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Aroso Linhares - Introdução Ao Pensamento Jurídico Contemporâneo I
Aroso Linhares - Introdução Ao Pensamento Jurídico Contemporâneo I
INTRODUÇÃO AO
PENSAMENTO JURÍDICO
CONTEMPORÂNEO
Sumários desenvolvidos
Introdução
Estes sumários incluem excertos (devidamente identificados) de C ASTANHEIRA NEVES, Teoria
do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, policopiado, Coimbra 1998.
1
Com o alcance que CASTANHEIRA NEVES nos ensina a reconhecer, enquanto nos dá conta de
que o «objecto» da uma teoria do direito hoje possível (assumida como uma teoria crítico-reflexiva) não
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 2
pode ser «o direito, como que hipostasiado num em si e por si, mas as concepções práticas que o
manifestam e os pensamentos que o pensam»: «[A] uma ―teoria do Direito‖ compreendêmo-la hoje
sobretudo como a determinação crítico-reflexivamente metanormativa do Direito, i. é, das concepções e
das práticas constitutivas da juridicidade (…) e dos pensamentos que (…) pensam (…) o direito. (…)
[P]ois só na unidade histórico-cultural entre aquelas e estes o direito vem à sua existência, à sua
objectivação real e pode, já por isso, ser ―objecto‖ de uma reflexão teórica que nessa objectivação o
queira compreender…» [Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão
em fascículos) pp. 50-51, (versão em A4) p. 28].
2
ID., «O funcionalismo jurídico...», Digesta, vol. 3º, p. 200.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 3
necessárias! No plano global, a mais significativa é concerteza aquela que nos leva a
privilegiar o problema da jurisdição ou o modo como as distintas concepções do direito3
hoje relevantes (hoje em disputa... se não diferendo!) enfrentam este problema.
O problema da jurisdição? Antes um dos problemas que esta nos põe. Aquele
que reconhecemos quando discutimos a intenção de realização que esta jurisdição
deverá assumir, na mesma medida em que identificamos o discurso correspondente e o
tipo de racionalidade que lhe corresponde. Ao enfrentar assim o problema da jurisdição
— ao pretender identificar as «situações institucionais» que constituem (ou podem
constituir) o modus operandi deste discurso e o(s) «projectos» ou exigências de sentido
que iluminam (ou que devem iluminar) aquela intenção —, o pensamento jurídico do
nosso tempo expõe-nos, com efeito, a uma diversidade sem precedentes de
representações e de experiências possíveis. Será nestas (entenda-se, no traçado de um
mapa que nos permita compreendê-las na sua diversidade e nas suas opções mais
significativas!) que nos iremos concentrar. [Para uma autonomização do problema da
jurisdição como problema intencional ou interno («o problema da intencionalidade
material da própria jurisdição como jurisdição e o sentido que ela assume e realiza») —
em confronto com os problemas estruturais ou externos associados ao «fazer
jurisdicional» («que consideram o poder, a organização, a responsabilidade e o modo
desse exercício») —, ver CASTANHEIRA NEVES, «Entre o ―legislador‖, a ―sociedade‖ e o
―juiz‖ ou entre ―sistema‖, ―função‖ e ―problema‖ — os modelos actualmente
alternativos da realização jurisdicional do direito», Boletim da Faculdade de Direito
LXXIV, 1998, pp. 3-4].
«[N]ão está em causa, nem a sociologia — os pressupostos, as condições e os efeitos sociais —,
nem o sistema funcional — a estrutura organizatória, a funcionalidade e a eficiência —, e sim o
próprio sentido do poder-função judicial enquanto jurisdição (…). Não o contexto (a
possibilidade e as consequências), nem o como funcional (a estrutura e o funcionamento), mas o
que (sentido e tarefa) esses poder-função é chamado a realizar nas condições contextuais e
mediante aquela funcionalidade…» (C ASTANHEIRA NEVES, «Introdução ao Colóquio ―O poder
(função) judicial e o direito― » (21 de Abril de 2006), publicada em Reflexões - Revista
científica da Universidade Lusófona do Porto, ano 1, nº1, 1º semestre 2006,
3
Não será correcto dizer (como é frequente)... os diversos «conceitos de direito». Falar de
conceito implica, com efeito, partir de uma compreensão epistemológica cognitivista (que nos autorize a
perguntar «o que é o direito?» e a pressupô-lo como uma «realidade»-objecto auto-subsistente),
condicionando assim (implícita ou explicitamente) todo o desenvolvimento possível [Neste sentido (por
razões embora distintas) cfr. também Mario JORI / Anna PINTORE, Manuale di Teoria Generale del
Diritto, Torino, Giappichelli Editore, Torino 1995, pp.35 e ss. («Concetto di diritto»), pp. 51 e ss.
(«Concezioni del diritto»)]. Como veremos, algumas das mais significativas propostas do nosso tempo
(aquelas que poderemos designar por funcionalistas e jurisprudencialistas) recusam, com efeito (e com
importantes repercussões na perspectiva e nas soluções que defendem), a possibilidadede uma abordagem
cognitivista.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 4
4
Bastaria invocar os exemplos da Law & Economics e (muito especialmente!) dos Critical Legal
Scholars!
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 6
β)1 β) 2
Discursos Discursos da COMMUNITAS
da ou da dialéctica SOCIETAS /
COMMUNITAS
SOCIETAS
γ) Faltando ainda um terceiro filtro de inteligibilidade [II Parte B)]. Aquele que
(com os auxílios insuspeitos de KELSEN e de POSNER!) nos autoriza a reconhecer que
um «conjunto» muito significativo dos candidatos-interlocutores já reconhecidos —
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γ)1 γ) 2
Discursos da Discursos
moldura ou área juridistas
aberta ou juridicistas
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α)
Jurisprudencialismo(s) 3
PRIMEIRA PARTE
O CONTRAPONTO NORMATIVISMO / FUNCIONALISMO/
JURISPRUDENCIALISMO
Prolegómenos
CAP. I / NORMATIVISMO(S)
Intenção-sujeito Realidade-objecto
«A natureza dos clássicos engloba sem excepção tudo o que existe no nosso mundo: não só os
objectos físicos materiais (como acontecerá com a concepção moderna, pós-cartesiana, de
natureza)... mas também a integridade do homem, enquanto corpo e espírito, as instituições
humanas e sociais... a polis... (...) [e] os valores... (...) A tarefa da metafísica é elaborar uma
representação desta natureza...» (Luis LACHANCE)
«É assim claro que a sophia corresponde à perfeição suprema nas diversas ordens de
conhecimento (...) — aquela que conhece os objectos–coisas [que, por natureza, são os] mais
preciosos e mais importantes (aqueles que vêm em primeiro lugar). É preciso assim que o
«sábio»-sophos não só conheça o que deriva dos princípios primeiros como também os
conheça-contemple exactamente enquanto tal, desocultando-os...» (ARISTÓTELES, Ética a
Nicómaco, Livro VI, VII,1141a9)
decerto também a acção encontraria o seu sentido, o seu critério e potencial determinação...»
(CASTANHEIRA NEVES)
A comunidade como «ordem natural» transcendente e o homem que nela se insere (e que nela
encontra a sua liberdade) como homo institutionalis: para um desenvolvimento ler
CASTANHEIRA NEVES, «A imagem do homem no universo prático», Digesta, vol. 1º,
Coimbra, Coimbra Editora, 1995, volume 1º, 319-323 (II 1.) [e ainda ID., «O problema
da universalidade do direito – ou o direito hoje, na diferença e no encontro humano-
dialogante das culturas», Digesta, vol. 3º, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 111-114
(pontos 1.-3.)
A polis grega [O Ser como ordem ...como sentido e como especulação filosófica [O
pressuposta, definitiva e perfeita; o homem holismo metafísico-ético-político grego a assumir
como zoon politikon; a referência e a integrar-assimilar o jurídico como direito
ontológico-metafísica ao ser cósmico natural teoreticamente determinável.. O problema
(primeiro numa perspectiva ela própria da justiça. identificado com o da harmonia do Ser]
cosmológica, depois numa representação
antropológica), a identidade ser/valor.]
