as dificuldades objectivas de realização
do princípio da utilidade (a impossibilidade de maximizar a utilidade «comparando e
agregando satisfações e níveis de felicidade de sujeitos diferentes»);β) a segunda a denunciar os
perigos do que (com NOZICK) diz o monstro da utilidade— perigos que resultam por um lado da
impossibilidade de confrontar e hierarquizar «classes de prazer» e por outro lado da
possibilidade-licenza de sacrificar a liberdade individual (impondo-lhe soluções autoritárias
baseadas na «definição» do interesse comum) [The Economics of Justice, pp.64-65].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 91

Bastando-nos aqui e agora recordar6 que a riqueza traduz a «soma de todos os


objectos existentes na sociedade que podem ser medidos pelo valor» (the summation of
all the valued objects, both tangible and intangible, in society, weighted by the prices
they would command if they were to be traded in [perfect] markets7) e que o valor —
«monetariamente determinável»… e não obstante tão livre das market failures que
condicionam a fixação do preço8 quanto das dificuldades de determinação que afectam a
representação-comparação da(s) utilidade(s)9 —, esse mede-se objectivamente por
aquilo que os sujeitos comprometidos numa relação intersubjectiva (real ou hipotética,
explícita ou implícita10) estão efectivamente dispostos a (isto é, querem e podem) pagar
por um determinado bem ou serviço… ou por aquilo que exigem ou exigiriam para
renunciar a este(s)... — decerto porque (a contabilização do) valor implica
necessariamente (uma representação da) utilidade (the willingness to satisfy a need or
preference(...) as a basis for the (...) willingness to pay) mas (a representação da)
utilidade não implica necessariamente (uma contabilização do) valor (the possibility of
paying). Com duas reservas pragmáticas decisivas, justificadas pela experiência da
reciprocidade inter-relacional e pela exigência de autonomia-liberdade que esta

6
Sem esquecer decerto que a descoberta do critério da maximização da riqueza nos é
apresentada por POSNER como uma experiência lograda de especificação-superação do modelo
de PARETO (Pareto optimality/Pareto superiority) [The Economics of Justice, pp. 54-55, 79, 88 e
ss]. Ora uma experiência que se cumpre numa (e como uma) reinvenção transformadora do
princípio da compensação potencial (dos perdedores) de Nicholas KALDOR e John HICKS
(«Verificando-se sempre perdedores e ganhadores, um estado de coisas é superior a outro se o
resultado da transformação que os conexiona se traduzir numa compensação social dos
perdedores pelos ganhadores»)[The Economics of Justice, pp. 91-94].
7
Frontiers of Legal Theory, 98.
8
O valor só corresponde ao preço no mercado competitivo perfeito! «Efficiency will be
achieved if the ideal of the perfect market is implemented (...): a perfect market is one
characterized by perfect knowledge on the part of the traders ― in a perfect market no buyer
ever pays more than any seller will accept, and no seller accepts less than any buyer will pay…»
(George STIGLER, apud Jeanne SCHROEDER, «The End of the Market…»).
9
The Economics of Justice, cit., 70.
10
Trata-se evidentemente de cruzar duas classificações imprescindíveis, contrapondo aos
real explicit markets (e à institucionalização normativa que os disciplina, em domínios
específicos do direito fiscal e comercial, da propriedade e dos contratos), uma (como que)
sistematização plausível dos implicit markets (e das instâncias de apparent non market
behavior que lhes correspondem). Sem esquecer que há aqui que invocar as noções de mercado
implícito tout court (que cobre mercados como os da educação ou da família... ou o das opções e
crimes sexuais... enquanto autorizam um confronto possível dos serviços ambicionados com
outros tantos serviços de substituição «vendidos em mercados explícitos») e de mercado
implícito hipotético (justificada por mercados como o dos acidentes... nos quais custos de
transação muito elevados impedem uma solução eficiente prosseguida no mercado real,
impondo assim um sistema regulatório de transações involuntárias). Para um desenvolvimento ,
cfr. The Economics of Justice, pp. 88 e ss. («The Consensual Basis of Efficiency»), 54-55, 61-
63.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 92

assimila: a primeira a excluir do âmbito de relevância do critério da maximização da


riqueza as situações hipotéticas em que o bem ou serviço a ser afectado constitui parcela
importante do património disponível de um dos sujeitos (when a good is a large part of
the wealth of an individual, the wealth maximizing allocation of the good may be
indeterminate11); a segunda a autonomizar uma dimensão de consentimento e a
legitimá-la como um momento constitutivo indispensável da representação-
contabilização do valor — a exigir que a vontade (e de certo modo também a
possibilidade) de aceitar de um dos sujeitos se imponha como condição de relevância da
vontade e possibilidade de pagar do outro sujeito (willingness to accept rather than
willingness to pay as the measure of value when the policy whose costs and benefits of
which are being measured takes away propriety rights12). O que não é senão assumir a
prevalência do consenso (consumado nas transações do mercado) sobre a coacção
(perpetrada á margem deste ou da sua racionalidade) 13.
Mobilizando todos estes elementos, procure por fim responder às duas questões
seguintes:
(a) «A é proprietário de uma colecção de selos; está disposto no entanto a
vender tal colecção por um preço igual ou superior a 15000 € (decerto
porque considera que melhorará a sua situação). B é um poderoso
coleccionador e está disposto a ir até ao montante de 50000 € para adquirir
a colecção de A...». Concentrando-se no modelo de POSNER, procure
primeiro reconstituir todos os elementos que sustentam o critério da
maximização da riqueza (e este como modelo metódico assimilável pela
decisão judicial). Num segundo momento, dirija-se ao exemplo proposto e

