3 - A Jaula Do Rei (Victoria Aveyard)

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FICHA TÉCNICA

TÍTULO: A Jaula do Rei


AUTORIA: Victoria Aveyard
EDITOR: Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Edições Saída de Emergência
Título original King’s Cage © 2017 Victoria Aveyard.
Publicado originalmente nos E.U.A. HarperTeen,
uma chancela HarperCollins Publishers, 2017
TRADUÇÃO: Teresa Martins de Carvalho
REVISÃO: Luís Guimarães
DESIGN DE INTERIORES: Saída de Emergência
DESIGN DA CAPA: Sarah Nichole Kaufman
ILUSTRAÇÃO DA CAPA: ©2017 por John Dismukes
MAPA: © & ™ 2017 Victoria Aveyard. Todos os direitos reservados.
Ilustrado por Amanda Persky
DATA DE EDIÇÃO E-BOOK: maio, 2020
ISBN: 978-989-773-286-7
EDIÇÕES SAÍDA DE EMERGÊNCIA
Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,
Edifício Qualidade - Bloco B3, Piso 0, Porta B
2740-296 Porto Salvo, Portugal
TEL E FAX: 214 583 770
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EPÍGRAFE

Jamais duvidem de que são valiosas e poderosas


e merecedoras de toda e cada oportunidade no mundo
para perseguirem e alcançarem os vossos sonhos.
— HRC
MAPA
CAPÍTULO UM

Mare

P onho-me de pé quando ele me deixa.


A corrente sacode-me, puxando o colar aguçado em
torno da minha garganta. As suas pontas cravam-se, não a
ponto de fazer sangue — ainda não. Mas dos punhos já estou a
sangrar. Feridas lentas, abertas ao longo de dias de
inconsciente cativeiro presa a algemas ásperas e dilaceradoras.
A cor mancha as minhas mangas brancas de carmesim-escuro
e escarlate vivo, desbotando de sangue velho para novo num
testemunho da minha provação. Para mostrar à corte de Maven
o que já sofri.
Ele ergue-se acima de mim, a sua expressão indecifrável. As
pontas da coroa do seu pai fazem-no parecer mais alto, como
se o ferro lhe brotasse do crânio. Brilhantes, cada ponta uma
chama retorcida de metal negro raiado de bronze e prata.
Foco-me no amargamente familiar objeto de forma a não ter
de olhar Maven nos olhos. Mas ele leva-me a fazê-lo seja
como for, puxando por outra corrente que não me é dado ver.
Só sentir.
Uma mão branca envolve-me o pulso ferido, de certo modo
gentil. Contra a minha vontade, os meus olhos chispam para o
seu rosto, incapazes de se manterem desviados. O seu sorriso é
tudo menos amável. Fino e afiado como uma lâmina,
mordendo-me com quantos dentes tem. E os seus olhos são o
pior de tudo. Os olhos dela, os olhos de Elara. Em tempos
achei-os frios, feitos de gelo vivo. Agora sei melhor. Os fogos
mais quentes ardem azuis, e os olhos dele não são exceção.
A sombra da flama. Ele está certamente inflamado, mas o
negrume corrói-lhe as arestas. Borrões de negro e azul como
hematomas rodeiam os olhos raiados de veias prateadas. Ele
não tem dormido. Está mais esguio do que me lembro, mais
magro, mais cruel. O cabelo, negro como um abismo, chega-
lhe às orelhas, encaracolando nas pontas, e as suas faces
permanecem lisas. Por vezes esqueço-me de quão novo ele é.
De quão novos somos ambos. Sob o meu vestido fluido, o M
marcado na minha clavícula arde-me.
Maven vira-se rapidamente, a minha corrente bem apertada
no seu punho cerrado, forçando-me a mover com ele. Uma lua
a orbitar um planeta.
— Testemunhai esta prisioneira, esta vitória — diz ele,
firmando os ombros para a vasta audiência diante de nós.
Trezentos Prateados pelo menos, nobres e civis, guardas e
oficiais. Estou dolorosamente consciente das Sentinelas na
orla da minha visão, as suas vestes de fogo um constante
lembrete da minha jaula que encolhe rapidamente. Os meus
guardas Arven também nunca estão fora de vista, os seus
uniformes brancos ofuscantes, a sua silenciadora aptidão
sufocante. Porventura asfixiarei na pressão da sua presença.
A voz do rei ecoa por toda a opulenta expansão da Praça de
César, reverberando através de uma multidão que responde da
mesma forma. Deve haver microfones e altifalantes algures,
para carregarem as amargas palavras do rei por toda a cidade,
e sem dúvida pelo restante reino.
— Eis a líder da Guarda Escarlate, Mare Barrow. — A
despeito da minha situação, quase bufo de escárnio. Líder. A
morte da sua mãe não lhe cerceou as mentiras. — Uma
assassina, uma terrorista, uma grande inimiga do nosso reino.
E agora ajoelha diante de nós, com o seu sangue a nu.
A corrente dá novo solavanco, fazendo-me tombar para a
frente, de braços esticados para me equilibrar. Reajo
entorpecida, de olhos baixos. Tanto aparato. Raiva e vergonha
insinuam-se através de mim quando me apercebo da extensão
de danos que este simples ato exercerá sobre a Guarda
Escarlate. Vermelhos por toda a Norta ver-me-ão dançar sob os
cordelinhos de Maven e julgar-nos-ão fracos, derrotados,
indignos da sua atenção, esforço ou esperança. Nada poderia
estar mais longe da verdade. Mas eu não posso fazer coisa
alguma, não agora, não aqui, postada no gume da navalha à
mercê de Maven. Interrogo-me quanto a Corvium, a cidade
militar que vimos a arder a caminho do Caldeirão. Houve um
motim após a transmissão da minha mensagem. Terá sido o
primeiro arquejo de revolução, ou o último? Não tenho forma
de saber. E duvido que alguém se digne trazer-me um jornal.
Cal preveniu-me contra a ameaça de uma guerra civil há
muito tempo, antes de o seu pai morrer, antes de ser deixado
com nada mais que uma tempestuosa rapariga-relâmpago.
Rebelião de ambos os lados, disse ele. Mas aqui postada, presa
por uma trela ante a corte de Maven e o seu reino Prateado,
não vejo divisão. Mesmo tendo-lhes eu demonstrado, falado
da prisão de Maven, dos seus entes queridos subtraídos, da sua
confiança traída por um rei e sua mãe, continuo a ser a inimiga
aqui. Dá-me vontade de gritar, mas eu sei. A voz de Maven
soará sempre mais alto que a minha.
Estarão a Mamã e o Papá a assistir? A ideia traz uma
renovada onda de pesar, e mordo com força o lábio para
impedir mais lágrimas de caírem. Sei que há câmaras de vídeo
nas proximidades, focadas no meu rosto. Mesmo conseguindo
já não senti-las, sei-o. Maven não perderia a oportunidade de
imortalizar a minha derrocada.
Estarão eles prestes a ver-me morrer?
O colar diz-me que não. Para quê dar-se ao trabalho deste
espetáculo se vai simplesmente matar-me? Outro qualquer
porventura sentiria alívio, mas as minhas entranhas gelam de
medo. Ele não me matará. Não Maven. Sinto-o no seu toque.
Os seus dedos compridos e pálidos ainda se agarram ao meu
pulso, enquanto a outra mão continua a segurar-me a trela.
Nem agora, que sou dolorosamente sua, ele me larga. Preferia
a morte a esta jaula, à retorcida obsessão de um desvairado
menino-rei.
Recordo as suas notas, cada uma terminando com o mesmo
estranho lamento.
Até ao nosso reencontro.
Ele continua a falar, mas a sua voz embota-se na minha
cabeça, o zumbido de um zângão que se aproxima de mais,
deixando cada nervo em franja. Olho por sobre o ombro. Os
meus olhos vagueiam através da multidão de cortesãos atrás de
nós. Todos eles postados orgulhosos e vis no seu luto negro. O
Senhor Volo, da Casa Samos, e o seu filho, Ptolemus,
resplandecem nas suas polidas armaduras de ébano com
escamadas faixas de prata do quadril ao ombro. À vista do
segundo vejo escarlate, enfurecido vermelho. Luto contra o
impulso de investir e rasgar a pele do rosto de Ptolemus. De
trespassar-lhe o coração como ele fez ao meu irmão Shade. O
desejo transparece e ele tem o desplante de sorrir
maliciosamente para mim. Não fossem o colar e os silenciosos
guardas restringindo tudo o que sou, desfazer-lhe-ia os ossos
em vidro fumegante.
De algum modo a sua irmã, uma inimiga de tantos meses,
não está a olhar para mim. Evangeline, o seu vestido cravejado
de cristal negro, é sempre a estrela resplandecente de tão
violenta constelação. Suponho que não tardará a ser rainha,
tendo suportado o noivado com Maven por demasiado tempo.
O seu olhar está nas costas do rei, olhos escuros fixos com
chamejante foco na sua nuca. Levanta-se uma brisa, agitando a
sua lustrosa cortina de cabelo prateado, soprando-lho para trás
dos ombros, mas ela não pestaneja. Só passado um longo
momento parece dar por mim a fitá-la. E, mesmo então, os
seus olhos mal tremulam na minha direção. Estão vazios de
sentimento. Não sou já digna da sua atenção.
— Mare Barrow é uma prisioneira da coroa e enfrentará a
coroa e o julgamento do conselho. Deverá responder pelos
seus muitos crimes.
Com quê?, interrogo-me.
A multidão ruge em resposta, aclamando o seu decreto. São
Prateados, mas «plebeus», não de descendência nobre.
Enquanto eles se regozijam com as palavras de Maven, a sua
corte não reage. De facto, alguns ficam lívidos, zangados, de
rostos empedernidos. Nenhuns mais do que a Casa Merandus,
o seu traje de luto retalhado com o azul-escuro das miseráveis
cores da rainha morta. Enquanto Evangeline não me prestou
atenção, eles fixam-se no meu rosto com surpreendente
intensidade. Olhos de um azul flamejante de todas as direções.
Conto ouvir os seus sussurros na minha cabeça, uma dúzia de
vozes escavando por mim adentro como vermes numa maçã
podre. Em vez disso, apenas silêncio. Talvez os oficiais Arven
que me ladeiam não sejam simples carcereiros, mas protetores
também, suprimindo a minha aptidão bem como as de quem
quer que as usasse contra mim. Ordens de Maven, depreendo.
Ninguém mais me pode causar dano aqui.
Ninguém senão ele.
Mas tudo me dói já. Dói-me estar de pé, dói-me mexer-me,
dói-me pensar. Do despenhar do jato, do sonador, do peso
esmagador dos guardas silenciadores. E essas são meras
feridas físicas. Contusões. Fraturas. Dores que sararão se lhes
for dado tempo. O mesmo não se pode dizer do resto. O meu
irmão está morto. Eu sou uma prisioneira. E não sei o que
aconteceu realmente aos meus amigos, não obstante há muitos
dias ter fechado este negócio do diabo. Cal, Kilorn, Cameron,
os meus irmãos Bree e Tramy. Deixámo-los para trás na
clareira, mas estavam feridos, imobilizados, vulneráveis.
Maven poderia ter enviado fosse que número fosse de
assassinos de volta para terminarem o que ele começara. Eu
troquei-me por eles todos, e nem sequer sei se resultou.
Maven dir-me-ia se eu lhe perguntasse. Posso vê-lo no seu
rosto. Os seus olhos dardejam para os meus após cada abjeta
frase, pontuando cada mentira representada para os seus
adoradores súbditos. Para se assegurar de que estou a assistir, a
prestar atenção, a olhar para ele. Como a criança que é.
Não lhe implorarei. Não aqui. Não assim. Tenho orgulho
bastante para isso.
— A minha mãe e o meu pai morreram a lutar contra estes
animais — prossegue ele. — Deram as suas vidas para manter
este reino íntegro, para vos manter a salvo.
Derrotada como estou, não posso deixar de fulminar Maven
com o olhar, respondendo ao seu fogo com um silvo. Ambos
nos lembramos da morte do seu pai. Do seu assassínio. A
Rainha Elara penetrou com os seus sussurros no cérebro de
Cal, transformando o amado herdeiro real numa arma mortal.
Maven e eu assistimos enquanto Cal era forçado a tornar-se no
assassino de seu pai, decepando a cabeça do rei e qualquer
hipótese que Cal tinha de governar. Tenho visto muitas coisas
horríveis desde então, e a memória ainda me assombra.
Não recordo grande coisa do que aconteceu à rainha à saída
da Prisão de Corros. O estado do seu corpo depois era prova
suficiente do que desenfreados relâmpagos podem fazer à
carne humana. Sei que a matei sem me questionar, sem
remorso, sem arrependimento. A minha devastadora
tempestade alimentada pela súbita morte de Shade. A última
imagem clara que tenho da batalha de Corros é dele a cair, o
coração trespassado pelo frio e implacável aço da agulha de
Ptolemus. De algum modo Ptolemus escapou à minha raiva
cega, mas não a rainha. Pelo menos o Coronel e eu
assegurámo-nos de que o mundo saberia o que lhe tinha
acontecido, exibindo o seu corpo durante a nossa transmissão.
Quem me dera que Maven tivesse parte da sua aptidão, de
modo a poder olhar dentro da minha cabeça e ver exatamente
que tipo de fim eu dei à sua mãe. Quero que ele sinta a dor da
perda tão terrivelmente como eu.
Os seus olhos estão postos em mim enquanto finaliza o seu
discurso memorizado, uma mão estendida para diante para
melhor exibir a corrente que me prende a ele. Tudo o que ele
faz é metódico, representado para uma imagem.
— Eu comprometo-me a fazer o mesmo, a pôr fim à Guarda
Escarlate e a monstros como Mare Barrow, ou a morrer
tentando.
Morre, então, quero gritar.
O rugido da multidão abafa-me os pensamentos. Centenas
aclamam o seu rei e a sua tirania. Chorei na travessia a pé da
ponte, perante tantos culpando-me pelas mortes dos seus entes
queridos. Ainda posso sentir as lágrimas a secarem nas faces.
Agora quero chorar de novo, não de tristeza, mas de raiva.
Como podem eles acreditar nisto? Como podem engolir estas
mentiras?
Como uma boneca, sou tirada de vista. Com as últimas
forças que me restam, estico o pescoço por sobre o ombro, à
caça das câmaras, dos olhos do mundo. Vejam-me, imploro.
Vejam como ele mente. O meu maxilar contrai-se, os olhos
semicerram-se, pintando o que rogo ser uma imagem de
resiliência, rebelião e raiva. Eu sou a rapariga-relâmpago. Eu
sou uma tempestade. Sinto-o como uma mentira. A rapariga-
relâmpago morreu.
Mas é a última coisa que posso fazer pela causa e pelas
pessoas que amo que ainda lá estão. Não me verão cambalear
neste momento final. Não, manter-me-ei de pé. E embora não
faça ideia como, tenho de continuar a lutar, aqui mesmo no
bucho da besta.
Outro puxão força-me a girar para enfrentar a corte. Frios
Prateados fitam-me de volta, a sua pele matizada de azul e
negro e púrpura e cinzento, descorada de vida, com veias de
aço e diamante em vez de sangue. Focam-se não em mim mas
no próprio Maven. Neles encontro a minha resposta. Neles
vejo fome.
Por uma fração de segundo apiedo-me do menino-rei, só no
seu trono. Então, lá bem no fundo, sinto o alento instigador da
esperança.
Oh, Maven. Em que desgraça estás metido.
Apenas me posso perguntar quem atacará primeiro.
A Guarda Escarlate ou os senhores e senhoras prontos a
cortar a garganta de Maven e a tomar tudo pelo que a sua mãe
morreu.
Ele entrega a minha trela a um dos Arven assim que nos
escapamos pelos degraus do Fogo Branco, recolhendo-nos
dentro do vasto átrio de entrada do palácio. Estranho. Ele
estava tão fixado em ter-me de volta, em pôr-me na sua jaula,
mas larga as minhas correntes sem um olhar sequer. Cobarde,
digo para comigo própria. Ele não consegue olhar para mim
quando não se trata de dar espetáculo.
— Mantiveste a tua promessa? — clamo, sem fôlego. A
minha voz soa rouca pelos dias de falta de uso. — És um
homem de palavra?
Ele não responde.
O resto da corte já aí vem atrás de nós. As suas linhas e
fileiras estão bem ensaiadas, baseadas nas intrincadas
complexidades de estatuto e classe. Só eu estou deslocada, a
primeira a seguir o rei, caminhando alguns passos atrás no
lugar onde deveria estar uma rainha. Não poderia estar mais
longe do título.
Olho de relance para o maior dos meus carcereiros, na
esperança de ver nele algo mais que lealdade cega. Enverga
um uniforme branco, espesso, à prova de bala, com fecho de
correr bem apertado até à garganta. Luvas brilhantes. Não de
seda, mas plástico — borracha. Encolho-me à visão. A
despeito da sua aptidão silenciadora, os Arven não correrão
quaisquer riscos comigo. Mesmo que eu logre fazer escapar
uma faísca à sua constante investida, as luvas proteger-lhes-ão
as mãos e permitir-lhes-ão manterem-me presa pela coleira,
acorrentada e enjaulada. O Arven grandalhão não cruza o
olhar comigo, os olhos focados adiante e os lábios franzidos de
concentração. O outro é exatamente igual, ladeando-me em
compasso perfeito com o seu irmão ou primo. Os seus crânios
nus reluzem, e lembro-me de Lucas Samos. O meu amável
guarda, meu amigo, que foi executado por eu existir, e por eu
o usar. Tive sorte então, por Cal me ter dado um Prateado tão
decente para me manter prisioneira. E, constato, tenho sorte
agora. Guardas indiferentes ser-me-ão mais fáceis de matar.
Porque eles têm de morrer. Seja como for. Seja de que
forma for. Se é que vou escapar, se é que quero recuperar os
meus relâmpagos, eles são os primeiros obstáculos a superar.
Os restantes são fáceis de adivinhar. As Sentinelas de Maven,
os outros guardas e oficiais colocados por todo o palácio, e
claro está o próprio Maven. Não sairei deste lugar a menos que
deixe para trás o seu cadáver — ou o meu.
Penso em matá-lo. Envolver-lhe o pescoço com a minha
corrente e espremer-lhe a vida do corpo. Isso ajuda-me a
ignorar o facto de que cada passo me faz penetrar mais fundo
no palácio, passando por sobre mármore branco, para lá de
elevadas paredes douradas, sob uma dúzia de candelabros com
lâmpadas de cristal esculpidas em forma de chamas. Tão belo
e frio como eu o recordo. Uma prisão de trancas douradas e
grades de diamante. Pelo menos não terei de encarar a sua
mais violenta e perigosa guardiã. A velha rainha está morta.
Ainda assim, sinto calafrios ao pensar nela. Elara Merandus. A
sua sombra paira como um fantasma na minha cabeça. Em
tempos esventrou todas as minhas memórias. Agora é uma
delas.
Uma figura couraçada interpõe-se na minha visão,
contornando os meus guardas para se plantar entre o rei e eu.
Anda a compasso connosco, um persistente guardião, embora
não envergue as vestes ou a máscara de uma Sentinela.
Suponho que saiba que estou a pensar estrangular Maven.
Mordo o lábio, preparando-me para a aguda ferroada de um
assalto de whisper1.
Mas não, ele não é da Casa Merandus. A sua armadura é de
um negro de obsidiana, o cabelo prateado, a pele branca de
luar. E os olhos, quando olha por sobre o ombro para mim, são
vazios e negros.
Ptolemus.
Invisto de dentes arreganhados, sem saber o que faço, sem
querer saber. Desde que deixe a minha marca. Interrogo-me se
o sangue Prateado terá um sabor diferente do Vermelho.
Não chego a descobri-lo.
O meu colar retesa-se bruscamente para trás, puxando-me
com tal violência que a minha espinha se arqueia e caio
desamparada no chão. Um pouco mais de força e teria partido
o pescoço. A pancada de mármore contra osso faz o mundo
rodopiar, mas não o bastante para me manter por terra.
Levanto-me atabalhoada, a minha visão estreitando-se para as
pernas couraçadas de Ptolemus, que se vira agora para me
encarar. De novo invisto contra elas e de novo o colar me puxa
para trás.
— Chega disto — silva Maven.
Ergue-se acima de mim, estacando para observar as minhas
pobres tentativas de me vingar de Ptolemus. O resto do cortejo
parou também, muitos chegando-se à frente para ver a
retorcida ratazana Vermelha lutar em vão.
O colar parece apertar-se, e eu engulo em seco contra ele,
levando as mãos à garganta.
Maven mantém os olhos no metal que se retrai. —
Evangeline, eu disse que chega.
A despeito da dor, viro-me para dar com ela nas minhas
costas, um punho cerrado no flanco. Como ele, tem os olhos
fixos no meu colar. Este pulsa enquanto se move. Deve bater
em uníssono com o pulsar do coração dela.
— Deixe-me soltá-la — diz, e eu interrogo-me se terei
ouvido mal. — Deixe-me soltá-la aqui mesmo. Dispense os
guardas e eu matá-la-ei, com relâmpagos e tudo.
Rosno-lhe, toda eu a fera que me julgam. — Tenta só —
digo-lhe, desejando de todo o coração que Maven aceda.
Mesmo com as minhas feridas, os meus dias de silêncio e os
meus anos de inferioridade relativamente à rapariga
magnetron, quero o que ela oferece. Derrotei-a antes. Posso
fazê-lo de novo. É uma oportunidade, pelo menos. Uma
oportunidade melhor do que alguma vez poderia esperar.
Os olhos de Maven dardejam do meu colar para a sua noiva,
o seu rosto assumindo uma fechada e cauterizante carranca.
Vejo nele tanto da sua mãe… — Está a questionar as ordens
do seu rei, Senhora Evangeline?
Os dentes dela lampejam por entre uns lábios pintados de
púrpura. A sua capa de cortesã ameaça tombar por terra, mas
antes que possa dizer algo verdadeiramente condenável, o seu
pai muda impercetivelmente de posição, o braço roçando o
dela. A sua mensagem é clara: Obedece.
— Não — rosna ela, querendo dizer sim. O seu pescoço
curva-se, inclinando a cabeça. — Vossa Majestade.
O colar dá de si, alargando novamente ao tamanho do meu
pescoço. Porventura até mais lasso que antes. Pequena bênção
que Evangeline não seja tão meticulosa como anseia parecer.
— Mare Barrow é uma prisioneira da coroa, e a coroa fará
com ela o que bem entender — diz Maven, a sua voz soando
para lá da sua volátil noiva. Os seus olhos varrem o resto da
corte, tornando claras as suas intenções. — A morte é boa de
mais para ela.
Um murmúrio baixo alastra através dos nobres. Oiço tons
de oposição, mas ainda mais de concordância. Estranho.
Julguei que todos eles me quisessem executada da pior forma,
suspensa para alimento de abutres e corrosão de qualquer
terreno que a Guarda Escarlate tivesse ganhado. Mas suponho
que querem piores destinos para mim.
Piores destinos.
Foi o que Jon disse antes. Quando vimos o que me
reservava o futuro, onde levava o meu caminho. Ele sabia que
isto vinha aí. Sabia, e disse ao rei. Comprou um lugar ao lado
de Maven com a vida do meu irmão e a minha liberdade.
Descubro Jon postado na multidão, mantido ao largo pelos
circunstantes. Os seus olhos estão vermelhos, lívidos; o cabelo
prematuramente grisalho e atado num apertado rabicho. Outro
sanguenovo de estimação para Maven Calore, só que este não
tem correntes que eu veja. Porque ele ajudou Maven a deter a
nossa missão de salvamento de uma legião de crianças antes
que pudesse sequer começar. Disse a Maven os nossos
caminhos e o nosso futuro. Embrulhou-me como um presente
para o menino-rei. Traiu-nos a todos.
Jon está de olhos fitos em mim, claro. Não espero um
pedido de desculpas pelo que fez, e não o recebo.
— E que tal um interrogatório?
Uma voz que não reconheço soa à minha esquerda. Ainda
assim, conheço-lhe o rosto.
Samson Merandus. Um lutador de arena, um feroz whisper,
um primo da rainha morta. Abre caminho na minha direção, e
não consigo evitar retrair-me. Numa outra vida vi-o fazer o seu
oponente na arena apunhalar-se até à morte. Kilorn estava
sentado ao meu lado a assistir, aclamando, gozando as suas
últimas horas de liberdade. Então o seu mestre morreu e todo o
nosso mundo se alterou. Os nossos caminhos mudaram. E
agora estou esparramada sobre imaculado mármore, fria e
sangrando, menos que um cão aos pés de um rei.
— É ela boa de mais para ser interrogada, Vossa Majestade?
— continua Samson, apontando uma mão branca na minha
direção. Pega-me pelo queixo, forçando-me a olhar para cima.
Luto contra o impulso de mordê-lo. Não preciso dar a
Evangeline outra desculpa para me asfixiar. — Pense no que
ela viu. No que sabe. É líder deles… e a chave para desvelar a
sua ignóbil laia.
Está enganado, mas o coração martela-me ainda assim no
peito. Sei o suficiente para provocar grandes danos. Tuck
lampeja-me diante dos olhos, bem como o Coronel e os
gémeos de Montfort. A infiltração das legiões. As cidades. Os
Whistles2 por todo o país, agora transportando refugiados para
lugar seguro. Preciosos segredos cuidadosamente guardados, e
que não tardarão a ser revelados. Quantos porá o meu
conhecimento em perigo? Quantos morrerão quando eles me
abrirem à força?
E isso é apenas inteligência militar. Pior ainda são as partes
obscuras da minha própria mente. Os recessos onde mantenho
os meus piores demónios. Maven é um deles. O príncipe que
eu recordei e amei e desejei que fosse real. Depois há Cal. O
que eu fiz para o conservar, o que ignorei, e que mentiras digo
a mim mesma quanto às suas fidelidades. A minha vergonha e
os meus erros consomem, corroem-me pelas raízes. Não posso
deixar Samson — ou Maven — ver tais coisas dentro de mim.
Por favor, quero implorar. Os meus lábios não se mexem.
Por muito que odeie Maven, por muito que o queira ver sofrer,
sei que ele é a minha melhor hipótese. Mas suplicar
misericórdia diante dos seus mais fortes aliados e piores
inimigos apenas enfraquecerá um rei já fraco. De modo que
me mantenho calada, tentando ignorar a mão de Samson a
agarrar-me o maxilar, focando-me apenas no rosto de Maven.
Os seus olhos buscam os meus por um longuíssimo e
curtíssimo momento.
— Têm as vossas ordens — diz bruscamente, assentindo
para os meus guardas.
Eles agarram-me com firmeza mas sem magoar ao porem-
me de pé, usando mãos e correntes para me guiarem para fora
da multidão. Deixo-os todos para trás. Evangeline, Ptolemus,
Samson e Maven.
Ele gira nos calcanhares, avançando na direção oposta, para
a única coisa que lhe resta para o manter quente.
Um trono de flamas congeladas.
1
Sussurro. (N. da T.)
2
Assobios. A alcunha dos contrabandistas da Guarda Vermelha. (N. da T.)
CAPÍTULO DOIS

Mare

N unca estou sozinha.


Os carcereiros não me largam. Sempre dois, sempre
vigiando, sempre mantendo silenciado e suprimido o que sou.
De nada mais precisam do que de uma porta trancada para
fazerem de mim uma prisioneira. Não que me possa sequer
aproximar da porta sem ser brutalmente trazida de volta para o
centro do meu quarto. Eles são mais fortes do que eu, e
eternamente vigilantes. O meu único ponto de escape aos seus
olhos é a pequena casa de banho, uma divisão de azulejos
brancos e acessórios dourados, com uma sinistra linha de
Pedra Silenciosa ao longo do chão. São lajes cinza-pérola
suficientes para me fazerem martelar a cabeça e contrair a
garganta. Tenho de me despachar e fazer bom uso de cada
estrangulador segundo. A sensação faz-me lembrar Cameron e
a sua aptidão. Ela pode matar uma pessoa com a força do seu
silêncio. Por muito que odeie a constante vigilância dos meus
guardas, não arriscarei sufocar num chão de casa de banho por
uns quantos minutos extra de paz.
Engraçado, dantes pensava que o meu maior medo era ser
deixada sozinha. Agora estou tudo menos isso, mas nunca
estive mais aterrorizada.
Não sinto os meus relâmpagos há quatro dias.
Cinco.
Seis.
Dezassete.
Trinta e um.
Gravo cada dia no rodapé junto da cama, usando um garfo
para marcar o tempo que passa. Sabe bem deixar a minha
marca, infligir a minha própria pequena lesão na prisão do
Palácio de Fogo Branco. Os Arven não se ralam. Ignoram-me
a maior parte do tempo, apenas focados num total e absoluto
silêncio. Mantêm-se nos seus lugares junto da porta, sentados
quais estátuas com olhos vivos.
Este não é o mesmo quarto em que dormi da última vez que
estive no Fogo Branco. Obviamente não seria apropriado
alojar uma prisioneira real no mesmo lugar de uma noiva real.
Mas tão-pouco estou numa cela. A minha jaula é confortável e
bem mobilada, com uma cama macia, uma estante cheia de
enfadonhos tomos, algumas cadeiras, uma mesa onde comer,
mesmo cortinas finas, tudo em tons neutros de cinzento,
castanho e branco. Esvaído de cor, tal como os Arven me
esvaem de poder.
Habituo-me lentamente a dormir sozinha, mas sou assolada
por pesadelos sem Cal para os manter ao largo. Sem alguém
que goste de mim. De cada vez que acordo, toco nos brincos
que me pontilham as orelhas, nomeando cada pedra. Bree,
Tramy, Shade, Kilorn. Irmãos de sangue e vínculo. Três vivos,
um fantasma. Quem me dera ter um brinco igual ao que dei a
Gisa, de modo a poder ter um pedaço dela também. Sonho
com ela às vezes. Nada concreto, mas lampejos do seu rosto, o
cabelo vermelho e escuro como sangue derramado. As suas
palavras assombram-me como nada mais. Um dia hão de vir e
levar tudo o que tens. Estava certa.
Não há espelhos, nem mesmo na casa de banho. Mas eu sei
o que este lugar me está a fazer. Apesar das refeições fartas e
da falta de exercício, sinto o rosto mais magro. Os ossos
sobressaem-me da pele, mais aguçados que nunca à medida
que definho. Não há muito mais que fazer além de dormir ou
ler um dos volumes sobre o código tributário de Norta, mas,
todavia, a exaustão faz-se sentir desde há uns dias. Equimoses
florescem a cada toque. E sinto o colar a arder embora passe
os dias com frio, a tremer. Bem pode ser uma febre. Bem
posso estar a morrer.
Não que tenha alguém a quem contar. Mal falo já ao longo
dos dias. A porta abre-se para entrar comida e água, para a
mudança de carcereiros e nada mais. Nunca vejo uma
camareira ou um serviçal Vermelho, embora devam existir. Em
vez disso, os Arven recolhem refeições, roupas de cama e
banho, vestuário, depositados no exterior, trazendo-os para
dentro para meu uso. E depois limpam tudo, com caretas por
levarem a cabo tarefas tão vis. Suponho que seja demasiado
perigoso deixar entrar um Vermelho no meu quarto. O
pensamento faz-me sorrir. Então a Guarda Escarlate ainda é
uma ameaça, o suficiente para justificar tão rígido protocolo
que nem mesmo serviçais são permitidos na minha presença.
Mas lá está, parece que mais ninguém é. Não vem mais
ninguém embasbacar-se ou regozijar-se com a rapariga-
relâmpago. Nem mesmo Maven.
Os Arven não falam comigo. Não me dizem os seus nomes.
Pelo que lhos atribuo eu. A Gatinha, a mulher mais velha e
mais pequena que eu, com rosto minúsculo e olhos vivos e
argutos. O Ovo, de cabeça redonda, branca e calva como os
restantes guardas seus companheiros. O Trio tem três linhas
tatuadas pelo pescoço abaixo, qual deslizar de perfeitas garras.
E a Trevo de olhos verdes, uma rapariga com cerca da minha
idade, inabalável nos seus deveres. Ela é a única que ousa
fixar-me nos olhos.
Quando primeiro constatei que Maven me queria de volta,
contava com dor, ou escuridão, ou ambas. Acima de tudo
contava vê-lo e suportar o meu tormento sob os seus olhos
flamejantes. Mas nada recebo. Não desde o dia em que
cheguei e fui forçada a ajoelhar. Ele disse-me então que poria
o meu corpo em exibição. Mas não vieram carrascos nenhuns.
Nem tão-pouco os whispers, homens como Samson Merandus
e a rainha morta, para me abrirem à força a cabeça e
desbobinarem os meus pensamentos. Se é esta a minha
punição, bem enfadonha é. Maven não tem imaginação.
Há ainda as vozes na minha cabeça, e tantas, demasiadas
memórias. Cortantes como gumes de lâminas. Tento
embrutecer a dor com livros ainda mais embrutecedores, mas
as palavras pairam-me diante dos olhos, as letras reordenando-
se até nada mais ver que os nomes daqueles que deixei para
trás. Os vivos e os mortos. E sempre, em todo o lado, Shade.
Ptolemus pode ter matado o meu irmão, mas fui eu que pus
Shade no seu caminho. Porque fui egoísta, julgando-me
alguma espécie de salvadora. Porque, uma vez mais, depositei
a minha esperança em alguém em quem não devia e negociei
vidas como um apostador que joga cartas. Mas libertaste uma
prisão. Libertaste tanta gente — e salvaste Julian.
Fraco pensamento, mais fraca ainda consolação. Sei agora
qual foi o custo da Prisão de Corros. E cada dia admito o facto
de que, se me fosse dado escolher, não o pagaria de novo.
Nem por Julian, nem por uma centena de sanguenovos vivos.
Não salvaria qualquer deles com a vida de Shade.
E foi tudo igual no fim. Maven pedia-me que regressasse há
meses, implorando a cada nota manchada de sangue. Esperava
comprar-me com cadáveres, com os corpos dos mortos. Mas
eu achava que não havia troca que fizesse, nem mesmo por mil
vidas inocentes. Tomara agora ter feito o que ele pedia há
muito tempo. Antes de ele pensar em vir por aqueles de quem
verdadeiramente gosto, sabendo que os salvaria. Sabendo que
Cal, Kilorn, a minha família, eram a única troca que estava
disposta a negociar. Pelas suas vidas, tudo dei.
Aposto que ele sabe fazer melhor que torturar-me. Mesmo
com o sonador, uma máquina feita para usar os meus
relâmpagos contra mim, para me desfazer, nervo a nervo.
A minha agonia é inútil para ele. A sua mãe ensinou-o bem.
O meu único conforto é saber que o jovem rei está sem a sua
vil marionetista. Enquanto sou mantida aqui, vigiada dia e
noite, ele está sozinho à cabeça de um reino, sem Elara
Merandus para lhe guiar a mão e lhe proteger a retaguarda.
Já passou um mês desde que respirei ar puro, e quase igual
tempo desde que vi alguma coisa que não o interior do meu
quarto e a estreita vista que a minha única janela proporciona.
A janela dá para um jardim interior, mais que morto no final
do outono. O seu arvoredo está retorcido por mãos de
greenwardens3. Em folha, deve parecer maravilhoso: uma
verdejante coroa de flores com ramos incrivelmente
espiralados. Mas nus, os nodosos carvalhos, ulmeiros e faias
recurvam-se em garras, os seus dedos secos e mortos raspando
uns contra os outros como ossos. O pátio está abandonado,
esquecido. Tal como eu.
Não, rosno para comigo própria.
Os outros virão por mim.
Ouso ter esperança. Sinto um baque no estômago de cada
vez que a porta se abre. Por um momento, conto ver Cal ou
Kilorn ou Farley, talvez a Babá com a cara de outra pessoa.
Até mesmo o Coronel. Agora choraria ao ver o seu olho
escarlate. Mas não vem ninguém. Ninguém aí vem por mim.
É cruel dar esperança onde nenhuma deve existir.
E Maven sabe-o.
Quando o Sol se põe no trigésimo primeiro dia, percebo o
que intenta ele fazer.
Quer que eu definhe. Que murche. Que seja esquecida.
Lá fora, no jardim interior de ossos, uma neve precoce paira
em flocos nascidos de um céu cinzento-ferro. O vidro está frio
ao toque, mas recusa-se a congelar.
Também eu recusarei.
A neve lá fora está perfeita à luz matinal, uma crosta branca
revestindo árvores nuas. À tarde terá derretido. Pelas minhas
contas, estamos a 11 de dezembro. Um tempo frio, cinzento e
morto no eco entre o outono e o inverno. A verdadeira neve
não se fará sentir em força antes do mês que vem.
Lá em casa costumávamos saltar do alpendre durante os
nevões, mesmo depois de Bree ter partido a perna ao aterrar
numa pilha de lenha soterrada. Custou a Gisa o salário de um
mês para o pôr bom, e eu tive de roubar a maior parte dos
suprimentos de que o nosso pretenso médico precisou. Foi no
inverno antes de Bree ser recrutado, a última vez em que toda
a família esteve junta. A última vez. Para sempre. Nunca mais
estaremos todos de novo.
A Mamã e o Papá estão com a Guarda. Gisa e os meus
irmãos vivos também. Estão a salvo. Estão a salvo. Estão a
salvo. Repito as palavras como faço todas as manhãs. São um
conforto, ainda que possa não ser verdade.
Devagar, empurro para longe o meu prato de pequeno-
almoço. A agora familiar refeição de papa de aveia açucarada,
fruta e torrada não me traz qualquer conforto.
— Acabei — digo por hábito, sabendo que ninguém
responderá.
A Gatinha já está ao meu lado, desdenhando a comida
deixada a meio. Pega no prato como se fosse um inseto,
sustendo-o à largura de um braço para o levar para a porta.
Levanto rapidamente os olhos, esperando um único vislumbre
da antecâmara lá fora. Como sempre, está vazia, e o coração
cai-me aos pés. Ela pousa sonoramente o prato no chão, talvez
partindo-o, mas não é problema seu. Algum serviçal limpará
os estragos. A porta fecha-se atrás dela e a Gatinha regressa ao
seu assento. Trio ocupa a outra cadeira, de braços cruzados,
olhos sem pestanejar fitos no meu tronco. Posso sentir a sua
aptidão e a dela. Sinto como que um cobertor apertado à
minha volta, mantendo os meus relâmpagos presos e
escondidos, bem longe num lugar onde nem posso sonhar ir.
Dá-me ganas de arrancar a minha própria pele.
Odeio-o. Odeio-o.
O-dei-o.
Pás.
Atiro o copo de água contra a parede em frente, deixando
que se quebre e estilhace contra a horrível pintura cinzenta.
Nenhum dos meus guardas se retrai sequer. Estou sempre a
fazer isto.
E ajuda. Por um minuto. Talvez.
Sigo o programa do costume, que desenvolvi ao longo do
último mês de cativeiro. Acordo. Imediatamente o lamento.
Recebo o pequeno-almoço. Perco o apetite. Deixo que me
levem a comida. Imediatamente o lamento. Atiro água.
Imediatamente o lamento. Desfaço a cama. Rasgo talvez os
lençóis, às vezes aos gritos. Imediatamente o lamento. Tento
ler um livro. Olho pela janela. Olho pela janela. Recebo o
almoço. Repito.
Sou uma rapariga muito ocupada.
Ou calculo que deva dizer mulher.
Dezoito é a divisão arbitrária entre a menoridade e a
maioridade. E eu completei dezoito anos há umas semanas. A
17 de novembro. Não que alguém soubesse ou tenha dado por
isso. Duvido que os Arven se interessem com o facto de a
pessoa a seu cargo estar um ano mais velha. Só uma pessoa
neste palácio-prisão se ralaria. E ele não me visitou, para meu
alívio. É a única bênção no meu cativeiro. Enquanto aqui estou
presa, rodeada pelas piores pessoas que alguma vez
conhecerei, não tenho de suportar a sua presença.
Até hoje.
O absoluto silêncio à minha volta estilhaça-se, não com uma
explosão mas com um clique. O familiar rodar da fechadura da
porta. Fora de horas, sem justificação. A minha cabeça dardeja
ao som, tal como as dos Arven, a sua concentração quebrando-
se de surpresa. As minhas veias enchem-se de adrenalina,
impulsionada pelo meu coração que subitamente se põe a
batucar. Por uma fração de segundo, ouso ter esperança de
novo. Sonho com quem poderá estar do outro lado da porta.
Os meus irmãos. Farley. Kilorn.
Cal.
Quero que seja Cal. Quero que o seu fogo consuma este
lugar e toda esta gente.
Mas o homem postado do outro lado não é alguém que eu
reconheça. Só o seu vestuário é familiar — uniforme negro,
detalhes prateados. Um oficial de Segurança, sem nome nem
importância. Ele entra na minha prisão, mantendo a porta
aberta com as costas. Mais da sua laia estão juntos do outro
lado da porta, obscurecendo a antecâmara com a sua presença.
Os Arven põem-se em pé de um salto, tão surpreendidos
como eu.
— O que estão a fazer? — desdenha Trio. É a primeira vez
que oiço a sua voz.
A Gatinha faz o que foi treinada a fazer, interpondo-se entre
mim e o oficial. Outra explosão de silêncio abate-se sobre
mim, alimentado pelo seu medo e confusão. Rebenta como
uma onda, consumindo os pedacinhos de força que ainda me
restam. Permaneço enraizada na cadeira, abominando a ideia
de me ir abaixo diante de outras pessoas.
O oficial de Segurança nada diz, fitando o chão. Esperando.
Ela entra em resposta, num vestido feito de agulhas. O seu
cabelo prateado foi penteado e entrançado com pedras
preciosas, no modelo da coroa que ela anseia por usar.
Estremeço ao vê-la, perfeita e fria e aguçada, uma rainha de
porte se não ainda de título. Porque ela não é ainda rainha.
Posso vê-lo.
— Evangeline — murmuro, tentando ocultar o tremor da
minha voz, tanto de medo como de desuso. Os seus olhos
negros percorrem-me com toda a ternura de um chicote a
estalar. Da cabeça aos pés e de volta, reparando em cada
imperfeição, cada fraqueza. Sei que são muitas. Finalmente o
seu olhar fixa-se no meu colar, avaliando as aguçadas arestas
de metal. O seu lábio recurva-se de repulsa, e igualmente
fome. Quão fácil lhe seria esmagar, cravar-me as pontas do
colar na garganta e fazer-me esvair em sangue.
— Senhora Samos, não lhe é permitido entrar aqui — diz a
Gatinha, ainda postada entre nós. Surpreendo-me com a sua
ousadia.
Os olhos de Evangeline tremulam para a minha guarda, o
seu sorriso de desdém rasgando-se. — Pensa que eu
desobedeceria ao rei, meu noivo? — Força uma risada fria. —
Estou aqui por ordens suas. Ele ordena a presença da
prisioneira na corte. Já.
Cada palavra é um ferrão. Um mês de prisão parece de
súbito por de mais curto. Uma parte de mim quer agarrar-se à
mesa e forçar Evangeline a arrastar-me para fora da minha
jaula. Mas nem mesmo o isolamento quebrou o meu orgulho.
Ainda não.
Nunca, recordo a mim mesma. Pelo que me ergo sobre as
pernas fracas, com articulações doloridas, mãos trémulas. Há
um mês ataquei o irmão de Evangeline com pouco mais que os
meus dentes. Tento congregar o máximo que posso desse fogo,
nem que seja para me ter de pé, direita.
A Gatinha mantém-se no lugar, imóvel. A sua cabeça vira-
se para Trio, olhando o primo nos olhos. — Não nos foi dito
nada. Este não é o protocolo.
Evangeline ri-se de novo, mostrando os dentes brancos e
resplandecentes. O seu sorriso é belo e violento como uma
lâmina. — Está a dizer-me que não, Guarda Arven? — Ao
falar, leva as mãos ao vestido, passando a pele
imaculadamente branca pela floresta de agulhas. Pedaços dele
colam-se-lhe como ímanes, providenciando-lhe um punhado
de espigões. Esconde na mão as magnetizantes lascas de
metal, paciente, expectante, com uma sobrancelha erguida. Os
Arven são suficientemente avisados para estenderem o seu
esmagador silêncio a uma filha Samos, quanto mais à futura
rainha.
O par troca olhares sem palavras, avaliando claramente cada
lado da pergunta de Evangeline. Trio franze o sobrolho, de
olhar fulgurante, e finalmente a Gatinha solta um sonoro
suspiro. Afasta-se. Recua.
— Uma escolha que não esquecerei — murmura
Evangeline.
Sinto-me exposta diante dela, só ante os seus olhos
perfurantes não obstante o olhar dos outros guardas e oficiais.
Evangeline conhece-me, sabe o que sou, o que posso fazer.
Quase a matei na Taça de Ossos, mas ela fugiu, com medo de
mim e dos meus relâmpagos. Agora não tem certamente medo.
Deliberada, dou um passo em frente. Direita a ela. Direita
ao bem-aventurado vazio que a rodeia, dando espaço à sua
aptidão. Outro passo. Para o espaço de liberdade, para a
eletricidade. Senti-la-ei imediatamente? Voltará num jorro de
supetão? Só pode. Tem de voltar.
Mas o desdém dela dilui-se num sanguinário sorriso. Dá um
passo como eu, movendo-se para trás, e quase solto um
rosnido. — Não tão depressa, Barrow.
É a primeira vez que ela profere o meu verdadeiro nome.
Estala os dedos, apontando para a Gatinha. — Tragam-na.
Arrastam-me como fizeram no primeiro dia em que cheguei,
acorrentada ao colar, a minha trela bem presa no punho
cerrado da Gatinha. O silêncio dela e de Trio permanece,
rufando-me como um tambor no crânio. A longa caminhada
pelo Fogo Branco parece-me quilómetros de sprint, embora
avancemos a passo tranquilo. Tal como antes, não estou
vendada. Não se dignam tentar confundir-me.
Reconheço cada vez mais o espaço à medida que nos
aproximamos do nosso destino, percorrendo passagens e
galerias que explorei livremente há toda uma vida. Então não
senti necessidade de as memorizar. Agora faço todo o possível
por delinear o palácio na minha cabeça. Certamente que
precisarei de saber o seu traçado se alguma vez planear sair
daqui viva. O meu quarto dá para leste, e situa-se no quinto
piso; isso sei eu pela contagem de janelas. Lembro-me de que
o Fogo Branco tem a forma de quadrados interligados, com
cada ala rodeando um pátio como aquele que se vê do meu
quarto. A vista para lá das janelas altas em arco muda a cada
passagem. Um jardim interior, a Praça de César, as longas
expansões do pátio de treinos em que Cal fazia exercícios com
os seus soldados, as muralhas distantes e a reconstruída Ponte
de Archeon mais além. Graças sejam dadas, não passamos
pela zona residencial onde encontrei o diário de Julian, onde vi
Cal enraivecer-se e Maven maquinar silenciosamente. Fico
surpreendida com a quantidade de recordações que o resto do
palácio contém, a despeito do curto tempo que aqui passei.
Ladeamos um bloco de janelas num patamar, dando para
oeste para lá das casernas para o Rio Capital e a outra metade
da cidade mais além. A Taça de Ossos aninha-se entre os
edifícios, a sua forma maciça por de mais familiar. Conheço
esta vista. Estive postada diante destas janelas com Cal. Menti-
lhe, sabendo que iria ter lugar um ataque nessa noite. Mas não
sabia o que isso nos faria. Cal sussurrou então que desejaria
que as coisas fossem diferentes. Eu partilho o lamento.
Deve haver câmaras a seguir o nosso progresso, embora não
consiga já senti-las. Evangeline nada diz quando descemos ao
piso principal do palácio com os seus oficiais a reboque, um
bando militar de pássaros negros em torno de um cisne de
metal. De algures soa um eco de música. Pulsante como um
coração inchado e pesado. Nunca ouvi tal música, nem mesmo
no baile a que compareci ou durante as lições de dança de Cal.
Tem vida própria, algo obscuro e retorcido e curiosamente
convidativo. À minha frente, os ombros de Evangeline
empertigam-se com o som.
O piso da corte está estranhamente vazio, com apenas uns
quantos guardas postados ao longo das passagens. Guardas,
não Sentinelas, que estarão com Maven. Evangeline não vira à
direita, como conto que faça, para entrar na sala do trono
através das grandiosas portas arqueadas. Em vez disso avança
decidida para diante, com todos nós a reboque, entrando
firmemente noutra sala que conheço sobremaneira bem.
A câmara do conselho. Um perfeito círculo de mármore e
madeira polida e brilhante. Há assentos ao longo das paredes,
e o selo de Norta, a Coroa Flamejante, domina o chão
ornamentado. Vermelho e negro e prateado real, com pontas de
explosivas chamas. Quase tropeço ao vê-lo, e tenho de fechar
os olhos. A Gatinha puxar-me-á através da divisão, não tenho
dúvidas disso. Deixá-la-ei de bom grado arrastar-me se isso
significar que não tenho de ver mais nada deste lugar. Walsh
morreu aqui, lembro-me. O seu rosto lampeja-me atrás das
pálpebras. Foi caçada como um coelho. E foram lobos que a
apanharam — Evangeline, Ptolemus, Cal. Capturaram-na nos
túneis debaixo de Archeon, a cumprir ordens dadas pela
Guarda Escarlate. Deram com ela, arrastaram-na para aqui,
apresentaram-na diante da Rainha Elara para interrogatório.
Não chegou a tanto. Porque Walsh se matou. Engoliu uma
pílula assassina diante de todos nós, para proteger os segredos
da Guarda Escarlate. Para me proteger.
Quando o volume da música triplica, abro os olhos de novo.
A câmara do conselho foi-se, mas a visão diante de mim é
de algum modo pior.
3
Guardiães verdes. (N. da T.)
CAPÍTULO TRÊS

Mare

A música dança no ar, cortada pelo travo doce e enjoativo


do álcool que permeia cada centímetro da magnífica sala
do trono. Saímos para um patamar elevado uns pés acima do
chão, providenciando uma ampla vista da estridente festa — e
uns momentos antes de alguém se aperceber de que ali
estamos.
Os meus olhos rodam de um lado para o outro, nervosa, à
defesa, buscando cada rosto e cada sombra de oportunidade,
ou de perigo. Seda e pedras preciosas e belas armaduras
bruxuleiam à luz de uma dúzia de candelabros, criando uma
constelação humana que ondula e volteia no chão de mármore.
Após um mês de aprisionamento, a visão é um assalto aos
meus sentidos, mas sorvo-a sequiosa, uma rapariga faminta.
Tantas cores, tantas vozes, tantos familiares senhores e
senhoras. Por agora não se dão conta de mim. Os seus olhos
não me seguem. O seu foco está uns nos outros, nas suas taças
de vinho e licor multicolorido, no ritmo ansioso, no fumo
fragrante que se evola no ar. Isto deve ser uma celebração,
uma desenfreada celebração, mas de quê não faço ideia.
Naturalmente, a minha mente voa. Terão obtido outra
vitória? Contra Cal, contra a Guarda Escarlate? Ou aclamarão
ainda a minha captura?
Um olhar a Evangeline é resposta suficiente. Nunca a vi
fazer tal carranca, nem mesmo para mim. O seu desdém felino
põe-se feio, zangado, pleno de raiva como não posso imaginar.
Os seus olhos escurecem, cambiando ante a exibição. São
negros como um abismo, engolindo a visão da sua gente num
estado de derradeira bem-aventurança.
Ou, apercebo-me, de ignorância.
Ao comando de alguém, uma enxurrada de serviçais
Vermelhos avança da parede do fundo e dá entrada na câmara
em formação ensaiada. Carregam bandejas de cálices de cristal
com líquido semelhante à luz de estrelas de rubi, ouro,
diamante. Quando por fim chegam ao lado oposto da multidão,
as suas bandejas estão vazias e são rapidamente reabastecidas.
Outra passagem, e as bandejas de novo se esvaziam. Como
alguns dos Prateados ainda se têm de pé, não faço ideia.
Continuam na sua folia, conversando ou dançando com as
mãos em garra em torno das suas taças. Uns quantos dão
baforadas em intrincados cachimbos, soprando no ar fumo
curiosamente colorido. Não cheira a tabaco, que muitos dos
anciãos das Stilts4 ciosamente arrebanham. Observo as faíscas
nos cachimbos com inveja, cada qual uma alfinetada de luz.
Pior é a visão dos serviçais, os Vermelhos. Dói-me vê-los. O
que não daria para tomar o seu lugar. Para ser apenas uma
serviçal em vez de uma prisioneira. Estúpida, ralho comigo
própria. Eles são tão prisioneiros como tu. Tal como todos os
da tua espécie. Presos sob uma bota prateada, embora alguns
tenham mais espaço para respirar.
Por causa dele.
Evangeline desce do patamar e os Arven forçam-me a
segui-la. Os degraus conduzem-nos diretamente à tribuna,
outra elevada plataforma suficientemente alta para denotar a
sua irrevogável importância. E, claro está, uma dúzia de
Sentinelas encontra-se postada em cima dela, mascarada e
armada, aterrorizadora em cada pormenor.
Conto ver os tronos de que me lembro. Flamas de vidro de
diamante para o assento do rei, safira e ouro branco polido
para o da rainha. Em vez disso, Maven está sentado no mesmo
tipo de trono do qual o vi erguer-se há um mês, quando me
segurou acorrentada diante do mundo.
Nem gemas, nem metais preciosos. Apenas lajes de pedra
cinzenta com arabescos de algo reluzente, de arestas planas e
brutalmente destituído de insígnias. Parece frio ao toque e
desconfortável, para não dizer terrivelmente pesado. Diminui-
o, fazendo-o parecer mais novo e mais pequeno do que nunca.
Parecer poderoso é ser poderoso. Uma lição que aprendi com
Elara, embora de algum modo Maven não o tenha feito. Parece
o rapaz que é, vincadamente pálido no seu uniforme negro, a
única cor nele o forro vermelho-sangue da capa, um motim de
medalhas prateadas e o azul arrepiante dos seus olhos.
O Rei Maven da Casa Calore cruza o olhar com o meu no
momento em que me sabe ali.
O instante paira, suspenso de um fio de tempo. Uma ravina
de distrações abre-se escancarada entre nós, cheia de buliçoso
ruído e elegante caos, mas a sala bem podia estar vazia.
Interrogo-me se ele reparará na diferença em mim. No mal-
estar, na dor, na tortura a que a minha silenciosa prisão me
sujeitou. Só pode. Os seus olhos resvalam dos meus mais que
pronunciados malares para o meu colar, até ao fluido vestido
branco com que me vestiram. Não estou a sangrar desta vez,
mas tomara estar. Para mostrar a toda a gente o que sou, o que
sempre fui. Vermelha. Maltratada. Mas viva. Tal como fiz
diante da corte, diante de Evangeline uns minutos antes,
endireito a espinha, e fito-o com toda a força e acusação que
tenho para dar. Avalio-o bem, procurando as brechas que só eu
posso ver. Olhos ensombrados, mãos inquietas, postura tão
rígida que a sua espinha parece a ponto de se estilhaçar.
És um assassino, Maven Calore, um cobarde, uma fraqueza.
Resulta. Ele arranca os olhos de mim e levanta-se de um
salto, ambas as mãos agarrando ainda os braços do seu trono.
A sua fúria abate-se como um golpe de martelo.
— Explique-se, Guarda Arven! — insurge-se contra o
carcereiro mais próximo de mim.
Trio dá um salto.
A explosão faz parar a música, a dança e a farra num pulsar
de coração.
— S-Senhor… — gagueja Trio, e uma das suas mãos
enluvadas agarra-me o braço. A sua mão sangra silêncio, o
bastante para me fazer abrandar o coração. Ele tenta encontrar
uma explicação que não faça recair a culpa em cima dele, nem
da futura rainha, mas sem grande sucesso.
A minha corrente treme na mão da Gatinha, mas ela não
deixa de me segurar com força.
Só Evangeline não se deixa afetar pela ira do rei. Já contava
com aquela reação.
Não foi ele que lhe ordenou que me trouxesse. Não houve
qualquer convocação.
Maven não é tolo. Acena com uma mão para Trio, pondo
fim ao seu balbuciar com um único movimento. — A tua débil
tentativa é resposta bastante — diz. — O que tem a dizer por
si, Evangeline?
Na multidão, o pai dela ergue-se altaneiro, observando com
olhos bem abertos e severos. Outro qualquer porventura lhe
chamaria temeroso, mas não me parece que Volo Samos tenha
capacidade de sentir emoção. Afaga simplesmente a sua
pontiaguda barba prateada, com uma expressão indecifrável.
Ptolemus não é tão dotado para ocultar os seus pensamentos.
Está postado na tribuna com os Sentinelas, o único desprovido
de fogosas vestes ou de máscara. Conquanto o seu corpo esteja
imóvel, os olhos dardejam entre o rei e a sua irmã, e um punho
cerra-se-lhe lentamente. Bom. Teme por ela como eu temi pelo
meu irmão. Vê-a sofrer como eu o vi morrer.
Porque, o que mais pode Maven fazer agora? Evangeline
desobedeceu deliberadamente às suas ordens, aproveitando-se
das concessões que o seu noivado lhe dá. Se é que eu sei
alguma coisa, sei que fazer zangar o rei é ser-se punido. E
fazê-lo aqui, diante de toda a corte? Ele bem pode executá-la
ali mesmo onde está.
Se Evangeline pensa que corre risco de morte, não o
demonstra. A voz não lhe falha nem vacila. — Ordenou que a
terrorista fosse aprisionada, fechada como uma inútil garrafa
de vinho, e após um mês de deliberação de conselho não
houve acordo quanto ao que fazer-se com ela. Os seus crimes
são muitos, dignos de uma dúzia de mortes, de um milhar de
vidas nas nossas piores cadeias. Ela matou ou mutilou
centenas dos seus súbditos desde que foi descoberta, incluindo
os seus próprios pais, e descansa ainda assim num confortável
quarto, comendo, respirando… viva e sem a punição que
merece.
Maven é bem filho da sua mãe, e a sua fachada de cortesão
é quase perfeita. As palavras de Evangeline não parecem
incomodá-lo minimamente.
— A punição que merece — repete. Depois olha pela sala,
um canto do queixo erguido. — Portanto aqui a trouxe.
Realmente, são as minhas festas assim tão más?
Um vibrar de riso, simultaneamente genuíno e forçado,
ondulações através da multidão extasiada. Na sua maioria
estão bêbedos, mas restam suficientes cabeças frias para
saberem o que se passa. O que Evangeline fez.
Evangeline esboça um sorriso cortês, aparentemente tão
penoso que quase conto ver os seus lábios desatarem a sangrar
pelos cantos. — Bem sei que estais desgostoso pela vossa
mãe, Vossa Majestade — diz ela sem um laivo de compaixão.
— Como estamos todos. Mas o vosso pai não agiria assim. O
tempo das lágrimas acabou.
As últimas palavras não são suas, mas de Tiberias Sexto. O
pai de Maven, o fantasma de Maven. A sua máscara ameaça
deslizar-lhe por um momento e os olhos lampejam em partes
iguais de pavor e raiva. Recordo essas palavras tão bem como
ele. Proferidas ante uma multidão exatamente como esta, no
rescaldo da execução de alvos políticos levada a cabo pela
Guarda Escarlate. Alvos escolhidos por Maven, induzido pela
sua mãe. Nós fizemos o seu trabalho sujo, enquanto eles
aumentavam o cômputo de corpos com um atroz ataque de sua
autoria. Usaram-me, usaram a Guarda para eliminar alguns
dos seus inimigos e demonizar outros de uma assentada.
Destruíram mais, mataram mais do que qualquer de nós
alguma vez desejou.
Ainda posso sentir o cheiro do sangue e do fumo. Ainda
posso ouvir uma mãe chorar sobre os seus filhos mortos.
Ainda posso ouvir as palavras atribuindo tudo à rebelião.
— Força, poder, morte — murmura Maven, os seus dentes
batendo uns nos outros. As palavras assustaram-me então e
aterrorizam-me agora. — O que sugere, minha senhora?
Decapitação? Um esquadrão de fuzilamento? Desmembramo-
la, pedaço a pedaço?
O coração galopa-me no peito. Permitiria Maven tal coisa?
Não sei. Não sei o que faria ele. Tenho de me recordar, nem
sequer o conheço. O rapaz que julguei que era não passava de
uma ilusão. Mas as notas, brutalmente deixadas, mas plenas de
rogos para eu regressar? O mês de calmo, gentil cativeiro?
Talvez fossem falsos também, mais um truque para me enrolar.
Outra espécie de tortura.
— Fazemos como a lei requer. Como vosso pai teria feito.
A forma como ela diz pai, proferindo a palavra tão
brutalmente como usaria uma faca, é confirmação suficiente.
Tal como tanta gente na sala, ela sabe que Tiberias Sexto não
acabou como dizem as histórias.
Ainda assim, Maven agarra-se ao seu trono, firmando as
mãos de nós exangues nas lajes cinzentas. Olha de relance a
corte, sentindo os seus olhos postos nele, antes de se dirigir
desdenhoso para Evangeline. — Não só não sois membro do
meu conselho, como não conhecestes o meu pai
suficientemente bem para achardes que entendeis a sua mente.
Eu sou um rei como ele foi, e compreendo as coisas que têm
de ser feitas para a vitória. As nossas leis são sagradas, mas
travamos agora duas guerras.
Duas guerras.
Sou tão rapidamente inundada de adrenalina que penso que
os meus relâmpagos regressaram. Não, não relâmpagos.
Esperança. Mordo o lábio para me impedir de sorrir
desarmada. Semanas depois da minha captura a Guarda
Escarlate continua, e viceja. Não só lutam ainda, como Maven
o admite abertamente. São já impossíveis de ocultar ou
descartar.
Apesar da necessidade de saber mais, mantenho a boca
fechada.
Maven trespassa Evangeline com um olhar flamejante. —
Nenhum prisioneiro inimigo, especialmente um tão valioso
como Mare Barrow, deve ser desperdiçado em comum
execução.
— Não deixais de desperdiçá-la ainda assim! — alega
Evangeline, disparando de volta tão rapidamente que sei que
deve ter ensaiado este argumento. Dá uns passos mais em
frente, percorrendo a distância entre ela e Maven. Parece tudo
um espetáculo, um teatro, algo representado na tribuna e
testemunhado pela corte. Mas em benefício de quem? — Ela
está a apanhar pó, nada fazendo, nada nos dando, enquanto
Corvium está a arder!
Outra joia de informação para reter. Mais, Evangeline. Dá-
me mais.
Vi a cidade-fortaleza, o coração do poder militar de Norta,
irromper em motins há um mês com os meus próprios olhos.
Assim continua. A menção a Corvium serena a multidão. Isso
não escapa a Maven, que luta por manter a calma.
— O conselho está a dias de tomar uma decisão, minha
senhora — diz por entre os dentes cerrados.
— Perdoai a minha ousadia, Vossa Majestade. Bem sei que
desejais honrar o vosso conselho o melhor que podeis, mesmo
as suas partes mais fracas. Mesmo os cobardes que não
conseguem fazer o que deve ser feito. — Um passo mais perto
e a sua voz abranda para um ronronar. — Mas vós sois o rei. A
decisão é vossa.
Magistral, constato. Evangeline é tão adepta de manipulação
como outro qualquer. Em poucas palavras, não só salvou
Maven de parecer fraco como o forçou a seguir a vontade dela
para manter uma imagem de força. Contra minha vontade,
inspiro ansiosa. Acederá ele ao seu rogo? Ou recusará,
lançando combustível na fogueira de insurreição que incendeia
já as Altas Casas?
Maven não é tolo. Entende o que Evangeline está a fazer e
mantém-se focado nela. Sustêm o olhar um do outro,
comunicando com sorrisos forçados e olhos penetrantes.
— A Prova da Rainha certamente trouxe à luz a mais
talentosa filha — diz ele, tomando-lhe a mão. Parecem ambos
desgostados com a ação. A cabeça dele dardeja para a
multidão, olhando para um homem esguio de azul-escuro. —
Primo! A sua petição de interrogatório é concedida.
Samson Merandus põe-se em sentido de um salto e emerge
da multidão, de olhar perspicaz. Faz uma vénia, quase se
abrindo num sorriso rasgado. Vestes azuis ondeiam, escuras
como fumo. — Obrigado, Vossa Majestade.
— Não.
A palavra sai-me de repelão.
— Não, Maven!
Samson move-se rapidamente, subindo à tribuna com fúria
controlada. Percorre a distância entre nós em poucos passos
determinados, até que os seus olhos são a única coisa no meu
mundo. Olhos azuis, os olhos de Elara, os olhos de Maven.
— Maven! — arquejo de novo, implorando, ainda que de
nada sirva. Implorando ainda que me fira o orgulho pensar que
lhe peço alguma coisa. Mas o que mais há a fazer? Samson é
um whisper. Destruir-me-á de dentro para fora, vasculhará
tudo o que sou, tudo o que sei. Quantas pessoas morrerão
devido ao que eu vi? — Maven, por favor! Não o deixes fazê-
lo!
Não sou suficientemente forte para arrancar a mão da
Gatinha da minha corrente, ou mesmo debater-me grande
coisa quando Trio me agarra os ombros. Ambos me sustêm no
lugar com facilidade. Os meus olhos lampejam de Samson
para Maven. Com uma mão no seu trono, outra na mão de
Evangeline. Sinto a tua falta, diziam as suas notas. Ele é
indecifrável, mas pelo menos está a olhar.
Bom. Se não me salvar deste pesadelo quero que o veja a ter
lugar.
— Maven — sussurro uma última vez, tentando soar como
eu própria. Não como a rapariga-relâmpago, nem Mareena, a
princesa perdida, mas Mare. A rapariga que ele olhou através
das grades de uma cela e garantiu salvar. Mas essa rapariga
não chega. Ele baixa os olhos. Olha para outro lado.
Estou sozinha.
Samson toma-me a garganta na mão, apertando acima do
colar de metal, forçando-me a encarar os seus familiares e
miseráveis olhos. Azuis como gelo e igualmente implacáveis.
— Fizeste mal em matar Elara — diz ele, não se dignando
temperar as palavras. — Ela era uma cirurgiã de mentes.
Inclina-se para diante, esfomeado, um homem faminto
prestes a devorar uma refeição.
— Eu sou um carniceiro.
Quando o sonador me neutralizou, revolvi-me em agonia
durante três longos dias. Uma tempestade de ondas de rádio
virou a minha própria eletricidade contra mim. Ressoou-me
pele adentro, chocalhando-me os nervos como parafusos num
frasco. Deixou cicatrizes. Linhas entrecortadas de carne branca
pelo meu pescoço e espinha abaixo, coisas feias a que ainda
não me acostumei. Provocam-me pontadas e repuxões em
ângulos estranhos, tornando penosos movimentos benignos.
Até os sorrisos estão maculados, menores no rasto do que me
foi feito.
Agora imploraria por isso se pudesse.
O guincho de um sonador ao descascar-me e abrir-me seria
o céu, uma bênção, uma mercê. Antes ser quebrada em osso e
músculo, reduzida a dentes e unhas, toda eu obliterada, do que
sofrer mais um segundo dos sussurros de Samson.
Posso senti-lo. A sua mente. Enchendo os meus recessos
como decomposição ou podridão ou um cancro. Ele raspa-me
o interior da cabeça com pele cortante e ainda mais cortantes
intentos. Qualquer parte de mim não tomada pelo seu veneno
contorce-se de dor. Dá-lhe gozo fazer-me isto. Esta é a sua
vingança, afinal de contas. Pelo que eu fiz a Elara, seu sangue
e sua rainha.
Ela foi a primeira lembrança que ele me sacou. A minha
falta de remorsos incensou-o, e lamento-o agora. Quem me
dera ter conseguido forçar alguma compaixão, mas a imagem
da morte dela foi demasiado assustadora para muito mais do
que choque. Recordo-a agora. Ele força-me a isso.
Num instante de dor cega, sugando-me para trás no tempo
através das minhas recordações, dou comigo de volta ao
momento em que a matei. A minha aptidão congrega
relâmpagos do céu em linhas entrecortadas de um púrpura-
esbranquiçado. Um atinge-lhe a cabeça, descendo-lhe em
cascata aos olhos e boca, pelo pescoço e braços abaixo, dos
dedos das mãos aos dedos dos pés e de volta. O suor na sua
pele ferve em vapor, a carne carboniza-se até fumegar, e os
botões do seu casaco põem-se vermelhos incandescentes,
cauterizando tecido e pele. Ela sacode-se, arranhando-se,
tentando livrar-se da minha fúria elétrica. As pontas dos seus
dedos rasgam-se, expondo o osso, enquanto os músculos do
seu belo rosto se põem frouxos, descaindo com o puxar
inexorável de correntes em sobressalto. O cabelo branco-cinza
arde e enegrece e fervilha, desintegrando-se. E o cheiro. O
som. Ela grita até as cordas vocais se desfazerem. Samson
certifica-se de que a cena passe lentamente, a sua aptidão
manipulando a memória esquecida até que cada segundo se
grave a fogo na minha consciência. Um carniceiro, deveras.
A sua raiva faz-me entrar em parafuso sem nada a que me
agarrar, apanhada numa tempestade que não posso controlar.
Tudo o que posso fazer é rezar para não ver o que Samson
procura. Tento deixar o nome de Shade fora dos meus
pensamentos. Mas as muralhas que eu erijo pouco mais são
que papel. Samson rasga-as alegremente. Sinto cada uma ser
destruída, outra parte de mim mutilada. Ele sabe o que estou a
tentar esconder dele, para nunca mais ser vivido. Persegue-me
os pensamentos, mais veloz que o meu cérebro, ultrapassando
cada débil tentativa de detê-lo. Tento gritar ou implorar, mas
som algum me sai da boca ou da mente. Ele tudo contém na
palma da mão.
— Demasiado fácil. — A sua voz ecoa em mim, à minha
volta.
Tal como o fim de Elara, a morte de Shade é capturada em
perfeito, doloroso detalhe. Tenho de reviver cada horrível
segundo no meu próprio corpo, incapaz de fazer algo mais do
que olhar, encurralada dentro de mim. Um travo de radiação
impregna o ar. A Prisão de Corros fica na orla do Estuário,
perto do ermo de devastação nuclear que forma a nossa
fronteira meridional. Uma neblina fria envolve a manhã de
uma mortalha contra uma alvorada pardacenta. Por um
momento tudo se acalma, suspenso em equilíbrio. Olho
fixamente, imóvel, petrificada em andamento. A prisão
escancara-se nas minhas costas, estremecendo ainda com o
motim que iniciámos. Prisioneiros e perseguidores escorrem
como sangue dos seus portões. Seguindo-nos para a liberdade,
ou um arremedo dela. Cal já se foi, o seu vulto familiar a cem
metros de distância. Fiz que Shade saltasse com ele primeiro,
para proteger um dos nossos únicos pilotos e nosso único
modo de escapar. Kilorn ainda está comigo, petrificado como
eu, a sua espingarda aninhada contra o ombro. Aponta para
trás de nós, para a Rainha Elara, para os seus guardas e para
Ptolemus Samos. Uma bala explode da boca da arma, nascida
de faíscas e pólvora. Também ela paira no ar, esperando que
Samson me liberte a mente. Lá no alto o céu redemoinha,
pesado de eletricidade. O meu próprio poder. Só senti-lo me
faria chorar se pudesse.
A memória começa a mexer-se, lentamente a princípio.
Ptolemus forja uma longa e reluzente agulha, além das
muitas armas que já tem à mão. O gume perfeito brilha de
sangue Vermelho e Prateado, cada gotícula uma pedra preciosa
zunindo através do ar. A despeito da sua aptidão, Ara Iral não
é suficientemente rápida para se esquivar do seu arco letal.
Atravessa-lhe o pescoço num prolongado segundo. Ela cai a
uns passos de mim, frouxamente, como que através de água.
Ptolemus intenta matar-me no mesmo movimento, usando o
ímpeto do seu golpe para rodar a agulha no meu coração. Em
vez disso, depara-se com o meu irmão no caminho.
Shade salta de volta para nós, para me teletransportar e pôr
a salvo. O seu corpo materializa-se do nada: primeiro o seu
peito e cabeça, depois as extremidades ganhando vida. Mãos
estendidas, olhos focados, a sua atenção apenas em mim. Ele
não vê a agulha. Não sabe que está prestes a morrer.
Não era intenção de Ptolemus matar Shade, mas não se
importa de fazê-lo. Outro inimigo morto não faz diferença
para ele. Apenas outro obstáculo na sua guerra, outro corpo
sem nome nem rosto. Quantas vezes fiz eu o mesmo?
Ele provavelmente nem sequer sabe quem é Shade.
Era.
Sei o que vem a seguir, mas por mais que tente, Samson não
me deixa fechar os olhos. A agulha perfura o meu irmão com
graça impecável, através de músculo e órgão, sangue e
coração.
Algo em mim explode e o céu responde. Quando o meu
irmão tomba, também o faz a minha fúria. Mas não chego a
sentir o seu agridoce libertar. Os relâmpagos não chegam a
cair por terra, matando Elara e dispersando os seus guardas
como deveriam. Samson não me permite essa pequena mercê.
Em vez disso, rebobina a cena para trás. De novo ela se
desenrola. De novo morre o meu irmão.
De novo.
De novo.
De cada vez ele força-me a ver algo mais. Um erro. Um
passo em falso. Uma escolha que eu poderia ter feito para o
salvar. Pequenas decisões. Pé ali, virar aqui, correr um
bocadinho mais depressa. É tortura da pior espécie.
Olha o que fizeste. Olha o que fizeste. Olha o que fizeste.
A sua voz repercute-se a toda a minha volta.
Outras recordações estilhaçam a morte de Shade, visões
sangrando umas nas outras. Cada uma representa um medo ou
fraqueza diferente. Lá está o corpo minúsculo que encontrei
em Templyn, um bebé Vermelho assassinado pelos caçadores
de sanguenovos a mando de Maven. Num outro instante, o
punho de Farley colide com o meu rosto. Ela grita coisas
horríveis, culpando-me pela morte de Shade enquanto a sua
própria angústia ameaça consumi-la. Lágrimas fumegantes
correm pelas faces de Cal enquanto uma espada lhe treme na
mão, a lâmina cravada no pescoço do pai. A precária sepultura
de Shade em Tuck, só sob o céu outonal. Os oficiais Prateados
que eu eletrocutei em Corros, em Harbor Bay5, homens e
mulheres que apenas cumpriam ordens. Não tinha escolha.
Qualquer escolha.
Recordo todos os mortos. Toda a mágoa. A expressão no
rosto da minha irmã quando um oficial lhe partiu a mão. Os
nós dos dedos de Kilorn em sangue quando soube que ia ser
recrutado. Os meus irmãos levados para a guerra. O meu pai
retornando da frente reduzido a metade de homem em mente e
corpo, exilando-se numa periclitante cadeira de rodas — e a
toda uma vida separado de nós. Os olhos tristes da minha mãe
quando me disse que tinha orgulho em mim. Uma mentira.
Uma mentira agora. E finalmente a doentia dor, a vazia
verdade que perseguiu cada momento da minha antiga vida —
de que eu estava derradeiramente condenada.
Ainda estou.
Samson tudo isso percorre com abandono. Faz-me passar
por inúteis lembranças, apenas congregadas para me infligir
mais dor. Sombras saltam por entre os pensamentos.
Movediças imagens por trás de cada doloroso momento.
Samson rebobina-as a todas, demasiado depressa para que eu
as abarque verdadeiramente. Mas capto o suficiente. O rosto
do Coronel, o seu olho escarlate, os seus lábios formando
palavras que não oiço. Mas que Samson ouve seguramente. É
isto que ele procura. Informações sigilosas. Segredos que pode
usar para esmagar a rebelião. Sinto-me como um ovo com a
casca estalada, lentamente vertendo o meu conteúdo. Ele saca
seja o que for que quer de mim. Não tenho sequer a
capacidade de me sentir envergonhada com o que mais ele
descobrir.
Noites passadas enroscada contra Cal. Forçando Cameron a
juntar-se à nossa causa. Momentos roubados a reler as doentias
notas de Maven. Memórias de quem julgava ser o príncipe
esquecido. A minha cobardia. Os meus pesadelos. Os meus
erros. Cada passo egoísta que dei e que me trouxe aqui.
Olha o que fizeste. Olha o que fizeste. Olha o que fizeste.
Maven tudo saberá não tarda.
Isto sempre foi o que ele quis.
As palavras, garatujadas na sua letra emaranhada, queimam-
me os pensamentos.
Sinto a tua falta.
Até ao nosso reencontro.
4
A aldeia de Mare com casas sobre estacas, ou stilts. (N. da T.)
5
Baía do Ancoradouro. (N. da T.)
CAPÍTULO QUATRO