(c)... que o discurso jurídico medieval vai conferir à contemplatio do direito natural um
sentido ainda diferente, que não só o compreende como ordem da criação e
manifestação do divino (exigindo que a «filosofia especulativa passe a ser perspectivada
teologicamente») como também o integra (ou volta a integrar) num universo mais
global (no todo do Ser que corresponde à criação divina) [Embora se convoque um certo
jus naturalis para identificar a «natureza das coisas» associável ao «justo concreto»,
este direito já não é exclusivamente pensado como uma tipologia de casos-respostas... e
desde logo porque estabelece um contraponto normativamente fundamental com um
outro plano de determinação, no qual se conhecem valores-bens, princípios-generalia e
critérios-regulae auto-subsistentes, participantes directos do cosmos da Criação
(susceptíveis de serem determinados num plano normativamente mais abstracto,
independentemente das respostas e decisões mutáveis e contingentes que fundamentem)
— aquele plano (hierarquicamente superior) onde descobrimos a chamada lex
naturalis... (lex no sentido ético-prático de «mandamento», por sua vez compreendida
como uma objectivação da lex aeterna)].
que, na ordem das coisas humanas, se pode afinal dizer bom e mau, justo e injusto...]... como é
na racionalização imediata desta prática de acções e decisões que intervêm os discursos (sujeito
/sujeito) racionalmente desenvolvidos pelas tópica, dialéctica e retórica... [Se os princípios
últimos são levados na sério na sua imutabilidade, a projecção destes princípios na prática das
acções humanas exige uma mediação argumentativa... que culmina numa construção-
-manifestação de juízos-julgamentos não necessários (apenas prováveis ou verosímeis)... É
assim que, desde o início, a experiência de autonomização do direito como tarefa prática de
resposta a controvérsias, nos aparece associada a um discurso casuístico prático-prudencial...]
(B) A segunda tem a ver com a índole da própria reflexão filosófica que, neste imenso
ciclo, se dirige ao «objecto» direito natural. É que tal reflexão não tem apenas intenções
teorético-especulativas, tem também intenções normativas...
« O ―direito natural‖ foi sempre pensado (...) numa dupla intenção. Numa
intenção filosófica, de compreensão essencial e absoluta do direito pela explicitação
dos seus constitutivos fundamentos ontológicos (fosse uma ontologia metafísica nos
gregos, fosse uma ontologia já de sentido teológico-metafísico, já mais cingida à
―natura rerum‖, na Idade Média cristã (...)), que logo se projectava numa intenção
normativa ― intenção normativa esta que, tendo naquela outra primeira o seu
fundamento regulativo, se traduzia na determinação de uma normatividade válida
por si mesma, porque referida àquele fundamento ontológico e filosófico-
especulativamente explicitado. Normatividade que procurava objectivar-se [em
princípios e critérios] (...) e que constituiria tanto o cânone regulativo como o
critério da validade de qualquer ordem histórica de convivência prática. Ou seja,
o direito era nestes termos imputado a uma filosofia que definia anteriormente a
nomos da prática, e que ia compreendida no seu sentido e função como uma
normativa ―filosofia prática‖...» (CASTANHEIRA NEVES, O problema actual do
direito. Um curso de Filosofia do Direito, Coimbra-Lisboa 1994)
Para o «filósofo» (que cultiva a sophia ou sapientia) não se trata com efeito apenas de se
entregar à felicidade suprema da contemplação pura (de ceder ao «espanto» provocado pela Luz
dos princípios primeiros e de a procurar reflectir num «espelho» acessível a todos), trata-se
também de exigir que estes princípios primeiros se precipitem numa «normatividade válida por
si mesma»... e numa normatividade que, constituída por fundamentos e critérios jurídicos muito
diversos [princípios (generalia e dogmata), «normas» (regras e brocardos), exemplos-
-precedentes jurisprudenciais ou casos paralelos, comportamentos-acções exemplares
consuetudinariamente constituídos, cânones argumentativos, depois também modelos doutrinais
ou opiniões-dicta de juristas reconhecidos], se vá objectivando em degraus cada vez mais
específicos até atingir a prática das acções e decisões juridicamente relevantes (e fundamentar
assim as soluções prático-argumentativamente construídas para as controvérsias). Acentuação
que nos permite perceber duas notas capitais:
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(c) ... na mesma medida ainda em que pensa uma unidade (na
pluralidade) prático-prudencialmente concebida [justificada não por
um plano ou sistema prévios mas por um autêntico princípio da
adição (que vai acrescentando novos elementos ao todo... e
reflectindo-experimentando as identidades e diferenças que os
singularizam)].
Passando embora a descobrir o direito em textos de autoridade anteriores à sua
realização em concreto, o discurso jurídico medieval não deixa de se levar a
sério como juris-prudentia (e de preservar assim tanto a prespectiva
problemático–prudencial quanto a unidade intencional direito / pensamento
jurídico).
Para um esclarecimento indispensável destes pontos ver C ASTANHEIRA
NEVES, «Método Jurídico», Digesta, volume 2º, pp. 292-295.
É a narrativa de uma criação a partir do «nada» (ex nihilo), que nos traz a
compreensão do homem desvinculado anterior a qualquer vínculo social... mas também
livre de qualquer tradição... Não esquecer:
(a) a passagem da comunidade — dada enquanto dimensão integrante da
ordem natural indisponível (na qual o homem se inscreve-integra como homo
institutionalis) — à sociedade (enquanto artefacto construído prático-culturalmente
pelo homem)...
(b) ... e o auto-projecto regulativo (a ideia) do homem desvinculado,
onerado com a invenção-construção da societas ― o homem do estado de natureza,
«composto» pelas dimensões irredutíveis dos interesses, da liberdade-voluntas e da
razão-ratio (axiomaticamente autofundamentante).
Não esquecer ainda os «papéis» distintos que estas últimas dimensões
desempenham (ou os diversos equilíbrios de institucionalização que histórico-
-culturalmente propiciam):
(1) O homem dos interesses emancipados (das necessidades subjectivas) como
núcleo de reinvenção-construção da societas: a lição de HOBBES (de pensar a societas-
artefacto e o Estado-Leviathan a partir do dado do homem dos interesses egoistas e do seu ius
omnium in omnia, se não já da «guerra de todos contra todos»), uma lição que só o utilitarismo
de BENTHAM (com outros pressupostos e em nome de um outro projecto) virá a prosseguir... e
que, prolongada pelo pragmatismo norte-americano do século XIX (PEIRCE, JAMES,
HOLMES), encontrará no funcionalismo pragmático (e pragmático-económico) do nosso
tempo a sua expressão mais acabada.
(2) A autonomia da voluntas e (ou) da ratio (e da concertação que estas autorizam)
hipertrofiada num individualismo e secularizada na imanência.
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poder para tanto, dirigido a certos destinatários, os quais se supõem no dever de lhe
obedecer. (...) Conexão entre imperativo e poder (...) que se fez claramente explícita a
partir de HOBBES e foi como que confirmada na teorias do direito por John AUSTIN.
(...) Por sua vez, ―regra‖ é uma directiva para a acção, qualquer tipo de acção,
que nem se funda numa específica racionalidade ou a exprime (como a norma), nem é
imposta por um poder (como o imperativo), mas traduz uma mera convencionalidade e
que se esgota na prescritividade dela resultante... (...) [Neste] sentido se dizem ―regras‖
os critérios de um qualquer jogo para todos os que aceitam jogá-lo, pois participando
nele implicitamente todos convencionam entre si (aceitam uns perante os outros) a
validade dessas regras do jogo. Pelo que no universo jurídico só haverá lugar a falar de
regras em sentido próprio (―regras jurídicas‖) para abranger as suas prescrições em geral
ou todos os seus critérios práticos, se a juridicidade remeter em último termo a uma
convencionalidade ou for compreendida como tal, e assim com o seu sentido último
num consensus. (...)
Em síntese: a ―norma‖ será a expressão de um dever-ser racional (ou com uma
qualquer pretensão de objectiva racionalidade), referido a uma veritas-ratio; o
―imperativo‖ será a expressão de uma ordem prescritiva, referida à voluntas de uma
autoritade-poder; a ―regra‖ será a expressão de um regulativo convencional, referido a
um qualquer consensus de auto-determinação...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do
Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos)
pp.67, 76-77, 83, 87, 88 (versão em A4) pp.37, 42, 45-46, 48-49 ].