11
Frontiers of Legal Theory, cit., 100.
12
Frontiers of Legal Theory, cit., 122. Trata-se aqui e agora de responder recto itinere a
um problema-exemplo invocado por John BROOME («That of a forced uncompensated transfer of
a table from a poor person to a rich person»).
13
O que significa evidentemente reconhecer a legitimidade de um exercício de coacção
que se proponha (e na medida em que se proponha) garantir a racionalidade do mercado: sob o
modus e nos limites de uma simulação ou de um complexo de simulações regulatórias
[«...―market mimicking‖ forms of regulation.(...) dealing (...) with monopoly, externalities, and
other conditions that prevent the market from working well...» (Frontiers of Legal Theory, cit.,
99)]. Uma exigência que nos restitui directamente ao núcleo de representação das funções do
direito (na sua inteligibilidade normativa): «The most ambitious theoretical aspect of the
economic approach to law has been the proposal of an unified economic theory of law in which
law‘s function is understood to be facilitate the operation of free markets and, in areas where
the costs of market transactions are prohibitive, to ―mimic the market‖ by decreeing the
outcome that the market could be expected to produce if market transactions were feasible...»
(Ibidem, 5).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 93

procure mostrar quais são as pretensões de valor de A e de B e qual é a


«riqueza» imputável a cada uma das hipóteses de situação (S) envolvidas
(antes e depois da venda do quadro) [S1 .....> S2].
(b) No seu diálogo crítico com a Law and Economics proposto em Law’s
Empire — enquanto pergunta se «temos um dever de maximizar a riqueza»
(Do We Have a Duty to Maximize Wealth?) —, DWORKIN apresenta o
seguinte exemplo: «Imaginemos um homem pobre e doente [A], que
precisa de um medicamento e que nesse sentido está disposto (is willing to)
a vender um livro favorito, a sua única fonte de prazer, pelos cinco dólares
que o medicamento custa. O vizinho deste homem [B] é o famoso (e rico)
neto do autor do referido livro (...) e está disposto a pagar dez dólares para
possuir o livro, tanto mais que sabe que, se o autografar, o poderá vender
por onze dólares (...). A riqueza agregada da comunidade aumenta se o
livro for retirado a A e entregue a B, mais ainda do que aumentaria se
tivesse havido (ou se pudesse haver) uma transacção negociada entre A e
B: a transferência forçada do livro de A para B evita com efeito os custos
de transacção14 de uma tal negociação...» Concentrando-se no modelo de
POSNER, procure primeiro reconstituir todos os elementos que sustentam
o critério da maximização da riqueza. Num segundo momento, dirija-se ao
exemplo proposto e procure mostrar quais são as pretensões de valor de A
e de B e qual é a «riqueza» imputável a cada uma das hipóteses de situação
(S) envolvidas (antes e depois da transferência do livro) [S1 .....> S2]. Será
aquele critério de maximização mobilizável para apreciar tais pretensões de
valor (e tais hipóteses de situação)? Como é que avalia o exemplo
esboçado por DWORKIN? Será este um exemplo adequado para discutir
criticamente a proposta de POSNER?

14
Segundo COASE, os custos de transacção (specific transaction costs) serão obstáculos às trocas
livres «inscritos» nos processos de negociação (que transaccionam legal entitlements). Que obstáculos?
Os que resultam das dificuldades de informação e do percurso para as obter, do comportamento
estratégico das partes, do oportunismo justificado pelas situações de poder, da mediação dos advogados,
do tempo e do esforço do regateio, das exigências de forma, das pré-determinações dos direitos
normativamente prescritas...
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 94

4. Alusão (mais breve ainda!) às exigências do funcionalismo sistémico

Comece por ler CASTANHEIRA NEVES, «Apontamentos complementares de Teoria do


Direito (Sumários e Textos)», disponível no nosso Material de Apoio , pp. 23-29 [ver
também a síntese proposta em «Entre o ―legislador‖, a ―sociedade‖ e o ―juiz‖ ou entre
―sistema‖, ―função‖ e ―problema‖ — os modelos actualmente alternativos da realização
jurisdicional do direito», cit., pp. 28 («e uma palavra também» e 31 («Será porventura
diferente no que toca ao funcionalismo sistémico...») {também disponível em
http://www.uc.pt/fduc/galeria_retratos/castanheira_neves/artigos}
Procure sobretudo compreender:
(a) o theoretical turn assumido por LUHMANN ([als] Wende zur Theorie selbst-
referentieller Systeme15) protagonizado pelo paradigma autopoiético — num confronto
explícito com a representação cibernética da abertura ou da adaptação co-variante16 (e
com o modelo de comportamento-acção pré-determinado por PARSONS17);
(b) o sentido da clausura operativa... — enquanto combina funcionalmente
expectativas cognitivas e normativas18