Cameron

A inda não posso crer que sobrevivemos. Sonho com isso


às vezes. Vejo-os arrastar Mare com eles, o seu corpo
bem preso entre um par de gigantescos strongarms6. Eles
estavam enluvados contra os relâmpagos dela, não que ela
tentasse usá-los depois de ter negociado o seu acordo. A vida
dela pelas nossas. Não contava que o Rei Maven alinhasse.
Não com o seu irmão exilado em jogo. Mas ele manteve o
acordo. Queria-a mais que tudo.
Não obstante, acordo dos pesadelos do costume, com medo
de que ele e os seus caçadores tenham regressado para nos
matar. As ressonadelas do resto do meu dormitório espantam
os pensamentos.
Eles disseram-me que o novo quartel-general era uma
maldita ruína, mas estava à espera de uma coisa mais parecida
com Tuck. Uma instalação em tempos abandonada, isolada
mas funcional, reconstruída em segredo com todas as
amenidades de que uma rebelião em germinação poderia
precisar. Odiei Tuck à primeira vista. As casernas em bloco e
os soldados como guardas, mesmo sendo Vermelhos, fizeram-
me lembrar por de mais a Prisão de Corros. Vi a ilha como
outra cadeia. Outra cela na qual fui forçada a entrar, desta vez
por Mare Barrow em vez de um oficial Prateado. Mas pelo
menos em Tuck tinha o céu acima de mim. Uma brisa fresca
nos pulmões. Comparada com Corros, comparada com New
Town7, comparada com isto, Tuck foi uma comutação.
Agora tremo arrepiada com os restantes nos túneis de betão
de Irabelle, um baluarte da Guarda Escarlate nos arredores da
cidade de Lakelander de Trial. As paredes são geladas ao
toque e há pingentes de gelo suspensos dos tetos dos quartos
sem fonte de aquecimento. Uns quantos oficiais da Guarda
deram em seguir Cal por todo o lado, nem que seja para
tirarem partido do calor que ele irradia. Eu faço o oposto,
evitando a sua invasiva e pesada presença o melhor que posso.
Não tenho qualquer uso para o príncipe Prateado, que olha
para mim com nada mais que acusação.
Como se eu a pudesse ter salvado.
A minha parcamente treinada aptidão nem de longe era
suficiente. E vós também não fostes bastante, Vossa Maldita
Majestade, quero dardejar para ele sempre que os nossos
caminhos se cruzam. A sua chama não esteve à altura do rei e
dos seus caçadores. Além disso, Mare propôs a troca e fez a
sua escolha. A estar zangado com alguém, que seja com ela.
A rapariga-relâmpago fê-lo para nos salvar, e por isso sou
eternamente grata. Mesmo que fosse uma hipócrita
egocêntrica, não merece o que lhe está a acontecer.
O Coronel deu a ordem para evacuar Tuck no momento em
que conseguimos comunicar com ele via rádio. Sabia que
qualquer interrogatório de Mare Barrow conduziria
diretamente à ilha. Farley conseguiu pôr toda a gente a salvo,
em barcos ou no descomunal jato de carga roubado da prisão.
Nós próprios fomos forçados a viajar por terra, escapando
rapidamente do local do despenhamento para um encontro
com o Coronel, do outro lado da fronteira. Digo forçados
porque, mais uma vez, me disseram o que fazer e onde ir.
Íamos voar para o Caldeirão numa tentativa de resgatar uma
legião de soldados-crianças. O meu irmão era um deles. Mas a
nossa missão teve de ser abandonada. Por agora, disseram-me
de cada vez que tive a coragem de recusar dar mais um passo
para longe da frente de batalha.
A recordação deixa-me as faces a arder. Eu deveria ter
continuado em frente. Eles não me teriam detido. Não me
poderiam ter detido. Mas tive medo. Tão perto das trincheiras,
apercebi-me do que significava marchar sozinha. Teria
morrido em vão. Não obstante, não posso sacudir a vergonha
que sinto dessa escolha. Afastei-me e deixei uma vez mais o
meu irmão.
Levámos semanas a reunirmo-nos todos. Farley e os seus
oficiais chegaram em último lugar. Acho que o seu pai, o
Coronel, passou cada dia da sua ausência a andar de um lado
para o outro entre as frígidas paredes da nossa nova base.
Pelo menos, Mare está a tornar o seu aprisionamento útil. A
distração de uma tal prisioneira, para não falar do fervilhante
caos de Corvium, empancou quaisquer movimentos de tropas
em torno do Caldeirão. O meu irmão está a salvo. Bem, tão a
salvo como um rapaz de quinze anos pode possivelmente estar,
munido com uma arma e um uniforme. Mais a salvo do que
está Mare, certamente.
Não sei quantas vezes assisti ao discurso do Rei Maven. Cal
apossou-se de um canto da sala de controlo para o projetar
uma e outra vez depois de chegarmos. Da primeira vez que o
vimos, acho que nenhum de nós ousou respirar. Todos
tememos o pior. Julgámos que estávamos na iminência de ver
Mare ficar sem cabeça. Os irmãos dela estavam fora de si,
lutando contra as lágrimas, e Kilorn nem olhar conseguia,
escondendo a cara nas mãos. Quando Maven declarou que a
execução era coisa boa de mais para ela, acho que Bree
literalmente desmaiou de alívio. Mas Cal continuou a olhar em
ensurdecedor silêncio, as sobrancelhas unidas em
concentração. Bem lá no fundo ele sabia, como todos nós, que
algo bem pior que a morte aguardava Mare Barrow.
Ela ajoelhou-se diante de um rei Prateado e quedou-se
imóvel, enquanto ele lhe punha um colar ao pescoço. Nada
disse, nada fez. Deixou-o chamar-lhe terrorista e assassina ante
os olhos da nação inteira. Uma parte de mim desejaria que ela
tivesse respingado, mas bem sei que ela não podia pôr um pé
fora da linha. Limitou-se a fulminar com o olhar todos à sua
volta, os olhos dardejando de um lado para o outro entre os
Prateados apinhados na tribuna. Todos queriam aproximar-se
dela. Caçadores em torno de um troféu.
Apesar da coroa, Maven não parecia especialmente
majestoso. Cansado, acaso doente, definitivamente zangado.
Provavelmente porque a rapariga junto dele acabara de
assassinar a sua mãe. Ele puxou pelo colar de Mare e forçou-a
a entrar. Ela logrou lançar mais um olhar por sobre o ombro,
com olhos bem abertos e esquadrinhadores. Mas outro puxão
fê-la virar-se de vez, e desde então não lhe tornámos a ver a
cara.
Lá tem ela estado, e cá tenho eu estado, a definhar, a
congelar, passando os meus dias a reconetar equipamento mais
velho que eu. Tudo um maldito desperdício.
Fico mais um minuto no catre a pensar no meu irmão, em
onde estará ele, no que estará a fazer. Morrey. Meu gémeo em
nada mais que aparência. Ele era um rapaz delicado nas duras
vielas de New Town, constantemente doente do fumo das
fábricas. Não quero imaginar o que lhe fez o treino militar.
Dependendo da perspetiva, os operários techies8 eram
demasiado valiosos ou fracos para o exército. Até que a
Guarda Escarlate começou a interferir, matou uns quantos
Prateados, e forçou o velho rei a umas interferências suas.
Fomos ambos recrutados, embora tivéssemos emprego.
Embora tivéssemos apenas quinze anos. As sanguinárias
Medidas levadas a cabo pelo próprio pai de Cal tudo
mudaram. Fomos selecionados, mandados ser soldados e
marchar para longe dos nossos pais.
Separaram-nos quase imediatamente. O meu nome estava
numa lista qualquer e o dele não. Em tempos senti-me grata
por ter sido eu a enviada para Corros. Morrey jamais teria
sobrevivido às celas. Agora quem me dera podermos trocar de
lugares. Ele livre e eu em batalha. Mas por mais vezes que
solicite ao Coronel outra tentativa de chegar à Pequena
Legião, ele recusa sempre.
Portanto bem posso pedir outra vez.
O cinto de ferramentas é um peso familiar em torno dos
meus quadris, chocalhando a cada passo. Ando com
determinação bastante para dissuadir quem quer que se digne
deter-me. Mas na sua maioria as instalações estão vazias. Não
há ninguém por aqui para me ver passar furtivamente, roendo
a sandes do pequeno-almoço. Mais capitães e respetivas
unidades devem estar outra vez fora em patrulha, a vigiar Trial
e a fronteira. À procura de Vermelhos, penso eu, os únicos
suficientemente afortunados para lograrem chegar ao Norte.
Alguns vêm aqui para se alistar, mas são sempre de idade
militar ou trabalhadores com competências úteis à causa. Não
sei para onde são enviadas as famílias: os órfãos, as viúvas, os
viúvos. Aqueles que só atrapalhariam no caminho.
Como eu. Mas eu atrapalho de propósito. É a única forma
de obter qualquer atenção que seja.
O armário de vassouras do Coronel — quero dizer, gabinete
— fica um piso acima dos dormitórios. Não me dou ao
trabalho de bater, levando a mão à maçaneta em vez disso.
Abre-se facilmente, dando para uma soturna e apertada divisão
com paredes de betão, uns quantos cacifos e uma secretária
neste momento ocupada.
— Ele está no controlo — diz Farley sem levantar os olhos
dos papéis. Tem as mãos manchadas de tinta, e até laivos dela
no nariz e sob os olhos injetados de sangue. Dá uma vista de
olhos ao que parecem comunicações da Guarda, mensagens
cifradas e ordens. Do Comando, bem sei, recordando os
constantes sussurros quanto aos níveis superiores da Guarda
Escarlate. Ninguém sabe grande coisa a seu respeito, muito
menos eu. Ninguém me conta nada a menos que pergunte uma
dúzia de vezes.
Franzo o sobrolho à sua aparência. Apesar de a mesa lhe
ocultar a barriga, o seu estado começa a tornar-se evidente. A
cara e os dedos das mãos parecem inchados. Para não falar nos
três pratos empilhados com restos de comida.
— Provavelmente seria boa ideia dormir de vez em quando,
Farley.
— Provavelmente. — Parece incomodada com a minha
preocupação.
Muito bem, não dês ouvidos. Com um suspiro baixo viro-me
para a porta, deixando-a atrás de mim.
— Dá-lhe a saber que Corvium está no limite — acrescenta
Farley, a sua voz forte e cortante. Uma ordem mas igualmente
alguma coisa mais.
Olho de relance por sobre o ombro para ela, com um
sobrolho levantado. — No limite de quê?
— Tem havido motins, relatos esporádicos de oficiais
Prateados aparecerem mortos, e os depósitos de munições têm
adquirido o desagradável hábito de explodirem. — Ela quase
esboça um sorriso malicioso à ideia. Quase. Não a vejo sorrir
desde que Shade Barrow morreu.
— Parece trabalho familiar. A Guarda Escarlate está na
cidade?
Finalmente ela olha para cima. — Não que saibamos.
— Então as legiões estão a virar. — A esperança irrompe-
me aguda e crua no peito. — Os soldados Vermelhos…
— Há milhares deles estacionados em Corvium. E vários
tomaram consciência de que são mais do que os seus oficiais
Prateados. Quatro para um, pelo menos.
Quatro para um. Assim sem mais nem menos, a minha
esperança azeda. Já vi em primeira mão o que são os Prateados
e o que podem fazer. Fui prisioneira e oponente deles, capaz
de lutar devido apenas à minha própria aptidão. Quatro
Vermelhos contra um único Prateado não deixa de ser suicídio.
Uma perda absoluta, ainda assim. Mas Farley não parece
concordar.
Pressente o meu mal-estar e suaviza-se tanto quanto pode.
Qual navalha que se transforma em faca. — O teu irmão não
está na cidade. A Legião Adaga ainda está atrás das linhas do
Caldeirão.
Encurralada entre um campo minado e uma cidade em fogo.
Fantástico.
— Não é com Morrey que estou ralada. — De momento. —
Simplesmente não vejo como podem eles ter esperança de
tomar a cidade. Poderão ter os números mas os Prateados
são… bem, são Prateados. Umas quantas dezenas de
magnetrons9 podiam matar centenas sem pestanejar.
Visualizo mentalmente Corvium. Apenas a vi em breves
vídeos, fragmentos tirados de transmissões Prateadas ou de
imagens de relatórios filtrados através da Guarda Escarlate. É
mais uma fortaleza que uma cidade, muralhada de agoirenta
pedra negra, um monólito virado para norte para os estéreis
ermos de guerra. Algo nela me recorda o lugar a que
relutantemente chamava casa. New Town tinha umas muralhas
próprias, e inúmeros oficiais a supervisionar as nossas vidas.
Nós éramos milhares também, mas as nossas únicas rebeliões
eram chegarmos tarde ao nosso turno ou escapulirmo-nos após
a hora de recolher. Nada havia para se fazer. As nossas vidas
eram ténues e sem sentido como fumo.
Farley volta ao seu trabalho. — Diz-lhe só o que eu disse.
Ele saberá o que fazer.
Eu apenas posso assentir, fechando a porta enquanto ela
tenta, e não consegue, ocultar um bocejo.
— Tenho de recalibrar os recetores de vídeo, ordens da
Capitão Farley…
Os dois guardas que ladeiam a porta de acesso ao controlo
central recuam antes sequer de eu terminar a frase, a minha
usual mentira. Desviam ambos o olhar, evitando o meu, e sinto
o rosto arder com um rubor envergonhado.
Os sanguenovos assustam tanto as pessoas como os
Prateados, se não ainda mais. Vermelhos com aptidões são
simplesmente igualmente imprevisíveis, igualmente
poderosos, igualmente perigosos, aos seus olhos.
Depois de para aqui virmos e mais soldados chegarem, os
sussurros a meu respeito e dos outros alastraram como uma
doença. A velha pode mudar de cara. O tremeliques pode
rodear-nos de ilusões. A rapariga techie pode matar-nos só
com o pensamento. E, pior que tudo, não posso censurar
ninguém por isso. Nós somos diferentes e estranhos, com
poderes que nem os Prateados podem reivindicar. Somos fios
elétricos esfiapados e máquinas com anomalias, aprendendo
ainda quem somos e as nossas aptidões. Quem sabe no que
poderemos tornar-nos?
Engulo o familiar desconforto e passo à sala seguinte.
O controlo central zumbe habitualmente com monitores e
equipamento de comunicação, mas por agora a sala está
estranhamente silenciosa. Só um único transmissor chia,
cuspindo uma longa tira de papel de correspondência impresso
com uma mensagem desencriptada. O Coronel está postado
junto da máquina, lendo à medida que a tira se alonga. Os seus
habituais fantasmas, os irmãos de Mare, estão sentados por
perto, ambos nervosos como coelhos. E o quarto ocupante da
sala é tudo o que preciso saber quanto a seja qual for o relato
que está a chegar.
Este dá notícias de Mare Barrow.
Porque outra razão estaria Cal aqui também?
Está ensimesmado, como habitualmente, o queixo pousado
nos dedos entrelaçados. Longos dias debaixo de terra
cobraram o seu tributo, empalidecendo-lhe a pele já de si
pálida. Para um príncipe, ele desleixa-se realmente em tempos
de crise. Neste preciso momento parece estar a precisar de
tomar um duche e barbear-se, para não falar de umas bofetadas
bem dadas para o acordar do seu estupor. Mas ele é ainda
assim um soldado. Os seus olhos dardejam para os meus antes
dos dos outros.
— Cameron — diz, fazendo o possível para não rosnar.
— Calore. — É um príncipe exilado, quando muito. Não há
necessidade de títulos. A menos que realmente queira deixá-lo
fulo.
Tal pai, tal filha. O Coronel Farley não levanta os olhos do
comunicado, mas reconhece a minha presença com um suspiro
dramático. — Não percamos tempo, Cameron. Não tenho mão
de obra nem ensejo para tentar resgatar uma legião inteira.
Articulo silenciosamente as palavras a par dele. Diz-mas
quase todos os dias.
— Uma legião de crianças pouco ou nada treinadas que
Maven chacinará assim que tiver oportunidade — contrario.
— Assim mo estás sempre a lembrar.
— Porque precisa ser lembrado! Senhor — acrescento,
quase fazendo uma careta à palavra. Senhor. Não estou
juramentada à Guarda, por mais que me tratem como membro
do clube.
Os olhos do Coronel semicerram-se em determinada parte
da mensagem. — Ela foi interrogada.
Cal levanta-se tão depressa que derruba a cadeira. —
Merandus?
Um tremor de calor pulsa através da sala, e sinto um mal-
estar alastrar dentro de mim. Não devido a Cal, mas devido a
Mare. Devido aos horrores que lhe estão a acontecer.
Perturbada, entrelaço as mãos atrás da cabeça, puxando o
cabelo preto encaracolado na nuca.
— Sim — replica o Coronel. — Um homem chamado
Samson.
O príncipe solta pragas bem coloridas para um membro da
família real.
— O que significa isso? — atreve-se a perguntar Bree, o
corpulento irmão mais velho de Mare.
Tramy, o outro irmão Barrow sobrevivente, franze
profundamente o cenho. — Merandus é da casa da rainha.
Whispers… leitores de mentes. Fá-la-ão em pedaços para nos
encontrarem.
— E por desporto — murmura Cal com um suave rosnido.
Ambos os irmãos Barrow se fazem vermelhos à implicação.
Bree pestaneja para reprimir repentinas e ferozes lágrimas. Dá-
me vontade de lhe tomar o braço, mas fico quieta. Já vi
suficientes pessoas retraírem-se ao meu toque.
— Razão por que Mare nada sabe das nossas operações fora
de Tuck, e Tuck foi completamente deixada para trás — diz
rapidamente o Coronel. É verdade. Abandonaram Tuck com
vertiginosa rapidez, descartando tudo de que Mare tinha
conhecimento. Até mesmo os Prateados que capturámos de
Corros — ou resgatámos, dependendo da perspetiva — foram
deixados na costa. Demasiado perigosos para os mantermos
connosco, demasiados para controlar.
Eu apenas estou com a Guarda Escarlate há um mês, mas já
sei as suas palavras de cor. Ergue-te, Vermelho como a
alvorada, claro, e sabe apenas aquilo de que precisas. O
primeiro é um grito de batalha, o segundo um aviso.
— Seja o que for que ela lhes der será quando muito
marginal — acrescenta ele. — Nada de importante sobre o
Comando, e pouco sobre as nossas operações fora de Norta.
Ninguém quer saber, Coronel. Mordo a língua para me
impedir de respingar. Mare é uma prisioneira. E daí que nada
obtenham a respeito das Lakelands, Piedmonte ou Montfort?
Montfort. A nação distante governada por uma pretensa
democracia, um equilíbrio igual de Vermelhos, Prateados e
sanguenovos. Um paraíso? Talvez, mas desde há muito
aprendi que o paraíso não existe neste mundo. Provavelmente
sei mais a respeito do país do que Mare agora, com os gémeos,
Rash e Tahir, sempre a grasnarem os méritos de Montfort. Não
sou suficientemente estúpida para acreditar na palavra deles.
Para não falar que é pura tortura manter uma conversa com
eles, sempre a terminarem os pensamentos e frases um do
outro. Às vezes dá-me vontade de usar o meu silêncio neles,
cortar a aptidão que vincula os pensamentos de ambos num só.
Mas isso seria cruel, para não dizer idiota. As pessoas já estão
de pé atrás connosco sem verem sanguenovos às bicadas.
— Importa realmente o que sacam dela agora? — forço por
entre os dentes cerrados. Só espero que o Coronel perceba o
que estou a tentar dizer. Pelo menos poupe os irmãos dela a
isto, Coronel. Tenha alguma vergonha.
Ele pestaneja simplesmente, um olho bom e o outro
destruído. — Se não consegues digerir inteligência, então não
venhas ao controlo. Precisamos saber o que lhe sacaram em
interrogatório.
— Samson Merandus é um lutador de arena, embora não
tenha razão para sê-lo — diz Cal em voz baixa. Tentando ser
gentil. — Dá-lhe gozo usar a sua aptidão para infligir dor. Se
for ele a interrogar Mare, então… — Tropeça nas palavras,
relutante em falar. — Será tortura, pura e simplesmente.
Maven entregou-a a um torturador.
Até mesmo o Coronel parece perturbado com o pensamento.
Cal fita o chão, silencioso por um longo e estoico momento.
— Nunca pensei que Maven lhe fizesse isto — murmura
finalmente. — Ela provavelmente também não.
Então são ambos estúpidos, grita o meu cérebro. Quantas
vezes tem um rapaz perverso de trair-vos até que aprendam?
— Precisavas de mais alguma coisa, Cameron? — pergunta
o Coronel Farley. Guarda a mensagem, enrolando-a como fio
de cordel. O resto não é claramente para os meus ouvidos.
— Tem a ver com Corvium. Farley diz que está no limite.
O Coronel pestaneja. — Foram essas as palavras dela?
— Foi o que eu disse.
Subitamente já não sou objeto da sua atenção. Em vez disso,
os olhos dele voam para Cal.
— Então é tempo de avançar.
O Coronel tem um ar ansioso, mas Cal não poderia parecer
mais relutante. Mantém-se imóvel, sabendo que cada
contração muscular poderá trair os seus verdadeiros
sentimentos. A ausência de movimento é igualmente
incriminatória. — Verei o que me ocorre — força-se
finalmente a dizer. Isso parece ser suficiente para o Coronel.
Baixa o queixo num assentimento antes de virar a atenção para
os irmãos de Mare.
— É melhor que informem a família — diz, dando ares de
gentileza. — E Kilorn.
Mudo de posição, desconfortável ao vê-los digerir a
dolorosa notícia da irmã e aceitar o fardo de a levarem ao resto
da família. Bree fica sem palavras, mas Tramy tem força
suficiente para falar pelo irmão. — Sim, senhor — responde.
— Embora não saiba por onde anda o Warren nestes dias.
— Tenta a caserna dos sanguenovos — sugiro. — Passa lá a
maior parte do tempo.
De facto, Kilorn está quase sempre com Ada. Depois de
Ketha morrer, Ada chamou a si a árdua tarefa de o ensinar a
ler e escrever. Embora eu suspeite de que se mantém connosco
porque não tem mais ninguém. Os Barrow são a coisa mais
próxima que ele tem de uma família, e são uma família de
fantasmas agora, assombrados de recordações. Eu nunca
sequer vi os pais dela. Mantêm-se metidos consigo mesmos,
no fundo dos túneis.
Saímos juntos da presença do Coronel, quatro marchando
para fora da sala de controlo em constrangida e empertigada
fila indiana. Bree e Tramy desandam rapidamente,
caminhando direitos aos aposentos da família do outro lado da
base. Não os invejo. Lembro-me de como a minha mãe gritou
quando eu e o meu irmão fomos levados. Pergunto-me o que
mais dói — não ter notícias dos filhos, sabendo que estão em
perigo, ou ser informado do seu sofrimento pedaço a pedaço.
Não que alguma vez venha a sabê-lo. Não há lugar para
crianças, especialmente filhos meus, neste mundo estúpido e
arruinado.
Dou espaço a Cal, mas rapidamente mudo de ideias. Somos
praticamente da mesma altura, e acompanhar o seu passo
acossado não constitui problema.
— Se não tens o coração nisto, irás matar uma carrada de
gente.
Ele rodopia, quase me fazendo cair de rabo com a
velocidade e a força do seu movimento. Já vi o seu fogo em
primeira mão, mas nunca tão fortemente como a chama que
lhe abrasa os olhos.
— Cameron, o meu coração está literalmente nisto — sibila
por entre dentes cerrados.
Desvanecidas palavras. Romântica declaração. Mal me
posso impedir de revirar os olhos.
— Guarda-o para quando a tivermos de volta — resmungo.
Quando, não se. Ele quase incendiou a sala de controlo
quando o Coronel lhe negou o pedido de explorar formas de
fazer chegar mensagens a Mare dentro do palácio. Não preciso
que ele derreta o corredor à conta de uma má escolha de
palavras.
Ele começa a andar outra vez, a passo redobrado, mas não
sou tão fácil de deixar para trás como a rapariga-relâmpago.
— Apenas quero dizer que o Coronel tem estrategas seus…
pessoas no Comando… oficiais da Guarda Escarlate que não
têm… — procuro o termo certo — …conflitos de fidelidades.
Cal abespinha-se alto e bom som, os seus ombros largos
subindo e descendo. Claramente as lições de etiqueta que teve
vêm atrás do treino militar.
— Mostra-me um oficial que saiba tanto como eu dos
protocolos Prateados e do sistema de defesa de Corvium e eu
de bom grado me retirarei desta desgraça.
— Tenho a certeza de que há alguém, Calore.
— Quem foi que lutou com os sanguenovos? Conhece as
vossas aptidões? Sabe como melhor vos usar num combate?
Eriço-me ao seu tom. — Usar — cuspo. Usar deveras.
Lembro-me daqueles de nós que não sobreviveram a Corros.
Sanguenovos recrutados por Mare Barrow, sanguenovos que
ela prometeu proteger. Em vez disso, Mare e Cal atiraram-nos
para uma batalha para a qual não estávamos preparados, e
ficou claro que Mare nem a ela se podia proteger. Nix, Gareth,
Ketha e outros da prisão que eu nem sequer conhecia. Dezenas
de mortos, descartados como peças de um jogo de tabuleiro.
Assim foi sempre com os senhores Prateados, e foi assim
que ensinaram Cal a lutar. Vencer a todo o custo. Pagar cada
ínfimo avanço em sangue Vermelho.
— Sabes o que quero dizer.
Bufo. — Talvez seja por isso que não sou exatamente
confiante.
Que aspereza, Cameron.
— Escuta — continuo, mudando de tática. — Eu sei que
faria arder toda a gente aqui se isso significasse ter o meu
irmão de volta. E com sorte essa não é uma decisão que tenha
de tomar. Mas tu… tu tens realmente essa opção. Quero
certificar-me de que não vais por aí.
É verdade. Estamos aqui pela mesma razão. Não por cega
obediência à Guarda Escarlate, mas porque eles são a nossa
única esperança de salvar os que amamos e perdemos.
Cal esboça um arremedo de sorriso retorcido, o mesmo que
vi deixar Mare na lua. Ainda o faz parecer mais imbecil. —
Não tentes falinhas mansas comigo, Cameron. Estou a fazer
tudo o que posso para nos manter fora de outro massacre.
Tudo. — A sua expressão torna-se dura. — Achas que são
apenas os Prateados que só querem saber de vitória? —
resmunga baixinho. — Tenho visto os relatórios do Coronel.
Tenho visto a correspondência com o Comando. Tenho ouvido
coisas. Estás metida com gente que pensa exatamente da
mesma maneira. Far-nos-ão arder a todos para obter o que
querem.
É capaz de ser verdade, penso, mas pelo menos o que eles
querem é justiça.
Penso em Farley, no Coronel, nos soldados juramentados à
Guarda Escarlate, e nos refugiados Vermelhos que eles
protegem. Tenho-os visto despacharem de barco pessoas para
lá da fronteira com os meus próprios olhos. Segui num dos
seus jatos aéreos voando a guinchar em direção ao Caldeirão,
intentando resgatar uma legião de soldados-crianças. Eles têm
objetivos com custos elevados, mas não são Vermelhos.
Matam, mas não sem razão.
A Guarda Escarlate não é pacífica, mas a paz não tem lugar
neste conflito. Independentemente do que Cal possa pensar
dos seus métodos e do seu secretismo, são os únicos com que
se pode esperar combater os Prateados e vencer. A gente de
Cal chamou-o a si.
— Se estás assim tão preocupada com Corvium, não vás —
diz ele com um encolher de ombros forçado.
— E perco a oportunidade de pintar as mãos de sangue
Prateado? — respingo para ele. Não sei se faço uma pobre
tentativa de gracejar ou se o ameaço declaradamente. A minha
paciência esgotou-se mais uma vez. Já tive de lidar com as
lamúrias de um relâmpago ambulante. Não vou tolerar a
atitude de um cabisbaixo príncipe-fósforo.
Os seus olhos mais uma vez se incendeiam de raiva e
cólera. Pergunto-me se serei suficientemente rápida com a
minha aptidão para o incapacitar. Que combate seria. Fogo
contra silêncio. Arderia ele ou eu?
— Engraçado, tu dizeres-me para não ser descuidado com a
vida humana. Lembro-me de fazeres tudo ao teu alcance para
matar lá na prisão.
Uma prisão em que estive encarcerada. A morrer de fome,
negligenciada, forçada a ver as pessoas à minha volta
definharem e morrerem por terem nascido… erradas. E mesmo
antes de entrar em Corros fui prisioneira noutra cadeia. Sou
uma filha de New Town, recrutada para um exército diferente
desde o dia em que nasci, condenada a viver a minha vida em
sombra e cinza, à mercê do apitar de turnos e do horário fabril.
Claro que tentei matar aqueles que me mantiveram cativa. Fá-
lo-ia de novo se me fosse dado escolher.
— Com orgulho — digo-lhe, firmando o maxilar.
Ele desespera comigo. Isso é claro. Bom. Por mais discursos
que façam não me levam a vergar-me à maneira de pensar
dele. Duvido que mais alguém oiça grande coisa também. Cal
é um príncipe de Norta. Exilado, sim, mas em tudo diferente
de nós. A sua aptidão serve para ser tão usada como a minha,
mas ele é uma arma apenas tolerada. As suas palavras não
passam de certo ponto. E mesmo aí caem em orelhas moucas.
Especialmente as minhas.
Sem aviso, ele mete por uma passagem mais pequena, uma
das muitas escavadas pelo labirinto de Irabelle. Ramifica-se da
câmara mais larga, subindo para a superfície em suave declive.
Deixo-o ir, perplexa. Não há nada naquela direção. Apenas
passagens vazias, abandonadas, não utilizadas.
Mas alguma coisa puxa por mim. Tenho ouvido coisas, disse
ele. Um clarão de suspeita acende-se-me no peito enquanto se
afasta, o seu vulto largo diminuindo a cada segundo.
Por um momento, hesito. Cal não é meu amigo. Mal
estamos do mesmo lado.
Mas ele nada mais é do que irritantemente nobre. Não me
fará mal.
De modo que o sigo.
O corredor não é obviamente utilizado, cheio de tralha e
escuro nos lugares onde as lâmpadas estão fundidas. Mesmo à
distância, a presença de Cal aquece o espaço fechado a cada
segundo que passa. Está de facto uma temperatura confortável,
e tomo mentalmente nota para falar com alguns outros techies
libertados. Talvez possamos engendrar uma maneira de
aquecer as passagens mais baixas usando ar pressurizado.
Os meus olhos seguem os cabos elétricos ao longo do teto,
contando-os. Mais do que os necessários para alimentar umas
quantas lâmpadas.
Deixo-me ficar para trás, vendo Cal arredar algumas paletes
de madeira e ferro-velho de uma parede. Revela uma porta por
baixo, com os cabos correndo por cima e para dentro de seja
que divisão for que ela esconde. Quando ele desaparece,
fechando a porta atrás de si, atrevo-me a aproximar um
bocadinho mais.
O emaranhado de cabos torna-se mais visível. Material de
rádio. Agora vejo-o, claro como o nariz na minha maldita cara.
O denunciador feixe de cabos negros que indica que a sala lá
dentro tem capacidade de comunicar para além das paredes de
Irabelle.
Mas com quem poderá ele possivelmente comunicar?
O meu primeiro instinto é contar a Farley ou a Kilorn.
Mas então… se Cal julga que seja lá o que ele faz me
impedirá, e a um milhar de outros, de participar num ataque
suicida a Corvium, devia deixá-lo continuar.
E esperar não me arrepender.
6
Braços fortes ou braços de ferro. (N. da T.)
7
Vila Nova. (N. da T.)
8
De tech, technology, ou seja, técnica ou tecnologia. (N. da T.)
9
Magnetrão — válvula geradora de energia com frequências ultracurtas. (N. da T.)
CAPÍTULO CINCO

Mare

F lutuo à deriva num mar escuro, e sombras flutuam


comigo.
Acaso lembranças. Acaso sonhos. Familiares mas estranhos,
e há algo de errado com cada um. Os olhos de Cal estão
injetados de sangue prateado, abrasador, fumegante. O rosto
do meu irmão parece mais de esqueleto do que de carne. O
Papá sai da cadeira de rodas, mas as suas pernas novas são
finas como parafusos, nodosas, prestes a lascar a cada trémulo
passo. Gisa tem pinos de metal em ambas as mãos, a boca
fechada e cosida. Kilorn afoga-se no rio, enredado nas suas
redes perfeitas. Trapos vermelhos saem da garganta degolada
de Farley. Cameron agarra o próprio pescoço, lutando para
falar, encurralada num silêncio da sua própria criação.
Escamas metálicas estremecem ao longo da pele de
Evangeline, engolindo-a inteira. E Maven afunda-se no seu
bizarro trono, deixando que este o restrinja e consuma até ele
próprio estar feito em pedra, uma estátua sentada com olhos de
safiras e lágrimas de diamantes.
A orla da minha visão está consumida de púrpura. Tento
virar-me para o seu abraço, sabendo o que ela contém. Os
meus relâmpagos estão tão perto. Se ao menos pudesse
encontrar a memória deles e saborear uma última gota de
poder antes de mergulhar de volta na escuridão. Mas eles
desvanecem-se como o resto, refluindo. Conto sentir frio à
medida que a escuridão se adensa. Em vez disso faz-se calor.
Maven está de súbito intoleravelmente próximo. Olhos
azuis, cabelo negro, pálido como um morto. A sua mão paira a
centímetros da minha face. Treme, querendo tocar, querendo
recuar. Não sei qual das duas eu preferiria.
Julgo dormir. Escuridão e luz revezam-se, alongando-se
para trás e para diante. Tento mover-me, mas os meus
membros estão demasiado pesados. Obra das algemas ou dos
guardas ou de ambos. Pesam sobre mim mais do que antes, e
as terríveis visões são o único escape. Persigo o que mais
importa — Shade, Gisa, o resto da minha família, Cal, Kilorn,
relâmpagos. Mas eles dançam sempre fora do meu alcance ou
desfazem-se em nada quando os apanho. Outra tortura,
suponho — o modo de Samson me deixar esfarrapada mesmo
enquanto durmo. Maven está lá também, mas eu nunca me
aproximo dele, e ele nunca se mexe. Sempre sentado, sempre
de olhar fixo, uma mão na têmpora, massajando uma dor.
Nunca o vejo pestanejar.
Anos ou segundos passam. A pressão embota-se. A minha
mente agudiza-se. Fosse qual fosse o nevoeiro que me
mantinha cativa retrocede, dissipando-se. É-me permitido
acordar.
Sinto sede, ressequida de sangrar lágrimas amargas que não
me lembro de derramar. O peso esmagador do silêncio paira
fortemente, como sempre. Por um momento é difícil respirar, e
interrogo-me se será assim que vou morrer. Afogada nesta
cama de seda, incinerada pela obsessão de um rei, sufocada
pelo ar livre.
Estou de volta ao meu quarto-prisão. Talvez aqui tenha
estado o tempo todo. A luz branca que entra pelas janelas diz-
me que voltou a nevar e o mundo lá fora é um inverno
luminoso. Quando a minha visão se ajusta a ele, deixando o
quarto ganhar nitidez, arrisco olhar à minha volta. Um
lampejar de olhos para a esquerda e para a direita, não me
movendo mais do que sou obrigada. Não que isso importe.
Os Arven estão de guarda nos quatro cantos da minha cama,
cada um deles de olhos fitos em mim. A Gatinha, a Trevo, o
Trio e o Ovo. Trocam olhares de relance entre si, enquanto os
fito pestanejando.
Samson, não o vejo em parte alguma, embora conte que ele
assome sobre mim com sorriso malévolo e incisivo
acolhimento. Em vez disso, uma mulher pequena de
indumentária singela, com imaculada pele negra-azulada qual
gema polida, encontra-se postada aos pés da minha cama. Não
conheço o seu rosto, mas há algo familiar nas suas feições.
Então constato que o que julgava serem algemas eram na
realidade mãos. Dela. Cada uma apertando com força um
tornozelo, apaziguadoras contra a minha pele e os ossos por
baixo dela.
Reconheço as suas cores. Vermelho e prateado cruzados nos
seus ombros, representando ambas as espécies de sangue.
Curadora. Curadora de pele. É da Casa Skonos. A sensação
que o seu toque me transmite está a curar-me — ou pelo
menos a manter-me viva contra a investida de quatro pilares de
silêncio. A sua pressão deve bastar para me matar, não fosse
um curador. Um delicado equilíbrio seguramente. Ela deve ser
muito talentosa. Tem os mesmos olhos de Sara. Brilhantes,
cinzentos-escuros, expressivos.
Mas ela não está a olhar para mim. Os seus olhos, em vez
disso, estão postos em algo à minha direita.
Encolho-me quando lhe sigo o olhar.
Maven está sentado como o vi no meu sonho. Imóvel,
focado, uma mão na têmpora. A outra mão acena numa ordem
silenciosa.
E então há realmente algemas. Os guardas movem-se
rapidamente, apertando um estranho metal entrançado,
cravejado de esferas bem polidas, em torno dos meus
tornozelos e pulsos. Fecham cada uma delas com uma única
chave. Tento seguir o paradeiro da chave, mas na minha névoa
ela tremula ora visível ora invisível. Só as algemas se
destacam. Sinto-as pesadas e frias. Conto com mais uma, um
novo colar a marcar-me o pescoço, mas este é deixado
abençoadamente nu. A joia espinhosa não volta.
Para minha eterna surpresa, a curadora e os guardas retiram-
se da minha presença, saindo do quarto. Vejo-os ir tomada de
confusão, tentando ocultar o súbito impulso de excitação que
me faz disparar a pulsação até mais não. Serão todos assim tão
estúpidos? Deixar-me-ão sozinha com Maven? Julgará ele que
não tentarei matá-lo num piscar de olhos?
Viro-me para ele, tentando sair da cama, tentando mexer-
me. Mas algo mais rápido que sentar-me direita parece
impossível, como se o meu sangue se tivesse transformado em
chumbo. Depressa percebo porquê.
— Estou bem ciente do que gostarias de me fazer — diz ele,
em pouco mais que um sussurro.
Os meus punhos cerram-se, os dedos crispando-se. Tento
alcançar o que não responde ainda. Impossibilitado de
responder. — Mais Pedra Silenciosa — balbucio, proferindo
as palavras como uma praga. As esferas polidas da minha
vestível prisão cintilam. — Deves estar a ficar sem reservas.
— Obrigada pela tua preocupação, mas a provisão está em
ordem.
Tal como fiz no calabouço por baixo da Taça de Ossos,
cuspo na sua direção. Aterra-lhe inofensivamente aos pés. Ele
não parece ralar-se. De facto, sorri.
— Liberta-te lá disso. A corte não acatará bem tal
comportamento.
— Como se eu… Corte? — A última palavra é cuspida da
boca para fora.
O sorriso dele rasga-se. — Assim o disse.
As minhas entranhas apertam-se à vista do seu sorriso
rasgado. — Encantador — digo. — Estás cansado de me
manter enjaulada onde não me podes ver.
— Na verdade, é-me difícil estar assim tão perto de ti. —
Os seus olhos tremulam sobre mim com uma emoção que não
logro reconhecer.
— O sentimento é mútuo — rosno, nem que seja para matar
a estranha brandura nele. Antes enfrentar o seu fogo, a sua
fúria, do que qualquer palavra mansa.
Ele não morde o isco. — Duvido.
— Onde está a minha trela, então? Tenho direito a uma
nova?
— Nem trela nem colar. — Aponta o queixo às minhas
algemas. — Nada mais que isso agora.
O que ele congemina, não imagino sequer. Mas há muito
que deixei de tentar entender Maven Calore e as reviravoltas
do seu labiríntico cérebro. De modo que o deixo continuar a
falar. Acaba sempre por me dizer o que preciso saber.
— O teu interrogatório foi muito frutuoso. Há tanto que
apurar a teu respeito, acerca dos terroristas que se
autodenominam Guarda Escarlate. — O ar retém-se-me na
garganta. O que descobriram eles? O que me escapou? Tento
recordar as coisas mais importantes que sei, descobrir o que
será mais nocivo para os meus amigos. Tuck, os gémeos de
Montfort, as aptidões dos sanguenovos?
— Gente cruel, não é? — continua ele. — Apostados em
destruir tudo e todos que não são como eles.
— Do que estás a falar? — O Coronel trancou-me numa
cela, sim, e ainda me teme, mas somos agora aliados. O que
poderá isso significar para Maven?
— Sanguenovos, claro.
Continuo sem perceber. Não há razão para que ele se rale
com Vermelhos com aptidões para lá do que lhe é necessário
fazer para se livrar de nós. Primeiro negou que existíssemos,
chamando-me um ardil. Agora somos aberrações, ameaças.
Coisas a serem temidas e erradicadas.
— Deplorável saber que foste tão maltratada que sentiste
necessidade de fugir desse velho que se autodenomina coronel.
— Maven regozija-se com isto, explicando o seu plano aos
farrapos, esperando que eu encaixe as peças. Ainda tenho a
cabeça azamboada, o corpo fraco, e faço o possível por
descobrir o que quer ele dizer. — Pior ainda, que ele tenha
considerado despachar-te para as montanhas, descartando-te
como lixo. — Montfort. Mas não foi isso o que aconteceu.
Não foi isso o que nos foi oferecido. — E é claro que fiquei
muito incomodado por apurar as verdadeiras intenções da
Guarda Escarlate. Criar um mundo Vermelho, uma alvorada
Vermelha, sem espaço para nada mais. Ninguém mais.
— Maven. — A palavra vacila com toda a fúria que tenho
forças para congregar. Não fossem as minhas algemas,
explodiria. — Não podes…
— Não posso o quê? Dizer a verdade? Dizer ao meu país
que a Guarda Escarlate está a engodar sanguenovos para o seu
lado apenas para os matar? Para fazer um genocídio deles…
de ti… assim como de nós? Que a infame rebelde Mare
Barrow voltou para mim de sua própria vontade, e que isto foi
descoberto durante um interrogatório em que é impossível
esconder a verdade? — Ele inclina-se para a frente, bem ao
alcance de um ataque. Mas sabe que mal consigo mexer um
dedo. — Que estás agora do nosso lado, porque viste o que é
realmente a Guarda Escarlate? Porque tu e os teus
sanguenovos são temidos como nós somos, abençoados como
nós somos, Prateados como nós somos, em tudo menos na cor
do sangue?
O meu maxilar move-se, abrindo e fechando-me a boca.
Mas não encontro palavras à altura do meu horror. Tudo isto
feito sem os sussurros da Rainha Elara. Tudo isto com ela mais
que morta.
— És um monstro — é tudo o que consigo dizer. Um
monstro, por si só.
Ele recua, sorrindo ainda. — Nunca me digas o que não
posso fazer. E nunca subestimes o que farei… pelo meu reino.
A sua mão cai sobre o meu pulso, passando um dedo sob a
algema de Pedra Silenciosa que me mantém prisioneira.
Tremo de medo, mas ele também.
Com os seus olhos na minha mão, é-me dado tempo para
estudá-lo. O seu vestuário casual, preto como sempre, está
amarrotado e não é de gala. Nada de coroa, nada de
distintivos. Um rapaz malévolo, mas não obstante um rapaz.
Um rapaz que tenho de descobrir como combater. Mas
como? Estou fraca, os meus relâmpagos foram suprimidos, e
seja o que for que disser será retorcido para lá do meu
controlo. Mal posso andar, quanto mais escapar sem ajuda.
Um resgate é simplesmente impossível, um sonho sem
esperança no qual não posso perder mais tempo. Estou presa
aqui, encurralada por um rei letal e conspirador. Passou meses
a perseguir-me, assombrando-me de longe em tudo, desde
transmissões às suas notas mortais.
Sinto a tua falta. Até ao nosso reencontro.
Ele disse que era um homem de palavra. Talvez, apenas
nisto, seja.
Inspirando fundo, sondo a única fraqueza que suspeito ele
possa ainda ter.
— Estiveste aqui?
Os olhos azuis dardejam para os meus. É a sua vez de
parecer confuso.
— Durante isto tudo. — Olho de relance a cama, e depois
ao longe. É difícil recordar a tortura de Samson, e espero que
isso seja aparente. — Sonhei que estavas aqui.
O calor dele dissipa-se, retrocedendo para deixar o quarto
frio com o inverno que aí vem. As suas pálpebras adejam,
pestanas pretas contra pele branca. Por um segundo, recordo o
Maven que julguei ele ser. Vejo-o de novo, um sonho ou um
fantasma.
— Cada segundo — responde.
Como um rubor cinza lhe alastre pelas faces, sei que é
verdade.
E agora sei como magoá-lo.
As algemas tornam muito fácil adormecer, pelo que fingi-lo
meramente é difícil. Sob a coberta, cerro um punho, cravando
as unhas na palma da mão. Conto os segundos. Conto as
respirações de Maven. Finalmente, a sua cadeira range. Ele
põe-se em pé. Hesita. Quase posso sentir os seus olhos, o seu
toque queimando-me o rosto imóvel. E então ele sai, com
passos leves sobre o chão de madeira, atravessando o quarto
com a graça e o silêncio de um gato. A porta fecha-se
suavemente atrás dele.
Tão fácil dormir.
Espero em vez disso.
Dois minutos passam, mas os guardas Arven não voltam.
Suponho que pensem que as algemas são o bastante para me
manterem aqui.
Estão errados.
As minhas pernas bamboleiam quando me levanto, os pés
descalços contra a madeira fria do soalho de tacos formando
desenhos. Se há câmaras a vigiar, não me ralo. Não podem
impedir-me de andar. Ou de tentar andar.
Não gosto de fazer as coisas devagar. Especialmente agora,
quando cada momento conta. Cada segundo poderá significar
mais uma pessoa que amo morta. Pelo que empurro a cama,
forçando-me a suster-me sobre as pernas fracas e trémulas.
Uma sensação bizarra, com a Pedra Silenciosa a pesar-me
sobre os pulsos e tornozelos, sugando-me a pouca força que a
raiva me dá. Levo um longo momento para suportar a pressão.
Duvido que alguma vez me acostume a ela. Mas posso superá-
la.
O primeiro passo é o mais fácil. Um mergulho para a
mesinha onde tomo as refeições. O segundo é mais difícil,
agora que sei o esforço que implica. Ando como um homem
embriagado ou coxo. Por uma fração de segundo, invejo a
cadeira de rodas do meu pai. A vergonha de tais pensamentos
anima os meus próximos passos, a todo o comprimento do
quarto. Arquejante, chego ao outro lado, quase colapsando
contra a parede. O ardor na minha perna é puro fogo,
provocando-me um formigueiro de suor pela espinha abaixo.
Uma sensação familiar, como se tivesse acabado de correr
quilómetro e meio. A náusea na boca do estômago é diferente,
todavia. Outro efeito secundário da Pedra. Torna cada batida
do meu coração mais pesada, e de alguma forma errada. Tenta
esvaziar-me.
A minha fronte toca a parede apainelada, deixando que o
frio a apazigue. — De novo — forço-me a dizer.
Viro-me e cambaleio através do quarto.
De novo.
De novo.
De novo.
Quando a Gatinha e o Trio vêm entregar o meu almoço,
estou encharcada em suor e tenho de comer deitada no chão. A
Gatinha não parece ralar-se, empurrando na minha direção
com a ponta do pé, o prato de iguais doses de carne e vegetais.
Seja o que for que se passa fora das muralhas da cidade, não
parece ter qualquer efeito no abastecimento alimentar. Mau
sinal. Trio deixa algo mais em cima da cama, mas concentro-
me em comer primeiro. Forço-me a engolir cada garfada.
Levantar-me é um pouco mais fácil. Os meus músculos
respondem já, ajustando-se às algemas. Há uma pequena
bênção nelas. Os Arven são Prateados e seres vivos, a sua
aptidão flutuando a par da sua concentração, alternando como
ondas que rebentam na praia. É bem mais difícil adaptar-me ao
seu silêncio do que à pressão constante da Pedra.
Abro o embrulho sobre a minha cama, rasgando o espesso e
luxuoso papel. O vestido desliza para fora, caindo sobre as
cobertas. Dou lentamente um passo atrás, o meu corpo pondo-
se frio ao ser tomada pelo familiar impulso de saltar pela
janela. Por um segundo fecho os olhos, tentando fazer
desaparecer o vestido com a força da minha intenção.
Não porque seja feio. O vestido é chocantemente belo, um
esplendor de seda e joias. Mas força-me a constatar uma
terrível verdade. Antes do vestido era capaz de ignorar as
palavras de Maven, o seu plano e o que ele tenciona fazer.
Agora isso está na cara, uma zombeteira peça de arte. O tecido
é vermelho. Como a alvorada, sussurra a minha mente. Mas
também isso está errado. Esta não é a cor da Guarda Escarlate.
O nosso é um vermelho-lúbrico, brilhante, raivoso, algo a ser
visto e reconhecido, quase chocante à vista. Este vestido é
diferente. Trabalhado em tons mais escuros, carmesim e
escarlate, guarnecido com contas de pedras preciosas,
entretecido de intrincado bordado. Bruxuleia tenebrosamente,
refletindo a luz do teto como uma poça de óleo vermelho.
Como uma poça de sangue vermelho.
O vestido fará de mim — e do que sou — algo impossível
de esquecer.
Rio-me amargamente de mim para mim. É quase engraçado.
Os meus dias como noiva de Maven foram passados a
esconder-me, pretendendo passar por Prateada. Pelo menos
agora não terei de ser pintada para parecer um deles. Uma
pequeníssima mercê à luz de tudo o resto.
Portanto, vou ser posta diante da sua corte e do mundo, a
cor do meu sangue a nu para todos verem. Interrogo-me se o
reino se aperceberá de que nada mais sou do que um engodo
ocultando um anzol afiado como aço.
Ele não volta até à manhã seguinte. Quando entra franze o
cenho ao vestido, feito numa bola a um canto. Não suportava
olhar para aquilo. Tão-pouco posso realmente olhar para ele,
de modo que continuo os meus exercícios: no momento uma
versão muito lenta e atrofiada de abdominais. Sinto-me como
uma criança desajeitada, os meus braços mais pesados que de
costume, mas forço-me a fazê-lo. Ele aproxima-se uns passos
mais e eu cerro um punho, intentando lançar uma faísca na sua
direção. Nada acontece, tal como nada aconteceu das últimas
dez ou doze vezes que tentei usar a minha eletricidade.
— É bom saber que eles conseguiram o equilíbrio certo —
cisma ele, instalando-se no seu lugar à mesa. Hoje tem uma
aparência polida, com os seus distintivos bem reluzentes ao
peito. Deve ter vindo de fora. Tem neve no cabelo e descalça
as luvas de pele com os dentes.
— Oh, sim, estas pulseiras são um perfeito encanto —
mordo eu de volta, acenando com uma mão pesada na sua
direção. As algemas são suficientemente largas para rodar,
mas suficientemente justas para que nunca as possa tirar,
mesmo que deslocasse um polegar. Considerei fazê-lo, até me
aperceber de que seria inútil.
— Darei a Evangeline os teus elogios.
— Claro que foram obra dela — zombo. Deve estar tão
satisfeita por ser a literal criadora da minha jaula. — Mas
admira-me que tenha tempo. Deve passar cada segundo a fazer
coroas e tiaras para usar. E vestidos também. Aposto que te
cortas de cada vez que tens de lhe dar a mão.
Um músculo na sua face contrai-se. Maven não nutre
sentimentos por Evangeline, algo que eu sempre soube. Algo
que posso facilmente explorar.
— Já marcaram a data? — pergunto, sentando-me.
Os olhos azuis lampejam para os meus. — O quê?
— Duvido que um casamento real seja algo que se pode
fazer a breve prazo. Depreendo que saibas exatamente quando
casarás com a Samos.
— Oh, isso. — Encolhe os ombros, descartando-o com um
aceno de mão. — O planeamento do casamento é tarefa dela.
Sustenho-lhe o olhar. — Se fosse tarefa dela, seria rainha há
meses. — Como ele não replica, eu insisto. — Tu não te
queres casar com ela.
Em vez de desmoronar, a sua fachada reforça-se. Chega
mesmo a soltar uma risadinha, projetando uma imagem de
abjeto desinteresse. — Não é por isso que os Prateados se
casam, como bem sabes.
Tento uma tática diferente, jogando com os factos que dele
conhecia. Os factos que espero que continuem a ser reais. —
Bem, não te censuro por empatares…
— Adiar um casamento em tempo de guerra não é empatar.
— Ela não é quem tu terias escolhido…
— Como se houvesse escolha na questão.
— Para não mencionar o facto de que ela foi de Cal antes de
ser tua.
A menção ao seu irmão cala o seu indolente protesto. Quase
posso ver os músculos contraírem-se-lhe sob a pele e uma mão
rodar a pulseira no pulso. Cada suave tinir do metal soa tão
alto como um sinal de alarme. Uma faísca dela e ele incendiar-
se-á.
Mas o fogo já não me assusta.
— Com base no teu progresso, deverás levar sensivelmente
mais um dia para aprenderes a andar devidamente com essas
coisas. — As suas palavras são medidas, forçadas, calculadas.
Provavelmente ensaiou-as antes de vir aqui. — E então servir-
me-ás finalmente de alguma coisa.
Tal como faço todos os dias, olho o quarto à minha volta, à
procura de câmaras. Ainda não as vejo, mas devem estar lá. —
Passas o dia inteiro a espiar-me, ou é um oficial da Segurança
que te dá um resumo? Alguma espécie de relatório escrito?
Maven deixa o comentário passar. — Amanhã levantar-te-ás
e dirás exatamente o que te mandar.
— Ou o quê? — Forço-me a pôr em pé sem qualquer graça
ou agilidade de que antes me arrogava. Ele observa o mais
ínfimo movimento. Eu deixo-o. — Já sou tua prisioneira.
Podes matar-me quando quiseres. E, muito francamente,
preferia isso a engodar sanguenovos para morrerem na tua
rede.
— Eu não te vou matar, Mare. — Embora ainda esteja
sentado, sinto que ele se eleva bem alto acima de mim. — E
também não os quero matar a eles.
Percebo o que significam as palavras, mas não vindas da
boca de Maven. Não faz sentido. Nenhum sentido de todo. —
Porquê?
— Tu nunca combaterás por nós, sei disso. Mas os da tua
espécie… são fortes, mais fortes do que muitos Prateados
poderiam alguma vez ser. Imagina o que faremos com um
exército deles, combinado com um exército dos meus. Quando
ouvirem a tua voz, virão. A forma como serão tratados quando
chegarem depende do teu comportamento, claro. E da tua
complacência. — Finalmente, levanta-se. Cresceu nestes
últimos meses. Mais alto e magro, a puxar à mãe, tal como na
maior parte das coisas. — Portanto tenho duas opções, e cabe-
te escolher qual delas seguirei. Ou me trazes sanguenovos, e
eles se juntam a nós, ou continuarei a encontrá-los sozinho e a
matá-los.
A minha bofetada aterra debilmente, mal lhe movendo o
maxilar. A minha outra mão bate-lhe no peito, igualmente
inconsequente. Ele quase revira os olhos ante o esforço. Talvez
até lhe dê gozo.
Sinto o meu rosto pôr-se vermelho-vivo, ruborizando-se
tanto de raiva como de impotente pesar. — Como podes ser
assim? — amaldiçoo-o, desejando poder fazê-lo em pedaços.
Não fossem as algemas, haveria relâmpagos meus por todo o
lado. Em vez disso, palavras jorram de mim para fora.
Palavras em que mal posso pensar antes que por mim sejam
vociferadas. — Como podes ser assim ainda? Ela está morta.
Eu matei-a. Estás livre dela. Não… não devias já ser seu filho.
As suas mãos agarram-me o queixo com força, silenciando-
me com o choque. A força do gesto faz-me vergar, pender para
trás, quase perder o equilíbrio. Tomara que assim fosse.
Tomara poder cair-lhe das mãos, cair ao chão e desfazer-me
em mil pedaços.
Lá no Entalhe, no calor da enxerga que partilhava com Cal,
no escuro da noite, pensava em momentos como este. Em estar
de novo sozinha com Maven. Ter a oportunidade de ver o que
ele era verdadeiramente sob a máscara que eu recordava e a
pessoa que a sua mãe o forçara a ser. Nesse estranho lugar
entre o sono e a vigília, os seus olhos seguiam-me. Sempre da
mesma cor, mas de algum modo cambiantes. Os olhos dele, os
olhos dela, olhos que eu conhecia e olhos que jamais poderia
conhecer. Parecem iguais agora, ardendo com um fogo frio,
ameaçando consumir-me.
Sabendo que é isso que ele quer ver, deixo que lágrimas de
frustração me subjuguem e caiam. Ele segue-lhes o rasto com
fome.
Depois empurra-me para longe. Cambaleio sobre um joelho.
— Eu sou o que ela fez de mim — sussurra, deixando-me
para trás.
Antes que a porta se feche atrás dele, reparo em guardas de
ambos os lados. A Trevo e o Ovo desta vez. Portanto os Arven
não estão longe, mesmo que de alguma forma logre libertar-
me.
Deixo-me afundar lentamente no chão e sento-me nos
calcanhares. Levo uma mão ao rosto, ocultando o facto de os
meus olhos estarem subitamente secos. Por muito que
desejasse que a morte de Elara o mudasse, sabia que não o
faria. Não sou assim tão estúpida. Não posso confiar em nada,
tratando-se de Maven.
O mais pequeno dos seus distintivos de gala pica-me a outra
mão, escondido nos meus dedos dobrados. Nem mesmo a
Pedra Silenciosa pode suprimir os instintos de ladrão. O
alfinete do distintivo de metal crava-se-me na pele. Estou
tentada a deixá-lo perfurar, a sangrar escarlate e carmesim, a
lembrar-me a mim e a quem estiver a observar o que sou e do
que sou capaz.
A pretexto de me endireitar, faço deslizar o distintivo para
baixo do colchão. Para junto da minha restante pilhagem:
ganchos de cabelo, dentes de garfo partidos, cacos de vidro
estilhaçado e de pratos de porcelana. O meu arsenal, humilde
que é, terá de servir.
Fito o vestido ao canto, como se ele fosse de algum modo o
culpado disto.
Amanhã, disse ele.
Regresso aos meus abdominais.
CAPÍTULO SEIS

Mare

O s cartões estão cuidadosamente grafados, delineando o


que tenho de dizer. Nem sequer consigo olhar para eles e
deixo-os sobre a minha mesa de cabeceira.
Duvido muito que tenha o benefício de camareiras para me
comporem em seja o que for que Maven imagina apresentar à
corte. Parece uma árdua tarefa, enfiar-me por entre botões e
fechos de correr no vestido escarlate. Tem gola alta, mangas
compridas e arrasta pelo chão não só para ocultar a marca de
Maven na minha clavícula como as algemas ainda presas aos
meus pulsos e tornozelos.
Por mais vezes que escape a este elegante aparato, pareço
condenada a representar nele um papel. O vestido estará
demasiado grande quando finalmente o vestir, largo nos braços
e na cintura. Estou magra aqui, por mais que me esforce por
comer. Pelo que me é dado captar no reflexo da janela, o meu
cabelo e a minha pele sofreram igualmente sob o peso do
silêncio. O meu rosto está pardacento e abatido, com ar
doentio, e tenho os olhos orlados de vermelho. E o meu cabelo
castanho-escuro, ainda tingido pelo lento insinuar de cinzento
nas pontas, está mais maltratado que nunca, enredado até à
raiz. Entranço-o na nuca à pressa, manuseando as madeixas
embaraçadas.
Quantidade alguma de seda pode mudar a minha aparência
sob o traje de máscara de Maven. Mas não importa. Jamais o
usarei, se tudo correr conforme o plano.
O passo seguinte na minha preparação faz-me disparar o
coração. Faço o possível por parecer calma, pelo menos para
as câmaras no meu quarto. Eles não podem saber o que estou
prestes a fazer, se é que vai funcionar. E ainda que eu logre
enganar os meus guardas, há outro obstáculo de monta.
Isto poderá matar-me.
Maven não pôs câmaras na casa de banho. Não para
proteger a minha privacidade, mas para aplacar o seu próprio
ciúme. Sei o suficiente a seu respeito para perceber que não
deixará outra pessoa ver o meu corpo. O peso acrescentado de
Pedra Silenciosa e as lajes embutidas nas paredes disso são
prova. Maven certificou-se de que os guardas jamais tivessem
motivo para me escoltarem lá. O coração bate-me
morosamente no peito, mas eu forço-me a ir em frente. Tenho
de fazê-lo.
O chuveiro sibila e emite vapor escaldante mal o abro no
jorro máximo. Não fosse a Pedra da casa de banho, teria
passado muitos dias a desfrutar o singular conforto de um
duche quente. Tenho de trabalhar depressa ou deixar-me
sufocar.
Lá no Entalhe tínhamos a sorte de nos banharmos em rios
frios, ao passo que em Tuck os chuveiros eram temporizados e
mornos. Rio-me à ideia do que passava por ser um banho em
casa. Uma tina enchida na torneira da cozinha, quente no
verão, fria no inverno, com sabão roubado para nos lavarmos.
Ainda não invejo o encargo da minha mãe de ajudar o meu pai
a lavar-se.
Com alguma sorte — montes de sorte — não tardarei a vê-
los de novo.
Empurro a cabeça do chuveiro, inclinando-a para fora da
banheira, para o chão da casa de banho. A água cai nos
mosaicos brancos, inundando-os. Os borrifos alcançam-me os
pés descalços e o calor provoca-me um arrepio na pele, suave
e convidativo como um cobertor quente.
Com a água escorrendo já por baixo da porta da casa de
banho, trabalho depressa. Primeiro coloco o comprido caco de
vidro sobre a bancada, bem à distância de um braço. Depois
deito mão à verdadeira arma.
O Palácio de Fogo Branco é todo ele uma maravilha, e a
minha casa de banho não é exceção. É iluminada por um
modesto lustre, se é que existe tal coisa: trabalhado em prata,
com braços recurvados como ramos de árvores dos quais
despontam uma dúzia de lâmpadas. Tenho de me pôr em pé no
lavatório, em precário equilíbrio, para lá chegar. Uns quantos
sacões à força mas bem dirigidos puxam o acessório suspenso
para a frente, fazendo brotar os fios do teto. Assim que tenho
folga bastante, agacho-me, com o lustre ainda aceso na mão.
Apoio-o no lavatório à espera.
As pancadas na porta começam uns minutos depois. Quem
quer que esteja de vigilância ao meu quarto deu pelo
vazamento de água por baixo da porta. Dez segundos depois,
dois pares de pés marcham pelo meu quarto adentro. Quais dos
Arven são não estou certa, mas não interessa realmente.
— Barrow! — chama uma voz de homem, acompanhada de
um murro na porta da casa de banho.
Não perdem tempo quando não respondo, nem eu tão-
pouco.
O Ovo empurra a porta, o seu rosto branco quase se
mesclando com as paredes de azulejos quando entra,
chapinhando. A Trevo não o segue, mas fica com um pé na
casa de banho e outro no quarto. Não importa. Tem ambos os
pés na poça de água fumegante.
— Barrow…? — diz o Ovo, de queixo caído ao ver-me.
Não é preciso muito para fazer cair o lustre, mas é gesto de
peso, não obstante.
Ele espatifa-se contra os azulejos molhados. Quando a
eletricidade atinge a água gera-se um impulso no
compartimento, provocando um curto-circuito não só nas
outras luzes da casa de banho como nas do quarto.
Provavelmente em toda esta ala do palácio.
Ambos os Arven saltam e contorcem-se enquanto as faíscas
lhes dançam através da carne. Soçobram rapidamente, com
convulsões musculares.
Pulo por sobre a água e os seus corpos, quase arquejando à
medida que o peso da Pedra Silenciosa da casa de banho se
dissipa. As algemas ainda me pesam nos membros, e não
perco muito tempo a revistar os Arven, tomando cuidado para
me manter fora da água. Reviro-lhes os bolsos o mais depressa
que posso, à procura da chave que assombra os meus
momentos de vigília. Tremendo, sinto um aro de metal sob o
colarinho do Ovo, marcando-lhe o esterno. Com dedos
trémulos arranco-lho e trato de abrir as algemas uma a uma. À
medida que caem libertas, o silêncio levanta-se, pouco a
pouco. Inspiro, arquejante, tentando encher-me de relâmpagos
à força. Estão de volta. Só podem.
Mas sinto-me ainda entorpecida.
O corpo do Ovo está à minha mercê, morno e vivo sob as
minhas mãos. Podia cortar-lhe a garganta e a da Trevo,
esfacelar-lhes as jugulares com um qualquer dos cacos de
vidro partido que mantenho bem escondidos. Deveria fazê-lo,
digo de mim para mim. Mas já perdi demasiado tempo. Deixo-
os vivos.
Como era de esperar, os Arven estão suficientemente
treinados nos seus cargos para terem trancado a porta do
quarto atrás deles. Não importa. Um gancho de cabelo é tão
bom como uma chave. Abro a fechadura num segundo.
Passaram-se uns dias desde que pisei fora da minha prisão, e
então estava atrelada a Evangeline, guardada por todos os
lados. Agora a passagem está vazia. Lâmpadas fundidas
alinham-se no teto, desafiadoras no seu vazio. O meu sentido
elétrico está fraco, uma parca faísca através da escuridão. Tem
de voltar. Isto não resultará se não voltar. Luto contra uma
onda de pânico — e se desapareceu de vez? E se Maven me
arrebatou os meus relâmpagos?
Corro o mais depressa que posso, atendo-me ao que
conheço do Fogo Branco. Evangeline levou-me para a
esquerda, para os salões de baile e grandes salas e sala do
trono. Esses lugares estarão apinhados de guardas e oficiais,
para não falar na nobreza de Norta, perigosa por si só. De
modo que viro à direita.
As câmaras seguem-me, claro está. Avisto-as a cada canto.
Interrogo-me se se terão fundido também, ou se serei um
entretenimento para uns quantos oficiais. Acaso estarão a fazer
apostas quanto até onde conseguirei chegar. Empresa
condenada de uma rapariga condenada.
Uma escada de serviço leva-me a um patamar mais abaixo,
e quase derrubo um serviçal na minha pressa.
O coração pula-me à sua vista. Um rapaz, da minha idade,
talvez, o rosto já ruborizado ao agarrar-se à sua bandeja de
chá. Ruborizado de vermelho.
— É um ardil! — grito para ele. — O que eles me vão
mandar fazer, é um ardil!
No cimo das escadas, e ao fundo, um par de portas abre-se
com estrondo uma atrás da outra. Encurralada de novo. Um
mau hábito que adquiri.
— Mare… — diz o rapaz, o meu nome tremendo-lhe nos
lábios. Eu assusto-o.
— Arranja maneira. Diz à Guarda Escarlate. Diz a quem
puderes. É outra mentira!
Alguém me agarra pelo tronco, puxando-me para trás, para
cima e dali para fora. Mantenho-me focada no jovem serviçal.
Os oficiais de uniforme que sobem lá de baixo empurram-no
para o lado, atirando-o sem pensar contra a parede. A bandeja
cai ao chão, entornando o chá.
— É tudo uma mentira! — consigo deixar escapar antes que
uma mão me tape a boca.
Tento lançar faíscas, fazendo por congregar relâmpagos que
ainda mal posso sentir. Nada acontece, pelo que mordo com
força bastante para sentir gosto a sangue.
A oficial de Segurança deixa cair a mão, praguejando,
enquanto outra aparece à minha frente, agarrando-me
habilmente as pernas que esperneiam. Cuspo-lhe sangue na
cara.
Quando ela me esbofeteia com as costas da mão, num gesto
pleno de graça mortal, reconheço-a.
— Que bom ver-te, Sonya — sibilo. Tento dar-lhe um
pontapé no estômago, mas ela esquiva-se com enfado.
Por favor, imploro mentalmente, como se a eletricidade me
pudesse ouvir. Não obtenho resposta e reprimo um soluço.
Estou demasiado fraca. Passou demasiado tempo.
Sonya é uma silk10, sobremaneira veloz e ágil para se
incomodar com a resistência de uma rapariga enfraquecida.
Olho de relance o seu uniforme. Negro raiado de prata, com o
azul e vermelho da Casa Iral nos ombros. A julgar pelos
distintivos no peito e alfinetes no colarinho, é já uma oficial na
hierarquia da Segurança. — Parabéns pela promoção — rosno
de frustração, vociferando porque é tudo o que posso fazer. —
Já despachada tão cedo dos Treinos?
Ela agarra-me os pés com mais força, as suas mãos como
tenazes.
— Que pena não teres acabado o Protocolo. — Ainda
agarrada às minhas pernas, esfrega o rosto no ombro, tentando
limpar o sangue Prateado da face. — Estás a precisar de
aprender a ter maneiras.
Passaram-se apenas uns meses desde que a vi pela última
vez. Postada com a sua avó Ara e Evangeline, enlutada de
negro pelo rei. Ela foi uma, de muitos que me observaram na
Taça de Ossos, que me quis ver morrer. A sua casa é famosa
pela habilidade não só de corpo como de mente. Todos eles
espiões, treinados para descobrir segredos. Duvido que
acreditasse em Maven quando ele disse a toda a gente que eu
era um ardil, uma criação da Guarda Escarlate enviada para se
infiltrar no palácio. E duvido que acredite no que está prestes a
passar-se.
— Vi a tua avó — digo-lhe. Uma jogada ousada.
A sua imaculada compostura não se altera, mas sinto o
aperto das mãos nas minhas pernas afrouxar, nem que seja um
bocadinho. Então mergulha o queixo. Continua, está a tentar
dizer.
— Na Prisão de Corros. Faminta, enfraquecida pela Pedra
Silenciosa. — Como eu estou agora. — Ajudei a libertá-la.
Outro qualquer chamar-me-ia mentirosa. Mas Sonya
permanece calada, os seus olhos em todo o lado menos em
mim. Para qualquer outra pessoa, parece desinteressada.
— Não sei quanto tempo ela lá passou, mas deu mais luta
que ninguém. — Recordo-a agora, lampejando através das
minhas memórias. Uma velha com a força brutal da sua
homónima, a Pantera. Até me salvou a vida, desviando-me de
um disco afiado como lâmina arremessado pelo ar antes que
me pudesse arrancar a cabeça. — Mas Ptolemus apanhou-a no
fim. Mesmo antes de matar o meu irmão.
O olhar dela desce para o chão, o sobrolho ligeiramente
franzido. Toda ela se contrai. Por um segundo penso que vai
chorar, mas as lágrimas iminentes não chegam a cair. —
Como? — Mal a consigo ouvir.
— Trespassando-lhe o pescoço. Rapidamente.
A bofetada seguinte é bem dirigida, mas sem grande força.
Uma representação, como tudo o resto neste infernal palácio.
— Guarda as tuas imundas mentiras para ti, Barrow —
sibila, pondo fim à nossa conversa.
Acabo numa trouxa no chão do meu quarto, ambas as faces
a arder, com o peso esmagador de quatro guardas Arven a
vigiar-me. O Ovo e a Trevo parecem um pouco amarfanhados,
mas já foram tratados por curadores das suas mazelas, fossem
elas quais fossem. Que pena não os ter matado.
— Chocados por me verem? — digo-lhes, provocadora,
soltando uma risadinha pelo horrível trocadilho.
Em resposta, a Gatinha força-me a envergar o vestido
escarlate, fazendo-me despir à frente deles todos. Leva o seu
tempo com a humilhação. O vestido magoa-me ao pressionar-
me a marca. M de Maven, M de monstro, M de matador.
Ainda sinto o gosto do sangue da oficial de Segurança
quando a Gatinha me atira os cartões do discurso contra o
peito.
A corte Prateada foi chamada em força à sala do trono. As
Altas Casas comprimem-se no costumado motim. Cada cor é
um assalto, um fogo de artifício de pedras preciosas e brocado.
Eu junto-me ao caos, acrescentando vermelho-sangue à
coleção. As portas que dão para a sala do trono fecham-se bem
cerradas atrás de mim, ali me enjaulando com os piores de
entre eles. As casas abrem alas para me deixarem passar,
formando um longo corredor da entrada até ao trono.
Sussurram à minha passagem, reparando em cada imperfeição
e em cada rumor. Capto uns fragmentos. Claro está que todos
sabem da minha pequena aventura desta manhã. Os guardas
Arven, dois à frente, dois atrás, são confirmação bastante do
meu continuado estatuto de prisioneira.
Então a mais recente mentira de Maven não se destina a eles
desta vez. Tento decifrar os seus motivos, as voltas das suas
labirínticas manipulações. Ele deve ter pesado os custos do
que lhes contar — e decidido que chamar os seus nobres mais
próximos a tão delicioso segredo valia o risco. Eles não se
importarão com as suas mentiras se não lhes mentir a eles.
Tal como antes, está sentado no seu trono de lajes de pedra
cinzenta, ambas as mãos cravadas nos apoios de braços. Tem
Sentinelas nas costas, alinhadas contra a parede atrás dele,
enquanto Evangeline se encontra à sua esquerda,
orgulhosamente postada. Resplandece, letal estrela, com uma
capa e retalhado vestido de intrincadas escamas de prata. O
seu irmão, Ptolemus, veste a condizer uma nova armadura,
próximo como um guardião tanto da irmã como do rei. Outro
rosto amargamente familiar encontra-se à direita de Maven.
Não usa armadura. Não precisa de armadura. A sua mente é
arma e escudo bastantes.
Samson Merandus arreganha um sorriso para mim, uma
visão de azul-escuro e galões brancos, cores que odeio acima
de todas. Até mesmo do prateado. Eu sou um carniceiro,
preveniu-me antes do meu interrogatório. Não estava a mentir.
Jamais recuperarei plenamente da forma como ele escavou
dentro de mim: um porco no espeto, esvaído em sangue.
Maven assinala o meu aparecimento, agradado. A mesma
curadora Skonos tentou fazer-me algo ao cabelo, puxando-mo
para trás num impecável rabicho e passando-me um toque de
maquilhagem pelas feições desgastadas. Não levou muito
tempo, mas tomara que se tivesse alongado. O seu toque era
fresco e apaziguador, tratando quaisquer contusões que tivesse
ganhado na minha condenada fuga.
Não sinto medo ao aproximar-me, caminhando ante os
olhos de dezenas de Prateados. Há de longe mais coisas a
temer. Como as câmaras lá adiante, por exemplo. Ainda não
estão apontadas para mim, mas não tardarão a estar. Mal
consigo engolir a ideia.
Maven interrompe-os bruscamente com um único gesto,
levantando a palma da mão. Os Arven sabem o que significa e
afastam-se, deixando-me percorrer os últimos metros sozinha.
É então que as câmaras se ligam. Para me mostrarem a
caminhar só, sem guarda, sem trela, como Vermelha livre entre
Prateados. A imagem será transmitida para todo o lado, para
todos os que amo e para todos os que poderia alguma vez ter
esperança de proteger. Este simples ato é porventura suficiente
para condenar dezenas de sanguenovos, e desferir um pesado
golpe contra a Guarda Escarlate.
— Avança, Mare.
É a voz de Maven. Não Maven, mas Maven. O rapaz que
julguei conhecer. Gentil, terno. Ele mantém essa voz de
reserva, pronta a ser sacada e usada contra mim como uma
espada. Abala-me até ao âmago, como ele bem sabe que fará.
Contra minha vontade, sinto a familiar saudade de um rapaz
que não existe.
Os meus passos ressoam no mármore. No Protocolo, a
falecida Senhora Blonos tentou ensinar-me a compostura de
rosto na corte. A sua expressão ideal era fria, destituída de
emoção, alheia a sentimentos. Eu não sou nada dessas coisas e
luto contra o ímpeto de deslizar para trás de tal máscara. Em
vez disso, tento impor às minhas feições algo que
simultaneamente satisfaça Maven e de algum modo dê a saber
ao país que isto não é de todo minha escolha. Difícil linha de
pisar.
Ainda de sorriso arreganhado, Samson dá um passo para o
lado, abrindo espaço junto ao trono. Arrepio-me à intenção,
mas faço o que tenho de fazer. Tomo o lado direito de Maven.
Que quadro deve ser este. Evangeline de prateado, eu de
vermelho, com o rei de negro ao meio.
10
Seda. (N. da T.)
CAPÍTULO SETE