2.1.2. A especificidade da norma-ratio (a norma não deve referir nada para além
da sua racional normatividade e do campo que intensionalmente esta cria)
«Mais quand tout le peuple statue sur tout le peuple il ne considère que lui-même, et s'il
se forme alors un rapport, c'est de l'objet entier sous un point de vue à l'objet entier sous
un autre point de vue, sans aucune division du tout. Alors la matière sur laquelle on statue
est générale comme la volonté qui statue. C'est cet acte que j'appelle une loi. Quand je dis
que l'objet des lois est toujours général j'entends que la loi considère les sujets en corps et
les actions comme abstraites, jamais un homme comme individu ni une action
particulière. Ainsi la loi peut bien statuer qu'il y aura des privilèges, mais elle n'en peut
donner nommément à personne; la loi peut faire plusieurs classes de citoyens, assigner
même les qualités qui donneront droit à ces classes, mais elle ne peut nommer tels et tels
pour y être admis; elle peut établir un gouvernement royal et une succession héréditaire,
mais elle ne peut élire un roi ni nommer une famille royale; en un mot toute fonction qui
se rapporte à un objet individuel n'appartient point à la puissance législative…» (Du
Contrat social, cit., Livro II, cap. VI)
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 29
►... mas também actos da vontade legisladora geral que enquadram a acção sem lhe imporem
previamente um conteúdo (antes confiando este à livre autodeterminação dos interesses e dos
fins de cada sujeito) A exigência de abstrair do arbítrio, do «fim que cada um se pode propor no
que quer», para se considerar «apenas a forma na relação dos arbítrios» e a forma que confere a
estes a sua «liberdade racional»: «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa sempre
ser considerada como um princípio de legislação universal» (princípio da moralidade) / «Age
exteriormente de tal sorte que o livre uso do teu arbítrio possa concordar com a liberdade do
outro segundo uma lei geral de liberdade» (princípio do direito) [KANT]}.
«O conceito de Direito (...) diz respeito , em primeiro lugar, à relação externa (...) . [Em]
segundo lugar (...) à relação do arbítrio pura e simplesmente com o arbítrio do outro. Em
terceiro lugar, nesta relação recíproca dos arbítrios não se atende, de todo em todo, à matéria do
arbítrio, quer dizer, ao fim que cada qual se propõe com o objecto que quer; por exemplo, não se
pergunta se alguém pode ou não retirar benefícios da mercadoria que me compra para o seu
próprio negócio, mas pergunta-se apenas pela forma na relação entre os arbítrios de ambas as
partes, na medida em que tais arbítrios são considerados simplesmente como livres, e se, com
isso, a acção de cada um se pode conciliar com a liberdade do outro segundo uma lei
universal...» (KANT, Metafísica dos costumes, cit., Introdução à doutrina do direito, § C.)
«O normativismo puro [pode], paradoxalmente, [exigir] prévias fontes do direito que criem as
normas, pois só uma vez elas criadas se poderá atingir a sua específica normativa racionalidade. Daí que o
normativismo de uma estrita compreensão racional da normatividade das normas, e da sua validade, possa
ir simultânea com um radical voluntarismo, se não decisionismo, quanto às suas fontes. É o que se vê
expressamente em KELSEN, quando, ao sustentar que ―o dever-ser, a norma, é o sentido de uma vontade,
de um acto de vontade‖, pretende com isso significar, por um lado, que as normas são a criação de um
acto natural ou empírico de prescrição e, por outro lado, que só no sentido do dever-ser que manifestam
se pode pensar a sua normatividade, aquela normatividade que adquire ―vigência‖ (Geltung) enquanto ―a
existência específica da norma‖ – vigência normativa essa que, desse modo, ―deve ser distinguida da
existência dos factos naturais, e especialmente da existência dos factos através dos quais ela foi criada‖
(Allgemeine Theorie der Normen, 1979, 2 e ss.). Daí também que no legalismo, a postular sempre um
elenco de fontes em que se afirma a imperatividade do poder político, [a normatividade jurídica das
prescrições legais] seja susceptível de ser pensada, e tenha mesmo em geral sido pensada, (...) em termos
normativistas estritos...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 82-83, (versão em A4) p. 45].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 32
«É certo que neste normativismo puro, ou normativismo tout court – só nele as normas são
pensadas em si numa autónoma normatividade e não remetem para algo que as transcenda e que lhes
confira constitutivamente a sua normatividade –, o fundamento racional da normatividade, o fundamento
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 33
que ela exibe na sua ratio constitutiva, se manifesta na pressuposição das próprias normas ou postulando
já a existência delas...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito. Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) p.82, (versão em A4) p. 45].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 34
CASTANHEIRA NEVES, «Matéria de facto — Matéria de direito», Digesta, vol. 3º, p.323.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 35
(d) Faltando autonomizar uma última dimensão, capital embora (aquela que já
pudemos surpreender quando invocámos o texto na sua relevância sistemática). A
racionalidade imanente de cada uma das normas só pode com efeito plenamente
entender-se quando compreendemos essa norma inserida na unidade constituída pelas
outras normas... sob o modus de um sistema (unidimensional).[Para a concepção
normativista (seja qual for a representação da unidade que defende!) o direito é
constituído integralmente por normas... correspondendo-lhe assim um modo-de-ser-
abstracto (o direito existe nas suas proposições normativas e existe independentemente
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 36
[B)] Por outro lado, as próprias normas eram entendidas de tal modo que
permitiriam a sua imediata tradução numa estrutura ou esquema lógico: a norma seria
uma certa forma de enunciar uma intenção normativa (prático-normativa) graças à qual
poderia abstrair-se na norma dessa intenção prático-normativa, que foi a sua causa ou o
seu fundamento, para ser considerada apenas na sua enunciação lógica, tão-só no seu
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 39
«O que só é pensável porque o sentido da norma deixa de ser entendido como um princípio ou
critério axiológico-normativamente prático – como tal implicaria, ou só teria relevo numa tensão
valoradora perante uma realidade autonomamente pressuposta e actual –, e simplesmente como o
conteúdo conceitual de uma determinação lógica de realidade, como o enunciado descritivo-conceitual de
uma certa realidade, que seria imediatamente em si a condição (o ―pressuposto‖) de um efeito impositivo
– oferecendo-se assim a normatividade jurídica nos termos de um programa condicional (...). Decerto que
a realidade aí pensada e determinada é aquela que uma valoração prévia considerou normativamente
relevante (e assim digna do efeito prescrito), mas não será a ponderação desse juízo axiológico, nem uma
sua qualquer reconstituição também justificadamente fundada perante uma actual e autónoma situação
real, o que a norma cometeria ao seu destinatário; a este apenas lhe autorizava que da realidade
conceitualizada pela norma e tal como ela ia aí conceitualizada (em virtude, naturalmente, do juízo
axiológico prévio) fizesse a condição de que apenas dependia o efeito normativo. Embora na ordem
axiológico-normativa a norma surgisse como o resultado de uma certa posição ou juízo de valor,
convertia-se agora – nesta perspectiva dogmática – numa definição normativa implícita, num postulado
mediante o qual uma relevância jurídica ia ligada ―por definição‖ (por definição dogmática) a um
determinado objecto relevante.
Daí que ao pensamento jurídico bastaria conhecer o objecto relevante, a realidade tal como viera
a ser conceitualizada através daquele prévio juízo de relevância, para lhe poder logicamente impor as
consequências normativas. E se deste modo o conteúdo significativo da norma ia entendido tão-só como a
definição conceitual do pressuposto objectivo que justificaria sem mais o efeito jurídico, não só o jurista
podia supor que julgava conhecendo, que decidia juridicamente limitando-se a conhecer a
conceitualização normativa e através desta a realidade conceitualizada, como vinha ainda a imputar ao
próprio direito – identificado como as normas definitórias – uma verdadeira dimensão gnoseológica. Se o
pensar e decidir jurídicos vinham a reduzir-se, em último termo, à cognitiva determinação da realidade
mediante uma certa conceitualização – aquela conceitualização que o direito já em si oferecia –, também
o direito se revelava afinal tão gnoseologicamente conceitual como a ciência dele.
Devendo observar-se ainda que, não obstante esta referência conceitual à realidade, não seria a
realidade no seu autónomo conteúdo e existência prática que interessaria ao pensamento jurídico; este
apenas directamente se ocuparia da conceitualização dela que as normas enunciem. Sem dúvida que as
normas só poderão aplicar-se a uma realidade efectivamente existente, mas para que a aplicação se
houvesse de considerar válida bastaria averiguar se aquela realidade pensada na norma, e tal como aí vai
pensada, se tinha ou não verificado; e como esta verificação se reduzia a um juízo de existência ou de não
existência da realidade conceitualmente pensada, não afectaria ela em nada o conteúdo material que a
conceitualização ou significação normativa em si mesma, ou independentemente dessa verificação, desde
logo formulava – esse momento de verificação (a aplicação normativa) seria, pois, um momento
secundário, ―meramente prático‖, que deixava intocado e se passava de todo à margem dos conteúdos
jurídicos, oferecidos única e totalmente pelas normas. Quer dizer, por este outro lado era da própria
realidade (histórico-social), enquanto tal, que o pensamento jurídico normativista se desinteressava. O
direito seria para ele tão-somente ―um complexo de puras significações‖ oferecido pelas normas.