15
«Die Einheit des Rechtssystems», Rechtstheorie 14 (1983), p. 133. Nos termos exemplarmente
sintetizados por este ensaio, trata-se, como sabemos, de assumir como desafio a concepção de um sistema
que se quer auto-referencial, isto é, capaz de produzir (herstellen) a sua própria unidade («de produzir
como unidade aquilo que mobiliza-utiliza como unidade»): de tal modo que esta não resulte da
convocação de um princípio (Prinzip, Idee, Gesetz) mas da circularidade e recursividade imanente aos
elementos que integram o sistema [Ibidem, pp.129-131]. Sendo certo que por estes elementos (últimos)
se entendem sempre «comunicações» (die Gesllschaftsystem besteht aus sinnhaften Kommunikationen
(…), nur aus Kommunikationen und aus allen Kommunikationen) [Ibidem, p. 137]. Sem esquecer
evidentemente que se trata também de justificar a transposição (teoretico-sociologicamente relevante) das
exigências de um sistema que se diz autopoiético («capaz de constituir-produzir os elementos que o
compõem através dos elementos de que se compõe») —... e de tal modo que «a unidade (que para o
sistema é indecomponível) de cada um dos elementos só possa ser constituída através do sistema»... mas
de tal modo também que as «fronteiras» que o sistema impõe sejam rigorosa e implacavelmente «as suas»
[Ibidem, pp. 131-134 (II)].
16
Trata-se de mobilizar criticamente as «insuficiências» da «reflexividade cibernética» (als
Theorie kommunikativer Systeme) [cfr. «Kybernetische Regelung», Zweckbegriff und Systemrationalität.
Über die Funktion von Zwecken in sozialen Systemen, J.C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen 1968,
pp.107 e ss.] mas sobretudo as «perplexidades» e os «paradoxos» que a exigência de «adaptação co-
variante» (que lhe é correlativa) impõe ao problema-desafio da diferenciação social — tomada a sério als
Ausdifferenzierung (e então e assim sempre submetida à ameaça da indiferenciação-Entdifferenzierung)
[ver (entre muitas outras referências possíveis) Das Recht der Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, 1993,., pp. 26-31 e 550 e ss. («Die Gesellschaft und ihr Recht»)].
17
«Anders als in der Parsonsschen Theorie des allgemeinen Handlungssystems sehen wir
funktionale Diferenzierung als ein evolutionäres Produkt und nicht als eine logische Folge der Analyse
des Handlungsbegriffs…» (Ibidem, p. 585)
18
Tenhamos presente a síntese proposta em «Die Einheit des Rechtssystems», cit., pp.138-143
(V). Recordemos que a expectativa «beneficia de uma qualidade normativa (Sollqualität) sempre que, ao
compreendê-la, se determina também que ela não terá que ser alterada quando se experimenta a sua
frustração, violação ou não realização (im Enttäuschungsfalle)». Para as expectativas cognitivas (que
exprimem uma Wissensqualität) as exigências são precisamente as opostas (a falsificação é aqui
determinante). Ora o sistema de direito «precisa» desta distinção» para «combinar a clausura da
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 95

(c) uma concepção da «realidade jurídica» (die juristische Wirklichkeit) que se


nos expõe invariavelmente como o «correlato» (e nada mais do que o correlato) de um
modo de comunicação «auto-referencialmente construído» (das Korrelat einer
selbstreferentiellen Operationsweise) 19 — modo este que, por sua vez, se pretende tão
livre das pretensões constitutivas de um compromisso de unidade (e da ideia, princípio
ou objectivo-fim que o pré-determina e que o conduz)20 quanto performativamente
garantido pela diferenciação-Unterscheidung codificação/ programação (ou por esta
como uma forma de comunicação interna);
(d) a preservação de uma lógica binominal rigorosa… que encontra o seu
primeiro passo na reafirmação (-produção) em toda a sua transparência do código Recht
/ Unrecht21 (ius/ iniuria22, positivamente valorado pelo direito/ negativamente valorado
pelo direito, «justo»/ «injusto», lícito / ilícito, legal / ilegal);
(e) a semântica suplementar23 da programação... [E não de qualquer
programação. Mas daquela que corresponde a uma exigência de condicionalidade — à
exigência de condicionalidade que, sob o modo do esquema «se… então» (Wenn-Dann-
Form), ilumina o sistema jurídico… e que assim, enquanto «mecanismo» ou «técnica de
construção», combina funcionalmente expectativas cognitivas e normativas, abertura
cognitiva e clausura normativa 24(Recht ist Recht bzw. kein Unrecht, wenn die in den
Programmen des Rechtssystems angegebenen Bedingungen erfüllt sind25).