Cameron

O chamado «alerta-relâmpago» ecoa através do piso


principal de Irabelle, acima e abaixo dos patamares
andaimados, para trás e para diante entre corredores.
Batedores partem, buscando aqueles de nós julgados
suficientemente importantes para ter informações atualizadas a
respeito de Mare. Usualmente não sou uma prioridade.
Ninguém me arrasta por aí fora para ser notificada com o resto
do seu clube. Os miúdos dão comigo mais tarde, no trabalho, e
estendem-me um papel detalhando os fragmentos de
informação que os espiões da Guarda recolheram sobre o
precioso tempo de cárcere de Mare. Pormenores inúteis. O que
ela comeu, a rotação da sua guarda, esse tipo de coisas. Mas
hoje o batedor, uma rapariguinha com cabelo preto liso e
lustroso e pele castanha-avermelhada, puxa-me pelo braço.
— Alerta-relâmpago, Menina Cole. Venha comigo — diz,
enfática e delicodoce.
Tenho vontade de respingar que a minha prioridade é pôr o
aquecimento a funcionar na minha caserna, não saber quantas
vezes Mare foi à casa de banho hoje, mas a sua cara doce
detém-me o impulso. Farley deve ter enviado o raio da miúda
mais querida da base. Maldita seja.
— Está bem, eu vou — abespinho-me, atirando as
ferramentas de volta para a caixa. Quando ela me dá a mão
faz-me lembrar Morrey. Ele é mais baixo que eu, e quando em
miúdos trabalhávamos na linha de montagem ele costumava
dar-me a mão quando as ruidosas máquinas o assustavam. Mas
esta rapariguinha não dá sinais de medo.
Puxa-me através de sinuosas passagens, orgulhosa de si
própria por saber o caminho. Franzo o cenho ao trapo
vermelho atado à volta do seu pulso. É demasiado nova para
ser juramentada aos rebeldes, quanto mais viver no seu
estratégico quartel-general. Mas, verdade seja dita, eu fui
mandada trabalhar aos cinco anos, a tirar sucata do lixo. Ela
tem o dobro dessa idade.
Abro a boca para perguntar o que a trouxe aqui, mas penso
melhor. Os pais, obviamente, por opção de vida ou fim de
vida. Pergunto-me onde estarão eles. Tal como me pergunto
dos meus.
As passagens 4 e 5 e Sub 7 precisam de isolamento de fios
elétricos. A caserna A precisa de aquecimento. Repito a
sempre crescente lista de tarefas para embotar a dor súbita. Os
meus pais desvanecem-se do meu pensamento quando lhes
afugento as caras. O Papá a conduzir um camião de transporte,
as suas mãos seguras como sempre no volante. A Mamã na
fábrica ao meu lado, mais rápida do que alguma vez serei.
Estava doente quando partimos, o cabelo a ficar ralo enquanto
a pele escura parecia ficar cinzenta. Quase sufoco perante a
recordação. Estão ambos fora do meu alcance. Mas Morrey
não está. A Morrey posso chegar.
As passagens 4 e 5 e Sub 7 precisam de isolamento de fios
elétricos. A caserna A precisa de aquecimento. Morrey Cole
precisa de salvamento.
Alcançamos a passagem para o controlo central ao mesmo
tempo que Kilorn. O seu batedor vem atrás, correndo para
acompanhar o rapaz magricela que já dobra a esquina. Kilorn
deve ter estado lá em cima, ao relento do ar gelado do inverno
que se aproxima. As suas faces resplandecem vermelhas do
frio. Ao andar tira um gorro de malha, revolvendo irregulares
caracóis fulvos.
— Cam. — Acena-me, parando onde os nossos caminhos se
cruzam. Vibra de medo, os olhos vividamente verdes à luz
fluorescente da passagem. — Alguma ideia?
Encolho os ombros. Sei menos que toda a gente no que toca
a Mare. Não sei sequer porque se incomodam a manter-me no
círculo. Provavelmente para me fazerem sentir incluída. Toda
a gente sabe que não quero estar aqui, mas não tenho outro
sítio para onde ir. Não de volta para New Town, não para o
Caldeirão. Estou encalhada.
— Nenhuma — replico.
Kilorn olha para trás de relance para o seu batedor,
brindando-o com um sorriso. — Obrigado — diz,
dispensando-o afavelmente. O miúdo capta a deixa, virando
costas aliviado. Eu faço o mesmo à minha, acenando com um
sacudir de cabeça e um sorriso agradecido. Ela debanda na
outra direção, desaparecendo para lá de uma esquina.
— Iniciam-nos novinhos — não posso deixar de sussurrar
em surdina.
— Não tão novinhos como nós fomos — replica Kilorn.
Franzo o cenho. — É verdade.
No último mês, ou coisa assim, apurei o bastante a respeito
de Kilorn para saber que posso confiar nele tal como toda a
gente aqui. As nossas vidas são similares. Ele começou como
aprendiz em tenra idade, e, tal como eu, teve o luxo de um
emprego para o manter livre do recrutamento. Até que as
regras mudaram para nós dois, e acabámos puxados para a
órbita da rapariga-relâmpago. Kilorn argumentaria que a sua
presença aqui é escolha sua, mas eu cá sei. Ele era o melhor
amigo de Mare e seguiu-a para a Guarda Escarlate. Agora
teimosia cega — para não falar do seu estatuto de fugitivo —
mantém-no aqui.
— Mas não fomos doutrinados para fazer nada, Kilorn —
continuo, hesitando quanto a dar os próximos passos. Os
guardas da sala de controlo aguardam a uns metros de
distância, silenciosos nos seus postos à porta. Observam-nos a
ambos. Não me agrada a sensação.
Kilorn oferece um estranho e triste arremedo de sorriso. Os
seus olhos descem para o meu pescoço tatuado, onde estou
permanentemente marcada com a minha profissão e lugar. A
tinta negra destaca-se, uniforme contra a minha pele escura. —
Fomos, sim, Cam — diz baixinho. — Anda.
Desliza-me um braço em torno dos ombros, fazendo-nos
avançar. Os guardas afastam-se para o lado, deixando-nos
passar pela porta.
Desta vez a sala de controlo está mais cheia do que alguma
vez a vi. Os técnicos estão todos sentados com extasiada
atenção, focados nos vários ecrãs na parte da frente da sala.
Cada um exibe a mesma coisa: a Coroa Flamejante, o
emblema de Norta, com as suas chamas vermelhas, negras e
prateadas. Usualmente o símbolo acompanha transmissões
oficiais, e parto do princípio de que estou prestes a ser sujeita à
última mensagem do regime do Rei Maven. Não sou a única a
pensar isso.
— Pode ser que a vejamos — sopra Kilorn, a sua voz
temperada por partes iguais de ânsia e medo. No ecrã, a
imagem salta ligeiramente. Imobilizada em pausa. — Do que
estamos à espera?
— Mais provavelmente de quem — replico, lançando um
olhar pelo espaço. Pelo que me é dado ver, Cal já aqui está,
estoicamente recolhido ao fundo da sala, mantendo a distância
de toda a gente. Sente-me a olhar, mas pouco mais faz que
assentir.
Para minha consternação, Kilorn acena-lhe. Após um
segundo de hesitação, Cal acede, avançando suavemente
através da sala que se enche à cunha. Seja por que razão for,
este alerta-relâmpago chamou muitos ao controlo, todos tão
nervosos como Kilorn. Na sua maioria não os reconheço, mas
uns quantos sanguenovos juntam-se à salsada. Avisto Rash e
Tahir na sua usual posição, sentados com o seu equipamento
de rádio, enquanto a Babá e Ada se mantêm bem juntas. Tal
como Cal, ocupam a parede do fundo, relutantes em chamar a
atenção para si. À medida que o príncipe se aproxima, os
oficiais Vermelhos quase saltam para fora do seu caminho. Ele
finge ignorá-lo.
Cal e Kilorn trocam débeis sorrisos. A sua usual rivalidade
há muito desapareceu, mas foi substituída por nervosismo.
— Tomara que o Coronel mexesse o rabo um bocadinho
mais depressa — diz uma voz à minha direita.
Viro-me e dou com Farley a aproximar-se furtivamente,
fazendo o possível por se manter discreta apesar da barriga.
Esta encontra-se praticamente escondida pelo casaco largo,
mas é difícil manter segredos num lugar como este. Está a
chegar aos quatro meses e não se rala com quem sabe. Neste
preciso momento equilibra um prato com batatas fritas numa
mão, um garfo na outra.
— Cameron, rapazes — acrescenta, acenando à vez para
cada um. Eu faço o mesmo, tal como Kilorn. Faz a Cal uma
continência zombeteira com o garfo, e ele mal resmunga uma
resposta. O seu maxilar contrai-se de tal maneira que os dentes
bem podem estilhaçar-se.
— Julgava que o Coronel dormia aqui — replico, fixando o
olhar no ecrã. — Típico. Da única vez que precisamos dele.
Noutro dia qualquer perguntar-me-ia se a sua ausência seria
um estratagema. Talvez para nos fazer saber quem manda.
Como se qualquer um de nós pudesse esquecer. Mesmo junto
de Cal, um príncipe e general Prateado, ou de uma horda de
sanguenovos com uma aterrorizadora gama de aptidões, ele de
alguma forma logra manter todas as cartas na mão. Pois aqui,
na Guarda Escarlate, neste mundo, a informação é mais
importante que tudo e ele é o único que sabe o suficiente para
nos controlar a todos.
Posso respeitar isso. Partes de uma máquina não precisam
saber o que as outras peças estão a fazer. Mas eu já não sou
simplesmente uma engrenagem. Já não.
O Coronel entra, flanqueado pelos irmãos de Mare. Ainda
não há sinal dos pais dela, que permanecem enfiados algures,
juntamente com a sua irmã de cabelo vermelho-escuro. Julguei
vê-la uma vez, uma coisinha esperta e rápida a passar como
um dardo pelo refeitório, mas não me aproximei o suficiente
para perguntar. Tenho ouvido rumores, claro. Sussurros dos
outros técnicos e soldados. Um oficial de Segurança esmagou
o pé da rapariga, forçando Mare a implorar no palácio de
verão. Ou algo assim. Tenho a sensação de que pedir a Kilorn
para me contar a história verdadeira seria indelicado.
O centro de controlo vira-se para vigiar o Coronel, ansioso
que ele dê início a seja o que for que estamos aqui para ver.
Pelo que reagimos em conjunto, reprimindo sufocantes
suspiros ou expressões de surpresa quando outro Prateado
segue o Coronel para a sala já cheia.
De cada vez que o vejo quero odiá-lo. Foi ele a razão de
Mare me forçar a juntar-me a ela, forçar-me a regressar à
minha prisão, forçar-me a matar, forçar outros a morrer para
que este insignificante velho pau de virar tripas pudesse viver.
Mas essas escolhas não foram dele. Ele era tão prisioneiro
como eu, condenados aos calabouços de Corros e à lenta e
esmagadora morte da Pedra Silenciosa. Não é culpa sua que a
rapariga-relâmpago o ame, e tem de arcar com a maldição que
o amor acarreta.
Julian Jacos não se encolhe contra a parede do fundo com os
sanguenovos, nem tão-pouco toma lugar ao lado do seu
sobrinho Cal. Em vez disso mantém-se junto do Coronel,
permitindo que a multidão se aparte de forma a poder ver esta
transmissão o melhor que puder. Foco-me nos seus ombros
quando ele se instala no lugar. A sua postura tresanda a
decadência Prateada. De costas direitas, perfeita. Mesmo no
uniforme em segunda mão, puído de uso, com cabelos
grisalhos e o aspeto pálido e frio que todos adquirimos
debaixo de terra, não há como negar o que ele é. Outros
partilham os meus sentimentos. Os soldados à sua volta levam
as mãos às armas nos coldres, mantendo o Prateado debaixo de
olho. Os rumores são mais contundentes no que lhe toca. Ele é
tio de Cal, irmão da rainha morta, antigo tutor de Mare.
Entretecido nas nossas fileiras como um fio de aço entre lã.
Engastado, mas perigoso e fácil de libertar com um puxão.
Dizem que ele pode controlar um homem com a sua voz e
os seus olhos. Como a rainha podia. Como muitos ainda
podem.
Mais uma pessoa a quem nunca, jamais, voltarei as costas. É
uma longa lista.
— Vejamo-la — ladra o Coronel, interrompendo o
murmúrio em surdina resultante do aparecimento de Julian. Os
ecrãs secundam-no, ligando-se com ruídos estáticos.
Ninguém fala, e a visão do rosto do Rei Maven trespassa-
nos a todos.
Ele acena daquele trono disforme, nas profundezas do
coração da corte Prateada, com olhos bem abertos e
convidativos. Eu sei que ele é uma víbora, pelo que posso
ignorar o seu bem escolhido disfarce. Mas imagino que a
maior parte do país não possa ver através da máscara de um
rapazola chamado à grandeza, lealmente fazendo o que pode
por um reino à beira do caos. Ele é bem-parecido. Não
corpulento como Cal, mas finamente moldado, uma escultura
de malares salientes e lustroso cabelo negro. Belo, não
atraente. Oiço alguém rabiscar notas, provavelmente
registando tudo o que se vê no ecrã. Permitindo aos restantes
assistirem à vontade, apenas focados no horror que Maven está
prestes a levar a cabo.
Ele inclina-se para diante, uma mão estendida, ao mesmo
tempo que se levanta para chamar alguém a si.
— Avança, Mare.
As câmaras rodam, movendo-se suavemente para
mostrarem Mare postada diante do rei. Contava com trapos,
mas em vez disso ela usa uma vestimenta com que eu jamais
poderia sonhar. Cada centímetro dela está coberto de pedras
preciosas vermelhas como sangue e seda bordada. Tudo cintila
enquanto ela percorre a distância que aparta a multidão de
Prateados reunidos para seja lá o que isto for. Nada de colar
com trela. Mais uma vez vejo através da máscara. Mais uma
vez espero que o reino veja também — mas como é isso
possível? Não a conhecem como nós. Não veem as sombras
nos seus olhos escuros, tremulando a cada passo. As suas faces
cavadas. O franzir dos seus lábios. Os dedos crispados. Um
maxilar contraído. E isso é só aquilo em que reparo. Quem
sabe o que Cal ou Kilorn ou os irmãos dela conseguirão ver na
rapariga-relâmpago?
O vestido cobre-a desde a base do pescoço até aos pulsos e
tornozelos. Provavelmente para ocultar contusões, cicatrizes e
a marca que carrega do rei. Não é de todo um vestido, mas
uma máscara.
Não sou a única a suster o alento de medo quando ela chega
junto do rei. Ele toma-lhe a mão na sua, e ela hesita em cerrar
os dedos. Apenas uma fração de segundo, mas o bastante para
cimentar o que já sabemos. Isto não é escolha sua. Ou, se é, a
alternativa era muito, muito pior.
Uma corrente de calor ondula no ar. Kilorn faz o possível
por se afastar timidamente de Cal sem chamar as atenções,
chocando comigo. Eu abro-lhe espaço o melhor que posso.
Ninguém quer estar demasiado próximo do príncipe de fogo se
as coisas derem para o torto.
Maven não tem de fazer gestos. Mare conhece-o e às suas
maquinações suficientemente bem para perceber o que ele
quer dela. A imagem no ecrã retrocede quando ela se dirige
para a direita do trono. O que vemos agora é uma exibição de
suprema força. Evangeline Samos, a noiva do rei, uma futura
rainha em poder e aparência, de um lado, com a rapariga-
relâmpago do outro. Prateada e Vermelha.
Outros nobres, os maiores das Altas Casas, estão reunidos
na tribuna. Nomes e rostos que não conheço, mas estou certa
de que muitos aqui conhecem. Generais, diplomatas,
guerreiros, conselheiros. Cada um dedicado à nossa completa
aniquilação.
O rei toma de novo o seu trono, devagar, os olhos bem
fixados na câmara, portanto em nós.
— Antes de dizer algo mais, antes de iniciar este discurso
— gesticula, confiante e quase encantador —, quero agradecer
aos combatentes, homens e mulheres, Prateados e Vermelhos,
que servem para proteger as nossas fronteiras, que atualmente
nos defendem de inimigos fora desta nação e de inimigos
dentro dela. Soldados de Corvium, leais guerreiros que
resistem aos constantes e deploráveis ataques terroristas da
Guarda Escarlate, eu vos saúdo e convosco estou.
— Mentiroso — rosna alguém na sala, mas rapidamente é
mandado calar.
No ecrã, Mare parece partilhar tal sentimento. Faz o
possível por não se crispar ou deixar que o rosto traia as suas
emoções. Resulta. Quase. Um rubor insinua-se-lhe pelo
pescoço acima, parcialmente oculto pelo decote subido. Mas
não suficientemente subido. Maven teria de lhe enfiar um saco
pela cabeça para ocultar os seus sentimentos.
— Nos últimos dias, após muita deliberação com o meu
conselho e as cortes de Norta, Mare Barrow das Stilts foi
condenada pelos seus crimes contra este reino. Estava acusada
de assassínio e terrorismo e acreditávamos ser ela a pior das
ratazanas que nos roem as raízes. — Maven levanta os olhos
para ela, o rosto imóvel e focado. Quantas vezes praticou ele
isto não quero saber. — A sua punição foi enfrentar prisão
perpétua, depois de primeiro ser interrogada pelos meus
próprios primos da Casa Merandus.
A rogo do rei, um homem de azul-escuro avança.
Aproxima-se a uns centímetros de Mare, suficientemente perto
para lhe roçar qualquer parte do corpo com a mão. Ela queda-
se petrificada no lugar, firmando cada músculo para não se
encolher.
— Eu sou Samson da Casa Merandus, e conduzi o
interrogatório de Mare Barrow.
Lá à frente, Julian leva uma mão à boca. Único indício de
quão afetado está.
— Como whisper, a minha aptidão permite-me contornar as
usuais mentiras e distorções de discurso a que a maior parte
dos prisioneiros se atêm. Pelo que quando Mare Barrow nos
contou a verdade da Guarda Escarlate e dos seus horrores,
confesso que não acreditei nela. Aqui atesto, para que conste,
que me enganei ao duvidar dela. O que vi nas suas recordações
foi doloroso e arrepiante.
Mais uma rodada de sussurros através da sala, mais uma
saraivada de psius. A tensão ainda é palpável, no entanto, bem
como a confusão. O Coronel endireita-se, de braços cruzados.
Tenho a certeza de que todos pensam nos seus pecados e no
que este tolo Samson poderá estar prestes a badalar. De um
lado, Farley bate com o garfo contra os lábios, de olhos
semicerrados. Pragueja em surdina, mas não posso perguntar
porquê.
Mare ergue o queixo, parecendo a ponto de vomitar nas
botas do rei. Aposto que bem o desejaria.
— Alistei-me voluntariamente na Guarda Escarlate — diz.
— Disseram-me que o meu irmão tinha sido executado
enquanto servia nas legiões, por um crime que não cometeu.
— A voz falta-lhe à menção de Shade. Ao meu lado, a
respiração de Farley acelera e a mão molda-lhe o ventre. —
Perguntaram-me se me queria vingar da sua morte. Queria. Por
isso jurei a minha fidelidade à causa e fui colocada como
serviçal no interior da residência real na Mansão do Sol.
» Cheguei ao palácio como uma espia Vermelha, mas nem
mesmo eu sabia ser uma coisa inteiramente diferente. Durante
o direito da Prova da Rainha, descobri que de algum modo
possuía aptidão elétrica. Após consultação, os falecidos Rei
Tiberias e Rainha Elara decidiram acolher-me, para
silenciosamente estudarem o que eu era e, assim esperavam,
ensinarem-me o que poderia tornar-se a minha aptidão.
Disfarçaram-me de Prateada para me protegerem. Sabiam
acertadamente que uma Vermelha com uma aptidão seria
considerada uma aberração no melhor dos casos, uma
abominação no pior, e ocultaram a minha identidade para me
manterem a salvo dos preconceitos tanto de Vermelhos como
de Prateados. O meu estatuto de sangue era conhecido de uns
poucos, Maven incluído, bem como Ca… o Príncipe Tiberias.
» Mas a Guarda Escarlate descobriu o que eu era.
Ameaçaram expor-me publicamente, tanto para arruinar a
credibilidade do rei como para me porem em perigo. Fui
forçada a servir-lhes de espia, a seguir as suas ordens e a
facilitar a sua infiltração na corte.
O próximo alarido da sala soa mais alto e não é facilmente
silenciado.
— Isto é uma treta e tanto — rosna Kilorn.
— A minha derradeira missão era angariar aliados
Prateados para a Guarda Escarlate. Fui instruída a visar o
Príncipe Tiberias, ardiloso guerreiro e herdeiro ao trono de
Norta. Ele foi… — Ela hesita, os olhos penetrando os nossos.
Movem-se para um lado e para o outro, buscando. Pelo canto
do olho vejo Cal baixar a cabeça. — Ele foi facilmente
convencido. Assim que resolvi como fazê-lo, ajudei
igualmente a Guarda Escarlate nos seus planos para o Tiroteio
Solar, que resultou em onze mortos, e no ataque à bomba da
Ponte de Archeon.
» Quando o Príncipe Tiberias matou o seu pai, o Rei Maven
agiu velozmente, fazendo a única escolha que julgou possível
— diz num fio de voz. Ao seu lado, Maven faz o possível por
parecer triste à menção do seu pai assassinado. — Ele estava
de luto e nós fomos condenados a ser executados na arena.
Escapámos com vida apenas devido à Guarda Escarlate.
Levaram-nos a ambos para uma ilha-baluarte ao largo da costa
de Norta.
» Ali fui feita prisioneira, tal como o Príncipe Tiberias e,
descobri, o irmão que julgava ter perdido. Tal como eu, ele
tinha uma aptidão, e tal como eu era temido pela Guarda
Escarlate. Tencionavam matar-nos, aos que denominavam
sanguenovos. Quando descobri que existiam outros como eu, e
que a Guarda Escarlate lhes estava a dar caça para exterminá-
los, logrei escapar com o meu irmão e alguns outros. O
Príncipe Tiberias foi connosco. Sei agora que ele tencionava
formar um exército para desafiar o seu irmão. Após alguns
meses a Guarda Escarlate apanhou-nos a todos e matou os
poucos Vermelhos com aptidões que conseguíramos encontrar.
O meu irmão foi assassinado no conflito, mas eu escapei
sozinha.
Por uma vez, o calor dentro da sala não provém de Cal.
Todos fervilham de fúria. Esta não é Mare. Estas não são
palavras suas. Mas não deixo de sentir raiva como os restantes.
Como pode ela sequer deixar isto sair-lhe da boca? Eu cuspiria
sangue antes de proferir as mentiras de Maven. Mas que
escolha tem ela?
— Sem lugar algum para onde ir, entreguei-me ao Rei
Maven e à justiça que julgasse por bem conceder-me. — A sua
resolução quebra-se pedaço a pedaço, até as lágrimas lhe
escorrerem pelas faces. Envergonho-me de dizer que elas
ajudam o seu pequeno discurso mais do que qualquer outra
coisa. — Apresento-me aqui hoje como voluntária prisioneira.
Lamento o que fiz, mas estou pronta a fazer tudo o que puder
para deter a Guarda Escarlate e a sua aterrorizadora esperança
para o futuro. Eles nada defendem senão eles próprios e as
pessoas que podem controlar. Matam todos os outros, quem
quer que se lhes atravesse no caminho. Qualquer um que seja
diferente.
As últimas palavras entalam-se-lhe na garganta, recusando
sair. No trono, Maven está sentado imóvel, mas a sua garganta
move-se ligeiramente. Emitindo um ruído que a câmara não
pode ouvir, instando-a a terminar como ele clama.
Mare Barrow ergue o queixo e olha fulgurantemente em
frente. Os seus olhos parecem negros de fúria. — Nós, os
sanguenovos, não servimos para a sua alvorada.
Gritos e protestos irrompem através da sala, vociferando
obscenidades para Maven, para o whisper Merandus, até para
a rapariga-relâmpago por falar as palavras.
— …vil monstro de rei…
— …antes matar-me que dizer…
— …mal-amanhado fantoche…
— …traidora, pura e simples…
— …não é a primeira vez que entoa a canção deles…
Kilorn é o primeiro a ceder, ambas as mãos crispando-se em
punhos cerrados. — Acham que ela quis fazer isto? — diz, a
sua voz suficientemente alta para ressoar, mas não áspera. O
rosto põe-se-lhe vermelho de frustração, e Cal pousa-lhe uma
mão no ombro, levantando-se com ele. Isso silencia uma boa
parte, particularmente os jovens oficiais. Parecem
embaraçados, apologéticos mesmo, envergonhados com a
reprimenda de um rapaz de dezoito anos.
— Calados, todos vós! — troveja o Coronel, silenciando os
restantes. Volta-se uma vez para lançar um olhar fulgurante
com os seus olhos desemparelhados. — A pestinha ainda está
a falar.
— Coronel… — rosna Cal. O seu tom é uma clara ameaça.
Em resposta, o Coronel aponta para o ecrã. Para Maven, não
para Mare.
— …oferecer refúgio a quem quer que fuja do terror da
Guarda Escarlate. E para os sanguenovos entre vós,
escondendo-se do que parece ser pouco mais que genocídio, as
minhas próprias portas estão abertas. Instruí os palácios reais
de Archeon, Harbor Bay, Delphie e Summerton, bem como os
fortes militares de Norta, para protegerem a vossa espécie da
dizimação. Terão comida, abrigo, e, se o desejarem, treino
para as vossas aptidões. São súbditos sob a minha proteção e
fá-lo-ei com todos os recursos que tenho. Mare Barrow não é a
primeira de vós a juntar-se a nós e não será a última. — Tem a
presunçosa audácia de pousar uma mão no braço dela.
Então é assim que um simples rapazola se torna rei. É não
só implacável e sem remorsos, como pura e simplesmente
brilhante. Não fosse a fúria que se revolve dentro de mim,
estaria impressionada. A sua maquinação causará problemas à
Guarda, claro. Pessoalmente, estou mais preocupada com os
sanguenovos que ainda andam por aí. Nós fomos recrutados
para Mare e a sua rebelião com pouca escolha na questão.
Agora ainda menos há. A Guarda ou o Rei. Ambos nos veem
como armas. Ambos nos levarão à morte. Mas só um nos
manterá acorrentados.
Olho de relance por sobre o ombro, à procura de Ada. Os
seus olhos estão colados ao ecrã, memorizando sem esforço
cada tique e inflexão para mais tarde serem escrutinados.
Como eu, está de sobrolho franzido, pensando na preocupação
mais profunda que membro algum da Guarda Escarlate tem
ainda. O que acontecerá às pessoas como nós?
— À Guarda Escarlate, digo apenas isto — acrescenta
Maven, levantando-se do trono. — A vossa alvorada pouco
mais é que escuridão, e jamais tomará este país. Nós
combatemos até ao último. Força e poder.
Na tribuna, e através de toda a sala do trono, o cântico ecoa
de cada boca. Inclusive da de Mare. — Força e poder.
A imagem mantém-se por um segundo, gravando a visão a
fogo em cada cérebro. Vermelha e Prateado, a rapariga-
relâmpago e o Rei Maven, unidos contra o grande demónio
que nos fizeram parecer. Sei que não é escolha de Mare, mas é
culpa sua. Não se apercebeu ela de que ele a usaria se não a
matasse?
Ela não pensou que ele o fizesse. Cal disse isso antes,
quanto ao interrogatório dela. São ambos fracos no que toca a
Maven, e essa fraqueza continua a assolar-nos a todos.
Lá no Entalhe, Mare fez o possível por me instruir quanto à
minha aptidão. Pratico aqui onde posso, juntamente com os
outros sanguenovos que aprendem os seus limites. Cal e Julian
Jacos tentam ajudar, mas eu e muitos outros mantemo-nos
relutantes em confiar na sua tutela. Além disso, encontrei outra
pessoa para me ajudar.
Sei que a minha aptidão cresceu em força, se não em
controlo. Sinto-a agora, aflorando-me à flor da pele, um
abençoado vazio para aquietar o caos à minha volta. Ela
implora e eu cerro o punho contra ela, suprimindo o silêncio.
Não posso virar a minha raiva contra as pessoas nesta sala.
Não são elas o inimigo.
Quando o ecrã fica escuro, assinalando o fim do
comunicado, uma dúzia de vozes soa ao mesmo tempo. A
palma da mão de Cal abate-se na secretária à sua frente e ele
vira-se, resmungando em surdina para consigo mesmo.
— Já vi o suficiente — julgo ouvi-lo dizer antes de abrir
caminho à força para fora da sala. Estúpido. Ele conhece o
próprio irmão. Ele pode dissecar as palavras de Maven melhor
do que qualquer um de nós.
O Coronel sabe-o também. — Vá buscá-lo de volta — diz
baixinho, inclinando-se para falar a Julian. O Prateado assente,
movendo-se sub-repticiamente para ir buscar o sobrinho.
Muitos param de falar vendo-o sair.
— Capitã Farley, os seus pensamentos? — diz o Coronel, a
sua voz cortante chamando a atenção para o devido lugar.
Cruza os braços e vira-se para encarar a filha.
Farley depressa se concentra, aparentemente não afetada
pelo discurso. Engole uma garfada de batatas. — A resposta
natural seria uma transmissão nossa. Refutando as alegações
de Maven, mostrando ao país quem salvámos.
Usarem-nos como propaganda. Fazerem exatamente o que
Maven está a fazer a Mare. O estômago aperta-se-me à ideia
de ser empurrada para diante de uma câmara, forçada a cantar
os louvores de gente que mal tolero e em quem não posso
plenamente confiar.
O pai assente. — Concordo…
— Mas não penso que seja o curso de ação acertado.
O Coronel ergue o sobrolho do seu olho arruinado.
Ela toma-o por um convite para continuar. — Serão simples
palavras. Nada de préstimo no fim, no esquema do que se está
a passar. — Tamborila com os dedos nos lábios, e quase posso
ver a engrenagem girar na sua cabeça. — Penso que deixamos
Maven falar, enquanto nós agimos. A nossa infiltração em
Corvium já está a exercer pressão sobre o rei. Veem como ele
destacou a cidade? O seu corpo militar? Está a reforçar o
moral. Porquê fazê-lo se não precisam?
Ao fundo da sala, Julian está de volta, com uma mão no
ombro de Cal. São da mesma altura, conquanto Cal pareça ter
mais vinte quilos do que o tio. A Prisão de Corros certamente
cobrou um tributo a Julian como o fez a nós.
— Temos uma boa quantidade de informação respeitante a
Corvium — acrescenta Farley. — E a sua importância para o
corpo militar de Norta, para não falar no moral Prateado, faz
dela o lugar perfeito.
— Para quê? — oiço-me perguntar, surpreendendo toda a
gente na sala, eu incluída.
Farley é suficientemente boa para se dirigir diretamente a
mim. — O primeiro assalto. A declaração oficial de guerra da
Guarda Escarlate contra o rei de Norta.
Uma espécie de ganido estrangulado irrompe de Cal, não a
coisa que seria de esperar de um príncipe ou soldado. O seu
rosto empalidece, os olhos arregalados com o que só pode ser
medo. — Corvium é uma fortaleza. Uma cidade construída
com o único propósito de sobreviver a uma guerra. Há aí um
milhar de oficiais Prateados, soldados treinados para…
— Para se organizarem. Para combaterem Lakelanders. Para
se postarem atrás de uma trincheira e marcarem lugares num
mapa — dispara Farley de volta. — Diz-me que estou errada,
Cal. Diz-me que os teus estão preparados para combater
dentro das suas próprias muralhas.
O olhar fulminante que ele lhe dirige poderia trespassar
qualquer um, mas Farley mantém-se firme. Se tanto, reforça-se
na sua oposição.
— É suicídio, para vocês e para quem estiver no vosso
caminho — diz-lhe ele. Ela ri-se perante a flagrante evasiva,
incitando-o a continuar. Ele controla-se bem, um príncipe de
fogo relutante em arder. — Não tomo parte nisto — rosna. —
Boa sorte no assalto a Corvium, sem qualquer participação que
contassem ter da minha parte.
As emoções de Farley não são assim tão travadas por uma
aptidão Prateada. A sala não arderá com ela, por mais
afogueado que esteja o seu rosto. — Graças a Shade Barrow,
já tenho tudo o que preciso!
O nome tem usualmente um efeito apaziguador. Recordar
Shade é recordar como ele morreu, e o que isso fez às pessoas
que ele amava. A Mare tornou-a fria, vazia, a pessoa disposta
a negociar-se a si própria para evitar o mesmo destino para
amigos e família. A Farley deixou-a sozinha, singular nas suas
prossecuções, focada apenas na Guarda Escarlate e nada mais.
Não conheci nem uma nem outra durante muito tempo antes
de Shade morrer, mas até eu lamento quem elas eram. A perda
mudou-as a ambas, e não para melhor.
Ela força-se a ultrapassar a dor que a memória de Shade
traz, nem que seja para nela esfregar o nariz de Cal. — Antes
de falsificarmos a sua execução, Shade foi o nosso agente-
chave em Corvium. Ele usava a sua aptidão para nos fornecer
a máxima informação possível. Não julgues por um segundo
que seja que és a única carta que temos para jogar nisto — diz
Farley calmamente. Depois vira-se de novo para o Coronel. —
Aconselho um assalto em grande escala, utilizando
sanguenovos em conjugação com soldados Vermelhos e os
nossos infiltrados já na cidade.
Utilizando sanguenovos. As palavras ferram, apunhalam e
queimam, deixando-me um gosto amargo na boca.
Acho que é a minha vez de sair de rompante da sala.
Cal vê-me partir, a boca comprimida numa linha firme e
severa.
Não és o único capaz de dramatismo, penso ao deixá-lo
para trás.
CAPÍTULO OITO

Mare

F acilito aos Arven a tarefa de me removerem da tribuna. O


Ovo e o Trio tomam-me os braços, deixando a Gatinha e a
Trevo atrás. O meu corpo fica embotado quando me escoltam
para fora de vista. O que fiz eu?, interrogo-me. O que fará
isto?
Algures os outros assistiram. Cal, Kilorn, Farley, a minha
família. Viram tudo. A vergonha quase me faz vomitar sobre o
meu miserável, magnificente vestido. Sinto-me pior do que
quando li as Medidas do pai de Maven, condenando tantos ao
recrutamento como pagamento pela ação da Guarda Escarlate.
Mas então toda a gente sabia que as Medidas não eram feito
meu. Eu era apenas a mensageira.
Os Arven empurram-me para diante. Não de volta por onde
vim, mas para trás do trono, por um vão de porta, para salas
que nunca vi.
A primeira é claramente outra câmara de conselho, com
uma longa mesa de tampo de mármore, rodeada por mais de
uma dúzia de cadeiras de pelúcia. Um assento é de cantaria,
uma fria construção cinzenta. Para Maven. A sala está
profusamente iluminada, inundada pelo sol poente de um lado.
As janelas dão para oeste, para longe do rio, sobranceiras às
muralhas do palácio e às suaves colinas cobertas de floresta
nevada.
No ano passado, eu e Kilorn cortávamos gelo no rio a troco
de umas moedas, arriscando ulcerações pelo frio a favor de
trabalho honesto. Isso durou cerca de uma semana, até eu
tomar consciência de que uns cobres por cortar gelo que não
tardaria a gelar de novo era um mau uso do nosso tempo. Que
estranho, saber que isso foi apenas há um ano e a toda uma
vida de distância.
— Perdão — diz uma voz branda, soando do único assento
na sombra. Volto-me para lá e vejo Jon assomando da sua
cadeira, com um livro na mão.
O vidente. Os seus olhos vermelhos brilham com uma
qualquer luz interior que não consigo nomear. Julguei que
fosse um aliado, um sanguenovo com uma aptidão tão
estranha como a minha. É mais poderoso do que um eye11,
capaz de ver mais além no futuro do que qualquer Prateado.
Agora posta-se diante de mim como inimigo, tendo-nos traído
em prol de Maven. O seu olhar dá-me a sensação de agulhas a
arder picando-me a pele.
Ele é a razão de eu ter conduzido os meus amigos à Prisão
de Corros e a razão de o meu irmão estar morto. A visão dele
afugenta o torpor gelado para longe, substituindo todo esse
vazio com lívido calor elétrico. Nada mais quero do que
esmagar-lhe o rosto com o que puder. Contento-me em rosnar-
lhe.
— É bom ver que Maven não mantém todos os seus animais
de estimação presos a uma trela.
Jon limita-se a pestanejar. — É bom ver que não és tão cega
como foste em tempos — replica quando passo por ele.
Quando o conhecemos, Cal preveniu-nos de que as pessoas
enlouqueciam ao decifrarem enigmas do futuro. Estava
absolutamente certo, e não cairei de novo nessa armadilha.
Viro costas, resistindo ao impulso de dissecar as suas palavras
cuidadosamente escolhidas.
— Ignora-me quanto quiseres, Mare Barrow. Não sou um
problema para ti — acrescenta. — Apenas uma pessoa aqui o
é.
Olho de relance por sobre o ombro, os meus músculos
movendo-se antes que o meu cérebro possa reagir. Claro que
Jon fala antes de mim, roubando-me as palavras da garganta.
— Não, Mare, não me refiro a ti.
Deixamo-lo para trás, continuando seja para onde for que
me conduzem. O silêncio é tão torturante quanto Jon, nada me
dando em que me focar à exceção das suas palavras. Refere-se
a Maven, constato. E não é difícil adivinhar a implicação. E o
aviso.
Há pedaços de mim, pequenos pedaços, ainda apaixonados
por uma ficção. Um fantasma dentro de um rapaz vivo que não
logro sequer abarcar. O fantasma que se sentou junto à minha
cama enquanto eu sonhava imersa em sofrimento. O fantasma
que manteve Samson longe da minha mente o maior tempo
que pôde, sei-o, adiando uma inevitável tortura.
O fantasma que me ama, à sua possível maneira
envenenada.
E eu sinto esse veneno a atuar em mim.
Tal como suspeito, os Arven não me levam de volta para o
meu quarto-prisão. Tento memorizar o caminho, assinalando
portas e passagens ramificando-se das muitas câmaras do
conselho e salões nesta ala do palácio. Os aposentos reais,
cada centímetro mais decorado do que o anterior. Mas eu estou
mais interessada nas cores dominantes das salas do que no
mobiliário em si. Vermelho, negro e prateado-real — é fácil de
entender. As cores da reinante Casa Calore. Há azul-marinho
igualmente. O tom provoca-me uma náusea no estômago.
Representa Elara. Morta, mas ainda aqui.
Finalmente paramos numa pequena mas bem fornecida
biblioteca. O sol poente coa-se através das pesadas cortinas,
corridas contra a luz. Grãos de poeira dançam nas traves
vermelhas, cinza sobre um fogo que se apaga. Tenho a
sensação de estar dentro de um coração, rodeada de
sanguinolento vermelho. É o escritório de Maven, apercebo-
me. Resisto ao impulso de me sentar na cadeira de couro atrás
de uma secretária lacada. De clamar algo dele como meu.
Poderia fazer-me sentir melhor, mas apenas por um momento.
Em vez disso, observo o que posso, olhando à minha volta
com olhos bem abertos que tudo absorvem. Tapeçarias
escarlates trabalhadas a fio negro com laivos de prateado estão
suspensas entre retratos e fotografias dos ancestrais Calore. A
Casa Merandus não é aqui tão evidente, apenas representada
por uma bandeira azul e branca pendente do teto abobadado.
As cores de outras rainhas aí estão também, algumas garridas,
algumas desbotadas, outras esquecidas. À exceção do amarelo-
dourado da Casa Jacos. Não está aqui de todo.
Coriane, a mãe de Cal, foi apagada deste lugar.
Busco rapidamente as imagens, embora não saiba realmente
o que procuro. Nenhum dos rostos parece familiar, exceto o do
pai de Maven. O seu retrato pintado, maior do que todos os
outros, olhando ameaçadoramente de cima da lareira vazia, é
difícil de ignorar. Ainda tarjado de negro, em sinal de luto.
Morreu há uns meses apenas.
Vejo Cal no seu rosto e Maven também. O mesmo nariz
direito, malares altos, espesso e lustroso cabelo negro. Traços
de família, a julgar pelos outros retratos de reis Calore. O
rotulado de Tiberias Quinto é particularmente bem-parecido,
quase espantosamente. Mas, verdade seja dita, os pintores não
são pagos para fazerem os seus modelos parecerem feios.
Não me surpreende ver que Cal não está representado. Tal
como a sua mãe, foi removido. Há alguns lugares
notoriamente vazios, e depreendo que ele os ocupasse. Porque
não haveria de fazê-lo? Cal era o filho primogénito, o favorito
do pai. Não é de admirar que Maven tenha tirado os retratos do
irmão. Sem dúvida queimou-os.
— Que tal está a cabeça? — pergunto ao Ovo, brindando-o
com um sorriso manhoso e vazio.
Ele responde com um olhar fulgurante, e o meu sorriso
rasga-se. Estimarei como um tesouro a sua imagem deitado de
costas, eletrocutado e inconsciente.
— Nada de mais tremuras? — insisto, adejando uma mão à
imagem do seu corpo soçobrando. De novo não responde, mas
o seu pescoço tinge-se de azul-acinzentado num rubor
zangado. É entretenimento bastante para mim. — Caramba,
esses curadores de pele são bons.
— Divertes-te?
Maven entra sozinho, a sua presença singularmente pequena
em comparação com a figura que projeta no trono. Os seus
Sentinelas devem estar perto, contudo, mesmo à porta do
escritório. Ele não é suficientemente tolo para ir seja aonde for
sem eles. Faz um gesto de mão, varrendo os Arven da sala.
Eles saem velozes, silenciosos como ratos.
— Não tenho muito mais com que me divertir — digo
quando eles desaparecem. Pela milésima vez hoje, amaldiçoo
a presença das algemas. Sem elas, Maven estaria tão morto
como a mãe. Em vez disso, elas forçam-me a tolerá-lo em toda
a sua repulsiva glória.
Ele arreganha um sorriso para mim, gozando a piada
sombria. — É bom ver que nem eu te posso mudar.
Para isso não tenho de todo resposta. Não posso contar as
formas como Maven me mudou e destruiu a rapariga que eu
era.
Tal como suspeitava, ele dirige-se pomposamente à
secretária e senta-se com graça impecável, ensaiada. — Tenho
de pedir desculpa pela minha grosseria, Mare. — Acho que os
meus olhos se esbugalham das órbitas para fora, pois ele ri-se.
— O teu aniversário foi há mais de um mês e não te dei nada.
— Tal como com os Arven, faz um gesto de mão, acenando-
me para que me sente diante dele.
Surpreendida, abalada, ainda embotada da minha pequena
representação, obedeço ao seu comando. — Confia em mim
— resmungo em surdina —, estou muito bem sem seja qual
for o novo horror com que planeias presentear-me.
O sorriso dele alarga-se. — Disto vais gostar, prometo.
— De alguma forma não acredito.
Arreganhando um sorriso, ele leva a mão a uma gaveta da
secretária. Sem cerimónia, atira-me um pedaço de seda.
Negro, metade do qual bordado com flores vermelhas e
douradas. Apanho-o avidamente. Obra de Gisa. Passo-o por
entre os dedos. Ainda está macio e fresco ao toque, embora eu
conte com algo viscoso, corrompido, envenenado pela posse
de Maven. Mas cada ponto de bordado é um pedaço dela.
Perfeito na sua beleza feroz, sem mácula, um lembrete da
minha irmã e da nossa família.
Ele vê-me virar e revirar a seda. — Tirámos-to quando te
capturámos. Enquanto estavas inconsciente.
Inconsciente. Aprisionada no meu próprio corpo, torturada
pelo peso do sonador.
— Obrigada — forço-me a articular rigidamente. Como se
tivesse alguma razão para lhe agradecer por alguma coisa.
— E…
— E?
— Ofereço-te uma pergunta.
Pestanejo para ele, confusa.
— Podes fazer uma pergunta, que responderei com a
verdade.
Por um segundo não acredito nele.
Eu sou um homem de palavra, quando quero ser. Ele disse-o
em tempos, e a isso se atém. É realmente um presente, se for
fiel à sua promessa.
A primeira pergunta surge sem pensar. Eles estão vivos?
Deixaste-os mesmo lá, e que se escapassem? Quase me desliza
dos lábios para fora antes de pensar melhor quanto a
desperdiçar a minha pergunta. Claro que escaparam. Se Cal
estivesse morto, eu sabê-lo-ia. Maven ainda estaria a
vangloriar-se, ou alguém teria dito alguma coisa. E ele está por
de mais preocupado com a Guarda Escarlate. Se os outros
tivessem sido capturados depois de mim, ele saberia mais e
temeria menos.
Maven inclina a cabeça, observando-me a pensar como um
gato observa um rato. Isto está a dar-lhe gozo. Deixa-me a pele
arrepiada.
Porquê dares-me isto? Porquê deixares-me sequer
perguntar? Outra pergunta quase desperdiçada. Porque sei a
resposta para esta também. Maven não é quem eu julgava ser,
mas isso não significa que não conheça partes dele. Posso
adivinhar o que isto é, por muito enganada que queira estar. É
a sua versão de uma explicação. Uma forma de me fazer
entender o que ele fez e porque continua a fazê-lo. Ele sabe
que pergunta acabarei por congregar coragem para fazer. Ele é
um rei, mas um rapaz também, sozinho num mundo de sua
própria criação.
— Até que ponto era ela?
Ele não se retrai. Conhece-me demasiado bem para ficar
surpreendido. Uma rapariga mais tola ousaria ter esperança —
acreditaria ser ele um fantoche de uma mulher malévola, agora
abandonado, à deriva. Continuando num curso que ele não faz
ideia como mudar. Sorte minha, não sou assim tão estúpida.
— Comecei a andar tarde, sabes. — Ele já não está a olhar
para mim, mas para a bandeira azul acima de nós. Adornada
com pérolas brancas e nebulosas gemas, uma preciosidade
condenada a acumular pó em memória de Elara. — Os
médicos, mesmo o Pai, disseram à Mãe que eu me
desenvolveria perfeitamente no meu próprio tempo. Um dia
aconteceria. Mas «um dia» não era suficientemente depressa
para ela — não podia ser a rainha com um filho deficiente e
atrasado. Não depois de Coriane ter dado ao reino um príncipe
como Cal, sempre a sorrir e a falar e a rir e perfeito. Dispensou
a minha ama, culpou-a pelas minhas limitações, e chamou a si
própria fazer-me ter-me de pé. Eu não me lembro disso, mas
ela contou-me a história tantas vezes. Achava que
demonstrava quanto me amava.
O pavor inunda-me o estômago, embora não entenda
porquê. Algo me previne para me levantar, para sair desta sala
para os braços dos guardas que me esperam. Outra mentira,
outra mentira, digo para mim. Astutamente elaborada, como
só ele pode fazer. Maven não consegue olhar para mim. Sinto
o sabor a vergonha no ar.
Os seus perfeitos olhos feitos de gelo ficam vidrados, mas
eu há muito me endureci contra as suas lágrimas. A primeira
fica presa nas suas pestanas escuras, uma oscilante gota de
cristal.
— Eu era um bebé e ela abriu caminho à martelada pela
minha cabeça dentro. Fez o meu corpo ter-se de pé, e andar, e
cair. Fazia-o diariamente, até eu chorar quando ela entrava
numa sala. Até eu aprender a fazê-lo sozinho. Por medo. Mas
isso também não podia ser. Um bebé a chorar sempre que a
mãe pegava nele? — Abana a cabeça. — A seu tempo retirou
também o medo. — Os seus olhos escurecem. — Tal como
tantas outras coisas.
» Perguntas até que ponto era eu — sussurra ele. — Alguma
coisa. O bastante.
Mas não tudo.
Não suporto mais isto. Com movimentos desequilibrados,
inclinada pelo peso das minhas algemas e do doentio aperto do
meu coração, levanto-me a custo da cadeira.
— Não podes ainda assim culpá-la por isto, Maven — sibilo
para ele, recuando. — Não me mintas dizendo que estás a
fazer isto por causa de uma mulher morta.
Tão rapidamente como surgiram, as suas lágrimas
desaparecem. Enxugadas, como se nunca tivessem existido. A
frincha na sua máscara sela-se bem fechada. Bom. Não tenho
qualquer desejo de ver o rapaz por baixo dela.
— Não o faço — diz ele devagar, vivamente. — Ela já se
foi. As minhas escolhas são minhas. Disso estou infinitamente
seguro.
O trono. O seu assento na câmara do conselho. Coisas
simples comparadas com as artísticas obras de vidro de
diamante ou veludo em que o seu pai se sentava. Talhadas em
blocos de pedra, simples, desprovidas de gemas ou metais
preciosos. E agora entendo porquê. — Pedra Silenciosa.
Tomas todas as decisões sentado nela.
— Não o farias tu? Com a Casa Merandus e os seus olhares
de soslaio tão perto? — Recosta-se, pousando o queixo numa
mão. — Já tive que bastasse de todos os sussurros a que eles
chamam orientação. Que bastasse para uma vida inteira.
— Bom — atiro-lhe. — Agora não tens mais ninguém para
culpar pela tua malevolência.
Um canto da sua boca ergue-se num ligeiro sorriso
condescendente. — Tu assim julgarias.
Resisto ao impulso de deitar mão ao que puder e esmagar-
lhe a cabeça, apagando o seu sorriso da face da Terra. — Se ao
menos pudesse matar-te e acabar com isto.
— Como me magoas. — Dá um estalo com a língua,
divertido. — E depois o quê? Correrias para a tua Guarda
Escarlate? Para o meu irmão? Samson viu-o muitas vezes nos
teus pensamentos. Sonhos. Memórias.
— Ainda fixado em Cal, mesmo agora que ganhaste? —
Carta fácil de jogar. Os seus sorrisos arreganhados irritam-me,
mas o meu sorriso malicioso vexa-o igualmente. Sabemos
como nos picar um ao outro. — É estranho, então, que te
esforces tanto por ser como ele.
É a vez de Maven se levantar, as suas mãos aterrando com
força na secretária quando se põe de pé para me olhar nos
olhos. Um canto da sua boca treme, repuxando-lhe o rosto
num amargo sorriso de desdém. — Eu estou a fazer o que o
meu irmão nunca conseguiu. Cal segue ordens, mas não é
capaz de fazer escolhas. Tu sabe-lo tão bem como eu. — Os
seus olhos tremulam, encontrando um ponto vazio na parede.
Procurando o rosto de Cal. — Por mais maravilhoso que
penses que ele é, tão galante, bravo e perfeito. Ele daria um rei
pior do que eu alguma vez serei.
Quase concordo. Passei demasiados meses a observar Cal
pisando a linha entre a Guarda Escarlate e o príncipe Prateado,
recusando matar mas recusando deter-nos, jamais pendendo
para um lado ou para o outro. Mesmo embora tendo visto
horror e injustiça, ainda assim não assume uma posição. Mas
ele não é Maven. Não é uma migalha da malevolência que
Maven é.
— Apenas ouvi uma pessoa descrevê-lo como perfeito. Tu
— digo-lhe calmamente. O que só o enfurece ainda mais. —
Acho que és capaz de ter uma ligeira obsessão no que respeita
a Cal. Também vais culpar a tua mãe por isso?
Destinava-se a ser uma piada, mas para Maven é tudo
menos isso. O seu olhar fixo vacila, apenas por um instante.
Um chocante instante. Contra a minha vontade, sinto os meus
olhos arregalarem-se e o coração cair-me no peito. Ele não
sabe. Ele não sabe verdadeiramente que partes da sua mente
são dele e quais foram feitas por ela.
— Maven — não posso evitar sussurrar, aterrorizada com
aquilo com que porventura me deparei.
Ele passa uma mão pelo cabelo escuro, puxando as
madeixas até se porem de pé. Um bizarro silêncio prolonga-se,
um silêncio que nos expõe a ambos. Sinto-me como se tivesse
vagueado para algum sítio onde não deveria estar, trespassado
um lugar onde realmente não quero entrar.
— Sai — diz ele finalmente, a ordem trémula.
Não me mexo, assimilando o que posso. Para usar mais
tarde, digo de mim para mim. Não por estar demasiado
entorpecida para me retirar. Não por sentir mais um incrível
acesso de piedade pelo príncipe-fantasma.
— Eu disse para saíres.
Estou acostumada à raiva de Cal deixar um quarto em brasa.
A ira de Maven congela, e um arrepio corre-me pela espinha
abaixo.
— Quanto mais tempo os fizer esperar, piores serão. —
Evangeline Samos tem o melhor e o pior sentido de
oportunidade.
Explode por ali dentro na sua costumada tempestade de
metal e espelhos, arrastando atrás a sua longa capa. Refletindo
a cor vermelha da sala, cintilando de carmesim e escarlate,
lampejando a cada passo. Enquanto a observo, com o coração
a martelar-me no peito, a capa divide-se e toma nova forma
ante os meus olhos, cada metade envolvendo uma perna
musculosa. Esboça um sorriso malicioso, deixando-me olhar, à
medida que o seu vestido da corte se transforma numa
imponente armadura. Também esta é letalmente bela, digna de
qualquer rainha.
Tal como antes, eu não sou problema dela, e afasta a
atenção de mim. Não lhe escapa a estranha corrente de tensão
no ar, ou o aspeto atormentado de Maven. Os olhos dela
semicerram-se. Tal como eu, avalia a cena. Tal como eu, usará
isto em sua vantagem.
— Maven, ouviu-me? — Avança alguns passos arrojados,
contornando a secretária para se postar ao lado dele. Maven
esquiva o corpo, furtando-se rapidamente, qual fantasma, a
uma das mãos dela. — Os governadores estão à espera, e o
meu próprio pai…
Com pérfida vontade, Maven agarra numa folha de papel na
secretária. A julgar pelas floreadas assinaturas em baixo, deve
ser alguma espécie de petição. Olha fulgurante para
Evangeline, afastando o papel do corpo enquanto roda a
pulseira, fazendo-a faiscar. Esta incendeia-se em dois arcos
chamejantes, dançando através da petição como facas quentes
através de manteiga. A petição desintegra-se em cinzas,
empoeirando o chão luzidio.
— Diga ao seu pai e aos seus fantoches o que penso da sua
proposta.
Se ela fica surpreendida com a sua atitude, não o mostra.
Em vez disso funga, inspecionando as unhas. Observo-a de
viés, bem ciente de que ela me atacará se eu respirar
demasiado audivelmente. Mantenho-me calada e de olhos
arregalados, desejando ter reparado antes na petição.
Desejando saber o que dizia.
— Cautela, meu querido — diz Evangeline, soando tudo
menos amorosa. — Um rei sem apoiantes não é rei de todo.
Ele vira-se para ela, movendo-se suficientemente depressa
para a apanhar desprevenida. São quase da mesma altura, e
enfrentam-se de olhos praticamente nivelados. Fogo e ferro.
Não conto que ela se encolha, não perante Maven, o rapaz, o
príncipe que ela costumava fazer correr às voltas nas nossas
aulas de Treino. Maven não é Cal. Mas as pálpebras dela
tremulam, pestanas negras contra pele branca-prateada, traindo
um laivo de medo que faz por ocultar.
— Não assuma saber que espécie de rei eu sou, Evangeline.
Oiço a sua mãe nele, e isso assusta-nos às duas.
Então ele volta os olhos de novo para mim. O rapaz confuso
de há um momento foi-se de novo, substituído por pedra viva
e um olhar gelado. O mesmo vale para ti, diz a sua expressão.
Embora eu nada mais queira do que correr dali para fora,
permaneço de pés bem fincados. Ele tudo me arrebatou, mas
não lhe darei o meu medo ou a minha dignidade. Não correrei
agora. Especialmente diante de Evangeline.
Ela fita-me de novo, os olhos avaliando cada centímetro da
minha aparência. Memorizando o meu aspeto. Deve ver-me
por sob o toque da curadora, as contusões adquiridas durante a
minha tentativa de fuga, as sombras permanentes sob os meus
olhos. Quando se foca na minha clavícula, levo um momento a
perceber porquê. Os seus lábios apartam-se, um pouco só, com
o que apenas pode ser surpresa.
Zangada, envergonhada, puxo o decote do vestido para cima
da minha marca. Mas não desvio os olhos dela enquanto o
faço. Ela tão-pouco arrebatará o meu orgulho.
— Guardas — diz Maven finalmente, levantando a voz para
a porta. Enquanto os Arven acodem, de luvas estendidas para
me levarem à pressa dali, Maven aponta o queixo para
Evangeline. — Você também.
Ela não o aceita bem, claro está.
— Eu não sou uma qualquer prisioneira para receber
ordens…
Sorrio quando os Arven me puxam dali, porta fora. Esta
fecha-se de mansinho, mas a voz de Evangeline ecoa atrás de
nós. Boa sorte, penso. Maven ainda quer saber menos de ti do
que de mim.
Os meus guardas estugam o passo, forçando-me a
acompanhá-los. Mais fácil de dizer do que fazer, no vestido
que me restringe, mas consigo. Sinto o pedaço de seda de Gisa
macio contra a pele, bem guardado no punho cerrado. Resisto
ao impulso de cheirar o tecido, para captar algum vestígio da
minha irmã. Lanço um olhar de relance para trás, na esperança
de vislumbrar exatamente quem estará à espera de uma
audiência com o nosso perverso rei. Em vez disso apenas vejo
Sentinelas, de máscaras negras e vestes flamejantes, de guarda
à porta do escritório.
Que se abre de violento rompante, tremendo nos gonzos
antes de se fechar com estrondo. Para uma rapariga criada
como nobre, Evangeline tem dificuldade em controlar o seu
temperamento. Interrogo-me se a minha antiga instrutora de
etiqueta, a Senhora Blonos, a terá alguma vez tentado ensinar.
A imagem quase me faz rir, trazendo-me um raro sorriso aos
lábios. Faz-me doer, mas não me ralo.
— Poupa os teus sorrisinhos, rapariga-relâmpago — rosna
Evangeline, dobrando a velocidade.
A sua reação apenas me atiça, apesar do perigo. Rio-me
abertamente ao virar as costas. Nenhum dos meus guardas diz
palavra, mas aceleram ligeiramente o passo. Nem mesmo eles
querem pôr à prova uma irritável magnetron desejosa de uma
rixa.
Ela apanha-nos de qualquer maneira, contornando
suavemente o Ovo para se plantar à minha frente. Os guardas
estacam, mantendo-me junto deles.
— Caso não tenhas reparado, estou um pouco ocupada —
digo-lhe, apontando para os guardas que me agarram ambos os
braços. — Não há realmente espaço para brigas no meu
horário. Vai chatear alguém que possa lutar.
O sorriso dela lampeja, cortante e luminoso como as
escamas da sua armadura. — Não te subestimes. Ainda te resta
muita luta. — Depois inclina-se para diante, invadindo o meu
espaço como fez com Maven. Uma maneira fácil de mostrar o
seu destemor. Eu mantenho-me firme, obrigando-me a não me
encolher, mesmo quando ela arranca uma escama laminada da
armadura como uma pétala de uma flor.
— Pelo menos assim espero — diz ela em surdina.
Com um cuidadoso trejeito de mão, corta o decote do meu
vestido, rasgando um pedaço escarlate bordado. Resisto ao
impulso de cobrir o M gravado na minha pele, sentindo um
ardor de embaraço insinuar-se-me pela garganta acima.
Os olhos dela tardam, delineando as linhas grosseiras da
marca de Maven. Mais uma vez parece surpreendida.
— Isso não parece acidente.
— Mais algumas maravilhosas observações que gostasses
de partilhar? — resmungo entre dentes.
Arreganhando um sorriso, ela repõe a escama no corpete. —
Não contigo. — É um alívio quando ela se afasta, pondo uns
preciosos centímetros entre nós. — Elane?
— Sim, Eve — diz uma voz. Do nada.
Quase salto da minha pele para fora quando Elane Haven se
materializa atrás dela, aparentemente do éter. Uma shadow12
capaz de manipular a luz, suficientemente poderosa para se
tornar invisível. Interrogo-me há quanto tempo estará ela aqui
connosco. Ou se estaria no escritório, com Evangeline ou
mesmo antes de ela entrar. Pode ter estado a assistir desde o
início. Pelo que sei, Elane pode ter sido o meu fantasma desde
o momento em que aqui cheguei.
— Já alguém te tentou pôr uma campainha? — dardejo,
nem que seja para ocultar o meu desconforto.
Elane brinda-me com um lindo sorriso amarelo que não lhe
chega aos olhos. — Uma ou duas vezes.
Tal como Sonya, Elane é-me familiar. Passámos muitos dias
juntas nos Treinos, sempre desavindas. Ela é mais uma das
amigas de Evangeline, raparigas suficientemente espertas para
se aliarem a uma futura rainha. Como senhora da Casa Haven,
o seu vestido e joias são do mais profundo negro. Não em sinal
de luto, mas em deferência às cores da sua casa. O seu cabelo
é tão vermelho como o recordo, cobre-vivo em contraste com
os olhos escuros e arqueados e a pele que parece esfumada,
perfeita e sem mácula. A luz à sua volta é cuidadosamente
manipulada, dando-lhe um brilho celestial.
— Tudo tratado por aqui — diz Evangeline, virando o seu
foco de laser para Elane. — Por agora. — Lança para trás um
olhar cortante, para deixar claro onde quer chegar.
11
Olho. (N. da T.)
12
Sombra. (N. da T.)
CAPÍTULO NOVE

Mare

S er uma boneca é uma coisa bizarra. Passo mais tempo na


prateleira do que a brincar. Mas quando a isso sou
forçada, danço ao comando de Maven — mantendo ele o
combinado enquanto o faço. Afinal de contas, ele é um
homem de palavra.
O primeiro sanguenovo procura refúgio na Colina do
Oceano, o Palácio de Harbor Bay, e, conforme Maven
prometeu, é-lhe dada plena proteção do pretenso terror da
Guarda Escarlate. Uns dias mais tarde o pobre homem,
Morritan, é escoltado para Archeon e apresentado ao próprio
Maven. Tudo devidamente transmitido. Tanto a sua identidade
como a sua aptidão são agora bem conhecidas na corte. Para
surpresa de muitos, Morritan é um burner13 como os
descendentes da Casa Calore. Mas, ao contrário de Cal e
Maven, não tem necessidade de uma pulseira lança-flamas,
nem sequer de uma faísca. O seu fogo provém de aptidão e
apenas aptidão, tal como os meus relâmpagos.
Tenho de me sentar a assistir, empoleirada numa cadeira
dourada com a restante comitiva real de Maven. Jon, o
vidente, senta-se comigo, de olhos vermelhos e silencioso.
Como os dois primeiros sanguenovos a juntarmo-nos ao rei
Prateado, são-nos dados lugares de grande honra ao lado de
Maven, secundando Evangeline e Samson Merandus. Mas só
Morritan nos presta alguma atenção. Quando se aproxima,
perante os olhos da corte e de uma dúzia de câmaras, o seu
olhar está sempre fixado em mim. Treme, receoso, mas algo
na minha presença o impede de fugir, o faz continuar em
frente. Obviamente acredita no que Maven me fez dizer.
Acredita que a Guarda Escarlate nos deu caça a todos. Ajoelha
mesmo e jura alistar-se no exército de Maven, para treinar com
oficiais Prateados. Para lutar pelo seu rei e pelo seu país.
Manter-me calada e quieta é a parte mais difícil. A despeito
dos membros magricelas de Morritan, da sua pele dourada e
mãos calejadas por anos de trabalho serviçal, ele nada mais
parece do que um coelhinho correndo precipitadamente direito
a uma armadilha. Uma palavra errada da minha parte e a mola
da armadilha disparará.
Mais se seguem.
Dia após dia, semana após semana. Às vezes um, às vezes
uma dúzia. De cada canto da nação vêm eles, fugindo para a
suposta segurança do seu rei. Na sua maioria porque estão com
medo, mas alguns porque são suficientemente tolos para
querer um lugar aqui. Deixarem para trás as suas vidas de
opressão e tornarem-se o impossível. Não posso censurá-los.
Afinal de contas, toda a vida nos disseram que os Prateados
são os nossos amos, nossos superiores, nossos deuses. E agora
são suficientemente misericordiosos para nos deixarem viver
no seu paraíso. Quem não tentaria juntar-se a eles?
Maven desempenha bem o seu papel. Abraça-os a todos
como irmãos e irmãs, com amplos sorrisos, não mostrando
vergonha nem medo num ato que a maior parte dos Prateados
acha repulsivo. A corte segue-lhe o exemplo, mas eu vejo os
seus sorrisos de desdém e cenhos franzidos ocultos atrás de
mãos repletas de joias. Mesmo que isto faça parte da charada,
um bem visado golpe contra a Guarda Escarlate desagrada-
lhes. Mais que isso, amedronta-os. Muitos dos sanguenovos
têm aptidões não treinadas mais poderosas do que as deles, ou
além da compreensão dos Prateados. Observam com olhos de
lobo e garras a postos.
Para variar, não sou eu o centro das atenções. É o meu único
alívio, para não dizer vantagem. Ninguém se rala com a
rapariga-relâmpago sem os seus relâmpagos. Faço o que
posso, que é pouco, mas não inconsequente. Escuto.
Evangeline está inquieta, apesar de uma fachada de cara de
ferro. Os seus dedos tamborilam nos braços do assento, apenas
se aquietando quando Elane está perto, sussurrando-lhe ou
tocando-lhe. Mas então não se atreve a relaxar. Permanece
num gume tão afiado como o das suas facas. Não é difícil
adivinhar porquê. Mesmo para uma prisioneira, tenho ouvido
falar muito pouco de um casamento real. E embora ela esteja
certamente noiva do rei, ainda não é uma rainha. Isso assusta-
a. Vejo-o no seu rosto, nos seus modos, no seu constante
desfile de cintilantes vestimentas, cada uma mais complicada e
régia que a anterior. Ela usa uma coroa em tudo menos no
nome, e contudo o nome é o que ela quer acima de tudo. O pai
quere-o também. Volo paira ao seu lado, resplandecente em
veludo negro e brocado prateado. Ao contrário da filha, não
usa qualquer metal que me seja dado ver. Nem uma corrente
ou sequer um anel. Não precisa de usar armas para parecer
perigoso. Com os seus modos calmos e vestes escuras, parece
mais um carrasco do que um nobre. Não sei como Maven
suporta a sua presença, ou a constante e focada fome nos seus
olhos. Ele faz-me lembrar Elara. Sempre de olhos no trono,
sempre à espera de uma oportunidade para o tomar.
Maven dá por isso e não se rala. Dá a Volo o respeito que
ele requer, mas pouco mais. E deixa Evangeline na
deslumbrante companhia de Elane, obviamente congratulando-
se que a sua futura mulher não tenha interesse nele. O seu foco
está decididamente noutro lado. Não em mim, estranhamente,
mas no seu primo Samson. É-me igualmente difícil ignorar o
whisper que torturou os meus mais profundos recessos. Estou
constantemente ciente da sua presença, tentando captar os seus
sussurros se puder, embora mal tenha força para lhes resistir.
Maven não tem de preocupar-se com isso, não com a sua
cadeira de Pedra Silenciosa. Mantém-no a salvo. Mantém-no
vazio.
Quando fui treinada para ser uma princesa, coisa risível só
por si, era noiva do segundo príncipe e comparecia a muito
poucas reuniões da corte. Bailes sim, festas muitas, mas nada
como isto até ao meu confinamento. Agora quase perdi a conta
de quantas vezes fui forçada a sentar-me como o bem
amestrado animal de estimação de Maven, a ouvir
peticionários, políticos e sanguenovos jurando lealdade.
Hoje parece-me mais do mesmo. O governador da região da
Brecha, um senhor da Casa Laris, termina um bem ensaiado
pleito por fundos do Tesouro para reparar minas de
propriedade Samos. Mais um dos fantoches de Volo, os seus
cordelinhos claramente visíveis. Maven dispensa-o facilmente,
com um aceno e uma promessa de rever a sua proposta.
Embora Maven seja um homem de palavra comigo, não o é na
corte. Os ombros do governador abatem-se de desânimo,
sabendo que ela jamais será lida.
As costas doem-me já da cadeira dura, para não falar da
rígida postura que tenho de manter no meu último atavio de
corte. Cristal e renda. Vermelho, claro está, como sempre.
Maven adora ver-me de vermelho. Diz que me faz parecer
viva, ainda que a vida me seja sugada a cada dia que passa.
Não é necessária a corte inteira para as audições diárias, e
hoje a sala do trono está meio vazia. Mas a tribuna ainda está
cheia. Os escolhidos para acompanhar o rei, flanqueando-o à
esquerda e à direita, têm grande orgulho da sua posição, para
não falar da oportunidade de tomarem parte em mais uma
transmissão nacional. Quando as câmaras se adiantam,
constato que devem vir aí mais sanguenovos. Suspiro,
resignando-me a mais um dia de culpa e vergonha.
Sinto um aperto nas entranhas quando as portas altas se
abrem. Baixo os olhos, não querendo recordar os seus rostos.
Na sua maioria seguirão o maldito exemplo de Morritan e
juntar-se-ão à guerra de Maven na tentativa de entenderem as
suas aptidões.
Ao meu lado, Jon crispa-se como é seu costume. Foco-me
nos seus dedos, compridos e magros, desenhando linhas contra
a perna da calça. Para lá e para cá, como uma pessoa
folheando páginas de um livro. Provavelmente assim faz,
lendo os tentativos fios do futuro à medida que se formam e
alteram. Interrogo-me o que verá ele. Não que alguma vez
perguntasse. Jamais lhe perdoarei a sua traição. Pelo menos ele
não tenta falar comigo, desde que por ele passei na câmara do
conselho.
— Sejam todos bem-vindos — diz Maven aos sanguenovos.
A sua voz é ensaiada e firme, ressoando na sala do trono. —
Não há com o que se preocuparem. Estão agora a salvo.
Prometo-vos a todos, a Guarda Escarlate jamais vos ameaçará
aqui.
Deplorável.
Mantenho a cabeça inclinada, ocultando o rosto das
câmaras. O afluxo de sangue ruge-me aos ouvidos, martelando
ao compasso do meu coração. Sinto-me nauseada; sinto-me
doente. Fujam!, grito mentalmente, ainda que sanguenovo
algum pudesse escapar da sala do trono agora. Olho para todo
o lado menos para Maven e os sanguenovos, para todo o lado
menos para a jaula invisível que se desenha à volta deles. Os
meus olhos pousam em Evangeline, para darem com ela a
fitar-me. Para variar não esboça um sorriso malicioso. O seu
rosto está inexpressivo, vazio. Ela tem muito mais prática nisto
do que eu.
As minhas unhas estão lascadas, as cutículas roídas em
ferida durante longas noites de aflição e ainda mais longos
dias desta indolor tortura. A curadora Skonos, que me faz
parecer saudável, esquece-se sempre de me verificar as mãos.
Espero que quem assista às transmissões não se esqueça.
Ao meu lado, o rei continua com esta horrenda exibição. —
Bem?
Quatro sanguenovos apresentam-se, cada um mais nervoso
que o anterior. As suas aptidões são frequentemente acolhidas
com arquejos de assombro ou sussurros ansiosos. Dá a
sensação de ser um lúgubre espelho da Prova da Rainha. Em
vez de exibirem as suas aptidões por uma coroa de noiva, os
sanguenovos exibem-nas pelas suas vidas, para merecerem o
que julgam ser um refúgio ao lado de Maven. Tento não olhar,
mas dou com os meus olhos extraviando-se por piedade e
medo.
A primeira, uma corpulenta mulher com bíceps capazes de
rivalizarem com os de Cal, atravessa tentativamente uma
parede. Atravessa mesmo, como se a madeira dourada e a
moldura ornamentada fossem de ar. Ao fascinado
encorajamento de Maven, ela faz então o mesmo com um
Sentinela. Ele retrai-se, o único indício de humanidade por trás
da sua máscara negra, mas de resto permanece incólume. Não
faço ideia de todo como funciona a aptidão dela, e penso em
Julian. Também ele está com a Guarda Escarlate, e espero que
a assistir a estas transmissões. Isto é, se o Coronel o permitir.
Ele não é exatamente um fã dos meus amigos Prateados.
Dois velhos seguem-se à mulher, veteranos de cabelos
brancos com olhos distantes e ombros largos. As suas aptidões
são-me familiares. O mais baixo com falta de dentes é como
Ketha, uma dos sanguenovos que recrutei há uns meses.
Embora ela fosse capaz de fazer explodir um objeto ou pessoa
só com o pensamento, não sobreviveu à nossa incursão à
Prisão de Corros. Ela odiava a sua aptidão. É sanguinolenta e
violenta. Ainda que o homem de sangue novo apenas destrua
uma cadeira, desfazendo-a com um piscar de olhos, também
não parece feliz com isso. O amigo é de fala branda,
apresentando-se como Terrance antes de nos dizer que é capaz
de manipular o som. Como Farrah. Outra recruta minha. Não
foi connosco a Corros. Espero que ainda esteja viva.
O último é outra mulher, provavelmente da idade da minha
mãe, o cabelo preto entrançado raiado de cinzento. É graciosa
de movimentos, abordando o rei com os passos calmos e
elegantes de uma serviçal bem treinada. Como Ada, como
Walsh, como eu em tempos. Como tantos de nós éramos e
ainda somos. Quando se curva, fá-lo bem baixa.
— Vossa Majestade — murmura, a sua voz suave e singela
como uma brisa de verão. — Eu sou Halley, uma serviçal da
Casa Eagrie.
Maven acena-lhe para que se endireite, arvorando o seu
sorriso falso. Ela obedece. — Eras uma serviçal da Casa
Eagrie — diz ele gentilmente. Depois assente por sobre o
ombro, dando com a chefe Eagrie na multidão. — Os meus
agradecimentos, Senhora Mellina, por trazê-la e pô-la a salvo.
A mulher alta com cara de pássaro faz já uma vénia,
sabedora das palavras antes de ele as proferir. Como eye, pode
ver o futuro imediato, e depreendo que tenha visto a aptidão da
sua serviçal antes de esta se aperceber sequer do que era.
— Bem, Halley?
Os olhos dela tremulam para os meus por um fugaz
momento. Espero aguentar-me ante o seu escrutínio. Mas ela
não está à procura do meu medo, ou do que escondo sob a
minha máscara. Os seus olhos focam-se muito longe, vendo
através e nada vendo ao mesmo tempo.
— Ela é capaz de controlar e criar eletricidade, grande e
pequena — diz Halley. — Não tendes nome para esta aptidão.
Depois olha para Jon. O mesmo olhar desliza sobre ela. —
Ele vê o destino. Até onde vai o caminho, enquanto uma
pessoa o trilhar. Não tendes nome para esta aptidão.
Maven semicerra os olhos, interrogador, e eu abomino-me
por sentir o mesmo que ele.
Mas ela já lá vai, fitando e falando mal se vira.
— Ela é capaz de controlar materiais metálicos através da
manipulação dos campos magnéticos. Magnetron.
» Whisper.
» Shadow.
» Magnetron.
» Magnetron.
E continua por aí fora pela fila de conselheiros de Maven,
apontando e nomeando as suas aptidões com pouca
dificuldade. Maven inclina-se para diante, interrogador, a
cabeça curvada para o lado com curiosidade animal. Observa
atentamente, mal pestanejando. Muitos julgam-no estúpido
sem a sua mãe, não um génio militar como o seu irmão,
portanto de que serve ele? Esquecem-se de que a estratégia
não é só para o campo de batalha.
— Eye. Eye. Eye. — Aponta os seus antigos amos,
nomeando-os igualmente antes de deixar cair a mão ao longo
do corpo. O seu punho cerra-se e descerra-se, aguardando a
inevitável incredulidade.
— Então a tua aptidão é pressentir as outras aptidões? —
diz Maven finalmente, um sobrolho levantado.
— Sim, Vossa Majestade.
— Uma coisa fácil de representar.
— Sim, Vossa Majestade — admite ela, ainda mais baixinho
agora.
Coisa passível de ser feita sem grande dificuldade,
especialmente por alguém na sua posição. Ela serve uma Alta
Casa, presente na corte amiúde por estes dias. Ser-lhe-ia fácil
memorizar o que os outros são capazes de fazer — mas
mesmo Jon? Que eu saiba, ele é louvado como o primeiro
sanguenovo a juntar-se a Maven, mas não me parece que
muitos conheçam a sua aptidão. Maven não quereria que as
pessoas pensassem que ele depende de alguém de sangue
vermelho para o aconselhar nas suas decisões.
— Continua. — Ele ergue as sobrancelhas escuras,
incitando-a. A atuar.
Ela obedece ao seu comando, nomeando Osanos nymphs14,
Welle greenwardens, um solitário Rhambos strongarm. Um
após o outro, mas eles envergam cores, e ela é uma serviçal.
Deve supostamente saber estas coisas. A sua aptidão é um
truque de salão no melhor dos casos, uma mentira e uma
sentença de morte no pior. Eu sei que ela sente a espada
pender sobre a sua cabeça, mais próxima a cada contração do
maxilar de Maven.
Lá atrás, um silk Iral de vermelho e azul põe-se em pé,
ajeitando o casaco enquanto anda. Apenas dou por isso porque
os seus passos são estranhos, não tão fluidos como deveriam
ser os de um silk. Bizarro.
E Halley dá por isso também. Treme, por um segundo
apenas.
Pode ser a sua vida ou a dele.
— Ela é capaz de mudar de cara — sussurra, o seu dedo
tremendo no ar. — Não tendes nome para esta aptidão.
Os costumados sussurros da corte terminam sem um eco,
apagados como uma vela. Faz-se silêncio, apenas quebrado
pelo pulsar cada vez mais forte do meu coração. Ela é capaz
de mudar de cara.
O meu corpo vibra de adrenalina. Foge!, desejo gritar.
Foge!
E quando os Sentinelas agarram o senhor Iral pelos braços,
levando-o para fora, imploro de mim para mim: Por favor está
enganada. Por favor está enganada. Por favor está enganada.
— Eu sou um filho da Casa Iral — ruge o homem, tentando
libertar-se das mãos dos Sentinelas. Um Iral seria capaz de
fazê-lo, contorcendo-se com um sorriso. Mas quem quer que
ele ou ela seja não consegue. Sinto um baque no estômago. —
Tomais a palavra de uma mentirosa escrava Vermelha por mais
que a minha?
Samson reage antes que Maven possa sequer perguntar,
rápido como um swift15. Desce os degraus da tribuna, os seus
olhos azul-elétrico estralejando de raiva. Calculo que não
tenha tido muitos cérebros com que se alimentar desde o meu.
Com um ganido, o filho Iral cambaleia e tomba de joelhos, de
cabeça baixa. Samson invade-lhe à força a mente.
E então o seu cabelo faz-se cinzento, mais curto, retrocede
para uma cabeça diferente com uma outra cara.
— Babá — oiço-me arquejar. A mulher de idade ousa olhar
para cima, os olhos arregalados, assustados e familiares.
Lembro-me de recrutá-la, de levá-la para o Entalhe, de vê-la
pôr na linha os miúdos sanguenovos e contar histórias dos seus
netos. Engelhada como uma noz, mais velha do que qualquer
um de nós, e sempre pronta para uma missão. Correria a
abraçá-la se isso fosse remotamente permitido.
Em vez disso caio de joelhos, as minhas mãos cravadas no
pulso de Maven. Imploro como só fiz uma vez antes, os meus
pulmões cheios de cinzas e ar frio, a cabeça rodopiando ainda
do despenhamento controlado de um jato.
O vestido esgarça-se ao longo de uma costura. Não foi feito
para me ajoelhar. Tal como eu.
— Por favor, Maven. Não a mates — peço-lhe, arquejante,
agarrando-me a seja o que for para salvar-lhe a vida. — Ela
pode ser usada; é valiosa. Olha para o que é capaz de fazer…
Ele empurra-me, a palma da sua mão contra a minha marca.
— Ela é uma espia na minha corte. Não és?
Eu imploro ainda, falando antes que a boca arguta da Babá a
faça ser morta de uma vez. E, para variar, tenho esperança de
que as câmaras ainda estejam a olhar.
— Ela foi traída, enganada, desencaminhada pela Guarda
Escarlate. Não é culpa dela!
O rei não condescende em levantar-se, nem sequer por um
assassinato aos seus pés. Porque tem medo de deixar a sua
Pedra Silenciosa, de tomar uma decisão fora do seu círculo de
vazio conforto e segurança. — As regras da guerra são claras.
Os espiões devem ser arrumados desde logo.
— Quando estás doente, quem culpas tu? — clamo. — O
teu corpo ou a doença?
Ele olha-me fulgurante e eu sinto-me oca por dentro. —
Culpas a cura que não resultou.
— Maven, imploro-te… — Não me lembro de ter
começado a chorar, mas claro que choro. São lágrimas
vergonhosas, pois choro por mim bem como por ela. Isto era o
início de um resgate. Isto era para mim. Babá era a minha
oportunidade.
A minha visão tolda-se, desfocada na periferia. Samson
ergue uma mão, ávido de mergulhar no que ela sabe.
Interrogo-me quão devastador será isto para a Guarda
Escarlate — e como puderam ser tão estúpidos para fazê-lo.
Que risco, que desperdício.
— Ergue-te. Vermelha como a alvorada — murmura ela,
cuspindo.
Depois o seu rosto altera-se uma última vez. Para um rosto
que todos reconhecemos.
Samson cambaleia para trás meio passo, surpreendido, ao
passo que Maven solta uma espécie de grito estrangulado.
Elara fita-nos do chão, qual fantasma vivo. O seu rosto está
mutilado, destruído por relâmpagos. Um olho desapareceu, o
outro está injetado de vil prateado. A boca retorce-se num
inumano esgar de escárnio. Desencadeia-me terror na boca do
estômago, embora saiba que ela está morta. Sei que a matei.
É um esperto estratagema, dando-lhe tempo bastante para
levar uma mão aos lábios, para engolir.
Já vi pílulas de suicídio antes. Mesmo fechando os olhos,
sei o que acontece a seguir.
É melhor do que o que Samson teria feito. E os seus
segredos manter-se-ão secretos. Para sempre.
13
Queimador, flamejante ou chamejante. (N. da T.)
14
Ninfas. (N. da T.)
15
Veloz. (N. da T.)
CAPÍTULO DEZ