Vemos, assim, que se o normativismo pode conceber o direito deste modo e se acaba por
recolher-se a um plano de elaboração lógico-dogmática, só o consegue à custa duma dupla demissão. Por
um lado, alheia-se do juízo axiológico-normativo e prático, aquele que verdadeiramente faz com que o
direito seja direito, impondo em seu lugar uma axiomática determinação conceitual; por outro lado,
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 40
alheia-se da consideração autónoma da realidade histórico-social que solicita o direito e perante a qual em
último termo ele se terá de justificar pressupondo essa consideração. Sendo certo, por último, que aquela
conceitualização dogmática e esta conceitualização metódica se articulavam numa global coerência – esta
segunda conceitualização seria o ponto de partida para aquela primeira e acabaria, circularmente, por a
possibilitar sistematicamente...» [Ibidem, pp. 98-100 (versão em A4) pp. 53-55]
Podemos dizer que estes materiais-dados, emergindo das experiências consuetudinária e
legislativa (e dos modos-de-ser do direitos que estas legitimam), constituem o direito posto e (ou) imposto
imputável ao (histórico-comunitário) «elemento político»: um direito eventualmente já disponibilizado
em estruturas de ordenação contingentes (instituições historicamente reais, ordens orgânicas, colectâneas,
códigos)… e que, no entanto, só se torna racionalmente «cognoscível» — e assim filtrado como um
autêntico objectum epistemológico (dominado pelo modelo auto-subsistente da norma-ratio e pelas
possibilidades ordenadoras que este sustenta) — quando aqueles materiais se convertem em (quando são
explicitados e determinados como) proposições jurídicas (Rechtssätzen). Proposições estas que em si
mesmas (na sua estrutura hipotétco-condicional) e nos conjuntos que autorizam — iluminados explicita
ou implicitamente pelos princípios gerais — … mas então também (e muito especialmente) na coerência
por vizinhança (Verwandschaft) com que horizontalmente se relacionam… compõem o território por
excelência do direito (objectivo) dado
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 41
veremos já a seguir, que tal construção tinha como «finalidade» também a «aplicação
formal do direito ao caso concreto» ou a possibilidade de uma realizabilidade ou
practicabilidade objectiva). O que não acontece de todo com KELSEN!].
Como complemento da leitura, que se recomenda, da Teoria Pura do Direito
(ed. de 1960) [ler na trad. portuguesa de BAPTISTA MACHADO, Coimbra, 1976, III..
Direito e ciência, sobretudo o § 16 («Norma jurídica e proposição jurídica»)], ter
presente a distribuição sintetizada no quadro seguinte:
Direito-objecto Perspectiva-sujeito
RECHTSNORMEN RECHTSSÄTZE
O Direito constituído por... A ciência do direito constituída por...
normas jurídicas como proposições jurídicas como enunciados
prescrições do poder nos quais esta ciência descreve as
(comandos-imperativos, normas ou as interpretações
permissões, puramente normativas dos factos que
atribuições de poderes tais normas determinam e relacionam
e competências) (as proposições jurídicas como «juízos
hipotéticos que, em conformidade com o
sentido de uma ordem de direito (...) dada ao
conhecimento jurídico, enunciam ou
traduzem que, uma vez verificados certos
pressupostos ou condições fixados por esse
ordenamento, devem intervir certas
consequências, também elas determinadas
pelo mesmo ordenamento...»)
O Direito prescreve... («permite, confere A ciência do direito conhece descritiva
poderes ou competências») e analiticamente («ensina»...)
SENTIDO PRESCRITIVO SENTIDO DESCRITIVO
Função de autoridade (desempenhada por Função de conhecimento jurídico:
orgãos da comunidade jurídica):produzir o conhecer de fora o Direito e descrevê-
Direito [do legislador que produz uma norma -lo [a ciência do direito não prescreve seja o
jurídica geral ao juiz que produz uma norma que for...]
jurídica individual]
As normas jurídicas enquanto tais não Só através das proposições jurídicas
constituem uma unidade lógica, integram (e assim só indirectamente) podem as
antes uma estrutura arquitectónica de normas ser apresentadas num
institucionalização de factos produtores de encadeamento lógico-dedutivo («uma
normas (que atribui poderes a autoridades norma pode ser deduzida de outra
prescritivas ). Sistema de normas de tipo quando as proposições que as
dinâmico [o conteúdo das normas não é deduzido descrevem podem entrar num
de uma norma superior; a norma não vale porque o silogismo lógico»)
seu conteúdo possa ser deduzido pela via do
raciocínio lógico de uma norma fundamental... mas
porque é criada por uma forma determinada (uma
forma fixada, em última instância, por uma norma
fundamental pressuposta)]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 44
Princípio 1 Princípio 2
Norma fundamental
■«Uma norma que regula a produção de outra norma é aplicada na produção, que ela regula, dessa outra
norma. A aplicação de direito é simultaneamente produção de direito. Estes dois conceitos não
representam, como pensava a teoria tradicional, uma oposição absoluta. É desacertado distinguir
entre actos de criação e actos de aplicação do Direito. Com efeito, se deixarmos de lado os casos-limite
— a pressuposição da norma fundamental e a execução do acto coercivo — entre os quais se desenvolve o
processo jurídico, todo o acto jurídico é simultaneamente aplicação de uma norma superior e produção,
regulada por esta norma, de uma norma inferior...» (Ibidem, p.325)
■■ «A norma fundamental não é uma norma querida (...);se a sua afirmação (...) é logicamente indispensável
para a fundamentação da validade objectiva das normas jurídicas positivas, ela apenas pode ser uma norma
pensada, e uma norma que é pensada como pressuposto quando uma ordem coercitiva globalmente eficaz é
interpretada como um sistema de normas jurídicas válidas...(a norma fundamental como pressuposição
lógico-transcendental)» (Ibidem, pp .281-284)
O normativismo legalista do século XIX distingue claramente entre criação do Direito
(criação de normas gerais e abstractas por via legislativa) e aplicação em concreto (não correspondendo
a decisão do julgador a um acto de criação de Direito... mas apenas a um exercício de aplicação).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 47
[3.2.] Em resposta (...) [ao problema do modus operandi], o que há a dizer é que
o normativismo nos oferece um paradigma de aplicação – um esquema metódico de
lógico-dedutiva aplicação de normas pressupostas, enquanto o paradigma metodológico
e o esquema metódico para a operatória realização concreta do direito. O que é, com
efeito, um corolário metodológico das suas respostas aos pontos anteriores, mas importa
bem compreender pela acentuação de algumas notas mais.
α) Se o direito se constitui e se manifesta num sistema de normas – se ele é esse
sistema de normas e nele exclusivamente se objectiva –, então decerto que o direito é
pensado como um sistema autónomo perante a realidade histórico-social da sua eventual
realização, ou sem que, quer as exigências práticas provindas dessa realidade, quer a
problemática normativamente específica da sua concreta realização nessa mesma
realidade se reconheçam com qualquer influência codeterminante da sua sistemática-
-racional normatividade. É, pois, esta autonomia com que o normativismo pensa o
direito, ou o seu sistema abstracto-racional de normatividade, a primeira nota a
sublinhar – e o próprio pressuposto de uma segunda nota em que o paradigma da
aplicação estrita já claramente se define.
Com efeito, essa autonomia implica que na projecção do direito na realidade
histórico-social se exclua qualquer possibilidade juridicamente constitutiva; com
fundamento nela será antes necessário que o direito pressuposto nas normas e no seu
sistema, e tal como aí se manifesta e se objectiva pela sua determinação hermenêutica e
dogmática, apenas se repita na solução concreta. Que o mesmo é dizer que essa solução
deverá obter-se por mera aplicação, ou sem nenhuma mediação normativo-
-juridicamente constitutiva – pois de contrário o direito realizado não existiria
totalmente ou não estaria afinal de todo já existente e objectivado nas normas do sistema
(o direito ―que é‖). E se o objecto da aplicação ou decidendo se oferece, como tal, numa
particularidade concreta que o diferencia do geral-abstracto das normas, impõe-se então
que aquela ―aplicação‖ opere segundo um esquema que garanta a relação entre este
geral e aquele particular sem implicações normativas, ou de modo que subsista uma
identidade entre o pressuposto aplicando e o resultado da aplicação. O que só a
lógica dedutiva (a relação lógico-dedutiva do geral para o particular) pode lograr. Foi o
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 49
actual Código Civil), ao dizer, pág. 14, que ―a equidade não constitui um
sistema normativo (um ordenamento), pois é tomada aqui no sentido (...)
de justiça do caso concreto‖; e daí também a exigência de prévia
formulação de uma ―norma‖ aplicanda pelo próprio julgador mesmo na
sua actividade de integração do direito para além da analogia (ob. cit.,
pág. 9, no enunciado do artigo 9.°, IV, desse trabalho preparatório e de
que resultou o n.° 3 do artigo 10.° do actual Código; cfr. pág. 15); e
OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 7.ª ed.,
quando considera: ―A resolução dos casos segundo a equidade contrapõe-
-se à resolução dos casos segundo o direito estrito. Pode haver regras e
haver equidade, quando o juiz estiver autorizado a afastar-se da solução
legal e a decidir de harmonia com as circunstâncias do caso singular.‖
(pág. 221) ―(...) na equidade (...) não há por natureza aplicação da regra,
antes há uma criação para o caso singular‖ (pág. 222), e por isso a
―equidade‖ não seria fonte do direito: ―Se fontes do Direito são os modos
de formação e revelação de regras jurídicas, a equidade, como critério
formal de decisão, está fora desta noção. Não só através dela não se
determinam regras, como a própria solução do caso não se faz através da
mediação de uma regra‖ (pág. 238).