autoprodução recursiva com a abertura da sua relação com o meio». Enquanto constrói um sistema
normativamente fechado e cognitivamente aberto? Bem o sabemos. Normativamente fechado porque
«livre de fins» ou de um «fim» materialmente traduzível… e de tal modo que só o sistema possa conferir
«qualidade normativo-jurídica» aos seus elementos; cognitivamente aberto porque submetido à exigência
de («em relação a cada um dos elementos do sistema e em relação à sua reprodução permanente») ter que
determinar se certos «pressupostos» («factuais») se cumprem ou não. O que nos permite concluir que, se
a «qualidade normativa serve a autopoiesis do sistema, a sua autopreservação (Selbstkontinuierung) na
diferença perante o meio-Umwelt», a «qualidade cognitiva serve a exigência de coordenação-
Abstimmung (sintonização, sincronização)» com o mesmo meio [p. 139].
19
«Einheit», cit., p. 134.
20
Como se sabe esta é uma das determinações decisivas da auto-referencialidade: ver supra,
nota 18.
21
«Dank des binären Codes gibt es einen positiven Wert, wir nennen ihn Recht, und einen
negativen Wert, wir nennen ihn Unrecht. Der positive Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt mit
den Normen des Systems übereinstimmt. Der negative Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt gegen
die Normen des Systems verstößt. Das, was wir soeben „Sachverhalt― genant haben, wird vom System
selbst konstruiert…» (Ibidem, p. 178).
22
Para o dizermos com Jean CLAM (mobilizando a correspondência que este nos propõe): cfr
«Une nouvelle sociologie du droit? Autour de Das Recht der Gesellschaft de Niklas Luhmann», Droit et
societé nº 33, 1966, pp. 413, nota 32.
23
«Aus der Codierung ergibt sich aber nur ein Ergänzungs bedarf, ein Bedarf für ―Supplemente‖
etwa im Sinne von Derrida, ein Bedarf für hinreichend deutliche Instruktionen…(Ibidem, p. 189).
24
Na mesma medida em que se especifica nos desafios dos binómios auto-orientação /
orientação para o ambiente (Selbstorientierung/ Umweltorientierung), redundância / variedade
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 96

(f) Experiência de complementaridade código / programa (codificação


binominal / condicionalidade ) que deverá encontrar a sua especificação culminante — a
sua última especificação possível e neste sentido também a superação microscópica do
paradoxo da inclusão do excluído (aquela em que se cumpre a diferenciação concreta do
que é valorado positiva e negativamente pelo direito) — nas (em cada uma das)
decisões judiciais efectivamente consumadas. Ora isto graças à «forma de diferenciação
interna» (autopoieticamente construída e assim livre de qualquer «conotação
hierárquica ou orgânica») que convoca o sub-sistema judicial para o centro do
sistema26…Uma forma de diferenciação que, mobilizando a proibição da denegação da
justiça e reconhecendo nesta um operador decisivo (no qual todo o sistema aparece
afinal implicado), garante às decisões judiciais (em confronto com as decisões dos
legisladores e com as decisões da autonomia privada 27) um muito maior «isolamento
cognitivo» (o isolamento que as impede de reconhecer nos «efeitos sociais» critérios
juridicamente relevantes).

O juiz no centro do sistema, protegido pelos programas condicionais. A legislação


na periferia do sistema. A dogmática (categorial-classificatoriamente pensada) a oferecer-
se como uma rede de segurança...

Trata-se também de traduzir a circularidade jurisdição/ legislação (ou mais


rigorosamente de descrever as relações do subsistema judiciário com o subsistema
jurídico) convocando um esquema funcional centro/ periferia (Zentrum/Peripherie)
[autopoieticamente repensado e assim livre de qualquer «conotação hierárquica ou
orgânica»]. Para que a periferia (que inclui todas as nicht-gerichtlichen
Arbeitsbereiche, e muito especialmente as comunicações legislativas e contratuais)
possa assumir a abertura cognitiva do sistema, preservando a sua autonomia (sem se ver
constrangida a decidir) Para que a jurisdição (que ocupa o centro) ― através do (muito
maior) grau de auto-isolamento cognitivo que a pressuposição (mais ou menos
explícita) dos programas condicionais-textos lhe proporciona ― possa assumir a
responsabilidade-constrangimento de decidir e de decidir em nome (da diferenciação
e autonomia) do sistema.

(Redundanz/ Varietät), auto-referência / hetero-referência (Selbstreferenz / Fremdreferenz), indiferença /


irritação-irritabilidade (Indifferenz / Irritation-Irritierbarkeit).
25
Ibidem, p. 168.
26
É a conhecida lição do capítulo 7 de Das Recht der Gesellschaft, cit., pp. 297-337.
27
Aquelas que (inscritas em nicht-gerichtlichen Arbeitsbereiche) se responsabilizam
directamente pelas transformações associáveis ao processo evolutivo.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 97

CAP. III / JURISPRUDENCIALISMO

1. Pressupostos fundamentais: a perspectiva do homem-pessoa enquanto


antropologia axiológica a pressupor-assumir um sentido renovado da praxis e a
justificar uma perspectiva microscópica de interpelação do direito. [Leitura
indispensável: CASTANHEIRA NEVES, «Apontamentos complementares de Teoria do
Direito (Sumários e Textos)», disponível no nosso Material de Apoio , pp. 40-47]

1.2. A perspectiva axiológica a impor um salto para outro nível de «ser»


mediatizado pela relação de reconhecimento (enquanto compromisso axiológico) . O
problema do fundamento último assumido num processo-esforço de auto-
transcendência ou de transcendentalidade prático-cultural.