Mare

D esfaço cada livro na minha estante, esfrangalho-os em


pedaços. As lombadas abrem-se, as páginas rasgam-se, e
tomara que sangrassem. Tomara sangrar eu. Ela está morta
porque eu não estou. Porque ainda estou aqui, isco numa
armadilha, um engodo para atrair a Guarda Escarlate para fora
dos seus santuários.
Após algumas horas de destruição sem sentido, constato que
estou errada. A Guarda Escarlate não faria isto. Não o
Coronel, não Farley, não por mim.
— Cal, seu estúpido, estúpido biltre — digo para ninguém.
Porque claro está que isto foi ideia dele. Foi o que ele
aprendeu. Vitória a todo o custo. Espero que não continue a
pagar este preço impossível por mim.
Lá fora está a nevar outra vez. Não sinto nenhum do
invernoso frio, apenas o meu.
De manhã acordo na minha cama, ainda de vestido, embora
não me lembre de me levantar do chão. Os livros destruídos
desapareceram também, meticulosamente varridos da minha
vida. Mesmo os mais ínfimos pedaços de papel rasgado. Mas
as prateleiras não estão vazias. Uma dúzia de livros
encadernados a couro, novos e velhos, ocupam os espaços. O
impulso de os destruir também me consome, e ponho-me
cambaleante de pé, investindo.
O primeiro que agarro está ratado, a capa rasgada e gasta.
Acho que era amarela, ou talvez dourada. Não me interessa
realmente. Abro-o, uma mão agarrando um feixe de páginas,
pronta a desfazê-las em pedaços como as restantes.
Uma letra familiar faz-me quedar petrificada. O meu
coração dá um salto, reconhecendo-a.
Propriedade de Julian Jacos.
Os meus joelhos cedem sob o meu peso. Aterro com um
suave baque, curvada sobre a coisa mais confortante que vi em
semanas. Os meus dedos delineiam as linhas do seu nome,
desejando que ele saltasse delas, que me fosse dado ouvir a
sua voz em mais algum lugar que não dentro da minha cabeça.
Folheio as páginas, procurando mais testemunhos dele. As
palavras deslizam, cada qual um eco da sua calidez. Uma
história de Norta, da sua formação, e trezentos anos de reis e
rainhas Prateados passam num lampejo. Alguns excertos estão
sublinhados ou anotados. Cada nova eclosão de Julian faz o
meu peito contrair-se de felicidade. Apesar das minhas
circunstâncias, das minhas dolorosas cicatrizes, sorrio.
Os outros livros são iguais. Todos de Julian, pedaços das
suas bem maiores coleções. Passo as mãos por eles como uma
rapariga esfomeada. Ele dá preferência à história, mas há
ciências também. Até um romance. Este tem dois nomes lá
dentro. Do Julian, para a Coriane. Fito as letras, a única
evidência da mãe de Cal neste palácio. Arrumo-o de volta com
cuidado, os meus dedos tardando na sua lombada intacta. Ela
não chegou a lê-lo. Talvez não tenha tido oportunidade.
Bem lá no fundo, odeio que estes livros me deixem feliz.
Odeio que Maven me conheça suficientemente bem para saber
o que me dar. Porque eles vêm certamente da sua parte. O
único pedido de desculpas que pode fazer, o único que posso
de todo aceitar. Mas não aceito. Claro que não aceito. Rápido
como veio, o meu sorriso desvanece-se. Não posso sentir algo
que não ódio no que diz respeito ao rei. As suas manipulações
não são tão perfeitas como as da mãe, mas sinto-as ainda
assim e não deixarei que me toquem.
Por um segundo considero desfazer os livros em pedaços,
tal como fiz aos outros. Mostrar a Maven o que penso do seu
presente. Mas simplesmente não consigo. Os meus dedos
tardam nas páginas, tão fáceis de rasgar. E então arrumo-os
cuidadosamente na estante, um a um.
Não destruirei os livros, pelo que me decido pelo vestido em
vez disso, arrancando do meu corpo o tecido incrustado de
rubis.
Alguém como Gisa fez provavelmente este vestido. Uma
serviçal Vermelha com mãos finas e olho de artista, costurando
na perfeição algo tão belo e terrível que só uma Prateada
poderia usá-lo. O pensamento deveria deixar-me triste, mas só
raiva corre de mim como sangue. Não tenho mais lágrimas.
Não depois de ontem.
Quando a vestimenta seguinte é entregue por umas
silenciosas Trevo e Gatinha de rostos empedernidos, visto-a
sem hesitações ou queixas. A blusa é sarapintada com uma
carrada de rubis, granadas e ónix, com longas mangas
pendentes raiadas de seda negra. As calças também são um
presente, suficientemente soltas para passarem por
confortáveis.
A seguir vem a curadora Skonos. Ela concentra os seus
esforços nos meus olhos, curando tanto o inchaço como a
latejante dor de cabeça das lágrimas de frustração da noite
passada. Tal como Sara, ela é silenciosa e hábil, os seus dedos
negro-azulados adejando sobre as minhas mazelas. Ela
trabalha rapidamente. E eu também.
— Pode falar, ou a Rainha Elara também lhe cortou a
língua?
Ela sabe ao que me refiro. O seu olhar vacila, as pestanas
adejando em rápidos piscares de olhos de surpresa. Ainda
assim, nada diz. Foi bem treinada.
— Boa decisão. Da última vez que vi Sara estava a resgatá-
la de uma prisão. Ao que parece, nem o facto de perder a
língua foi castigo suficiente. — Olho de relance para lá dela,
para a Trevo e a Gatinha que observam. Tal como a curadora,
concentram-se em mim. Sinto o frio rasgar da sua aptidão,
pulsando a compasso com o silêncio constante das minhas
algemas. — Estavam lá centenas de Prateados. Muitos das
Altas Casas. Alguns amigos seus desapareceram nos últimos
tempos?
Não tenho muitas armas neste lugar. Mas tenho de tentar.
— Cala a boca, Barrow — rosna a Trevo.
Só fazê-la falar é vitória bastante para mim. Insisto.
— Acho estranho que ninguém se pareça importar que o
reizinho seja um tirano sedento de sangue. Mas, verdade seja
dita, sou Vermelha. Não vos entendo de todo.
Rio-me quando a Trevo me empurra para longe da curadora,
já fumegando de raiva. — Basta de cura para ela — silva,
puxando-me para fora do quarto. Os seus olhos verdes faíscam
de raiva, mas igualmente confusão. Dúvida. Pequenas brechas
que tenciono explorar com mansas palavras.
Ninguém mais deverá arriscar resgatar-me. Tenho de fazê-lo
eu mesma.
— Ignora-a — resmunga a Gatinha em surdina para a sua
camarada, em voz aguda e soprada e destilando veneno.
— Que honra deve ser para vocês duas. — Continuo a falar
enquanto me conduzem por longos corredores familiares. —
Tomar conta de uma fedelha Vermelha. Limpar tudo depois
das suas refeições, arrumar-lhe o quarto. Tudo para que Maven
possa ter a sua boneca por perto quando quiser.
Isto só as deixa mais enraivecidas e brutas comigo. Estugam
o passo, forçando-me a acompanhá-las. Subitamente viramos à
esquerda e não à direita, para outra parte do palácio que
recordo vagamente. Aposentos residenciais, onde vive a
família real. Aqui vivi também, ainda que por pouco tempo.
A minha pulsação acelera-se ao passarmos por uma estátua
num vão. Reconheço-a. O meu quarto — o meu antigo quarto
de dormir — fica a umas portas de distância. O quarto de Cal
também, e o de Maven.
— Agora já não está tão faladora — diz a Trevo, a sua voz
soando muito ao longe.
A luz entra pelas janelas, duplamente luminosa do sol sobre
a neve fresca. De nada serve para me confortar. Posso lidar
com Maven na sala do trono, no seu escritório, quando estou
em exposição. Mas sozinha — verdadeiramente sozinha? Sob
a minha roupa, a sua marca ressente-se e arde.
Quando nos detemos a uma porta e entramos para o salão,
constato o meu erro. Sinto-me inundada de alívio. Maven é
agora rei. Os seus aposentos residenciais já não são aqui.
Mas os de Evangeline são.
Ela está sentada no meio do estranhamente despido salão,
rodeada de pedaços retorcidos de metal. Variam de cor e
material — ferro, bronze, cobre. As suas mãos trabalham
diligentemente, modelando flores de crómio, dobrando-as
numa faixa entrançada de prata e ouro. Mais uma coroa para a
sua coleção. Mais uma coroa que não pode usar ainda.
Dois assistentes servem-na. Um homem e uma mulher,
singelamente vestidos, as suas roupas raiadas com as cores da
Casa Samos. Com um choque, constato que são Vermelhos.
— Tornem-na apresentável, por favor — diz Evangeline,
não se dignando levantar os olhos.
Os Vermelhos descem, fazendo-me sinal para o único
espelho da sala. Ao mirá-lo, constato que Elane está aqui
igualmente, preguiçando num longo sofá sob um raio de sol
como um gato satisfeito. Cruza o olhar com o meu sem
interrogação ou medo, apenas desinteresse.
— Podem esperar lá fora — diz Elane ao quebrar o contacto
visual, virando-se para as minhas guardas Arven. O seu cabelo
vermelho capta a luz, ondulando como fogo líquido. Mesmo
tendo uma desculpa para a minha aparência horrível, sinto-me
ainda assim constrangida na sua presença.
Evangeline assente, concordando, e as Arven retiram-se.
Ambas lançam olhares descontentes na minha direção.
Absorvo-os sequiosa para futuro deleite.
— Alguém se digna explicar? — pergunto para a sala
silenciosa, não esperando qualquer resposta.
As outras duas riem juntas, trocando olhares significativos.
Aproveito a oportunidade para avaliar a sala e a situação. Há
outra porta, provavelmente dando para o quarto de Evangeline,
e as janelas estão bem fechadas contra o frio. A sala dá para
um pátio familiar, e apercebo-me de que o meu quarto-prisão
deve ficar diante do dela. A revelação arrepia-me.
Para minha surpresa, Evangeline deixa cair o seu trabalho
com estardalhaço. A coroa desfaz-se, incapaz de manter a
forma sem a aptidão dela. — É dever da rainha receber os
convidados.
— Bem, eu não sou uma convidada e tu não és uma rainha,
portanto…
— Se ao menos o teu cérebro fosse tão rápido como a tua
boca — respinga ela.
A mulher Vermelha pestaneja rapidamente, encolhendo-se
como se as nossas palavras pudessem magoá-la. Na verdade,
talvez possam, e resolvo ser menos estúpida. Mordo o lábio
para impedir que mais pensamentos idiotas saiam, deixando os
dois serviçais Vermelhos trabalhar. O homem ocupa-se do meu
cabelo, escovando-o e enrolando-o em espiral, enquanto ela
me cuida do rosto. Nada de tinta prateada, mas usa rouge, um
laivo de preto para me delinear os olhos e vermelho berrante
para os lábios. Uma visão espalhafatosa.
— Servirá — diz Elane atrás dela. Os Vermelhos afastam-se
rapidamente, deixando cair as mãos e baixando a cabeça. —
Não podemos fazê-la parecer demasiado bem tratada. Os
príncipes não o entenderiam.
Os meus olhos arregalam-se. Príncipes. Convidados. Em
frente de quem me vão fazer desfilar agora?
Evangeline dá por isso. Abespinha-se sonoramente, atirando
uma flor de bronze para Elane. Esta incrusta-se na parede
acima da cabeça dela, mas Elane não se parece ralar. Apenas
suspira sonhadoramente.
— Atenção ao que dizes, Elane.
— Ela descobrirá dentro de uns minutos, minha querida.
Que mal faz? — Levanta-se das suas almofadas, estirando os
membros longos que reluzem com a sua aptidão. Os olhos de
Evangeline seguem cada movimento seu, aguçando-se quando
Elane atravessa a sala para o meu lado.
Junta-se a mim ao espelho, olhando o meu rosto. — Portar-
te-ás bem hoje, sim?
Interrogo-me com que rapidez Evangeline me esfolaria se
desse com o cotovelo nos dentes perfeitos de Elane.
— Sim.
— Bom.
E então desaparece, eclipsada da vista mas não da sensação.
Ainda sinto a sua mão sobre o meu ombro. Um aviso.
Olho através do espaço onde estava o corpo de Elane, de
volta para Evangeline. Ela levanta-se do chão, o vestido
caindo à sua roda, fluido como mercúrio. Bem que podia sê-lo.
Quando avança direita a mim, não posso evitar retrair-me.
Mas a mão de Elane impede-me de me mover, forçando-me a
pôr-me de pé direita e deixar que Evangeline se incline para
mim. Um canto da sua boca eleva-se. Ela gosta de me ver com
medo. Quando levanta uma mão e eu me encolho, sorri
abertamente. Mas, em vez de me agredir, enfia-me uma
madeixa de cabelo atrás da orelha.
— Nada de mal-entendidos, isto é só para meu benefício —
diz. — Não teu.
Não faço ideia do que fala ela, mas assinto seja como for.
Evangeline não nos conduz para a sala do trono, mas para as
câmaras de conselho privadas de Maven. Os Sentinelas que
guardam as portas parecem mais imponentes do que de
costume. Quando entro, constato que até as janelas patrulham.
Uma precaução suplementar após a infiltração da Babá.
Da última vez que as transpus a sala estava vazia, à exceção
de Jon. Ele ainda aqui está, calado a um canto, discreto junto à
restante meia dúzia presente na sala. Arrepio-me à vista de
Volo Samos, silenciosa aranha de negro com o filho, Ptolemus,
a seu lado. Claro está, Samson Merandus encontra-se aqui
também. Olha-me de soslaio e eu baixo os olhos, evitando a
sua mirada como se me pudesse escudar da memória dele a
insinuar-se-me no cérebro.
Conto ver Maven sentado sozinho na ponta de lá da mesa de
mármore, mas em vez disso dois homens flanqueiam-no bem
próximos. Ambos estão envoltos em pesadas peles e suave
camurça, vestidos para resistir ao frio ártico ainda que
estejamos bem abrigados do inverno. Têm pele escura negra-
azulada, qual pedra polida. O da direita tem contas de ouro e
turquesa embutidas nas espirais intrincadas das suas tranças,
enquanto o da esquerda se fica por longas e reluzentes
madeixas encimadas por uma coroa de flores esculpida de
quartzo branco. Realeza, claramente. Mas não nossa. Não de
Norta.
Maven ergue uma mão, acenando para Evangeline que se
aproxima. À luz do Sol de inverno ela brilha. — A minha
noiva, Senhora Evangeline da Casa Samos — diz. — Foi parte
integrante na captura de Mare Barrow, a rapariga-relâmpago e
líder da Guarda Escarlate.
Evangeline desempenha o seu papel, curvando-se perante os
dois. Eles inclinam a cabeça por sua vez, em movimentos
longos e fluidos.
— As nossas felicitações, Senhora Evangeline — diz o da
coroa. Estende mesmo uma mão, convidativa, para a dela. Ela
deixa que ele lhe beije os nós dos dedos, abrindo-se num
sorriso ante a atenção.
Quando me olha fulgurante, constato que Evangeline quer
que me junte a ela. Faço-o relutantemente. Deixo os dois
recém-chegados intrigados, que me olham fascinados. Recuso-
me a um assentimento de cabeça sequer.
— É esta a rapariga-relâmpago? — inquire o outro príncipe.
Os seus dentes lampejam como o luar contra a pele escura
como a noite. — É esta que tanto lhe dá que fazer? E deixou-a
viver?
— Claro que deixou — grasna o seu compatriota. Põe-se em
pé e verifico que deve ter mais de dois metros de altura. — É
um isco maravilhoso. Embora me surpreenda que os seus
terroristas não tenham tentado um resgate a valer, se é tão
importante como diz.
Maven encolhe os ombros. Transpira um ar de calma
satisfação. — A minha corte está bem defendida. Uma
infiltração é de todo impossível.
Miro-o de relance, cruzando o olhar com o dele. Mentiroso.
Ele quase me lança um sorriso malicioso, como se fosse uma
piada entre nós. Resisto ao familiar impulso de cuspir nele.
— No Piedmonte fá-la-íamos marchar pelas ruas de cada
cidade — diz o príncipe com a coroa de quartzo. — Para
mostrar aos nossos cidadãos o que acontece a pessoas como
ela.
Piedmonte. A palavra ressoa como uma campainha na
minha cabeça. Então são estes os príncipes do Piedmonte.
Vasculho o cérebro, tentando recordar o que sei do país deles.
Um aliado de Norta, fazendo parte da nossa fronteira
meridional. Governado por uma coleção de príncipes. Sei isso
tudo das lições de Julian. Mas sei outras coisas também.
Lembro-me de encontrar carregamentos em Tuck, víveres
roubados do Piedmonte. E a própria Farley insinuou que a
Guarda Escarlate se estava a expandir lá, tencionando alastrar
a sua rebelião ao mais próximo aliado de Norta.
— Ela fala? — continua o príncipe, olhando de Maven para
Evangeline e vice-versa.
— Infelizmente — replica ela com um significativo e
malicioso sorriso.
Ambos os príncipes se riem, tal como Maven. O resto da
sala segue-lhe o exemplo, conivente com o seu amo e senhor.
— Pois muito bem, Príncipe Daraeus? Príncipe Alexandret?
— Maven varre um e o outro com o olhar, à vez. Representa
orgulhosamente o papel de rei, apesar dos dois régios
indivíduos com o dobro da sua idade e tamanho. De alguma
forma está à sua altura. Elara treinou-o tão bem. — Quiseram
ver a prisioneira. E viram-na.
Alexandret, postado já tão próximo, toma-me o queixo com
mãos suaves. Interrogo-me qual será a sua aptidão. Interrogo-
me quanto medo deveria ter dele. — Deveras, Vossa
Majestade. Temos algumas perguntas, se tiver a gentileza de o
permitir.
Embora enquadre as palavras numa solicitação, isto pouco
mais é que uma exigência.
— Vossa Majestade já lhe disse o que ela sabe. — Samson
fala da sua cadeira, inclinando-se sobre a mesa de modo a
apontar para mim. — Nada na mente de Mare Barrow escapou
à minha busca.
Eu assentiria em concordância, mas a mão de Alexandret
mantém-me imóvel. Levanto o olhar para ele, tentando deduzir
exatamente o que quererá de mim. Os seus olhos são um
abismo, indecifráveis. Não conheço este homem e nada
encontro nele que possa usar. A minha pele arrepia-se ao seu
toque e desejo ter acesso aos meus relâmpagos, para pôr
alguma distância entre nós. Por sobre o ombro, Daraeus
inclina-se de forma a poder ver-me melhor. As suas contas de
ouro captam a luz de inverno, enchendo-lhe o cabelo de
ofuscante luminosidade.
— Rei Maven, gostaríamos de ouvi-lo dos próprios lábios
dela — diz Daraeus, inclinando-se para o soberano. Depois
sorri, todo ele suavidade e carisma. Daraeus é belo e usa bem a
sua aparência. — Solicitação do Príncipe Bracken, entende.
Apenas precisamos de uns minutos.
Alexandret, Daraeus, Bracken. Guardo os nomes na
memória.
— Perguntem o que quiserem. — A mão de Maven agarra o
rebordo da sua cadeira. Nem um nem o outro deixa de sorrir, e
nada alguma vez pareceu tão falso. — Aqui mesmo.
Após um longo momento, Daraeus cede. Inclina a cabeça
num gesto de deferência. — Muito bem, Vossa Majestade.
E então o seu corpo torna-se uma mancha indistinta,
movendo-se tão rapidamente que mal vejo os seus
movimentos. Está subitamente bem a meu lado. Veloz. Não
tão rápido como o meu irmão, mas suficientemente rápido
para me trespassar com um choque de adrenalina. Ainda não
sei do que é Alexandret capaz. Apenas posso rezar que não
seja um whisper, que eu não tenha de enfrentar tal tortura outra
vez.
— A Guarda Escarlate está a operar no Piedmonte? —
pergunta Alexandret assomando acima de mim, os seus olhos
profundos perfurando os meus. Ao contrário de Daraeus, não
há qualquer sorriso nele.
Aguardo a reveladora ferroada de outra mente a invadir a
minha. Nada acontece. As algemas não permitirão que uma
aptidão penetre no meu casulo de silêncio.
A minha voz fraqueja. — O quê?
— Quero ouvir o que sabes das operações da Guarda
Escarlate no Piedmonte.
Cada interrogatório a que fui sujeita foi levado a cabo por
um whisper. É bizarro ter alguém a fazer-me perguntas
livremente e confiar nas minhas respostas sem me abrir o
crânio ao meio. Suponho que Samson já terá dito aos príncipes
tudo o que apurou de mim, mas que eles não se fiem no que
ele disse. Inteligente, então, ver se a minha história coincide
com a dele.
— A Guarda Escarlate é boa a manter segredos — replico,
com os pensamentos numa névoa. Minto? Lanço mais achas
para a fogueira de desconfiança entre Maven e o Piedmonte?
— Não me era dada muita informação respeitante às suas
operações.
— As tuas operações. — Alexandret franze o sobrolho,
formando um profundo vinco no centro da testa. — Tu eras
líder deles. Recuso-me a acreditar que possas ser tão inútil
para nós.
Inútil. Há dois meses eu era a rapariga-relâmpago, uma
tempestade em forma humana. Mas antes disso era como ele
diz. Inútil para todos e tudo, incluindo os meus inimigos. Lá
nas Stilts odiava isso. Agora congratulo-me. Sou uma pobre
arma para um Prateado empunhar.
— Eu não sou líder deles — digo a Alexandret. Atrás de
mim oiço Maven mexer-se, recostando-se no assento. Espero
que se esteja a contorcer. — Nunca sequer me encontrei com
os seus dirigentes.
Ele não acredita em mim. Mas tão-pouco acredita no que já
lhe disseram. — Quantos agentes vossos estão no Piedmonte?
— Não sei.
— Quem financia os vossos empreendimentos?
— Não sei.
Começa como um formigueiro nos meus dedos das mãos e
dos pés. Uma sensação minúscula. Não agradável mas não
desconfortável. Como quando um membro fica dormente.
Alexandret não me larga o maxilar. As algemas, digo de mim
para mim. Proteger-me-ão dele. Só podem.
— Onde estão o Príncipe Michael e a Princesa Charlotta?
— Não sei quem são essas pessoas.
Michael, Charlotta. Mais nomes a memorizar. O
formigueiro continua, agora nos meus braços e pernas. Inspiro
com um silvo por entre dentes.
Os olhos dele semicerram-se de concentração. Preparo-me
para uma explosão de dor proveniente de seja que aptidão for a
que ele me sujeitará. — Tiveste algum contacto com a
República Livre de Montfort?
O formigueiro é ainda tolerável. Só a sua mão a apertar-me
o maxilar faz verdadeiramente doer.
— Sim — digo, cortante.
Então ele afasta-se, largando-me o queixo com um sorriso
de desdém. Olha-me de relance para os pulsos, depois levanta-
me uma manga à força para ver os meus grilhões. O zumbido
nos meus braços e pernas diminui quando ele franze o cenho.
— Vossa Majestade, pergunto-me se poderia interrogá-la
sem algemas de Pedra Silenciosa? — Outra exigência
disfarçada de solicitação.
Desta vez Maven nega-lha. Sem as minhas algemas, a sua
aptidão não terá restrições. Deve ser imensa, para ele ter
penetrado um pouco que fosse na minha jaula de silêncio.
Serei torturada. Outra vez.
— Não pode, Vossa Alteza. Ela é por de mais perigosa para
isso — diz Maven com um polido abanar de cabeça. Apesar de
todo o meu ódio, sinto um ínfimo desabrochar de gratidão. —
E, como disse, ela é valiosa. Não posso deixar que a destrua.
Samson não se incomoda a ocultar a sua repulsa. — Alguém
deveria fazê-lo.
— Há mais alguma coisa que eu possa fazer por Vossas
Altezas, ou pelo Príncipe Bracken? — prossegue Maven,
sobrepondo-se ao seu demoníaco primo. Assoma da cadeira,
usando uma mão para alisar o seu uniforme de gala decorado
com medalhas e distintivos de honra. Mas mantém uma mão
no assento, cravada num braço de Pedra Silenciosa. É a sua
âncora e o seu escudo.
Daraeus curva-se suficientemente baixo por ambos os
príncipes, sorrindo de novo. — A verdade é que ouvi rumores
de um banquete.
— Para variar — replica Maven com um sorriso aguçado na
minha direção —, os rumores são verdade.
A Senhora Blonos nunca me ensinou o protocolo para entreter
a realeza de uma nação aliada. Já vi banquetes antes, bailes,
uma Prova da Rainha que inadvertidamente arruinei, mas
nunca uma coisa como esta. Talvez por o pai de Maven não
estar tão preocupado com as aparências, mas Maven é bem
filho da carne e sangue da sua mãe. Parecer poderoso é ser
poderoso, dissera ela uma vez. Hoje ele leva essa lição a peito.
Os seus conselheiros, os seus convidados do Piedmonte e eu
estamos sentados a uma comprida mesa onde tudo podemos
supervisionar.
Nunca entrei neste salão de baile. Gigantesco em
comparação com a sala do trono, as galerias e os aposentos de
festas do restante Fogo Branco. Contém à vontade toda a
corte, todos os senhores e senhoras e suas famílias alargadas.
A câmara tem a altura de três andares, altíssimas janelas de
cristal e vidro colorido, cada uma representando as cores das
Altas Casas. O resultado é uma dúzia de arcos-íris arqueando-
se sobre um chão de mármore com veios de granito negro,
cada feixe de luz um prisma refletindo as facetas de diamante
de candelabros trabalhados em forma de árvores, pássaros,
raios solares, constelações, tempestades, infernais braseiros,
tufões e uma dúzia de outros símbolos de força Prateada. Eu
passaria a refeição inteira de olhos fitos no teto, não fosse a
minha precária posição. Pelo menos desta vez não estou ao
lado de Maven. Esta noite têm os príncipes de aturá-lo. Mas
Jon está à minha esquerda e Evangeline à minha direita.
Mantenho os cotovelos bem encostados ao corpo, não
querendo acidentalmente tocar em nenhum deles. Evangeline
seria capaz de me esfaquear e Jon de partilhar outra nauseante
premonição.
Por sorte, a comida é boa. Forço-me a comer e mantenho as
bebidas espirituosas ao largo. Os serviçais Vermelhos
circulam, e copo algum está alguma vez vazio. Após dez
minutos a tentar suster o olhar de alguém, abandono a
empresa. Os serviçais são espertos, e não estão dispostos a
arriscar a vida por um olhar de relance para mim.
Fixo os olhos adiante, contando as mesas, contando as Altas
Casas. Estão todas aqui, mais a Casa Calore, representada
apenas por Maven. Ele não tem primos ou outra família de que
eu tenha conhecimento, embora depreenda que devam existir.
Tal como os serviçais, são provavelmente espertos bastante
para evitar a sua ira invejosa e trémulo agarrar do trono.
A Casa Iral parece mais pequena, embotada apesar das suas
vibrantes vestimentas azuis e vermelhas. Não há nem de longe
tantos deles, e interrogo-me quantos Iral terão sido mandados
para a Prisão de Corros. Ou talvez tenham fugido da corte.
Mas Sonya ainda aqui está, a sua postura elegante e ensaiada
mas estranhamente tensa. Trocou o seu uniforme de oficial por
um cintilante vestido e está sentada ao lado de um homem
mais velho, resplandecente com um colar de rubis e safiras.
Provavelmente o novo senhor da sua casa desde que a sua
antecessora, a Pantera, foi assassinada por um homem sentado
apenas a uns passos de distância. Interrogo-me se Sonya lhes
terá contado o que eu disse a respeito da sua avó e de
Ptolemus. Interrogo-me se se ralarão.
Sou acometida por um choque quando Sonya levanta
bruscamente os olhos, apanhando-me a olhar.
Ao meu lado, Jon suspira longamente e baixinho. Pega no
seu copo de vinho escarlate com uma mão e desvia a faca do
jantar com a outra.
— Mare, podias fazer-me um pequeno favor? — solicita
calmamente.
Só a sua voz me repugna. Desdenhosa, volto-me para ele
com todo o veneno que posso congregar. — Desculpa?
Oiço um estalido e uma dor alastra-me através do malar,
cortando a pele, queimando a carne. Sou sacudida pela
sensação, caindo para o lado, esquivando-me como um animal
assustado. O meu ombro colide com Jon, e ele avança para
diante, derramando vinho e água sobre a toalha fina. E sangue
também. Uma data de sangue. Sinto-o, morno e molhado, mas
não baixo os olhos para ver a cor. Os meus olhos estão em
Evangeline, levantando-se da mesa, um braço estendido.
Uma bala estremece no ar em frente dela, sustida no lugar.
Depreendo que seja igual à que me rasgou o malar — e
poderia ter feito bem pior.
O punho dela cerra-se e a bala retrocede rapidamente para
onde veio, perseguida por lascas de frio aço que lhe explodem
do vestido. Olho horrorizada figuras de azul e vermelho
serpentearem através da tempestade metálica, furtando-se,
agachando-se, esquivando-se a cada golpe. Apanham mesmo
pedaços dos seus projéteis de metal e arremessam-nos de
volta, começando o ciclo de novo numa violenta e cintilante
dança.
Evangeline não é a única a atacar. Sentinelas arremessam-se
para diante, sobre a mesa alta, formando uma muralha diante
de nós. Os seus movimentos são perfeitos, feitos de anos de
implacável treino. Mas as suas fileiras têm lacunas. E alguns
desfazem-se das máscaras, descartando as suas vestes
flamejantes. Viram-se uns contra os outros.
As Altas Casas fazem o mesmo.
Nunca me senti tão exposta, tão desamparada, e isso é dizer
alguma coisa. Diante de mim, deuses digladiam-se. Os meus
olhos esbugalham-se, tentando ver tudo. Tentando dar um
sentido a isto. Nunca imaginei uma coisa assim. Uma batalha
de arena no meio de uma sala de baile. Joias em vez de
armaduras.
Iral e Haven e Laris no seu chocante amarelo parecem
formar um lado de seja o que for que isto é. Protegem-se uns
aos outros, ajudam-se mutuamente. Windweavers16 Laris
lançam silks Iral de um lado da sala para o outro em abruptas
rajadas, brandindo-os como setas vivas enquanto os Iral
disparam pistolas e lançam facas com mortal precisão. Os
Haven desapareceram por completo, mas uns quantos
Sentinelas à nossa frente tombam, derrubados por ataques
invisíveis.
E os restantes, os restantes não sabem o que fazer. Alguns
— Samos, Merandus, a maioria dos guardas e Sentinelas —
convergem para a mesa elevada, acorrendo a defender Maven,
que não consigo ver. Mas na sua maioria retrocedem,
surpreendidos, traídos, não dispostos a chafurdar em tal
barafunda e arriscar os próprios pescoços. Defendem e nada
mais fazem. Observam para ver a direção da maré.
O coração pula-me no peito. Esta é a minha oportunidade.
No caos, ninguém reparará em mim. As algemas não me
arrebataram os meus instintos ou talentos de ladra.
Finco os pés no chão, não me dignando interrogar-me a
respeito de Maven ou de seja quem for. Foco-me apenas no
que está diante de mim. Na porta mais próxima. Não sei para
onde dá, mas tirar-me-á daqui, e isso basta. Ao mover-me,
arrebato uma faca da mesa e dou-lhe uso, tentando forçar as
minhas algemas.
Alguém foge à minha frente, deixando um rasto de sangue
escarlate. Coxeia mas move-se velozmente, enfiando-se por
uma porta. Jon, constato. Tratando de escapar. Ele vê o futuro.
Seguramente pode ver a melhor forma de sair daqui.
Interrogo-me se serei capaz de o acompanhar.
Obtenho a minha resposta após um grandioso total de três
degraus, quando um Sentinela me agarra por trás. Prende-me
os braços nos flancos, apertando com força. Eu grunho como
uma criança irritada, exasperada para lá da frustração, quando
a minha mão deixa cair a faca.
— Não, não, não — diz Samson intrometendo-se no meu
caminho. O Sentinela nem retrair-me deixa. — Não podemos
ter isto.
Agora posso ver o que isto é. Não um resgate. Não para
mim. Um golpe, uma tentativa de assassinato. Vieram por
Maven.
Iral, Haven e Laris não podem ganhar esta batalha. Estão
em inferioridade numérica, mas sabem disso. Para tanto se
prepararam. Os Iral são maquinadores e espiões. O seu plano é
bem executado. Escapam-se já através das janelas
estilhaçadas. Olho, estupefacta, quando eles se lançam pelo ar,
apanhando rajadas de vento que os arremessam para longe.
Nem todos conseguem. Swifts Nornus apanham alguns, bem
como o Príncipe Daraeus, apesar de uma longa faca
sobressaindo-lhe do ombro. Depreendo que os Haven há muito
se foram também, embora um ou dois lampejem na minha
visão, cada um deles sangrando, morrendo, atacados pelo
assalto de um whisper Merandus. O próprio Daraeus estende
um braço numa mancha indistinta e apanha alguém pelo
pescoço. Quando aperta, um Haven materializa-se num piscar
de olhos.
Os Sentinelas que se viraram, todos Laris e Iral, tão-pouco
conseguem. Ajoelham, zangados mas destemidos, ardendo
com determinação. Sem as suas máscaras não parecem tão
aterrorizadores.
Um som gorgolejante chama a nossa atenção. O Sentinela
vira-se, permitindo-me ver o centro do que foi a mesa do
banquete. Uma multidão está aglomerada onde se encontrava o
assento de Maven, alguns em guarda, outros ajoelhados. Por
entre as suas pernas vejo-o.
Sangue de prata borbulha-lhe do pescoço, jorrando por entre
os dedos do Sentinela mais próximo, que faz por exercer
pressão num orifício de bala. Os olhos de Maven rolam e a sua
boca move-se. Não consegue falar. Não consegue sequer
gritar. Uma espécie de ruído húmido e arquejante é tudo o que
consegue emitir.
Congratulo-me por o Sentinela me manter imóvel. Ou de
contrário bem poderia correr para ele. Algo em mim quer
correr para ele. Se para terminar o trabalho ou confortá-lo
enquanto morre, não sei. Desejo ambas as coisas em igual
medida. Quero olhá-lo nos olhos e vê-lo deixar-me para
sempre.
Mas simplesmente não me posso mover, e ele simplesmente
não morrerá.
A curadora Skonos, a minha curadora de pele, acorre para o
seu lado, deslizando sobre os joelhos. Julgo que o seu nome é
Wren17. Um nome apropriado. Ela é pequena e esforçada como
a sua homónima. Estala os dedos. — Tira-a; eu tenho-o! —
berra. — Fora, já!
Ptolemus Samos põe-se de cócoras, abandonando a
vigilância de guarda. Contorce os dedos e uma bala solta-se do
pescoço de Maven, trazendo com ela uma renovada fonte de
prata. Maven tenta gritar, gargarejando o próprio sangue.
De cenho franzido, a curadora de pele trabalha, depondo
ambas as mãos sobre a ferida. Curva-se como que para o
cobrir com o seu peso. Deste ângulo não posso ver a pele por
baixo, mas o sangue cessa de jorrar. A ferida que deveria tê-lo
matado sara. Músculos, veias e carne mesclam-se de volta,
como novos. Cicatriz alguma além da memória.
Após um longo momento arquejante, Maven põe-se
precipitadamente em pé, e fogo explode-lhe de ambas as mãos,
fazendo recuar cambaleando quem o rodeia. A mesa diante
dele vira-se, dinamitada pela força e a fúria da sua chama.
Aterra num monte ressonante, cuspindo poças de álcool azul a
arder. O resto incendeia-se, alimentado pela raiva de Maven.
E, penso eu, terror.
Só Volo tem coragem para se aproximar dele em tal estado.
— Vossa Majestade, deveremos evacuá-lo para…
Com olhos perversos, Maven vira-se. Acima dele, as
lâmpadas do candelabro explodem, cuspindo chamas em vez
de faíscas. — Eu não tenho razão para fugir.
Tudo isto nuns poucos momentos. A sala de baile está em
ruínas, cheia de vidro estilhaçado, mesas viradas e uns quantos
corpos seriamente mutilados.
O Príncipe Alexandret está entre eles, caído morto no seu
lugar de honra, com o orifício de uma bala entre os olhos.
Não lamento a sua perda. A sua aptidão era a dor.
Naturalmente, interrogam-me primeiro. Já devia estar
acostumada.
Exausta, emocionalmente esgotada, caio no chão frio de
pedra quando Samson me larga. Mal consigo respirar, como se
tivesse acabado de correr. Faço um esforço para normalizar a
pulsação, parar de arquejar, agarrar-me a qualquer farrapo de
dignidade e perceção. Encolho-me quando os Arven me
trancam de novo as algemas; depois passam a chave para
longe. As algemas são simultaneamente um alívio e um peso.
Um escudo e uma jaula.
Retirámos desta vez para a grandiosa câmara do conselho, a
sala circular onde vi Walsh morrer para proteger a Guarda
Escarlate. Mais espaço aqui, mais condições para julgar a
dúzia de assassinos capturados. Os Sentinelas aprenderam a
lição e mantêm os prisioneiros firmemente agarrados, não lhes
permitindo qualquer movimento. Maven olha de soslaio do seu
assento, flanqueado de cada lado por Volo e Daraeus. O último
fumega de raiva, dividido entre fúria lívida e pesar. O príncipe
seu companheiro está morto, abatido no que sei agora ter sido
uma tentativa de assassínio de Maven. Uma tentativa que,
tristemente, falhou.
— Ela nada sabia disto. Nem da rebelião interna nem da
traição de Jon — diz Samson à sala. A terrível câmara parece
pequena, com a maior parte dos assentos vazios e as portas
firmemente fechadas. Só os conselheiros mais próximos de
Maven permanecem, a observar, as engrenagens rodando nas
suas cabeças.
No seu assento, Maven sorri desdenhoso. O facto de quase
ter sido assassinado não o abala. — Não, isto não foi obra da
Guarda Escarlate. Eles não trabalham assim.
— Não sabe isso — respinga Daraeus, esquecendo todos os
seus sorrisos e maneiras. — Nada sabe a respeito deles, diga o
que disser. Se é que a Guarda Escarlate se aliou com…
— Corrompidos — respinga Evangeline do seu lugar, atrás
do ombro esquerdo de Maven. Ela não tem um assento no
conselho ou um título seu e tem de ficar em pé, apesar das
muitas cadeiras vazias. — Os deuses não se aliam com insetos,
mas podem ser infetados por eles.
— Bonitas palavras de uma rapariga bonita — diz Daraeus,
descartando-a sem mais. Ela fumega de raiva. — E os
restantes?
Ao gesto de Maven, o interrogatório seguinte começa a todo
o pano. Uma shadow Haven, bem agarrada pelo próprio Trio
para impedir a mulher de fugir. Sem a sua aptidão parece meio
apagada, um eco da sua bela casa. O seu cabelo vermelho está
mais escuro, mais baço, sem o usual brilho escarlate. Quando
Samson lhe leva a mão à têmpora, ela guincha.
— Os pensamentos estão na sua irmã — diz Samson sem
qualquer sentimento. Exceto talvez enfado. — Elane.
Vi-a apenas há umas horas, deslizando pelo salão de
Evangeline. Não deu qualquer indício de saber de um
assassínio iminente. Mas nenhum bom maquinador daria.
Maven sabe-o também. Fulmina Evangeline com o olhar, a
fervilhar. — Disseram-me que a Senhora Elane escapou com a
maioria da sua casa, fugindo da capital — diz. — Tem ideia de
onde poderão ter ido, caríssima?
Ela mantém os olhos adiante, pisando uma linha cada vez
mais fina. Mesmo com o pai e o irmão tão próximos, não me
parece que alguém pudesse salvá-la da ira de Maven se ele se
sentisse inclinado a dar-lhe vazão. — Não, porque haveria de
ter? — diz ela com ligeireza, examinando as unhas em forma
de garras.
— Porque ela era a noiva do seu irmão e a sua meretriz —
replica o rei com naturalidade.
Se se sente envergonhada ou mesmo apologética,
Evangeline não o mostra. — Oh, isso. — Faz mesmo troça,
levando a acusação à letra. — Como podia ela apurar fosse o
que fosse de mim? Você conspira tão bem para me manter fora
de conselhos e políticas. Se tanto, ela fez-lhe um favor ao
manter-me agradavelmente ocupada.
As bicadas entre eles fazem-me lembrar outro rei e outra
rainha: os pais de Maven, discutindo depois do ataque da
Guarda Escarlate a uma festa na Mansão do Sol. Cada um
atirando-se ao outro, deixando feridas profundas para serem
exploradas mais tarde.
— Então submeta-se a interrogatório, Evangeline, e
veremos — dispara ele, apontando com uma mão adornada de
joias.
— Nenhuma filha minha alguma vez fará tal coisa —
troveja Volo, embora mal pareça uma ameaça. Meramente um
facto. — Ela não teve participação nisto e defendeu-o com a
própria vida. Sem a pronta ação de Evangeline e do meu
filho… bem, só dizê-lo é traição. — O velho patriarca faz uma
carranca, enrugando a pele branca, como se o pensamento
fosse simplesmente repugnante. Como se ele não festejasse se
Maven morresse. — Longa vida ao rei.
No meio do chão, a mulher Haven rosna, tentando libertar-
se de Trio. Ele aguenta firme, mantendo-a de joelhos. — Sim,
longa vida ao rei! — diz ela, olhando-nos fulgurante. —
Tiberias Sétimo! Longa vida ao rei!
Cal.
Maven põe-se em pé, fincando os punhos nos braços do seu
assento. Conto que a sala arda, mas fogo algum irrompe. Não
pode. Não enquanto ele estiver sentado em Pedra Silenciosa.
Os seus olhos são a única coisa inflamada. E então,
lentamente, com um sorriso maníaco, ele desata a rir.
— Tudo isto… por ele? — diz com um sorriso malicioso.
— O meu irmão assassinou o rei, nosso pai, ajudou a
assassinar a minha mãe e agora tenta assassinar-me. Samson,
se quiser continuar… — inclina a cabeça na direção do primo
— …eu não tenho piedade ou remorsos por traidores.
Especialmente estúpidos.
Os restantes viram-se para ver o interrogatório prosseguir,
ouvir a mulher Haven que vai desfiando segredos da sua fação,
das suas metas, dos seus planos. Substituir Maven pelo seu
irmão. Fazer de Cal rei, como era seu destino por nascimento.
Repor as coisas como eram.
Durante aquele tempo todo fito o rapaz no trono. Mantém a
sua máscara. Maxilar contraído, lábios comprimidos numa
linha fina e implacável. Dedos imóveis, costas direitas. Mas o
olhar vacila. Algo nos seus olhos se ausentou para bem longe.
E, no colarinho, emerge um ligeiríssimo rubor de prata,
tingindo-lhe o pescoço e as pontas das orelhas.
Está aterrorizado
Por um segundo, isso deixa-me feliz. Então lembro-me —
os monstros são por de mais perigosos quando estão com
medo.
16
Tece-ventos. (N. da T.)
17
Carriça. (N. da T.)
CAPÍTULO ONZE

Cameron

A inda que isso me tivesse transformado num pingente de


gelo, eu queria ficar para trás em Trial. Não por medo,
mas para marcar a minha posição. Eu não sou uma arma para
ser usada, como Barrow se permitiu ser. Ninguém tem de me
dizer onde ir ou o que fazer. Estou farta disso. Vivi toda a
minha vida assim. E cada instinto em mim diz-me para me
manter ao largo da operação da Guarda em Corvium, uma
cidade-fortaleza que engole cada soldado e lhe cospe os ossos.
Só que o meu irmão, Morrey, está agora apenas a uns
quilómetros, ainda bem preso numa trincheira. Mesmo com a
minha aptidão, precisarei de ajuda para chegar a ele. E se
quero alguma coisa que seja desta estúpida Guarda, vou
começar a dar-lhes algo em troca. Farley deixou isso bem
claro.
Gosto dela, mais agora que pediu desculpa pelo comentário
do «utilizar». Ela diz o que pensa. Não se lastima, embora
tenha todo o direito. Não é como Cal, metido pelos cantos,
recusando-se a ajudar e depois compadecendo-se quando lhe
dá para isso. O príncipe caído é exaustivo. Não sei como Mare
conseguia suportá-lo ou à sua incapacidade de escolher um
maldito lado… especialmente quando há um só lado que ele
pode de todo escolher. Mesmo agora põe-se com ameaças,
vacilando entre querer proteger os Prateados de Corvium e
destruir a cidade.
— Precisam de controlar as muralhas — resmunga em
surdina, postado diante de Farley e do Coronel. Estamos a
operar do nosso quartel-general em Rocasta, uma cidade de
abastecimento menos defendida, a poucos quilómetros do
nosso objetivo. — Se controlarem as muralhas podem virar a
cidade do avesso… ou derrubar as muralhas por completo.
Tornar Corvium inútil. Para todos.
Sento-me ociosa na sala exígua, escutando o toma-lá-dá-cá
do meu lugar junto de Ada. Ideia de Farley. Nós somos duas
dos mais visíveis sanguenovos, bem conhecidas de ambas as
espécies de Vermelhos. Incluir-nos nesta reunião envia uma
forte mensagem ao resto da unidade. Ada observa de olhos
arregalados, memorizando cada palavra e cada gesto. De
costume a Babá estaria sentada connosco, mas a Babá foi-se.
Era uma mulher pequena, mas deixa um vazio bem grande. E
eu sei de quem é a culpa.
Os meus olhos ardem nas costas de Cal. Sinto a ânsia da
minha aptidão e resisto ao impulso de o vergar de joelhos. Ele
matar-nos-á pela Mare, e não matará os seus pelo resto do
mundo. Foi escolha da Babá infiltrar-se sozinha em Archeon,
mas toda a gente sabe que não foi ideia dela.
Farley está simplesmente tão zangada como eu. Mal
consegue olhar para Cal, mesmo quando lhe fala. — A questão
agora é como eficazmente posicionar os nossos. Não podemos
concentrar todos nas muralhas, por muito importantes que
sejam.
— Pelas minhas contas, dez mil soldados Vermelhos
ocupam Corvium permanentemente. — Quase me rio ante a
humildade de Ada. Pelas minhas contas. As suas contas são
perfeitas e toda a gente sabe disso. — O protocolo militar dita
um oficial por cada dez soldados, o que nos dá pelo menos um
milhar de Prateados dentro da cidade, sem contar com
unidades de comando e administração. Neutralizá-los deveria
ser o nosso objetivo.
Cal cruza os braços, não convencido nem mesmo pela
perfeita e indiscutível inteligência de Ada. — Não estou assim
tão certo. O nosso fito é destruir Corvium, atingir o exército de
Maven no coração. Isso pode ser feito sem… — vacila — sem
um massacre de ambos os lados.
Como se ele se ralasse com o que acontece ao nosso lado.
Como se se ralasse que algum de nós morra.
— Como planeiam destruir uma cidade com um milhar de
Prateados a olhar? — pergunto-me em voz alta, sabendo que
não vou ter grande resposta. — Pedir-lhes-á o príncipe que
fiquem quietos a observar?
— Claro que lutamos contra quem resistir — interrompe o
Coronel. Fita Cal, desafiando-o a argumentar. — E eles
resistirão. Sabemos disso.
— Sabemos? — O tom de Cal é calmamente convencido.
— Membros da própria corte de Maven tentaram matá-lo na
semana passada. Se há divisão nas Altas Casas, então há
divisão nas forças armadas. Atacá-los de uma assentada
apenas servirá para os unificar, pelo menos em Corvium.
A minha troça ecoa pela sala. — Então o quê, esperamos?
Deixamos que Maven lamba as feridas e se reagrupe? Damos-
lhe tempo para recuperar o fôlego?
— Damos-lhe tempo para se enforcar — respinga Cal. Faz
uma carranca como eu. — Damos-lhe tempo para cometer
ainda mais erros. Agora pisa gelo fino com o Piedmonte, seu
único aliado, e três Altas Casas estão em franca rebelião. Uma
delas praticamente controla a Frota Aérea, outra uma vasta
rede de informações secretas. Para não falar que ainda nos tem
a nós e aos Lakelanders com que se preocupar. Ele está
assustado, está a lutar pela vida. Eu não quereria estar no seu
trono neste momento.
— Isso é verdade? — pergunta Farley, com voz casual. Mas
as palavras trespassam a sala como facas. Ferram-se nele.
Toda a gente pode vê-lo. Os seus ensinamentos reais são
suficientes para manter o rosto impávido, mas os olhos traem-
no. Lampejam à luz fluorescente. — Não nos mintas dizendo
que não te interessam as outras notícias de fora de Archeon. A
razão por que Laris, Iral e Haven tentaram matar o teu irmão.
Ele olha fixamente. — Eles tentaram um golpe porque
Maven é um tirano que abusa do poder e assassina os seus.
Finco o punho contra o braço da cadeira. Ele não vai
esquivar-se desta. — Eles revoltaram-se porque querem fazer-
te rei! — berro. Para minha surpresa, ele retrai-se. Talvez
esteja à espera de mais do que meras palavras. Mas eu
mantenho a minha aptidão controlada, por mais difícil que
seja. — Longa vida a Tiberias Sétimo! — foi o que os
assassinos disseram a Maven. Os nossos operacionais no Fogo
Branco foram claros.
Ele deixa escapar um longo suspiro de frustração. Parece
envelhecido com esta conversa. Cenho franzido, maxilar
contraído. Músculos do pescoço retesados e punhos cerrados.
É uma máquina prestes a pifar — ou a explodir.
— Não é inesperado — resmunga ele em surdina, como se
isso melhorasse alguma coisa. — Estava destinada uma crise
de sucessão, a seu tempo. Mas não há maneira de me poderem
pôr de volta no trono.
Farley inclina a cabeça. — E se pudessem? —
Silenciosamente, aplaudo-a. Ela não o deixará escapar-se tão
facilmente como Mare fazia. — Se te oferecessem a coroa, o
teu pretenso legítimo direito, a troco do fim disto tudo…
aceitarias?
O príncipe caído da Casa Calore endireita-se para a olhar
em cheio nos olhos.
— Não.
Não mente tão bem como Mare.
— Por mais que odeie admiti-lo, ele não deixa de ter razão
quanto a esperar.
Quase cuspo tossindo o chá que Farley me serviu. Pouso
rapidamente a chávena lascada sobre a mesa periclitante. —
Não estás a falar a sério. Como podes confiar nele?
Farley anda para trás e para diante, atravessando o seu
minúsculo gabinete numas passadas apenas. Uma mão massaja
as costas a andar, aliviando mais uma das suas dores. O seu
cabelo está mais comprido a cada dia que passa e ela mantém-
no entrançado atrás, afastado do rosto, às três pancadas. Eu
oferecer-lhe-ia a minha cadeira, mas ultimamente ela não
gosta lá muito de se sentar. Tem de estar sempre em
movimento, por uma questão de conforto e de energia nervosa.
— Claro que não confio nele — replica, dando um pontapé
ao de leve numa das paredes com tinta a lascar. A sua
frustração está tão exacerbada como as suas emoções. — Mas
posso confiar nalgumas coisas dele. Posso confiar que atuará
de determinada forma estando implicadas determinadas
pessoas.
— Referes-te a Mare. — Obviamente.
— A Mare e ao seu irmão. O seu afeto por ela contrabalança
na perfeição o seu ódio por ele. Pode ser a nossa única maneira
de o manter connosco.
— Eu digo que o deixemos ir, deixá-lo atiçar uns quantos
Prateados e ser mais um espinho no flanco de Maven. Não
precisamos dele aqui.
Ela quase ri, um som amargo hoje em dia. — Sim, direi
apenas ao Comando que chutámos para fora o nosso mais
conhecido e legítimo operacional. Isso irá cair muito bem.
— Ele nem sequer está realmente connosco…
— Bem, a Mare não está realmente com Maven, mas as
pessoas não parecem entendê-lo, pois não? — Embora ela
esteja certa, tenho de franzir o cenho. — Enquanto tivermos
Cal, as pessoas assinalarão o facto. Por pior que tenhamos
atamancado a primeira incursão a Archeon, acabámos não
obstante com um príncipe Prateado do nosso lado.
— Um raio de inútil príncipe.
— Irritante, frustrante, um verdadeiro chato… mas não
inútil.
— Ai sim? O que fez ele por nós nos últimos tempos, além
de arranjar maneira de a Babá morrer?
— A Babá não foi forçada a ir para Archeon, Cameron. Fez
uma escolha e morreu. É nisto que dá às vezes.
Por mais maternal que soe, Farley não é muito mais velha
que eu. Vinte e dois, talvez, no máximo. Acho que os seus
instintos maternais estão a despertar cedo.
— Além do facto de nos fazer ganhar pontos junto dos
Prateados menos hostis, Montfort tem interesse nele.
Montfort. A misteriosa República Livre. Os gémeos, Rash e
Tahir, pintam o lugar como um refúgio de liberdade e
igualdade, onde Vermelhos, Prateados e Ardentes — como
chamam aos sanguenovos — vivem juntos em paz. Um lugar
impossível de crer. Mas mesmo assim tenho de crer no
dinheiro deles, nos seus suprimentos, no seu apoio. A maior
parte dos nossos recursos provém deles de alguma forma.
— O que querem eles? — Agito o chá na chávena, deixando
o calor inundar-me a cara. Não está tanto frio aqui como em
Irabelle, mas o inverno insinua-se ainda assim no abrigo
secreto de Rocasta. — Um rapaz-propaganda?
— Algo assim. Tem havido montes de conversas com o
Comando. Eu não sou admitida na maior parte delas. Eles
queriam a Mare mas…
— Ela está um bocadinho ocupada.
A referência a Mare Barrow não afeta tanto Farley como a
recordação de Shade, mas não obstante um lampejo de dor
inunda-lhe o rosto. Ela tenta escondê-lo, claro. Farley faz todo
o possível por parecer impenetrável, e em geral é-o.
— Então não há realmente qualquer hipótese de resgatá-la
— sussurro. Como ela abane a cabeça, sinto uma
surpreendente pontada de tristeza no peito. Por mais
exasperante que Mare possa ser, quero-a de volta ainda assim.
Precisamos dela. E ao longo destes longos meses apercebi-me
de que eu também preciso dela. Ela sabe o que é ser diferente
e estar à procura de alguém como nós, temer e ser temida na
mesma medida. Mesmo que seja uma idiota condescendente
na maior parte do tempo.
Farley para de andar para trás e para diante a fim de encher
mais uma vez a sua chávena. Fumega, enchendo a sala de um
quente aroma a ervas. Pega nela mas não bebe, dirigindo-se
em vez disso para a janela fosca, embutida relativamente alto
na parede. Por ela jorra luz do dia. — Não vejo como podemos
fazê-lo com o que temos. A infiltração de Corvium é fácil
comparada com Archeon. Seria necessário um ataque em
grande escala, o tipo de ataque que não podemos organizar.
Especialmente agora, depois da Babá e de uma tentativa de
assassínio. A segurança na corte de Maven estará no ponto
máximo… pior que numa prisão. A menos que…
— A menos que?
— Cal diz-nos para esperarmos. Para deixarmos os
Prateados em Corvium virarem-se uns contra os outros. Para
deixarmos Maven cometer os seus erros antes de fazermos
qualquer coisa mais.
— E isso também ajudará a Mare.
Farley assente. — Ser-lhe-á mais fácil escapar da corte fraca
e dividida de um rei paranoico. — Suspira, fitando o chá
intocado. — Só ela se poderá salvar a si própria agora.
É fácil dar a volta à conversa. Por mais que queira Mare de
volta, quero outra pessoa ainda mais. — A quantos
quilómetros estamos do Caldeirão?
— Outra vez?
— Sempre. — Empurro a mesa para me levantar. Sinto que
devo estar de pé. Sou da mesma altura de Farley, mas ela
parece sempre olhar-me de cima. Sou jovem, sem treino. Não
conheço grande coisa do mundo fora da minha cidade de
barracas. Mas isso não significa que vá ficar aqui sentada a
seguir ordens. — Não estou a pedir a tua ajuda ou da Guarda.
Preciso apenas de um mapa e talvez de uma arma. Eu própria
farei o raio que for preciso.
Ela não pestaneja. — Cameron, o teu irmão faz parte de
uma legião. Não é o mesmo que arrancar um dente.
Cerro o punho contra o corpo. — Achas que vim até aqui
para ficar sentada a ver Cal queimar cartuchos? — Por esta
altura já é uma velha discussão. Ela cala-me com facilidade.
— Bem, certamente não acho que tenhas vindo até aqui para
morreres — replica ela calmamente. Os seus ombros largos
elevam-se ao de leve, em desafio. — Que é precisamente o
que acontecerá, por mais forte ou mortal que seja a tua
aptidão. E mesmo que leves uma dúzia de Prateados contigo,
não te vou deixar morrer para nada. Está claro?
— O meu irmão não é nada — resmungo. Ela tem razão,
mas não quero admiti-lo. Em vez disso evito os seus olhos e
viro-me para a parede. Os meus dedos descascam a tinta,
arrancando pedaços tomada de irritação. Uma infantilidade,
mas faz-me sentir melhor. — Tu não és minha capitã. Não te
cabe dizer-me o que fazer da minha vida.
— É verdade. Sou apenas uma amiga que se sente inclinada
a apontar uma coisa. — Oiço-a mexer-se, os seus passos
pesados no chão que range. Mas o seu toque é leve, um roçar
da sua mão no meu ombro. É robótica no movimento, não
sabendo realmente como confortar outra pessoa.
Sombriamente, pergunto-me como ela e o cálido e sorridente
Shade Barrow partilharam alguma vez uma conversa, quanto
mais uma cama. — Lembro-me do que disseste à Mare.
Quando te encontrámos. No jato, disseste que a sua busca de
sanguenovos, para os salvar, era errada. Uma continuação da
divisão de sangues. O favorecimento de uma espécie de
Vermelhos sobre outra. E estavas certa.
— Isto não é o mesmo. Eu só quero salvar o meu irmão.
— Como achas que todos nós viemos aqui parar? — zomba
ela. — Para salvar um amigo, um irmão, pai ou mãe. Para nos
salvarmos a nós próprios. Todos para aqui viemos por razões
egoístas, Cameron. Mas não nos podemos deixar distrair por
elas. Temos de pensar na causa. No bem maior. E tu podes
fazer tão mais aqui, connosco… Não te podemos perder.
Também. Não te podemos perder também. A última palavra
paira no ar, por dizer. Mas eu oiço-a na mesma.
— Estás errada. Não vim para aqui por escolha minha. Fui
trazida. Mare Barrow forçou-me a segui-la e vocês todos
alinharam.
— Cameron, essa é uma carta que tens jogado demasiadas
vezes. Escolheste ficar há muito tempo. Escolheste ajudar.
— E o que escolherias tu agora, Farley? — Olho-a
fulgurante. Ela pode ser minha amiga, mas isso não significa
que tenha de me encolher.
— Desculpa?
— Escolherias o bem maior? Ou escolherias Shade?
Quando ela não responde, os seus olhos desfocando-se, eu
tenho a minha resposta. Apercebo-me de que não quero vê-la
chorar e viro costas, dirigindo-me para a porta.
— Tenho de treinar — digo para o ar. Duvido que ela ainda
esteja a ouvir.
Treinar é mais difícil no abrigo secreto de Rocasta. Não temos
nem de longe tanto espaço, para não falar que a maior parte
dos operacionais que conheço foi deixada em Irabelle. Kilorn,
por exemplo. Ávido como se encontra, não está de todo
preparado para uma batalha a sério e não tem uma aptidão na
qual se apoiar. Foi deixado para trás. Mas a minha treinadora
não foi. Afinal de contas é Prateada e o Coronel não ia deixá-
la fora de vista.
Sara Skonos espera na cave do nosso armazém reforçado,
numa sala dedicada aos exercícios dos sanguenovos. É hora de
jantar, pelo que os outros sanguenovos neste santuário em
particular estão lá em cima a comer com os restantes. Temos o
espaço só para nós, não que precisemos de muito espaço.
Ela senta-se de pernas cruzadas, as mãos espalmadas no
chão de betão a condizer com as paredes. O seu caderno de
notas lá está também, pronto a ser usado se necessário for. Os
seus olhos assinalam a minha entrada, a única saudação que
recebo. Até ao momento ainda não encontrámos outro curador
de pele para se juntar a nós, e ela permanece muda. Embora
esteja habituada, a visão das suas faces encovadas e a ausência
de língua faz-me encolher. Como de costume, ela finge não
reparar e acena para o espaço diante dela.
Sento-me como ela manda e resisto ao familiar impulso de
fugir ou atacar.
Ela é Prateada. Ela é tudo o que eu fui criada a temer, odiar
e obedecer. Mas não encontro energia em mim para desprezar
Sara Skonos da forma como desprezo Julian ou Cal. Não que
tenha piedade dela. Acho que… a entendo. Entendo a
frustração de saber o que está certo e ser ignorada ou punida
por causa disso. Não têm conta as vezes que recebi meias
rações por olhar para um vigilante Prateado de forma
incorreta. Por falar inoportunamente. Ela fez o mesmo, só que
as suas palavras foram contra uma rainha reinante. E por isso
as suas palavras lhe foram tiradas para sempre.
Embora não possa falar, Sara tem uma forma de comunicar
o que quer. Dá-me uma palmadinha no joelho, forçando-me a
mirar os seus olhos cinzentos enevoados. Depois baixa o rosto
e pousa uma mão no coração.
Sigo os movimentos, sabendo o que ela quer. Igualo a
minha respiração com a sua: constante e profunda a intervalos
regulares. Um mecanismo calmante que ajuda a abafar todos
os pensamentos que me rodopiam pela cabeça. Aclara-me a
mente, permitindo-me sentir o que habitualmente ignoro. A
minha aptidão vibra-me sob a pele, constante como sempre,
mas agora permito-me dar por ela. Não para usá-la, mas para
reconhecer a sua existência. O meu silêncio é ainda novo para
mim e tenho de fazer por conhecê-lo como qualquer outra
competência.
Após longos minutos de respiração, ela dá-me nova
palmadinha, fazendo-me olhar. Desta vez aponta para si
própria.
— Sara, não estou mesmo para aqui virada — começo a
dizer-lhe, mas ela passa uma mão no ar num movimento
cortante. Cala-te, claro como água.
— Falo a sério. Posso magoar-te.
Ela zomba do fundo da garganta, uma das únicas
verdadeiras vocalizações de que é capaz. Quase soa como uma
risada. Depois dá uma palmadinha nos próprios lábios, num
lúgubre sorriso malicioso. Já a magoaram muito mais.
— Muito bem, eu avisei — suspiro. Meneio-me
ligeiramente, acomodando-me na posição. Depois franzo o
cenho, deixando a aptidão pairar em torno de mim,
aprofundando, expandindo. Até a tocar a ela. E o silêncio
desce.
Os olhos dela arregalam-se quando é atingida. Uma pontada
primeiro. Pelo menos espero que seja apenas uma pontada.
Estou só a praticar, e não é minha intenção forçá-la à
submissão. Penso em Mare, capaz de congregar tempestades,
enquanto Cal pode provocar braseiros, mas ambos acham
difícil ter uma simples conversa sem explodirem. O controlo
requer mais prática que a força bruta.
A minha aptidão aprofunda-se e ela levanta um dedo para
indicar o nível de desconforto. Tento manter o silêncio no
lugar, constante mas firme. É como suster uma maré. Não sei
qual é a sensação de ser silenciada. A Pedra Silenciosa não
resultou em mim na Prisão de Corros, mas sufocou, esgotou
— e lentamente matou — toda a gente à minha volta. Eu posso
fazer o mesmo. Ao fim de mais ou menos um minuto, ela
levanta um segundo dedo.
— Sara…?
Com a outra mão faz um gesto para eu continuar.
Lembro-me da nossa sessão de ontem. Foi ao chão aos
cinco, embora eu soubesse que podia forçar mais. Mas
incapacitar a nossa única curadora de pele não é inteligente
nem coisa que eu queira fazer.
Um rubor tinge-lhe as faces, mas a porta da cave abre-se de
rompante antes que ela possa levantar outro dedo.
A minha concentração e o meu silêncio quebram-se,
fazendo-a arquejar de alívio. Ambas giramos para encarar o
intruso. Enquanto ela se abre num raro sorriso, eu franzo o
cenho.
— Jacos — resmungo baixinho na sua direção. — Estamos
a treinar, caso não tenha reparado.
Um canto da sua boca contrai-se, implorando por esboçar
um sorriso de desdém muito seu, mas Julian refreia-se. Tal
como todos nós, ele está com melhor ar aqui, em Rocasta. Os
víveres são mais fáceis de chegar. As nossas roupas são de
maior qualidade, acolchoadas e forradas contra o frio. A
comida é mais saudável, as instalações mais quentes. A cor de
Julian regressou e o seu cabelo salpicado de cinza parece mais
lustroso. Ele é Prateado. Nasceu para vicejar.
— Oh, que tonto sou. Julguei que estivessem sentadas no
betão frio só por divertimento — replica. Claramente não há
amor entre nós. Sara fulmina-o com o olhar, uma débil
censura, mas que o amansa seja lá como for. — As minhas
desculpas, Cameron — acrescenta ele rapidamente. — Só
queria contar uma coisa à Sara.
Sara ergue uma sobrancelha, uma pergunta. Quando me
levanto para sair, ela detém-me e, com um baixar de cabeça,
pede a Julian que continue. Ele obedece-lhe sempre.
— Houve um êxodo da corte. Maven expulsou dezenas de
nobres, sobretudo os conselheiros do pai e os que pudessem
ainda acalentar lealdades para com Cal. É… a princípio não
acreditei no relatório de informações. Nunca vi tal coisa antes.
Julian e Sara sustêm o olhar mutuamente, ponderando
ambos o que significa isto. Eu não quero saber de uns quantos
senhores e senhoras Prateados, antigos amigos de Julian e
Sara. — E a Mare? — pergunto-me em voz alta.
— Ainda lá está, feita prisioneira. E quaisquer fraturas mais
que pudéssemos esperar das casas em rebelião… — Suspira,
abanando a cabeça. — Maven já está em guerra, e agora
prepara-se para um ataque.
Ajeito-me no chão, movendo o meu peso para uma posição
mais confortável. Ele tem razão. Betão duro não é agradável. É
uma boa coisa estar habituada. — Nós já sabíamos que
resgatá-la era impossível. De que mais nos serve isto?
— Bem, é bom e é mau. Mais inimigos para Maven dá-nos
uma maior oportunidade de trabalhar para lá do seu alcance.
Mas ele está a cerrar fileiras, a retirar ainda mais para o seu
enclave de proteção. Nunca lhe chegaremos pessoalmente.
Junto de mim, Sara zumbe do fundo da garganta. Não pode
dizer o que todos estamos a pensar, de maneira que falo eu.
— Ou à Mare.
Julian assente com um olhar de desânimo.
— Como vai o teu treino?
Ele muda de assunto com velocidade de chicote e eu
gaguejo em resposta.
— Tão… tão bem quanto possível. Não temos muitos
professores aqui.
— Porque recusas treinar com o meu sobrinho.
— Os outros podem — digo eu, não me dignando suprimir
o tom mordaz da voz. — Mas não posso prometer que não o
matarei, de maneira que é melhor não me deixar tentar.
Sara emite um tch-tch, mas Julian manda-a calar com um
aceno de mão. — Tudo bem, a sério. Podes pensar que não
entendo, que não posso entender o teu ponto de vista, e tens
razão. Mas certamente que faço o possível por tentar,
Cameron. — Dá um passo decidido direito a nós, ainda
sentadas de pernas cruzadas no chão. Não me agrada nem um
bocadinho e ponho-me precipitadamente de pé, deixando que
os meus instintos de defesa levem a melhor. Se é que vou estar
assim tão perto de Julian Jacos, quero estar preparada. — Não
há necessidade de teres medo de mim, prometo-te.
— As promessas Prateadas nada significam. — Não tenho
de respingar. As palavras já são suficientemente agrestes.
Para minha surpresa, Julian sorri. Mas a expressão é oca,
vazia. — Oh, como se eu não soubesse — murmura, mais para
si próprio e para Sara. — Agarra-te à tua raiva. A Sara
porventura não concordará, mas ela ajudar-te-á mais do que
tudo, se conseguires aprender a dominá-la.
Por mais que não queira conselhos de tal homem, não posso
deixar de registá-lo à socapa. Ele treinou Mare. Seria estúpido
negar que pode ajudar a minha aptidão a crescer. E raiva é uma
coisa que tenho às carradas.
— Mais algumas notícias? — pergunto. — Farley e o
Coronel parecem estar a empatar, ou está o seu sobrinho a
empatá-los.
— Sim, parece que está.
— Curioso. Julguei que ele estivesse sempre pronto para
lutar.
Julian brinda-me com o mesmo estranho sorriso. — O Cal
foi criado para a guerra tal como tu foste para as máquinas.
Mas não queres voltar para a fábrica, queres?
Uma resposta, qualquer resposta, fica-me entalada na
garganta. Era uma escrava; fui forçada; era tudo o que sabia.
— Não se arme em esperto comigo, Julian — sai-me
remoído da boca para fora, cauterizante por entre os dentes
cerrados.
Ele encolhe simplesmente os ombros. — Estou a tentar
entender a tua perspetiva. Faz um pouco por entender a dele.
Num outro dia, poderia ter saído de rompante, zangada, na
defensiva. Procurado alívio num fusível rebentado, num fio
descascado. Sento-me de volta em vez disso, tomando o meu
lugar junto de Sara. Julian Jacos não me fará correr precipitada
como uma criança repreendida. Já lidei com capatazes de
longe piores que ele.
— Vi bebés morrerem sem verem o Sol. Sem respirarem ar
puro. Escravizados por vocês. Já viu? Quanto o tiver feito,
então poderá dar-me sermões sobre perspetiva, Senhor Jacos.
— Viro-lhe costas. — Diga-me quando o príncipe finalmente
escolher um lado. E se escolher o lado certo.
Depois dirijo-me a Sara. — Pronta para continuar?
CAPÍTULO DOZE

Mare

H á uns meses, quando os Prateados fugiram da Mansão do


Sol, assustados por um ataque da Guarda Escarlate ao
seu precioso baile, foi um ato unido. Partimos juntos, como
um só, indo rio abaixo sucessivamente para nos reagruparmos
na capital. Isto não é o mesmo.
As demissões de Maven vêm aos magotes. Não estou a par
delas, mas apercebo-me de que os números vão diminuindo.
Faltam uns quantos conselheiros mais velhos. O tesoureiro
real, alguns generais, membros de vários conselhos.
Exonerados dos seus postos, dizem os rumores. Mas eu bem
sei. Eram próximos de Cal, próximos do seu pai. Maven é
esperto em não confiar neles, e impiedoso na sua remoção.
Não os mata nem os faz desaparecer. Não é suficientemente
estúpido para desencadear outra guerra interna. Mas é uma
manobra decisiva, para dizer o mínimo. Varrer para longe os
obstáculos, quais peças de um tabuleiro de xadrez. Os
resultados são banquetes que se assemelham a bocas com
dentes em falta. Aparecem lacunas, mais a cada dia que passa.
A maioria dos que foram convidados a sair são mais velhos,
homens e mulheres com antigas lealdades, que se lembram
mais e confiam menos no seu novo rei.
Alguns começam a chamar-lhe a Corte das Crianças.
Muitos senhores e senhoras desapareceram, dispensados
pelo rei, mas os seus filhos e filhas ficam para trás. Uma
instância. Um aviso. Uma ameaça.
Reféns.
Nem mesmo a Casa Merandus escapa à sua crescente
paranoia. Só a Casa Samos permanece na sua integralidade,
nem um caindo presa das suas tempestuosas demissões.
É provavelmente por isso que ele me convoca mais agora.
Por isso o vejo tanto. Eu sou a única com lealdades em quem
pode confiar. A única que ele conhece realmente.
Ele lê relatórios durante o nosso pequeno-almoço, os olhos
deslizando para trás e para diante com fervilhante velocidade.
É inútil tentar ver de que tratam. Ele tem o cuidado de mantê-
los do seu lado da mesa, virados para baixo quando acabados
de ler, e bem fora do meu alcance. Em vez de ler os relatórios,
tenho de lê-lo a ele. Ele não se digna rodear-se de Pedra
Silenciosa, não aqui na sua sala de jantar privada. Mesmo os
Sentinelas esperam lá fora, postados a cada porta e do outro
lado das janelas altas. Eu vejo-os, mas eles não podem ouvir-
nos, como é intuito de Maven. O casaco do seu uniforme está
desabotoado, o cabelo despenteado, e não põe a coroa tão cedo
de manhã. Acho que este é o seu pequeno santuário, um lugar
onde pode iludir-se e sentir-se a salvo.
Quase parece o rapaz que imaginei. Um segundo príncipe,
contente com o seu lugar, sem o fardo de uma coroa que nunca
foi sua.
Por sobre o rebordo do meu copo de água observo cada
contração e lampejo do seu rosto. Olhos semicerrados, um
maxilar crispado. Má notícia. Os círculos escuros regressaram,
e embora coma o suficiente para duas pessoas, rapando os
pratos diante de nós, parece mais magro de dia para dia.
Interrogo-me se terá pesadelos com a tentativa de assassinato.
Pesadelos com a sua mãe, morta pela minha mão. Com o seu
pai, morto pela sua ação. Com o seu irmão, no exílio mas uma
ameaça constante. Engraçado, Maven autodenominava-se a
sombra de Cal, mas Cal é a sombra agora, assombrando cada
canto do frágil reino de Maven.
Há relatos do príncipe exilado por todo o lado, tão correntes
que até eu oiço falar deles. Situam-no em Harbor Bay,
Delphie, Rocasta; há mesmo vacilantes informações secretas
insinuando que ele escapou pela fronteira para as Lakelands.
Honestamente não sei quais, se alguns, destes rumores são
verdadeiros. Ele poderia estar em Montfort, por tudo o que sei.
Desaparecido para a segurança de uma terra longínqua.
Embora este seja o palácio de Maven, o mundo de Maven,
vejo Cal nele. Os imaculados uniformes, soldados em
exercícios, velas flamejantes, paredes douradas com retratos e
cores da casa. Um salão vazio faz-me lembrar lições de dança.
Se olhar de relance para Maven pelo canto do olho posso fazer
de conta. Eles são meio-irmãos, afinal. Partilham feições
similares. O cabelo escuro, as linhas elegantes de um régio
rosto. Mas Maven é mais pálido, mais aguçado, um esqueleto
em comparação, corpo e alma. É oco por dentro.
— Olhas-me tão fixamente que me pergunto se serás capaz
de ler os reflexos nos meus olhos — cisma subitamente Maven
em voz alta. Vira a página diante dele, ocultando o seu
conteúdo, ao mesmo tempo que levanta os olhos.
A sua tentativa de me sobressaltar falha. Em vez disso
continuo a barrar a minha torrada com uma vergonhosa
quantidade de manteiga. — Se ao menos conseguisse ver algo
neles — replico, a tudo me referindo. — És um rapaz vazio.
Ele não se retrai. — E tu és inútil.
Reviro os olhos e bato futilmente com as algemas contra a
mesa do pequeno-almoço. Metal e pedra raspam contra a
madeira como alguém batendo a uma porta. — As nossas
conversas são tão divertidas.
— Se preferires o teu quarto… — avisa ele. Outra ameaça
vazia que faz todos os dias. Ambos sabemos que isto é melhor
do que a alternativa. Pelo menos agora posso fazer de conta
que sirvo para alguma coisa e ele pode fazer de conta que não
está completamente sozinho nesta jaula que construiu para si
próprio. Para nós dois.
É difícil dormir aqui, mesmo com as algemas, o que
significa que tenho muito tempo para pensar.
E fazer planos.
Os livros de Julian são não só um conforto como uma
ferramenta. Ele está a ensinar-me, ainda que estejamos sabe-se
lá quantos quilómetros afastados. Nos seus bem preservados
textos há novas lições a aprender e utilizar. A primeira — e
mais importante — é dividir para reinar. Maven já mo fez a
mim. Agora tenho de retribuir o favor.
— Estás a tentar sequer dar caça a Jon?
Maven fica de facto sobressaltado com a minha pergunta, a
primeira menção ao sanguenovo que aproveitou a tentativa de
assassinato para escapar. Tanto quanto sei, não foi capturado.
Uma parte de mim sente amargura. Jon escapou ao passo que
eu não consegui. Mas, ao mesmo tempo, congratulo-me. Jon é
uma arma que eu quero bem longe de Maven Calore.
Após uma recuperação de fração de segundo, Maven
recomeça a comer. Enfia um pedaço de bacon na boca,
deitando a etiqueta às malvas. — Tu e eu bem sabemos que
não é homem fácil de encontrar.
— Mas estás à procura.
— Ele tinha conhecimento de um ataque ao seu rei e nada
fez — declara Maven com naturalidade. — O que equivale ao
próprio assassínio. Pelo que nos é dado saber, conspirou
também com as Casas Iral, Haven e Laris.
— Duvido. Se os tivesse ajudado, eles teriam sido bem-
sucedidos. Que pena.
Ele ignora docilmente a estocada, continuando a ler e
comer.
Inclino a cabeça, deixando o cabelo escuro cair por sobre o
ombro. As pontas cinzentas estão a alastrar, cada vez maiores,
apesar dos melhores esforços da minha curadora. Nem mesmo
a Casa Skonos pode curar o que já está morto.
— O Jon salvou-me a vida.
Olhos azuis cruzam-se com os meus, sustendo-os
firmemente.
— Segundos antes do ataque, chamou-me a atenção. Fez-
me virar a cabeça. Senão… — Passo o dedo pelo malar. Onde
a bala apenas me roçou a face, em vez de me deixar o crânio
desfeito. O golpe cicatrizado, mas não esquecido. — Devo ter
um papel a desempenhar seja em que futuro for que ele vê.
Maven foca-se no meu rosto. Não nos meus olhos, mas no
lugar onde uma bala me teria obliterado o crânio. — Por
qualquer razão, és uma pessoa difícil de morrer.
Por ele, por ostentação, forço uma risadinha amarga.
— Qual é a graça?
— Quantas vezes me tentaste matar?
— Apenas uma.
— E o que foi o sonador? — Os dedos tremem-me à
lembrança. A dor do dispositivo ainda está fresca na minha
mente. — Apenas parte de um jogo?
Outro relatório adeja à luz do sol, aterrando virado para
baixo. Ele lambe os dedos antes de pegar no seguinte. Todo ele
trabalho. Todo ele espetáculo. — O sonador não foi concebido
para te matar, Mare. Apenas incapacitar-te, se necessário
fosse. — Uma estranha expressão atravessa-lhe o rosto. Quase
de presunção, mas não exatamente. — Nem sequer fui eu que
fiz tal coisa.
— Claramente. Não és pessoa de ideias. Elara, então?
— Na verdade foi Cal.
Oh!… Antes que possa deter-me, baixo os olhos, desviando-
os dele, precisando de um momento só meu. O ferrão da
traição pica-me as entranhas, nem que seja por um segundo.
De nada vale zangar-me agora.
— Não posso crer que não te tenha contado. — Maven
insiste. — Ele é em geral muito orgulhoso de si próprio. E
coisa brilhante que foi. Mas não quero saber disso. Mandei
destruir o dispositivo. — Os seus olhos estão no meu rosto.
Ávidos de uma reação. Impeço a minha expressão de se
alterar, apesar do repentino salto na minha pulsação. O
sonador desapareceu. Outro pequeno presente, outra
mensagem do fantasma.
— Mas pode facilmente ser reconstruído, se decidires parar
de colaborar. Cal foi suficientemente amável para deixar os
planos do dispositivo para trás quando fugiu com o vosso
bando de ratos Vermelhos.
— Escapou — balbucio. Adiante. Não o deixes derrubar-te.
Fingindo desinteresse, empurro o resto da comida pelo prato.
Faço o possível por parecer magoada, como Maven me quer,
mas não me permito senti-lo. Tenho de me ater ao plano.
Encaminhar a conversa a meu gosto. — Tu forçaste-o a partir.
Tudo para que pudesses tomar o seu lugar, e ser exatamente
como ele.
Como eu, Maven força uma risada para ocultar quão irritado
está. — Não fazes ideia de como ele teria sido, com a coroa na
cabeça.
Cruzo os braços, recostando-me na cadeira. Isto está a
desenrolar-se exatamente como quero. — Sei que teria casado
com Evangeline Samos, continuado a travar uma guerra inútil
e a ignorar um país cheio de pessoas zangadas e oprimidas.
Isso soa-te familiar?
Ele pode ser uma cobra em forma humana, mas nem mesmo
Maven tem resposta para isto. Pousa bruscamente o relatório à
sua frente. Demasiado depressa. Fica voltado para cima,
apenas por um segundo, antes de o virar. Vislumbro apenas
umas palavras. Corvium. Baixas. Maven vê-me observá-las, e
deixa escapar um suspiro de irritação.
— Como se isto te vá ajudar — diz baixinho. — Não vais a
lado nenhum, por isso porquê ralar-me?
— Suponho que é verdade. A minha vida provavelmente
não durará muito mais.
Ele inclina a cabeça. O seu sobrolho franze-se de
preocupação, como espero que aconteça. Como preciso que
aconteça. — O que te faz dizer isso?
Lanço um olhar fulgurante ao teto, estudando o elaborado
friso e o candelabro acima de nós. Tremula com minúsculas
lâmpadas elétricas. Se ao menos pudesse senti-las.
— Sabes que Evangeline não me deixará viver. Assim que
for rainha… estou acabada. — A voz treme-me e inculco todo
o meu medo nas palavras. Espero que resulte. Ele tem de
acreditar em mim. — É o que ela quer desde o dia em que
apareci na sua vida.
Ele pestaneja para mim. — Não achas que te protegerei
dela?
— Não acho que possas. — Os meus dedos puxam o
vestido. Não tão belo como aqueles feitos para a corte, mas de
igual modo excessivamente trabalhado. — Tu e eu bem
sabemos como é fácil uma rainha ser morta.
O ar ondula de calor enquanto ele continua a fitar-me,
desafiando-me a cruzar o olhar com o dele. O meu instinto
natural é olhar fulgurantemente de volta, mas inclino-me para
trás, recusando encará-lo. Isso apenas o exasperará mais.
Maven adora ter uma plateia. O momento alonga-se e sinto-me
nua diante dele, presa no caminho de um predador. É tudo o
que sou aqui. Enjaulada, restringida, sustida pela trela. Tudo o
que me resta é a minha voz e os pedaços de Maven que espero
conhecer.
— Ela não te tocará.
— E os Lakelanders? — Levanto bruscamente a cabeça.
Lágrimas de raiva assomam-me aos olhos, lágrimas de
frustração, não de medo. — Quando desfizerem o teu reino já
a fragmentar-se? O que acontecerá quando vencerem esta
guerra interminável e fizerem o teu mundo em cinzas? —
Zombo de mim para mim, respirando estremecidamente. As
lágrimas caem agora livremente. Tem de ser. Tenho de vender
isto com cada fibra minha. — Calculo que acabemos então os
dois na Taça de Ossos, executados lado a lado.
Pela forma como ele empalidece, a pouca cor que tem
escoando-se-lhe do rosto, sei que já pensou na mesma coisa.
Assola-o sem cessar, qual ferida a sangrar. De modo que torço
a faca.
— Estás à beira de uma guerra civil. Até eu o sei. De que
serve fazer de conta que há um cenário em que saio disto viva?
Ou Evangeline me mata ou a guerra o fará.
— Já te disse, não deixarei que isso aconteça.
A rosnadela que lhe lanço não precisa ser falsificada. — Em
que vida poderei eu confiar de novo em seja o que for que te
saia da boca?
Quando ele se levanta, o medo frio que se forma no meu
estômago tão-pouco é falso. Quando ele contorna a mesa,
dirigindo-se a mim em passos pequenos e elegantes, contraio
cada músculo, pondo-me tensa de forma a não tremer. Mas
não obstante tremulo. Preparo-me para um golpe quando ele
me toma o rosto nas mãos perturbadoramente suaves, ambos
os polegares firmes sob o meu maxilar, a centímetros de se
cravarem na jugular.
O seu beijo arde mais cauterizante que a sua marca.
A sensação dos seus lábios nos meus é a pior espécie de
violação. Mas por ele, pelo que preciso, mantenho os punhos
cerrados no colo. As minhas unhas cravam-se na minha carne
e não na sua. Ele precisa de acreditar como o seu irmão
acreditou. Precisa de me escolher, da forma como eu tentei que
Cal me escolhesse antes. Ainda assim, não encontro forças em
mim para abrir a boca e o meu maxilar permanece bem
cerrado.
Ele interrompe o beijo primeiro, e espero que não possa
sentir a minha pele arrepiar-se sob os seus dedos. Em vez disso
os seus olhos buscam os meus, à procura da mentira que
mantenho bem oculta.
— Perdi todas as pessoas que alguma vez amei.
— E de quem é a culpa?
De algum modo, ele treme ainda mais que eu. Recua,
largando-me, e os seus dedos arranham-se uns aos outros. Fico
chocada pois reconheço o gesto. Eu faço-o também. Quando a
dor na minha cabeça é tão horrível que preciso de outra para
me dispersar. Ele para quando dá por mim a fitá-lo, crispando
ambas as mãos no flanco com quanta força pode.
— Ela quebrou muitos hábitos meus — admite. — Nunca
quebrou este. Algumas coisas voltam sempre.
— Ela. — Elara. Vejo a sua obra bem à minha frente. O
rapaz a que ela deu a forma de rei através de uma tortura a que
chamou amor.
Ele senta-se de novo, lentamente. Continuo a fitá-lo,
sabendo que isso o perturba. Desestabilizo-o e contudo não
entendo exatamente porquê.
Todas as pessoas que alguma vez amei.
Não sei porque sou incluída nessa declaração. Mas sei que é
a razão porque respiro ainda. Cuidadosa, encaminho a
conversa de novo para Cal.
— O teu irmão está vivo.
— Infelizmente.
— E não o amas?
Ele não se digna levantar os olhos, que passam vacilantes
pelo relatório que se segue, fixados num único ponto. Não
porque esteja surpreendido, ou mesmo triste. Parece mais
confuso que qualquer outra coisa, um rapazinho tentando
resolver um quebra-cabeças a que faltam muitas peças. — Não
— diz finalmente, mentindo.
— Não acredito em ti — digo-lhe. Abano mesmo a cabeça.
Porque me lembro deles como eram. Irmãos, amigos,
criados juntos contra o resto do mundo. Nem mesmo Maven
pode excluir-se de uma coisa assim. Nem mesmo Elara pode
quebrar essa espécie de vínculo. Por mais vezes que Maven
tivesse tentado matar Cal, não pode negar o que eram
antigamente.
— Acredita no que quiseres, Mare — replica ele. Tal como
antes, adota um ar de desinteresse, tentando violentamente
convencer-me de que isto nada significa para ele. — Sei
factualmente que não amo o meu irmão.
— Não mintas. Eu também tenho irmãos. É uma coisa
complicada, especialmente entre mim e a minha irmã. Ela
sempre foi mais talentosa, melhor em tudo, mais amável, mais
inteligente. Toda a gente a prefere a mim. — Balbucio os meus
velhos medos, tecendo-os numa teia para Maven. — Toma-o
de uma pessoa que sabe. Perder um deles… perder um
irmão… — Falta-me o fôlego, e a mente voa-me. Continua.
Usa a dor. — Dói como nada mais.
— Shade. Certo?
— Mantém o nome dele fora da tua boca — respingo,
esquecendo por um momento o que estou a tentar fazer. A
ferida está demasiado fresca, demasiado aberta. Ele aceita-o
bem.
— A minha mãe disse que tu costumavas sonhar com ele —
diz. Encolho-me à recordação, e ao pensamento dela dentro do
meu cérebro. Ainda posso senti-la, dilacerando as paredes do
meu crânio. — Mas suponho que não eram sonhos de todo.
Era realmente ele.
— Ela fazia isso com toda a gente? — replico. — Nada
estava a salvo dela? Nem os teus sonhos?
Não responde. Eu insisto ainda mais.
— Alguma vez sonhaste comigo?
De novo o golpeio sem me dar conta. Ele baixa o olhar,
mirando o prato vazio à sua frente. Levanta uma mão para
pegar no copo de água, mas pensa duas vezes. Os dedos
tremem-lhe por um segundo antes de os retirar bruscamente,
para fora de vista.
— Não faço ideia — diz finalmente. — Eu não sonho.
Troço. — Isso é impossível. Mesmo para uma pessoa como
tu.
Algo sombrio, algo triste, lhe contrai o rosto. O maxilar
crispa-se e a garganta desce e sobe, tentando engolir palavras
que não deveria proferir. Mas saem para fora dele assim
mesmo. As suas mãos reaparecem, tamborilando ao de leve na
mesa.
— Dantes tinha pesadelos. Ela tirou essa parte quando eu
era miúdo. Como disse Samson, a minha mãe era uma cirurgiã
de mentes. Extirpava tudo o que não se adequasse.
Nas últimas semanas, uma feroz e fogosa raiva substituiu o
frio vácuo que eu dantes sentia. Mas à medida que Maven fala
o gelo volta. Sangra através de mim, um veneno, uma infeção.
Não quero ouvir o que tem para dizer. As suas desculpas e
explicações nada são para mim. Ele é um monstro ainda assim,
um monstro sempre. E contudo não posso impedir-me de
ouvir. Porque eu poderia ser um monstro também. Se me fosse
dada a oportunidade errada. Se alguém me quebrasse, como
ele está quebrado.
— O meu irmão. O meu pai. Sei que dantes os amava.
Lembro-me disso. — As suas mãos cerram-se em torno de
uma faca de manteiga, e olha fulgurante a lâmina romba.
Interrogo-me se a quererá usar em si próprio ou na sua querida
mãe. — Mas não o sinto. Esse amor já lá não está. Por nenhum
deles. Pela maior parte das coisas.
— Então para quê manter-me aqui? Se não sentes nada.
Porque não matar-me simplesmente e acabar com isto?
— Ela tem dificuldade em apagar… certas espécies de
sentimentos — admite, olhando-me nos olhos. — Tentou com
o Pai, para fazê-lo esquecer o seu amor por Coriane. Apenas
piorou as coisas. Além disso — balbucia —, ela sempre disse
que mais valia ter o coração destroçado. A dor torna-nos mais
fortes. O amor torna-nos fracos. E ela tem razão. Aprendi-o
antes de sequer te conhecer.
Outro nome paira no ar, não proferido.
— Thomas.
Um rapaz na frente de guerra. Outro Vermelho perdido para
uma guerra inútil. O meu primeiro amigo a valer, disse-me
Maven em tempos. Apercebo-me agora dos espaços entre
essas palavras. Das coisas não ditas. Ele amava aquele rapaz
como clama amar-me a mim.
— Thomas — ecoa Maven. A sua mão aperta mais a faca.
— Senti… — Então o seu sobrolho franze-se, formando-lhe
rugas profundas entre os olhos. Leva a outra mão à têmpora,
massajando uma dor que não posso entender. — Ela não
esteve lá. Nunca o conheceu. Não sabia. Ele nem sequer era
um soldado. Foi um acidente.
— Disseste que tentaste salvá-lo. Que os teus guardas te
impediram.
— Uma explosão no quartel-general. Os relatórios disseram
ter sido uma infiltração Lakelander. — Algures, o tiquetaque
de um relógio assinala a passagem dos minutos. O silêncio
dele prolonga-se enquanto decide o que dizer, com que rapidez
deixar a máscara deslizar. Mas ela já se foi. Ele está nu como
só pode estar comigo. — Estávamos sozinhos. Perdi o
controlo.
Vejo-o em imaginação, preenchendo o que não consegue
levar-se a contar-me. Talvez um depósito de munições. Ou
mesmo uma conduta de gás. Tanto um como o outro só
precisam de uma chama para matar.
— Eu não ardi. Ele sim.
— Maven…
— Nem mesmo a minha mãe pôde extirpar essa memória.
Nem mesmo ela me pôde fazer esquecer, por mais que lho
implorasse. Queria que ela me tirasse essa dor, e ela tentou
tantas vezes. Em vez disso foi ficando cada vez pior.
Sei como vai ele responder, mas pergunto na mesma.
— Deixas-me ir, por favor?
— Não deixo.
— Então vais deixar-me morrer também. Como ele.
A sala estraleja de calor, fazendo-me escorrer suor pela
espinha abaixo. Ele levanta-se num ápice, afasta a cadeira para
trás, deixando-a cair. Um punho colide com o tampo da mesa
antes de a varrer de lado, lançando pratos, copos e relatórios
por terra. Os papéis flutuam por um momento, suspensos no ar
antes de caírem aos poucos sobre o monte de cacos de cristal e
porcelana.
— Não deixo — ruge em surdina, tão baixo que quase não o
oiço sair de mansinho da sala.
Os Arven entram e agarram-me por baixo dos braços,
puxando-me para longe da mesa e dos papéis, deslizando
todos para fora do meu alcance.
Surpreende-me saber que o habitualmente meticuloso
programa de Maven de levar a cabo audições e reuniões de
corte foi suspenso pelo resto do dia. Calculo que a nossa
conversa tenha tido um efeito mais forte do que antecipei. A
sua ausência deixa-me confinada ao meu quarto, aos livros de
Julian. Forço-me a ler, nem que seja para bloquear quaisquer
lembranças da manhã. Maven é um talentoso mentiroso, e não
confio numa só palavra que ele diz. Mesmo que estivesse a
dizer a verdade. Mesmo que ele seja um produto da
intromissão da sua mãe, uma espinhosa flor forçada a crescer
de certa maneira. Isso não altera as coisas. Não me posso
esquecer de tudo o que me fez e a tantos outros. Quando o
conheci, fui seduzida pela sua dor. Ele era o rapaz na sombra,
um filho esquecido. Revi-me nele. Sempre depois de Gisa, a
estrela brilhante no mundo dos meus pais. Sei agora que isso
foi por desígnio. Ele apanhou-me então, enredando-me numa
armadilha de príncipe. Agora estou numa jaula de rei. Mas
também ele está. As minhas cadeias são Pedra Silenciosa. As
dele são a coroa.
O país de Norta foi forjado de reinos e domínios mais
pequenos, variando de tamanho do reino Samos da
Brecha à cidade-estado de Delphie. Caesar Calore, um
senhor Prateado de Archeon e talentoso estratega, uniu
a fraturada nação de Norta contra a iminente ameaça
de uma invasão conjunta do Piedmonte e das
Lakelands. Assim que se coroou rei, casou a sua filha
Juliana com Garion Savanna, o alto príncipe
governante do Piedmonte. Isto cimentou uma
duradoura aliança entre a Casa Calore e os príncipes
do Piedmonte. Muitos filhos da realeza Calore e do
Piedmonte mantiveram a aliança matrimonial ao longo
dos séculos seguintes. O Rei Caesar trouxe uma era de
prosperidade a Norta, e como tal os anais de Norta
consideram o início do seu reinado como a demarcação
da «Nova Era», ou NE.
Preciso de três tentativas para chegar ao fim do parágrafo. A
história de Julian é bem mais densa do que a que eu tinha de
estudar na escola. Os meus pensamentos estão sempre a
extraviar-se. Cabelo negro, olhos azuis. Lágrimas que Maven
recusa mostrar, mesmo a mim. Será outra representação? O
que faço se for? O que faço se não for? O meu coração parte-
se por ele; o meu coração endurece-se contra ele. Continuo à
força, para evitar tais pensamentos.
Em contraste, as relações entre a recém-fundada nação
de Norta e as extensas Lakelands deterioraram-se. Na
sequência de uma série de guerras fronteiriças com
Prairie, no século dois da NE, as Lakelands perderam
território agrícola na vital região Minnowan bem como
controlo do Grande Rio (também conhecido como o
Miss). Os impostos a seguir à guerra, bem como a
ameaça da fome e da rebelião Vermelha, forçaram a
expansão ao longo da fronteira de Norta. Escaramuças
rebentaram de cada lado. Para evitar mais
derramamento de sangue, o Rei Tiberias Terceiro de
Norta e o Rei Onekad Cygnet das Lakelands
encontraram-se numa cimeira histórica na travessia da
Catarata das Donzelas. As negociações rapidamente
soçobraram e em 200 NE ambos os reinos declararam
guerra, cada um culpando o outro pela rutura das suas
relações diplomáticas.
Não posso evitar rir. Nada jamais muda.
Conhecida como a Guerra Lakelander em Norta, e a
Agressão nas Lakelands, o conflito ainda perdura ao
tempo desta narração. O total de mortes Prateadas
remonta aproximadamente a quinhentas mil, na sua
maioria na primeira década de guerra. Registos
precisos dos soldados Vermelhos não são mantidos,
mas estima-se um total de mortes superior a cinquenta
milhões, com mais do dobro de baixas. Tanto as baixas
das Lakelands como de Norta são iguais
proporcionalmente às suas populações nativas de
Vermelhos.
Leva mais tempo do que gosto de admitir, mas faço as contas
de cabeça. Quase cem vezes mais. Se este livro pertencesse a
alguém que não Julian, lançá-lo-ia fora tomada de raiva.
Um século de guerra e de sangue derramado para nada.
Como pode alguém mudar uma coisa assim?
Por uma vez dou por mim a contar com a habilidade de
Maven para torcer e maquinar. Talvez ele consiga ver uma
maneira — forjar um caminho — que ninguém antes dele
tenha imaginado.
CAPÍTULO TREZE

Mare

U ma semana passa até que eu deixe de novo o meu quarto.