[3.3.] Tudo isto quanto ao sistema das normas, que o direito seria, e à sua
aplicação. Mas uma outra nota se terá de considerar ainda. E que é esta: a realidade
histórico-social da aplicação do direito vai concebida como uma realidade analisável em
termos de factos (como ―meros factos‖, observa também CARL SCHMITT (...)), como um
conjunto de factos autónomos entre si e correlativos à racional abstracção das normas
ou como a correlativa factualidade (empírica) da idealidade lógica (racional) das normas
(da sua lógico-conceitual representatividade e previsibilidade normativo-regulativa).
Ora, a realidade histórico-social não se oferece fenomenologicamente desse
modo, como um conjunto aleatório de ―factos‖ discretos, mas em unidades de
acontecimentos histórico-socialmente estruturados, em especificados casos prático-
-sociais em que se polariza a inter-acção. Pelo que essa forma de ver a realidade traduz
uma analítica decomposição dessas unidades e desses casos em meros elementos
empíricos diferenciados uns dos outros, e isso assim porque era igualmente própria dos
racionalismos moderno e epistemológico-positivista, em que o normativismo encontrou
a sua possibilidade epistemológica e metodológica, uma análoga dicotomia razão
(lógica)-factos (empíricos) – dicotomia que o pensamento jurídico normativista se
limitou a converter na sua dicotomia normas-factos. (...).
Por outro lado, reconhecer-se-á ainda que desse modo a realidade prática (a
praxis) histórico-social, que a coerência do sentido prático-normativo do direito
implicará que nele se considere – porque é essa realidade, com os problemas também
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 51
Na leitura destes textos, não deixe de ter em atenção a diferença que separa o paradigma da
aplicação assumido pelo normativismo do século XIX da proposta de KELSEN (esta já nas fronteiras
de um verdadeiro paradigma da decisão)...
APÊNDICE
ESQUEMA DO SILOGISMO SUBSUNTIVO
CAP. II / FUNCIONALISMO(S)
(―os filósofos não têm feito senão interpretar o mundo de diferentes modos, e trata-se
agora de o transformar‖). Um homem, pois, senhor do seu destino (daí resultou, em
perspectiva religiosa, a secularização!) que é o construtor do seu mundo, que vive
exclusivamente na história (o imanentismo metafísico de acabada expressão em HEGEL)
e como ser histórico ou da história (mais do que como ser de uma ―natureza‖) e que a
orienta funcionalmente segundo a opção dos seus projectos...» [CASTANHEIRA NEVES,
Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em
fascículos) pp. 131-132, (versão em A4) p. 72]
«Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and
pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine
what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the
chain of causes and effects, are fastened to their throne. They govern us in all we do, in
all we say, in all we think: every effort we can make to throw off our subjection, will
serve but to demonstrate and confirm it. In words a man may pretend to abjure their
empire: but in reality he will remain subject to it all the while. The principle of utility
recognizes this subjection, and assumes it for the foundation of that system, the object
of which is to rear the fabric of felicity by the hands of reason and of law. (…) By utility
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 56
is meant that property in any object, whereby it tends to produce benefit, advantage,
pleasure, good, or happiness, (all this in the present case comes to the same thing) or
(what comes again to the same thing) to prevent the happening of mischief, pain, evil, or
unhappiness to the party whose interest is considered: if that party be the community in
general, then the happiness of the community: if a particular individual, then the
happiness of that individual. The interest of the community is one of the most general
expressions that can occur in the phraseology of morals: no wonder that the meaning of
it is often lost. When it has a meaning, it is this. The community is a fictitious body,
composed of the individual persons who are considered as constituting as it
were its members. The interest of the community then is, what is it? — the sum
of the interests of the several members who compose it. It is in vain to talk of the
interest of the community, without understanding what is the interest of the individual. A
thing is said to promote the interest, or to be for the interest, of an individual,
when it tends to add to the sum total of his pleasures: or, what comes to the
same thing, to diminish the sum total of his pains. An action then may be said to be
conformable to then principle of utility, or, for shortness sake, to utility, (meaning with
respect to the community at large) when the tendency it has to augment the happiness
of the community is greater than any it has to diminish it. (…) The general object
which all laws have, or ought to have, in common, is to augment the total
happiness of the community; and therefore, in the first place, to exclude, as far
as may be, every thing that tends to subtract from that happiness: in other
words, to exclude mischief…» (BENTHAM, An Introduction to the Principles
of Morals and Legislation, 1781)
«As principais objecções ao utilitarismo positivo (como é o de Bentham) são estas duas:
a) a felicidade não se pode universalizar a menos que a entendamos sem qualquer conteúdo. Para
uns a felicidade é marcar golos; para outros é ler Platão.
b) O interesse deste utilitarismo é apenas o de que a maioria, o maior número possível, seja feliz.
O utilitarismo não se preocupa com a minoria que não é feliz (...). Não se pode fundamentar de
forma utilitarista uma tutela de minorias, podendo aliás a minoria ser combatida quando tal seja
ùtil tendo em vista a ―felicidade‖ da maioria...» (KAUFMANN)
«O finalismo como modo determinante de uma funcionalidade foi convocado no pensamento
jurídico, poderá dizer-se pela primeira vez, por R. IHERING, na sua célebre e tão influente monografia dos
fins do séc. XIX (1877) Zweck im Recht. Distinguiam-se aí, como formas diferenciadas da ―razão
suficiente‖, ou de inteligibilidade em geral, a ―lei da causalidade‖, para o mundo físico-objectivo, a ―lei
da finalidade‖, para o domínio da acção e da vontade – aquela lei postularia que ―não há efeito sem
causas‖ e permitiria responder à pergunta ―porquê‖ que sempre se dirigiria àquele mundo, esta segunda
que ―não há querer ou não há acção sem um fim‖ e a pergunta a que haveria de responder-se, no domínio
da acção e da vontade, já seria ―para quê‖ (―o homem não age porque, mas para que‖). Distinção que
seria retomada por muitos outros (inclusive por R. STAMMLER, posto que no quadro do seu neokantismo
formal, v. Theorie der Rechtswissenschaft, 2.ª ed., 30, ss.; Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.ª ed., 56,
ss.) e que implicava uma clara concepção funcionalmente instrumental da acção (―A satisfação que espera
aquele que quer é o fim do seu querer. Nunca a acção em si mesma é um fim, mas simplesmente um meio
de o atingir. Em verdade, aquele que bebe quer beber, mas só quer beber para alcançar o resultado que
desse facto espera. Por outras palavras, em cada acção nós queremos não essa acção mesma, mas somente
o efeito que dela nos resulta‖ afirmava IHERING, e de modo análogo oporia STAMMLER à ―forma de
pensamento‖ da ―causa e efeito‖ no mundo natural a de ―fim e meio‖ no mundo prático da vontade, Ibid.
30). E com base nela, entendia IHERING que a lei de finalidade se ―deveria aplicar ao direito e para ser ele
pensado em termos finalísticos‖ (―o direito não exprime a verdade absoluta, a sua verdade é apenas
relativa e mede-se pelo seu fim‖; ―no domínio do direito nada existe senão pelo fim e para o fim, todo o
direito não é mais do que uma criação do fim...‖) e a postular, por sua vez, uma concepção funcionalística
não menos clara do próprio direito (―Qual é o fim do direito?... podemos dizer que o direito representa a
forma da garantia das condições de vida da sociedade, assegurada pelo poder de coacção de que o Estado
dispõe‖).