A assunção da pessoa como aquisição axiológica cujo


reconhecimento é verdadeiramente especificante do direito como direito

A distinção fundamental entre o sujeito-originarium como entidade antropo-


lógica e a pessoa como aquisição axiológica. O salto decisivo do reconhecimento
recíproco ou a assunção de uma ordem (de integração comunitária ) que reconheça a
cada homem a dignidade de sujeito ético. O exemplo-limite do escravo, tratado como
sujeito e muitas vezes celebrado como autor... e não obstante recusado como «fonte de
pretensões, ou titular de direitos e de deveres» («Não há direito para os escravos, tal
como não o há para seres inteiramente disponíveis perante uma qualquer
heteronomia...»).

1.3. Uma nova concepção da praxis e da filosofia prática experimentada no


confronto com o teleologismo ontológico pré-moderno e com os causalismo,
racionalismo e voluntarismo modernos mas experimentada também tendo presentes a
representação dos fins assumida pelos funcionalismos materiais... e a «solução» de
desonto-logização do funcionalismo sistémico. A convocação-experimentação de uma
outra teleologia... que nos permite assumir a intersubjectividade histórico-cultural e a
condição contextual-comunitária da prática (da acção e da decisão concretas) mas
também reconhecer o processo-esforço que transcende a singularidade e a contingência
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 98

desta prática e lhe confere um «sentido material» (que é inequivocamente um sentido de


validade).

1.4. A exigência de interrogar o direito superando a perspectiva


heteronomamente macroscópica da sociedade por uma perspectiva de imanência
microscópica centralizada no homem-pessoa.

1.5. Desenvolvimento. O reconhecimento axiológico da pessoa enquanto


compreensão-experimentação da validade jurídica (na sua auto-referencialidade e
autotranscendentalidade prático-culturais).
Mais do que celebrar a vocação integradora (de sentido comunitário) que a
resposta direito assume — enquanto participa da praxis-poiesis de um integrante mundo
humano —, trata-se com efeito de reconhecer a especificidade do commune que esta
resposta constrói… e o modo ou forma de vida que este nos incita a prosseguir… e que
assim mesmo (e enquanto tal) deverá cruzar-se e inter-relacionar-se com outras
identidades colectivas e outros horizontes de integração (sociais ou comunitários)…
O direito como um «projecto»-procura prático-culturalmente «situado» (a
procura de um homo humanus de autonomia e responsabilidade e do equilíbrio
dialéctico que o constitui): um equilíbrio que os diferentes ciclos históricos e os
diversos contextos prático-culturais (na sua teia de factores condicionantes) irão
compreender e experimentar (mas também estabilizar-institucionalizar) em termos
muito diferentes.
A especificidade da normatividade jurídica compreendida no seu momento
regulativo e na pré-determinação fundamentante deste sentido — a consciência jurídica
geral enquanto objectivação histórico-comunitária do princípio normativo do direito [a
«síntese de todos os valores e fundamentos que nessa comunidade dão sentido ao direito
como direito»]. As três objectivações intencionais desta síntese axiológico-jurídica.

1.5.1. O primeiro nível. A codeterminação contextual de uma espécie de


consensus omnium... no qual a realidade histórico-social, através das suas intenções
normativo-culturais («valores, princípios éticos, exigências morais, intenções ético-
culturais, concepções sociais sobre o válido e o inválido, etc., que informam o ethos de
uma determinada comunidade num certo tempo») se revela a informar a normatividade
jurídica e a ser (ainda que não unilateralmente) assimilada por esta.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 99

«Trata-se do que se poderá considerar o consensus omnium ou a normativa


conscience publique da comunidade de que se trate e em que será lícito ver
como que o costume ético-social da mesma comunidade, posto que
porventura a diferenciar-se em função dos grupos sociais a que vai referido
— desde os grupos económicos, profissionais, científico-técnicos, artísticos,
religiosos, etc., até à sociedade em geral — e lhes prescreve os seus padrões
de acção ou modelos de comportamento inter-relacional, já no seio do grupo,
já perante outros grupos ou a sociedade também em geral, e permite ajuizar
dessas acções e desses comportamentos como válidos, correctos, exigíveis,
razoáveis ou aceitáveis, etc — como a conduta social correcta dessa
categoria ou dos ―tipos normais‖ desses grupos. Nestes termos se invocarão,
p. ex., os ―usos do tráfego‖ os ―usos do comércio‖, se faz referência ao
diligens pater familias, à ―concorrência leal‖, à ―informação permitida‖ (...),
aos ―bons costumes‖ (enquanto tipicidade social eticamente
aprovada)...»(CASTANHEIRA NEVES Metodologia jurídica. Problemas
fundamentais, Coimbra 1993, 280 e ss)