Embora sejam um presente de Maven, um lembrete da
sua estranha obsessão por mim, congratulo-me com os livros
de Julian. São a minha única companhia. Um pedaço de um
amigo neste lugar. Mantenho-os perto de mim, a par do
farrapo de seda de Gisa.
Páginas passam com os dias. Retrocedo na história,
viajando através de palavras que se tornam cada vez menos
críveis. Trezentos anos de reis Calore, séculos de senhores da
guerra Prateados — este é um mundo que reconheço. Mas
quanto mais longe vou, mais turvas se tornam as coisas.
Os registos escritos do chamado Período da Reforma
são escassos, embora a maior parte dos estudiosos
concorde que o período teve início algures por volta de
1500 da Antiga Era (ou AE) do calendário moderno de
Norta. A maior parte dos registos datados de antes da
Reforma, imediatamente a seguir, durante, ou
anteriormente às Calamidades que assolaram o
continente, foram todos completamente destruídos,
perderam-se ou são impossíveis de ler no presente. Os
que foram recuperados são minuciosamente estudados
e guardados nos Arquivos Reais em Delphie, bem como
em instalações semelhantes em reinos vizinhos. As
Calamidades em si foram estudadas exaustivamente,
usando investigação de campo a par do mito pré-
Prateado aos postulados acontecimentos. Na altura em
que se escreve, muitos creem que uma combinação de
derradeira guerra humana, alteração geológica,
mudança climática e outras catástrofes naturais
resultou na quase extinção da raça humana.
Os mais antigos registos descobertos traduzíveis datam
de aproximadamente 950 AE, mas a data exata não
pode ser verificada. Um documento, O Julgamento de
Barr Rambler, é um relato incompleto da tentativa de
julgamento em tribunal de um ladrão acusado na
reconstruída Delphie. Barr foi acusado de roubar a
carroça do vizinho. No decurso do julgamento, Barr
alegadamente quebrou as cadeias que o acorrentavam
«como se feitas de galhos» e escapou apesar de uma
guarda completa. Crê-se ser o primeiro registo de um
Prateado exibindo a sua aptidão. Até hoje, a Casa
Rhambos clama traçar a sua linhagem de strongarms a
partir dele. Contudo, esta reivindicação é refutada por
outro registo de tribunal, O Julgamento de Hillman,
Tryent, Davids, no qual três homens de Delphie foram
julgados pelo subsequente assassínio de Barr Rambler,
que alegadamente não tinha filhos. Os três homens
foram absolvidos e mais tarde louvados pelos cidadãos
de Delphie pelo seu contributo para destruir «a
abominação Rambler» (Registos e Escritos de Delphie,
Vol. 1).
O tratamento de Barr Rambler não foi um incidente
isolado. Muitos escritos primitivos e documentos
detalham medo e perseguição de uma crescente
população de humanos habilitados com sangue de cor
prateada. Na sua maioria agruparam-se para proteção,
formando comunidades fora de cidades dominadas por
Vermelhos. O Período da Reforma terminou com a
ascensão de sociedades Prateadas, algumas vivendo
em conjunção com cidades Vermelhas, embora na sua
maioria a seu tempo sobrepujassem os seus homólogos
de sangue vermelho.
Prateados perseguidos por Vermelhos. A ideia dá-me vontade
de rir. Que coisa estúpida. Que coisa impossível. Vivi cada dia
da minha vida sabendo que eles são deuses e nós insetos. Não
posso sequer abarcar um mundo em que o inverso fosse
verdade.
Estes são livros de Julian. Ele viu nisto mérito suficiente
para estudá-los. Ainda assim, sinto-me por de mais abalada
para continuar, e guardo a minha leitura para anos vindouros.
A Nova Era, os reis Calore. Nomes e lugares que conheço
numa civilização que entendo.
Um dia, a vestimenta que me é entregue é mais simples que
nunca. Confortável, tendo em vista mais a utilidade do que o
estilo. O meu primeiro indício de que alguma coisa se passa.
Quase pareço um oficial de Segurança, com calças
expansíveis, um casaco preto escassamente adornado com
diminutas espirais de contas de rubi e botas chocantemente
práticas. De couro polido mas usado, sem salto, ajustadas ao
pé sem apertar e com espaço suficiente para as minhas
algemas de tornozelos. As dos pulsos estão ocultas como de
costume, cobertas com luvas. Forradas de pele. Para o frio. O
meu coração dá um pulo. Nunca umas luvas me deixaram tão
entusiasmada.
— Vou sair à rua? — pergunto esbaforida à Gatinha,
esquecendo-me de quão boa ela é a ignorar-me. Ela não
desilude, olhando fixamente em frente enquanto me conduz
para fora da minha luxuosa cela. A Trevo é sempre mais fácil
de ler. O retorcer dos seus lábios e os olhos verdes
semicerrados são afirmação suficiente. Para não falar que
também elas usam botas grossas e luvas, embora de borracha,
para lhes proteger as mãos da eletricidade que já não possuo.
Rua. Não saboreio muito mais do que uma brisa de uma
janela aberta desde aquele dia nos degraus do palácio. Julgava
que Maven me iria decepar a cabeça, pelo que obviamente
tinha a mente noutro lado. Agora quem me dera poder
lembrar-me do ar de novembro, o vento agreste trazendo com
ele o inverno. Na minha pressa, quase ultrapasso as Arven.
Elas rapidamente me dão um puxão e obrigam a acompanhar o
seu passo. É uma descida de loucos, por escadas e corredores
que conheço de cor.
Uma pressão familiar alastra direita a mim e olho de relance
por sobre o ombro. O Ovo e o Trio juntam-se a nós,
protegendo a retaguarda da minha guarda Arven. Movem-se
em uníssono com a Gatinha e a Trevo, os passos ritmados, à
medida que nos dirigimos para o átrio de entrada e a Praça de
César.
Tão rápido como surgiu o meu entusiasmo, assim se esvai.
O medo corrói-me as entranhas. Tentei manipular Maven e
levá-lo a cometer custosos erros, fazê-lo duvidar, queimar as
últimas pontes que lhe restam. Mas talvez tenha falhado.
Talvez ele me vá queimar em vez disso.
Foco-me no som das minhas botas no mármore. Algo sólido
a que ancorar o meu medo. Os meus punhos crispam-se dentro
das luvas, implorando por uma faísca que me ajude a resistir.
Faísca que não vem.
O palácio parece estranhamente vazio, ainda mais que de
costume. Portas são firmemente cerradas, enquanto serviçais
adejam pelas salas que ainda não estão fechadas, lestos e
silenciosos como ratos. Cobrem de lençóis brancos o
mobiliário e obras de arte, estranhas mortalhas. Poucos
guardas, ainda menos nobres. Aqueles por quem passo são
jovens e de olhos arregalados. Conheço as suas casas, as suas
cores, e posso ver puro medo nos seus rostos. Todos estão
vestidos como eu, para o frio, para funcionalidade. Para
movimento.
— Onde vai toda a gente? — pergunto a ninguém em
especial, pois ninguém irá responder.
A Trevo puxa-me à bruta pelo rabo de cavalo, forçando-me
a olhar em frente. Não faz doer, mas o gesto é deslocado. Ela
nunca me trata assim, a menos que lhe dê uma boa razão.
Enumero possibilidades. Será isto uma evacuação? Terá a
Guarda Escarlate tentado outro assalto a Archeon? Ou terão as
Casas em rebelião regressado para acabar o que começaram?
Não, não pode ser uma coisa nem outra. Isto está demasiado
calmo. Não estamos a fugir de nada.
Quando atravessamos o átrio inspiro fundo, olhando à
minha volta. Mármore debaixo de mim, candelabros acima,
altos e cintilantes espelhos e quadros dourados de
antepassados Calore marchando pelas paredes acima de um
lado e do outro. Insígnias vermelhas e negras, prata e ouro e
cristal. Sinto que vai tudo desmoronar e esmagar-me. O medo
insinua-se-me pela espinha abaixo quando as portas adiante se
abrem de rompante, metal e vidro girando em gonzos
gigantescos. O primeiro sopro de vento frio atinge-me em
cheio, trazendo-me lágrimas aos olhos.
O sol de inverno brilha luminoso na cintilante praça,
cegando-me por um segundo. Pestanejo rapidamente, tentando
adaptar os olhos. Não posso dar-me ao luxo de perder um
segundo disto. O mundo exterior ganha firmemente nitidez. A
neve acumula-se a grande altura nos telhados do palácio e das
estruturas circundantes da Praça de César.
Há soldados alinhados de cada lado dos degraus à saída do
palácio, imaculados nas suas fileiras impecáveis. Os Arven
conduzem-me através da dupla fileira de soldados, através das
suas armas, uniformes e olhos fixos sem pestanejar. Viro-me
para ver por sobre o ombro enquanto caminho, lançando um
olhar de relance ao opulento e pálido vulto do gigantesco
Palácio de Fogo Branco. Silhuetas rondam pelo telhado.
Oficiais de uniformes negros, soldados de cinzento nublado.
Mesmo daqui, as suas espingardas são claramente visíveis,
delineadas contra o frio céu azul. E esses são apenas os
guardas que eu consigo ver. Mais deve haver patrulhando as
muralhas, de guarda aos portões, dissimulados e prontos a
defender este miserável lugar. Centenas, provavelmente,
mantidos pela sua lealdade e letal aptidão. Atravessamos a
praça sozinhos, direitos a ninguém, em direção a nada. O que é
isto?
Assinalo o edifício por onde passamos. A Real Corte, uma
construção circular com lisas paredes de mármore, colunas
espiraladas e uma cúpula de cristal, deixou de ter uso desde a
coroação de Maven. É um símbolo de poder, uma enorme
câmara suficientemente grande para sentar as Altas Casas
reunidas e seus dependentes, bem como membros importantes
da cidadania Prateada. Nunca entrei lá dentro. Espero nunca
entrar. Os tribunais judiciais, onde a lei Prateada é feita e
promulgada com brutal eficiência, ramificam-se a partir da
estrutura abobadada. Junto aos seus arcos e ornamentos de
cristal, a Casa do Tesouro parece sem graça. Paredes de laje —
de mármore ainda, e tenho de interrogar-me quantas pedreiras
este lugar esgotou —, sem janelas, qual bloco de pedra entre
esculturas. A riqueza de Norta está algures lá dentro, mais
defendida que o rei, fechada em criptas bem escavadas no solo
rochoso abaixo de nós.
— Por aqui — rosna a Trevo, puxando na direção do
Tesouro.
— Porquê? — pergunto. De novo, ninguém responde.
O meu coração bate mais depressa, martelando contra a
caixa torácica, e luto para manter a respiração regular. Cada
frio arquejar parece-me o tiquetaque de um relógio, contando
firmemente os momentos antes de eu ser engolida.
As portas são espessas, mais espessas do que as que recordo
da Prisão de Corros. Abrem-se de par em par como uma boca
escancarada, flanqueadas de guardas de libré púrpura. O
Tesouro não tem um grandioso átrio de entrada, em flagrante
contraste com qualquer outra estrutura Prateada que eu alguma
vez vi. É apenas um longo corredor branco, curvando em
declive descendente numa perfeita espiral. Guardas jazem em
sentido mais ou menos a cada dez metros, uma nota de rubor
contra pura pedra branca. Onde poderão estar as criptas, ou
onde irei eu, não posso dizer.
Após exatamente seiscentos passos, paramos diante de um
guarda.
Sem uma palavra ele dá um passo em frente e para o lado,
levando os dedos à parede atrás dele. Empurra e o mármore
desliza para trás uns trinta centímetros, revelando a silhueta de
uma porta. Esta desliza facilmente ao seu toque, alargando de
forma a criar uma abertura de uns noventa centímetros na
pedra. O soldado não faz qualquer esforço. Strongarm,
assinalo eu.
A pedra é espessa e pesada. O meu medo triplica e engulo
com força, sentindo as mãos começarem a transpirar nas luvas.
Maven vai finalmente pôr-me numa cela a valer.
A Gatinha e a Trevo empurram-me, tentando apanhar-me
desprevenida, mas eu finco os pés, ferrando cada articulação
contra elas. — Não! — berro, dando com o ombro numa delas.
A Gatinha solta um grunhido mas não se detém, continuando a
empurrar enquanto a Trevo me agarra pelo tronco, erguendo-
me completamente do chão.
— Não podem pôr-me aqui! — Não sei que carta jogar, que
máscara colocar. Choro? Imploro? Ajo como a rainha rebelde
que eles me julgam ser? Qual me salvará? O medo prevalece
sobre os meus sentidos. Arquejo como uma rapariga a afogar-
se. — Por favor, não posso… não posso…
Esperneio no ar, tentando derrubar a Trevo, mas ela é mais
forte do que eu pensava. O Ovo agarra-me nas pernas,
ignorando impecavelmente o meu calcanhar que lhe faz estalar
o maxilar. Carregam-me como a uma peça de mobiliário, sem
consideração ou atenção.
Contorcendo-me, logro avistar o guarda do Tesouro quando
a porta desliza de volta para o seu lugar. Ele entoa algo em
surdina de si para si, desinteressado. Mais um vulgar dia de
trabalho para ele. Forço-me a olhar em frente, para seja que
destino for que me aguarda nestas profundezas brancas.
Esta cripta está vazia: a sua passarela serpenteia como o
corredor, ainda que em círculos mais apertados. Nada marca as
paredes. Nem caraterísticas distintivas, nem arestas, nem
sequer guardas. Apenas luzes em cima e pedra a toda a volta.
— Por favor. — A minha voz ecoa no silêncio, sozinha com
o som do meu coração acelerado.
Fito o teto lá em cima, desejando que tudo isto seja um
sonho.
Quando me largam no chão, arquejo, o ar escapando-me à
força dos pulmões. Ainda assim, levanto-me rolando o mais
rapidamente que posso. Uma vez de pé, punhos cerrados,
dentes arreganhados, estou pronta a lutar e disposta a perder.
Não serei abandonada aqui sem partir os dentes a alguém.
Os Arven recuam, lado a lado, enfadados. Desinteressados.
O seu foco está além de mim, atrás de mim.
Rodopio e dou comigo a fitar não outra parede branca, mas
uma sinuosa plataforma. De construção recente, adjacente a
outros corredores ou criptas ou passagens secretas.
Sobranceira a carris.
Antes que o meu cérebro possa tentar unir os pontos, antes
mesmo que o mais brevíssimo sussurro de entusiasmo possa
repercutir-se na minha mente, Maven fala, e desfaz-me as
esperanças em pedaços.
— Não te adiantes a ti própria. — A sua voz ecoa vinda da
minha esquerda, lá mais para o fundo da plataforma. Ali jaz
postado, à espera, um guarda de Sentinelas à sua roda,
juntamente com Evangeline e Ptolemus. Todos usam casacos
como o meu, com amplas pelagens para os manterem quentes.
Ambos os filhos Samos resplandecem em zibelina negra.
Maven avança direito a mim, arreganhando um sorriso com
confiança de um lobo. — A Guarda Escarlate não é a única
capaz de construir comboios.
O Subtrem chocalhava e faiscava e ganhava ferrugem por todo
o lado, um monte de lata ameaçando desagregar-se. Ainda
assim, prefiro-o a esta glamorosa lesma.
— Foram os teus amigos que me deram a ideia, claro — diz
Maven do seu assento de pelúcia à minha frente. Indolente,
orgulhoso de si. Não vejo nenhuma das suas feridas psíquicas
hoje. Estão cuidadosamente escondidas, postas de lado ou
esquecidas de momento.
Resisto ao impulso de me enroscar no meu assento, e
mantenho ambos os pés firmemente plantados no chão. Se
alguma coisa correr mal, tenho de estar preparada para fugir.
Tal como no palácio, tomo nota de cada centímetro do
comboio de Maven, procurando qualquer tipo de vantagem.
Não encontro nenhuma. Não há janelas, e Sentinelas e guardas
Arven estão plantados em cada extremidade do longo
compartimento. Está mobilado como um salão, com quadros,
sofás e cadeirões estofados, até candeeiros de cristal tinindo
com o movimento do comboio. Mas como em tudo o que é
Prateado, vejo as fissuras. A tinta mal secou. Posso cheirá-la.
O comboio é novinho em folha, não testado. Na outra
extremidade do compartimento, os olhos de Evangeline
dardejam de um lado para o outro, traindo o esforço que faz
para parecer calma. O comboio abala-a. Aposto que é capaz de
sentir cada pedaço dele a mover-se a alta velocidade. É uma
sensação difícil a que nos acostumarmos. Eu nunca consegui,
sempre pressentindo o pulsar de máquinas como o Subtrem ou
o jato Blackrun. Eu sentia o sangue elétrico — calculo que ela
sinta as veias metálicas.
O irmão está sentado ao lado dela, olhando-me carrancudo.
Muda de posição uma ou duas vezes, tocando-lhe o ombro. A
expressão sofrida dela cede de cada vez, apaziguada pela
presença dele. Calculo que, se o novo comboio explodir, eles
serão suficientemente fortes para sobreviver aos estilhaços.
— Eles lograram escapar depressa da Taça de Ossos,
viajando pelas antigas linhas férreas até Naercey antes sequer
de eu lá chegar. Achei que não seria tão mau ter uma pequena
rota de escape minha — continua Maven, tamborilando com
os dedos no joelho. — Nunca se sabe que nova poção o meu
irmão poderá arquitetar na sua tentativa de me derrubar. É
melhor estar preparado.
— E de que escapas tu agora, neste momento? — balbucio,
tentando manter os olhos baixos.
Ele limita-se a encolher os ombros e rir. — Não te ponhas
tão macambúzia, Mare. Estou a fazer um favor a nós dois. —
Abrindo-se num sorriso, volta a afundar-se no seu lugar. Estica
os pés para cima, pousando-os no assento ao lado do meu.
Torço o nariz quando o faz, desviando-me. — Só se pode
tolerar a prisão do Palácio de Fogo Branco por um dado
tempo.
Prisão. Mordo uma réplica, forçando-me a condescender.
Não fazes ideia do que é uma prisão, Maven.
Sem janelas ou qualquer tipo de orientação, não tenho
forma de saber aonde nos poderemos estar a dirigir ou quão
longe esta máquina infernal poderá viajar. Certamente dá a
sensação de ir tão depressa como o Subtrem, se não mais
depressa. Duvido que nos dirijamos para sul, para Naercey,
uma cidade em ruínas agora abandonada até pela Guarda
Escarlate. Maven fez um espetáculo e tanto da destruição dos
túneis após a infiltração de Archeon.
Ele deixa-me pensar, observando enquanto decifro o quadro
à nossa volta. Ele sabe que não tenho peças suficientes para o
completar. Ainda assim deixa-me tentar e não oferece mais
qualquer explicação.
Os minutos escoam-se lentamente, e viro a minha atenção
para Ptolemus. O meu ódio por ele só aumentou nestes últimos
meses. Ele matou o meu irmão. Tirou Shade deste mundo.
Faria o mesmo a todos os que eu amo se lhe dessem
oportunidade. Para variar, está sem a sua armadura escamada.
Fá-lo parecer mais pequeno, mais fraco, mais vulnerável.
Fantasio em cortar-lhe a garganta e manchar de sangue
Prateado as paredes pintadas de fresco de Maven.
— Alguma coisa que lhe interesse? — rosna Ptolemus,
sustendo-me os olhos fitos nele.
— Deixa-a olhar — diz Evangeline. Recosta-se no assento e
inclina a cabeça, não quebrando o contacto visual. — Não
pode fazer muito mais que isso.
— Veremos — resmungo. No colo, os meus dedos
contraem-se.
Maven dá um estalo com a língua, admoestador. —
Senhoras.
Antes que Evangeline possa redarguir, a sua atenção muda e
desvia o olhar para as paredes, para o chão, para o teto.
Ptolemus imita-a. Pressentem algo que eu não noto. E então o
comboio à nossa volta começa a abrandar, as suas engrenagens
e mecanismos guinchando contra os carris de ferro.
— Estamos quase a chegar, então — diz Maven, pondo-se
suavemente de pé. Oferece-me uma mão.
Por um momento pondero a ideia de lhe arrancar os dedos à
dentada. Em vez disso ponho a mão na sua, ignorando a
sensação de arrepio sob a pele. Uma vez em pé, o seu polegar
roça a aresta elevada da minha algema sob a luva. Um firme
lembrete do seu domínio sobre mim. Não consigo suportá-lo e
afasto-me, cruzando os braços sobre o peito para criar uma
barreira entre nós. Algo escurece nos seus olhos brilhantes e
levanta um escudo todo seu.
O comboio de Maven para tão suavemente que mal me
apercebo. Mas os Arven sentem e correm disparados para o
meu lado, rodeando-me com exaustiva familiaridade. Pelo
menos não estou acorrentada ou presa à trela.
Sentinelas ladeiam Maven tal como os Arven me ladeiam a
mim, as suas vestes flamejantes e máscaras negras agoirentas
como sempre. Deixam que Maven marque o passo, e ele
atravessa o compartimento a todo o comprimento. Evangeline
e Ptolemus seguem-no, forçando-me a mim e aos meus
guardas a tomar a retaguarda da estranha procissão. Seguimo-
los através da porta, para um vestíbulo que liga um
compartimento ao outro. Outra porta, outra longa extensão de
opulenta decoração, desta vez sala de jantar. Ainda nada de
janelas. Ainda indício algum de onde poderemos estar.
No vestíbulo seguinte uma porta abre-se, não à frente mas à
direita. Os Sentinelas passam por ela primeiro, desaparecendo,
depois vai Maven, em seguida os restantes. Saímos para outra
plataforma, iluminada por luzes cruas em cima. De uma
limpeza chocante — mais uma nova construção, sem dúvida
—, mas parece haver humidade no ar. Apesar da ordem
meticulosa da plataforma vazia, algo goteja algures, ecoando à
nossa volta. Olho à esquerda e à direita ao longo dos carris.
Desvanecem-se na escuridão de um lado e do outro. Isto não é
o fim da linha. Estremeço ao imaginar que progressos Maven
terá feito em alguns meses apenas.
Vamos para cima, subindo um lanço de escadas. Resigno-
me a uma longa subida, lembrando-me de quão profunda foi a
entrada. Portanto fico surpreendida quando as escadas
rapidamente se nivelam junto de outra porta. Esta é de aço
reforçado, um agoirento presságio do que poderá estar do
outro lado. Um Sentinela agarra na tranca e gira-a com um
grunhido. O roncar de um enorme mecanismo responde.
Evangeline e Ptolemus não erguem um dedo para ajudar.
Como eu, observam com escassamente velado fascínio. Não
me parece que saibam muito mais do que eu. Estranho, para
uma casa tão estreitamente ligada ao rei.
A luz do dia entra de um jorro quando o aço desliza para
trás, revelando cinzento e azul para lá dela. Árvores mortas, os
seus ramos espalhados como veias, estendem-se para um céu
claro de inverno. Quando saímos do búnquer do comboio
inspiro fundo. Pinheiro, a limpeza pungente do ar frio.
Estamos postados numa clareira rodeados de sempre-vivas e
despidos carvalhos. O solo por baixo de mim está congelado,
terra compacta sob alguns centímetros de neve. Que já me
deixa os dedos dos pés gelados.
Finco os calcanhares, aproveitando mais uns segundos de
floresta aberta. Os Arven empurram-me para diante, fazendo-
me derrapar. Mais do que lutar, metodicamente faço-os
abrandar, sempre virando a cabeça de um lado para o outro.
Tento orientar-me. A julgar pelo Sol, a iniciar agora a sua
descida para ocidente, o norte fica diretamente à minha frente.
Quatro transportes militares, polidos até um reluzir
antinatural, aguardam em ponto-morto no caminho diante de
nós. Os motores zumbem baixinho, esperando, o seu calor
exalando penachos de vapor no ar. É fácil perceber qual é o de
Maven. A Coroa Flamejante, vermelha, negra e prata real, está
estampada de cada lado do maior de todos. Eleva-se quase a
sessenta centímetros do chão, com rodas enormes e o que deve
ser um arcabouço reforçado. À prova de bala, à prova de fogo,
à prova de morte. Tudo para proteger o menino-rei.
Ele sobe para dentro sem hesitação, a sua capa adejando
atrás. Para meu alívio, os Arven não me fazem segui-lo e sou
fisicamente enfiada dentro de outro transporte. O meu nada
tem a distingui-lo. Quando entro, esforçando-me por obter um
último vislumbre de céu aberto, reparo em Evangeline e
Ptolemus aproximando-se do seu transporte. Negro e prata, o
seu arcabouço metálico coberto de espigões. A própria
Evangeline provavelmente o decorou.
Avançamos com um solavanco quando o Ovo fecha a porta
atrás de mim, trancando-me dentro do transporte com quatro
guardas Arven. Está um soldado ao volante e um Sentinela no
assento junto ao seu. Resigno-me a outra viagem, sufocada de
Arvens.
Pelo menos o transporte tem janelas. Observo, não querendo
pestanejar, à medida que aceleramos através de uma floresta
dolorosamente familiar. Quando alcançamos o rio, e a
vastamente pavimentada estrada correndo ao longo dele, uma
saudade queima-me o peito.
É o Rio Capital. O meu rio. Viajamos para norte, na Estrada
Real. Podiam atirar-me do transporte neste momento, deixar-
me no pó sem nada, que eu conseguiria descobrir o caminho
para casa. As lágrimas assomam-me aos olhos a esse
pensamento. O que faria eu, a mim própria ou a qualquer outra
pessoa, pela oportunidade de voltar para casa?
Mas não está lá ninguém. Ninguém de quem eu goste.
Foram-se, protegidos, para longe. Casa já não é o lugar de
onde somos. Casa é estar a salvo com eles. Tenho esperança.
Dou um salto quando outros transportes se juntam à nossa
coluna. Militares, os seus arcabouços marcados pela espada
negra do exército. Conto quase uma dúzia à vista, e mais
estendendo-se à distância atrás de nós. Muitos têm soldados
Prateados visíveis, pendurados de lado ou empoleirados por
cima em assentos especiais e providos de cintos. Todos estão
em estado de alerta, prontos a agir. Os Arven não parecem
surpreendidos com as novas adições. Sabiam que vinham aí.
A Estrada Real serpenteia através de vilórias na margem do
rio. Povoações Vermelhas. Estamos ainda demasiado a sul
para passarmos pelas Stilts, mas isso não diminui a minha
excitação. Fábricas de tijolo aparecem à vista primeiro,
sobressaindo dos baixios do rio. Aceleramos direitos a elas,
entrando nos arredores de uma vicejante cidade de engenhos.
Por muito que queira ver mais, espero que não paremos.
Espero que Maven passe sem interrupções por este sítio.
É-me concedido em grande parte o desejo. A coluna
abranda mas não para, rolando pelo coração da cidade em toda
a sua reluzente ameaça. Multidões apinham-se ao longo da
rua, acenando para nós. Aclamam o rei, berrando o seu nome,
esforçando-se por ver e serem vistas. Mercadores Vermelhos e
trabalhadores fabris, velhos e novos, centenas deles
empurrando para verem melhor. Conto ver oficiais de
Segurança a empurrá-los, forçando tão estridente acolhimento.
Reclino-me contra o assento, fazendo por não ser vista.
Forçados já eles são a ver-me sentada ao lado de Maven. Não
quero deitar mais achas para essa manipuladora fogueira. Para
meu alívio, ninguém me põe em exibição. Fico meramente
sentada a fitar as mãos no colo, esperando que a cidade passe o
mais rapidamente possível. No palácio, vendo o que eu vejo de
Maven, sabendo o que sei a seu respeito, é fácil esquecer que
ele tem a maior parte do país na mão. Os seus grandiosos
esforços para virar a maré de opinião contra a Guarda
Escarlate e os seus inimigos parecem estar a surtir efeito. Esta
gente acredita no que ele diz, ou talvez não tenha oportunidade
de lutar. Não sei qual das duas é pior.
Quando a cidade retrocede atrás de nós, as aclamações
ainda me ecoam na cabeça. Tudo isto por Maven, pelo
próximo passo de seja que plano for que ele pôs em
movimento.
Devemos estar para lá de New Town, isso é claro. Não há
poluição à vista. Não há quaisquer propriedades tão-pouco.
Lembro-me de passar pelo Passeio Fluvial na minha primeira
viagem para sul, quando pretendia ser Mareena. Navegámos
rio abaixo desde a Mansão do Sol até Archeon, passando por
aldeias, cidades, e pela luxuosa extensão de margem em que
muitas Altas Casas tinham as suas mansões de família. Tento
recordar os mapas que Julian me costumava mostrar. Em vez
disso, apenas me inflijo uma dor de cabeça.
O Sol mais se afunda à medida que a coluna se afasta da
terceira cidade reunida em aclamação, movendo-se em
ensaiada formação para uma estrada de ligação. Para oeste.
Tento engolir o abismo de tristeza que se eleva dentro de mim.
O Norte puxa por mim, acenando-me ainda que eu não possa
corresponder. Os lugares que conheço cada vez mais se
distanciam.
Tento manter a bússola na minha cabeça. O Oeste é a
Estrada de Ferro. O caminho para os Lagos Ocidentais, as
Lakelands, o Caldeirão. O Oeste é guerra e ruína.
O Ovo e o Trio não deixam que me mexa grande coisa, pelo
que tenho de esticar o pescoço para ver. Mordo o lábio quando
passamos por um conjunto de portões, tentando avistar um
sinal ou símbolo. Não há nada, apenas grades de ferro forjado
sob chocantemente verdes trepadeiras de hera em floração.
Bem fora da época.
A propriedade é palaciana, na extremidade de uma estrada
ladeada por sebes imaculadas. Somos cuspidos para um vasto
quadrado de pedra, com a casa senhorial ocupando um lado. A
nossa coluna descreve um círculo à sua frente, parando com os
transportes dispostos em arco. Os Arven movem-se
rapidamente e fazem-me sair do transporte.
Levanto o olhar para o encantador tijolo vermelho e friso
branco, fiadas de janelas polidas com opulentas floreiras
suspensas, colunas estriadas, varandas ornamentadas e a maior
árvore que alguma vez vi irrompendo do meio da mansão. Os
seus ramos arqueiam-se por sobre o telhado pontiagudo,
crescendo em conjunção com a estrutura. Nem um galho ou
folha fora do lugar, perfeitamente esculpida como uma peça de
arte viva. Uma magnólia, penso, a julgar pelas flores brancas e
o odor perfumado. Por um momento esqueço-me de que
estamos no inverno.
— Bem-vindo, Vossa Majestade.
Não é voz que eu reconheça.
Outra rapariga, da minha idade mas alta, magra, pálida
como a neve que aqui deveria haver, sai de um dos muitos
transportes que se juntaram aos nossos. A sua atenção está em
Maven, que agora desce com dificuldade do seu transporte, e
ela desliza por mim para ir fazer uma vénia diante dele.
Reconheço-a de relance.
Heron Welle. Ela competiu na Prova da Rainha há muito
tempo, arrancando poderosas árvores da terra enquanto a sua
casa a aclamava. Como tantas, tinha esperança de se tornar
uma noiva real, escolhida para se casar com Cal. Agora posta-
se ao comando de Maven, de olhos baixos, aguardando a sua
ordem. Ajusta o casaco verde e dourado mais à volta do corpo,
uma defesa contra o frio e o olhar fixo de Maven.
A sua é uma das poucas casas que conheci antes de me
fazerem entrar à força no mundo Prateado. O seu pai governa
a região onde nasci. Costumava observar o seu navio a passar
pelo rio e acenar para as suas bandeiras verdes com outras
estúpidas crianças.
Maven leva o seu tempo, calçando desnecessariamente as
luvas para a curta caminhada entre o seu transporte e a
mansão. À medida que se move, a coroa singela aninhada nos
seus caracóis negros capta a luz do sol que mingua com
reflexos vermelhos e dourados.
— Que lugar encantador, Heron — diz, fazendo conversa de
circunstância. Soa sinistro vindo dele. Uma ameaça.
— Obrigada, Vossa Majestade. Está tudo a postos para a
vossa chegada.
Quando sou manobrada para me aproximar, Heron
dispensa-me um único olhar de relance. A sua única admissão
da minha existência. Tem feições de pássaro, mas na sua
figura angulosa parecem elegantes, refinadas e
penetrantemente belas. Conto que os seus olhos sejam verdes,
como tudo o resto no que respeita à sua família e aptidão. Em
vez disso são de um vibrante azul-escuro, realçados pela pele
de porcelana e cabelo ruivo.
Os restantes transportes esvaziam-se dos seus passageiros.
Mais cores, mais casas, mais guardas e soldados. Avisto
Samson entre eles, com ar de tolo, de couro e pele tingidos de
azul. A cor e o frio tornam-no mais pálido que nunca, um
louro e sanguinário pingente de gelo. Os outros mantêm-se ao
largo quando ele avança para o lado de Maven. Conto de
relance umas dezenas de cortesãos. Os suficientes para me
interrogar se mesmo a mansão do Governador Welle nos pode
albergar a todos.
Maven reconhece a chegada de Samson com um assentir de
cabeça antes de desandar a passo vivo, trotando direito às
escadas ornamentadas que sobem do largo. Heron segue no
seu encalço, tal como os Sentinelas no bando de sempre.
Todos os demais se seguem, puxados por um cabresto
invisível.
Um homem que só pode ser o governador sai
impetuosamente de portas de carvalho e ouro, curvando-se
numa mesura enquanto caminha. Parece banal comparado com
a sua casa, incaraterístico com o seu queixo fraco, cabelo
louro-sujo e corpo nem gordo nem magro. As suas roupas
ainda mais contribuem para isso. Usa botas, calças de couro
macio e um casaco trabalhado em ornamentado brocado,
embutido de lampejantes esmeraldas na gola e debruns. Nada
são comparadas com o medalhão antigo que tem ao pescoço.
Oscila-lhe contra o peito quando anda, um emblema-joia da
árvore que guarda a sua casa.
— Vossa Majestade, não posso expressar o prazer que nos
dá hospedar-vos — declara pomposamente, fazendo uma
última vénia. Maven franze os lábios num fino sorriso,
divertido com o aparato. — É uma grande honra sermos o
primeiro destino na vossa viagem de coroação.
Sinto uma contração de repulsa no estômago. Sou tomada
pela imagem de mim desfilando pelo país, uns passos atrás de
Maven, sempre obediente ao seu aceno e chamado. No ecrã,
diante das câmaras, parece-me degradante, mas em pessoa?
Diante de multidões de gente como a da cidade? Porventura
não sobreviverei. De algum modo acho que preferiria a prisão
de Fogo Branco.
Maven troca um aperto de mão com o governador, o seu
sorriso alastrando para algo que poderia passar por genuíno.
Ele é bom ator, isso lhe concedo. — Claro, Cyrus, não me
ocorreria melhor lugar para começar. Heron fala de si com
tanta consideração… — acrescenta, acenando a chamá-la.
Ela avança rapidamente, os olhos lampejando para o pai.
Uma expressão de alívio passa entre eles. Como tudo o que
Maven faz, a presença dela é uma cuidadosa manipulação e
uma mensagem.
— Entramos? — Maven aponta para a mansão. Desanda,
fazendo-nos a todos segui-lo. O governador apressa-se a
flanquear Maven, ainda tentando pelo menos fazer menção de
que detém algum controlo aqui.
Lá dentro, carradas de serviçais Vermelhos estão alinhados
contra as paredes nos seus melhores uniformes, sapatos
polidos e olhos no chão. Nenhum olha para mim e eu
mantenho-me recolhida, cismando em vez disso na mansão do
governador. Contava com peças de arte greenwarden e não
estou desapontada. Flores de toda a espécie dominam o
vestíbulo, vicejantes em jarras de cristal, pintadas nas paredes,
modeladas nos tetos, trabalhadas em vidro nos candelabros ou
nos mosaicos de pedra no chão. O odor deveria ser esmagador.
Em vez disso é inebriante, calmante a cada alento. Inalo
profundamente, permitindo-me este pequeno prazer.
Mais membros da Casa Welle esperam para saudar o rei,
atropelando-se para se curvarem ou fazerem vénias ou por
tudo elogiarem Maven, desde as suas leis aos sapatos.
Enquanto ele a todos atura, Evangeline junta-se a nós, tendo já
despachado as suas peles para algum pobre serviçal.
Ponho-me hirta quando ela se detém perto de mim. Tanto
verde reflete-se na sua vestimenta, dando-lhe um matiz
doentio. Com um choque, apercebo-me de que o pai dela não
está aqui. Ele paira de costume entre ela e Maven em ocasiões
como esta, pronto a intervir quando o temperamento dela
ameaça ferver e transbordar. Mas não está aqui agora.
Evangeline nada diz, contentando-se em fitar as costas de
Maven. Observo-a a observá-lo. O punho cerra-se-lhe quando
o governador se inclina para segredar ao ouvido de Maven.
Então ele acena a um dos assistentes Prateados, uma mulher
alta e magra com cabelo negro-azeviche, malares salientes e
impecável pele ocre. Se é membro da Casa Welle, não parece.
Não há nela um laivo de verde. Em vez disso, as suas roupas
são cinzentas-azuladas. A mulher curva a cabeça rigidamente,
tendo o cuidado de manter os olhos no rosto de Maven. O
semblante dele altera-se, o seu sorriso alargando-se por um
instante. Resmunga algo em surdina, a cabeça oscilando de
entusiasmo. Apanho uma única palavra.
— Agora — diz. O governador e a mulher obedecem.
Afastam-se juntos, com Sentinelas a reboque. Olho de
relance para os Arven, interrogando-me se não deveremos ir
também, mas eles não se mexem.
Evangeline também não se mexe. E seja por que razão for,
os seus ombros descaem e o seu corpo relaxa. Aliviado algum
do seu peso.
— Para de olhar para mim — dardeja ela, arrancando-me às
minhas observações.
Baixo a cabeça, deixando-a ganhar esta pequena e
insignificante permuta. E continuo a interrogar-me. O que sabe
ela? O que vê ela que eu não vejo?
Enquanto os Arven me conduzem para seja qual for a minha
cela por hoje, o coração afunda-se-me no peito. Deixei os
livros de Julian no Fogo Branco. Nada me confortará esta
noite.
CAPÍTULO CATORZE

Mare

A ntes de ser capturada passei meses a percorrer o país,


esquivando-me aos caçadores de Maven e recrutando
sanguenovos. Dormia num chão sujo, comia o que
conseguíamos roubar, passava todas as minhas horas de vigília
sentindo de mais ou de menos, fazendo o possível por me
manter à frente de todos os nossos demónios. Não lidei bem
com a pressão. Fechei-me e deixei de fora os meus amigos, a
minha família, todos os meus próximos. Todos os que queriam
ajudar ou entender. Claro que o lamento. Claro que desejaria
poder regressar para o Entalhe, para Cal e Kilorn e Farley e
Shade. Faria as coisas de modo diferente. Seria uma pessoa
diferente.
Tristemente, Prateado ou sanguenovo algum pode alterar o
passado. Os meus erros não podem ser desfeitos, esquecidos
nem ignorados. Mas posso repará-los. Posso fazer alguma
coisa agora.
Vi Norta, mas como uma fora da lei. Das sombras. A visão
do lado de Maven, como parte da sua extensa comitiva, é
diferente como a noite do dia. Tremo arrepiada sob o meu
casaco, as mãos apertadas para me aquecer. Entre o poder
esmagador dos Arven e das minhas algemas, fico mais
suscetível à temperatura. Apesar do meu ódio por ele, dou
comigo a chegar-me a Maven, nem que seja para aproveitar o
seu constante calor. Do seu outro lado Evangeline faz o
oposto, mantendo a distância. Foca-se mais no Governador
Welle do que no rei, e murmura-lhe ocasionalmente, em voz
suficientemente baixa para não perturbar o discurso de Maven.
— Sinto-me honrado com o vosso acolhimento, bem como
pelo apoio que dão a um rei jovem e não posto à prova.
A voz de Maven ecoa, amplificada por microfones e
altifalantes. Não lê de papel nenhum e de alguma forma parece
estabelecer contacto visual com cada pessoa que enche a praça
da cidade, por baixo da varanda. Como em tudo no rei, até a
localização é uma manipulação. Estamos acima de centenas,
olhando para baixo, elevados além do alcance de meros
humanos. A população reunida de Arborus, a capital do
Governador Welle dentro do seu próprio domínio, olha para
cima, os rostos erguidos de uma forma que me provoca
comichão. Os Vermelhos acotovelam-se para ver melhor. São
fáceis de distinguir, postados em grupos, cobertos com roupas
desirmanadas, os rostos afogueados do frio, enquanto os
cidadãos Prateados estão sentados envoltos em peles. Oficiais
de Segurança, de uniformes negros, salpicam a multidão,
vigilantes como os Sentinelas postados na varanda e telhados
adjacentes.
— É minha esperança que esta viagem de coroação me
conceda não só uma mais profunda compreensão do meu
reino, mas uma mais profunda compreensão de vós. Das
vossas lutas. Das vossas esperanças. Dos vossos medos. Pois
eu certamente tenho medo. — Um murmúrio percorre a
multidão lá em baixo, bem como os poucos reunidos na
varanda. Até mesmo Evangeline olha de lado para Maven, os
olhos semicerrados por sobre a imaculada gola branca do seu
agasalho de pele. — Somos um reino à beira do abismo,
ameaçados de soçobrar sob o peso da guerra e do terrorismo. É
meu solene dever impedir que isso aconteça e salvar-nos dos
horrores de seja que anarquia for que a Guarda Escarlate
deseje instilar. Tantos morreram, em Archeon, em Corvium,
em Summerton. Os meus próprios pais entre eles. O meu
próprio irmão, corrompido pelas forças de insurreição. Mas
mesmo assim não estou só. Tenho-vos a vós. Tenho Norta. —
Suspira lentamente, um músculo contraindo-se-lhe no rosto.
— E erguer-nos-emos juntos contra os inimigos que buscam
destruir o nosso modo de vida, Vermelho e Prateado.
Comprometo a minha vida a erradicar a Guarda Escarlate, de
qualquer forma possível.
As aclamações lá em baixo soam-me como metal raspando
sobre metal, estridentes, um ruído horrível. Mantenho o rosto
impassível, com uma expressão cuidadosamente neutra. Serve-
me tão bem como qualquer escudo.
A cada dia que passa o seu discurso ganha firmeza, as
palavras cuidadosamente escolhidas e brandidas como facas.
Por mais de uma vez profere o termo rebelde ou revolução. Os
da Guarda Escarlate são sempre terroristas. Sempre assassinos.
Sempre inimigos do nosso modo de vida, seja ele qual for. E,
ao contrário dos seus pais, ele é magistralmente cauteloso em
não insultar os Vermelhos. A viagem prossegue igualmente
através de propriedades Prateadas e cidades Vermelhas. De
alguma forma ele parece sentir-se em casa numas e noutras,
jamais se retraindo ao pior que o seu reino tem para oferecer.
Visitamos mesmo uma das cidades fabris de barracas, a
espécie de lugar que jamais esquecerei. Tento não me encolher
quando passamos pelos periclitantes edifícios-dormitório ou
quando saímos para o ar poluído. Só Maven parece inabalável,
sorrindo para os operários e os seus pescoços tatuados. Não
cobre a boca como Evangeline ou é acometido de vómitos
pelo cheiro como tantos outros, eu própria incluída. Ele é
melhor nisto do que alguma vez esperei. Ele sabe, como os
seus pais não souberam ou recusaram entender, que seduzir os
Vermelhos para a sua causa Prateada é talvez a sua maior
probabilidade de vitória.
Noutra cidade Vermelha, nos degraus de uma mansão
Prateada, ele depõe o tijolo seguinte numa estrada mortal. Um
milhar de pobres camponeses olham, não ousando acreditar,
não ousando ter esperança. Nem mesmo eu sei o que ele está a
fazer.
— As Medidas do meu pai foram implementadas após um
ataque mortal que tirou a vida a muitos oficiais
governamentais. Foram a sua tentativa de punir a Guarda
Escarlate pela sua malevolência, e, para vergonha minha,
apenas vos puniram a vocês em vez disso. — Ante os olhos de
tantos, ele afunda o rosto. É uma visão comovente. Um rei
Prateado curvando-se diante das massas Vermelhas. Tenho de
recordar a mim mesma que se trata de Maven. De um ardil. —
De hoje em diante, decreto que as Medidas sejam levantadas e
abolidas. Foram um erro de um rei bem-intencionado, mas não
obstante um erro.
Olha de relance para mim, só por um momento, mas é o
bastante para eu saber que ele se preocupa com a minha
reação.
As Medidas. A idade de recrutamento descida para os
quinze anos. Restritivo recolher obrigatório. Punição letal por
qualquer crime. Tudo para virar a população Vermelha de
Norta contra a Guarda Escarlate. Tudo instantaneamente
desaparecido, num pulsar de negro coração real. Deveria
sentir-me feliz. Deveria sentir-me orgulhosa. Ele está a fazer
isto por minha causa. Uma qualquer parte dele pensa que isto
me agradará. Uma qualquer parte pensa que me manterá a
salvo. Mas observar os Vermelhos, a minha própria gente,
aclamar o seu opressor apenas me enche de pavor. Baixo os
olhos e dou com as minhas mãos a tremer.
O que faz ele? O que planeia ele?
Para descobrir tenho de voar o mais perto da chama que
ousar.
Ele termina as suas apresentações atravessando a multidão,
apertando a mão tanto a Vermelhos como a Prateados. Abre
caminho através deles com facilidade, os Sentinelas
flanqueando-o em formação de diamante. Com Samson
Merandus sempre nas suas costas, interrogo-me quantos
sentirão o roçar da sua mente nas suas. Ele é um melhor
dissuasor de um potencial assassino do que qualquer outra
coisa. Evangeline e eu seguimos atrás dele, ambas com
guardas. Como sempre, recuso-me a sorrir, a olhar, a tocar
quem quer que seja. É mais seguro para eles assim.
Os transportes esperam por nós, os motores ligados em
ocioso ronronar. Lá no alto, o céu encoberto escurece e farejo
neve. Enquanto os nossos guardas cerram fileiras, em
formação apertada para permitir ao rei dar entrada no seu
transporte, estugo o passo o melhor que posso. O meu coração
dispara e o meu bafo forma uma nuvem branca no ar frio.
— Maven — digo em voz alta.
Apesar da multidão que aclama atrás de nós, ele ouve-me e
detém-se no degrau do seu transporte. Vira-se com graça
fluida, a longa capa redemoinhando e mostrando o forro
vermelho-sangue. Ao contrário de nós, ele não precisa de usar
peles para se manter quente.
Chego o casaco ao corpo, nem que seja para dar às mãos
nervosas algo que fazer. — Estavas a falar a sério?
No seu próprio transporte, Samson fita-me, os olhos
perfurando os meus. Não me pode ler a mente, não comigo
usando algemas, mas isso não o torna um inútil. Confio na
minha real confusão para criar a máscara que quero usar.
Não tenho ilusões no que toca a Maven. Conheço o seu
coração retorcido e sei que sente algo por mim. Algo de que
ele se quer livrar, mas de que não consegue abdicar. Quando
me faz sinal para entrar no seu transporte, acenando-me para
que me junte a ele, conto ouvir Evangeline zombar ou
protestar. Não faz nem uma coisa nem outra, desaparecendo
rapidamente no seu próprio transporte. No frio, não cintila tão
resplandecentemente. Parece quase humana.
Os Arven não me seguem, embora tentem. Maven detém-
nos com um olhar.
O transporte dele é diferente de qualquer outro em que já
estive. O condutor e o guarda dianteiro estão separados dos
passageiros por uma janela de vidro, isolando-nos aos dois. As
paredes e janelas são espessas, à prova de bala. Os Sentinelas
também não deslizam lá para dentro, trepando em vez disso
diretamente para o arcabouço do transporte, tomando posições
defensivas em cada canto. É inquietante saber que há um
Sentinela armado sentado diretamente acima de mim. Mas não
tão inquietante como o rei sentado à minha frente, a olhar, à
espera.
Ele olha para as minhas mãos, observando-me a esfregar os
dedos congelados.
— Tens frio? — murmura.
Rapidamente enfio as mãos debaixo das pernas para as
aquecer. O transporte acelera em frente. — Vais realmente
fazê-lo? Pôr fim às Medidas?
— Achas que eu mentiria?
Não posso deixar de rir sombriamente. No fundo da mente,
quem me dera ter uma faca. Interrogo-me se ele poderia
incinerar-me antes que eu lhe pudesse cortar a garganta. —
Tu? Nunca.
Ele esboça um sorriso malicioso e encolhe os ombros,
ajeitando-se para ficar mais confortável no assento de pelúcia.
— Falei a sério. As Medidas foram um erro. Implementá-las
fez mais mal que bem.
— Aos Vermelhos? Ou a ti?
— A ambos, claro. Embora eu agradecesse ao meu pai se
pudesse. Conto que corrigir os seus agravos me faça merecer o
apoio da tua gente. — O frio desprendimento da sua voz é
desconfortável, para dizer o mínimo. Sei agora que lhe vem
das recordações que tem do pai. Coisas envenenadas,
exauridas de qualquer amor ou felicidade. — Receio que à tua
Guarda Escarlate não restem muitos simpatizantes quando isso
for feito. Vou acabar com eles sem outra guerra inútil.
— Achas que dar migalhas às pessoas irá aplacá-las? —
rosno, apontando para as janelas com o queixo. Quintas,
estéreis durante o inverno, estendem-se até às colinas. — Oh,
que maravilha, o rei deu-me de volta dois anos da minha vida
de criança. Não importa que vão ser, ainda assim, levados a
seu tempo.
O seu sorriso malicioso apenas se alarga. — Julgas isso?
— Julgo. É assim que é este reino. É assim que sempre foi.
— Veremos. — Reclinando-se, pousa um pé no assento ao
meu lado. Até a coroa tira, fazendo-a rodar entre as mãos.
Chamas de bronze e ferro brilham à luz fraca, refletindo o meu
rosto e o dele. Encolho-me vagarosamente, aninhando-me ao
canto.
— Suponho que te ensinei uma dura lição — diz ele. —
Perdeste tanta coisa da última vez, e agora em nada confias.
Estás sempre vigilante, à procura de informação que nunca
irás usar. Já percebeste onde vamos agora? Ou porquê?
Inspiro. Sinto-me de volta na sala de aulas de Julian, a ser
posta à prova diante de um mapa. A fasquia aqui é bem mais
elevada. — Estamos agora na Estrada de Ferro, dirigindo-nos
para noroeste. Para Corvium.
Ele tem a lata de piscar o olho. — Perto.
— Não estamos… — pestanejo rapidamente, tentando
pensar. O meu cérebro revolve todas as peças que ciosamente
recolhi dia após dia. Fragmentos de notícias, pedaços de
mexericos. — Rocasta? Vais atrás de Cal?
Maven recosta-se mais, divertido. — Que mente mais
mesquinha. Porque haveria eu de perder tempo atrás de
rumores do meu irmão exilado? Tenho uma guerra a que pôr
termo e uma rebelião a prevenir.
— Uma guerra a… que pôr termo?
— Tu própria o disseste, as Lakelands derrubar-nos-ão se
lhes for dada oportunidade. Não vou deixar isso acontecer.
Especialmente com o Piedmonte focado noutro lado, na sua
própria imensidão de problemas. Eu mesmo tenho de lidar
com estas questões. — Apesar do calor do transporte, devido
em grande parte ao rei de fogo sentado à minha frente, sinto
um dedo de gelo deslizar-me pela espinha.
Dantes costumava sonhar com o Caldeirão. O lugar onde o
meu pai perdeu a perna, onde os meus irmãos quase perderam
as suas vidas. Onde tantos Vermelhos morrem. Um
desperdício de cinzas e sangue.
— Não és um guerreiro, Maven. Não és general ou soldado.
Como podes esperar derrotá-los quando…
— Quando outros não conseguiram? Quando o Pai não
conseguiu? Quando Cal não conseguiu? — respinga ele. Cada
palavra soa como um osso a estalar. — Tens razão, eu não sou
como eles. Não foi para a guerra que fui feito.
Feito. Di-lo com tal à-vontade… Maven Calore não é de
todo ele próprio. Assim mo disse. É uma construção, uma
criação das adições e subtrações da sua mãe. Um ser
mecânico, uma máquina, desalmado e perdido. Que horror,
saber que alguém assim tem o nosso destino na palma da sua
trémula mão.
— Não será perda nenhuma, não verdadeiramente —
continua ele a arengar para nos distrair a ambos. — A nossa
economia militar voltará simplesmente a sua atenção para a
Guarda Escarlate. E depois para quem decidirmos temer a
seguir. Seja qual for a melhor via para o controlo
populacional…
Não fossem as algemas, a minha fúria transformaria
certamente o transporte num monte de sucata elétrica. Em vez
disso salto para diante, mergulhando, as mãos estendidas para
o agarrar pela gola. Os meus dedos insinuam-se sob as lapelas
do seu casaco e arrepanho o tecido nos punhos cerrados. Sem
pensar, invisto, empurrando, esmagando-o contra o assento.
Ele retrai-se, a um palmo do meu rosto, respirando com
dificuldade. Está simplesmente tão surpreendido como eu.
Coisa nada fácil. Imediatamente entorpeço do choque, incapaz
de me mover, paralisada de medo.
Ele fita-me, olhos nos olhos, longas pestanas escuras. Estou
tão perto dele que posso ver as suas pupilas dilatarem-se.
Quem me dera poder desaparecer. Quem me dera estar no
outro lado do mundo. Lentamente, firmemente, as suas mãos
encontram as minhas. Apertam-me os pulsos, sentindo algema
e osso. Depois arranca-me os punhos do seu peito. Deixo-o
mover-me, demasiado aterrorizada para qualquer coisa mais.
A pele arrepia-se-me ao seu toque, mesmo sob as luvas. Eu
ataquei-o. Maven. O rei. Uma palavra, um toque na janela e
um Sentinela dilacerar-me-á a espinha. Ou ele próprio me
poderá matar. Queimar-me viva.
— Senta-te sossegada — sussurra, cada palavra bem
cortante. Dando-me uma só hipótese.
Qual gato fugidio, faço o que ele diz, retrocedendo para o
meu canto.
Ele recupera mais depressa do que eu e abana a cabeça com
o fantasma de um sorriso. Alisa rapidamente o casaco e afasta
para trás uma madeixa de cabelo.
— És uma rapariga inteligente, Mare. Não me digas que
nunca uniste esses pontos em particular.
A respiração volta-me a custo, como se tivesse uma pedra
no peito. Sinto o calor inflamar-me as faces, tanto de raiva
como de vergonha. — Eles querem a nossa costa. A nossa
eletricidade. Nós queremos os seus solos aráveis, os
recursos… — Tropeço nas palavras que me ensinaram numa
escola decrépita. A expressão no rosto de Maven torna-se
ainda mais divertida. — Nos livros de Julian… os reis
discordavam. Dois homens discutindo sobre um tabuleiro de
xadrez como crianças mimadas. São eles a razão de tudo isto.
De uma centena de anos de guerra.
— Julguei que Julian te ensinasse a ler nas entrelinhas. A
ver as palavras que ficam por dizer. — Abana a cabeça,
desesperado comigo. — Suponho que nem mesmo ele pôde
desfazer os teus anos de má instrução. Outra tática bem usada,
devo acrescentar.
Isso sabia eu. Isso soube eu sempre, e lamentei. Os
Vermelhos são mantidos estúpidos, mantidos ignorantes. Isso
torna-nos ainda mais fracos do que somos. Os meus próprios
pais nem ler sabem.
Afugento, pestanejando, lágrimas escaldantes de frustração.
Tu sabias tudo isto, digo para mim própria, tentando acalmar.
A guerra é uma fraude, um disfarce para manter os Vermelhos
sob controlo. Um conflito poderá acabar, mas outro sempre
começará.
Retorce-me as entranhas constatar quão manipulado foi o
jogo, para todos, por tanto tempo.
— As pessoas estúpidas são mais fáceis de controlar.
Porque julgas que a minha mãe manteve o meu pai a seu lado
durante tanto tempo? Ele era um bêbedo, um imbecil de
coração destroçado, cego a tanta coisa, contentando-se em
manter tudo como estava. Fácil de controlar, fácil de usar.
Uma pessoa para manipular… e culpar.
Furiosa, levo as mãos com força à cara, tentando ocultar
qualquer evidência das minhas emoções. Maven olha de
qualquer maneira, a sua expressão suavizando-se ligeiramente.
Como se isso ajudasse alguma coisa. — Então o que irão dois
reinos Prateados fazer assim que pararem de lançar Vermelhos
uns contra os outros? — silvo eu. — Começar a fazer-nos
saltar de abismos a esmo? Tirar nomes de uma lotaria?
Ele pousa uma mão no queixo. — Não posso crer que Cal
nunca te tenha contado nada disto. Embora ele não saltasse
propriamente ao ensejo de mudar as coisas, nem mesmo por ti.
Provavelmente achava que não conseguirias aguentá-lo… ou,
bem, talvez achasse que não o entenderias…
O meu punho abate-se sobre o vidro à prova de bala da
janela. A reação é imediata e deixo-me afundar na dor,
usando-a para manter quaisquer pensamentos de Cal ao largo.
Não me posso deixar cair nessa espiral redemoinhante, ainda
que seja verdade. Ainda que Cal estivesse em tempos disposto
a defender esses horrores. — Para — dardejo para ele. —
Para.
— Eu não sou tolo nenhum, miúda-relâmpago. — O rosnido
dele iguala-se ao meu. — Se é que vais jogar na minha cabeça,
eu vou jogar na tua. É nisso que somos bons.
Estava com frio antes, mas agora o calor da raiva dele
ameaça consumir-me. Sentindo-me agoniada, encosto a face
contra o vidro frio da janela e fecho os olhos. — Não me
compares contigo. Não somos iguais.
— Pessoas como nós — zomba ele. — Nós mentimos a
todos. Especialmente a nós mesmos.
Tenho ganas de esmurrar a janela outra vez. Em vez disso
meto os punhos cerrados debaixo dos braços, tentando fazer-
me mais pequena. Talvez simplesmente encolha e desapareça.
A cada alento, cada vez mais me arrependo de ter entrado no
transporte dele.
— Nunca conseguirás que os Lakelanders concordem —
digo.
Oiço-o rir do fundo da garganta. — Que graça. Já o fizeram.
Os meus olhos esbugalham-se de choque.
Ele assente, parecendo satisfeito consigo mesmo. — O
Governador Welle facilitou um encontro com um dos seis
ministros de topo. Ele tem contactos no Norte e é facilmente…
persuadido.
— Provavelmente porque tens a filha dele feita refém.
— Provavelmente — concorda ele.
Então é disso que trata esta viagem. Uma consolidação de
poder, a criação de uma nova aliança. Um torcer de braços e
vergar de vontades seja por que meios for. Eu sabia que era
por algo mais do que espetáculo, mas isto — isto não podia eu
conceber. Penso em Farley, no Coronel, nos seus soldados
Lakelanders juramentados à Guarda Escarlate. O que lhes fará
uma trégua a eles?
— Não te ponhas tão macambúzia. Estou a pôr fim a uma
guerra na qual milhões morreram, e a trazer paz a um país que
já não conhece o significado da palavra. Deverias ter orgulho
em mim. Deverias agradecer-me. Não… — Levanta as mãos
em defesa quando lhe cuspo.
— Tens mesmo de descobrir outra forma de expressar a tua
raiva — resmunga, limpando o uniforme.
— Tira-me as algemas e eu mostrar-te-ei uma.
Ele ladra em resposta. — Sim, com certeza, Menina Barrow.
Lá fora, o céu escurece e o mundo desbota para cinzento.
Espalmo a mão no vidro, intentando cair através dele. Nada
acontece. Ainda aqui estou.
— Devo dizer que estou surpreendido — acrescenta ele. —
Temos de longe mais em comum com os Lakelanders do que
julgas.
O meu maxilar contrai-se e falo por entre dentes cerrados.
— Ambos usam os Vermelhos como escravos e carne para
canhão.
Ele endireita-se tão rapidamente que me encolho. — Ambos
queremos pôr fim à Guarda Escarlate.
É quase cómico. Cada passo que dou explode-me na cara.
Tentei salvar Kilorn do recrutamento e mutilei a minha irmã
em vez disso. Tornei-me criada para ajudar a minha família e
numa questão de horas passei a prisioneira. Acreditei nas
palavras de Maven e no seu coração falso. Confiei que Cal me
escolheria. Invadi uma prisão para libertar pessoas e acabei
agarrada ao cadáver de Shade. Sacrifiquei-me a mim própria
para salvar as pessoas que amo. Dei a Maven uma arma. E
agora, por mais que tente gorar o seu reino por dentro, acho
que fiz algo bem pior. Como será uma frente unida de
Lakelands e Norta?
Apesar do que Maven disse, dirigimo-nos para Rocasta,
rolando para diante após mais paragens de coroação por toda a
região dos Lagos Ocidentais. Não ficaremos. Ou não há uma
casa senhorial apropriada o bastante para a corte de Maven, ou
ele simplesmente não quer ali ficar. Posso ver porquê. Rocasta
é uma cidade militar. Não uma fortaleza como Corvium, mas
construída como suporte ao exército, ainda assim. Uma coisa
feia, formada para uma função. A cidade situa-se a vários
quilómetros das margens do Lago Tarion, e a Estrada de Ferro
atravessa o seu coração. Divide Rocasta como uma lâmina,
separando o setor da cidade mais abastado, Prateado, do
Vermelho. Sem muralhas de que falar, a cidade apodera-se
subtilmente de mim. As sombras de casas e edifícios surgem
da cegueira branca de uma nevasca. Storms18 Prateados
trabalham para manter a estrada desimpedida, travando uma
batalha contra o clima para conservar o rei dentro do horário.
Postam-se sobre os nossos transportes, dirigindo a neve e o
gelo à nossa volta com movimentos fluidos. Sem eles, o tempo
estaria bem pior, uma martelada de brutal inverno.
Ainda assim, a neve açoita as janelas do meu transporte,
obscurecendo o mundo lá fora. Já não há windweavers da
talentosa Casa Laris. Morreram ou desapareceram, tendo
fugido com as outras casas rebeldes, e os Prateados que
restaram não podem fazer muito mais.
Do pouco que me é dado ver, Rocasta segue a sua vida
apesar da tempestade. Trabalhadores Vermelhos andam de um
lado para o outro, de lanternas na mão, cujas luzes oscilam
através da neblina como peixes em água turva. Estão
acostumados a este tempo tão perto dos lagos.
Afundo-me no meu longo casaco, congratulando-me com o
calor, mesmo sendo o casaco uma monstruosidade vermelha-
sangue. Olho de relance para os Arven, trajando ainda o seu
costumado branco.
— Assustados? — atiro para o vazio do ar. Não espero a sua
inexistente resposta, todos eles silenciosamente focados em
ignorar a minha voz. — Podíamos perder-vos numa
tempestade como esta. — Suspiro para comigo própria,
cruzando os braços. — Doce ilusão.
O transporte de Maven rola adiante do meu, salpicado de
Sentinelas a guardá-lo. Tal como o meu casaco, as suas vestes
flamejantes destacam-se intensamente na tempestade de neve,
um farol para todos nós. Admira-me que não removam as
máscaras apesar da fraca visibilidade. Devem deleitar-se em
parecer inumanos e assustadores — monstros para defender
outro monstro.
A nossa coluna sai da Estrada de Ferro algures nas
proximidades do centro da cidade, acelerando por uma larga
avenida entrecruzada de luzes cintilantes. Opulentas moradias
urbanas e mansões muradas elevam-se da rua, as suas janelas
cálidas e convidativas. Mais à frente, uma torre de relógio
aparece e desaparece, ocasionalmente obscurecida por rajadas
de neve. Soam as três horas quando nos aproximamos, com
ressonantes gongos que parecem reverberar-me no tórax.
Sombras escuras mergulham ao longo da rua, mais se
adensando a cada segundo que passa e que a tempestade se
intensifica. Estamos no setor Prateado, como evidenciam a
ausência de lixo e de Vermelhos esfarrapados vadiando pelas
vielas. Território inimigo. Como se não estivesse já bem
mergulhada atrás das linhas inimigas.
Na corte corriam rumores a respeito de Rocasta e Cal em
particular. Uns quantos soldados tinham recebido uma dica de
que ele estava na cidade, ou algum velho julgara vê-lo e queria
rações a troco da informação. Mas o mesmo se poderia dizer
de tantos lugares. Seria estupidez dele vir para aqui, para uma
cidade ainda sob o firme controlo de Maven. Especialmente
com Corvium tão perto. Se ele for esperto estará longe, bem
escondido, ajudando a Guarda Escarlate o melhor que puder.
Estranho pensar que a Casa Laris, a Casa Iral e a Casa Haven
se tivessem rebelado em sua honra, por um príncipe exilado
que jamais clamará o trono. Que desperdício.
O edifício administrativo sob a torre do relógio está
ornamentado em comparação com o resto de Rocasta, mais a
condizer com as colunas e cristais do Palácio de Fogo Branco.
A nossa coluna detém-se suavemente diante dele, cuspindo-
nos para a neve.
Subo precipitadamente a escada o mais depressa que posso,
aconchegando a enfurecedora gola vermelha contra o frio. Lá
dentro conto com calor e uma audiência expectante à espera de
cada calculada palavra de Maven. Em vez disso encontramos o
caos.
Isto foi em tempos um salão de reuniões: as paredes estão
revestidas de bancos de pelúcia e assentos, agora postos de
lado. Na sua maioria empilhados uns sobre os outros, para
desimpedir o espaço. Sou tomada pelo cheiro a sangue.
Estranha coisa para um salão cheio de Prateados.
Mas então vejo: não é tanto um salão, mas um hospital.
Todos os feridos são oficiais, deitados em enxergas em
fileiras bem desenhadas. Conto de relance três dúzias. Os seus
uniformes de libré e impecáveis medalhas assinalam-nos como
militares de variadas patentes, com insígnias de inúmeras
Altas Casas. Curadores de pele acodem-lhes o mais
rapidamente que podem, mas apenas dois estão de serviço,
assinalados pelas cruzes vermelhas e prateadas nos ombros.
Correm de um lado para o outro, atendendo os ferimentos por
ordem de gravidade. Um salta de junto de um homem que
geme para se ajoelhar sobre uma mulher que tosse sangue
prateado, o queixo brilhante-metálico com o líquido.
— Sentinela Skonos — diz Maven gravemente. — Ajude
quem puder.
Um dos seus guardas mascarados reage com uma vénia
empolada, adiantando-se da fileira de defensores reais.
Mais de nós entram no salão, apinhando um espaço já de si
repleto. Uns quantos membros da corte abandonam o
protocolo para vasculhar os soldados, à procura de familiares.
Outros estão simplesmente horrorizados. A sua espécie não se
destina a sangrar. Não assim.
À minha frente, Maven olha de um lado para o outro, de
mãos nos quadris. Se não o conhecesse melhor julgá-lo-ia
afetado, zangado ou triste. Mas isto está prestes a tornar-se
outra atuação. Embora se trate de oficiais Prateados, sinto uma
pontada de piedade por eles.
O salão-hospital é prova de que os meus Arven não são
feitos de pedra. Para minha surpresa, a Gatinha é a primeira a
quebrar, os olhos enchendo-se-lhe de lágrimas enquanto
observa à sua volta. Fixa o olhar na extremidade oposta do
salão. Mortalhas brancas cobrem corpos. Cadáveres. Uma
dúzia de mortos.
Aos meus pés, um jovem deixa escapar um alento sibilante.
Prime uma mão contra o peito, exercendo pressão no que deve
ser uma lesão interna. Os nossos olhares cruzam-se e reparo no
seu uniforme e no seu rosto. Mais velho que eu, classicamente
bem-parecido sob vestígios de sangue prateado. Cores de casa,
negro e ouro. Casa Provos, um telky19. Não tarda a reconhecer-
me. As suas sobrancelhas elevam-se ligeiramente à
constatação, e luta por respirar mais uma vez. Sob o meu
olhar, treme. Tem medo de mim.
— O que aconteceu? — pergunto-lhe. Na algazarra do
salão, a minha voz pouco mais é que um sussurro.
Não sei porque responde. Talvez pense que o matarei se não
o fizer. Talvez queira que alguém saiba o que realmente se
passa.
— Corvium — murmura. O oficial Provos chia, lutando
para fazer soar as palavras. — Guarda Escarlate. É um
massacre.
O medo faz-me tremer a voz. — Para quem?
Ele hesita e eu espero.
Finalmente ele logra inspirar com um alento entrecortado.
— Ambos.
18
Tempestades. (N. da T.)
19
Portento. (N. da T.)
CAPÍTULO QUINZE