Finalismo que haveria de ter, todavia, uma particular conversão metodológica na ―Jurisprudência
dos interesses‖ – posto que declaradamente ela se dissesse, por HECK, inspirada em IHERING –: por um
lado, ao ―fim‖ visado substituíram-se os ―interesses‖ reconhecidos ou reconhecíveis pelo direito e este
seria chamado, não a garantir de forma geral as ―condições de vida da sociedade‖, mas a decidir
valoradoramente ―conflitos de interesses‖; por outro lado, os interesses a considerar seriam aqueles que o
direito considerasse relevantes e assim, como que numa ―interiorização‖ dos interesses pelo jurídico, o
prius continuava a poder ver-se neste, nas normas que previamente decidiam dos conflitos de interesses;
desse modo o finalismo via-se amortecido ao deixar de avultar no primeiro plano a favor de uma
hermenêutica teleológica do direito vigente, e isto graças à simultânea relevância, nota bem característica
da ―Jurisprudência dos interesses‖, dada ao Gebotseite e ao Interessenseite. (Sobre este ponto, v.
―Jurisprudência dos Interesses‖, in Digesta, II, 225, ss.) já que o funcional finalismo se via como que
neutralizado ao submeter-se assim ao que se dirá uma sua legitimação jurídica. Não do mesmo modo no
―direito livre‖, na ―jurisprudência sociológica‖, etc., em que o prius era já visto manifestamente nos fins,
nos interesses sociais a impor ao direito e em ordem aos quais ele deveria ser funcionalmente pensado e
realizado. E foi para esta contraposição que H. KANTOROWICZ chamou a atenção (recorde-se que
KANTOROWICZ foi um nome importante no ―movimento do direito livre‖, tendo sido mesmo o autor do
que se pode considerar o seu manifesto, o ensaio Der Kampf um die Rechtswissenschaft) através da
distinção entre dois tipos básicos que se teriam de reconhecer no pensamento jurídico, o tipo do
pensamento jurídico formalístico (...) e o tipo do pensamento jurídico finalístico (...). Funcional finalismo
este (...) que o actual funcionalismo jurídico material só radicalizou...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do
Direito Lições proferidas no ano lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. , (versão em
A4) pp. 90-92]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 58
A VIRAGEM FINALISTA
Ora estes caminhos vão-se separar (ao ponto de hoje serem protagonizados por
verdadeiros interlocutores-oponentes)! Importando esclarecer que, quando falamos «de
funcionalismo material, só o primeiro destes dois caminhos importa (o segundo conduz-
nos, com efeito, a concepções do direito próximas da proposta jurisprudencialista).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 60
«Uma coisa é perguntar pelas funções que o direito desempenha ou se lhe podem
imputar tal como é, ou tal como ele se manifesta na realidade humano-social e sem
pretender que ele seja diferente do que se mostra ser nessa realidade; outra coisa é
perguntar pelas funções que ele deverá ser chamado a cumprir em ordem a certos
objectivos que se pretendam ou programaticamente se visem, ou como ele deverá
ser (como se deverá constituir, organizar e operar) para que esses objectivos sejam
alcançados. Num caso trata-se de uma intenção já descritiva (sociologicamente
analítico-descritiva), já determinativa (reflexivo-determinativa), pois o que interessa
saber é que funções se reconhecerá que o direito desempenha na realidade social pelo
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 61
facto de ser aí direito, a função ou funções que ele na realidade social efectivamente
realizará por ser direito – ao direito, quer no seu sentido próprio, quer na sua objectiva
existência social, reconhecem-se certas funções! –; no outro caso, a intenção é
regulativa, uma vez que o relevante será antes constituir e organizar o direito, ou
um certo direito, e operar com ele assim, de modo a que possa cumprir certa
função ou funções que programaticamente se pretenda que ele cumpra ou logre
realizar. Por outras palavras ainda, num caso as funções (reconhecíveis) são um
resultado do direito (implicadas na sua presunção como direito, ou considerado ele
independentemente e antes de se interrogarem as suas funções), no outro caso o direito
deverá ser o resultado das funções pretendidas (constituído para se realizarem essas
funções e como um meio ou instrumento para essa realização).
E é com esta segunda perspectiva, não com aquela primeira, que tem a ver o
funcionalismo jurídico.
(...) O direito não será tratado funcionalisticamente quando simplesmente se lhe
reconhecem funções ou se quer vê-lo a cumprir a ―sua função‖ e sim quando é
convocado para certas funções que se pretende que ele realize – quando não é visto
em si mas como elemento numa relação ou num contexto sistemicamente funcional. Só
assim o direito será submetido a uma perspectiva funcional e com a consequência
decisiva de os objectivos ou os fins, os resultados ou os efeitos relevantes não serem
também em si jurídicos, mas transjurídicos, sejam eles políticos, sociais,
económicos, etc. (―certain non juridical purposes‖ – HOLMES), posto que visados e
porventura realizáveis do modus jurídico, através do (funcionalmente ou
instrumentalmente pelo) direito.
(...) Assim, [importa reconhecer] que o funcionalismo jurídico responde em
geral à pergunta básica, sobre a concepção do direito, convertendo-a numa outra, que é
esta: o direito para que serve? Não o preocupa particularmente saber o que é o direito e
determiná-lo pelo seu conceito, duvida mesmo que tenha validade o pressuposto exigido
por essa determinante conceitualização, a subsistência objectiva do direito como algo
que seja e se imponha heterónoma e autonomamente em si, independentemente da sua
finalística instrumentalidade e funcional operacionalidade. Já que o direito é agora
concebido como instrumento e função, e assim com toda a relatividade, dependência e
contingência implicadas na possível disponibilidade e variação dos fins, dos objectivos
sociais a realizar com ele na sua instrumentalidade, na mutável correlatividade da sua
posição no todo da realidade social, das opções que nessa realidade o mobilizem na sua
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 62
funcionalidade. Poderá dizer-se nestes termos e com L. RECASENS SICHES (...), que ―o
jurídico não é um fim, e sim um meio para a realização de fins diversos‖...»n
[CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano lectivo de
1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp. 145-154, (versão em A4) pp.80-85]
Necessidades
FINS
PROGRAMAS FINAIS
Interesses
Ideologias
Expectativas
equivalentes
e «livres» Eficácia
MEIOS
FUNÇÕES
ALTERNATIVAS
ESTRA-
Eficiência DE DECISÃO TÉGIA
Regras de optimização
Eficácia
EFEITOS
Crítica de
EFEITOS ideologia
VALORES FINS-OBJECTIVOS
CONVICÇÕES-PROJECTOS NECESSIDADES SUBJECTIVAS
COMMUNITAS SOCIETAS
VALORES FINS-OBJECTIVOS
Fundamentos Efeitos
VALIDADE CONSEQUENCIALIDADE
A forma para que (Um... zu, in order to, afin de) : «Introduz-se este novo
regime normativo e mobilizam-se estes recursos (especificados em outras tantas
alternativas de acção-decisão)... para atingir (para que se atinja) este objectivo x, ou o
que é o mesmo, para produzir (para que se produzam) estes efeitos sociais ou empíricos
[efeitos que correspondem a uma projecção-realização do fim antecipado, cuja
previsibilidade maior ou menor dependerá dos saberes nomológicos (das informações
empíricas ou dos contextos de explicação cientificamente disponíveis ou
mobilizáveis)...» [«O sistema de avaliação do desempenho (...) dos serviços da
Administração Pública (...) previsto na presente lei tem como objectivos (...) potenciar o
trabalho em equipa [e] fomentar uma cultura de exigência, motivação e reconhecimento
de mérito...»]
A forma para que... pode estar explícita (numa identificação de objectivos-goals
e numa determinação dos recursos afectáveis, especificados num elenco mais ou menos
amplo de alternativas de decisão possíveis)....ou pode estar apenas implícita,
eventualmente sob a máscara se.... então. A experimentação pragmático-funcional
(assumida pelos funcionalismos materiais) exige que reconstruamos esta prescrição na
sua inteligibilidade final (convertendo a possível exploração do elemento racional-
teleológico da lei na revelação-decomposição analítica de um programa de fins).
FINS MEIOS
Eficácia FUNÇÕES
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 68
...e de, para além desta instrumentalidade, se exigir eventualmente ainda que
seja tematizada (discutida) a eficiência, entenda-se, a articulação maximizadora das
alternativas de decisão programadas (das alternativas de decisão que especificam os
meios-recursos mobilizados)… na sua relação explícita com os efeitos sociais ou
empíricos e com o contexto real em que estes se irão produzir (isto é, com os efeitos a
produzir naquele tecido social específico)...