O exemplo do compromisso prático dos «bons costumes», «originariamente»


vinculado a um acervo de padrões pré-jurídicos (à experiência de uma «tipicidade social
eticamente aprovada») e não obstante continua e constitutivamente submetido a uma
assimilação-transformação jurídica — uma assimilação que lhe confere uma
inteligibilidade inconfundível e um sentido normativamente autónomo e que é por assim
dizer protagonizada pelas diversas comunidades de juristas (e pelas inter-relações que
estas assumem mas então também pelo mundo prático que se descobre como contexto-
correlato funcional destas inter-relações). Numa espécie de continuum sem soluções que
assimila e «confunde» (resta saber até que ponto... e com que possibilidades
transformadoras) as experiências distintas de uma pressuposição-condicionamento
material e de uma autotranscendência fundamentante.
O confronto entre a experiência de uma sociedade «tendencialmente integrada e
estabilizada» (que apaga a «diferença entre o ideológico e o axiológico») [«When an
ideology is uncontested it is not even perceived to be an ideology but rather is treated as
common sense...» (POSNER)] e de uma sociedade «plural e conflituante» (na qual esta
diferenciação se torna simultaneamente vulnerável e indispensável... sob pena de termos
que renunciar à autonomia intencional do jurídico). A experiência da ruptura
revolucionária: cairá o direito «na sua totalidade»?
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 100

Alguns exemplos de exigências e de compromissos práticos (traduzíveis em princípios


ou especificações de princípios) que descobrimos comprometidos com este nível (não
imediatamente jurídico) de assimilação do «costume ético-social» mas também com a
teia de poderes e de resistências que o seu ethos mobiliza ou está autorizado a mobilizar
(numa convocação possível de uma concepção ou mundividência ideológica dominante,
quando não de uma intenção político-ideológica condutora):
● a assimilação normativa do sistema político ou das exigências que este
introduz [considere os artigos 1º, 2º e 91º da Constituição da República
Portuguesa (e confronte-os com as suas redacções anteriores)];
●● a disciplina normativa do direito de propriedade (o problema
da função social da propriedade e do seu sentido e limites) e
(ou) a possibilidade de autonomização dos chamados «direitos e
deveres económicos» [cfr.os artigos 58º-62º da Constituição];

●●● a representação da igualdade e das «diferenças» ou da exigência de as superar no


universo específico do Direito da Família [cfr.o artigo 36º nºs 3 e 4 da Constituição].

►O Código Civil de 1966 («interpretando» o § 2º do art. 5º da Constituição de 1933 e a sua


convocação em relação à mulher das «diferenças» resultantes da «natureza» e do «bem da
família»... mas também a compreensão da instituição família consagrada nos artºs 12º e19º)
preservava, com efeito, uma representação «tradicional» (implacavelmente discriminatória») do
papel da mulher: poder-se-á mesmo dizer que assumia neste sentido uma exigência-
-princípio de preponderância do marido (nas relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges
e com os filhos)... — disciplina normativa que (associada à representação de uma concepção
dominante ou à aparência desta) a ruptura revolucionária de 74 ou esta projectada na
Constituição de 1976 puseram directamente em causa, determinando a revogação de parte
importante das normas legais de Direito da Família...

►►Procure dar-se conta da contingência e da vulnerabilidade histórica desta


exigência ou deste compromisso normativo de diferenciação dos papéis dos cônjuges e
da concepção da família que ele traduz. Parta de uma consideração de três normas do
Código Civil na sua redacção «primitiva»:
• «O marido é o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representá-la e
decidir em todos os actos da vida conjugal comum (...).» (artº1674º)
•• «A administração dos bens do casal, incluindo os próprios da mulher e os bens dotais,
pertence ao marido, como chefe da família.» (artº1678ºnº1)
••• «Compete especialmente ao pai, como chefe da família:... e) autorizar (...) [o filho] a
praticar os actos que, por determinação da lei, dependam do consentimento dos
pais;...g)administrar os seus bens.»(artº1881ºnº1)
Leia estas normas à luz da especificação do princípio da igualdade
objectivada nos artigos 13º nº2 e 36º nº 3 da Constituição. Não deixe também de as
confrontar com a redacção em vigor (introduzida pelo DL nº 496/77) dos artigos
1671º, 1674º, 1678º, 1878º,1885º do mesmo Código Civil.


Formulação que seria parcialmente alterada pela revisão de 1971.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 101

►►E que dizer do princípio da distinção (juridicamente relevante) entre filhos


legítimos e ilegítimos que as normas do Código Civil de 66 (na sua redacção inicial) nos
permitem reconstituir (como princípio simultaneamente positivo e contingente)? ↓↓↓↓

→→ Parta também aqui de uma consideração de duas normas do Código Civil, na sua
redacção «primitiva»:
•«Presume-se legítimo o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da
mãe(...)»(artº 1801 nº1)
••«A partilha entre filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes
quantos forem os herdeiros(...).Concorrendo à sucessão filhos legítimos ou legitimados
e filhos ilegítimos, cada um destes últimos tem direito a uma quota igual a metade da de
cada um dos outros.» (artº2139º)
→→Leia depois estas normas à luz da especificação do
princípio da igualdade objectivada no artigo 36º nº 4 da Cons-
tituição. Não deixe de as confrontar com a redacção em vigor
dos artos 1796º e 2139º do Código Civil.