Cameron

E u não sabia o que poderia de todo espicaçar o príncipe


exilado à ação — até o Rei Maven dar início à sua
maldita viagem de coroação. Claramente uma fraude,
definitivamente outra maquinação. E veio bem direita a nós.
Todos suspeitavam de um ataque. E tivemos de atacar
primeiro.
Cal tinha razão numa coisa: tomar as muralhas de Corvium
era o nosso melhor plano de ação.
Portanto, assim o fez há dois dias.
Trabalhando em conjunção com o Coronel e rebeldes já
dentro da cidade-fortaleza, Cal liderou uma força de ataque da
Guarda Escarlate e soldados sanguenovos. A nevasca deu-lhes
cobertura, e o choque de um assalto serviu-os bem. Cal foi
suficientemente esperto para não me pedir que me juntasse a
eles. Aguardei em Rocasta com Farley. Ambas andando para
trás e para diante junto ao rádio, ávidas de notícias. Eu
adormeci, mas ela acordou-me com um abanão antes da
alvorada, com um sorriso arreganhado. Havíamos tomado as
muralhas. Corvium fora completamente apanhada de surpresa.
A cidade fervilhava no caos.
E nós não pudemos mais ficar para trás. Nem mesmo eu.
Confesso que quis ir. Não para lutar, mas para ver com o que
se parecia de facto a vitória. E, claro está, para me aproximar
um passo mais do Caldeirão, do meu irmão e de uma ilusão de
propósito.
De modo que aqui estou, a coberto da linha de árvores com
o resto da unidade de Farley, olhando para as muralhas negras
e o fumo mais negro ainda. Corvium está a arder por dentro.
Não posso ver grande coisa, mas estou a par dos relatos.
Milhares de soldados Vermelhos, alguns espicaçados pela
Guarda, viraram-se contra os seus oficiais assim que Cal e o
Coronel atacaram. A cidade já era um barril de pólvora. Bem
apropriado que um príncipe de fogo acendesse o rastilho e a
fizesse explodir. Ainda agora, um dia depois, o combate
continua enquanto tomamos a cidade, rua a rua. O ocasional
disparar de armas quebra o relativo silêncio, fazendo-me
retrair.
Desvio os olhos, tentando ver mais longe do que o olhar
humano alcança. O céu aqui já está escuro, o Sol toldado por
um nublado céu cinzento. Para noroeste, no Caldeirão, as
nuvens são negras, carregadas de cinzas e morte. Morrey está
lá, algures. Embora Maven tenha libertado os recrutas menores
de idade, a sua unidade não se moveu, de acordo com os
nossos últimos relatórios informativos. São os que mais longe
se encontram, bem entrincheirados. E acontece que a Guarda
Escarlate ocupa atualmente o lugar para onde voltaria a sua
unidade. Tento não pensar na imagem do meu gémeo
enroscado contra o frio, o uniforme demasiado largo, os olhos
escuros e encovados. Mas o pensamento está gravado a fogo
no meu cérebro. Viro costas, de volta para Corvium, para a
tarefa entre mãos. Preciso de manter o meu foco aqui. Quanto
mais cedo tomarmos a cidade, mais depressa poderemos pôr
os recrutas em movimento. E depois o quê?, pergunto a mim
mesma. Mando-o para casa? Para outro inferno?
Não tenho respostas para a voz na minha cabeça. Mal posso
engolir a ideia de enviar Morrey de volta para as fábricas de
New Town, mesmo que isso signifique mandá-lo de regresso
para os nossos pais. Eles são o meu próximo objetivo, depois
de ter o meu irmão de volta. Um sonho impossível após outro.
— Dois Prateados acabaram de atirar um soldado Vermelho
de uma torre. — Ada espreita através de um par de binóculos.
A seu lado, Farley permanece imóvel, os braços calmamente
cruzados sobre o peito.
Ada continua a esquadrinhar as muralhas, lendo sinais. À
luz pardacenta, a sua pele dourada tem um matiz amarelado.
Espero que não esteja a ficar doente.
— Eles estão a consolidar a sua posição, retirando e
reagrupando no setor central, atrás do segundo anel da
muralha. Calculo que uns cinquenta no mínimo — murmura
ela.
Cinquenta. Tento engolir o medo. Digo a mim própria que
não há razão para ter medo. Há um exército entre nós e eles. E
ninguém é suficientemente estúpido para me tentar forçar a ir
a qualquer sítio onde não queira ir. Não agora, não com meses
de treino atrás de mim.
— Baixas?
— Uma centena de mortos da guarnição Prateada. A maior
parte dos feridos escaparam com os restantes para a floresta.
Provavelmente para Rocasta. E havia menos de um milhar na
cidade. Muitos tinham desertado para as casas rebeldes antes
do assalto de Cal.
— E quanto ao último relatório de Cal? — pergunta Farley
a Ada. — Aos desertores Prateados?
— Incluí isso nos meus cálculos. — Ela quase soa irritada.
Quase. Ada tem uma disposição mais calma do que qualquer
um de nós. — Setenta e oito estão retidos agora, sob a
proteção de Cal.
Ponho as mãos nos quadris, firmando o meu peso. — Há
uma diferença entre deserção e rendição. Eles não se querem
juntar a nós; apenas não querem acabar mortos. Sabem que
Cal mostrará misericórdia.
— Antes querias que ele os matasse? Que pusesse todos
contra nós? — respinga Farley, voltando-se para mim. Passado
um segundo dispensa o assunto com um gesto de mão. —
Ainda lá estão mais de quinhentos, prontos a regressar e
chacinar-nos a todos.
Ada ignora o nosso palavreado e mantém-se vigilante. Até
se ter juntado à Guarda Escarlate era criada doméstica de um
governador Prateado. Está habituada a bem pior que nós. —
Vejo Julian e Sara acima do Portão de Oração — diz.
Sinto um reconfortante aconchego. Quando Cal comunicou
via rádio não mencionou quaisquer baixas na sua equipa, mas
nada é sempre certo. Congratulo-me que Sara esteja bem.
Espreito o ameaçador Portão de Oração, procurando a entrada
negra e dourada na extremidade oriental das muralhas de
Corvium. Sobre os parapeitos, uma bandeira vermelha adeja
para trás e para diante, um difuso vislumbre de cor contra o
céu encoberto. Ada traduz. — Estão a fazer-nos sinal.
Passagem segura.
Olha de relance para Farley, aguardando a sua ordem. Com
o Coronel na cidade é ela a oficial aqui, e a sua palavra é lei.
Conquanto não dê indicação disso, apercebo-me de que deve
estar a pesar as suas opções. Temos de atravessar terreno
aberto para chegar aos portões. Poderia facilmente ser uma
cilada.
— Vês o Coronel?
Bom. Ela não confia num Prateado. Não com as nossas
vidas em jogo.
— Não — sopra Ada. Esquadrinha as muralhas de novo, os
seus olhos brilhantes avaliando cada bloco de pedra. Observo
os seus movimentos enquanto Farley espera, imóvel e austera.
— Cal está com eles.
— Muito bem — diz Farley de súbito, os seus olhos
lividamente azuis e resolutos. — Vamos sair daqui.
Sigo-a contra vontade. Por mais que odeie admitir, Cal não
é tipo para nos atraiçoar. Não fatalmente, pelo menos. Ele não
é o seu irmão. Encaro Ada nos olhos por sobre o ombro de
Farley. A outra sanguenovo inclina ligeiramente a cabeça
enquanto andamos.
Enfio os punhos cerrados nos bolsos. Se pareço uma
adolescente amuada, não me ralo. É o que sou: uma
adolescente amuada e assustada, capaz de matar com um olhar.
O medo consome-me. Medo da cidade — e medo de mim
própria.
Há meses que não uso a minha aptidão fora dos treinos,
desde que os biltres magnetrons fizeram cair o nosso jato do
céu. Mas lembro-me da sensação, de usar o silêncio como uma
arma. Na Prisão de Corros matei pessoas com ele. Pessoas
horríveis. Prateados que mantinham outros como eu
encurralados a morrer lentamente. E a lembrança ainda me
deixa doente. Senti os seus corações pararem. Senti as suas
mortes como se estivessem a acontecer a mim. Um tal poder é
coisa que me assusta. Faz-me perguntar no que me poderei
tornar. Penso em Mare, na forma como ela alternava entre
fúria violenta e embotado desprendimento. É esse o preço de
aptidões como as nossas? Temos de escolher — tornarmo-nos
vazios ou tornarmo-nos monstros?
Partimos em silêncio, todos hiperconscientes da nossa
precária posição. Destacamo-nos bem na neve fresca, seguindo
na peugada uns dos outros. Os sanguenovos na unidade de
Farley estão particularmente tensos. Uma das de Mare, Lory,
conduz-nos com a atenção de um sabujo, a sua cabeça virando
qual chicote de um lado para o outro. Os seus sentidos são
incrivelmente apurados, pelo que se houver algum ataque
iminente ela vê-lo-á, ouvi-lo-á, ou farejá-lo-á. Depois do
ataque à Prisão de Corros, depois de Mare ser capturada, ela
começou a pintar o cabelo de vermelho-sangue. Parece uma
ferida contra a neve e o céu plúmbeo. Fixo o meu olhar nas
suas omoplatas, pronta a fugir se ela minimamente hesitar.
Mesmo grávida, Farley logra ter um ar de comandante. Puxa
a espingarda das costas, empunha-a com ambas as mãos. Mas
não está tão alerta como os outros. Os olhos estão novamente
movediços, ora focados ora não. Sinto uma familiar pontada
de tristeza por ela.
— Vieste aqui com o Shade? — pergunto-lhe baixinho.
Ela vira bruscamente a cabeça na minha direção. — Porque
dizes isso?
— Para uma espia, por vezes és bastante fácil de decifrar.
Os dedos dela tamborilam no cano da espingarda. — Tal
como eu disse, o Shade é ainda a nossa principal fonte de
informação em Corvium. Eu dirigia a sua operação aqui. É
tudo.
— Claro, Farley.
Continuamos em silêncio. A nossa respiração enevoa-se no
ar e o frio faz-se sentir, tomando-me os dedos dos pés
primeiro. Em New Town tínhamos inverno, mas nunca como
este. Tem algo a ver com a poluição. E o calor das fábricas
fazia-nos suar no trabalho, mesmo no mais profundo inverno.
Farley é uma Lakelander de nascimento, mais adaptada ao
clima. Não parece dar pela neve nem pelo frio mordente. A
sua mente continua obviamente noutro lugar qualquer. Com
outra pessoa qualquer.
— Acho que é uma boa coisa não ter ido atrás do meu irmão
— resmungo em surdina no silêncio. Tanto para mim como
para ela. Outra coisa que dá que pensar. — Alegro-me que ele
não esteja aqui.
Ela olha-me de lado. Os seus olhos semicerram-se de
desconfiança. — Cameron Cole a admitir que estava errada
numa coisa?
— Posso fazê-lo. Não sou a Mare.
Outra pessoa porventura acharia isto uma coisa rude de se
dizer. Farley arreganha um sorriso em vez disso. — O Shade
também era teimoso. Traço de família.
Conto que o nome dele atue como âncora, arrebatando-lhe o
ímpeto. Em vez disso fá-la continuar a andar, um pé adiante do
outro. Uma palavra após outra. — Conheci-o a uns
quilómetros daqui. A minha missão era recrutar agentes
Whistle no mercado negro de Norta. Usar organizações já
estabelecidas para melhor facilitar a Guarda Escarlate. O
Whistle nas Stilts deu-me uma pista quanto a uns soldados
aqui, porventura dispostos a coordenar.
— Shade era um deles.
Ela assente, pensativa. — Foi destacado para Corvium com
as tropas de apoio. Ajudante de um oficial. Uma boa posição
para ele, ainda melhor para nós. Forneceu à Guarda Escarlate
quilómetros de informação, tudo canalizado através de mim.
Até que se tornou claro que não podia ficar mais tempo. Ia ser
transferido para outra legião. Alguém soube que ele tinha uma
aptidão e iam executá-lo por isso.
Eu nunca ouvira esta história. Duvido que muitos tenham
ouvido. Farley não é exatamente aberta com a sua história
pessoal. Porque ma conta agora, não posso dizer. Mas posso
ver que precisa de fazê-lo. Deixo-a falar, dando-lhe o que quer.
— E então quando a sua irmã… nunca o vi tão aterrorizado.
Assistimos à Prova da Rainha juntos. Vimo-la cair, vimo-la
incendiar-se de relâmpagos. Ele julgou que os Prateados iam
matá-la. Sabes o resto, depreendo. — Morde o lábio, olhando
ao longo do cano da espingarda. — Foi ideia dele. Já tínhamos
de tirá-lo do exército para protegê-lo, de modo que ele
falsificou o relatório da sua execução. Ele próprio ajudou com
a papelada. Depois desapareceu. Os Prateados estão-se nas
tintas para seguir o rasto de Vermelhos mortos. Claro, a
família dele importou-se. Essa parte abalou-o durante algum
tempo.
— Mas fê-lo, ainda assim. — Tento ser compreensiva, mas
não posso imaginar sujeitar a minha própria família a tal coisa,
por nada no mundo.
— Teve de fazê-lo. E… e serviu como uma boa motivação.
A Mare alistou-se depois de descobri-lo. Um Barrow por
outro.
— Então essa parte do discurso dela não era mentira. —
Penso no que Mare foi forçada a dizer, olhando
fulgurantemente através de uma câmara como se de um
pelotão de fuzilamento se tratasse. Perguntaram-me se me
queria vingar da sua morte. — Não é de admirar que ela tenha
distúrbios de personalidade. Ninguém diz à rapariga a verdade
a respeito de nada.
— Será um longo caminho de volta para ela — murmura
Farley.
— Para todos.
— E agora está nessa infernal viagem com o rei —
matraqueia Farley. Desbobina como uma máquina, a voz
ganhando ímpeto e força a cada segundo. O fantasma de Shade
desaparece. — Isso facilitará as coisas. Ainda é horrivelmente
difícil, claro, mas o nó afrouxou.
— Há algum plano a postos? Ela está mais perto de dia para
dia. Arborus, a Estrada de Ferro…
— Ontem estava em Rocasta.
O silêncio à nossa volta altera-se. Se o resto da nossa
unidade não estava antes à escuta, está certamente agora. Olho
para trás e cruzo o olhar com Ada. Os seus olhos de âmbar
líquido arregalam-se, e quase posso ver as engrenagens
girarem na sua mente sem falhas.
Farley insiste. — O rei visitou os soldados feridos
evacuados da primeira onda de ataque. Eu não sabia até
estarmos a meio caminho daqui. Se soubesse, talvez… —
sopra ela. — Bem, agora é tarde de mais para isso.
— O rei praticamente viaja com um exército — digo-lhe. —
Ela é guardada dia e noite. Nada havia que pudesses fazer,
pelo menos connosco apenas.
As faces ruborizam-se-lhe ainda assim, e não do frio. Os
seus dedos continuam a tamborilar ociosamente no cabo da
espingarda. — Provavelmente não — responde. —
Provavelmente não — repete mais brandamente, para se
convencer a si própria.
Corvium projeta uma sombra sobre nós e a temperatura cai
na semiobscuridade. Puxo a gola mais para cima, tentando
afundar-me por ela dentro. A monstruosidade de muralha
negra parece uivar para nós.
— Lá está. O Portão de Oração. — Farley aponta para uma
boca aberta de garras de marfim e dentes de ouro. Blocos de
Pedra Silenciosa debruam o arco, mas eu não posso senti-los.
Não me afetam. Para meu alívio, soldados Vermelhos estão de
guarda ao portão, assinalados por uniformes cor de ferrugem e
botas gastas. Avançamos, saindo da estrada nevada pela
mandíbula de Corvium dentro. Farley levanta os olhos para o
Portão de Oração quando passamos através dele, com olhos
arregalados, azuis e trémulos. Em surdina, oiço-a sussurrar
algo para si própria.
— Quando entras, reza para sair. Quando sais, reza para
nunca mais regressares.
Ainda que ninguém esteja à escuta, rezo também.
Cal está inclinado sobre uma secretária, os nós dos dedos
pressionados contra o tampo de madeira. A sua armadura jaz a
monte num canto, placas de couro negro descartadas para
mostrar a maciça solidez do mancebo por baixo. O suor cola-
lhe o cabelo negro à testa e pinta-lhe reluzentes fios de tensão
pelo pescoço. Não de calor, conquanto a sua aptidão aqueça a
sala melhor do que qualquer fogo. Não, isto é medo.
Vergonha. Pergunto-me quantos Prateados terá ele sido
forçado a matar. Não os suficientes, sussurra uma parte de
mim. Ainda assim, vê-lo, os horrores do cerco claramente
gravados no seu rosto, até a mim me dá motivo suficiente para
vacilar. Eu sei que isto não é fácil. Não pode ser.
Ele está de olhos fitos no vazio, os seus olhos de bronze
quais coruscantes orifícios. Não se mexe quando entro, no
rasto de Farley. Ela dirige-se ao Coronel, sentando-se diante
dele, com uma mão na têmpora, a outra alisando um mapa ou
qualquer tipo de esquema. Provavelmente de Corvium, a
julgar pela forma octogonal e os irradiantes anéis que devem
ser as muralhas.
Sinto Ada atrás de mim, hesitante quanto a juntar-se a nós.
Tenho de lhe dar uma cotovelada. Ela é melhor que ninguém
nisto, o seu precioso cérebro uma dádiva para a Guarda
Escarlate. Mas a formação de criada é difícil de quebrar.
— Força — murmuro, pondo-lhe a mão no pulso. A sua
pele não é tão escura como a minha, mas nas sombras
começamos todos a diluir-nos uns nos outros.
Ela responde com um ínfimo assentimento e um ainda mais
ínfimo sorriso. — Em que anel estão eles? No central?
— Na torre do núcleo — responde o Coronel. Aponta o
lugar correspondente no mapa. — Bem fortificada, mesmo ao
nível dos subterrâneos. Aprendi-o duramente.
Ada suspira. — Sim, o núcleo é construído para uma coisa
destas. Uma posição final, bem armada e aprovisionada. Duas
vezes mais bem fechada. E atulhada a transbordar com
cinquenta Prateados treinados. A contar com a entrada, bem
pode haver cinco vezes esse número lá dentro.
— Como aranhas num buraco — resmungo baixinho.
O Coronel zomba. — Talvez comecem a comer-se umas às
outras.
O esgar de Cal não passa despercebido. — Não enquanto
um inimigo comum martelar na porta. Nada une tanto os
Prateados como alguém para odiar. — Não levanta os olhos da
secretária, mantendo-os fixos na madeira. O significado é
claro. — Especialmente agora que toda a gente sabe que o rei
está perto. — O seu rosto escurece, qual nuvem de tempestade.
— Eles podem esperar.
Com um rosnido baixo, Farley termina o pensamento por
ele. — E nós não podemos.
— Se a isso ordenadas, as legiões do Caldeirão poderão
marchar em força para aqui numa questão de um dia. Menos
ainda se… motivadas. — Ada vacila à última palavra. Não
precisa de elaborar. Já posso ver o meu irmão, tecnicamente
libertado pelas leis de Maven, a ser conduzido por oficiais
Prateados, forçado a correr através da neve. Só para se lançar
contra os seus.
— Seguramente os Vermelhos juntar-se-iam a nós — digo,
pensando alto, nem que seja para combater as imagens na
minha cabeça. — Deixar que Maven envie os seus exércitos.
Apenas reforçará o nosso. Os soldados virar-se-ão como os
daqui fizeram.
— Ela poderia ter razão… — começa o Coronel, por uma
vez concordando comigo. Estranha sensação. Mas Farley
interrompe-o.
— Poderia. A guarnição em Corvium é agitada há meses,
incitando à sua devastação, forçada, provocada e levada a
eclodir nesta explosão. Não posso dizer o mesmo das legiões.
Ou da quantidade de Prateados que ele convencerá a alistarem-
se.
Ada concorda com ela, assentindo. — O Rei Maven foi
cauteloso com a narrativa de Corvium. Pinta tudo aqui como
terrorismo, não rebelião. Anarquia. Obra de uma Guarda
Escarlate sedenta de sangue e genocida. Os Vermelhos das
legiões, os Vermelhos do reino, não fazem ideia do que se
passa aqui.
Fervilhando, Farley pousa uma mão protetora no ventre. —
Já perdi que baste com ses e talvezes.
— Todos perdemos — diz Cal, em voz distante. Finalmente
afasta-se da secretária e vira-nos as costas. Dirige-se à janela
em largas passadas, olhando lá para fora, para uma cidade
ainda a arder.
O fumo paira no vento gelado, cobrindo o céu de negro.
Faz-me lembrar as fábricas. Estremeço só de pensar nelas. A
tatuagem no meu pescoço dá-me comichão, mas não coço com
os meus dedos tortos. Partidos vezes sem conta. Sara pediu-me
que mos deixasse consertar uma vez. Não deixei. Como a
tatuagem, como o fumo, lembram-me de onde venho e o que
ninguém mais deveria suportar.
— Suponho que não tenhas ideias para isto? — pergunta
Farley, tirando o mapa das mãos do pai. Olha de lado para o
príncipe exilado.
Cal encolhe os ombros largos, o movimento desenhando-se
em silhueta. — Demasiadas. Todas más. A menos que…
— Eu não os vou deixar sair daqui — dardeja o Coronel.
Soa irritado. Suponho que já tenham discutido isto antes. —
Maven está demasiado perto. Correrão para o seu lado e
regressarão vingativos, com mais guerreiros.
A pulseira cintilante no pulso de Cal lampeja, provocando
faíscas que lhe sobem pelo braço numa rápida explosão de
chamas vermelhas. — O Maven vem de qualquer maneira!
Você ouviu os relatórios. Já está em Rocasta e avançando para
oeste. Marcha para aqui numa parada, acenando e sorrindo
para ocultar que vem retomar Corvium. E fá-lo-á se vocês o
combaterem numa cidade destruída, de costas voltadas para
uma jaula de lobos! — Dá meia-volta para encarar o Coronel,
os ombros ainda em brasa. Habitualmente ele consegue
controlar-se o suficiente para poupar a roupa. Não agora. O
fumo agarra-se a ele, revelando buracos carbonizados na sua
camisa. — Uma batalha em duas frentes é suicídio.
— E que tal reféns? Queres dizer-me que não há ninguém
de valor naquela torre? — ladra-lhe o Coronel.
— Não para Maven. Já tem a única pessoa contra a qual
negociaria qualquer coisa.
— Portanto não podemos matá-los à fome, não podemos
libertá-los, não podemos negociar. — Farley conta as palavras
pelos dedos.
— E não podem matá-los a todos. — Bato com um dedo
nos lábios. Cal olha para mim, surpreendido. Eu encolho
simplesmente os ombros. — Se houvesse uma forma, se fosse
aceitável, o Coronel já o teria feito.
— Ada? — incita Farley brandamente. — Podes ver algo
que nós não tenhamos visto?
Os olhos dela lampejam de um lado para o outro,
esquadrinhando igualmente a planta e as suas memórias.
Números, estratégias, tudo à sua gigantesca disposição. O seu
silêncio não é conforto nenhum.
— Do que nós precisamos é daquele raio de vidente —
balbucio. Nunca conheci Jon, aquele que tornou possível Mare
encontrar-me e capturar-me. Mas vi-o bastas vezes nas
transmissões de Maven. — Obrigá-lo a fazer o trabalho por
nós.
— Se ele quisesse ajudar estaria aqui. Mas é um maldito
fantasma ao vento — amaldiçoa Cal. — Nem sequer teve a
decência de levar Mare com ele quando escapou.
— De nada vale determo-nos no que não podemos mudar.
— Farley raspa a bota contra o chão frio. — Então a força
bruta é a única coisa que nos resta? Derrubar a torre pedra a
pedra? Pagar por cada centímetro um galão de sangue?
Antes que Cal possa explodir de novo, a porta abre-se de
rompante. Julian e Sara entram quase aos tropeções, ambos de
olhos arregalados e ruborizados de prata. O Coronel põe-se em
pé de um salto, surpreendido e à defesa. Nenhum de nós é tolo
no que respeita aos Prateados. O medo que lhes temos está-nos
entranhado nos ossos, na massa do sangue.
— O que foi? — pergunta, o seu olho vermelho um clarão
escarlate. — Já acabaram o interrogatório tão depressa?
Julian eriça-se à palavra interrogatório, desdenhoso. — As
minhas perguntas são uma mercê comparadas com o que você
faria.
— Bá — troça Farley. Mira Cal e ele muda de posição,
embaraçado sob o seu olhar. — Não me falem em mercês
prateadas.
Pouco me ralo com Julian e ainda menos confio nele, mas a
expressão na cara de Sara é alarmante. Fita-me, o seu rosto
cinzento pleno de piedade e medo. — O que foi? — pergunto-
lhe, embora saiba que só Julian pode responder. Nem mesmo
em Corvium descobriu ela outro curador de pele disposto a
restituir-lhe a língua. Todos eles devem estar na torre do
núcleo, ou mortos.
— O General Macanthos supervisiona o comando de
treinamento — diz Julian. Tal como Sara, olha-me de relance,
hesitante. A pulsação troa-me aos ouvidos. Seja o que for que
ele está prestes a dizer, não me vai agradar. — Antes do cerco,
parte de uma legião foi convocada para mais instruções. Não
estavam à altura de lidar com as trincheiras. Mesmo para
Vermelhos.
O meu afluxo de sangue desata a bramir-me aos ouvidos,
num pé de vento que quase paralisa Julian. Sinto Ada pôr-se
ao meu lado, o seu ombro roçando o meu. Ela sabe onde isto
vai dar. E eu também.
— Deitámos mão às listas. Umas centenas de crianças da
Legião Adaga. Chamadas de volta para Corvium. Não
libertadas, mesmo após o decreto de Maven. Demos conta da
maioria, mas algumas… — Julian força-se a continuar,
conquanto tropece nas palavras. — Foram feitas reféns. No
núcleo, com os restantes oficiais Prateados.
Espalmo uma mão na fria parede do escritório, em busca de
apoio. O meu silêncio implora, emergindo à flor da pele,
querendo expandir-se e arrastar consigo tudo na sala. Eu
própria tenho de dizer as palavras, pois aparentemente Julian
não o fará. — O meu irmão está lá.
O safado do Prateado hesita, protelando. Finalmente fala. —
Julgamos que sim.
O rugido do meu coração disparado sobrepõe-se às vozes
deles. Nada oiço ao correr da sala para fora, esquivando-me às
suas mãos, atravessando disparada a central administrativa. Se
alguém me segue não sei. Não quero saber.
A única coisa na minha mente é Morrey. Morrey e os não
tarda cinquenta cadáveres que se interpõem entre nós.
Eu não sou Mare Barrow. Não darei o meu irmão a isto.
O meu silêncio enrosca-se à minha volta, pesado como
fumo, suave como penas, gotejando de cada poro como suor.
Não é uma coisa física. Não abaterá o núcleo por mim. A
minha aptidão é para carne e carne apenas. Tenho vindo a
praticar. Assusta-me, mas preciso dela. Como um furacão, o
silêncio redemoinha à minha volta, rodeando o olho de uma
tempestade crescente.
Não sei onde vou, mas é fácil orientarmo-nos em Corvium.
E o núcleo fala por si. A cidade é ordenada, bem planeada,
uma engrenagem gigantesca. Isso entendo eu. Os meus pés
batem com força no pavimento, impelindo-me através da ala
exterior. À minha esquerda, as elevadas muralhas de Corvium
estendem-se para o céu. Para a direita, casernas, escritórios,
locais de treino amontoam-se contra o segundo anel de
muralha de granito. Tenho de descobrir o portão seguinte,
achar maneira de entrar lá. O meu lenço carmesim é
camuflagem suficiente. Pareço da Guarda Escarlate. Bem
posso ser da Guarda Escarlate. Os soldados Vermelhos
deixam-me correr, demasiado distraídos ou demasiado
excitados ou demasiado ocupados para se ralarem com mais
um caprichoso rebelde irrompendo através deles. Derrubaram
os seus senhores. Eu sou praticamente invisível para eles.
Mas não para Sua Maldita Alteza Real, Tiberias Calore.
Ele agarra-me o braço, fazendo-me rodopiar. Não fosse o
meu silêncio a pulsar à nossa volta, sei que ele estaria em
chamas. O príncipe é esperto, usando o nosso ímpeto para me
lançar para trás — e manter-se fora das minhas mãos mortais.
— Cameron! — berra ele, uma mão estendida. Os seus
dedos lampejam, as chamas neles arquejantes com falta de ar.
Quando dá outro passo atrás, plantando-se firmemente no meu
caminho, elas incendeiam-se com mais força, lambendo-lhe o
cotovelo. Já tem a armadura de volta. Placas interligadas de
couro e aço engrossam-lhe a silhueta. — Cameron, morrerás
se fores à torre sozinha. Eles far-te-ão em pedaços.
— Por que te ralas? — rosno-lhe. Os meus ossos paralisam-
se, as articulações retesadas, e eu faço um pouco mais de
força. O silêncio alcança-o. O seu fogo apaga-se e a sua
garganta sobe e desce. Ele sente-o. Estou a magoá-lo. Aguenta
aí. Recorda a tua constante. Nem de mais, nem de menos.
Faço um pouco mais de força e ele dá outro passo atrás, outro
passo na direção em que eu tenho de ir. O segundo portão
desafia-me por sobre o seu ombro. — Estou aqui por uma
razão. — Não quero lutar com ele. Só quero que se desvie para
o lado. — Não deixarei que a tua gente o mate.
— Eu sei! — ruge ele, numa voz gutural. Pergunto-me se
todos os seus congéneres de fogo terão olhos como os dele.
Olhos que queimam e cauterizam. — Eu sei que vais entrar ali.
Também eu entraria se… também eu entraria.
— Então deixa-me passar.
Ele firma o maxilar, uma imagem de determinação. Uma
montanha. Mesmo agora, com a roupa queimada, cheio de
contusões, o corpo um frangalho e a mente em ruínas, ele
parece um rei. Cal é exatamente o tipo de pessoa que jamais
ajoelhará. Não está no seu sangue. Não foi feito assim.
Mas eu fui vergada demasiadas vezes para o fazer de novo.
— Cal, deixa-me passar. Deixa-me ir buscá-lo. — Soa como
uma súplica.
Desta vez ele dá um passo em frente. E as chamas nos seus
dedos tornam-se azuis, tão quentes que chamuscam o ar. Mas
ainda assim vacilam ante a minha aptidão, lutando para
respirar, lutando para arder. Eu poderia extingui-las, se
quisesse. Podia agarrar em tudo o que ele é e desfazê-lo, matá-
lo, sentir cada centímetro dele morrer. Parte de mim quer fazê-
lo. Uma parte idiota, governada pela raiva e fúria e vingança
cega. Deixo-a alimentar a minha aptidão, deixo-a fortalecer-
me, mas não a deixo controlar-me. Tal como Sara ensinou.
Ténue linha que pisar.
Os olhos dele semicerram-se, como se soubesse no que
estou a pensar, pelo que fico surpreendida quando ele profere
as palavras. Quase não as oiço com o barulho acelerado do
meu coração.
— Deixa-me ajudar.
Antes da Guarda Escarlate pensava que os aliados operavam
em exata sintonia. Máquinas emparelhadas, trabalhando para o
mesmo objetivo. Que ingenuidade a minha. Cal e eu estamos
aparentemente do mesmo lado, mas não queremos em absoluto
a mesma coisa.
Ele é aberto com o seu plano. Detalhando-o plenamente. O
suficiente para que me aperceba como tenciona usar a minha
fúria, usar o meu irmão, para chegar aos seus fins. Distrair os
guardas, entrar na torre do núcleo, usar o teu silêncio como
escudo, e fazer os Prateados entregarem os seus reféns a troco
de liberdade. Julian abrirá os portões; eu próprio os
escoltarei. Sem mais derramamento de sangue. Sem mais
cerco. Corvium será totalmente nossa.
Um bom plano. Só que a guarnição Prateada será libertada,
deixada ir juntar-se ao exército de Maven.
Cresci numa cidade de barracas, mas não sou estúpida. E
não sou certamente uma rapariga na Lua, prestes a desmaiar
pelo maxilar anguloso de Cal e também pelo seu retorcido
sorriso. O seu encanto tem limites. Ele está habituado a
enfeitiçar a Barrow, não a mim.
Se ao menos o príncipe tivesse um pouco mais de
têmpera… Cal é demasiado brando de coração para o seu bem.
Não deixará os soldados Prateados à inexistente misericórdia
do Coronel, mesmo que a única alternativa seja deixá-los ir só
para nos combaterem de novo.
— De quanto tempo precisas? — pergunto. Mentir-lhe na
cara não é difícil. Não quando sei que ele está a tentar
enganar-me também.
Ele arreganha um sorriso. Pensa que me convenceu.
Perfeito. — Umas horas para alinhar as coisas. Julian, Sara…
— Ótimo. Estarei na caserna exterior quando estiveres
pronto. — Viro costas, forçando um semblante de olhar
pensativo à distância. Levanta-se vento, agitando-me as
tranças. Parece mais quente, não devido a Cal mas ao sol. A
primavera não tarda aí. — Preciso de aclarar a cabeça.
O príncipe assente, compreensivo. Dá-me com uma fogosa
mão no ombro, apertando-o. Em resposta forço um sorriso que
mais me parece uma careta. Mal viro costas deixo-a cair. Ele
fica para trás, os seus olhos-coruscantes orifícios chamejantes
nas minhas costas até que a suave curva do anel muralhado me
faz desaparecer de vista. Apesar da temperatura mais alta, um
arrepio percorre-me a espinha. Não posso deixar Cal fazer isto.
Mas não vou deixar Morrey passar mais um segundo naquela
torre.
Lá adiante, Farley marcha na minha direção, movendo-se o
mais depressa que o corpo lhe permite. O seu rosto ensombra-
se quando me avista, o sobrolho franzindo-se-lhe de tal modo
que toda a cara se põe cor de beterraba. Destaca-se-lhe a
perlada cicatriz branca ao canto da boca ainda mais do que é
habitual. No todo, uma visão intimidante.
— Cole — dardeja ela, a sua voz tão severa como a do pai.
— Estava com medo que fosses fazer alguma coisa mesmo
estúpida.
— Eu não — replico, falando baixinho. Ela empertiga a
cabeça e eu faço-lhe sinal para me seguir.
Uma vez seguras dentro de uma arrecadação, conto-lhe tudo
o mais rapidamente que posso. Ela abespinha-se, como se o
plano de Cal fosse apenas uma arrelia e não um completo
perigo para todos nós.
— Ele está a pôr toda a cidade em risco — termino,
exasperada. — E se vai para a frente com isto…
— Eu sei. Mas já te disse antes: Montfort e o Comando
querem o Cal connosco, quase a todo o custo. Ele é
praticamente à prova de bala. Outro qualquer seria fuzilado
por insurreição. — Farley arranha o couro cabeludo com
ambas as mãos, arrancando fios do cabelo louro. — Eu não
quero fazê-lo, mas um soldado que não tem incentivo para
acatar ordens e acalenta a sua própria agenda não é alguém
que eu queira ter pelas costas.
— O Comando. — Odeio a palavra e seja que diabo for que
representa. — Começo a pensar que porventura não terão o
nosso melhor interesse a animá-los.
Farley não discorda. — É difícil pormos toda a nossa fé
neles. Mas eles veem o que nós não vemos, o que não
podemos ver. E agora… — Expira fundo. Os seus olhos
fixam-se no chão qual foco de laser. — Ouvi dizer que
Montfort está prestes a envolver-se muito mais.
— O que significa isso?
— Não sei bem ao certo.
Troço. — Não tens o quadro todo? Estou chocada.
O olhar fulgurante que ela me lança poderia cortar osso. —
O sistema não é perfeito, mas protege-nos. Se vais amuar, não
vou ajudar.
— Oh, agora já tens ideias?
Ela abre-se num sorriso sombrio.
— Algumas.
Harrick não perdeu os seus tremeliques.
Baloiça a cabeça para cima e para baixo enquanto Farley
conta o nosso plano num sibilo, movendo rapidamente os
lábios. Ela não irá entrar na torre connosco, mas assegurar-se-á
de que poderemos efetivamente lá entrar.
Harrick parece receoso. Não é um guerreiro. Não foi a
Corros e tão-pouco participou na incursão a Corvium, ainda
que as suas ilusões tivessem ajudado imensamente. Ele chegou
com os outros, no rasto da capitã grávida. Algo lhe aconteceu
nos tempos em que ainda tínhamos Mare connosco, num
recrutamento de sanguenovos que deu para o torto. Desde
então ficou fora da refrega, à defesa e não imerso na batalha.
Invejo-o. Ele não sabe qual é a sensação de matar alguém.
— Quantos reféns? — pergunta, em voz trémula como os
seus dedos. Um rubor vermelho tinge-lhe as faces, alastrando
sob a pele pálida do inverno.
— Pelo menos vinte — respondo o mais depressa que
posso. — Julgamos que o meu irmão é um deles.
— Com pelo menos cinquenta Prateados de guarda —
acrescenta Farley. Ela não encobre o perigo. Não o ludibriará
para fazer isto.
— Oh! — balbucia. — Oh, céus.
Farley assente.— É contigo, claro. Podemos encontrar
outras maneiras.
— Mas nenhuma com menos probabilidades de um banho
de sangue.
— É verdade. As tuas ilusões… — insisto, mas ele ergue
uma mão trémula. Pergunto-me se a sua aptidão tremerá como
ele.
A sua boca abre-se, mas não saem quaisquer palavras.
Aguardo em pulgas, implorando-lhe com cada fibra do meu
ser. Ele tem de ver quão importante isto é. Tem mesmo.
— Muito bem.
Tenho de me refrear para não festejar. Este é um bom passo,
mas não a vitória, e não posso perder isso de vista até Morrey
estar a salvo. — Obrigada. — Aperto-lhe as mãos, deixando-
as tremer nas minhas. — Muito obrigada.
Ele pestaneja rapidamente, os olhos castanhos sustendo os
meus. — Não me agradeças até estar acabado.
— Não é verdade? — resmunga Farley em surdina. Tenta
não parecer sombria, por nós. O seu plano é apressado, mas
Cal está a forçar-nos a isso. — Muito bem, sigam-me — diz.
— Isto vai ser rápido, silencioso e, com um bocadinho de
sorte, limpo.
Seguimos no seu encalço enquanto ela se esquiva a soldados
da Guarda Escarlate bem como aos Vermelhos que desertam
para o nosso lado. Muitos levam a mão à testa em deferência
para com ela. É uma figura bem conhecida na organização e
nós dependemos do nível de respeito que ela inspira. Puxo as
tranças de caminho, apertando-as o melhor que posso. O
arrepelar produz uma dor boa. Mantém-me perspicaz. E dá às
minhas mãos algo que fazer. Ou de contrário poderia ficar tão
tremeliques como Harrick.
Com Farley a conduzir-nos, ninguém nos detém nos portões
do anel e marchamos para o centro de Corvium, onde assoma
a torre do núcleo. Granito negro irrompe para o céu, salpicado
de janelas e varandas. Estão todas bem fechadas, enquanto
soldados rodeiam a base às dezenas, mantendo vigilância
sobre as duas entradas fortificadas para a torre. Ordens do
Coronel, aposto. Ele não perdeu tempo a duplicar a guarda
depois de constatar que eu queria entrar lá dentro — e que Cal
quer os Prateados cá fora. A capitã não nos conduz até à torre,
mas faz-nos passar por ela, até uma das estruturas edificadas
contra a muralha do anel central. Tal como o resto da cidade, é
de ouro, ferro e pedra negra, ensombrada mesmo à luz do dia.
O coração martela-me, mais depressa a cada passo direito à
escuridão de uma das muitas prisões dispersas por Corvium.
Conforme planeado, Farley conduz-nos por uma escada
abaixo, e descemos para o piso das celas. A minha pele
arrepia-se à vista de grades, as paredes de pedra cerosas à luz
difusa de muito poucas lâmpadas. Pelo menos as celas estão
vazias. Os Prateados desertores de Cal estão lá em cima, no
Portão de Oração, confinados à sala diretamente acima de
arcos de Pedra Silenciosa, onde as suas aptidões são
inexistentes.
— Eu distrairei os guardas de nível inferior enquanto o
Harrick vos faz passar aos dois — diz ela baixinho, tentando
evitar que a voz ressoe. Farley passa-me suavemente duas
chaves. — A de ferro primeiro. — Indica a grosseira chave de
metal, tão grande como o meu punho, depois a mais delicada e
brilhante com dentes afiados. — A de prata em segundo lugar.
Meto-as em bolsos separados, bem à mão. — Entendido.
— Eu ainda não consigo abafar tão bem o som como a vista,
por isso temos de ser o mais silenciosos possível — murmura
Harrick. Dá-me um toque no braço e acerta o passo com o
meu. — Mantém-te próxima. Deixa-me manter a ilusão o mais
pequena que posso durante o maior tempo possível.
Assinto, entendendo. Harrick precisa de poupar forças para
os reféns.
As celas serpenteiam cada vez mais fundo no solo por baixo
de Corvium. O ar fica mais frio e húmido a cada minuto, até a
minha respiração formar uma nuvem. Quando brilha uma luz
ao virar de uma esquina, não sinto qualquer conforto. Isto é o
mais longe que Farley vai.
Ela faz silenciosamente um gesto, acenando-nos. Encosto-
me mais a Harrick. Cá está. Sinto-me assolada de excitação e
medo. Aqui vou eu, Morrey.
O meu irmão está perto, rodeado de gente capaz de matá-lo.
Não tenho tempo para me ralar se me matarão a mim.
Algo oscila ante a minha visão, caindo como uma cortina. A
ilusão. Harrick escora-me contra o seu peito e caminhamos
juntos, andando a compasso. Podemos ver tudo
suficientemente bem, mas quando Farley olha para trás a
confirmar, os seus olhos buscam inquietos, de um lado para o
outro. Não consegue ver-nos. Nem os Guardas ao virar da
esquina.
— Tudo bem aqui em baixo? — grasna ela, pisando na
pedra bem mais ruidosamente do que seria necessário. Harrick
e eu seguimo-la a uma distância segura e viramos para a
passagem, dando com seis bem armados soldados com lenços
vermelhos e equipamento tático. Estão postados à largura do
estreito corredor, ombro a ombro, de pés bem fincados.
Põem-se em sentido na presença de Farley. Um deles, um
homem corpulento com o pescoço mais grosso que a minha
coxa, dirige-se a ela em nome dos restantes. — Sim, Capitã.
Sinal algum de movimento. Se os Prateados tencionam tentar
escapar, não será pelos túneis. Nem eles são assim tão idiotas.
Farley cerra o maxilar. — Bom. Mantenham os olhos… oh!
Encolhendo-se, dobra-se pela cintura, apoiando-se com uma
mão numa das paredes negras retintas. A outra agarra o ventre.
O seu rosto franze-se de dor.
Os Guardas são lestos a ajudá-la, três saltando para o seu
lado num instante. Deixam uma abertura na sua formação bem
maior do que a necessária. Harrick e eu avançamos
rapidamente, deslizando ao longo da parede oposta para
alcançar a porta bem fechada onde acaba o corredor. Farley
olha para a porta quando se ajoelha, ainda fingindo um
espasmo ou algo pior. A ilusão à minha volta alastra um pouco
mais, indicando a concentração de Harrick. Ele não está só a
esconder-nos agora, mas a uma porta abrindo-se escancarada
atrás de meia dúzia de soldados com a missão de protegê-la.
Farley solta um latido quando enfio a chave de ferro na
fechadura, fazendo girar o mecanismo. Continua com o
alarido, os seus silvos de desconforto e gritos de dor
alternando-se a ritmo constante para os distrair de quaisquer
chiares de gonzos. Por sorte, a porta está bem oleada. Quando
se abre ninguém a pode ver, e ninguém a ouve.
Fecho-a devagar, evitando o bater de ferro no granito. A luz
desaparece aos poucos, até que ficamos numa escuridão quase
de breu. Nem mesmo Farley ou o alvoroço dos soldados nos
segue, suficientemente abafados pela porta fechada.
— Vamos — digo, dando-lhe o braço e bem encostada a ele.
Um, dois, três, quatro… Conto os passos no escuro, uma
mão deslizando ao longo da parede gelada.
Sinto uma descarga de adrenalina quando alcançamos a
segunda porta, agora diretamente abaixo da torre do núcleo.
Não tive tempo suficiente para memorizar a sua estrutura, mas
sei o básico. O bastante para chegar aos reféns e fazê-los sair
diretamente para a segurança da ala central. Sem reféns, os
Prateados nada terão para negociar. Terão de submeter-se.
Apalpando a porta, procuro a buraco da fechadura. É
pequeno, e levo umas boas raspadelas até enfiar a chave no
sítio. — Aqui vamos nós — murmuro. Um aviso para Harrick
e para mim mesma.
Quando abro devagar caminho para dentro da torre,
apercebo-me de que esta pode ser a última coisa que faço.
Mesmo com a minha aptidão e a de Harrick, não estamos à
altura de cinquenta Prateados. Morreremos se isto correr mal.
E os reféns, já sujeitos a tantos horrores, provavelmente
morrerão também.
Não deixarei que isso aconteça. Não posso.
A câmara adjacente é tão escura como o túnel, mas mais
quente. A torre é bem estanque contra os elementos, tal como
Farley disse. Harrick vem colado atrás de mim e fechamos
juntos a porta. A mão dele roça a minha. Os tremeliques
pararam. Bom.
Deveria haver uma escada… sim. Dou com os dedos do pé
contra a base de um degrau. Continuando a agarrar o pulso de
Harrick, conduzo-nos lá para cima, na direção da luz fraca mas
cada vez mais forte. Dois lanços para cima, tal como os dois
para baixo que percorremos nas celas da prisão.
Murmúrios ressoam nas paredes, suficientemente profundos
para se ouvirem mas demasiado abafados para se decifrarem.
Vozes ansiosas, argumentos sussurrados. Pestanejo
rapidamente quando a escuridão acaba e chegamos ao piso
térreo da torre, as nossas cabeças assomando das escadas. Uma
luz quente rodeia-nos, iluminando o poço circular da escada
serpenteando pela elevada câmara central acima. A espinha
dorsal da torre. Portas ramificam-se de vários patamares, cada
qual fechada a sete chaves. O meu coração bate a ritmo
desenfreado, tão alto que julgo que os Prateados o ouvirão.
Dois deles patrulham o poço da escada, tensos e a postos
para um assalto. Mas nós não somos soldados nem a Guarda
Escarlate. As suas figuras ondulam ligeiramente, como a
superfície da água acabada de agitar. As ilusões de Harrick
estão de volta, escudando-nos a ambos de olhos hostis.
Movemo-nos em simultâneo, seguindo as vozes. Mal
consigo respirar quando subimos os degraus, dirigindo-nos
para a câmara central uns três pisos mais acima. No esquema
de Farley, ela expandia-se à largura da torre, ocupando um
piso inteiro. É onde estarão os reféns e o grosso dos Prateados
que aguentam à espera do resgate de Maven ou da
misericórdia de Cal.
Os homens-patrulha Prateados são bem musculados.
Strongarms. Ambos têm rostos cinzentos de pedra e braços do
tamanho de troncos de árvore. Não me podem partir em duas
se eu usar o meu silêncio. Mas a minha aptidão não tem efeito
em armas, e ambos as têm com fartura. Pistolas duplas, a par
de espingardas a tiracolo. A torre está bem provida para um
cerco, e calculo que isso signifique que eles têm mais que
munições suficientes para se aguentarem.
Um strongarm desce a escada quando nos aproximamos,
com passos pesados. Agradeço a qualquer que fosse o idiota
Prateado que o pôs de vigilância. A sua aptidão é força bruta,
nada sensorial. Mas certamente sentir-nos-ia se nele
embatêssemos.
Deslizamos por ele devagarinho, de costas encostadas à
parede exterior da torre. Ele passa sem sequer um sopro de
incerteza, o seu foco noutro lado.
O outro strongarm é mais difícil de contornar. Está
reclinado contra uma porta, as longas pernas afastadas diante
dele. Elas quase bloqueiam os degraus por completo,
forçando-me e a Harrick para o ponto mais longínquo das
escadas. Dou graças pela minha altura. Permite-me passar por
cima dele sem incidentes. Harrick não é tão gracioso. Os seus
tremeliques voltam a decuplicar quando dá um passo sobre os
degraus, tentando não emitir um som.
Cerrando os dentes, deixo que o silêncio se acumule
debaixo da minha pele. Pergunto-me se poderei matar estes
dois homens antes que deem o alarme. Já me sinto doente com
a ideia.
Mas então Harrick mergulha em frente, o seu pé assentando
no degrau seguinte. Não faz muito barulho, mas o bastante
para despertar o Prateado. Ele olha de um lado para o outro e
eu quedo-me paralisada, agarrando o braço estendido de
Harrick. O terror aperta-me a garganta, implorando por gritar.
Quando ele vira costas, olhando lá para baixo para o seu
camarada, dou um toque a Harrick.
— Lykos, ouviste alguma coisa? — grita o strongarm lá
para baixo.
— Coisa nenhuma — responde o outro.
Cada palavra cobre os nossos passos disparados,
permitindo-nos alcançar o topo das escadas e a porta
entreaberta. Solto o mais silencioso suspiro de alívio que se
possa imaginar. As minhas mãos estão a tremer também.
Lá dentro, vozes discutem. — Temos de nos render — diz
alguém.
Latidos de oposição soam em resposta, abafando a nossa
entrada. Deslizamos lá para dentro como ratos e damos
connosco numa sala atulhada de gatos esfomeados. Oficiais
Prateados aglomeram-se ao longo das paredes, a maior parte
deles feridos. O cheiro a sangue é avassalador. Gemidos de dor
permeiam as muitas discussões que atravessam a câmara.
Oficiais gritam entre si, os seus rostos pálidos de medo, aflição
e agonia. Vários dos feridos parecem estar a morrer. Sou
acometida de vómitos à vista e fedor de homens e mulheres
com todo o tipo de ferimentos. Não há curadores aqui,
constato. Estas feridas Prateadas não desaparecerão com um
gesto de mão.
Mesmo assim, não sou feita de gelo ou de pedra. Os mais
gravemente feridos estão alinhados contra a parede exterior
abaulada, apenas a uns metros dos meus pés. O mais próximo
é uma mulher, o seu rosto retalhado de golpes. Sangue
prateado forma uma poça sob as suas mãos enquanto ela tenta
em vão manter as tripas dentro do corpo. A sua boca abre-se e
fecha-se, qual peixe moribundo arquejando com falta de ar. A
sua dor é demasiado profunda para divagações desconexas ou
gritos. Engulo com força. Ocorre-me um estranho pensamento:
Eu podia acabar com o sofrimento dela, se quisesse. Podia
estender uma mão de silêncio e ajudá-la a ir-se em paz.
Só a ideia é suficiente para provocar um vómito, e tenho de
virar costas.
— A rendição não é uma opção. A Guarda Escarlate matar-
nos-á, ou pior…?
— Pior? — gagueja um dos oficiais deitados no chão, com
o corpo cheio de contusões e ligaduras. — Olha à tua volta,
Chyron!
Olho de relance em redor, ousando ter esperança. Se eles
continuarem aos berros uns com os outros, isto será muito
mais fácil. Do lado de lá da sala, avisto-os. Todos amontoados,
de peles rosadas e castanhas, sangue Vermelho, estão nada
menos que vinte adolescentes de quinze anos. Só o medo me
mantém enraizada no lugar, separada de tudo o que quero por
uma extensão de mortais, iradas e assassinas máquinas.
Morrey. A segundos. A centímetros.
Atravessamos a sala tão cuidadosamente como subimos as
escadas e duas vezes mais devagar. Os Prateados com menos
ferimentos vagueiam por ali, assistindo os feridos mais graves
ou andando para espantar os nervos. Eu nunca vi Prateados
assim. Tão humanos. Uma oficial de idade mais avançada com
um arraial de distintivos pega na mão de um jovem, talvez
com dezoito anos. O seu rosto está branco como osso,
exangue, e pestaneja calmamente para o teto, à espera de
morrer. O corpo ao lado dele já lá está. Reprimo um arquejo,
forçando-me a respirar suave e silenciosamente. Mesmo com
tantas distrações, não vou arriscar.
— Diz à minha mãe que a amo — murmura um dos
moribundos.
Outro quase cadáver chama por um homem que não está
aqui, gritando o seu nome.
A morte assoma como uma nuvem. Ensombra-me a mim
também. Eu podia morrer aqui, como os restantes. Se o
Harrick se cansar, se eu pisar onde não devo. Tento ignorar
tudo além dos meus dois pés e do objetivo à minha frente. Mas
quanto mais longe vou na sala, mais difícil isso é. O chão
flutua diante dos meus olhos e não da ilusão de Harrick. Estou
a… estou a chorar? Por eles?
Zangada, enxugo as lágrimas antes que possam cair e deixar
rasto. Por mais que saiba odiar esta gente, não o consigo neste
momento. Toda a fúria que senti há uma hora se foi,
substituída por uma estranha piedade.
Os reféns estão agora suficientemente próximos para que
lhes toque, e uma silhueta é tão familiar como a minha própria
cara. Cabelo negro encaracolado, pele escura como noite
cerrada, membros desengonçados, mãos grandes com dedos
tortos. O mais rasgado, mais luminoso sorriso que alguma vez
vi, conquanto longe, muito longe neste preciso momento. Se
pudesse iria direita a Morrey e não o largaria mais. Em vez
disso insinuo-me por trás e devagarinho, agachada à cautela
até estar mesmo junto ao seu ouvido. Espero
desesperadamente que ele não se sobressalte.
— Morrey, é a Cameron.
O seu corpo é sacudido com choque, mas não emite um
som.
— Estou com um sanguenovo; ele pode tornar-nos
invisíveis. Vou tirar-te daqui, mas terás de fazer exatamente o
que eu disser.
Ele vira a cabeça, um tudo-nada, os olhos esbugalhados de
medo. Tem os olhos da nossa mãe, negros como kohl e
pestanudos. Resisto ao impulso de abraçá-lo. Lentamente, ele
abana a cabeça para trás e para diante.
— Sim. Eu posso fazê-lo — sopro-lhe. — Conta aos outros
o que te disse. Sê discreto. Não deixes que os Prateados vejam.
Fá-lo, Morrey.
Após mais um longo momento ele cerra os dentes e anui.
Não tarda muito que o conhecimento da nossa presença
alastre através deles. Ninguém o questiona. Não se dão ao luxo
de fazê-lo, não aqui, no bucho da besta.
— O que estás prestes a ver não é real.
Faço um gesto a Harrick, que assente. Está pronto.
Lentamente, pomo-nos de joelhos, baixando-nos para nos
misturarmos com eles. Quando a ilusão que ele exerce sobre
nós se levantar, os Prateados não darão por nós a princípio.
Distraídos. Esperemos.
A minha mensagem propaga-se rapidamente. Os reféns
ficam tensos. Embora tenham a mesma idade que eu, parecem
mais velhos, desgastados pelos meses de treino para
combaterem e depois passados numa trincheira. Mesmo
Morrey, embora pareça mais bem alimentado do que alguma
vez foi em casa. Ainda invisível aos seus olhos, estendo o
braço e tento dar-lhe a mão. Os seus dedos cerram-se sobre os
meus, apertando com força. E a ilusão que nos torna invisíveis
desce. Mais dois corpos juntam-se ao círculo de reféns. Os
outros pestanejam para nós, lutando para disfarçar a surpresa.
— Aqui vamos nós — murmura Harrick.
Atrás de nós, os Prateados continuam a discutir à conta dos
mortos e moribundos. Não dispensam um pensamento para os
reféns.
Harrick semicerra os olhos, focando-se na parede abaulada
da torre à nossa direita. Respira pesadamente, o ar zunindo-lhe
através do nariz e da boca para fora. Reunindo forças. Preparo-
me para o golpe, mesmo sabendo que ele não existe.
De súbito a parede explode para dentro numa nuvem de
fogo e pedra, expondo a torre ao céu. Os Prateados
estremecem, fugindo precipitadamente do que julgam ser um
ataque. Jatos aéreos passam ruidosamente, investindo através
de falsas nuvens. Pestanejo, não acreditando nos meus olhos.
Não deveria acreditar nos meus olhos. Isto não é real. Mas
parece espantosamente, impossivelmente real.
Não que tenha tempo para olhar embasbacada.
Harrick e eu pomo-nos em pé de um salto, arrebanhando os
outros connosco. Corremos disparados através do fogo, as
chamas suficientemente próximas para nos queimarem.
Encolho-me, embora sabendo que não é fogo nenhum. O fogo
é distração bastante, sobressaltando os Prateados de modo a
que possamos debandar porta fora para as escadas.
Empurro, conduzindo o bando, enquanto Harrick vem à
retaguarda. Ele gesticula com os braços qual bailarino, tecendo
ilusões do nada. Fogo, fumo, outra carga de projéteis. Tudo
isso impede os Prateados de nos perseguirem, encolhendo-se
ante o desenrolar de imagens. De mim irradia silêncio, uma
esfera de mortal poder para derrubar os dois vigias Prateados.
Morrey vem colado aos meus calcanhares, quase me fazendo
tropeçar, mas agarra-me o braço, impedindo-me de cair pelo
corrimão.
— Alto! — O primeiro strongarm investe contra mim, de
cabeça baixa como um touro. Pulso-lhe silêncio pelo corpo
dentro, lançando-lhe a minha aptidão pela garganta abaixo. Ele
cambaleia, sentindo todo o peso do meu poder. Eu sinto-o
também, a morte rolando-lhe através da carne. Tenho de matá-
lo. E depressa. A força da minha necessidade faz-lhe jorrar
sangue da boca e dos olhos à medida que pedaços do seu
corpo morrem, uns órgãos atrás de outros. Sufoco-o de toda a
vida mais velozmente do que alguma vez matei alguém antes.
O outro strongarm morre ainda mais depressa. Quando o
atinjo com outra exaustiva pancada de silêncio, ele tropeça de
lado e cai de cabeça. O seu crânio racha-se no chão de pedra,
derramando sangue e massa encefálica. Um soluço afoga-se no
meu peito, e não tenho tempo de questionar a minha súbita
repulsa para comigo mesma. Pelo Morrey. Pelo Morrey.
O meu irmão parece tão agoniado como eu me sinto, os seus
olhos colados ao strongarm morto sangrando a rodos no chão.
Digo de mim para mim que está apenas chocado, e não
aterrorizado comigo.
— Vai! — urro, a voz sufocada de vergonha. Graças sejam
dadas, ele faz o que lhe digo, correndo a toda a velocidade
para o piso inferior com os outros.
Embora a entrada térrea esteja bloqueada, os reféns
rapidamente dão conta dela, destruindo as fortificações
Prateadas até a porta dupla estar exposta, uma só tranca
interpondo-se entre todos nós e a liberdade.
Dou um salto sobre o crânio rachado do strongarm,
lançando a pequena chave prateada. Morrey apanha-a. O seu
recrutamento e o meu aprisionamento não eliminaram os
nossos vínculos de gémeos. A luz do sol entra a jorros quando
ele abre a porta com força e mergulha para o ar livre, os outros
reféns correndo disparados com ele.
Harrick vem a voar pelas escadas abaixo, fogo falso
crepitando no seu rasto. Acena-me, dizendo-me para ir, mas eu
permaneço firme. Não saio sem o ilusionário.
Cambaleamos juntos lá para fora, agarrados um ao outro, e
damos com um largo cheio de guardas perplexos armados até
aos dentes. Permitem-nos passar por ordem de Farley. Ela
berra ali perto, ordenando-lhes que se foquem na entrada da
torre, caso os Prateados tentem tomar posição.
Não oiço as palavras dela. Simplesmente continuo a andar
até ter o meu irmão nos braços. O coração bate-lhe
rapidamente no peito. Regozijo-me com o som. Ele está aqui.
Está vivo.
Não como os strongarms.
Ainda o sinto, o que lhes fiz.
O que fiz a toda e cada pessoa que já matei.
As recordações põem-me tonta de vergonha. Tudo por
Morrey, tudo para sobreviver. Mas nunca mais.
Não tenho de ser uma assassina a par de tudo o resto.
Ele agarra-se a mim, os olhos revirando-se de terror. — A
Guarda Escarlate — sibila, apertando-me. — Cam, temos de
fugir.
— Estás a salvo; estás connosco agora. Eles não te podem
fazer mal, Morrey!
Mas, em vez de acalmar, o seu medo triplica. As mãos de
Morrey apertam-me com toda a força enquanto a sua cabeça se
vira para trás e para diante qual chicote, fazendo um balanço
dos soldados de Farley. — Eles sabem o que tu és? Cam, eles
sabem?
A vergonha transforma-se em confusão. Afasto-me
ligeiramente dele, para lhe ver melhor o rosto. Ele respira
pesadamente. — O que eu sou?
— Eles matar-te-ão por isso. A Guarda Escarlate matar-te-á
pelo que és.
Cada palavra atinge-me como um martelo. E então
apercebo-me de que o meu irmão não é o único ainda com
medo. O resto da sua unidade, os outros adolescentes
amontoam-se uns junto dos outros para se sentirem seguros,
cada um mantendo-se ao largo dos soldados da Guarda. Farley
cruza o olhar com o meu a uns passos de distância, tão
perplexa como eu.
Até que a vejo sob a perspetiva do meu irmão. Vejo-os a
todos como lhe foi dito que os visse.
Terroristas. Assassinos. A razão de terem sido recrutados
em primeiro lugar.
Tento puxar Morrey para um abraço, tento sussurrar uma
explicação.
Ele põe-se simplesmente frio nos meus braços. — Tu és
uma deles — cospe da boca para fora, olhando para mim com
tanta raiva e acusação que os meus joelhos cedem. — Tu és da
Guarda Escarlate.
A minha alma enche-se de pavor.
Maven tomou o irmão de Mare.
Será que tomou o meu também?
CAPÍTULO DEZASSEIS

Mare

N ão consigo ver Corvium através das nuvens baixas. Mas


não obstante olho fixamente, os meus olhos colados no
horizonte oriental que se estende atrás de nós. A Guarda
Escarlate tomou a cidade. Controlam-na agora. Tivemos de
contorná-la, deixando a cidade hostil ao largo. Maven está a
fazer o que pode para manter a discrição; nem ele consegue
ocultar tão maciça derrota. Interrogo-me como aterrará a
notícia por todo o reino. Celebrarão os Vermelhos? Retaliarão
os Prateados? Lembro-me dos motins que se seguiram a outros
ataques da Guarda Escarlate. Claro que haverá repercussões.
Corvium é um ato de guerra. Finalmente, a Guarda Escarlate
plantou uma bandeira que não pode simplesmente ser rasgada.
Os meus amigos estão tão perto que sinto que podia correr
para junto deles. Arrancar as algemas, matar os guardas
Arven, saltar do transporte e desaparecer na desolação
pardacenta, correndo disparada pela floresta nua de inverno.
No meu devaneio, eles esperam por mim junto às muralhas de
uma fortaleza arrombada. O Coronel, o seu olho carmesim, o
seu rosto desgastado e a arma que tem ao flanco, um conforto
como nada mais. Farley com ele, arrojada e alta e determinada
como a recordo. Cameron, o seu silêncio um escudo mais do
que uma prisão. Kilorn, familiar como as minhas próprias
mãos. Cal, zangado e quebrado como eu estou, as brasas da
sua fúria prontas a queimar todos os pensamentos de Maven
da minha mente. Imagino-me a saltar para os braços de todos
eles, implorando-lhes que me levem, que me levem seja para
onde for. Que me levem para a minha família, que me levem
para casa. Que me façam esquecer.
Não, esquecer não. Seria um pecado esquecer o meu
aprisionamento. Um desperdício. Eu conheço Maven como
mais ninguém. Conheço os buracos no seu cérebro, as peças
que ele jamais poderá fazer encaixar. E vi a sua corte
fragmentar-se em primeira mão. Se conseguir escapar, se
puder ser resgatada, quero fazer ainda algum bem. Posso fazer
com que a minha tola barganha valha o seu terrível custo — e
posso começar a endireitar tanta coisa errada.
Embora as janelas do transporte estejam bem seladas,
cheira-me a fumo. Cinzas. Pólvora. O travo acre e metálico de
um século de sangue derramado. O Caldeirão aproxima-se,
mais perto a cada segundo à medida que a coluna de Maven
acelera para oeste. Espero que os meus pesadelos deste lugar
tenham sido piores do que a realidade.
A Gatinha e a Trevo continuam a flanquear-me, as suas
mãos enluvadas espalmadas sobre os joelhos. Prontas a
agarrar-me, prontas a vergar-me. Os outros guardas, o Trio e o
Ovo, estão empoleirados lá em cima, no arcabouço do
transporte, presos ao veículo em movimento. Uma precaução,
agora que estamos tão perto da zona de guerra. Para não falar
dos poucos quilómetros que nos distanciam de uma cidade
ocupada por uma revolução. Todos os quatro permanecem
vigilantes, como sempre. Simultaneamente para me manterem
aprisionada e me manterem a salvo.
Lá fora, a floresta que ladeia os últimos quilómetros da
Estrada de Ferro vai escasseando e desaparece. Ramos nus
ficam para trás e revelam solo duro mal digno de neve. O
Caldeirão é um feio lugar. Terra cinzenta, céu cinzento, tão
perfeitamente mesclados que não sei onde acaba uma e
começa o outro. Quase conto ouvir explosões ao longe. O
Papá dizia que se ouviam sempre as bombas, mesmo a
quilómetros de distância. Suponho que já não seja o caso, não
se a jogada de Maven for bem-sucedida. Estou a terminar uma
guerra pela qual morreram milhões. Só para continuar a matar
sob outro nome.
A coluna prossegue na direção dos campos avançados, uma
coleção de edifícios que me fazem lembrar a base da Guarda
Escarlate em Tuck. Desvanecem-se à distância em todas as
direções. Casernas, sobretudo. Caixões para os vivos. Os meus
irmãos viveram ali em tempos. O meu pai também.
Provavelmente será a minha vez, para manter a tradição.
Tal como nas cidades ao longo da viagem de coroação, as
pessoas viram-se para ver o Rei Maven e a sua comitiva.
Soldados de vermelho, de negro, de cinzento-nublado.
Ladeiam a avenida principal que interseta o campo do
Caldeirão com precisão militar, todos de cabeça baixa em sinal
de respeito. Não me digno tentar contar quantas centenas são.
É por de mais deprimente. Em vez disso, engalfinho as mãos
uma contra a outra com suficiente força para me darem outra
dor a que me ater. O oficial Prateado ferido em Rocasta disse
que Corvium foi um massacre. Não, digo de mim para mim.
Não vás por aí. Claro que a mente o faz, todavia. É impossível
evitar os horrores em que realmente não queremos pensar.
Massacre. De ambos os lados. Vermelhos e Prateados, Guarda
Escarlate e o exército de Maven. Cal sobreviveu, até aí sei eu
pela conduta de Maven. Mas Farley, Kilorn, Cameron, os
meus irmãos, os restantes? Tantos nomes e rostos que
provavelmente assaltaram as muralhas de Corvium. O que lhes
aconteceu?
Pressiono os olhos com os dedos, tentando reprimir as
lágrimas. O esforço deixa-me exausta, mas recuso-me a chorar
diante da Gatinha e da Trevo.
Para minha surpresa, a coluna não para no centro do campo
do Caldeirão, embora haja uma praça que parece perfeitamente
adequada a mais um dos melífluos discursos de Maven. Uns
quantos transportes, cada um carregando descendentes de
várias Altas Casas, saem da coluna, mas nós passamos
velozmente, avançando sempre, cada vez mais fundo. Embora
tentem ocultá-lo, a Gatinha e a Trevo vão-se pondo mais
tensas, os seus olhos dardejando entre as janelas e de uma para
a outra. Não gostam disto. Bom. Que se contorçam.
Afoita como me sinto, uma sombra de pavor cai sobre mim
também. Estará Maven fora de si? Para onde nos leva ele —
todos nós? Certamente não conduziria a corte para uma
trincheira, ou campo minado, ou pior. Os transportes ganham
velocidade, rolando cada vez mais depressa sobre solo de terra
compactada em forma de estrada. À distância, assomam
canhões de artilharia e armas pesadas em gigantescos
destroços de ferro, sombras retorcidas como esqueletos negros.
Em pouco mais de quilómetro e meio atravessamos as
primeiras linhas de trincheiras, os nossos veículos roncando
sobre pontes construídas à pressa. Mais trincheiras se seguem.
Para provisões, apoio, comunicação. Serpenteantes como as
passagens do Entalhe, escavadas pela lama gelada dentro.
Perco-lhes a conta ao fim de uma dúzia. Ou as trincheiras
foram abandonadas ou os soldados estão bem escondidos. Não
vislumbro um único uniforme vermelho.
Isto podia ser uma armadilha, tanto quanto sabemos. A
maquinação de um velho rei destinada a enredar e derrotar um
rapazola. Parte de mim quer que isso seja verdade. Se não
posso matar Maven, talvez o rei das Lakelands o faça por
mim. Casa Cygnet, nymphs. Governando há centenas de anos.
É tudo o que sei sobre o monarca inimigo. O seu reino é como
o nosso, dividido por sangue, governado por casas nobres
Prateadas. E afligido pela Guarda Escarlate, ao que parece. Tal
como Maven, ele deve estar resolvido a manter o poder a todo
o custo, por quaisquer meios. Até mesmo em conluio com um
velho inimigo.
A leste as nuvens abrem e alguns raios de sol iluminam a
terra agreste à nossa volta. Nem uma árvore que o olhar possa
abarcar. Atravessamos a trincheira da linha da frente e arquejo
perante a visão. Soldados Vermelhos apinhados em longas
fileiras, com seis homens de profundidade, os seus uniformes
coloridos de vários matizes de ferrugem e carmesim. Qual
poça de sangue numa ferida. Agarrando escadas de mão,
tremem ao frio. Prontos a acorrer da sua trincheira para a
mortal zona de morte do Caldeirão, dê o seu rei o comando.
Avisto oficiais Prateados entre eles, sobressaindo com os seus
uniformes cinzentos e negros. Maven é jovem mas não é
estúpido. Se isto for um ardil Lakelander, ele está pronto a
lutar para sair dele. Depreendo que o rei das Lakelands tenha
outro exército à espera, nas suas próprias trincheiras do outro
lado. Mais soldados Vermelhos a descartar.
Quando os pneus do nosso transporte alcançam o outro
lado, a Trevo contrai-se junto a mim. Mantém os olhos verde-
elétrico focados adiante, tentando permanecer calma. Um luzir
de suor transparece-lhe na fronte, traindo o medo que sente.
A verdadeira devastação do Caldeirão está cravada de
crateras provenientes do fogo de artilharia de dois exércitos.
Alguns dos buracos devem ter décadas. Arame farpado
emaranha-se na lama gelada. Lá adiante, no transporte
dianteiro, um telky e um magnetron trabalham em conjunto.
Varrem os seus braços de um lado para o outro, arrancando
quaisquer detritos do percurso da coluna. Pedaços de ferro
enrolado saem voando em todas as direções. E, depreendo eu,
ossos. Há gerações que aqui morrem Vermelhos. O solo está
atravancado com o seu pó.
Nos meus pesadelos este lugar estende-se eternamente, em
todas as direções. Mas em vez de continuar por aí adiante até
ao oblívio, a coluna abranda cerca de um quilómetro para lá
das trincheiras da linha da frente. Quando os nossos
transportes descrevem um círculo serpenteante, dispondo-se
em meia-lua, eu quase irrompo numa gargalhada nervosa. De
todas as coisas, em todos os lugares, detemo-nos num
pavilhão. O contraste é chocante. É novo em folha, com
colunas brancas e cortinas de seda adejando ao vento
envenenado. Construído para um e um só propósito. Uma
cimeira, um encontro, como o de há tanto tempo antes.
Quando dois reis decidiram dar início a um século de guerra.
Um Sentinela abre de repelão a porta do meu transporte,
acenando para que desçamos. A Trevo hesita por meio
segundo e a Gatinha pigarreia, incitando-a. Eu movo-me entre
elas, escoltada para o solo obliterado. Pedregulhos e terra
tornam-no irregular sob os meus pés. Rezo para que nada se
estilhace sob os meus passos. Um crânio, uma costela, um
fémur ou uma espinha. Não preciso de mais provas de que
caminho através de um cemitério sem fim.
A Trevo não é a única com medo. Até mesmo os Sentinelas
se movem devagar, tensos, os seus rostos mascarados
dardejando para trás e para diante. Por uma vez pensam na sua
própria segurança além da de Maven. E a restante corte —
Evangeline, Ptolemus, Samson — queda-se ociosa junto aos
seus transportes. Olhos dardejantes, narizes franzidos. Sentem
o cheiro a morte e perigo tal como eu. Um movimento errado,
um vislumbre de ameaça e fugirão disparados. Evangeline
trocou as peles por armadura. Vestida de aço do pescoço aos
pulsos e pontas dos pés. Rapidamente liberta os dedos das
luvas de pele, desnudando as mãos ao ar frio. Melhor para uma
luta. Sinto uma ânsia de fazer o mesmo, não que me sirva de
ajuda. As algemas estão fortes como sempre.
O único que não parece afetado é Maven. O inverno
moribundo diz bem com ele, fazendo com que a sua pele
pálida se destaque de uma forma estranhamente elegante.
Mesmo as sombras em torno dos seus olhos, escuras como
sempre, negras e violáceas como equimoses, tornam-no
tragicamente belo. Hoje está o mais engalanado que ousa. Um
menino-rei, mas rei não obstante, prestes a olhar nos olhos de
alguém que é supostamente o seu maior oponente. A coroa na
cabeça parece agora natural, reajustada para melhor lhe descer
sobre o sobrolho. Cospe flamas de bronze e ferro através do
seu lustroso cabelo negro. Mesmo à luz pardacenta do
Caldeirão, as suas medalhas e distintivos brilham, prata e rubi
e ónix. Uma capa, com padrão de brocado vermelho-chama,
completa o conjunto e a imagem de um rei de fogo. Mas o
Caldeirão consome-nos a todos. As suas botas negras polidas
estão salpicadas de terra quando ele avança em frente, lutando
contra o profundo instinto de temer este lugar. Impaciente,
lança um olhar por sobre o ombro, avaliando as dezenas que
arrastou para aqui. Os seus olhos azul-fogo são aviso bastante.
Devemos ir com ele. Eu não tenho medo da morte, pelo que
sou a primeira a segui-lo para o que poderá ser uma sepultura.
O rei das Lakelands já está à espera.
Refastelado numa simples cadeira, um homem pequeno
contra a maciça bandeira suspensa atrás dele. Cobalto,
trabalhada com uma flor de quatro pétalas a prata e branco. Os
seus transportes de metal azul-leitoso espalham-se do outro
lado do pavilhão, dispostos numa imagem-espelho dos nossos.
Conto de relance mais de uma dúzia, todos a transbordar com
a versão Lakelander de guardas Sentinelas. Mais ainda
flanqueiam o rei das Lakelands e a sua comitiva. Não usam
máscaras nem vestes, mas armaduras táticas com lampejantes
placas de profunda safira. Eretos, silenciosos, estoicos, com
rostos de pedra esculpida. Cada qual um guerreiro treinado
desde o nascimento, ou quase. Não conheço nenhuma das suas
aptidões, nem das dos acompanhantes do rei. A corte das
Lakelands não é coisa que tenha estudado nas minhas lições
com a Senhora Blonos há séculos que já lá vão.
Quando nos aproximamos, o rei ganha nitidez. Fito-o,
tentando ver o homem sob a coroa de ouro branco, topázio,
turquesa e carregado lápis-lazúli. Por muito que Maven
favoreça o vermelho e o negro, o rei prefere o seu azul. Afinal
de contas é um nymph, um manipulador de água. É apropriado.
Conto que os seus olhos sejam igualmente azuis — em vez
disso são cinzento-tempestade, a condizer com o duro ferro do
seu cabelo comprido e liso. Dou comigo a compará-lo ao pai
de Maven, o outro único rei que conheci. É um contraste e
tanto. Enquanto Tiberias Sexto era robusto, de barba, o rosto e
o corpo inchados do álcool, o rei Lakelander é delgado, de
rosto barbeado e de olhos claros e pele escura. Tal como a
todos os Prateados, um matiz azul-acinzentado refresca-lhe a
tez. Quando se levanta é gracioso, os seus movimentos fluidos
semelhantes aos de um bailarino. Não usa armadura nem
uniforme de gala. Apenas vestes de cintilante prata e cobalto,
luminosas e pressagiadoras como a sua bandeira.
— Rei Maven da Casa Calore — diz, inclinando
impercetivelmente a cabeça quando Maven entra no pavilhão.
Seda negra desliza sobre mármore branco.
— Rei Orrec da Casa Cygnet — responde Maven na mesma
moeda. Tem o cuidado de se inclinar mais do que o seu
oponente, com um sorriso bem firme nos lábios. — Se o meu
pai ao menos aqui estivesse para ver isto…
— E a sua mãe também — diz Orrec. Palavras ditas sem
agressividade, mas Maven endireita-se rapidamente, como se
de súbito confrontado com uma ameaça. — As minhas
condolências. É demasiado jovem para sofrer tal perda. —
Tem sotaque, as suas palavras denotando uma estranha
melodia. Os seus olhos lampejam por sobre o ombro de
Maven, para lá de mim, para Samson, que nos segue nos seus
azuis Merandus. — Foi informado das minhas… solicitações?
— Claro. — Maven espeta o queixo por sobre o ombro.
Olha-me de relance por um segundo; depois, como o de Orrec,
o seu olhar desliza para Samson. — Primo, se não se importar
de esperar no seu transporte…
— Primo — diz Samson com a oposição que ousa. Ainda
assim estaca, os pés plantados a vários metros da plataforma
do pavilhão. Não há argumento a brandir, não aqui. Os guardas
do Rei Orrec põem-se tensos, levando as mãos às várias
armas. Armas de fogo, espadas, o próprio ar que nos rodeia.
Tudo a que possam deitar mão para impedir um whisper de se
aproximar demasiado do seu rei e da sua mente. Se ao menos a
corte de Norta fosse igual…
Finalmente, Samson cede. Curva-se profundamente, as
armas sobressaindo-lhe dos flancos em movimentos
penetrantes e ensaiados. — Sim, Vossa Majestade.
Só quando ele vira costas, se dirige de volta para os veículos
e desaparece de vista é que os guardas Lakelanders relaxam. E
o Rei Orrec sorri rigidamente, acenando para que Maven se
adiante a encará-lo. Qual criança convidada a implorar.
Em vez disso, Maven vira-se para o assento disposto do
outro lado. Não é Pedra Silenciosa, não é seguro, mas ele
instala-se nele sem um pestanejar de hesitação. Recosta-se e
cruza as pernas, deixando a capa pender-lhe sobre um braço
enquanto o outro jaz livre. A mão caída, com a pulseira lança-
flamas claramente visível.
Todos os restantes nos agrupamos à sua volta, tomando
assentos à semelhança da corte das Lakelands, agora de frente
para nós. Evangeline e Ptolemus põem-se à direita de Maven,
tal como o seu pai. Quando se juntou ele à nossa coluna, não
sei. O Governador Welle também está presente, as suas vestes
verdes doentias contra o cinzento do Caldeirão. A ausência das
Casas Iral, Laris e Haven parece gritante aos meus olhos, as
suas fileiras substituídas por outros conselheiros. Os meus
quatro guardas Arven flanqueiam-me quando me sento, tão
perto que posso ouvi-los respirar. Foco-me em vez disso nas
pessoas à minha frente, os Lakelanders. Nos mais próximos
conselheiros do rei, confidentes, diplomatas e generais.
Pessoas a temer quase tanto como o próprio rei. Não são feitas
apresentações, mas rapidamente me apercebo de quem é mais
importante entre eles. Está sentada à direita do rei, no lugar
presentemente ocupado por Evangeline.
Uma muito jovem rainha, talvez? Não, a parecença familiar
é por de mais forte. Ela só pode ser a princesa das Lakelands,
com os olhos do pai e a sua coroa de imaculadas gemas azuis.
O seu cabelo liso e negro brilha, adornado com contas de
pérolas e safiras. Quando a encaro, ela sente o meu olhar — e
fita-me também.
Maven é o primeiro a falar, interrompendo as minhas
observações. — Pela primeira vez num século, encontramo-
nos de acordo.
— Assim é — assente Orrec. A sua fronte coberta de joias
lampeja à luz do Sol que esmorece. — A Guarda Escarlate e
os seus comparsas têm de ser erradicados. Rapidamente, não
vá a doença espalhar-se ainda mais. Não vão Vermelhos
noutras regiões ser seduzidos pelas suas falsas promessas.
Oiço rumores de problemas no Piedmonte?
— Rumores, sim. — O meu rei de coração negro nada mais
concede do que quer. — Sabe como podem ser os príncipes.
Sempre discutindo entre si.
Orrec quase esboça um sorriso malicioso. — Deveras. Os
Senhores de Prairie são iguais.
— Relativamente aos termos…
— Não tão depressa, meu jovem amigo. Gostaria de saber o
estado da sua casa antes de transpor a sua porta.
Mesmo do meu lugar posso sentir Maven pôr-se tenso. —
Pergunte o que desejar.
— A Casa Iral? A Casa Laris? A Casa Haven? — Os olhos
de Orrec varrem a nossa fila, nada perdendo. O seu olhar passa
por cima de mim, vacilando por meio segundo. — Nenhum
deles vejo aqui.
— E então?
— E então os relatos são verdadeiros. Eles rebelaram-se
contra o seu legítimo rei.
— Sim.
— Em apoio de um exilado.
— Sim.
— E o seu exército de sanguenovos?
— Cresce a cada dia que passa — diz Maven. — Outra
arma que todos temos de aprender a empunhar.
— Como ela. — O rei das Lakelands inclina a cabeça na
minha direção. — A rapariga-relâmpago é um poderoso
troféu.
Os meus punhos cerram-se-me com força sobre os joelhos.
Claro que ele tem razão. Eu pouco mais sou que um troféu
para Maven trazer atrás de si, usando o meu rosto e as minhas
palavras forçadas para atrair mais para o seu lado. Não coro,
no entanto. Já tive um longo tempo para me acostumar à
minha vergonha.
Se Maven olha para o meu lado, não sei. Eu para ele é que
não olho.
— Um troféu, sim, e um símbolo também — diz Maven. —
A Guarda Escarlate é de carne e osso, não de fantasmas. Carne
e osso podem ser controlados, derrotados e destruídos.
O rei solta um estalido com a língua, como que de piedade.
Levanta-se rapidamente, as suas vestes redemoinhando à sua
volta como um rio agitado. Maven levanta-se também e
encontra-se com ele no centro do pavilhão. Medem-se
mutuamente, um devorando o outro. Nenhum deles quer ser o
primeiro a vergar. Sinto o próprio ar à minha volta encrespar-
se: quente, depois frio, depois seco, depois húmido-pegajoso.
A vontade de dois reis Prateados grassa assoladora em torno
de todos nós.
Não sei o que vê Orrec em Maven, mas subitamente cede e
estende uma mão morena. Anéis de Estado cintilam em todos
os seus dedos. — Bem, não tarda lidaremos com eles. E com
os vossos rebeldes Prateados também. Três casas contra o
poder de dois reinos nada são.
Com um baixar de cabeça, Maven retribui o gesto. Aperta a
mão de Orrec na sua.
Vagamente, interrogo-me como diabo é que a Mare das
Stilts acabou aqui. A uns passos de dois reis, assistindo a uma
peça mais da nossa sangrenta história encaixando-se no lugar.
Julian perderá a cabeça quando lhe contar. Quando. Porque
tornarei a vê-lo. Tornarei a vê-los a todos.
— Agora quanto aos termos — prossegue Orrec. E constato
que ele não largou os dedos de Maven. Bem como os
Sentinelas. Dão em conjunto um ameaçador passo em frente,
as suas vestes flamejantes ocultando inúmeras armas. No outro
lado da plataforma, os guardas Lakelanders fazem o mesmo.
Cada lado desafiando o outro a dar o passo que acabará em
derramamento de sangue.
Maven não tenta furtar-se, nem incitar. Queda-se firme
meramente, impassível, destemido. — Os termos são sólidos
— replica em voz calma. Não lhe consigo ver o rosto. — O
Caldeirão dividido equilibradamente, as antigas fronteiras
mantidas e abertas a viajantes. Tereis igual uso do Rio Capital
e do Canal Eris…
— Enquanto o seu irmão viver, preciso de garantias.
— O meu irmão é um traidor, um exilado. Estará morto não
tarda.
— É aí que quero chegar, meu jovem. Assim que ele
desaparecer, assim que desmembrarmos a Guarda Escarlate
membro a membro… voltará você aos seus velhos modos?
Aos seus velhos inimigos? Descobrir-se-á de novo afogado em
corpos Vermelhos e na necessidade de algum lado para onde
os atirar? — O rosto de Orrec ensombra-se, ruborizando-se de
cinzento e púrpura. Os seus modos frios e desprendidos
descambam em cólera. — O controlo populacional é uma
questão, mas a guerra, o eterno empurra-puxa, pouco mais é
que loucura. Não verterei uma só mais gota de sangue
Prateado por você não poder comandar os seus ratos
Vermelhos.
Maven inclina-se para diante, igualando a intensidade de
Orrec. — O nosso tratado será aqui assinado, transmitido para
cada cidade, para cada homem, mulher e criança do meu reino.
Toda a gente saberá que esta guerra acabou. Toda a gente em
Norta, pelo menos. Sei que não tem as mesmas capacidades
nas Lakelands, meu velho. Mas confio que fará o seu melhor
para informar a maior parte possível do seu reino mais remoto.
Um estremecimento trespassa-nos. De medo nos Prateados,
mas em mim de excitação. Destruam-se um ao outro, sussurro
mentalmente. Virem-se um ao outro do avesso. Não tenho
dúvidas de que um rei nymph pouca dificuldade teria em
afogar Maven ali mesmo onde se encontra.
Orrec arreganha os dentes. — Nada sabe a respeito do meu
país.
— Sei que a Guarda Escarlate começou na sua casa, não na
minha — cospe Maven. Com a mão livre acena, dizendo aos
Sentinelas que recuem. Tolo, rapaz encenador. Espero que isso
lhe granjeie a morte. — Não aja como se me devesse um
favor. Precisa disto tanto como nós.
— Então quero a sua palavra, Maven Calore.
— Tem-na…
— A sua palavra e a sua mão. O mais forte vínculo que se
pode fazer.
Oh!…
Os meus olhos voam de Maven, preso num punho de ferro
com o rei das Lakelands, para Evangeline. Ela está sentada
imóvel, como que congelada, o olhar fixo no chão de mármore
e em mais sítio nenhum. Conto que ela se levante e grite, que
transforme este lugar numa ruína de estilhaços. Mas ela não se
move. Mesmo Ptolemus, o seu fiel irmão de colo, se mantém
firme no lugar. E o pai deles, nos seus negros Samos, cisma
como sempre. Não há qualquer alteração nele que eu veja.
Indicação alguma de que Evangeline esteja prestes a perder a
posição que tão duramente lutou para obter.
No outro lado do pavilhão, a princesa Lakelander parece
feita de pedra. Não pestaneja sequer. Sabia ao que vinha.
Em tempos idos, quando o pai de Maven lhe disse que
deveria casar comigo, ele engasgou-se de surpresa. Armou um
espetáculo, com argumentos e fanfarronices. Fingiu não saber
que proposta era essa nem o que significava. Tal como eu, tem
usado um milhar de máscaras e representado um milhão de
diferentes papéis. Hoje atua como rei, e os reis não se
surpreendem jamais, nunca se deixam apanhar desprevenidos.
Se está chocado, não o mostra. Nada oiço senão aço na sua
voz.
— Seria uma honra chamar-lhe pai — diz.
Finalmente, Orrec larga a mão de Maven. — E uma honra
chamar-lhe filho.
Não poderiam ambos ser mais falsos.
À minha direita, a cadeira de alguém raspa no mármore.
Rapidamente seguida de mais duas. Num pé de vento metálico
e negro, a Casa Samos apressa-se a sair do Pavilhão.
Evangeline à frente do irmão e do pai, sem olhar para trás, as
mãos abertas nos flancos. Os ombros descaem e a sua postura
meticulosamente direita parece de alguma forma diminuída.
Ela está aliviada.
Maven não a vê ir, inteiramente focado na tarefa que tem
em mãos. Sendo a tarefa a princesa Lakelander.
— Minha senhora — diz ele, curvando-se na sua direção.
Ela inclina meramente a cabeça, sem vacilar no seu olhar de
aço.
— Aos olhos da minha nobre corte, peço-lhe a sua mão em
casamento. — Já ouvi tais palavras antes. Do mesmo rapaz.
Proferidas diante de uma multidão, cada palavra soando como
uma fechadura a trancar-se. — Faço-me seu, Iris Cygnet,
princesa das Lakelands. Aceita?
Iris é linda, mais graciosa que o seu pai. Não uma bailarina,
contudo, mas uma caçadora. Põe-se em pé sobre os seus
longos membros, saindo do assento em que se afundava numa
cascata de suave veludo safira e torneadas curvas femininas.
Vislumbro perneiras de couro entre as dobras do seu vestido.
Desgastadas, rachadas nos joelhos. Ela não veio para aqui
despreparada. E, tal como tantos aqui, não usa luvas, apesar do
frio. A mão que ela estende a Maven é de pele âmbar, com
longos dedos não adornados. Todavia, os seus olhos não
vacilam, ainda que uma neblina se forme no ar, rodopiando-
lhe em torno da mão estendida. Cintila diante dos meus olhos,
minúsculas gotas de humidade condensando-se e ganhando
vida. Transformam-se em minúsculas contas de cristal, cada
qual uma alfinetada de luz refratada à medida que se revolvem
e movem.
As suas primeiras palavras são numa língua que não
conheço. Lakelander. É comoventemente bela, uma palavra
fluindo para outra como uma cantiga falada, como água.
Depois em Nortan com forte sotaque.
— Deponho a minha mão na sua e torno a minha vida sua
— replica ela, segundo as suas próprias tradições e os
costumes do seu reino. — Aceito, Vossa Majestade.
Ele estende a mão nua para tomar a dela, a pulseira no seu
pulso faiscando ao mover-se. Uma corrente de fogo surge no
ar, serpenteando e recurvando-se em torno dos dedos unidos
de ambos. Não a queima, embora certamente passe quase por
tentativa. Iris não se retrai. Não pestaneja.
E assim termina uma guerra.
CAPÍTULO DEZASSETE