MEIOS ALTERNATIVAS
Eficiência DE DECISÃO
Regras de optimização
EFEITOS
EFEITOS
«Só que o funcionalismo não fica, nem poderia ficar só pela determinação em
geral. Pois se pela programação (programação finalística), que procura eficácia e
quer ser eficiente, se pretende a racionalização dos objectivos e também da prática que
os visa, o certo é que a insuperável indeterminação desse plano, dado que a
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 71
considerada esta no seu sentido específico, o acto com efeitos exteriores determinado
por um núcleo irredutível de voluntas e a traduzir-se materialmente, ou quanto ao
conteúdo, na opção entre alternativas possíveis. Pelo seu momento nuclear de
voluntas, a decisão será insusceptível de uma total redução racional que exclua o factor
pessoal e infungível do decidente; não admite nunca a sua determinação por necessidade
lógica, ou em termos de pensar-se ela uma mera ―aplicação‖ dedutiva de premissas,
embora seja objecto de formas de racionalização (pela ―teoria racional da decisão‖ (...))
através da conjugada atenção dada aos objectivos, aos critérios-regras e aos efeitos
previsíveis – o que todavia será sempre um contrôle só exterior, insusceptível de anular
aquele núcleo determinante último do seu conteúdo. A significar isto que à decisão
corresponde uma autonomia também irredutível, não obstante aquele contrôle.
Autonomia que o funcionalismo não recusará, pois vai ela decerto na sua própria lógica:
sem essa autonomia do decisor no caso concreto e nas circunstâncias da decisão ficaria
impossibilitada a adequada realização dos fins/objectivos nessas mesmas circunstâncias,
nas quais, e pelos efeitos que aí provoquem, aqueles unicamente se poderão ver ou não
logrados. Pelo que os três planos considerados, o da programação finalística, o dos
critérios e o da realização por decisão se nos ofereçam numa diferenciação
insusceptível de uma qualquer reductio ad unum, de um qualquer monismo
determinante – o programa/planificação, os critérios e a decisão são todos
complementarmente necessários e cada um na sua especificidade. A ter de reconhecer-
se assim que o funcionalismo é categorialmente de uma muito particular
complexidade...» [CASTANHEIRA NEVES, Teoria do Direito Lições proferidas no ano
lectivo de 1998/1999, cit., (versão em fascículos) pp., (versão em A4) p. 93-94].
provocar, assim esta, no espaço de autonomia que se lhe reconhece, deverá ser uma ou
outra, aquela que permita ou impeça os efeitos desejáveis ou indesejáveis – a decisão,
no seu próprio conteúdo, deverá ser função dos seus possíveis efeitos...»
A conversão da decisão judicial numa execução táctico-consequencial... a
aproximá-la implacavelmente da decisão administrativa: uma decisão que deixa de
corresponder ao tratamento imparcial de uma controvérsia concreta entre dois
sujeitos singulares... para ver nesta controvérsia apenas a situação-terreno (ou
uma das dimensões da situação-terreno) na qual o programa de fins vai ser
prosseguido e (eficientemente) realizado...
4.1. O juiz político táctico da Constituição: a solução em que convergem alguns dos
mais radicais neoconstitucionalismos do nosso tempo.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 78
Sanford Levinson», Tulsa Law Review, vol. 38, 2003, 553 e ss. — texto escrito para um
volume de homenagem a LEVINSON, cit. na paginação proposta na Jack Balkin Home
Page, http://www.yale.edu/lawweb/jbalkin/articles/idolatryandfaith1.pdf (extraído em
15-04-2004), 119)].
Cfr. «A Dialogue with the People, or a Juricentric View of the World? Why The Supreme
Court Should be Televised When it Announces Its Opinions» (23 de Julho de 2002) e «Why I Did
Not Sign the Constitution: With a Chance to Endorse It, I Had to Decline» (23 de Setembro de
2003), dois brevíssimos comentários publicados em Writ: Findlaw’s Legal Commentary,
http://writ.news. findlaw.com/commentary (extraídos em 10-04-2004).
Why Free Speech And Other Rights Are Not As Safe As You Might
Think» http://writ.news.findlaw.com/commentary/20011017_levinson.html. Sem esquecer as
duas importantes especificações problemáticas da constitutional protestant interpretation
enfrentadas por LEVINSON e BALKIN em «Constitutional Canons and Constitutional Thought»
(1998), in BALKIN/ LEVINSON (ed.), Legal Canons, New York, 2000, 400 e ss. e
«Understanding the Constitutional Revolution», Virginia Law Review , vol. 87, 2001, 1045 e ss.
4.3. O juiz político dos «Critical Legal Studies» (UNGER, KENNEDY, BALKIN):
brevíssima alusão
5
POSNER, Frontiers of Legal Theory, pp. 97-98. «Since utility is more difficult to estimate
than wealth, a system of wealth maximization may seem a proxy for utilitarian system, but it is
more; its spirit is different. Wealth maximization is an ethic of productivity and social
cooperation — to have a claim on society‘s goods and services you must be able to offer
something that other people value — while utilitarianism is a hedonistic, unsocial ethic...» (The
Problems of Jurisprudence, p. 391). Importa ter presente que o percurso de POSNER (a partir do
«salto» assumido na edição de 1972 da Economic Analysis of Law) corresponde a uma
exigência de superar o utilitarismo hedonista e cardinal de BENTHAM sustentada em duas frentes
de argumentação distintas: α) a primeira a «demonstrar» as dificuldades objectivas de realização
do princípio da utilidade (a impossibilidade de maximizar a utilidade «comparando e
agregando satisfações e níveis de felicidade de sujeitos diferentes»);β) a segunda a denunciar os
perigos do que (com NOZICK) diz o monstro da utilidade— perigos que resultam por um lado da
impossibilidade de confrontar e hierarquizar «classes de prazer» e por outro lado da
possibilidade-licenza de sacrificar a liberdade individual (impondo-lhe soluções autoritárias
baseadas na «definição» do interesse comum) [The Economics of Justice, pp.64-65].
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 91
6
Sem esquecer decerto que a descoberta do critério da maximização da riqueza nos é
apresentada por POSNER como uma experiência lograda de especificação-superação do modelo
de PARETO (Pareto optimality/Pareto superiority) [The Economics of Justice, pp. 54-55, 79, 88 e
ss]. Ora uma experiência que se cumpre numa (e como uma) reinvenção transformadora do
princípio da compensação potencial (dos perdedores) de Nicholas KALDOR e John HICKS
(«Verificando-se sempre perdedores e ganhadores, um estado de coisas é superior a outro se o
resultado da transformação que os conexiona se traduzir numa compensação social dos
perdedores pelos ganhadores»)[The Economics of Justice, pp. 91-94].
7
Frontiers of Legal Theory, 98.
8
O valor só corresponde ao preço no mercado competitivo perfeito! «Efficiency will be
achieved if the ideal of the perfect market is implemented (...): a perfect market is one
characterized by perfect knowledge on the part of the traders ― in a perfect market no buyer
ever pays more than any seller will accept, and no seller accepts less than any buyer will pay…»
(George STIGLER, apud Jeanne SCHROEDER, «The End of the Market…»).
9
The Economics of Justice, cit., 70.
10
Trata-se evidentemente de cruzar duas classificações imprescindíveis, contrapondo aos
real explicit markets (e à institucionalização normativa que os disciplina, em domínios
específicos do direito fiscal e comercial, da propriedade e dos contratos), uma (como que)
sistematização plausível dos implicit markets (e das instâncias de apparent non market
behavior que lhes correspondem). Sem esquecer que há aqui que invocar as noções de mercado
implícito tout court (que cobre mercados como os da educação ou da família... ou o das opções e
crimes sexuais... enquanto autorizam um confronto possível dos serviços ambicionados com
outros tantos serviços de substituição «vendidos em mercados explícitos») e de mercado
implícito hipotético (justificada por mercados como o dos acidentes... nos quais custos de
transação muito elevados impedem uma solução eficiente prosseguida no mercado real,
impondo assim um sistema regulatório de transações involuntárias). Para um desenvolvimento ,
cfr. The Economics of Justice, pp. 88 e ss. («The Consensual Basis of Efficiency»), 54-55, 61-
63.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 92
11
Frontiers of Legal Theory, cit., 100.
12
Frontiers of Legal Theory, cit., 122. Trata-se aqui e agora de responder recto itinere a
um problema-exemplo invocado por John BROOME («That of a forced uncompensated transfer of
a table from a poor person to a rich person»).