1.5.2. O segundo nível. A determinação do sentido do direito pelos princípios


fundamentais e esta como a experiência histórica de uma aquisição «humana
autenticamente reveladora» que, em cada ciclo, se justifica e assume como «universal».
Alguns exemplos destes princípios.
«... São exemplos destes os princípios do Estado-de-Direito e da legalidade em geral, os princípios da
independência judicial, da defesa, do contraditório, da não retroactividade da lei penal e da culpa, os
princípios da responsabilidade pelos danos, de pacta sunt servanda, da fides (a vinculação à palavra dada, o
dever de honradez e o dever de lealdade, da boa fé), da censura do ―abuso de direito‖. Acrescem as
exigências normativas próprias de certas instituições, como o casamento e a família (com o seu valor
específico e os deveres, nesse sentido fundados, que vinculam os respectivos membros), a própria nação
(com os valores da ―ordem pública‖, os deveres de fidelidade), etc. Muitos destes valores e princípios
obtiveram consagração nas declarações dos direitos do homem, nos «direitos, liberdades e garantias dos
cidadãos», nos princípios materiais das várias constituições nacionais. Mas seria um erro pensar que esses
mesmos valores e princípios jurídicos fundamentais, que ao direito indefectivelmente importam, se
reduzem aos dessa forma reconhecidos ou que só mediante esse reconhecimento poderão ser
juridicamente relevantes. Até porque a última expressão da juridicidade não pode, desde logo,
identificar-se com a legalidade constitucional...» (CASTANHEIRA NEVES, Metodologia jurídica.
Problemas fundamentais, Coimbra 1993, 282)

1.5.3. O pólo do suum (eu pessoal, proprium) assimilado num princípio suprapositivo
de igualdade. A garantia normativa de uma reserva de possibilidades de
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 102

autodeterminação (tão irrecusável quanto irredutível às exigências comunitárias). «A


igualdade entre os sujeitos-pessoas e no todo comunitário (fundada no valor absoluto da
pessoa e nas suas indisponibilidade e infungibilidade éticas).»

α) Implicação axiológico-normativa negativa (um modo negativo que se cumpre-


-constitui determinando-realizando limites ou proibições dirigidas aos outros e à
comunidade como um todo): o respeito incondicional da dignidade da pessoa
traduzido numa exigência normativa de autonomia, aqui e agora reconhecida em
termos negativos, se não passivos («a dignidade como um valor, indisponível para
o poder e para a prepotência dos outros»). ↓↓

NEMINEM LAEDERE

COEXISTÊNCIA

β) Implicação axiológico-normativa positiva:

PACTA SUNT SERVANDA

CONVIVÊNCIA

β)’ O espaço de reserva jurídica da pessoa: os direitos subjectivos e os


«direitos do homem» ou os direitos fundamentais.

β)’’ As possibilidades de realização da pessoa enquanto mobilização


dinâmica da sua «reserva» de direitos subjectivos e de direitos fundamentais
e esta traduzida em dois compromissos práticos suprapositivos: o princípio
da autonomia na sua dimensão ou na sua face positiva ou activa e o
princípio da participação — de tal modo que a autodeterminação do
proprium garantida normativamente pelo primeiro se projecte-desenvolva na
concorrência constitutiva justificada pelo segundo e neste já como uma
articulação plausível de exigências comunitárias (ou da dialéctica com o
suum que estas impõem ).Que concorrência constitutiva? A que descobrimos
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 103

nos contratos, nas formas de associação, na representação legislativa, nos


modos institucionalmente informais de cooperação. Pacta sunt servanda.

1.5.3.2. O pólo do commune assimilado num princípio suprapositivo de


responsabilidade.
Ter presente o modo como o individualismo moderno se
confrontava com a responsabilidade, a qual nos aparecia
apenas como correlato do exercício das liberdades... e nunca
como uma categoria prática originária,

α) Implicação axiológico-normativa negativa : um modo negativo que se cumpre-


constitui impondo limites... às exigências comunitárias ou às proibições que estas
introduzem. Que limites? Os de um verdadeiro discretum normativo — que possa
interromper o continuum (se não já a hipertrofia) da responsabilidade.

α)‘O princípio do mínimo (quoad substantiam) ou o(s) limite(s) dos limites


no plano material. A justificação dos impedimentos («aqueles e apenas
aqueles que se reconheçam e justifiquem como condições comunitariamente
indispensáveis para a realização pessoal de cada um»).
α)‘‘ O princípio de formalização (quoad modum) ou o(s) limite(s) dos
limites no plano da institucionalização formal. A exigência da determinar um
esquema objectivo capaz de pré-demarcar os (ou de controlar a realização
dos) limites materialmente intencionados.

β) Implicação axiológico-normativa positiva: as três modalidades da


responsabilidade jurídica (corresponsabilidade lato sensu).

β)‘ A responsabilidade perante as condições gerais da existência comunitária:


— a responsabilidade de preservação traduzida no princípio da
corresponsabilidade (stricto sensu);↓↓

HONESTE VIVERE
[Alusão ao problema da tutela-protecção dos bens jurídico-criminais]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 104

— a responsabilidade de contribuição traduzida no princípio da


solidariedade.↓↓

SUUM QUIQUE TRIBUERE


→→ O problema dos deveres jurídicos de solidariedade (o exemplo
paradigmático dos deveres fiscais e as exigências específicas do
chamado princípio do Estado social) [Cfr.o nº1 do artigo 103º da
Constituição].