Mare

L evamos muitos dias a regressar a Archeon. Não por causa


da distância. Não por o rei das Lakelands ter trazido nada
menos que mil pessoas consigo, cortesãos e soldados e até
mesmo serviçais Vermelhos. Mas porque o reino inteiro de
Norta tem subitamente algo que celebrar. O fim de uma guerra
e um futuro casamento. A coluna de Maven agora sem fim
serpenteia pela Estrada de Ferro e depois pela Estrada Real a
passo de caracol. Tanto Prateados como Vermelhos viram-se
para aclamar, implorando um vislumbre do seu rei. Maven
acede sempre, detendo-se para se encontrar com multidões,
tendo Iris ao seu lado. Apesar do profundamente arreigado
ódio aos Lakelanders que supostamente acalentamos, os
Nortans curvam-se diante dela. Ela é uma curiosidade e uma
bênção. Uma ponte. Mesmo o Rei Orrec recebe mornas boas-
vindas. Corteses aplausos, respeitosas vénias. Um velho
inimigo transformado em aliado para a longa estrada em
frente.
É isso que Maven diz de cada vez. — Norta e as Lakelands
estão unidas agora, vinculadas para a longa estrada à nossa
frente. Contra todos os perigos que ameaçam os nossos reinos.
— Refere-se à Guarda Escarlate. Refere-se a Corvium. Refere-
se a Cal, às casas rebeldes, a tudo e mais alguma coisa que
possa ameaçar a sua ténue mão no poder.
Não há ninguém vivo para se lembrar dos dias antes da
guerra. O meu país não sabe com o que se parece a paz. Não
admira que tome isto por paz. Tenho vontade de gritar na cara
de cada Vermelho ao passar. Tenho vontade de esculpir as
palavras no meu corpo, de forma a que todos tenham de ver.
Cilada. Mentira. Conspiração. Não que as minhas palavras
signifiquem já alguma coisa. Fui o fantoche de alguém por
demasiado tempo. A minha voz não é a minha. Apenas as
minhas ações são, e essas estão severamente limitadas pelas
circunstâncias. Desesperaria de mim própria se pudesse, mas
os dias de me espojar estão muito para trás. Têm de estar. De
outra forma simplesmente afogar-me-ei, oca boneca arrastada
por uma criança, toda ela esvaziada.
Hei de escapar. Hei de escapar. Hei de escapar. Não me
atrevo a sussurrar as palavras em voz alta. Percorrem-me a
mente em vez disso, o seu ritmo ao compasso do meu coração.
Ninguém fala comigo durante a viagem. Nem mesmo
Maven. Está ocupado a sentir a sua nova noiva. Tenho a
sensação de que ela sabe que tipo de pessoa ele é, e está
preparada para ele. Tal como com o pai dela, espero que se
matem um ao outro.
Os altos pináculos de Archeon são familiares, mas não um
conforto. A coluna rola de volta para as mandíbulas de uma
jaula que conheço demasiadamente bem. Através da cidade,
pelas íngremes estradas acima até ao complexo palaciano da
Praça de César e do Fogo Branco. O Sol é enganadoramente
luminoso contra o céu azul e límpido. Estamos quase na
primavera. Estranho… Parte de mim achava que o inverno
duraria para sempre, espelhando o meu aprisionamento. Não
sei se aguentarei ver as estações passarem do interior da minha
cela real.
Hei de escapar. Hei de escapar. Hei de escapar.
O Ovo e o Trio praticamente passam-me entre si, puxando-
me do transporte e fazendo-me marchar pelos degraus do Fogo
Branco. O ar está quente, húmido, com um cheiro fresco e
limpo. Uns minutos mais à luz do sol e porventura começarei a
suar sob o meu casaco escarlate e prateado. Mas estarei de
novo no interior do palácio numa questão de segundos,
caminhando sob um tesouro de candelabros reais. Não me
incomodam assim tanto, não após a minha primeira e única
tentativa de fuga. De facto, quase me fazem sorrir.
— Feliz por estar em casa?
Sobressalto-me igualmente por alguém falar comigo e pela
exata pessoa que se me dirige.
Resisto ao profundo impulso de me curvar, mantendo a
espinha direita quando me detenho para encará-la. Os Arven
estacam também, suficientemente próximos para me deitarem
a mão se tiver de ser. Sinto um alastrar da sua aptidão a sugar-
me energia aos poucos. Os guardas dela estão igualmente
tensos, com a atenção focada no átrio à nossa volta.
Depreendo que ainda pensem em Archeon e Norta como
território inimigo.
— Princesa — replico. O título tem um travo amargo, mas
não vejo grande uso em antagonizar diretamente mais uma
noiva de Maven.
O seu traje de viagem é enganadoramente simples. Apenas
perneiras e um casaco azul-escuro, cingido na cintura para
melhor ostentar a sua figura de ampulheta. Nem joias nem
coroa. O seu cabelo é simples, puxado atrás numa única trança
negra. Poderia passar por uma qualquer Prateada. Rica, mas
não régia. Mesmo o seu rosto permanece neutro. Nem sorrisos
nem desdém. Sem qualquer julgamento da rapariga-relâmpago
nas suas cadeias. Comparada com os nobres que tenho
conhecido, constitui um desconcertante — e inconveniente —
contraste. Eu nada sei a seu respeito. Pelo que me é dado
conhecer, ela podia ser pior que Evangeline. Ou mesmo Elara.
Não faço ideia do que esta jovem é ou do que pensa de mim.
Isso deixa-me desconfortável.
E Iris bem o vê.
— Não, será de pensar que não — prossegue ela. —
Acompanha-me?
Estende uma mão, curvando-a num convite. É mais que
possível que os olhos me saiam esbugalhados das órbitas. Mas
faço o que me pede. Ela estabelece um passo rápido mas não
impossível, forçando ambos os conjuntos de guardas a seguir-
nos através do átrio.
— Apesar do nome, o Fogo Branco parece um lugar frio. —
Iris levanta os olhos para o teto. Os candelabros refletem-se
nos seus olhos cinzentos, tornando-os estrelados. — Não
quereria estar aqui aprisionada.
Troço do fundo da garganta. A pobre tola está prestes a
tornar-se rainha de Maven. Não posso pensar em prisão pior
que essa.
— Algo engraçado, Mare Barrow? — ronrona ela.
— Nada, Vossa Alteza.
Os seus olhos percorrem-me. Tardam nos meus pulsos, nas
mangas compridas ocultando as minhas algemas. Devagar,
toca numa e sustém o fôlego. Apesar da Pedra Silenciosa e do
medo instintivo que inspira, ela não se retrai. — O meu pai
também retém os seus animais de estimação. Talvez seja algo
que os reis fazem.
Uns meses antes teria respingado. Não sou um animal de
estimação. Mas ela não deixa de ter razão. Em vez disso
encolho os ombros. — Não conheci reis suficientes para sabê-
lo.
— Três reis para uma rapariga Vermelha nascida para
pobres nadas. É de nos interrogarmos se os deuses a amarão
ou odiarão.
Não sei se rir se desdenhar. — Não há deuses.
— Não em Norta. Não para vocês. — A sua expressão
suaviza-se. Olha de relance por sobre o ombro, para os muitos
cortesãos e nobres que enxameiam à nossa volta. Na sua
maioria não se dignam ocultar os olhares que nos lançam. Se
isso a incomoda, não o mostra. — Interrogo-me se me poderão
ouvir num local ímpio como este. Não há um templo sequer.
Tenho de pedir a Maven que construa um.
Muita gente estranha tem passado pela minha vida. Mas
todos eles têm pedaços que posso entender. Emoções que
conheço, sonhos, medos. Pestanejo para a Princesa Iris e
constato que quanto mais ela fala, mais confusa se torna.
Parece inteligente, forte, segura de si, mas porque haveria uma
pessoa assim de concordar em casar com um tão óbvio
monstro? Certamente que o vê pelo que é. E não pode ser
ambição cega que a move. Princesa já ela é, filha de um rei. O
que quer ela? Ou terá tido sequer escolha? A sua conversa de
deuses é ainda mais confusa. Nós não temos tais crenças.
Como poderíamos?
— Está a memorizar o meu rosto? — pergunta ela baixinho
enquanto tento decifrá-la. Tenho a sensação de que ela faz o
mesmo, observando-me como se eu fosse uma complicada
obra de arte. — Ou simplesmente a tentar roubar uns
momentos mais fora de um quarto fechado? Se é este o caso,
não a censuro. Se é o primeiro, tenho a impressão de que me
verá muitas vezes, e eu a si.
De qualquer outra pessoa poderia soar como uma ameaça.
Mas não acho que Iris se rale suficientemente comigo para
isso. Pelo menos não parece ser do tipo ciumento. Isso
requereria que ela tivesse alguma espécie de sentimento por
Maven, coisa de que seriamente duvido.
— Leve-me à sala do trono.
Os meus lábios recurvam-se, num arremedo de sorriso. Em
geral as pessoas aqui fazem pedidos que são verdadeiramente
férreos comandos. Iris é o oposto. O seu comando soa como
uma pergunta. — Muito bem — murmuro, deixando que os
meus pés nos guiem. Os Arven não ousam tentar impedir-me.
Iris Cygnet não é Evangeline Samos. Contrariá-la poderia ser
considerado um ato de guerra. Não posso deixar de sorrir
maliciosamente por sobre o ombro para o Trio e o Ovo.
Ambos me fulminam por sua vez. A sua irritação faz-me
arreganhar um sorriso, pese embora o desconforto das minhas
cicatrizes.
— É uma estranha espécie de prisioneira, Menina Barrow.
Não me tinha apercebido de que, conquanto Maven a pinte
como uma senhora nas suas transmissões, requeira que o seja
em todas as ocasiões.
Senhora. O título nunca se aplicou verdadeiramente a mim e
nunca se aplicará. — Eu sou apenas um cãozinho de colo bem
vestido e de trela curta.
— Que rei peculiar, para a manter como faz. É uma inimiga
do estado, uma valiosa peça de propaganda, e de algum modo
é tratada quase como membro da realeza. Mas os rapazes são
tão estranhos com os seus brinquedos. Especialmente os
acostumados a perder coisas. Apegam-se mais firmemente que
os outros.
— E o que faria então comigo? — contraponho. Como
rainha, Iris poderia ter a minha vida nas suas mãos. Poderia
acabar com ela ou torná-la ainda pior. — Se estivesse na
posição dele?
Iris esquiva-se habilmente à pergunta. — Jamais cometerei
o erro de me tentar pôr na sua cabeça. Não é lugar em que
qualquer pessoa sã deva estar. — Depois ri-se. — Depreendo
que a sua mãe lá passasse grande parte do tempo.
Por mais que Elara me odiasse e à minha existência, acho
que odiaria Iris ainda mais. A jovem princesa é formidável,
para dizer o mínimo. — Tem sorte por nunca a ter conhecido.
— E por isso lhe agradeço — replica Iris. — Embora espere
que não mantenha a tradição de matar rainhas. Até mesmo os
cãezinhos de colo mordem. — Pestaneja para mim, os seus
olhos cinzentos perscrutantes. — Manterá?
Não sou suficientemente estúpida para responder. Não seria
uma óbvia mentira. Sim poderia granjear-me mais uma inimiga
real. Ela esboça um sorriso malicioso ante o meu silêncio.
A caminhada não é longa até à grande câmara em que
Maven reúne a corte. Após tantos dias diante das câmaras de
transmissão, forçada a engolir sanguenovo atrás de
sanguenovo prestando-lhe a sua lealdade, conheço-a
intimamente. De costume a tribuna está pejada de assentos,
mas foram removidos na nossa ausência, deixando apenas o
sinistro trono cinzento. Iris olha-o, fulgurante, quando nos
aproximamos.
— Uma tática interessante — resmunga em surdina quando
o alcançamos. Tal como com as minhas algemas, passa o dedo
pelos blocos de Pedra Silenciosa. — Necessária também. Com
tantos whispers admitidos na corte.
— Admitidos?
— Eles não são bem-vindos na corte das Lakelands. Não
podem transpor as muralhas da nossa capital, Detraon, ou
entrar no palácio sem escolta apropriada. E whisper algum é
admitido num raio de seis metros do monarca — explica Iris.
— De facto, não sei de quaisquer famílias nobres que possam
clamar tal aptidão no meu país.
— Não existem?
— Não no sítio de onde venho. Já não.
A implicação paira no ar como fumo.
Ela afasta-se do trono, inclinando a cabeça de um lado para
o outro. Não gosta de seja o que for que vê. Os seus lábios
franzem-se numa fina linha. — Quantas vezes sentiu o toque
de um Merandus na sua cabeça?
Por uma fração de segundo tento lembrar-me. Estúpida. —
Demasiadas vezes para as contar — digo-lhe com um encolher
de ombros. — Primeiro Elara, depois Samson. Não consigo
decidir qual dos dois foi pior. Sei agora que a rainha podia ler-
me a mente sem que eu o soubesse sequer. Mas ele… — A
voz falta-me. A recordação é dolorosa, exercendo-me uma
extrema pressão nas têmporas. Tento apagar a dor com uma
massagem. — Com Samson, sentimo-lo presente a cada
segundo.
O rosto dela torna-se lívido. — Tantos olhos neste lugar —
diz, relanceando primeiro os meus guardas e depois as
paredes. As câmaras de segurança observando cada centímetro
do salão aberto, vigiando-nos. — Observem à vontade.
Lentamente, despe o casaco e dobra-o sobre o braço. A
blusa por baixo é branca, bem apertada até à garganta, mas
sem costas. Vira-se, a pretexto de examinar a sala do trono. Na
realidade está a exibir-se. As suas costas são musculosas,
poderosas, esculpidas com longas linhas. Tatuagens negras
cobrem-na da base do couro cabeludo, pelo pescoço abaixo,
através das omoplatas, até à base da espinha. Raízes, penso
primeiro. Estou enganada. Não raízes mas volutas de água,
recurvando-se e derramando-se-lhe por sobre a pele em linhas
perfeitas. Ondulam quando ela se move, uma coisa viva.
Finalmente ela deambula de volta, encarando-me. Um ínfimo
e malicioso sorriso dança-lhe nos lábios.
Desaparece num instante quando o seu olhar se move para
lá de mim. Não tenho de me virar para saber quem se
aproxima, quem conduz os muitos passos que ressoam do
mármore pelo meu crânio dentro.
— Ficaria feliz em acompanhá-la numa visita guiada, Iris
— diz Maven. — O seu pai está a instalar-se nos seus
aposentos, mas estou certo de que não se importará se nos
conhecermos melhor.
Os guardas Arven e Lakelander recuam, dando espaço ao
rei e seus Sentinelas. Uniformes azuis, brancos, vermelhos-
alaranjados. As suas silhuetas e cores estão de tal maneira
imbuídas em mim que os conheço pelo canto do olho. Nenhum
tanto como o jovem e pálido rei. Sinto-o tanto como o vejo, o
seu enjoativo calor ameaçando submergir-me. Ele detém-se a
uns centímetros do meu corpo, suficientemente perto para me
tomar pela mão se quiser. Estremeço à ideia.
— Gostaria muito — responde Iris. Baixa a cabeça de uma
forma estranhamente empolada. Não lhe é fácil curvar-se. —
Estava mesmo a fazer notar à Menina Barrow as suas… —
procura a palavra certa, olhando de relance para trás, para o
rígido trono — decorações.
Maven brinda-a com um sorriso rígido. — Uma precaução.
O meu pai foi assassinado e já houve tentativas de mo fazerem
também.
— Poderia uma cadeira de Pedra Silenciosa ter salvado o
seu pai? — pergunta ela inocentemente.
Uma corrente de calor pulsa no ar. Tal como Iris, sinto
também necessidade de despir o meu casaco, não vá o
temperamento de Maven fazer-me encharcá-lo de suor.
— Não, o meu irmão decidiu que decepar-lhe a cabeça era a
sua melhor opção — diz sem rodeios. — Não há grande defesa
contra isso.
Aconteceu neste mesmo palácio. A uns corredores e salas
de distância, por umas escadas acima, num lugar sem janelas e
com paredes à prova de som. Quando os guardas para ali me
arrastaram eu estava aturdida, aterrorizada com a ideia de eu e
Maven estarmos prestes a ser executados. Em vez disso,
acabou o rei em dois pedaços. A cabeça, o corpo, um jorro de
prata derramado de permeio. Em vez disso tomou Maven a
coroa. Os meus punhos cerram-se à lembrança.
— Que horror — murmura Iris. Sinto os seus olhos em
mim.
— Sim, não foi Mare?
A súbita mão de Maven no meu braço queima como a sua
marca. O meu controlo ameaça dar de si e olho fulgurante de
soslaio. — Sim — forço-me a articular por entre os dentes
cerrados. — Um horror.
Maven assente em concordância, contraindo o maxilar para
firmar os malares. Não posso crer que tenha a lata de parecer
abatido. De parecer triste. Não está uma coisa nem outra. Não
pode estar. A sua mãe tirou-lhe os pedaços dele que amavam o
irmão e o pai. Tomara que ela tivesse tirado a parte que me
ama. Em vez disso ela supura, envenenando-nos a ambos com
a sua podridão. Negra putrefação corrói-lhe o cérebro e
qualquer pedaço dele digno de ser humano. Ele sabe-o
também. Sabe que há algo de errado, algo que não pode
corrigir com aptidão ou poder. Está quebrado, e não há curador
nesta terra que o possa tornar inteiro.
— Bem, antes que a leve a ver a minha casa há mais alguém
que gostaria de conhecer a minha futura noiva. Sentinela
Nornus, faz o favor? — Maven acena para lá do soldado. À
sua ordem, o Sentinela em questão esfuma-se num braseiro
vermelho e alaranjado, correndo disparado para a entrada e de
volta num fulminante segundo. Um swift. Nas suas vestes
parece uma bola de fogo.
Umas figuras seguem-no, as cores da sua casa familiares.
— Princesa Iris, este é o senhor governante da Casa Samos
e a sua família — diz Maven, acenando com uma mão entre a
sua nova prometida e a antiga.
Evangeline destaca-se em agudo contraste com a
simplicidade da vestimenta de Iris. Interrogo-me quanto tempo
terá levado a criar o metal liquefeito que envolve cada curva
do seu corpo como reluzente alcatrão. Nada de mais coroas e
tiaras para ela, mas as suas joias mais do que as substituem.
Usa fios de prata ao pescoço, nos pulsos e orelhas, finíssimos e
cravejados de diamantes. A aparência do irmão também é
diferente, desprovida das costumadas armadura ou pelagens. A
sua silhueta musculosa continua a ser ameaçadora, mas
Ptolemus parece-se agora mais com o pai, de imaculado
veludo negro com uma faiscante corrente de prata. Volo vem à
frente dos filhos, com alguém que não reconheço ao seu lado.
Mas posso certamente adivinhar quem ela é.
Nesse instante entendo um pouco mais Evangeline. A sua
mãe é uma visão aterradora. Não porque seja feia. Pelo
contrário, a mulher de meia-idade é severamente bela. Deu a
Evangeline os seus olhos negros angulosos e imaculada pele
de porcelana, mas não o lustroso e liso cabelo asa de corvo e
figura mimosa. Esta mulher dá o ar de que eu podia quebrá-la
em duas, com algemas e tudo. Provavelmente faz parte da sua
fachada. Usa as cores da sua própria casa, negro e verde-
esmeralda, a par do prateado Samos a denotar as suas
fidelidades. Viper. A voz da Senhora Blonos soa desdenhosa
na minha cabeça. Negro e verde são as cores da Casa Viper. A
mãe de Evangeline é uma animos20. À medida que se
aproxima, o seu cintilante vestido ganha nitidez. E constato
porque é Evangeline tão insistente em envergar a sua aptidão.
É uma tradição de família.
A sua mãe não usa joias. Usa cobras.
Nos pulsos, em torno do pescoço. Finas, negras e movendo-
se lentamente, as suas escamas brilhando como óleo
derramado. Sou percorrida em partes iguais por um choque de
medo e repulsa. De súbito só quero fugir disparada para o meu
quarto, trancar a porta e pôr a maior distância possível entre
mim e as contorcionistas criaturas. Em vez disso, aproximam-
se mais a cada passo. E achava eu que Evangeline era má.
— O Senhor Volo; a sua mulher, Larentia da Casa Viper; o
filho, Ptolemus; e a filha, Evangeline. Considerados e valiosos
membros da minha corte — explica Maven, acenando para
cada um por sua vez. Sorri abertamente, com os dentes à
mostra.
— Lamento não termos podido conhecê-la mais cedo. —
Volo avança para tomar a mão estendida de Iris. Com a sua
barba prateada aparada de fresco, é fácil ver a semelhança
entre ele e os seus filhos. Ossos fortes, linhas elegantes,
narizes compridos e lábios permanentemente recurvados num
sorriso de desdém. A sua pele parece mais pálida contra a de
Iris, quando lhe roça os lábios pelos nós dos dedos nus. —
Fomos chamados para tratar de assuntos nas nossas terras.
Iris baixa a fronte. Uma imagem de graça, agora. — Não é
necessário qualquer pedido de desculpas, meu senhor.
Por sobre as mãos enlaçadas de ambos, Maven cruza o olhar
com o meu. Levanta uma sobrancelha, divertido. Se pudesse,
perguntar-lhe-ia o que prometeu — ou aquilo com que
ameaçou a Casa Samos. Dois reis Calore deslizaram-lhes por
entre os dedos. Tanta maquinação e congeminação para nada.
Eu sei que Evangeline não amava Maven, ou sequer gostava
dele, mas foi criada para ser rainha. O seu propósito foi
duplamente roubado. Falhou para consigo própria e, pior,
falhou para com a sua casa. Pelo menos agora tem alguém que
não eu a quem culpar.
Evangeline olha de relance na minha direção, as suas
pestanas escuras e longas. Piscam por um momento enquanto
os olhos vacilam, tremulando para um lado e para o outro
como o pêndulo de um relógio antigo. Afasto-me um pequeno
passo de Iris para pôr alguma distância entre nós. Agora que a
filha Samos tem uma nova rival para odiar, não lhe quero dar a
impressão errada.
— E era prometida do rei? — Iris recolhe a mão da de Volo
e entrelaça os dedos. Os olhos de Evangeline descartam-me
para encarar a princesa. Para variar, vejo-a em campo de
igualdade com uma oponente à sua altura. Talvez eu tenha
sorte e Evangeline dê um passo em falso, ameace Iris como
costumava fazer comigo. Tenho a impressão de que Iris não
tolerará uma só palavra.
— Durante algum tempo, sim — diz Evangeline. — E do
seu irmão antes dele.
A princesa não fica surpreendida. Depreendo que as
Lakelands estejam bem informadas quanto à realeza de Norta.
— Bem, congratulo-me que tenha regressado à corte. Iremos
necessitar de bastante ajuda na organização do nosso
casamento.
Mordo o lábio com tanta força que faço sangue. Antes isso
do que rir alto enquanto Iris deita sal sobre tantas feridas
Samos. Diante de mim, Maven vira a cabeça para ocultar um
sorriso de escárnio.
Uma das cobras silva, um som inconfundível de suave
zumbido. Mas Larentia faz rapidamente uma vénia, agarrando
o tecido do seu cintilante vestido.
— Estamos ao seu dispor, Vossa Alteza — diz. A sua voz é
profunda, melosa como xarope. Ante os nossos olhos, a cobra
mais grossa, em torno do seu pescoço, afocinha-lhe pela orelha
acima e pelo cabelo adentro. Repugnante. — Seria uma honra
ajudá-la seja como for que pudermos. — Quase conto que ela
dê uma cotovelada a Evangeline para que exprima
concordância. Em vez disso, a mulher Viper volta a sua
atenção para mim, tão depressa que não tenho tempo de
desviar os olhos. — Há alguma razão para que a prisioneira
esteja de olhos fitos em mim?
— Nenhuma — respondo, tiritando os dentes.
Larentia toma o meu contacto visual por um desafio. Como
um animal. Avança, transpondo a distância entre nós. Somos
da mesma altura. A cobra no seu cabelo continua a silvar,
enroscando-se e serpenteando-lhe para a clavícula. Os seus
olhos brilhantes como joias encontram os meus, e a sua língua
negra bifurcada lambe o ar, dardejando por entre as longas
presas. Embora eu me mantenha firme, não posso evitar
engolir com força, a minha boca subitamente seca. A cobra
continua a olhar para mim.
— Dizem que você é diferente — resmunga Larentia em
surdina. — Mas o seu medo tem o mesmo cheiro de qualquer
vil ratazana Vermelha que já tive o infortúnio de conhecer.
Ratazana Vermelha. Ratazana Vermelha.
Ouvi isto tantas vezes. Pensei-o a meu respeito. Vindo dos
lábios dela faz estalar algo em mim. O controlo que tanto me
esforcei por conservar, que devo manter se quero permanecer
viva, ameaça dar de si. Respiro a custo, intentando permanecer
imóvel. As cobras dela continuam a silvar, enroscando-se
umas sobre as outras em negros emaranhados de colunas
escamadas. Algumas são suficientemente compridas para me
alcançarem se ela o desejar.
Maven solta um suspiro do fundo da garganta. — Guardas,
penso que está na hora de a Menina Barrow regressar ao seu
quarto.
Giro nos calcanhares antes que os Arven possam pular para
o meu lado, retirando-me para a pretensa segurança da sua
presença. Algo a ver com as cobras, digo de mim para mim.
Não podia suportá-las. Não admira que Evangeline seja
horrenda, com uma mãe como aquela a criá-la.
Enquanto fujo de volta para o meu quarto, sou tomada por
uma importuna sensação. Alívio. Gratidão. Para com Maven.
Esmago essa vil explosão de emoção com toda a raiva que
tenho. Maven é um monstro. Nada sinto senão ódio por ele.
Não posso permitir que algo mais, nem mesmo piedade, se
insinue.
TENHO DE ESCAPAR.
Dois longos meses passam.
O casamento de Maven será dez vezes mais produzido do
que foi o Baile da Despedida, ou mesmo a Prova da Rainha. A
nobreza Prateada acorre de volta à capital, trazendo consigo
comitivas de todos os cantos de Norta. Mesmo aqueles que o
rei exilou. Maven sente-se suficientemente seguro na sua nova
aliança para permitir que mesmo sorridentes inimigos
transponham a sua porta. Embora a maioria tenha casas
citadinas suas, muitos tomam residência no Fogo Branco, até
que o próprio palácio parece prestes a rebentar pelas costuras.
Eu sou mantida no quarto a maior parte do tempo. Não me
importo. É melhor assim. Mas mesmo da minha cela posso
sentir a tempestade iminente de um casamento. A tangível
união de Norta e das Lakelands.
O pátio sob a minha janela, vazio durante todo o inverno,
floresce numa subitamente tépida e verde primavera. Os
nobres caminham por entre as magnólias a passo indolente,
alguns de braço dado. Sempre sussurrando, sempre
maquinando ou mexericando. Quem me dera saber ler os
lábios. Porventura apuraria algo mais do que quais as casas
que se congregam juntas, as suas cores mais vívidas à luz do
sol. Maven teria de ser um tolo para pensar que eles não estão
a congeminar contra si ou a sua noiva. E ele é muitas coisas,
mas não isso.
A antiga rotina em que passei o meu primeiro mês de
isolamento — acordar, comer, sentar, gritar, repetir — já não
serve. Tenho maneiras mais úteis de passar o tempo. Não há
canetas nem papel e não me incomodo a pedir. De nada serve
deixar recados. Em vez disso olho os livros de Julian,
folheando ociosamente as páginas. Por vezes aferro-me a notas
rabiscadas, anotações garatujadas na caligrafia de Julian.
Interessante; curioso; corrobora o volume IV. Palavras soltas
com pouco significado. Passo os dedos pelas letras assim
mesmo, sentindo a tinta seca e a pressão de uma caneta há
muito desaparecida. O suficiente de Julian para me dar que
pensar, ler nas entrelinhas da página e das palavras ditas em
voz alta.
Ele rumina num volume em particular, mais fino que os de
história mas coberto de texto cerrado. A lombada está muito
danificada, as páginas atravancadas com escritos de Julian.
Quase posso sentir o calor das suas mãos que alisaram as
páginas amarrotadas.
Sobre as Origens, diz na capa a letra negra em relevo,
seguido pelos nomes de uma dúzia de eruditos Prateados que
escreveram os muitos ensaios e argumentos no interior do
pequeno livro. Na maior parte ele é demasiado complexo para
o meu entendimento, mas folheio-o ainda assim. Nem que seja
por Julian.
Ele marcou uma passagem em particular, dobrando o canto
da página e sublinhando algumas frases. Algo a ver com
mutações, mudanças. O resultado de antigo armamento que já
não possuímos e já não podemos criar. Um dos eruditos crê
que ele criou os Prateados. Outros discordam. Uns quantos
mencionam deuses em vez disso, talvez aqueles que Iris segue.
Julian torna clara a sua posição em notas ao fundo da
página.
Estranho que tantos se julgassem deuses, ou eleitos de um
deus, escreveu ele. Abençoados por algo maior. Elevados ao
que somos. Quando toda a evidência aponta para o oposto. As
nossas aptidões vieram da corrupção, de um flagelo que
matou muitíssimos. Nós não fomos os eleitos de um deus, mas
os amaldiçoados de um deus.
Pestanejo ante as palavras e interrogo-me. Se os Prateados
são amaldiçoados, então o que somos nós, sanguenovos?
Pior?
Ou estará Julian errado? Seremos eleitos também? E para
quê?
Homens e mulheres bem mais inteligentes do que eu não
têm respostas e eu tão-pouco as tenho. Para não falar que
tenho coisas mais prementes em que pensar.
Planeio enquanto tomo o pequeno-almoço, mastigando
lentamente enquanto recapitulo o que sei. Um casamento real
será um caos organizado. Segurança extra, mais guardas do
que os que posso contar, mas ainda assim uma boa
oportunidade. Serviçais por todo o lado, nobres embriagados,
uma princesa estrangeira para distrair as pessoas de costume
focadas em mim. Seria estúpida se nada tentasse. Cal seria
estúpido se nada fizesse.
Olho bem as páginas que tenho na mão, o papel branco e a
tinta negra. A Babá tentou salvar-me e acabou morta. Um
desperdício de vida. E egoisticamente quero que eles tentem
outra vez. Porque se aqui ficar muito mais tempo, se tiver de
viver o resto da minha vida alguns passos atrás de Maven, com
os seus olhos a assombrar-me e os seus pedaços em falta e o
seu ódio por toda a gente neste mundo…
Ódio por toda a gente exceto…
— Alto — silvo para comigo própria, resistindo ao impulso
de deixar entrar o monstro de seda que bate nas paredes da
minha mente. — Alto com isso.
A memorização da planta do Fogo Branco é uma boa
distração, aquela a que de costume recorro. Duas viragens à
esquerda da minha porta, ao longo de uma galeria de estátuas,
de novo à esquerda por uma escada em espiral abaixo… Traço
o caminho para a sala do trono, o átrio de entrada, o salão de
banquetes, diferentes gabinetes e câmaras de conselho, os
aposentos de Evangeline, o antigo quarto de Maven. Cada
passo que aqui dei, memorizei-o. Quanto melhor conhecer o
lugar, mais probabilidades tenho de escapar quando surgir a
oportunidade. Certamente Maven casar-se-á com Iris na Real
Corte, se não na própria Praça de César. Nenhum outro lugar
pode albergar tantos convivas e guardas. Não posso ver a corte
da minha janela e nunca estive lá dentro, mas atravessarei essa
ponte quando lá chegar.
Maven não me arrastou para o seu lado desde que
regressámos. Bom, digo de mim para mim. Um quarto vazio e
dias de silêncio são melhores do que as suas enjoativas
palavras. Ainda assim, sinto uma pontada de desapontamento
todas as noites quando fecho os olhos. Estou sozinha; tenho
medo; sou egoísta. Sinto-me esvaziada pela Pedra Silenciosa e
os meses que aqui passei, pisando o gume de outra navalha.
Seria tão fácil deixar soçobrar os pedaços soltos de mim. Seria
tão fácil deixá-lo reconstituir-me de volta à medida do seu
desejo. Talvez, dentro de alguns anos, não me sinta sequer
numa prisão.
Não.
Pela primeira vez em algum tempo, desfaço o prato do
pequeno-almoço contra a parede, gritando enquanto o faço. O
copo de água a seguir. Explode em fragmentos de cristal.
Partir coisas faz-me sentir um pouco melhor.
A minha porta abre-se de rompante passado meio segundo e
os Arven dão entrada. O Ovo é o primeiro a chegar ao meu
lado, sustendo-me na cadeira. Agarra-me com firmeza,
impedindo-me de me levantar. Agora já sabem o bastante para
me deixarem aproximar dos estragos enquanto fazem a
limpeza.
— Talvez devessem começar a servir-me em plástico —
zombo para ninguém em especial. — Parece melhor ideia.
O Ovo quer bater-me. Os seus dedos cravam-se-me nos
ombros, provavelmente deixando contusões. A Pedra
Silenciosa faz doer até ao osso. O estômago revolve-se-me
quando constato que mal me consigo lembrar do que é não
estar sob constante e cauterizante dor e angústia.
Os outros guardas varrem os detritos, impávidos com o
vidro a passar-lhes pelas mãos enluvadas. Só quando eles
desaparecem, a sua pulsante presença desvanecendo-se, tenho
de novo forças para me pôr em pé. Irritada, fecho
violentamente o livro que não estava a ler. Genealogia da
Aristocracia de Norta, Volume IX, diz na capa. Inútil.
Sem nada melhor que fazer, ponho-o de volta na prateleira.
O livro com capa de couro desliza na perfeição entre os seus
irmãos, os volumes VIII e X. Talvez tire os outros livros e os
reordene. Perca uns segundos das horas sem fim.
Acabo no chão em vez disso, tentando alongar-me um
pouco mais do que ontem. A minha antiga agilidade é uma
ténue lembrança, restringida pelas circunstâncias. Tento
mesmo assim, esticando os dedos das mãos para os dos pés.
Os músculos das pernas ardem-me, uma sensação melhor que
o penoso desconforto. Persigo a dor. É uma das únicas coisas a
lembrar-me que ainda estou viva nesta concha.
Os minutos esvaem-se um atrás do outro e o tempo alonga-
se comigo. Lá fora, a luz muda à medida que as nuvens
primaveris se perseguem umas às outras diante do Sol.
A batida na porta é suave, insegura. Nunca ninguém se
dignou bater, e o meu coração dá um salto. Mas o jorro de
adrenalina logo se esgota. Um salvador não bateria.
Evangeline abre a porta, não aguardando um convite.
Não me mexo, enraizada no lugar por um súbito jorro de
medo. Encolho as pernas sob o corpo. Pronta a saltar, se
necessário for.
Ela olha-me do alto do seu nariz, o seu superior eu do
costume num longo e cintilante casaco e perneiras de couro
bem justas. Por um momento queda-se imóvel e trocamos
olhares em silêncio.
— És assim tão perigosa que nem sequer te deixam abrir
uma janela? — Funga o ar. — Fede aqui dentro.
Os meus músculos contraídos relaxam um bocadinho. —
Então estás enfastiada — resmungo em surdina. — Vai
chocalhar a jaula de outro qualquer.
— Talvez depois. Mas por agora servirás tu.
— Não me apetece mesmo ser o alvo para os teus dardos.
Ela estala os lábios. — Oh, não o meu.
Com uma mão agarra-me pela axila e põe-me de pé. Assim
que o seu braço entra na esfera da minha Pedra Silenciosa, a
sua manga cai, soçobrando no chão em pedaços de cintilante
pó de metal. Rapidamente se reconstitui e volta a cair,
movendo-se a um ritmo regular e estranho enquanto ela me faz
marchar do quarto para fora.
Não me debato. De nada serve. A seu tempo ela afrouxa a
mão e deixa-me andar sem o seu ferrão.
— Se querias levar o bicho a passear, tudo o que tinhas a
fazer era pedir — rosno para ela, massajando a mais recente
contusão. — Não tens uma nova rival para odiar? Ou é mais
fácil implicar com uma prisioneira do que com uma princesa?
— Iris é demasiado calma para o meu gosto — dispara ela.
— Tu ainda mordes, pelo menos.
— É bom saber que te divirto. — O corredor vira diante de
nós. Esquerda, direita, direita. A planta do Fogo Branco aguça-
se na minha imaginação. Passamos pelas tapeçarias da fénix a
vermelho e negro, os rebordos cravejados de verdadeiras
pedras preciosas. Depois por uma galeria de estátuas e quadros
dedicados a Caesar Calore, o primeiro rei de Norta. Para lá
dela, meio lanço de degraus de mármore abaixo, fica o que
denomino Galeria da Batalha. Um longo corredor iluminado
por claraboias, as paredes de cada lado dominadas por dois
monstruosos quadros, inspirados na Guerra Lakelander,
estendendo-se do chão até ao teto. Mas ela não me conduz
através das cenas pintadas de morte e glória. Não nos
dirigimos para os pisos da corte do palácio. As paredes
tornam-se mais ornamentadas, mas com menos exibições
públicas de opulência à medida que ela me conduz para a
residência real. Um número crescente de pinturas douradas de
reis, políticos e guerreiros vê-me passar, na sua maioria com o
caraterístico cabelo negro dos Calore.
— O Rei Maven deixou-te conservar os teus aposentos, pelo
menos? Ainda que te tenha tirado a coroa?
Os lábios dela retorcem-se. Num sorriso malicioso, não
numa carranca. — Estás a ver? Nunca desiludes. Só dentadas,
Mare Barrow.
Nunca antes passei por estas portas. Mas posso adivinhar
onde conduzem. Demasiado grandioso para pertencer a
alguém que não um rei. Madeira branca lacada, adornos de
prata e ouro, embutidos de madrepérola e rubi. Evangeline não
bate desta vez e empurra as portas para diante, para darmos
connosco numa opulenta antecâmara ladeada por seis
Sentinelas. Eriçam-se à nossa presença, levando as mãos às
armas, os olhos argutos por trás das suas cintilantes máscaras.
Ela não se deixa ficar. — Digam ao rei que Mare Barrow
está aqui para vê-lo.
— O rei está indisposto — responde um. A sua voz treme
de poder. Um banshee21. Ele podia matar-nos com um grito, se
lhe dessem oportunidade. — Retire-se, Senhora Samos.
Evangeline não mostra medo e passa uma mão pela longa
trança de prata. — Digam-lhe — ordena. Não tem de baixar a
voz ou rosnar para ser ameaçadora. — Ele quererá saber.
O coração martela-me no peito. O que faz ela? Porquê? Da
última vez que ela decidiu fazer-me desfilar pelo Fogo Branco
acabei à mercê de Samson Merandus, a minha mente fendida
ao seu vasculhar. Ela tem um intento. Ela tem motivos. Se ao
menos soubesse quais são poderia fazer o oposto.
Um dos Sentinelas cede antes que ela o faça. É um homem
corpulento, os seus músculos evidentes mesmo por baixo das
dobras das vestes de fogo. Inclina o rosto, as joias negras da
sua máscara refletindo a luz. — Um momento, minha senhora.
— Não suporto os aposentos de Maven. O simples facto de
estar aqui dá-me a sensação de pisar areia movediça. De
mergulhar no oceano, de cair de um penhasco. Manda-nos
embora. Manda-nos embora.
O Sentinela regressa rapidamente. Quando acena aos seus
camaradas para que se descontraiam, sinto um baque no
estômago. — Por aqui, Barrow. — Faz-me sinal.
Evangeline dá-me um ligeiríssimo empurrão, exercendo
pressão na base da minha espinha. Perfeitamente executada.
Avanço cambaleante.
— Só a Barrow — acrescenta o Sentinela. Olha os Arven
em sucessão.
Eles ficam onde estão, deixando-me ir. O mesmo faz
Evangeline. Os seus olhos escurecem, mais negros que nunca.
Sou tomada por uma estranha ânsia de agarrar nela e trazê-la
comigo. Enfrentar Maven sozinha, aqui, é subitamente
aterrorizador.
O Sentinela, provavelmente um strongarm Rhambos, não
tem de me tocar para me conduzir, qual ovelha, na direção
apropriada. Atravessamos uma sala de estar inundada de sol,
estranhamente vazia e parcamente decorada. Nada de cores de
casa, nada de quadros e esculturas, ou mesmo livros. O antigo
quarto de Cal estava atravancado, a transbordar de diferentes
tipos de armaduras, dos seus preciosos manuais, até mesmo
um jogo de tabuleiro. Pedaços dele espalhados por todo o lado.
Maven não é o seu irmão. Não tem motivo para representar,
não aqui, e o quarto reflete o rapaz oco que verdadeiramente é
por dentro.
A cama é estranhamente pequena. Construída para uma
criança, ainda que o quarto fosse claramente arranjado para
conter algo muito, muito maior. As paredes são brancas, sem
adornos. As janelas são a única decoração, sobranceiras a um
canto da Praça de César, ao Rio Capital e à ponte que em
tempos ajudei a destruir. Transpõe as águas, ligando o Fogo
Branco à metade oriental da cidade. Vegetação irrompe para a
vida em cada direção, polvilhada de flores.
Lentamente, o Sentinela aclara a garganta. Olho de relance
para ele e sou tomada por um arrepio ao constatar que também
ele me vai abandonar. — Por ali — diz, apontando para outro
conjunto de portas.
Seria mais fácil se alguém me arrastasse. Se o Sentinela me
encostasse uma arma à cabeça e me fizesse transpô-las. Culpar
outra pessoa do movimento dos meus pés doeria menos. Em
vez disso sou apenas eu. Tédio. Curiosidade mórbida. O
constante e penoso desconforto de dor e solidão. Vivo num
mundo cada vez mais restrito, onde a única coisa em que
posso confiar é na obsessão de Maven. Tal como as algemas, é
um escudo e uma lenta, asfixiante morte.
As portas abrem-se para dentro, deslizando sobre mosaico
de mármore branco. Volutas de vapor no ar. Não do rei de fogo
propriamente dito, mas de água quente. Ferve indolentemente
à sua volta, leitosa de sabão e óleos perfumados. Ao contrário
da cama, a banheira é grande, assente sobre garras de prata.
Ele tem um cotovelo pousado de cada lado da imaculada
porcelana, os dedos vogando preguiçosamente através dos
torvelinhos de água.
Maven dá por mim quando entro, os seus olhos elétricos e
letais. Nunca o vi tão indefeso e tão zangado. Uma rapariga
mais esperta virar-se-ia e fugiria. Em vez disso, fecho a porta
atrás de mim.
Não há onde me sentar, pelo que permaneço de pé. Não sei
ao certo para onde olhar, pelo que me foco no seu rosto. O seu
cabelo está despenteado, todo molhado. Os caracóis escuros
agarram-se-lhe à pele.
— Estou ocupado — sussurra.
— Não tinhas de me deixar entrar. — Desejo reaver as
palavras mal as profiro.
— Tinha, sim — afirma, querendo dizer tudo e mais alguma
coisa. Depois pestaneja, quebrando o olhar fixo. Reclina-se,
encostando a cabeça à porcelana de modo a poder fitar o teto.
— De que precisas?
De uma saída, de perdão, de uma boa noite de sono, da
minha família. A lista estende-se por aí fora, interminável.
— Evangeline arrastou-me para aqui. Não quero nada de ti.
Ele emite um ruído do fundo da garganta. Quase uma
risada. — Evangeline. Os meus Sentinelas são uns cobardes.
Se Maven fosse meu amigo avisá-lo-ia para não subestimar
uma filha da Casa Samos. Em vez disso sustenho a língua. O
vapor cola-se-me à pele, febril como carne a arder.
— Ela trouxe-te aqui para me convenceres — diz ele.
— Convencer-te a fazer o quê?
— Casar com Iris, não casar com Iris. Certamente não te
mandou aqui para uma chávena de chá.
— Não. — Evangeline continuará a maquinar para uma
coroa de rainha até ao segundo em que Maven a puser na
cabeça de outra rapariga. Foi para isso que foi feita. Tal como
Maven foi feito para outras coisas mais horríveis.
— Ela pensa que o que sinto por ti me pode toldar o
julgamento. Tolices.
Encolho-me. A marca na minha clavícula arde-me,
cauterizante, sob a camisa.
— Ouvi dizer que deste em estilhaçar coisas outra vez —
continua ele.
— Tens mau gosto a escolher loiça.
Ele arreganha um sorriso para o teto. Um sorriso retorcido.
Como o do irmão. Por um segundo, o rosto de Maven
transforma-se no de Cal, as suas feições alterando-se. Com um
choque, constato que estou aqui há mais tempo do que aquele
em que privei com Cal. Conheço o rosto de Maven melhor do
que o dele.
Ele muda de posição, fazendo a água ondular ao suspender
um braço para fora. Desvio o olhar de repelão, olho para
baixo, para os mosaicos. Tenho três irmãos e um pai que não
pode andar. Passei meses partilhando um glorificado buraco
com uma dúzia de homens e rapazes malcheirosos. Não me é
estranha a forma masculina. O que não significa que queira ver
mais de Maven do que aquilo a que sou obrigada. De novo
sinto-me à beira de areia movediça.
— O casamento é amanhã — diz ele finalmente. A sua voz
ressoa no mármore.
— Oh!…
— Não sabias?
— Como podia? Não sou exatamente mantida informada.
Maven encolhe os ombros, bem para cima. Outro
movimento de água, mostrando mais da sua pele branca. —
Sim, bem, não pensei realmente que fosses começar a partir
coisas à minha conta, mas… — Faz uma pausa e olha na
minha direção. Sinto um formigueiro no corpo. — Soube-me
bem interrogar-me.
Se não houvesse consequências faria uma carranca, gritaria
e arrancar-lhe-ia os olhos das órbitas. Diria a Maven que
embora o meu tempo com o seu irmão fosse fugaz, ainda
recordo cada pulsar de coração que partilhámos. A sensação
dele bem encostado a mim enquanto dormíamos, sozinhos,
trocando pesadelos. A mão dele no meu pescoço, carne sobre
carne, fazendo-me olhar para ele enquanto caíamos do céu. O
seu cheiro. O seu sabor. Amo o teu irmão, Maven. Estavas
certo. Tu és apenas uma sombra, e quem olha para sombras
quando se tem chamas? Quem poderia alguma vez escolher
um monstro em vez de um deus? Não posso atingir Maven com
relâmpagos, mas posso destruí-lo com palavras. Remexer os
seus pontos fracos, abrir-lhe as feridas. Deixá-lo sangrar e
cicatrizar em qualquer outra coisa pior do que alguma vez foi.
As palavras que logro proferir são muito diferentes.
— Gostas da Iris? — pergunto em vez disso.
Ele coça o couro cabeludo com uma mão e abespinha-se,
infantil. — Como se isso tivesse alguma coisa que ver.
— Bem, ela é a primeira nova relação que terás desde que a
tua mãe morreu. Será interessante ver como isso se desenrola
sem o veneno dela em ti. — Tamborilo os dedos nos flancos.
As palavras aterram devagar, e ele mal assente. Concordando.
Sinto uma torrente de piedade por ele. Luto com unhas e
dentes contra ela. — E ficaste noivo há dois meses. Parece
rápido, pelo menos mais rápido do que o teu compromisso
com Evangeline.
— Isso tende a acontecer quando todo um exército está
suspenso na balança — diz ele bruscamente. — Os
Lakelanders não são conhecidos pela sua paciência.
Troço. — E a Casa Samos é assim tão obsequiosa?
Um canto da sua boca ergue-se num fantasma daquele
sorriso retorcido. Ele remexe numa das suas pulseiras lança-
flamas, fazendo rodar lentamente o aro de prata em torno do
pulso de ossos delicados. — Eles têm os seus usos.
— Julguei que Evangeline já te tivesse transformado numa
almofada de alfinetes.
O sorriso dele rasga-se. — Se ela me matar perde qualquer
hipótese que acha que tem, por mais fugidia que seja. Não que
o pai dela alguma vez o permitisse. A Casa Samos mantém
uma posição de grande poder, mesmo que ela não seja rainha.
Mas que rainha teria ela dado…
— Só posso imaginar. — O pensamento faz-me estremecer.
Coroas de agulhas e adagas e lâminas, a mãe com cobras por
joias e o pai a suster os cordelinhos do fantoche Maven.
— Eu não posso — admite ele. — Não realmente. Mesmo
agora, apenas a vejo sempre como a rainha de Cal.
— Não tinhas de escolhê-la depois de o tramares…
— Bem, não podia exatamente escolher a pessoa que queria,
não é? — dardeja. Em vez de calor sinto o ar à nossa volta
tornar-se frio. O suficiente para me fazer pele de galinha
enquanto ele me fita, os seus olhos de um azul lívido e
cauterizante. O vapor na atmosfera dissipa-se na corrente de ar
mais frio, removendo a ténue barreira entre nós.
Tremendo arrepiada, forço-me a ir até à janela mais
próxima, virando-lhe costas. Lá fora, as magnólias
estremecem sob uma ligeira brisa, as suas flores brancas,
cremosas e róseas à luz do sol. Tão simples beleza não tem
lugar aqui sem a corrupção de sangue, ambição ou traição.
— Atiraste-me para uma arena para morrer — digo-lhe
lentamente. Como se qualquer um de nós se pudesse esquecer.
— Manténs-me acorrentada no teu palácio, guardada noite e
dia, deixas-me definhar, doente…
— Julgas que me dá gozo ver-te assim? — murmura. —
Julgas que te quero manter prisioneira? — Algo lhe prende a
respiração. — É a única forma de ficares comigo. — A água
esparrinha-lhe em torno das mãos enquanto as mexe para trás
e para diante.
Foco-me no som e não na sua voz. Mesmo sabendo o que
ele faz, embora sentindo o seu aperto intensificar-se mais, não
posso impedi-lo de me puxar para baixo. Seria facílimo deixar-
me afogar. Parte de mim assim quer.
Mantenho os olhos na janela. Para variar, congratulo-me
pelo mais que familiar e penoso desconforto da Pedra
Silenciosa. É um inegável lembrete do que ele é e do que o seu
amor significa para mim.
— Tentaste assassinar todas as pessoas de quem gosto.
Mataste crianças. — Um bebé, ensanguentado, uma nota no
seu pequeno punho. Lembro-me disso tão vividamente que
bem podia ser um pesadelo. Não tento forçar a imagem para
longe. Preciso de me lembrar dela. Preciso de me lembrar do
que ele é. — Por tua causa, o meu irmão está morto.
Giro para ele, ladrando uma agreste, vingativa risada. A
raiva aclara-me a cabeça.
Ele senta-se bruscamente, o seu tronco nu quase tão branco
como a água do banho.
— E tu mataste a minha mãe. Tiraste-me o meu irmão.
Tiraste-me o meu pai. No segundo em que caíste no mundo, as
rodas começaram a mover-se. A minha mãe olhou dentro da
tua cabeça e viu oportunidade. Viu uma possibilidade que
procurava desde sempre. Se não tivesses… se nunca
tivesses… — Engasga-se, as palavras acorrendo mais rápidas
do que consegue detê-las. Então cerra os dentes, reprimindo
qualquer coisa mais condenatória. Outro alento de silêncio. —
Não quero saber como teria sido.
— Eu sei — rosno. — Eu teria acabado numa trincheira,
obliterada ou feita em pedaços ou mal sobrevivendo como
uma morta-viva. Eu sei no que me teria tornado, porque um
milhão de outros o vivem. O meu pai, os meus irmãos, tanta
gente.
— Sabendo o que sabes agora… voltarias atrás? Escolherias
essa vida? O recrutamento, a tua lamacenta aldeia, a tua
família, esse rapaz pescador?
Tantos morreram por minha causa, por causa do que eu sou.
Se fosse uma simples Vermelha, simplesmente Mare Barrow,
eles estariam vivos. Shade estaria vivo. Os meus pensamentos
atêm-se a ele. Trocaria tantas coisas para o ter de volta.
Trocar-me-ia a mim própria mil vezes. Mas depois há os
sanguenovos encontrados e salvos. Os rebeldes ajudados. Uma
guerra terminada. Prateados virando-se uns contra os outros.
Vermelhos unindo-se. Eu tive uma mão em tudo isso, por
pequena que fosse. Cometeram-se erros. Erros meus. Erros
sem conta. Estou longe de ser perfeita, ou mesmo boa. A
verdadeira pergunta consome-me o cérebro. O que Maven está
realmente a perguntar. Abririas mão da tua aptidão, trocarias
o teu poder para voltar atrás? Não preciso de tempo para
descobrir a resposta.
— Não — sussurro. Não me lembro de me aproximar tanto
dele, a minha mão cerrando-se no rebordo da banheira de
porcelana. — Não, não o faria.
A confissão queima mais que uma chama, corroendo-me as
entranhas. Odeio-o pelo que me faz sentir, pelo que me faz
constatar. Interrogo-me se conseguirei agir com rapidez
suficiente para o incapacitar. Cerrar um punho, rebentar-lhe o
maxilar com a dura algema. Poderão os curadores de pele
fazer crescer dentes novos? Não vale realmente a pena tentar.
Não viveria para descobri-lo.
Ele fita-me. — Aqueles que sabem o que é estar na
escuridão tudo farão para ficarem na luz.
— Não ajas como se fôssemos iguais.
— Iguais? Não. — Abana a cabeça. — Mas talvez…
estejamos quites.
— Quites? — De novo tenho vontade de desfazê-lo. Usar
unhas, dentes, para lhe rasgar a garganta. A insinuação é
cortante. Quase tanto como o facto de que ele até pode ter
razão.
— Eu costumava perguntar a Jon se ele podia ver futuros
que já não existem. Ele disse que os caminhos estavam sempre
a mudar. Uma mentira fácil. Permitiu que me manipulasse de
uma forma que nem Samson conseguiu. E quando me
conduziu a ti, bem, não contestei. Como deveria eu saber o
veneno que tu serias?
— Se eu sou um veneno, então livra-te de mim. Para de nos
torturar a ambos!
— Sabes que não posso fazê-lo, por muito que porventura o
queira. — As suas pestanas tremulam e os olhos vão para bem
longe. Para algum lugar onde nem eu posso alcançá-lo. — Tu
és como foi o Thomas. És a única pessoa de quem gosto, a
única pessoa que me lembra que estou vivo. Não vazio. E não
sozinho.
Vivo. Não vazio. Não sozinho.
Cada confissão é uma seta, perfurando cada terminação
nervosa até o meu corpo se transformar em fogo frio. Odeio
que Maven possa dizer tais coisas. Odeio que sinta o que eu
sinto, tema o que eu temo. Odeio; odeio. E se pudesse mudar
quem sou, a forma como penso, mudaria. Mas não posso. Se
os deuses de Iris são reais, certamente sabem que tentei.
— Jon recusava falar-me dos futuros mortos… dos futuros
já não possíveis. Mas eu penso neles — balbucia. — Um rei
Prateado, uma rainha Vermelha. Como teriam as coisas
mudado? Quantos estariam ainda vivos?
— Não o teu pai. Não Cal. E certamente não eu.
— Eu sei que é apenas um sonho, Mare — respinga ele.
Como uma criança corrigida na sala de aula. — Qualquer
oportunidade que tivéssemos, por mais pequena que fosse, foi-
se.
— Por tua causa.
— Sim. — Mais brando, uma admissão. — Sim.
Sem quebrar o contacto visual, Maven faz deslizar a
pulseira lança-flamas do pulso. Lentamente, deliberadamente,
metodicamente. Oiço-a cair no chão e rolar, o metal prateado
tinindo contra o mármore. A outra rapidamente se lhe segue.
Olhando ainda, ele inclina-se para trás na banheira e encosta a
cabeça. Expondo o pescoço. Nos meus flancos, as minhas
mãos crispam-se. Seria tão fácil. Cravar os meus dedos
morenos no seu pescoço pálido. Pôr nisso todo o meu peso.
Prendê-lo. Cal tem medo de água. Terá Maven? Eu podia
afogá-lo. Matá-lo. Deixar que a água do banho nos fervesse a
ambos. Ele desafia-me a fazê-lo. Parte dele porventura quer
que o faça. Ou talvez seja uma das mil armadilhas em que já
caí. Outro ardil de Maven Calore.
Ele pestaneja e exala, deixando escapar algo bem do fundo
de si próprio. Quebra o feitiço e o momento estilhaça-se.
— Serás uma das damas de honor de Iris amanhã. Diverte-
te.
Mais uma seta nas entranhas.
Quem me dera outro copo para atirar à parede. Uma dama
de companhia para o casamento do século. Hipótese alguma
de me escapulir. Terei de me postar diante de toda a corte.
Guardas por todo o lado. Quero gritar.
Usa a raiva. Usa a fúria, tento dizer a mim própria. Em vez
disso deixo-me simplesmente consumir e desesperar.
Maven limita-se a acenar indolentemente com a mão aberta.
— A porta está ali.
Tento não olhar para trás quando saio, mas não posso evitá-
lo. Maven fita o teto, os olhos vazios. E eu oiço Julian na
minha cabeça, sussurrando as palavras que escreveu.
Não os eleitos de um deus, mas os amaldiçoados de um
deus.
20
Ânimo, génio, vontade. (N. da T.)
21
Figura da mitologia celta, pressagiadora de morte, cujo grito podia estourar um
crânio. (N. da T.)
CAPÍTULO DEZOITO

Mare

P ara variar, não sou objeto de tortura. Se tivesse


oportunidade agradeceria a Iris por me permitir sentar-me
de lado e ser ignorada. Evangeline toma o meu lugar em vez
disso. Tenta parecer serena, não afetada pela cena à nossa
volta. O resto do séquito nupcial está sempre a olhar de
relance para ela, a rapariga que supostamente deveriam servir.
A qualquer momento, conto vê-la enroscar-se como uma das
cobras da sua mãe e desatar a silvar para qualquer pessoa que
ouse aproximar-se a uns passos da sua cadeira dourada. Afinal
de contas, estes aposentos eram os seus.
O salão foi genuinamente redecorado para a nova ocupante.
Tapeçarias azuis-claras, flores frescas em água límpida, e
várias suaves fontes tornam-no inconfundível. Uma princesa
das Lakelands reina aqui.
No centro da sala Iris rodeia-se de serviçais, camareiras
Vermelhas infinitamente dotadas na arte da beleza. Ela de
pouca ajuda precisa. Os seus malares altos como fragas e os
olhos escuros são magníficos por si só sem pintura. Uma
camareira entrança-lhe intrincadamente o cabelo negro numa
coroa, prendendo-a com alfinetes de safiras e pérolas. Outra
aplica rouge faiscante para esculpir uma já bela estrutura óssea
em algo etéreo e sobrenatural. Os seus lábios estão de um
púrpura carregado, aplicado com perícia. O próprio vestido,
branco desbotando para um azul-claro e cintilante na bainha,
destaca-lhe a pele morena com um brilho semelhante ao céu
momentos depois do sol-pôr. Muito embora a aparência seja a
última coisa com que me deveria preocupar, sinto-me uma
boneca descartada a seu lado. Estou novamente de vermelho,
simples em comparação com as joias e brocado do costume.
Se estivesse um pouco mais saudável, talvez também estivesse
bela. Não que me importe. Não é expectável que eu brilhe, não
quero brilhar — e ao pé dela certamente não brilharei.
Evangeline não poderia contrastar mais com Iris se tentasse
— e certamente tentou. Enquanto Iris avidamente representa o
papel de uma jovem e ruborizada noiva, Evangeline aceitou de
bom grado o papel da rapariga desprezada e posta de lado. O
seu vestido é de metal tão iridescente que podia ser feito de
pérola, com penas brancas laminadas e prata embutida por
todo ele. As suas próprias camareiras volteiam à sua volta,
depondo os toques finais na sua aparência. Ela fita Iris o
tempo todo, os olhos negros jamais vacilando. Só quando a
sua mãe se põe ao seu lado é que desvia o olhar, e aí só para se
arredar das borboletas verde-esmeralda que decoram as saias
de Larentia. As suas asas adejam ociosamente, como que
sopradas pela brisa. Um suave lembrete de que são seres
vivos, apensos à mulher Viper por aptidão apenas. Espero que
ela não tencione sentar-se.
Já vi outros casamentos, lá em casa nas Stilts. Grosseiras
reuniões. Umas quantas palavras vinculativas e uma festa
apressada. As famílias surripiam para providenciar comida
suficiente para os convidados, enquanto os mirones nada mais
obtêm do que um bom espetáculo. Kilorn e eu costumávamos
tentar beliscar os restos, se os houvesse. Encher os bolsos com
pãezinhos e pisgarmo-nos para gozar o saque. Não me parece
que vá fazê-lo hoje.
A única coisa a que deitarei mão será à longa cauda de Iris e
à minha sanidade.
— Que pena não poderem aqui estar mais membros da sua
família, Vossa Alteza.
Uma mulher mais velha, o cabelo todo grisalho, distancia-se
das muitas senhoras Prateadas que acompanham Iris. Cruza os
braços sobre um imaculado uniforme de gala. Ao contrário da
maioria dos oficiais, os seus distintivos são poucos, mas
impressionantes ainda assim. Nunca a vi antes, embora haja
algo familiar no seu rosto. Mas deste ângulo, com as suas
feições de perfil, não consigo situá-lo.
Iris inclina a cabeça para a mulher. Atrás dela, duas
camareiras prendem um véu cintilante no lugar. — A minha
mãe é a rainha governante das Lakelands. Deve estar sempre
sentada no trono. E a minha irmã mais velha, sua sucessora,
abomina deixar o nosso reino.
— Compreensível, em tempos tão tumultuosos. — A
mulher de idade curva-se em resposta, mas não tão
profundamente como seria de esperar. — As minhas
felicitações, Princesa Iris.
— Os meus agradecimentos, Vossa Majestade. Congratulo-
me que tenha podido juntar-se a nós.
Majestade?
A mulher mais velha vira-se completamente, voltando
costas a Iris enquanto as camareiras terminam o seu trabalho.
Os seus olhos caem em mim, semicerrando-se
ligeirissimamente. Com uma mão chama-me. Uma gigantesca
gema negra lampeja-lhe no dedo anelar. De um lado e do
outro, a Gatinha e a Trevo empurram-me para diante,
impelindo-me para a mulher que de alguma forma merece um
título.
— Menina Barrow — diz ela. A mulher é robusta, com
cintura larga, e tem uns bons centímetros mais que eu. Olho o
seu uniforme de relance, procurando as cores da casa que
distingam quem poderá ser.
— Vossa Majestade? — replico, usando o título. Soa como
uma pergunta, e verdadeiramente é-o.
Ela brinda-me com um sorriso divertido. — Quem me dera
tê-la conhecido antes. Quando se mascarava de Mareena
Titanos e não estava reduzida a esta… — toca-me ao de leve
na face, fazendo-me encolher — …a esta pessoa que definha.
Talvez então pudesse entender porque é que o meu neto
descartou o seu reino por si.
Os olhos dela são cor de bronze. Vermelho-dourado.
Conheceria os seus olhos fosse onde fosse.
Apesar do séquito matrimonial que enxameia à nossa volta,
das nuvens de seda e perfume, sinto-me resvalar de volta para
aquele horrível momento em que um rei perdeu a cabeça e um
filho perdeu o pai. E esta mulher perdeu um e outro.
Das profundezas da memória, dos meus momentos
desperdiçados a ler história, recordo o seu nome. Anabel, da
Casa Lerolan. Rainha Anabel. Mãe de Tiberias Sexto. Avó de
Cal. Agora vejo a sua coroa, ouro róseo e diamantes negros
aninhados no seu impecável penteado. Coisa pequena
comparada com o que a realeza em geral se pavoneia.
Ela recolhe a mão. Tanto melhor. Anabel é uma oblivion22.
Não quero os seus dedos perto de mim. Poderiam destruir-me
com um toque.
— Lamento pelo seu filho. — O Rei Tiberias não era um
homem amável, não para mim, não para Maven, não para mais
de metade do seu país vivendo e morrendo feito escravo. Mas
amava a mãe de Cal. Amava os filhos. Não era mau. Apenas
fraco.
O olhar dela não vacila. — Singular, uma vez que ajudou a
matá-lo.
Não há acusação na sua voz. Nem raiva. Nem fúria.
Ela está a mentir.
A Real Corte é destituída de cor. Apenas paredes brancas e
colunas negras, mármore, granito e cristal. Devora uma
multidão furta-cores. A nobreza aflui portas dentro, os seus
vestidos e fatos e uniformes coloridos de cada cintilante matiz.
Os últimos apressam-se, correndo para entrar antes que a
noiva real e o seu séquito comecem a desfilar pela Praça de
César. Centenas de Prateados mais apinham a extensão
ladrilhada, demasiado plebeus para merecerem um convite
para o casamento propriamente dito. Aguardam às carradas, de
cada lado de um caminho aberto ladeado por uma uniforme
distribuição de guardas de Norta e das Lakelands. As câmaras
observam também, elevadas em plataformas. E o reino
observa com elas.
Do meu lugar privilegiado, ensanduichada na entrada do
Fogo Branco, mal posso ver por sobre o ombro de Iris.
Ela mantém-se quieta, nem um cabelo fora do lugar. Plácida
como água parada. Não sei como consegue suportá-lo. O rei
seu pai dá-lhe o braço, as suas vestes azul-cobalto elétricas
contra a manga branca do vestido de noiva. Hoje a sua coroa é
de prata e safiras, a condizer com a dela. Não falam um com o
outro, focados no caminho à sua frente.
A cauda dela parece-me líquida entre as mãos. Seda tão fina
que me poderia escorrer por entre os dedos. Seguro-a bem,
nem que seja para evitar atrair mais atenções que as
necessárias. Por uma vez congratulo-me por ter Evangeline ao
meu lado. Ela segura o outro canto da cauda de Iris. A julgar
pelos sussurros das outras damas de honor, a visão é
praticamente um escândalo. Focam-se nela e não em mim.
Ninguém se digna morder o isco da rapariga-relâmpago sem as
suas faíscas. Evangeline leva tudo com aprumo, de mandíbula
firmemente cerrada. Não me dirigiu uma palavra. Outra
pequena bênção.
Algures soa uma trompa. E a multidão responde, virando-se
para o palácio em uníssono, um mar de olhos. Sinto cada olhar
à medida que avançamos para o patamar, degraus abaixo, para
a bocarra de uma exibição Prateada. A última vez que aqui vi
uma multidão estava ajoelhada e com coleira, ensanguentada,
contundida e de coração destroçado. Continuo a estar tudo
isso. Os dedos tremem-me. Os guardas empurram, enquanto a
Gatinha e a Trevo se mantêm coladas a mim em vestidos
simples mas apropriados. A multidão empurra mais e
Evangeline está tão perto que bem me poderia esfaquear entre
as costelas sem pestanejar. Sinto os pulmões comprimidos; o
peito contraído e a garganta que parece fechar-se. Engulo a
custo e forço-me a expelir uma longa exalação. Acalma-te.
Foco-me no vestido nas minhas mãos, nos centímetros diante
de mim.
Julgo sentir uma gota de água cair-me no rosto. Rezo para
que seja chuva e não lágrimas de nervosismo.
— Recompõe-te, Barrow — sibila uma voz. Poderia ser a
de Evangeline. Tal como com Maven, sinto um doentio acesso
de gratidão pelo magro apoio. Tento afugentá-la. Tento
chamar-me à razão. Mas, tal como um cão esfomeado,
aceitarei quaisquer restos que me sejam dados. Seja o que for
que passe por amabilidade nesta jaula solitária.
A minha visão entra em espiral. Não fossem os meus pés, os
meus queridos, lestos, seguros pés, porventura cambalearia.
Cada passo é mais difícil que o anterior. O pânico sobe-me
pela espinha. Afogo-me no branco do vestido de Iris. Até as
batidas de coração eu conto. Tudo para continuar a andar. Não
sei porquê, mas este casamento dá-me a sensação de mil portas
a fecharem-se. Maven duplicou a sua força e firmou o seu
controlo. Jamais lhe escaparei. Não depois disto.
A pedra debaixo de mim altera-se. Ladrilhos lisos e
quadrados tornam-se degraus. Tropeço no primeiro mas
endireito-me, sustendo a cauda no ar. Fazendo a única coisa de
que ainda sou capaz. Desviar-me para o lado, ajoelhar,
recolher-me, tornar-me amarga e faminta nas sombras. Será
isto o resto da minha vida?
Antes de entrar no bucho da Real Corte também, levanto os
olhos de relance. Para lá das esculturas de fogo e estrelas e
espadas e antigos reis, para lá das cúpulas de cristal da
cintilante abóbada. Até ao céu. Nuvens formam-se à distância.
Umas quantas já chegaram à praça, firmemente carregadas
pelo vento. Dissipam-se lentamente, desfazendo-se em
farrapos de nada. Prepara-se chuva, mas algo, provavelmente
storms Prateados, controladores do tempo, não deixa que isso
aconteça. Nada que arruíne o dia será permitido.
E então o céu desaparece, substituído por um teto
abobadado. Calcário liso forma arcos lá em cima, unidos por
espirais prateadas de chamas forjadas. Insígnias vermelhas e
negras de Norta e azuis das Lakelands decoram cada um dos
lados da antecâmara, como se alguém se pudesse esquecer dos
reinos cuja união estamos prestes a testemunhar. Os
murmúrios de um milhar de espectadores soam como
zumbidos de abelhas, aumentando a cada passo em frente que
dou. Lá adiante, a passagem alarga-se na câmara central da
Real Corte, um magnífico salão circular sob a abóbada de
cristal. O sol trepa pelas límpidas vidraças, iluminando o
espetáculo cá em baixo. Cada lugar está ocupado, envolvendo
em anel a metade exterior da câmara num halo de luz
lampejante. A multidão aguarda, sem fôlego. Não consigo ver
Maven ainda, mas posso adivinhar onde estará.
Outra qualquer hesitaria, um pouco que fosse. Iris não. Não
titubeia quando avançamos para a luz. Mil corpos pondo-se
em pé é algo quase ensurdecedor, e o ruído ressoa por toda a
câmara. Roupas roçagando, grande movimentação, sussurros.
Eu mantenho-me focada na minha respiração. Todavia, o meu
coração corre disparado. Quero levantar os olhos, assinalar as
entradas, as passagens que se ramificam, os pedaços deste
lugar que posso usar. Mas mal consigo andar, quanto mais
planear outra malfadada fuga.
Parece que passam anos até que alcancemos o centro.
Maven aguarda, a sua capa simplesmente tão opulenta como a
cauda de Iris e com praticamente igual comprimento. Constitui
uma impressionante figura em lampejante vermelho e branco
em vez de negro. A coroa é nova, forjada de prata e rubis
trabalhados em chamas. Brilha quando ele se move, virando a
cabeça para encarar a noiva que se aproxima e o respetivo
séquito. Os seus olhos dão comigo primeiro. Conheço-o
suficientemente bem para reconhecer pesar. Tremula, vivo por
um momento, dançando como o pavio de uma vela acesa. E
com igual facilidade, desaparece, deixando um rasto de
memória como fumo. Odeio-o, especialmente porque não
consigo lutar contra o agora familiar ímpeto de piedade pela
sombra da flama. Os monstros fazem-se. Assim foi com
Maven. Quem sabe o que deveria ele ser?
A cerimónia leva à vontade quase uma hora e tenho de
manter-me de pé o tempo todo ao lado de Evangeline e do
restante cortejo nupcial. Maven e Iris trocam palavras entre si,
juras e penhores instados por um juiz de Norta. Uma mulher
de simples vestes índigo fala igualmente. Das Lakelands,
depreendo — talvez uma emissária dos seus deuses? Eu mal
escuto. Tudo em que consigo pensar é num exército de
vermelho e azul, marchando através do mundo. As nuvens
continuam a rolar, cada qual mais escura que a anterior à
medida que passam pela cúpula, lá no alto. E cada qual se
desintegra. A tempestade quer romper, mas simplesmente não
parece lograr fazê-lo.
Sei qual é a sensação.
— Deste até ao meu último dia faço-me seu, Iris da Casa
Cygnet, princesa das Lakelands.
À minha frente, Maven estende uma mão. O fogo lambe-lhe
as pontas dos dedos, suave e fraco como chama de vela. Eu
poderia apagá-lo com um sopro, se tentasse.
— Deste até ao meu último dia faço-me sua, Maven da Casa
Calore, rei de Norta.
Iris imita-lhe o gesto, estendendo a sua mão. A sua manga
branca, orlada de azul-claro, cai graciosamente para trás,
expondo-lhe mais o braço macio que absorve humidade do ar.
Uma esfera de água límpida e trémula enche-lhe a palma da
mão. Quando ela une a mão à de Maven, uma aptidão destrói a
outra sem sequer um silvo de vapor ou fumo. Uma pacífica
união é feita e selada com um roçar de lábios.
Ele não a beija como me beijou a mim. Qualquer fogo que
pudesse ter está muito longe.
Quem me dera estar eu também.
O aplauso faz-me estremecer por dentro, sonoro como um
trovão. A maior parte das pessoas aclamam. Não as censuro.
Este é o último prego no caixão da Guerra das Lakelands.
Muito embora os Vermelhos morram aos milhares, aos
milhões, Prateados morrem também. Não lhes levo a mal as
suas celebrações de paz.
Outro rugido ressoa quando muitas cadeiras em torno da
Real Corte se movem, empurradas para trás sobre a pedra.
Encolho-me, interrogando-me se estaremos prestes a ser
esmagadas numa vaga de gente a desejar felicidades. Em vez
disso, os Sentinelas exercem pressão. Agarro-me à cauda de
Iris como a uma corda salva-vidas, deixando que os seus lestos
movimentos me puxem através da multidão que se levanta, de
volta lá para fora, para a Praça de César.
Claro está, o ruído arrasador apenas aumenta dez vezes.
Agitam-se bandeiras, irrompem vivas e uma chuva de
papelinhos paira sobre nós. Baixo a cabeça, tentando bloqueá-
lo. Em vez disso, os meus ouvidos começam a tinir. O som não
se dissipa, por mais que abane a cabeça. Uma dos Arven
agarra-me pelo cotovelo, os seus dedos cravando-se-me na
carne à medida que cada vez mais gente exerce pressão à
nossa volta. Os Sentinelas berram alguma coisa, instruindo a
multidão para se manter afastada. Maven vira-se para olhar
por sobre o ombro, o rosto afogueado de cinza em sinal de
excitamento ou nervos ou ambos. O tinido intensifica-se e
tenho de largar a cauda de Iris para tapar os ouvidos. Nada faz
senão atrasar-me, deixando-me de fora do seu círculo de
segurança. Ela continua, de braço dado com o seu novo
marido, com Evangeline no encalço de ambos. A vaga de
gente separa-nos.
Maven vê-me parar e ergue uma sobrancelha, apartando os
lábios para fazer uma pergunta. Os seus passos abrandam.
Então o céu põe-se negro.
Nuvens de tempestade assomam, escuras e pesadas,
arqueando-se sobre nós como fumo de infernal braseiro.
Relâmpagos rompem as nuvens, raios tingidos de branco, azul
e verde. Cada um recortado, vingativo, destrutivo.
Desnaturado.
O pulsar do meu coração ruge suficientemente alto para
abafar a multidão. Mas não o trovão.
O som estrondeia-me no peito, tão próximo e tão explosivo
que sacode o ar. Sinto-lhe o gosto na língua.
Não chego a ver o raio seguinte antes que a Gatinha e a
Trevo me lancem ao chão, que se danem os nossos vestidos.
Seguram-me os ombros, cravando mãos e aptidão nos meus
músculos doridos. O silêncio inunda-me o corpo,
suficientemente veloz e forte para me arrebatar o ar dos
pulmões. Arquejo, lutando para respirar. Os meus dedos
raspam o chão ladrilhado, sentindo algo a que se agarrarem. Se
conseguisse respirar, rir-me-ia. Esta não é a primeira vez que
alguém me derruba por terra na Praça de César.
Outro trovejar, outro lampejo de luz azul. O resultante
impulso de silêncio Arven quase me faz vomitar as entranhas.
— Não a mates, Janny. Não! — ruge a Trevo. Janny. O
verdadeiro nome da Gatinha. — Cortam-nos a cabeça se ela
morrer.
— Não sou eu — tento dizer sufocada. — Não sou eu.
Se a Gatinha e a Trevo conseguem ouvir, não o mostram. A
sua pressão não abranda, uma nova constante de dor.
Incapaz de gritar, forço-me a levantar a cabeça, procurando
alguém que me ajude. Procurando Maven. Ele porá termo a
isto. Odeio-me por pensá-lo.
Pernas atravessam-me a visão, uniformes negros, cores civis
e distantes e fugazes vestes vermelhas-alaranjadas. Os
Sentinelas continuam a avançar, firmes na sua formação. Tal
como no banquete que acabou num quase assassínio,
irrompem em bem ensaiada formação, focados no seu único
propósito: defender o rei. Mudam de direção rapidamente,
conduzindo Maven não na direção do palácio mas para o
Tesouro. Para o seu comboio. Para a sua fuga.
Fuga de quê?
A aberrante tempestade não é minha. Os relâmpagos não
são meus.
— Sigam o rei — rosna a Gatinha, Janny. Ergue-me nas
pernas bambas e quase caio de novo. As Arven não me
deixam. Nem a súbita muralha de oficiais uniformizados.
Rodeiam-me em formação de diamante, perfeita para cortar
através da multidão desenfreada. As Arven diminuem a sua
aptidão pulsada, nem que seja para me permitirem andar.
Arremetemos em uníssono enquanto os relâmpagos lá no
alto se intensificam. Não chove ainda. E não está
suficientemente quente ou árido para uma tempestade seca.
Estranho. Se ao menos pudesse senti-la. Usá-la. Atrair as
linhas entrecortadas do céu e obliterar toda e cada pessoa à
minha volta.
A multidão está perplexa. A maioria olha para cima; uns
quantos apontam. Alguns tentam recuar mas dão consigo
encurralados uns pelos outros. Olho de relance os rostos, à
procura de uma explicação. Vejo apenas confusão e medo. Se
a multidão entrar em pânico, interrogo-me se mesmo os
oficiais de Segurança conseguirão impedi-la de nos
esmagarem sob os seus pés.
Lá adiante, os Sentinelas de Maven alargam o fosso entre
nós. Uns quantos deram em lançar pessoas pelos ares. Um
strongarm faz fisicamente recuar um homem vários metros, ao
passo que uma telky varre para longe três ou quatro com um
aceno de mão. A multidão mantém-se ao largo depois disso,
desimpedindo o espaço em torno do rei em fuga com a sua
nova rainha. Através do tumulto, sustenho-lhe o olhar quando
se vira para trás à minha procura. Estão agora arregalados e
selvagens, vividamente azuis mesmo a tão grande distância.
Os seus lábios movem-se, berrando algo que não consigo
ouvir no meio do trovejar e do crescente pânico.
— Rápido! — ladra a Trevo, empurrando-me para diante
direita à abertura.
Os nossos guardas tornam-se agressivos, as suas aptidões
apresentando-se. Um swift investe para um e outro lado,
mantendo as pessoas fora do nosso caminho. Esfuma-se entre
corpos, um furacão. E então estaca subitamente.
O tiro atinge o swift entre os olhos. Demasiado próximo
para se esquivar, demasiado rápido para se escapar. A sua
cabeça é atirada para trás num arco de sangue e massa
encefálica.
Não conheço a mulher que empunha a arma. Tem cabelo
azul, tatuagens recortadas azuis — e um ensanguentado lenço
carmesim enrolado em torno do pulso. A multidão estremece à
sua volta, em choque por um instante, antes de irromper num
desenfreado caos.
Com uma mão fazendo ainda pontaria com a pistola, a
mulher de cabelo azul levanta a outra.
Relâmpagos são arrancados do céu.
Abatem-se direitos ao círculo de Sentinelas. Ela tem uma
pontaria mortal.
Ponho-me hirta, contando com uma explosão. Em vez disso,
os relâmpagos tingidos de azul atingem um súbito arco de
água cintilante, correndo ao longo do líquido mas não através
dele. Ramificam-se em veios e lampejam, quase ofuscantes,
mas desaparecem num instante, deixando apenas o escudo de
água. Por baixo dele, Maven, Evangeline e até mesmo os
Sentinelas agacham-se, com as mãos sobre as cabeças. Apenas
Iris se mantém de pé.
A água forma uma poça à sua volta, enroscando-se
serpenteante como uma das cobras de Larentia. Cresce a cada
segundo, aspirando tão depressa que sinto o ar secar-se-me na
língua. Iris não perde tempo, arrebatando o véu. Vagamente,
espero que não chova. Não quero saber o que pode Iris fazer
com a chuva.
Guardas Lakelanders lutam através da multidão, os seus
vultos azuis-escuros tentando irromper através da turba em
fuga. Oficiais de Segurança deparam-se com o mesmo
obstáculo e são encurralados, enredados na confusão.
Prateados correm disparados em cada direção. Alguns direitos
ao tumulto, outros para longe do perigo. Fico dividida entre ir
correr com eles e querer ir direita à mulher de cabelo azul. O
meu cérebro zumbe à medida que a adrenalina me percorre,
lutando com dentes e unhas contra o silêncio que asfixia o meu
ser. Relâmpagos. Ela brande relâmpagos. É uma sanguenovo.
Como eu. O pensamento quase me faz chorar de felicidade. Se
ela não sair daqui depressa acabará cadáver.
— Corre! — tento gritar. Sai um sussurro.
— Ponham o rei em segurança! — A voz de Evangeline
ressoa quando se põe de pé num salto. O seu vestido
rapidamente se transforma em armadura, formando-lhe
escamas ao longo da pele na forma de placas perladas. —
Evacuem!
Alguns dos Sentinelas obedecem, puxando Maven para a
sua formação protetora. A sua mão faísca com uma pequena
chama. Que se engasga, à imagem do seu medo. A restante
comitiva saca de armas suas ou explode em aptidões próprias.
Um Sentinela banshee abre a boca para gritar mas tomba sobre
um joelho, arquejante. Agarra-se à garganta. Não consegue
respirar. Mas porquê, devido a quem? Os seus camaradas
arrastam-no para trás, sufocando ainda.
Outro raio irrompe lá no alto, este demasiado brilhante para
ser olhado. Quando abro os olhos de novo, a mulher de cabelo
azul desapareceu, perdida na multidão. Algures, um tiroteio
polvilha o ar.
Arquejando, constato que nem toda a gente na multidão está
a fugir. Nem todos têm medo, ou estão sequer confundidos
com a explosão de violência. Movem-se de modo diferente,
com propósito, motivo, uma missão. Pistolas negras reluzem,
lampejando ao cravarem-se nas costas ou no estômago de um
guarda. Facas cintilam na escuridão crescente. Os gritos de
medo transformam-se em brados de dor. Corpos tombam,
soçobrando no ladrilhado da praça.
Lembro-me dos motins de Summerton. Vermelhos
perseguidos e torturados. Uma populaça virando-se contra os
mais fracos de entre eles. Foi desorganizado, caótico, sem
qualquer ordem. Isto é o oposto. O que parece pânico
desenfreado é o cuidadoso trabalho de umas quantas dezenas
de assassinos numa multidão de centenas. Abrindo-me num
sorriso, constato que todos têm algo em comum. À medida que
a histeria aumenta, cada qual ostenta um lenço vermelho.
A Guarda Escarlate está aqui.
Cal, Kilorn, Farley, Cameron, Bree, Tramy, o Coronel.
Estão aqui.
Com tudo o que tenho, atiro a cabeça para trás e lanço o
crânio contra o nariz da Trevo. Ela solta um uivo e sangue
prateado jorra-lhe pelo rosto. Num instante solta-me, deixando
apenas a Gatinha. Eu dou-lhe com um cotovelo nas entranhas,
esperando neutralizá-la. Ela larga-me o ombro, só para me
passar o braço em torno do pescoço e apertar.
Contorço-me, tentando obter espaço suficiente para dobrar o
pescoço e morder. Não tenho hipótese. Ela aumenta a pressão,
ameaçando esmagar-me a traqueia. A visão tolda-se-me e
sinto-me ser puxada para trás. Para longe do Tesouro, de
Maven, dos seus Sentinelas. Através da multidão letal. Salto
para trás quando alcançamos os degraus. Esperneio
debilmente, tentando agarrar-me a qualquer coisa. Os oficiais
de Segurança esquivam-se aos meus pobres esforços. Alguns
deixam-se cair de joelhos, de armas assestadas, cobrindo a
retirada. A Trevo assoma por cima de mim, a metade superior
do seu rosto pintada de sangue espelhado.
— Deem a volta através do Fogo Branco. Temos de seguir
ordens — sibila ela para a Gatinha.
Tento berrar um pedido de ajuda, mas não logro congregar
ar bastante para emitir um som. E de nada serviria. Algo mais
ruidoso que um trovão grita através do céu. Duas sombras.
Três. Seis. Aves metálicas com asas laminadas.
Snapdragons23? O Blackrun? Mas estes jatos aéreos parecem
diferentes daqueles que eu conheço. Mais lustrosos, mais
velozes. A nova frota de Maven, provavelmente. À distância,
uma explosão viceja com pétalas de fogo vermelho e fumo
negro. Estarão a bombardear a praça ou a Guarda Escarlate?
Enquanto as Arven me arrastam para dentro do palácio,
outro Prateado quase colide connosco. Estendo o braço. Talvez
esta pessoa ajude.
Samson Merandus olha-me desdenhoso, arrancando de
repelão o braço da minha mão. Afasto-me para trás como se o
seu toque queimasse. Só a sua visão é suficiente para me
provocar uma excruciante dor de cabeça. Não lhe foi
permitido assistir ao casamento, mas está ainda assim vestido
para ele, imaculado num fato azul-marinho com o cabelo
louro-cinza alisado sobre o crânio.
— Larguem-na e viro-vos a todos do avesso! — rosna ele
por sobre o ombro.
As Arven parecem ter mais medo dele do que de qualquer
outra pessoa. Assentem vigorosamente, tal como os três
restantes oficiais. Todos eles sabem o que um whisper
Merandus pode fazer. Se é que eu precisava de algum
incentivo mais para escapar, saber que Samson lhes obliterará
as mentes é-o certamente.
No último vislumbre que tenho da praça, sombras negras
assomam das nuvens, cada vez mais próximas. Mais
aeronaves. Mas estas são pesadas, infladas, não construídas
para velocidade ou mesmo combate. Talvez venham aí para
aterrar. Não chego a vê-las tocar o solo.
Luto o mais que posso, o que equivale a dizer que balbucio
e me contorço sob o peso do silêncio. Isso atrasa os meus
guardas, mas só um bocadinho. Cada centímetro parece
duramente conquistado mas inútil. Continuamos a avançar. Os
salões do Fogo Branco espiralam à nossa volta. Com a minha
memorização, sei exatamente para onde nos dirigimos. Rumo
à ala leste, a parte do palácio mais próxima do Tesouro. Deve
haver passagens para lá, outro caminho para o desalmado
comboio de Maven. Qualquer esperança de escapar
desaparecerá no segundo em que me enfiarem debaixo de
terra.
Três disparos ressoam, ecoando tão perto que os sinto no
peito. Seja o que for que se passa na praça, desagua lentamente
pelo palácio dentro. Na janela, chamas vermelhas explodem
no ar. Se de uma explosão, se de uma pessoa, não sei. Apenas
posso esperar. Cal. Estou aqui. Cal. Visualizo-o mesmo à
porta, um infernal braseiro de raiva e destruição. Arma numa
mão, fogo noutra, fazendo derramar toda a sua dor e fúria. Se
não me puder salvar, espero que consiga pelo menos
esfrangalhar o monstro que em tempos foi o seu irmão.
— Os rebeldes estão a invadir o Fogo Branco!
Sou sacudida por um choque ao som da voz de Evangeline
Samos. As suas botas ressoam ruidosamente no chão de
mármore, cada passo o golpe de um irado martelo. Sangue
prateado mancha-lhe o lado esquerdo do rosto, e o seu
elaborado cabelo está uma lástima, emaranhado e soprado pelo
vento. Ela cheira a fumo.
Do seu irmão nem vê-lo, mas ela não está sozinha. Wren, a
curadora de pele Skonos que passou tantos dias a tentar fazer-
me parecer viva, segue-a de perto. Provavelmente arrastada de
forma a assegurar que Evangeline não tenha de sofrer
arranhões por mais do que um instante.
Tal como Cal e Maven, Evangeline não é estranha ao treino
militar ou ao protocolo. Está de pés bem fincados, pronta a
reagir. — A biblioteca inferior e a antiga galeria foram
tomadas. Temos de levá-la por aqui. — Aponta o queixo para
um corredor perpendicular ao nosso. Lá fora lampeja um
relâmpago. Reflete-se na sua armadura. — Vocês três — ela
estala os dedos para três dos guardas — defendam-nos a
retaguarda.
O coração afunda-se-me no peito. Evangeline certificar-se-á
pessoalmente de que eu chego ao comboio.
— Hei de matar-te um dia — amaldiçoo-a por sob o braço
da Gatinha.
Ela deixa que a ameaça se perca, demasiado ocupada a
ladrar ordens. Os guardas obedecem num afã, deixando-se
ficar para trás para cobrir a nossa retirada. Alegram-se que
alguém assuma o comando nesta infernal confusão.
— O que se passa acolá? — ruge a Trevo quando corremos
para diante. O medo macula-lhe a voz. — Tu, arranja-me o
nariz — acrescenta, agarrando Wren pelo braço. A curadora de
pele Skonos trabalha a voar, repondo o nariz da Trevo no lugar
com um estalido audível.
Evangeline olha por sobre o ombro, não para a Trevo mas
para a passagem atrás de nós. Escurece à medida que a
tempestade lá fora transforma o dia em noite. O medo
perpassa-lhe pelo rosto. Coisa invulgar nela. — Havia plantas
na multidão, disfarçadas de nobres Prateados. Sanguenovos,
julgamos nós. Suficientemente fortes para aguentarem firmes
até… — Espreita ao virar da esquina antes de nos mandar
avançar com um aceno. — A Guarda Escarlate tomou
Corvium, mas não pensei que tivessem assim tanta gente.
Verdadeiros soldados, treinados, bem armados. Lançados do
céu como malditos insetos.
— Como entraram eles? Estamos sob apertados protocolos
de segurança para o casamento. Mais de mil soldados
Prateados, além dos novos animais de estimação de sangue
novo de Maven… — vocifera a Gatinha. Cala-se quando duas
figuras de branco surgem do vão de uma porta. O peso do
silêncio delas abate-se sobre mim, fazendo-me fraquejar os
joelhos. — Caz, Brecker, connosco!
Acho que Ovo e Trio são nomes melhores. Deslizam pelo
chão de mármore, disparados para se juntarem à minha prisão
em movimento. Se tivesse energia desataria a chorar. Quatro
Arvens e Evangeline. Qualquer laivo de esperança desaparece.
De nada servirá sequer implorar.
— Eles não podem vencer. É uma causa perdida — insiste a
Trevo.
— Eles não estão aqui para tomar a capital. Estão aqui por
ela — dardeja Evangeline.
Ovo empurra-me para diante. — Que desperdício de esforço
por este saco de ossos.
Contornamos outra esquina, até à longa e vasta Galeria da
Batalha. Comparada com o turbilhão na praça, parece serena,
as suas pinturas de cenas de guerra muito longe do caos.
Elevam-se altaneiras, fazendo-nos sentir anões junto da sua
vetusta grandiosidade. Não fosse o som distante de jatos
guinchando e violentos trovões, poderia iludir-me e acreditar
ser tudo um sonho.
— Deveras — diz Evangeline. Os seus passos fraquejam tão
ligeiramente que os outros não dão por nada. Mas eu sim. —
Que desperdício de esforço.
Retorce-se com suave graça felina, lançando ambas as mãos
para a frente. Vejo tudo como se o tempo tivesse abrandado.
As placas da sua armadura voam-lhe dos pulsos, velozes e
mortais como balas. As suas arestas reluzem, afiadas em
lâminas. Sibilam através do ar. E da carne.
O súbito cair do silêncio dá a sensação de um peso imenso
que se levanta. O braço da Trevo tomba-me do pescoço,
frouxo. Ela tomba também.
Quatro cabeças rolam para o chão, vertendo sangue. Os
corpos caem, todos de branco, mãos enluvadas de plástico. Os
seus olhos estão abertos. Não tiveram uma hipótese que fosse.
Sangue — o cheiro, a visão — assalta-me os sentidos e sinto o
gosto de bílis subir-me à garganta. A única coisa que me
impede de vomitar é o entrecortado espigão de medo e
constatação.
Evangeline não vai levar-me para o comboio. Vai matar-me.
Vai pôr fim a isto.
Parece chocantemente calma para quem acabou de
assassinar quatro dos seus. As placas de metal retornam para
os seus pulsos, deslizando para o lugar. Wren, a curadora de
pele, não se move, os olhos fixos no teto. Não verá o que se
vai passar de seguida.
De nada servirá fugir. Bem posso enfrentá-lo.
— Mete-te no meu caminho e mato-te lentamente —
sussurra ela, passando por sobre um cadáver para me agarrar
pelo pescoço. O seu hálito inunda-me. Morno, com um laivo
de hortelã. — Miúda-relâmpago!…
— Então acaba com isso — forço entredentes.
A esta distância constato que os olhos dela não são pretos
mas cinzento-carvão. Olhos de nuvens de tempestade.
Semicerram-se enquanto tenta decidir como me matar. Terá de
ser à mão. As minhas algemas não deixarão que as suas
aptidões me toquem na pele. Mas uma só faca dará
perfeitamente conta do recado. Espero que seja rápido, embora
duvide que ela tenha piedade suficiente para tal.
— Wren, se fazes favor — diz Evangeline, estendendo a
mão.
Em vez de uma adaga, a curadora de pele tira uma chave de
um bolso do cadáver decepado de Trio. Depõe-na na palma da
mão de Evangeline.
Quedo-me entorpecida.
— Sabes o que isto é. — Como podia não saber? Tenho
sonhado com esta chave. — Vou fazer um acordo contigo.
— Faz — sussurro, os meus olhos não se desviando do
pedaço pontiagudo de ferro preto. — Dar-te-ei seja o que for.
Evangeline agarra-me no maxilar, forçando-me a olhar para
ela. Nunca a vi tão desesperada, nem mesmo na arena. Os seus
olhos tremulam e o lábio inferior treme-lhe. — Perdeste o teu
irmão. Não me tires o meu.
Sinto uma explosão de raiva no estômago. Tudo menos isso.
Pois eu sonhei com Ptolemus também. Em abrir-lhe a
garganta, cortá-lo aos pedaços, eletrocutá-lo. Ele matou Shade.
Uma vida por outra. Um irmão por outro.
Os dedos dela cravam-se-me na pele, as unhas ameaçando
perfurar a carne. — Mentes e mato-te onde estás. Depois
matarei o resto da tua família. — Algures nos serpenteantes
corredores do palácio, os ecos de batalha elevam-se. — Mare
Barrow, faz a tua escolha. Deixa Ptolemus viver.
— Ele viverá — grasno eu.
— Jura-o.
— Juro.
As lágrimas assomam quando ela se move, fazendo deslizar
rapidamente uma algema e depois a outra. Evangeline lança
uma e outra o mais longe que pode. Quando termina, eu sou
uma trouxa desfeita em pranto.
Sem as algemas, a Pedra Silenciosa, o mundo parece-me
vazio. Desprovido de peso. Receio desaparecer flutuando.
Ainda assim, a fraqueza é quase debilitante, pior do que a
minha última tentativa de fuga. Seis meses dela não
desaparecerão num instante. Tento alcançar a minha aptidão,
tento sentir as lâmpadas por cima da minha cabeça. Mal posso
sentir o seu zumbido. Duvido que conseguisse sequer fundi-
las, algo que dantes dava por garantido.
— Obrigada — sussurro. Palavras que jamais pensei dizer-
lhe. Que a ambas abalam.
— Queres agradecer-me, Barrow? — resmunga ela
baixinho, dando um pontapé para longe no último dos meus
grilhões. — Então cumpre a tua palavra. E deixa que esta
porra de lugar arda.
Antes que lhe possa dizer que de nada servirei, que
precisarei de dias, semanas, meses para recuperar, Wren põe-
me as mãos no pescoço. Percebo agora porque é que
Evangeline arrastou consigo uma curadora de pele. Não por si.
Por mim.
Um calor inunda-me espinha abaixo, penetrando-me as
veias e os ossos e a medula. Pulsa por mim adentro tão
completamente que quase conto que a cura doa. Deixo-me cair
sobre um joelho, sobrepujada. Os penosos desconfortos
desvanecem-se. Dedos trémulos, pernas fracas, pulso lento —
cada último fantasma de Pedra Silenciosa foge ante o toque de
uma curadora. A minha cabeça jamais esquecerá o que me
aconteceu, mas o meu corpo rapidamente o faz.
A eletricidade jorra de volta, ribombando do mais profundo
de mim. Cada nervo guincha de vida. Pela galeria fora, as
lâmpadas estilhaçam-se nos seus candelabros. As câmaras
ocultas explodem em faíscas e fios suspensos. Wren dá um
salto para trás, com um ganido.
Olho para baixo e vejo púrpura e branco. Eletricidade nua
salta-me entre os dedos, silvando no ar. O empurrar-puxar é
aflitivamente familiar. A minha aptidão, a minha força, o meu
poder, estão de volta.
Evangeline dá um passo bem medido atrás. Os seus olhos
refletem as minhas faíscas. Cintilam.
— Mantém a tua promessa, rapariga-relâmpago.
A escuridão caminha comigo.
Cada luz chia e funde-se à minha passagem. O vidro
estilhaça-se, a eletricidade cospe. O ar zumbe como um fio
elétrico vivo. Acaricia-me as palmas das mãos abertas, e
arrepio-me à sensação de tal poder. Julgava ter-me esquecido
de como isto era. Mas é impossível. Posso esquecer-me de
praticamente tudo o mais neste mundo, mas não dos meus
relâmpagos. Não de quem e do que sou.
As algemas tornavam exaustivo andar. Sem elas a pesar-me,
voo. Direita ao fumo, ao perigo, ao que poderá finalmente ser
a minha salvação ou o meu fim. Não quero saber qual, desde
que não seja retida e enfiada nesta prisão infernal um segundo
mais. O meu vestido flutua em farrapos de rubis,
suficientemente rasgado para me deixar correr o mais depressa
que posso. As mangas ardem em brasa, queimando a cada
nova erupção de faíscas. Já não me contenho agora. Os
relâmpagos vão onde quiserem. Explodem através de mim a
cada pulsar do coração. Os raios púrpura-esbranquiçados
dançam-me ao longo dos dedos, irrompendo
intermitentemente das palmas das minhas mãos. Estremeço de
prazer. Jamais tive sensação tão maravilhosa. Continuo a olhar
para a eletricidade, enamorada de cada veio. Passou tanto
tempo. Passou tanto tempo.
É isto que os caçadores devem sentir. Cada esquina que
dobro, espero encontrar algum tipo de presa. Percorro a rota
mais curta que conheço, atravessando disparada a câmara do
conselho, os seus assentos vazios assombrando-me quando
corro direita ao selo de Norta. Se tivesse tempo obliteraria o
símbolo sob os meus pés. Estraçalharia cada pedaço da Coroa
Flamejante. Mas tenho uma verdadeira coroa a matar. Se
Maven ainda aqui estiver, se o desgraçado rapaz não tiver
fugido. Vou assistir ao seu último suspiro e saber que ele
jamais poderá segurar-me de novo pela trela.
Os oficiais de Segurança retrocedem na minha direção, de
costas para mim. Fazendo ainda o que Envangeline ordenou.
Os três têm as longas armas metidas nas curvas dos ombros, os
dedos nos gatilhos enquanto cobrem a galeria. Não sei os seus
nomes, apenas as suas cores. Casa Greco, todos strongarms.
Não precisam de balas para me matar. Um deles poderia partir-
me a espinha, esmagar-me o tórax, esborrachar-me o crânio
como uma uva. Sou eu ou eles.
O primeiro ouve os meus passos. Vira o queixo, olhando por
sobre o ombro. O meu relampejar guincha-lhe pela espinha
acima até ao cérebro. Sinto os seus nervos ramificarem-se por
uma fração de segundo. Depois escuridão. Os outros dois
reagem, voltando-se para me encarar. O relampejar é mais
rápido que eles, rachando-os.
Não abrando o ritmo, pulando em arco sobre os seus corpos
fumegantes.
O corredor seguinte segue ao longo da praça, as suas outrora
cintilantes janelas raiadas de cinza. Uns quantos candelabros
jazem esmagados contra o chão, em montes retorcidos de ouro
e vidro. Há corpos também. Oficiais de Segurança nos seus
uniformes negros, Guarda Escarlate com os seus lenços
vermelhos. O rescaldo de uma escaramuça, uma de muitas que
grassam dentro da batalha maior. Verifico a Guarda mais
próxima de mim, sentindo-lhe o pescoço. Não tem pulso. Os
olhos estão fechados. Congratulo-me por não a reconhecer.
Lá fora, outra explosão de relâmpagos azuis ramifica-se
através das nuvens. Não posso deixar de me abrir num sorriso,
os cantos da boca repuxando-me vivamente as cicatrizes.
Outro sanguenovo capaz de controlar relâmpagos. Não estou
sozinha.
Movendo-me rapidamente, tiro o que posso dos corpos.
Uma pistola e munições de um oficial. Um lenço vermelho da
mulher. Ela morreu por mim. Noutra altura, Mare, admoesto-
me, empurrando para o lado a areia movediça de tais
pensamentos. Usando os dentes, ato o lenço ao pulso.
Balas detonam contra as janelas, uma saraivada delas.
Encolho-me, deixando-me cair no chão, mas as janelas
aguentam firmes. Vidro de diamante. À prova de bala. Estou a
salvo atrás delas, mas igualmente encurralada.
Nunca mais.
Levanto-me deslizando contra a parede, tentando não ser
vista enquanto observo. O que observo faz-me arquejar.
O que foi uma celebração de casamento é agora uma guerra
declarada. Eu estava assombrada com a rebelião de casas, Iral
e Haven e Laris, contra a restante corte de Maven, mas isto
minimiza-a substancialmente. Centenas de oficiais de Norta,
guardas Lakelanders, mortais nobres da corte de um lado com
soldados da Guarda Escarlate do outro. Tem de haver
sanguenovos entre eles. Tantos soldados Vermelhos, mais do
que alguma vez julguei possível. Excedem os Prateados pelo
menos em cinco para um e são sem dúvida, claramente,
soldados. Treinados com precisão militar, do equipamento
tático à forma como se movem. Começo a interrogar-me como
chegaram sequer aqui, mas então vejo as aeronaves. Seis ao
todo, todas diretamente pousadas na própria Praça. Cada uma
cospe soldados, dezenas deles. Esperança e excitação rugem
através de mim.
— Que resgate infernal — não posso deixar de sussurrar.
E eu vou assegurar-me de que será bem-sucedido.
Não sou Prateada, não preciso congregar a minha aptidão
daquilo que me rodeia. Mas certamente mal não faz ter mais
eletricidade, mais energia à mão. Fechando os olhos, só por
um segundo, apelo a cada fio elétrico, cada pulsar, cada carga,
até à aderência estática dos cortinados. Elevam-se ao meu
comando. Abastecem-me, curam-me tanto quanto Wren.
Após seis meses de escuridão, finalmente sinto a luz.
Púrpura-esbranquiçado fulgura na orla da minha visão. O
meu corpo inteiro zune, a pele arrepiando-se sob o deleitoso
relampejar. Continuo a correr disparada. Adrenalina e
eletricidade. Sinto-me capaz de atravessar uma parede
correndo.
Mais de uma dúzia de oficiais de Segurança estão de guarda
no átrio de entrada. Um, um magnetron, ocupa-se a entaipar as
janelas com armações de candelabros retorcidos e painéis
dourados. Corpos e sangue de duas cores cobrem o chão. O
cheiro a pólvora tudo submerge, à exceção das explosões lá
fora. Os oficiais asseguram o lugar, mantendo a sua posição. A
sua atenção está na batalha lá fora, na Praça. Não nas suas
costas.
Agachando-me, ponho as mãos no mármore sob os meus
pés. Está frio sob os meus dedos. Dirijo o meu relampejar
contra a pedra, impelindo-o por sobre o chão numa ondulação
entrecortada de eletricidade. Pulsante, qual vaga, apanha-os a
todos desprevenidos. Alguns tombam, outros são impelidos
para trás. A força da explosão ecoa-me no peito. Se é
suficiente para matar, não sei.
O meu único pensamento é a Praça. Quando o ar livre me
atinge os pulmões, quase me rio. Está envenenado com cinzas,
sangue, o zumbido elétrico da tempestade de relâmpagos, mas
tem um sabor dulcíssimo. Acima de mim, as nuvens negras
ribombam. O som vive nos meus ossos.
Risco o céu de raios púrpura-esbranquiçados. Um sinal. A
rapariga-relâmpago está livre.
Não perco tempo. Estar postada nos degraus, sobranceira ao
tumulto, é uma boa forma de levar um tiro na cabeça.
Mergulho na refrega, procurando um único rosto familiar. Não
amigável, mas pelo menos familiar. As pessoas colidem à
minha volta sem rei nem roque. Os Prateados foram
apanhados de surpresa, impossibilitados de formarem as suas
ensaiadas fileiras. Só os soldados da Guarda Escarlate têm
algum tipo de organização, mas que rapidamente se
desmembra. Serpenteio na direção do Tesouro, o último lugar
onde vi Maven e o seu Sentinela. Foi apenas há uns minutos.
Ainda poderão lá estar, rodeados, tomando posição. Matá-lo-
ei. Tenho de fazê-lo.
As balas passam-me assobiando pela cabeça. Sou mais
baixa que a maioria, mas mesmo assim encolho-me ao correr.
O primeiro Prateado a desafiar-me de caras tem vestes
Provos, douradas e negras. Um homem fino com cabelo ainda
mais fino. Estende um braço e sou impelida para trás, batendo
com a cabeça no chão ladrilhado. Abro-me num sorriso para
ele, na iminência de uma risada, quando subitamente não
consigo respirar. O meu peito contrai-se, apertado. As minhas
costelas. Levanto os olhos e dou com ele postado acima de
mim, a mão cerrada em punho. O telky vai desfazer-me a caixa
torácica.
Relâmpagos elevam-se ao seu encontro, faiscando de ira.
Ele esquiva-se, mais rápido do que antecipei. A visão tolda-se-
me à medida que a falta de oxigénio me alcança o cérebro.
Mais um raio, mais um desvio.
Provos está tão focado em mim que não repara no
encorpado soldado Vermelho a uns metros de distância.
Trespassa-lhe a cabeça com um disparo antiblindagem. Não é
bonito de se ver. O meu vestido já arruinado fica salpicado de
prateado.
— Mare! — berra ele, apressando-se para o meu lado.
Reconheço a sua voz, o rosto castanho-escuro e os seus olhos
azul-elétrico. Mais quatro Guardas vêm com ele. Rodeiam-me,
protetores. Com mãos fortes, levanta-me e põe-me de pé.
Forçando uma exalação, sinto um arrepio de alívio. Quando
é que o amigo contrabandista do meu irmão se tornou um
verdadeiro soldado não sei, e agora não é altura de perguntar.
— Crance.
Com uma mão ainda na arma, ele ergue o rádio
engalfinhado no outro punho. — Aqui Crance. Tenho a
Barrow na Praça. — O silvo de resposta nula não é promissor.
— Repito. Tenho a Barrow. — Praguejando, ele enfia o rádio
de volta no cinto. — Os canais estão péssimos. Demasiada
interferência.
— Da tempestade? — Olho de relance para cima outra vez.
Azul, branco, verde. Semicerro os olhos e lanço outro raio
púrpura para a explosão de cor ofuscante.
— Provavelmente. O Cal avisou-nos…
O ar silva-me por entre os dentes. Agarro-o com força,
fazendo-o encolher-se. — Cal. Onde está ele?
— Tenho de te tirar…
— Onde?
Ele suspira, sabendo que não perguntarei de novo.
— Está em campo. Não sei exatamente onde! O vosso ponto
de encontro é o portão principal — berra-me ele ao ouvido,
certificando-se de que eu o oiço. — Cinco minutos. Agarra a
mulher de verde. Toma isto — acrescenta, despindo o pesado
blusão. Ponho-o por sobre o vestido esfarrapado sem
argumentar. Sinto-o pesado. — Blusão de artilharia.
Parcialmente à prova de bala. Dar-te-á alguma cobertura.
Os pés levam-me para longe antes sequer de poder dizer
obrigada, deixando Crance e a comitiva no meu rasto. Cal está
aqui algures. Andará à caça de Maven, tal como eu. A
multidão irrompe, qual maré que muda bruscamente. Não
fossem os Guardas a enfrentar a refrega, poderia abrir
passagem à força. Fazer explodir todos à minha frente, abrir
caminho através da Praça. Em vez disso confio nos meus
velhos instintos. Passos dançantes, agilidade, previsão de cada
pulsante vaga de caos. Relâmpagos seguem no meu rasto,
repelindo quaisquer mãos. Um strongarm derruba-me para o
lado, fazendo-me tombar por entre braços e pernas, mas não
volto para lutar com ele. Continuo em frente, a empurrar, a
correr. Um nome grita-me na cabeça. Cal. Cal Cal. Se
conseguir chegar junto dele estarei a salvo. Uma mentira
talvez, mas uma boa mentira.
O cheiro a fumo intensifica-se à medida que avanço. Um
fulgor de esperança. Onde há fumo há um príncipe de fogo.
Cinza e fuligem sujam as paredes brancas da Casa do
Tesouro. Um projétil de um jato aéreo arrancou um naco do
canto, cortando o mármore como manteiga. Jaz num monte de
destroços em torno da entrada, providenciando boa cobertura.
Os Sentinelas fazem bom uso dele, as suas fileiras reforçadas
pelos Lakelanders e uns quantos dos guardas do Tesouro de
uniformes púrpura. Alguns disparam contra os soldados da
Guarda Escarlate que se aproximam, usando balas para
defender a fuga do seu rei, e muitos mais recorrem às suas
aptidões. Contorno, disparada, uns quantos corpos petrificados
sobre os pés, violento trabalho de um shiver24 Gliacon. Outros
quantos estão vivos mas de joelhos, sangrando dos ouvidos.
Um banshee Marinos. A evidência de tantos Prateados mortos
está por todo o lado. Cadáveres trespassados de metal,
pescoços partidos, crânios esfacelados, bocas gotejando água,
um corpo particularmente macabro que parece ter sufocado
nas plantas que lhe crescem da boca para fora. Enquanto olho,
um greeny25 lança um punhado de sementes contra um ataque
em força da Guarda Escarlate. Ante os meus olhos, as
sementes explodem como granadas, cuspindo trepadeiras e
espinhos numa verdejante explosão.
Não vejo Cal aqui, ou quaisquer outros rostos que
reconheça. Maven já está no Tesouro, dirigindo-se para o
comboio.
Cerrando um punho, lanço tudo o que posso aos Sentinelas.
O meu relampejar estraleja ao longo do entulho, fazendo-os
fugir precipitadamente para trás. Vagamente, oiço alguém
gritar para avançar em força. Os Guardas Escarlates assim
fazem, continuando a disparar saraivada atrás de saraivada. Eu
mantenho a pressão, lançando outro braseiro de relâmpagos
através deles, qual sibilante chicote.
— Aí vem! — grita uma voz.
Levanto os olhos, contando com um golpe do céu. Jatos
aéreos dançam através das nuvens tempestuosas, perseguindo-
se uns aos outros. Nenhum deles parece ralado connosco.
Então alguém me empurra para o lado, tirando-me do
caminho. Viro-me a tempo de ver uma pessoa que reconheço
investir ao longo de um caminho desimpedido, de cabeça
baixa, couraçado na cabeça, pescoço e ombros. Ganha
velocidade, as pernas bombeando.
— Darmian!
Ele não me ouve, demasiado ocupado a investir contra o
bloqueio de mármore. As balas fazem ricochete na sua
armadura e na pele. Um shiver lança-lhe uma explosão de
pingentes de gelo ao peito, mas estilhaçam-se. Se é que tem
medo, não o mostra. Jamais hesita. Isso lhe ensinou Cal. Lá no
Entalhe. Quando estávamos todos juntos. Lembro-me de um
Darmian diferente então, quando o conheci. Era um homem
calmo comparado com Nix, outro sanguenovo que partilhava a
sua aptidão de carne impenetrável. Nix está morto há muito,
mas Darmian está bem vivo. Rugindo, amarinha pelo bloqueio
de mármore, direito a dois Sentinelas.
Eles caem em cima dele com quantas forças têm. Estúpidos.
Bem podiam estar a disparar contra vidro à prova de bala.
Darmian responde na mesma moeda, lançando granadas fria e
compassadamente. Desabrocham em fogo e fumo. Os
Sentinelas caem para trás, poucos deles capazes de suportar
uma explosão direta.
Os Guardas Escarlates saltam por sobre os destroços,
seguindo no rasto de Darmian. Muitos ultrapassam-no. Os
Sentinelas não são a sua missão. É Maven. Inundam o
Tesouro, investindo no encalço do rei.
À medida que corro em frente, deixo que a minha aptidão
exerça pressão adiante. Sinto as luzes da câmara principal do
Tesouro, espiralando por ali abaixo até ao rochedo sob nós. O
meu sentido pula ao longo dos fios elétricos, cada vez mais
fundo. Algo grande está parado lá em baixo, o seu motor um
crescente ronronar. Ele ainda aqui está.
O mármore debaixo dos meus pés é fácil de escalar.
Amarinho de gatas pelo entulho acima, a minha mente focada
trinta metros mais abaixo. A explosão de granada que se segue
apanha-me de surpresa. A sua força lança-me para trás numa
onda de calor. Aterro com força, deitada de costas, arquejante,
silenciosamente grata pelo blusão de Crance. A explosão
alastra como um braseiro acima de mim, suficientemente
próxima para me queimar o rosto.
Demasiado grande para uma granada. Demasiado
controlada para uma chama natural.
Ponho-me atabalhoadamente de pé, forçando as pernas a
obedecer enquanto aspiro profundamente ar para os pulmões.
Maven. Eu deveria ter sabido. Ele não me deixaria aqui em
cima. Não fugiria sem o seu animal de estimação predileto.
Veio ele próprio pôr-me as cadeias de novo.
Boa sorte.
Ao turbilhão de fogo segue-se fumo, toldando a Praça já
obscurecida. Rodeia-me, mais forte e mais quente a cada
segundo que passa. Firmando-me, lanço relâmpagos através de
todos os meus nervos, deixando-os estralejar centímetro após
centímetro. Dou um passo na direção do seu vulto, negro e
estranho à luz movediça do fogo. O fumo ondula, o fogo
disparando em furiosas chamas azuis. O suor escorre-me pelo
pescoço. Os meus punhos cerram-se, prontos a trespassá-lo
com cada gota de fúria acumulada na sua prisão. Tenho estado
à espera deste momento. Maven é um rei astuto, mas
combatente não é. Vou desfazê-lo em pedaços.
Relâmpagos ondulam sobre as nossas cabeças, mais
fulgurantes que as chamas. Iluminam-no quando o vento
levanta, soprando o fumo e revelando…
Uns olhos vermelho-bronze. Uns ombros largos. Mãos
calejadas, lábios familiares, cabelo negro rebelde, e um rosto
pelo qual tenho ansiado.
Não é Maven. Todos os pensamentos do menino-rei
desaparecem num instante.
— Cal!
A bola de fogo silva pelo ar, quase me engolindo a cabeça.
Rolo por baixo dela apenas por instinto. A confusão governa o
meu cérebro. É claramente ele. Cal, ali postado de armadura
tática, uma faixa vermelha envolvendo-o da cintura aos
quadris. Resisto à necessidade animal de correr direita a ele.
É-me necessária cada fibra de controlo para recuar.
— Cal, sou eu! Sou a Mare!
Ele não fala, gira apenas sobre os pés, mantendo-me diante
dele. O fogo à nossa volta revolve-se e contrai-se, puxando
para dentro a velocidade ofuscante. O calor suga-me o ar dos
pulmões e asfixio com o fumo. Só os relâmpagos me mantêm
a salvo, estralejando à minha volta num escudo de eletricidade
para me impedir de arder viva.
Rolo de novo, irrompendo através do seu infernal braseiro.
O meu vestido arde em brasas, deixando um rasto de fumo.
Não perco tempo precioso ou capacidade cerebral a tentar
apurar o que se passa. Já sei.
Os seus olhos estão ensombrados, desfocados. Não há
reconhecimento neles. Indicação alguma de que passámos os
últimos seis meses a tentar voltar um para o outro. E os seus
movimentos são robóticos, mesmo comparados com a sua
precisão militar.
Um whisper apoderou-se da sua mente. Não tenho de
adivinhar qual.
— Desculpa — balbucio, embora ele não me possa ouvir.
Uma explosão de relâmpagos lança-o para trás, as faíscas
dançando por sobre as placas da sua armadura. Ele é sacudido
por uma convulsão, estremecendo à medida que a eletricidade
lhe afeta os nervos. Mordo o lábio, tentando como jamais o fiz
pisar a ténue linha entre incapacitação e dano. Pendo para o
lado fraco. Um erro.
Cal é mais forte do que alguma vez me apercebi. E tem uma
vantagem e tanto. Estou a tentar salvá-lo. Ele está a tentar
matar-me.
Luta através da dor, investindo. Esquivo-me, o meu foco
mudando de mantê-lo ao largo para me deixar a mim fora do
seu esmagador alcance. Um soco animado de fogo descreve
um arco sobre a minha cabeça. Sinto o cheiro de cabelo
queimado. Outro atinge-me no estômago e caio para trás. Rolo
com o ímpeto e levanto-me imediatamente de novo, os meus
velhos truques de volta. Com um trejeito de mão faço outro
feixe de faíscas dançar-lhe pela perna acima até à espinha. Ele
solta um urro. O som corta-me as entranhas. Mas dá-me um
trunfo.
O meu foco afunila-se numa coisa, no rosto demoníaco de
uma pessoa. Samson Merandus.
Ele tem de estar suficientemente perto para enfeitiçar Cal e
mandá-lo contra mim. Vasculho a batalha enquanto corro, à
procura do seu fato azul. Se está aqui, está bem escondido. Ou
porventura está empoleirado lá em cima, a olhar do telhado do
Tesouro ou das muitas janelas dos edifícios adjacentes. A
frustração corrói-me a determinação. Cal está aqui mesmo.
Estamos de novo juntos. E ele está a tentar matar-me.
O calor da sua fúria lambe-me os calcanhares. Outra
explosão rasga-me o flanco esquerdo, disparando-me agulhas
de ardente agonia branca pelo braço abaixo. A adrenalina
rapidamente tudo apaga. Não me posso dar ao luxo de sentir
dor neste momento.
Pelo menos eu sou mais rápida do que ele. Depois das
algemas, cada passo é mais fácil que o outro. Deixo-me
abastecer pela tempestade lá em cima, alimentando-me da
energia elétrica da outra sanguenovo brandindo relâmpagos
algures. O seu cabelo azul não atravessa de novo a minha
visão. É pena. Dar-me-ia jeito agora.
Se é que Samson se esconde nas proximidades do Tesouro,
apenas tenho de tirar Cal do seu círculo de influência.
Derrapando, volto-me para olhar por sobre o ombro. Cal
segue-me ainda, uma sombra de chama azul e fúria.
— Vem apanhar-me, Calore! — berro para ele, lançando-lhe
uma relampejante explosão ao peito. Mais forte que a última, o
suficiente para deixar marca.
Ele contorce-se de lado, esquivando-se, não deixando de
correr. Desenfreado no meu rasto.
Espero que isto resulte.
Ninguém ousa meter-se no nosso caminho.
Vermelho e azul e púrpura, fogo e relâmpagos, correm no
nosso encalço, fendendo a batalha como uma faca. Ele
prossegue com a singular determinação de um cão de caça. E
eu certamente sinto-me caçada através da Praça.
Desvio-me para o portão principal, para fosse que ponto de
encontro fosse que Crance mencionou. A minha fuga. Não que
a faça já. Não sem Cal.
Após uma centena de metros, é claro que Samson corre
connosco, só que fora de vista. Nenhum whisper Merandus
tem maior raio de alcance que esse, nem mesmo Elara. Ando
aos ziguezagues, sondando o banho de sangue. Quanto mais
tempo se prolongar a batalha, mais tempo terão os Prateados
para se organizarem. Soldados do exército de uniforme
cinzento-nublado inundam a Praça, sistematicamente
conquistando pedaços dela. A maioria dos nobres recolhe-se
atrás da muralha de proteção militar, embora uns quantos —
os mais fortes, os mais corajosos, os mais sedentos de sangue
— continuem a lutar. Conto que membros da Casa Samos lá
estejam embrenhados, mas não vejo magnetrons que
reconheça. E ainda nenhuns outros membros familiares da
Guarda Escarlate. Nem Farley, nem o Coronel, nem Kilorn ou
Cameron, ou qualquer um dos sanguenovos que ajudei a
recrutar. Apenas Darmian, provavelmente rompendo caminho
através do Tesouro, e Cal, dando tudo por tudo para me
derrubar.
Praguejo, ansiando por Cameron mais que todos eles. Ela
poderia silenciar Cal, mantê-lo contido durante tempo bastante
para eu encontrar e destruir Samson. Em vez disso, tenho de
fazê-lo eu mesma. Mantê-lo ao largo, manter-me viva e de
alguma forma exterminar o whisper Merandus que nos assola
a ambos.
De súbito, um torvelinho azul-marinho passa na orla da
minha visão.
Longos meses de cativeiro Prateado deixaram-me
sintonizada com as cores das casas. A Senhora Blonos
inculcou-me o seu conhecimento e agora, mais do que nunca,
agradeço-lhe por isso.
Rodopio, mudando vingativamente de direção. Cabelo
louro-cinza corre disparado através dos soldados Prateados,
tentando diluir-se nas suas fileiras. Em vez disso destaca-se, o
seu fato formal contrastando agudamente com os uniformes
militares. Tudo se afunila para ele. Todo o meu foco, toda a
minha energia. Lanço o que posso na sua direção, soltando
entrecortados relâmpagos sobre Samson e o escudo Prateado
entre nós.
Os seus olhos sustêm os meus e os relâmpagos descrevem
um arco, qual estralejante chicote. Ele tem os mesmos olhos
de Elara, os mesmos olhos de Maven. Azul-gelo; azul-chama.
Frios e implacáveis.
De alguma forma a minha eletricidade verga-se,
contornando-o. É projetada para longe, lançada noutra direção.
A minha mão oscila com ela, o meu corpo movendo-se por
vontade própria à medida que os relâmpagos correm para Cal.
Tento berrar, embora avisar um homem enfeitiçado de nada
sirva. Mas os meus lábios não se mexem. Um jorro de horror
desce-me pela espinha, a única sensação que logro ter. Não o
solo sob os meus pés, não a mordida de novas queimaduras,
nem sequer o ar enfumarado no meu nariz. Tudo isso
desaparece, varrido para longe. Tomado.
Dentro de mim grito, porque Samson me tem agora. Não
consigo emitir um som. Não há como confundir o entrecortado
roçagar do seu cérebro contra a minha mente.
Cal pestaneja como alguém acordando de um longo sono.
Mal tem tempo de reagir, erguendo os braços para proteger a
cabeça do golpe elétrico. Algumas das faíscas entrecortadas
transformam-se em chamas, manipuladas pela sua aptidão. A
maior parte delas atinge-o a ele, no entanto, fazendo-o cair de
joelhos com um rugido de dor.
— Samson! — grita ele por entre dentes cerrados.
Apercebo-me de que a minha mão se move, dirigindo-se ao
quadril. Saca da pistola que tomei e leva-me o aço à têmpora.
Os sussurros de Samson elevam-se na minha cabeça,
ameaçando abafar tudo o resto.
Dispara. Dispara. Dispara.
Não sinto o gatilho. Não sentirei a bala.
Cal puxa-me bruscamente o braço para trás, fazendo-me
rodopiar. Faz-me largar a arma e lança-a através dos ladrilhos.
Jamais o vi com tanto medo.
Mata-o. Mata-o. Mata-o.
O meu corpo obedece.
Eu sou uma espectadora na minha própria cabeça. Uma
furiosa batalha grassa ante os meus olhos e nada posso fazer
senão assistir. O chão ladrilhado esfuma-se quando Samson
me faz correr disparada, colidindo de cabeça com Cal. Ajo
como um para-raios humano, ferrando-me à sua armadura,
atraindo eletricidade do céu para nele a derramar.
Dor e medo toldam-lhe os olhos. As suas chamas apenas
podem servir de escudo até certo ponto.
Mergulho, agarrando-lhe o pulso. Mas a pulseira lança-
flamas aguenta firme.
Mata-o. Mata-o. Mata-o.
O fogo empurra-me para trás. Rebolo de cabeça, ombros e
crânio aos solavancos. O mundo rodopia e os membros
atordoados tentam pôr-me de pé.
Levanta-te. Levanta-te. Levanta-te.
— Deixa-te estar em baixo, Mare! — oiço do lado de Cal. A
sua figura dança diante de mim, fendendo-se em três. Sou
capaz de ter uma concussão. Sangue Vermelho pulsa através
dos ladrilhos brancos.
Levanta-te. Levanta-te. Levanta-te.
Os meus pés movem-se debaixo de mim, empurrando com
força. Ponho-me em pé depressa de mais, quase caindo de
novo enquanto Samson me força a dar passos de bêbedo. Ele
transpõe a distância entre o meu corpo e o de Cal. Já vi isto
antes, há mil anos. Samson Merandus na arena, forçando outro
Prateado a cortar as próprias entranhas. Far-me-á o mesmo a
mim também, assim que me tiver usado para matar Cal.
Tento lutar, embora não saiba por onde começar. Tento
contrair um dedo da mão, um dedo do pé. Nada reage.
Mata-o. Mata-o. Mata-o.
Um relâmpago irrompe-me da mão, espiralando na direção
de Cal. Falha o alvo, instável como o meu corpo. Ele lança um
arco de fogo em resposta, forçando-me a esquivar-me e a
cambalear.
Levanta-te. Mata-o. Levanta-te.
Os sussurros são penetrantes, cortantes golpes a
trespassarem-me a mente. Devo ter o cérebro em sangue.
MATA-O. LEVANTA-TE. MATA-O.
Através das chamas, vejo azul-marinho de novo. Cal
persegue Samson e resvala sobre um joelho, fazendo pontaria
com uma pistola.
LEVANTA…
A dor abate-se sobre mim como uma vaga e eu caio para
trás precisamente quando uma bala rasga o ar por cima de
mim. Outra se segue, mais perto. Por puro instinto, lutando
contra o tinido no meu crânio contundido, ponho-me
atabalhoadamente de pé. Movo-me de minha própria volição.
Guinchando, transformo o fogo de Cal em relâmpagos, as
ondulações vermelhas transformando-se em veios de
eletricidade púrpura-esbranquiçados. Escudam-me enquanto
Cal dispara bala após bala na minha direção. Atrás dele,
Samson abre-se num sorriso.
Biltre. Vai lançar-nos um contra o outro o tempo que for
necessário.
Arremesso os relâmpagos o mais rapidamente que posso,
deixando que se estilhacem na direção de Samson. Se
conseguir quebrar a sua concentração, por um segundo que
seja, poderá ser o bastante.
Cal reage, fantoche sob cordelinhos. Escuda Samson com o
seu corpo largo, arcando com o grosso do meu ataque.
— Alguém ajude! — berro para ninguém em especial.
Somos apenas três pessoas numa batalha de centenas. Uma
batalha que se torna desigual. As fileiras Prateadas crescem,
alimentadas por reforços das casernas e da restante guarnição
de Archeon. Os meus cinco minutos há muito se esgotaram.
Fosse qual fosse a fuga que Crance prometeu, foi-se.
Tenho de vergar Samson. Tenho.
Outro feixe de relâmpagos, desta vez num jorro através do
chão. Não há como fugir-lhe.
MATA-O. MATA-O. MATA-O.
Os sussurros voltam, puxando para trás a eletricidade com
as minhas próprias mãos. Que recua em arco, qual onda
esmagadora.
Cal cai e rodopia, estendendo a perna num extenso pontapé.
Atinge o alvo, fazendo Samson cair esparramado.
O controlo que exerce sobre mim acaba e eu invisto. Mais
uma onda elétrica.
Esta inunda-os a ambos. Cal pragueja, reprimindo um
latido. Samson contorce-se e grita, um som horripilante. Ele
não está acostumado à dor.
Mata-o…
O sussurro está lá longe, enfraquecendo. Posso lutar contra
ele.
Cal agarra Samson pelo pescoço, puxando-o para cima
apenas para lhe esmagar a cabeça de volta no chão.
Mata-o…
Corto o ar com uma mão, puxando um relâmpago com ela.
Este abre um lenho do quadril ao ombro de Samson. Da ferida
jorra sangue Prateado.
Ajuda-me…
O fogo desce pela garganta de Samson, cauterizando-lhe as
entranhas. As suas cordas vocais esfrangalham-se. A única
gritaria que oiço agora é na minha cabeça.
Dirijo os meus relâmpagos para o seu cérebro. A
eletricidade frita-lhe o tecido dentro do crânio, qual ovo numa
frigideira. Os seus olhos reviram-se. Quero fazê-lo durar mais,
quero fazê-lo pagar pela tortura que me infligiu e a tantos
outros. Mas ele morre demasiado depressa.
Os sussurros desaparecem.
— Está feito — deixo escapar com um arquejo.
Cal levanta o olhar, ainda ajoelhado junto ao corpo. Os seus
olhos arregalam-se como se me visse pela primeira vez. Eu
sinto o mesmo. Tenho sonhado com este momento, ansiado
por ele ao longo de meses e meses. Não fosse a batalha, a
nossa precária posição aqui encravados no meio, passar-lhe-ia
os braços em torno do pescoço e enterrar-me-ia no príncipe de
fogo.
Em vez disso ajudo-o a levantar-se, passando-lhe um braço
sobre os meus ombros. Ele coxeia, uma perna uma lástima de
espasmos musculares. Também eu estou magoada, sangrando
lentamente de um golpe no flanco. Comprimo a mão livre na
ferida. A dor agudiza-se.
— O Maven está lá em baixo, no Tesouro. Ele tem um
comboio — digo quando nos afastamos cambaleando.
O braço dele aperta-me com mais força. Conduz-nos na
direção do portão principal, estugando cada vez mais o passo.
— Não estou aqui pelo Maven.
O portão assoma, suficientemente largo para deixar passar
três transportes lado a lado. Do outro lado, a Ponte de Archeon
transpõe o Rio Capital ao encontro da metade oriental da
cidade. O fumo eleva-se no ar por todo o lado, alcançando o
céu de um negro tempestuoso. Resisto ao impulso de dar meia-
volta e correr disparada para o Tesouro. Maven já terá partido
por esta altura. Está para lá do meu alcance.
Mais transportes militares aceleram direitos a nós enquanto
jatos aéreos guincham na nossa direção. Demasiados reforços
para lhes resistirmos.
— Qual é então o plano? — balbucio. Estamos prestes a
ficar rodeados. O pensamento corrói-me o choque e a
adrenalina, esfriando-me a cabeça. Tudo isto por mim. Corpos
por todo o lado, Vermelhos e Prateados. Que desperdício.
As mãos de Cal dão com o meu rosto, fazendo-me virar
para o encarar. Apesar da destruição à nossa volta, ele sorri.
— Para variar, temos um.
Vejo verde pelo canto do olho. Sinto outra mão agarrar-me o
braço.
E o mundo espreme-se num vazio.
22
Esquecimento, letargia. (N. da T.)
23
À letra, em português, bocas-de-lobo ou bocas-de-leão. (N. da T.)
24
Calafrio ou arrepio. (N. da T.)
25
Verdinho ou esverdeado. (N. da T.)
CAPÍTULO DEZANOVE