13
O que significa evidentemente reconhecer a legitimidade de um exercício de coacção
que se proponha (e na medida em que se proponha) garantir a racionalidade do mercado: sob o
modus e nos limites de uma simulação ou de um complexo de simulações regulatórias
[«...―market mimicking‖ forms of regulation.(...) dealing (...) with monopoly, externalities, and
other conditions that prevent the market from working well...» (Frontiers of Legal Theory, cit.,
99)]. Uma exigência que nos restitui directamente ao núcleo de representação das funções do
direito (na sua inteligibilidade normativa): «The most ambitious theoretical aspect of the
economic approach to law has been the proposal of an unified economic theory of law in which
law‘s function is understood to be facilitate the operation of free markets and, in areas where
the costs of market transactions are prohibitive, to ―mimic the market‖ by decreeing the
outcome that the market could be expected to produce if market transactions were feasible...»
(Ibidem, 5).
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 93
14
Segundo COASE, os custos de transacção (specific transaction costs) serão obstáculos às trocas
livres «inscritos» nos processos de negociação (que transaccionam legal entitlements). Que obstáculos?
Os que resultam das dificuldades de informação e do percurso para as obter, do comportamento
estratégico das partes, do oportunismo justificado pelas situações de poder, da mediação dos advogados,
do tempo e do esforço do regateio, das exigências de forma, das pré-determinações dos direitos
normativamente prescritas...
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 94
15
«Die Einheit des Rechtssystems», Rechtstheorie 14 (1983), p. 133. Nos termos exemplarmente
sintetizados por este ensaio, trata-se, como sabemos, de assumir como desafio a concepção de um sistema
que se quer auto-referencial, isto é, capaz de produzir (herstellen) a sua própria unidade («de produzir
como unidade aquilo que mobiliza-utiliza como unidade»): de tal modo que esta não resulte da
convocação de um princípio (Prinzip, Idee, Gesetz) mas da circularidade e recursividade imanente aos
elementos que integram o sistema [Ibidem, pp.129-131]. Sendo certo que por estes elementos (últimos)
se entendem sempre «comunicações» (die Gesllschaftsystem besteht aus sinnhaften Kommunikationen
(…), nur aus Kommunikationen und aus allen Kommunikationen) [Ibidem, p. 137]. Sem esquecer
evidentemente que se trata também de justificar a transposição (teoretico-sociologicamente relevante) das
exigências de um sistema que se diz autopoiético («capaz de constituir-produzir os elementos que o
compõem através dos elementos de que se compõe») —... e de tal modo que «a unidade (que para o
sistema é indecomponível) de cada um dos elementos só possa ser constituída através do sistema»... mas
de tal modo também que as «fronteiras» que o sistema impõe sejam rigorosa e implacavelmente «as suas»
[Ibidem, pp. 131-134 (II)].
16
Trata-se de mobilizar criticamente as «insuficiências» da «reflexividade cibernética» (als
Theorie kommunikativer Systeme) [cfr. «Kybernetische Regelung», Zweckbegriff und Systemrationalität.
Über die Funktion von Zwecken in sozialen Systemen, J.C. B. Mohr (Paul Siebeck), Tübingen 1968,
pp.107 e ss.] mas sobretudo as «perplexidades» e os «paradoxos» que a exigência de «adaptação co-
variante» (que lhe é correlativa) impõe ao problema-desafio da diferenciação social — tomada a sério als
Ausdifferenzierung (e então e assim sempre submetida à ameaça da indiferenciação-Entdifferenzierung)
[ver (entre muitas outras referências possíveis) Das Recht der Gesellschaft, Suhrkamp, Frankfurt am
Main, 1993,., pp. 26-31 e 550 e ss. («Die Gesellschaft und ihr Recht»)].
17
«Anders als in der Parsonsschen Theorie des allgemeinen Handlungssystems sehen wir
funktionale Diferenzierung als ein evolutionäres Produkt und nicht als eine logische Folge der Analyse
des Handlungsbegriffs…» (Ibidem, p. 585)
18
Tenhamos presente a síntese proposta em «Die Einheit des Rechtssystems», cit., pp.138-143
(V). Recordemos que a expectativa «beneficia de uma qualidade normativa (Sollqualität) sempre que, ao
compreendê-la, se determina também que ela não terá que ser alterada quando se experimenta a sua
frustração, violação ou não realização (im Enttäuschungsfalle)». Para as expectativas cognitivas (que
exprimem uma Wissensqualität) as exigências são precisamente as opostas (a falsificação é aqui
determinante). Ora o sistema de direito «precisa» desta distinção» para «combinar a clausura da
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 95
autoprodução recursiva com a abertura da sua relação com o meio». Enquanto constrói um sistema
normativamente fechado e cognitivamente aberto? Bem o sabemos. Normativamente fechado porque
«livre de fins» ou de um «fim» materialmente traduzível… e de tal modo que só o sistema possa conferir
«qualidade normativo-jurídica» aos seus elementos; cognitivamente aberto porque submetido à exigência
de («em relação a cada um dos elementos do sistema e em relação à sua reprodução permanente») ter que
determinar se certos «pressupostos» («factuais») se cumprem ou não. O que nos permite concluir que, se
a «qualidade normativa serve a autopoiesis do sistema, a sua autopreservação (Selbstkontinuierung) na
diferença perante o meio-Umwelt», a «qualidade cognitiva serve a exigência de coordenação-
Abstimmung (sintonização, sincronização)» com o mesmo meio [p. 139].
19
«Einheit», cit., p. 134.
20
Como se sabe esta é uma das determinações decisivas da auto-referencialidade: ver supra,
nota 18.
21
«Dank des binären Codes gibt es einen positiven Wert, wir nennen ihn Recht, und einen
negativen Wert, wir nennen ihn Unrecht. Der positive Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt mit
den Normen des Systems übereinstimmt. Der negative Wert wird angewandt, wenn ein Sachverhalt gegen
die Normen des Systems verstößt. Das, was wir soeben „Sachverhalt― genant haben, wird vom System
selbst konstruiert…» (Ibidem, p. 178).
22
Para o dizermos com Jean CLAM (mobilizando a correspondência que este nos propõe): cfr
«Une nouvelle sociologie du droit? Autour de Das Recht der Gesellschaft de Niklas Luhmann», Droit et
societé nº 33, 1966, pp. 413, nota 32.
23
«Aus der Codierung ergibt sich aber nur ein Ergänzungs bedarf, ein Bedarf für ―Supplemente‖
etwa im Sinne von Derrida, ein Bedarf für hinreichend deutliche Instruktionen…(Ibidem, p. 189).
24
Na mesma medida em que se especifica nos desafios dos binómios auto-orientação /
orientação para o ambiente (Selbstorientierung/ Umweltorientierung), redundância / variedade
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 96
Formulação que seria parcialmente alterada pela revisão de 1971.
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 101
→→ Parta também aqui de uma consideração de duas normas do Código Civil, na sua
redacção «primitiva»:
•«Presume-se legítimo o filho nascido ou concebido na constância do matrimónio da
mãe(...)»(artº 1801 nº1)
••«A partilha entre filhos faz-se por cabeça, dividindo-se a herança em tantas partes
quantos forem os herdeiros(...).Concorrendo à sucessão filhos legítimos ou legitimados
e filhos ilegítimos, cada um destes últimos tem direito a uma quota igual a metade da de
cada um dos outros.» (artº2139º)
→→Leia depois estas normas à luz da especificação do
princípio da igualdade objectivada no artigo 36º nº 4 da Cons-
tituição. Não deixe de as confrontar com a redacção em vigor
dos artos 1796º e 2139º do Código Civil.
1.5.3. O pólo do suum (eu pessoal, proprium) assimilado num princípio suprapositivo
de igualdade. A garantia normativa de uma reserva de possibilidades de
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 102
NEMINEM LAEDERE
COEXISTÊNCIA
CONVIVÊNCIA
HONESTE VIVERE
[Alusão ao problema da tutela-protecção dos bens jurídico-criminais]
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 104
2. A pergunta
A pergunta dirigida ao sentido normativamente material que constitui o direito
como direito : « Quanto à concepção do direito que lhe corresponderá, começaremos
por acentuar que também o jurisprudencialismo converterá a primeira pergunta numa
outra com este teor: que axiologia e sentido normativamente material constitui o direito
como direito, ou – e deste modo diferente é o mesmo que se pergunta – que sentido
axiológico-normativo se haverá de reconhecer no direito para que o possamos
compreender como direito? Não se trata agora nem de se postular teoricamente o direito
INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO CONTEMPORÂNEO 105
3. As categorias de inteligibilidade