β)’’ A responsabilidade por reciprocidade: comutativa em geral e contratual em


particular. A exigência de auto-responsabilidade a impor uma «normatividade
mais extensa e profunda» do que aquela que vemos traduzida no princípio pacta

sunt servanda. →→ EXECUTIO IUSTI

β)‘‘‘ A responsabilidade pelo equilíbrio da integração (pelo dano, pelo


prejuízo, por situações de acção antinómica). ↓↓

HOMINIS AD HOMINEM PROPORTIO

1.6. A identidade (autonomia, mas também continuidade) do projecto do direito


compreendida a partir das exigências da dialéctica suum /commune (e do homem de
liberdade-autonomia e de responsabilidade que esta constrói). Uma procura situada, a
retomar-reinventar em cada circunstância histórica e em cada horizonte cultural (sob o
fogo-cruzamento de distintos factores).

2. A pergunta
A pergunta dirigida ao sentido normativamente material que constitui o direito
como direito : « Quanto à concepção do direito que lhe corresponderá, começaremos
por acentuar que também o jurisprudencialismo converterá a primeira pergunta numa
outra com este teor: que axiologia e sentido normativamente material constitui o direito
como direito, ou – e deste modo diferente é o mesmo que se pergunta – que sentido
axiológico-normativo se haverá de reconhecer no direito para que o possamos
compreender como direito? Não se trata agora nem de se postular teoricamente o direito
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 105

como ―objecto‖, nem de ver funcionalmente nele apenas um ―instrumento‖ técnico ou


estratégico de regulação (ou ―contrôle‖) social, mas de o compreender prático-
normativamente como validade axiológico-normativa...» [Continuar a ler este texto de
CASTANHEIRA NEVES em «Apontamentos complementares de Teoria do Direito
(Sumários e Textos)», disponível no nosso Material de Apoio , pp. 47-48 (b)].

3. As categorias de inteligibilidade

3.1. Entre a validade transsubjectiva — constituída e revelada na história como


contexto-correlato funcional da nossa «existência prática» (de comunicação) e assim
mesmo confiada à auto-disponibilidade do homem sobre o sentido último de si e do ser-
-com-os-outros) — e a controvérsia prática situada — exercício de autonomia (e de
manifestação da diferença) numa «circunstância» histórica concretamente partilhada.

3.2. A conversão da validade numa dogmática ou a experiência do sistema.

Este é um dos temas capitais! Ler CASTANHEIRA NEVES, «Apontamentos


complementares de Teoria do Direito (Sumários e Textos)», disponível no nosso
Material de Apoio , pp. 49-51
Ver também muito especialmente o Apêndice «A concepção
jurisprudencialista do sistema», 34 pp., incluído no nosso Material de Apoio

3.3. A possibilidade de compreender e de determinar a controvérsia prática


como caso jurídico (objecto decidendo e prius metódico).

«A controvérsia jurídica como relação humana de comunhão ou de


repartição de um espaço objectivo-social [objecto problemático: a relação
intersubjectiva determinada pela mediação do mundo e pela relativização
correspondente (espaço de manifestação da diferença)], relação na qual releva
explicitamente a tensão dialéctica entre a autonomia ou liberdade pessoais e a
vinculação ou integração comunitárias [contexto problemático: o contexto-correlato da
convivência pessoal-comunitária, submetido a uma indeterminação-abertura
antropológico-existencial, a exigir assim uma institucionalização-resposta determinada
como ordem ], mas relação também que (num confronto distanciador) convoque a
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 106

afirmação ética da pessoa [e esta como um específico fundamento axiológico-


normativo ].

4. O tipo de racionalidade jurídica: a dialéctica prático-jurisprudencial sistema /


problema (numa intenção judicativa de realização normativa). Brevíssimo confronto
com as tentativas de compreender a juridicidade nos limites exclusivos das
racionalidades tópico-retórica e hermenêutica, a primeira a hipertrofiar a perspectiva do
problema (e a desconsiderar a especificidade do sistema), a segunda a reconstituir as
condições de possibilidade da compreensão do contexto dogmático (e a desconsiderar a
especificidade constitutiva e normativa da realização do direito).

5. O paradigma do juízo como modelo metódico. O contraponto juízo-


-julgamento/decisão. A exigência de reverter a voluntas (decisória) à ratio (normativa):
a decisão jurídica de realização do direito como decisão judicativa.

6. A realidade referida pela perspectiva jurisprudencial: a realidade dos


acontecimentos prático-sociais de que emergem casos jurídicos [O caso jurídico como
realidade referente «na qual convergem, dialectico-metodologicamente articuladas, duas
coordenadas principais, a perspectiva jurídica imposta pela normatividade também
jurídica e a situação-acontecimento ou a acção da prática social que aquela
normatividade é convocada a assimilar...»].

[pontos 4., 5. 6.] Ler CASTANHEIRA NEVES, «Apontamentos complementares


de Teoria do Direito (Sumários e Textos)», disponível no nosso Material de Apoio ,
pp. 51-52.

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