Evangeline

E le está atrasado e o meu coração dispara num frenesim.


Resisto ao ímpeto de medo, dele fazendo combustível.
Usando a nova energia, desfaço as molduras douradas com
retratos por toda a galeria do palácio. Os salpicos de folha de
ouro retorcem-se em brutais, cintilantes estilhaços. O ouro é
um metal fraco. Brando. Maleável. Inútil num combate a sério.
Largo-os. Não tenho tempo nem energia a desperdiçar com
coisas fracas.
As perladas placas de ródio ao longo dos meus braços e
pernas vibram de adrenalina, as suas brilhantes arestas
espelhadas ondulando como mercúrio líquido. Pronto para se
transformar seja no que for que preciso para me manter viva.
Uma espada, um escudo, uma bala. Não estou diretamente em
perigo, pelo menos neste preciso momento. Mas se Tolly não
estiver aqui dentro de um minuto, saio lá para fora à sua
procura, e então estarei certamente.
Ela prometeu, digo para mim mesma.
Soa idiota, a desejo de uma criança particularmente tola. Eu
deveria saber melhor. O único vínculo no meu mundo é o
sangue; a única promessa é a família. Um Prateado sorriria e
concordaria com outra casa e quebraria o juramento no
segundo seguinte. Mare Barrow não é Prateada — deverá ter
menos honra do que qualquer um de nós. E deve ao meu
irmão, deve-me a mim, menos que nada. Seria legítimo que
nos chacinasse a todos. A Casa Samos não tem sido amável
para com a rapariga-relâmpago.
— Temos um horário, Evangeline — resmunga Wren em
surdina ao meu lado. Acalenta o peito com uma mão, fazendo
todo o possível por não antagonizar uma queimadura já de si
feia. A curadora de pele não foi suficientemente rápida a evitar
toda a retornada aptidão de Mare. Mas fez o que tinha a fazer,
e é isso que importa. Agora a rapariga-relâmpago é livre de
criar todos os estragos que puder.
— Vou dar-lhe mais um minuto.
A galeria parece estender-se à minha frente, mais longa a
cada segundo. Neste lado do palácio mal podemos ouvir a
batalha na Praça. As janelas dão para um pátio sossegado,
coberto apenas por escuras nuvens tempestuosas. Se eu
quisesse podia fazer de conta que este é mais um dia do meu
usual tormento. Todos sorrindo de presas à mostra, rodeando
um trono cada vez mais letal. Julguei que o fim da rainha
significasse o fim do perigo. Não é coisa minha subestimar os
males de uma pessoa, mas certamente subestimei Maven. Ele
tem mais da sua mãe em si do que alguém se pode ter
apercebido, além de um monstro bem seu.
Um monstro que eu já não terei de suportar, pelas minhas
cores. Assim que estivermos de volta a casa enviarei à
princesa Lakelander um presente por tomar o meu lugar a seu
lado.
Ele já estará longe por esta altura, transportado para
segurança pelo seu comboio. A nova noiva e o respetivo noivo
já estavam no Tesouro quando os deixei. A menos que a
repulsiva obsessão de Maven por Mare tenha vencido. O rapaz
é impossível de prever no que a ela diz respeito. Tanto quanto
sei, ele poderia ter dado meia-volta para ir à sua procura.
Poderia estar morto. Certamente tenho esperança de que esteja
morto. Isso tornaria os próximos passos infinitamente mais
fáceis.
Conheço a Mãe e o Pai demasiado bem para com eles me
preocupar. Ai de quem, Prateado ou Vermelho, ousasse
desafiar o Pai em combate aberto. E a Mãe tem as suas
próprias contingências em ação. O ataque no casamento não
foi uma surpresa para qualquer de nós. A Casa Samos está
preparada. Desde que Tolly se atenha ao plano. O meu irmão
tem dificuldade em recuar de uma luta, e é impulsivo. Outro
homem impossível de prever. Não devemos fazer mal aos
rebeldes ou impedir o seu progresso seja de que forma for.
Ordens do Pai. Espero que o meu irmão as siga.
Ficaremos bem. Exalo lentamente, agarrando-me a estas
duas palavras. Pouco fazem para me acalmar os nervos. Quero
livrar-me deste lugar. Quero ir para casa. Quero ver Elane de
novo. Quero que Tolly vire aquela esquina, são e salvo.
Em vez disso, mal consegue andar.
— Ptolemus! — brado, esquecendo todos os medos salvo
um quando ele dobra a esquina.
O seu sangue destaca-se vividamente contra a armadura de
aço negro, o peito manchado de prata como se tinta fosse.
Posso sentir o ferro nele, um acentuado travo metálico. Sem
pensar, puxo-lhe pela armadura, elevando-o no ar juntamente
com ela. Antes que ele possa tombar prostrado, encosto o
tronco ao dele, mantendo-o ereto. Ele está quase demasiado
fraco para se ter de pé, quanto mais correr. Um terror gelado
perpassa-me pela espinha.
— Estás atrasado — sussurro, sendo brindada com um
pálido sorriso. Ainda suficientemente vivo para ter sentido de
humor.
Wren trabalha velozmente, removendo-lhe a armadura de
placas, mas não é mais rápida que eu. Com outro safanão da
minha mão, ela cai-lhe do corpo num ressoar chocalhante. Os
meus olhos voam para o seu peito nu, contando ver uma ferida
feia. Nada vejo senão uns golpes superficiais, nenhum deles
suficientemente sério para demolir alguém como Ptolemus.
— Perda de sangue — explica Wren. A curadora de pele
força o meu irmão a ajoelhar, sustendo-lhe o braço esquerdo
ao alto, e ele geme de dor. Eu mantenho-me bem junto do seu
ombro, agachando-me com ele. — Não tenho tempo para curar
isto.
Isto. Corro o olhar pelo seu braço, por sobre a pele branca,
cinzenta e negra de contusões frescas. Termina num toco
ensanguentado e rombo. A sua mão desapareceu. Cortada
cerce pelo pulso. Sangue Prateado pulsa preguiçosamente das
veias rompidas, apesar das suas fracas tentativas para envolver
a ferida.
— Tens de ter — força-se Ptolemus a dizer, a sua voz rouca
de agonia.
Assinto fervorosamente. — Wren, levará apenas uns
minutos. — Magnetron algum é estranho a um dedo perdido.
Brincamos com facas desde que aprendemos a andar. Sabemos
quão depressa se pode fazer voltar a crescer um.
— Se ele quiser usar esta mão de novo, farão o que eu digo
— replica ela. — É demasiadamente complicado para se fazer
à pressa. Tenho de selar a ferida por agora. — Ele emite outro
ruído estrangulado, sufocando de dor à simples ideia.
— Wren! — imploro.
Ela não cede. — Por agora! — Os seus belos olhos, olhos
cinzentos Skonos, perfuram os meus com urgência. Vejo medo
nela, e não é de admirar. Há uns minutos viu-me matar quatro
guardas e libertar uma prisioneira da coroa. É igualmente
cúmplice na traição da Casa Samos.
— Muito bem. — Aperto o ombro de Tolly, implorando-lhe
que escute. — Por agora. Assim que estivermos safos ela põe-
te bom.
Ele não responde, apenas assentindo quando Wren se deita
ao trabalho. Tolly vira a cabeça, incapaz de ver a pele crescer
sobre o pulso, selando veias e ossos. É rápido. Os dedos
negro-azulados dançam-lhe sobre a pele pálida à medida que
ela tudo entretece. Fazer crescer pele é fácil, ou assim me
dizem. Nervos, ossos, isso é mais complexo.
Faço todo o possível por distraí-lo do toco no seu braço. —
Então quem te fez isso?
— Outro magnetron. Lakelander. — Força-se a articular
cada palavra. — Viu-me a ponto de abandonar e partir.
Retalhou-me antes que me desse conta do que se passava.
Lakelanders. Tolos congelados. Todos pomposos no seu
hediondo azul. Pensar que Maven trocou o poder da Casa
Samos por eles. — Espero que tenhas retribuído o favor.
— Já não tem cabeça.
— Isso servirá.
— Pronto — diz Wren, acabando de compor o pulso. Passa-
lhe as mãos ao longo do braço e pela espinha até ao cóccix. —
Estimular-te-ei a medula e os rins, elevarei a produção de
sangue o mais que posso. Mas continuarás fraco.
— Tudo bem. Desde que possa andar. — Já soa mais forte.
— Ajuda-me, Evie.
Faço-lhe a vontade, passando-lhe o braço bom por sobre o
meu ombro. Ele é pesado, quase um peso morto. — Corta nas
sobremesas — resmungo. — Vamos lá, move-te comigo.
Tolly faz o que pode, forçando um pé atrás do outro. Nem
de longe suficientemente rápido para o meu gosto. — Muito
bem — resmungo baixinho, levando a mão à sua armadura
descartada. Ela achata-se e assume a forma de uma placa de
aço ondulado. — Desculpa, Tolly.
Forço-o a deitar-se nela, usando a minha aptidão para suster
a placa como uma padiola.
— Eu posso andar… — protesta ele, mas debilmente. —
Precisas estar focada.
— Então foca-te tu por nós dois — disparo de volta. — Os
homens são uns inúteis quando estão feridos, não são?
Mantê-lo elevado requer uma parte da minha aptidão, mas
não toda. Corro disparada o mais velozmente que posso, uma
mão na placa. Ela segue uma corrente invisível, flanqueada
por Wren do outro lado.
O metal canta na orla da minha perceção. Assinalo cada
peça à medida que avançamos, registando-as por instinto. Fios
de cobre — um garrote com o qual estrangular. Fechaduras e
gonzos de portas — dardos ou balas. Molduras de janelas —
cabos de ferro com adagas de vidro. O Pai costumava fazer-me
perguntas deste género, até se tornar uma segunda natureza.
Até que eu não pudesse entrar numa sala sem assinalar as suas
armas. A Casa Samos jamais é apanhada desprevenida.
O Pai concebeu a nossa rápida saída de Archeon. Através
das casernas e pelos penhascos setentrionais abaixo, até barcos
à espera no rio. Barcos de aço, especialmente mandados fazer,
ondulados pela velocidade e o silêncio. Entre o Pai e eu,
cortarão a água como agulhas perfuram carne.
Estamos atrasados, mas apenas alguns minutos. No caos,
levará horas até que alguém na corte de Maven se aperceba de
que a Casa Samos desapareceu. Não duvido de que outras
casas aproveitem a mesma oportunidade, como ratos fugindo
de um navio que se afunda. Maven não é o único com um
plano de fuga. De facto, não me surpreenderia se cada casa
tivesse o seu. A corte é um barril de pólvora com um pavio
cada vez mais curto e um rei de temperamento fogoso. É
preciso ser-se idiota para não se contar com uma explosão.
O Pai sentiu o vento mudar no momento em que Maven
deixou de ouvi-lo, assim que se tornou claro que aliarmo-nos
ao rei Calore seria a nossa derrocada. Sem Elara, ninguém
conseguiu suster a trela de Maven. Nem sequer o meu pai. E
depois a ralé da Guarda Escarlate tornou-se mais organizada,
uma real ameaça e não mera inconveniência. Pareciam crescer
a cada dia que passava. Operando no Piedmonte e nas
Lakelands, sussurros de uma aliança com Montfort lá longe a
ocidente. São muito maiores do que alguém antecipou, mais
bem organizados e mais determinados do que qualquer
insurreição de que haja memória. Enquanto isso, o meu
miserável noivo perdeu o controlo. No trono, na sua sanidade,
em seja o que for salvo Mare Barrow.
Ele tentou esquecê-la, ou assim Elane me contou. Maven
sabia tão bem como qualquer um de nós em que perigo a sua
obsessão se tornaria. Mata-a. Acaba com isto. Livra-te do seu
veneno, costumava ele resmungar com os seus botões. Elane
escutava-o sem que desse por isso, silenciosa a um canto dos
seus aposentos privados. As palavras eram simples palavras.
Ele jamais se poderia apartar dela. Pelo que foi fácil metê-la
no seu caminho — e fazê-lo extraviar-se. O equivalente a
acenar uma bandeira vermelha diante de um touro. Ela era o
seu furacão, e cada empurrão mais o encaminhava para o olho
da tempestade. Julguei que ela fosse uma ferramenta fácil de
manejar. Um rei distraído contribui para uma rainha mais
poderosa.
Mas Maven pôs-me fora de um lugar que era legitimamente
meu. Não soube olhar para Elane. A minha encantadora,
invisível sombra. Os seus relatos vieram mais tarde, a coberto
da noite. Foram muito minuciosos. Sinto-os ainda, sussurrados
contra a minha pele só com a Lua por ouvinte. Elane Haven é
a rapariga mais bela que jamais vi sob qualquer forma, mas
fica belíssima ao luar.
Após a Prova da Rainha prometi-lhe uma coroa de consorte.
Mas esse sonho desapareceu com o Príncipe Tiberias, tal como
muitos sonhos acabam com o cruel romper do dia. Meretriz.
Foi o que Maven lhe chamou após o atentado à sua vida.
Quase o matei ali mesmo onde estava.
Abano a cabeça, retomando o foco na tarefa entre mãos.
Elane pode esperar. Elane está à espera, tal como os meus pais
prometeram. A salvo em nossa casa, resguardada na Brecha.
Os pátios traseiros de Archeon abrem para viçosos jardins,
que por sua vez são delimitados pelas muralhas do palácio.
Umas quantas vedações de ferro forjado contêm flores e
arbustos. Bom para lanças. As patrulhas de muralhas e jardins
costumavam ser guardas de muitas casas diferentes —
windweavers Laris, silks Iral, vigilantes eyes Eagrie — mas as
coisas mudaram nos últimos meses. Laris e Iral opõem-se ao
governo de Maven, a par da Casa Haven. E com uma batalha a
ser travada, o próprio rei em perigo, os outros guardas do
palácio estão dispersos. Olho para cima através da vegetação,
as flores de magnólia e cerejeira luminosas contra o céu
escuro. Figuras de negro deambulam pelos baluartes de vidro
de diamante.
Só a Casa Samos permanece para olhar pela muralha.
— Primos de ferro!
Eles dardejam à minha voz, respondendo na mesma moeda.
— Primos de aço!
O suor escorre-me pelo pescoço à medida que a muralha
assoma mais perto. De medo, de esforço. Só mais uns metros.
Em preparação, torno mais espesso o metal perlado das
minhas botas, endurecendo os meus últimos passos.
— Consegues levantar-te? — pergunto a Ptolemus, deitando
a mão a Wren enquanto falo.
Com um grunhido, ele oscila para fora da padiola, forçando-
se a suster-se nos pés instáveis. — Não sou uma criança, Eve;
posso cobrir dez metros. — Para o provar, o aço negro molda-
se no seu corpo em lustrosas escamas.
Se tivéssemos mais tempo eu apontaria as fraquezas na sua
usualmente perfeita armadura. Buracos nos lados, puída nas
costas. Em vez disso, assinto apenas. — Tu primeiro.
Ele ergue um canto da boca, tentando esboçar um malicioso
sorriso, tentando diminuir a minha preocupação. Exalo de
alívio quando ele se eleva no ar, impelindo-se para os
baluartes da muralha. Os nossos primos lá em cima apanham-
no habilmente, içando-o com a sua própria aptidão.
— É a nossa vez.
Wren agarra-se ao meu flanco, a salvo sob o meu braço.
Forço uma inspiração, atendo-me à sensação do metal de ródio
curvando-se sob os meus dedos dos pés, pelas pernas acima,
por sobre os ombros. Eleva-te, digo à minha armadura.
Pum.
A primeira sensação que o meu pai me fez memorizar foi
uma bala. Dormi com uma suspensa ao pescoço durante dois
anos. Até se tornar tão familiar para mim como as minhas
cores. Posso nomear munições a cem metros de distância.
Saber o seu peso, a sua forma, a sua composição. Um tão
pequeno pedaço de metal é a diferença entre a vida de outra
pessoa e a minha morte. Pode ser o meu assassino, ou o meu
salvador.
Pum, pum, pum. As balas explodindo nas suas câmaras dão
a sensação de agulhas, afiadas, impossíveis de ignorar. Vêm de
trás. As pontas dos meus pés aterram no chão de novo quando
o meu foco se estreita, as minhas mãos voando em escudo
contra a súbita investida.
Projéteis antiblindagem, espessos invólucros de cobre com
brutais núcleos de tungsténio e pontas cónicas, arqueiam-se
diante dos meus olhos, voando para trás e aterrando
inofensivamente na relva. Outra saraivada vem de pelo menos
uma dúzia de armas, e eu estendo um braço, protegendo-me. O
ribombar de artilharia automática abafa os berros de Tolly
acima de mim.
Cada bala repercute-se na minha aptidão, levando mais um
pedaço dela, mais um pedaço de mim. Algumas detêm-se em
pleno ar, outras amarfanham-se. Lanço tudo o que posso para
criar um casulo de segurança. Da muralha, Tolly e os meus
primos fazem o mesmo. Levantam o peso o suficiente para
realmente me deixarem perceber quem dispara contra mim.
Trapos vermelhos, olhos duros. Guarda Escarlate.
Cerro os dentes. As balas na relva seriam fáceis de lançar de
volta para os seus crânios. Em vez disso, rasgo o tungsténio
como lã, tecendo-o em fio reluzente o mais rapidamente que
posso. O tungsténio é incrivelmente pesado e forte. Requer
mais energia para ser trabalhado. Outra gota de suor rola-me
pela espinha.
Os fios dispersam-se numa teia, atingindo de frente os doze
rebeldes. No mesmo movimento arranco-lhes as armas das
mãos, fazendo-as em pedaços. Wren agarra-se a mim,
apertando com força, e sinto-me ser puxada para trás e para
cima, deslizando sobre perfeito vidro de diamante.
Tolly apanha-me, como sempre.
— E para baixo de novo — resmunga baixinho. A sua mão
aperta-me o braço com força esmagadora.
Wren engole em seco, inclinando-se para olhar. Os seus
olhos arregalam-se. — Um pouco mais longe desta vez.
Eu sei. São trinta metros por um íngreme penhasco abaixo,
e depois outros sessenta por sobre rochedo inclinado para dar a
volta para a orla do rio. Na sombra da ponte, disse o Pai.
No jardim, os rebeldes lutam, debatendo-se contra a minha
teia. Sinto-os empurrar e puxar por ela, à medida que o próprio
metal dá de si, prestes a romper-se. Isso consome o meu foco.
Tungsténio, amaldiçoo-me a mim própria. Preciso de mais
prática.
— Vamos — digo a eles todos.
Atrás de mim, o tungsténio desfaz-se em pó. Uma coisa
forte e pesada, mas quebradiça. Sem a mão de um magnetron
quebra antes de vergar.
A Casa Samos está farta de uma e outra coisa.
Não quebraremos e nunca mais nos vergaremos.
Os barcos cortam silenciosamente a água, deslizando sobre a
superfície. Fazemos um bom tempo. O nosso único obstáculo
é a poluição de Gray Town26. O seu fedor agarra-se-me ao
cabelo, empestando-me ainda o corpo quando rompemos o
segundo anel de árvores-barreira. Wren pressente o meu
desconforto e pousa-me uma mão no pulso nu. O seu toque
curador limpa-me os pulmões e afugenta a minha exaustão.
Empurrar aço através de água torna-se cansativo ao fim de
algum tempo.
A Mãe está reclinada sobre a borda lustrosa do meu barco,
deslizando uma mão pelo fluido Capital. Uns quantos bagres
elevam-se ao seu toque, os seus bigodes enredando-se nos
dedos dela. Os viscosos animais não a incomodam, mas eu
estremeço de repulsa. Ela não se rala com seja o que for que
lhe digam, o que significa que eles não pressentem ninguém a
perseguir-nos. O seu falcão lá no alto mantém igualmente
vigília. Quando o Sol se puser, a Mãe substitui-lo-á por
morcegos. Como era de esperar, ela não tem um arranhão, nem
o Pai. Ele está postado à proa do barco da frente,
estabelecendo a nossa rota. Uma silhueta negra contra o rio
azul e as colinas verdes. A sua presença acalma-me mais do
que o pacífico vale.
Ninguém fala durante muitas milhas. Nem mesmo os
primos, com quem posso usualmente contar que façam
conversa mole. Em vez disso focam-se em descartar os seus
uniformes de Segurança. Emblemas de Norta flutuam atrás de
nós, ao passo que as brilhantes medalhas e distintivos
embutidos de joias se afundam na escuridão. Duramente
conquistados com sangue Samos, marcas da nossa fidelidade e
lealdade. Agora perdidos para as profundezas do rio e do
passado.
Já não somos Nortans.
— Está pois decidido — murmuro.
Atrás de mim, Tolly endireita-se. O seu braço mutilado
ainda está envolto em ligaduras. Wren não arriscará fazer
crescer de novo uma mão inteira no rio. — Houve sequer
alguma dúvida?
— Houve sequer escolha? — A Mãe vira-se para olhar por
sobre o ombro. Move-se com a graça esguia de um felino,
distendendo-se no seu vestido verde-claro. As borboletas há
muito se foram. — Um rei fraco podíamos nós controlar, mas
não há como lidar com a loucura. Assim que a Iral decidiu
opor-se de caras a ele, a nossa jogada ficou decidida. E ao
escolher a Lakelander — ela revira os olhos — o próprio
Maven cortou os últimos vínculos entre as nossas casas.
Quase zombo na sua cara. Ninguém decide nada pelo meu
pai. Mas rir-me da Mãe não é erro que eu seja suficientemente
estúpida para cometer. — Apoiar-nos-ão as outras casas,
então? Sei que o Pai esteve a negociar. — Deixando os filhos
sozinhos, à mercê da crescentemente volátil corte de Maven.
Mais palavras não ousaria eu dizer em voz alta a qualquer um
dos meus pais.
A Mãe pressente-as, não obstante. — Estiveste bem, Eve —
cantarola ela, levando-me uma mão ao cabelo. Deixa passar
uns fios prateados por entre os dedos molhados. — E tu,
Ptolemus. Entre aquela trapalhada em Corvium e as rebeliões
das casas, ninguém duvidou da tua fidelidade. Fizeste-nos
ganhar tempo, tempo valioso.
Mantenho o meu foco em aço e água, ignorando o seu frio
toque. — Espero que tenha valido a pena.
Até hoje, Maven enfrentou múltiplas rebeliões. Sem a Casa
Samos, os nossos recursos, as nossas terras, os nossos
soldados, como podia ele pretender vencer? Mas até hoje ele
não tinha as Lakelands. Agora não faço ideia do que poderá
acontecer. Não me agrada de todo a sensação. A minha vida
tem sido um exercício de planeamento e paciência. Um futuro
incerto assusta-me.
A ocidente, o Sol afunda-se, vermelho, contra as colinas.
Vermelho como o cabelo de Elane.
Ela está à espera, digo de novo para mim própria. Ela está
a salvo.
A irmã dela não foi tão afortunada. Mariella morreu
miseravelmente, esvaziada pelo cauterizante sussurro de
Merandus. Eu evitei-o o mais que pude, congratulando-me por
nada saber dos planos do Pai.
Vi em Mare as profundezas da sua punição. Após o
interrogatório, ela encolhia-se em face dele como um cão
acossado. Foi culpa minha. Forcei a mão de Maven. Sem a
minha interferência, ele porventura jamais teria deixado o
whisper levar a sua avante — mas então teria ficado
completamente afastado de Mare. Não teria ficado tão cego
por ela. Em vez disso fez aquilo que eu esperava e chamou-a
para mais perto. Contava que se afogassem mutuamente. Quão
fácil… Afundar dois inimigos com uma âncora. Mas ela
recusou-se a quebrar. A rapariga de que me lembro, a
aterrorizada e mascarada serviçal que acreditava em cada
mentira, ter-se-ia submetido a Maven há meses. Em vez disso
envergou uma máscara diferente. Dançou sob os seus
cordelinhos, sentou-se ao seu lado, viveu meio viva, sem
liberdade ou aptidão. E ateve-se ainda assim ao seu orgulho,
ao seu fogo, à sua raiva. Estavam lá o tempo todo, ardendo-lhe
nos olhos.
Tenho de respeitá-la por isso. Ainda que tanto me tenha
tirado.
Ela era um constante lembrete do que eu deveria ser. Uma
princesa. Uma rainha. Nasci dez meses depois de Tiberias. Fui
feita para casar com ele.
As minhas primeiras recordações são das cobras da Mãe
silvando-me aos ouvidos, soprando os seus sussurros e
promessas. És uma filha de presas e aço. A que és tu
destinada, se não a governar? Cada lição na sala de aula ou na
arena era uma preparação. Sê a melhor, a mais forte, a mais
inteligente, a mais mortal e a mais astuta. A mais valiosa. E eu
tudo fui.
Os reis não são conhecidos pela sua amabilidade ou
compaixão. A Prova da Rainha não se destina a fazer
casamentos felizes, mas filhos fortes. Com Cal, eu tinha
ambos. Ele não me teria levado a mal a minha própria
consorte, ou tentado controlar-me. Os seus olhos eram suaves
e pensativos. Ele era mais do que eu alguma vez ousara
esperar. E eu merecera-o com cada gota de sangue que
derramara, todo o meu suor, todas as minhas lágrimas de dor e
frustração. Cada sacrifício de quem o meu coração queria ser.
Na noite anterior à Prova da Rainha sonhei como seria. O
meu trono. Os meus filhos reais. A nada sujeita, nem mesmo
ao Pai. Tiberias seria meu amigo e Elane minha amante. Ela
casar-se-ia com Tolly, conforme planeado, assegurando que
nenhum de nós pudesse ser apartado.
Então Mare caiu nas nossas vidas e soprou esse sonho para
longe como areia.
Em tempos julguei que o príncipe herdeiro fizesse o
impensável. Pôr-me de lado pela há muito perdida Titanos,
com estranhas maneiras e uma ainda mais estranha aptidão.
Em vez disso ela foi um mortal peão, varrendo o meu rei do
quadro. Os desígnios do destino têm estranhas reviravoltas.
Pergunto-me se aquele vidente sanguenovo saberia do dia de
hoje. Rir-se-á ele do que vê? Quem me dera ter-lhe posto as
mãos em cima uma vez que fosse. Odeio não saber.
Nas margens lá para diante, relvados cuidados surgem à
vista. As hastes de relva tingem-se de ouro e vermelho, dando
às propriedades ao longo do rio um maravilhoso fulgor. A
nossa própria mansão está fechada, apenas uma milha mais
acima. Depois viramos para oeste. Rumo à nossa verdadeira
casa.
A Mãe não chegou a responder à minha pergunta.
— Então, o Pai conseguiu convencer as outras casas? —
pergunto-lhe.
Ela semicerra os olhos, todo o seu corpo se contraindo.
Enroscando-se, como uma das suas cobras. — A Casa Laris já
estava connosco.
Isso sabia eu. A par de controlar a maior parte da Frota
Aérea de Norta, os windweavers Laris governam a Brecha. Na
verdade, governam sob o nosso comando. Ávidos fantoches,
dispostos a tudo negociar para manterem as nossas minas de
ferro e carvão.
Elane. Casa Haven. Se não estiverem connosco…
Passo a língua pelos lábios subitamente secos. Um punho
cerra-se-me no flanco. O barco geme debaixo de mim. — E…
— A Iral não concordou com os termos e mais de metade da
Haven tão-pouco concordará. — A Mãe funga. Cruza os
braços sobre o peito, como se insultada. — Não te preocupes,
Elane não é um deles. Por favor, para de esmagar o barco. Não
me apetece nadar a última milha.
Tolly dá-me uma cotovelada, um ligeiro toque. Exalando,
apercebo-me de que me agarrava ao aço com um bocadinho de
força a mais. A proa alisa-se de novo, ondulando de volta à
forma original.
— As minhas desculpas — resmungo rapidamente em
surdina. — Apenas estou… confundida. Julguei que os termos
já estivessem acordados. A Brecha elevar-se-á em declarado
desafio. A Iral traz consigo a Casa Lerolan e toda a Delphie.
Um estado inteiro separar-se-á.
A Mãe olha de relance para lá de mim, para o Pai. Ele dirige
o seu barco para terra e eu sigo-lhe o exemplo. A nossa
familiar propriedade espreita por entre as árvores, iluminada
pelo crepúsculo lá atrás. — Houve alguma discussão quanto
aos títulos.
— Títulos? — desdenho eu. — Que estupidez. O que
poderiam argumentar?
Aço embate contra pedra, chocando contra o baixo paredão
ao longo da água. Com uma pequena explosão de foco,
sustenho firmemente o metal contra a corrente. Wren ajuda
Tolly a sair primeiro, dando um passo para a luxuriante carpete
de relva. A Mãe observa, o seu olhar tardando na mão
desaparecida enquanto os primos o seguem.
Uma sombra cai sobre nós duas. O Pai. Está postado atrás
do ombro dela. Um vento leve ondula-lhe a capa, enfunando
as dobras de seda negra-vácuo e fio de prata. Oculto por baixo
está um fato de crómio tingido de azul tão fino que mais
parece líquido.
— Não ajoelharei perante outro rei ganancioso — sussurra
ele. A voz do Pai é sempre suave como veludo, mortal como
um predador. — Foi o que disse Salin Iral.
Inclina-se para baixo, oferecendo a mão à minha mãe. Ela
toma-a habilmente e sai do barco. Este não se mexe debaixo
dela, sustido pela minha aptidão.
Outro rei.
— Pai…?
A palavra morre-me na boca.
— Primos de ferro! — berra ele, sem desviar os olhos dos
meus.
Atrás dele, os nossos primos Samos tombam sobre um
joelho. Ptolemus não o faz, olhando tão confuso como eu.
Membros de sangue de uma casa não ajoelham entre si. Não
assim.
Eles respondem em uníssono, as suas vozes ressoando. —
Reis de aço!
Rapidamente o Pai estende a mão, apanhando-me o pulso
antes que o meu choque encrespe o barco por baixo.
O seu sussurro é quase demasiadamente baixo para se ouvir.
— Ao Reino da Brecha.
26
Vila Cinzenta. (N. da T.)
CAPÍTULO VINTE

Mare

O teletransportador de uniforme verde aterra suavemente,


sobre pés firmes. Já passou muito tempo desde que o
mundo se espremeu e esfumou para mim. Da última vez foi
com Shade. A instantânea lembrança dele faz doer. A par da
minha ferida e do nauseante jorro de dor, não é de admirar que
soçobre de gatas. Manchas dançam-me diante dos olhos,
ameaçando alastrar e consumir-me. Faço um esforço para
conservar os sentidos e não vomitar tudo à minha volta… onde
quer que esteja.
Antes que possa olhar muito além do metal sob os meus
dedos, alguém me levanta num esmagador abraço. Agarro-me
com quantas forças tenho.
— Cal — sussurro-lhe ao ouvido, os lábios roçando-lhe a
carne. Ele cheira a fumo e a sangue, calor e suor. A minha
cabeça encaixa perfeitamente no espaço entre o seu pescoço e
o ombro.
Ele treme nos meus braços, todo ele. Até mesmo o alento
lhe fraqueja. Está a pensar a mesma coisa que eu.
Isto não pode ser real.
Recua devagar, envolvendo-me o rosto nas mãos. Sonda-me
os olhos e observa fulgurante cada centímetro meu. Eu faço o
mesmo, procurando o ardil, a mentira, a traição. Talvez Maven
tenha transformadores de pele como a Babá. Talvez isto seja
outra alucinação Merandus. Bem posso acordar no comboio de
Maven, ante os seus olhos de gelo e o cortante sorriso de
Evangeline. O casamento inteiro, a minha fuga, a batalha —
alguma horrorosa piada. Mas Cal dá a sensação de ser real.
Está mais pálido do que me lembro, com cabelo toscamente
cortado. Encaracolaria como o de Maven se lhe dessem
oportunidade. Um restolho de barba delineia-lhe as faces, a par
de alguns pequenos cortes e esfolamentos ao longo dos
rebordos acentuados do maxilar. Está mais magro do que me
lembro, os seus músculos mais duros sob as minhas mãos. Só
os olhos permanecem iguais. Bronze, vermelho-dourado,
como ferro aquecido ao rubro.
Eu também pareço diferente. Um esqueleto, um eco. Ele
passa uma madeixa mole pelos dedos, observando o castanho
desbotando para quebradiço cinzento. E então toca nas
cicatrizes. No meu pescoço, na minha espinha, acabando na
marca sob o meu vestido destruído. Os seus dedos são gentis,
chocantemente gentis depois de quase nos termos feito
mutuamente em pedaços. Eu sou vidro para ele, uma coisa
frágil capaz de se estilhaçar ou desaparecer a qualquer
momento.
— Sou eu — digo-lhe, sussurrando palavras que ambos
temos necessidade de ouvir. — Estou de volta.
Estou de volta.
— És tu, Cal? — Soo como uma criança.
Ele assente, o seu olhar não vacilando. — Sou eu.
Eu movo-me porque ele não o faz, apanhando-nos a ambos
de surpresa. Os meus lábios moldam-se aos seus com
ferocidade, e puxo-o contra mim. O seu calor cai como um
cobertor em torno dos meus ombros. Luto para impedir que as
minhas faíscas façam o mesmo. Ainda assim, os cabelos na
sua nuca põem-se em pé, reagindo à corrente elétrica que salta
no ar. Nenhum de nós fecha os olhos. Isto bem pode ser
mesmo um sonho.
Ele vem a si primeiro, levantando-me do chão. Uma dezena
de rostos pretende desviar o olhar numa ilusão de decência.
Não me ralo. Deixá-los olhar. Rubor algum de vergonha
assoma. Fui forçada a fazer de longe pior diante de uma
multidão.
Estamos num jato aéreo. A longa fuselagem, o ronco surdo
dos motores e as nuvens que passam deslizando são
inconfundíveis. Para não falar no delicioso ronronar de
eletricidade pulsando através de cabos por todo o lado.
Estendo o braço, espalmando a palma da mão sobre o metal
frio e abaulado da parede do jato. Seria fácil absorver o pulsar
rítmico, puxá-lo para dentro de mim. Fácil e estúpido. Por
mais que me queira empanturrar da sensação, isso acabaria
muito mal.
Cal não me tira a mão do cóccix. Vira-se para olhar por
sobre o ombro, dirigindo-se a uma entre a dúzia de pessoas
presas aos seus lugares.
— Curador Reese, primeiro ela — diz.
— Decerto.
O meu sorriso arreganhado desaparece no segundo em que
um homem desconhecido põe as mãos em mim. Os seus dedos
fecham-se em torno do meu pulso. O aperto parece-me errado,
pesado. Como pedra. Algemas. Sem pensar, rechaço-o e dou
um salto para trás, como que queimada. O terror malha-me as
entranhas e faíscas irrompem-me dos dedos. Rostos lampejam,
toldando-me a visão. Maven, Samson, os guardas Arven com
as suas mãos contundentes e olhos duros. No teto, as luzes
tremulam.
O curador de cabelo vermelho retrai-se, ganindo, e Cal
interpõe-se suavemente entre nós.
— Mare, ele vai tratar as tuas feridas. Ele é um sanguenovo,
dos nossos. — Sustém uma mão contra a parede junto ao meu
rosto, escudando-me. Contendo-me. De súbito o jato de
tamanho considerável é demasiado pequeno, o ar cediço e
sufocante. O peso das algemas foi-se mas não está esquecido.
Ainda as sinto nos pulsos e tornozelos.
As luzes tremulam de novo. Engulo em seco, fechando os
olhos com toda a força, tentando focar-me. Controlar-me. Mas
o meu coração bate desenfreado, a minha pulsação um
ribombar. Sugo ar por entre os dentes cerrados, fazendo um
esforço para me acalmar. Estás a salvo. Estás com o Cal, com
a Guarda. Estás a salvo.
Cal toma-me novamente o rosto, implorando. — Abre os
olhos, olha para mim.
Ninguém mais emite um som.
— Mare, ninguém te vai fazer mal aqui. Está tudo acabado.
Olha para mim! — Oiço o desespero na sua voz. Ele sabe tão
bem como eu o que pode acontecer ao jato se eu perder
completamente o controlo.
O jato move-se sob os meus pés, inclinando-se numa
descida uniforme. A pôr-nos mais próximo do chão, não vá
acontecer o pior. Firmando o maxilar, forço-me a abrir os
olhos.
Olha para mim.
Maven disse estas palavras uma vez. Em Harbor Bay.
Quando o sonador ameaçou desfazer-me em pedaços. Oiço-o a
ele na voz de Cal, vejo-o no rosto de Cal. Não, eu escapei-te.
Eu fugi. Mas Maven está por todo o lado.
Cal suspira, exasperado e pesaroso. — Cameron.
O nome faz-me abrir os olhos de par em par e bato com
ambos os punhos no peito de Cal. Ele cambaleia para trás,
surpreendido com a força. Um lampejo de prata tinge-lhe as
faces. Une as sobrancelhas, tomado de confusão.
Atrás dele, Cameron mantém uma mão no assento,
oscilando com o movimento do jato. Parece forte, bem
apertada em equipamento tático de tecido espesso, com as
tranças acabadas de fazer bem presas à cabeça. Os seus olhos
castanhos-escuros perscrutam os meus.
— Isso não. — A súplica vem facilmente. — Tudo menos
isso. Por favor. Não consigo… Não consigo sentir isso outra
vez.
O silenciador sufocar. A morte lenta. Passei seis meses sob
esse peso e agora, sentindo-me eu própria de novo, poderei
não sobreviver a outro momento com isso. Um arquejar de
liberdade entre duas prisões é simplesmente outra tortura.
Cameron mantém as mãos caídas ao longo do corpo, os
dedos compridos e escuros imóveis. À espera de atacar. Os
meses mudaram-na também. O seu fogo não desapareceu, mas
tem direção, foco. Propósito.
— Muito bem — replica. Com movimentos deliberados,
cruza os braços sobre o peito, ocultando as mãos letais. Quase
soçobro de alívio. — É bom ver-te, Mare.
O meu coração ressoa ainda, o suficiente para me deixar
sem fôlego, mas as luzes param de tremeluzir. Baixo a cabeça
de alívio. — Obrigada.
Ao meu lado, Cal olha sombriamente. Um músculo
encrespa-lhe o rosto. O que pensa ele não posso dizer. Mas
posso adivinhar. Passei seis meses com monstros e não me
esqueci da sensação de ser um monstro eu própria.
Lentamente, afundo-me num assento vazio, pousando as
mãos nos joelhos. Depois entrelaço os dedos. Em seguida
sento-me sobre as mãos. Não sei o que parece menos
ameaçador. Furiosa comigo mesma, olho fulgurante o metal
entre os meus pés. De súbito tomo plena consciência do meu
blusão do exército e do vestido feito num oito, rasgado em
praticamente cada costura, e de como está frio aqui.
O curador repara no meu arrepio e passa-me rapidamente
um cobertor por sobre os ombros. Move-se com segurança,
todo ele trabalho. Quando cruza o olhar com o meu, brinda-me
com meio sorriso.
— Acontece frequentemente — murmura.
Forço uma risadinha, um som cavo.
— Vamos ver desse lado, está bem?
Quando me contorço, para lhe mostrar o lenho superficial
mas comprido ao longo das costelas, Cal senta-se no assento
ao lado do meu. Brinda-me com um sorriso bem seu.
Desculpa, articula mudamente.
Desculpa, articulo.
Ainda que nada tenha por que pedir verdadeiramente
desculpa. Para variar. Passei por coisas horrendas, fiz coisas
horrendas para sobreviver. É mais fácil assim. Por agora.
Não sei porque finjo dormir. Enquanto o curador faz o seu
trabalho, os meus olhos fecham-se suavemente e assim
permanecem durante horas. Sonhei durante tanto tempo com
este momento que é quase esmagador. A única coisa que posso
fazer é recostar-me e respirar suavemente. Sinto-me como uma
bomba. Nada de movimentos repentinos. Cal permanece ao
meu lado, a sua perna encostada à minha. Oiço-o mudar de
posição ocasionalmente, mas não fala com os outros. Nem
Cameron, tão-pouco. A atenção deles está-me reservada.
Parte de mim quer falar. Perguntar-lhes pela minha família.
Por Kilorn. Por Farley. O que aconteceu antes, o que está a
acontecer agora. Onde diabo vamos, até. Não consigo ir além
de pensar as palavras. Há apenas energia bastante em mim
para sentir alívio. Refrescante e apaziguador alívio. Cal está
vivo. Cameron está viva. Eu estou viva.
Os outros murmuram entre si, em vozes baixas por respeito.
Ou simplesmente não me querem acordar e arriscar outro
lampejo de instáveis relâmpagos.
Estar de ouvido à escuta é segunda natureza neste ponto.
Apanho algumas palavras, as suficientes para pintar um vago
quadro. Guarda Escarlate, sucesso tático, Montfort. A última
leva-me um longo momento de contemplação. Mal me lembro
dos sanguenovos gémeos, emissários de outra longínqua
nação. Os seus rostos esbatem-se na minha memória. Mas
lembro-me certamente da oferta que fizeram. Um porto de
abrigo para sanguenovos, desde que os acompanhasse. Isso
desestabilizou-me então e desestabiliza-me agora. Se fizeram
uma aliança com a Guarda Escarlate, qual foi o preço? O meu
corpo fica tenso à implicação. Montfort quer-me para alguma
coisa, isso pelo menos é claro. E Montfort parece ter ajudado
no meu resgate.
Mentalmente roço-me contra a eletricidade do jato,
deixando-a chamar a eletricidade dentro de mim. Algo me diz
que esta batalha ainda não acabou.
O jato aterra suavemente, pousando após o sol-pôr. Dou um
salto à sensação e Cal reage com reflexos felinos, a sua mão
vindo agarrar-me o pulso. Encolho-me de novo com uma
pontada de adrenalina.
— Desculpa — gagueja ele. — Eu…
Apesar do meu estômago às voltas, forço-me a acalmar.
Tomo-lhe o pulso na mão, os dedos roçando o aço da sua
pulseira lança-flamas.
— Ele manteve-me em cadeias. Algemas de Pedra
Silenciosa, de dia e de noite — sussurro. Aperto mais a mão,
deixando-o sentir um bocadinho daquilo de que me lembro. —
Ainda não consigo tirá-las da cabeça.
O seu sobrolho franze-se sobre os olhos que escurecem. Eu
conheço a dor intimamente, mas não tenho forças para vê-la
em Cal. Baixo os olhos, passando-lhe o polegar pela pele a
arder. Outro lembrete de que ele está aqui e eu estou aqui.
Aconteça o que acontecer, há sempre isto.
Ele desliza o braço, movendo-se com a sua graça letal, até
eu lhe segurar a mão. Os nossos dedos entrelaçam-se com
força. — Quem me dera poder fazer-te esquecer — diz.
— Isso nada ajudará.
— Eu sei. Mas ainda assim.
Cameron observa do outro lado da coxia, uma perna
irrequieta cruzada sobre a outra. Parece quase divertida
quando olho de relance para ela. — Espantoso — diz.
Tento não me eriçar. A minha relação com Cameron,
embora curta, não foi exatamente suave. Em retrospetiva, por
culpa minha. Mais um de uma longa lista de erros que
desesperadamente quero corrigir. — O que foi?
De sorriso arreganhado, ela desaperta o cinto de segurança e
põe-se de pé enquanto o jato abranda. — Ainda não
perguntaste onde vamos.
— Seja onde for é melhor do que onde estava. — Lanço um
olhar significativo a Cal e solto a mão para tentar libertar-me
desajeitadamente do lugar. — E achei que alguém me
informaria.
Ele encolhe os ombros ao levantar-se. — Estava à espera da
altura certa. Não queria sobrecarregar-te.
Pela primeira vez em muito tempo, rio-me verdadeiramente.
— Que trocadilho mais bera.
O seu sorriso largo condiz com o meu. — Serve o propósito.
— Não dá para aguentar — resmunga Cameron em surdina,
de si para si.
Assim que me liberto do assento aproximo-me dela, a medo.
Ela repara na minha apreensão e enfia as mãos nos bolsos.
Não é coisa de Cameron recuar ou amolecer, mas fá-lo por
mim. Não a vi na batalha e seria estúpida se não percebesse o
seu verdadeiro propósito. Ela está neste jato para me manter
debaixo de olho, um balde de água junto de uma fogueira, não
vá ela descontrolar-se.
Devagarinho, ponho-lhe os braços à volta dos ombros,
abraçando-a. Digo a mim própria para não me retrair ao
contacto da sua pele. Ela é capaz de controlá-lo, digo para
mim própria. Não deixará que o seu silêncio te toque. —
Obrigada por estares aqui — digo. E falo a sério.
Ela anui, hirta, o seu queixo roçando-me o topo da cabeça.
Alta como o diabo. Ou ainda está a crescer ou eu comecei a
encolher. Aposto numa e noutra coisa.
— Agora diz-me onde estamos — acrescento, afastando-
me. — E o que raio tenho eu perdido.
Ela espeta o queixo, apontando para a cauda do avião. Tal
como o velho Blackrun, este jato tem uma rampa de entrada.
Esta baixa-se com um silvo pneumático. O curador Reese
conduz os outros para fora e nós seguimo-los, uns passos atrás.
Fico tensa no caminho, sem saber com o que contar.
— Somos uns sortudos — diz Cameron. — Temos
oportunidade de ver como é o Piedmonte.
— Piedmonte? — Olho de relance para Cal, incapaz de
ocultar o meu choque ou a minha confusão.
Ele remexe os ombros. Um lampejo de desconforto
perpassa-lhe pelo rosto. — Não sabia até isto estar planeado.
Não nos disseram grande coisa.
— Nunca dizem. — É assim que a Guarda opera, assim que
se mantém na dianteira de Prateados como Samson ou Elara.
As pessoas sabem exatamente o que precisam saber e nada
mais. Requer muita fé, ou estupidez, seguir ordens assim.
Desço a rampa, cada passo mais leve que o anterior. Sem o
peso morto das algemas, sinto-me capaz de voar. Os outros
Guardas avançam à nossa frente e juntam-se a uma multidão
de outros soldados.
— O ramo da Guarda Escarlate no Piedmonte, certo? Um
grande ramo, ao que parece.
— O que queres dizer? — resmunga Cal em surdina ao meu
ouvido. Por sobre o ombro, Cameron mira-nos, igualmente
perplexa. Eu olho de relance entre ambos, procurando a coisa
certa a dizer. Escolho a verdade.
— É por isso que estamos no Piedmonte. A Guarda tem
vindo a operar aqui tal como em Norta e nas Lakelands. — As
palavras dos príncipes do Piedmonte, Daraeus e Alexandret,
ecoam-me na mente.
Cal sustém-me o olhar por um momento, antes de se voltar
para Cameron e dirigir-se-lhe. — És próxima da Farley.
Ouviste alguma coisa a este respeito?
Cameron dá uma pancadinha no lábio. — Ela nunca o
mencionou. Duvido que saiba. Ou que tenha autorização para
me dizer.
Os seus tons alteram-se. Mais aguçados, só trabalho. Não
gostam um do outro. Do lado de Cameron, percebo. Do de
Cal? Ele foi criado como príncipe. Nem mesmo a Guarda
Escarlate pode esfregar e limpar cada centímetro do fedelho
que ele foi.
— A minha família está aqui? — aguço-me eu também. —
Sabem isso, ao menos?
— Claro — replica Cal. Não é bom mentiroso e não vejo
nele qualquer mentira agora. — Asseguraram-me isso. Vieram
de Trial com a restante equipa do Coronel.
— Bom. Vou vê-los assim que puder.
O ar do Piedmonte é quente, pesado, pegajoso. Como o
mais fundo buraco de verão, embora ainda estejamos na
primavera. Nunca desatei a suar tão rapidamente. Até a brisa é
morna, não constituindo qualquer alívio ao soprar através do
betão plano e quente. A pista de aterragem está inundada de
holofotes, tão brilhantes que quase ofuscam as estrelas. À
distância há mais jatos alinhados. Alguns são verde-floresta,
iguais aos que vi na Praça de César. Jatos aéreos como o
Blackrun, bem como aeronaves maiores, de carga. Montfort,
constato quando os pontos se unem no meu cérebro. O
triângulo branco nas asas é a sua marca. Vi-o antes, lá em
Tuck, em caixotes de equipamento e nos uniformes dos
gémeos. Salpicados por entre as aeronaves de Montfort há
jatos de um azul profundo, bem como outros amarelos e
brancos, com as asas pintadas às listas. Os primeiros são
Lakelander, os segundos do próprio Piedmonte. Tudo à nossa
volta está bem organizado e, a julgar pelos hangares e anexos,
bem consolidado.
Claramente, estamos numa base militar e não a espécie de
base a que a Guarda Escarlate está acostumada.
Tanto Cal como Cameron parecem tão surpreendidos como
eu.
— Acabei de passar seis meses prisioneira e estão a dizer-
me que sei mais sobre as nossas operações do que vocês dois?
— zombo.
Cal parece envergonhado. Ele é general; é Prateado; nasceu
príncipe. Estar confuso e impotente abala-o profundamente.
Cameron eriça-se simplesmente. — Levaste apenas umas
horas a recuperar a tua presunção. Deve ser um novo recorde.
Ela tem razão e sinto-me picada. Apresso-me a apanhá-la,
com Cal a meu lado. — Eu simplesmente… desculpa. Julguei
que isto fosse mais fácil.
Uma mão no meu cóccix irradia calor, apaziguando-me os
músculos. — O que sabes tu que nós não sabemos? —
pergunta Cal, numa voz penosamente gentil. Parte de mim
quer sacudi-lo. Eu não sou uma boneca — nem a boneca de
Maven nem de ninguém — e detenho o controlo de novo. Não
preciso ser manipulada. Mas o restante deleita-se com o seu
terno tratamento. É melhor do que tudo o que senti durante
muito tempo.
Não abrando o passo, mas mantenho a voz baixa. — No dia
em que a Casa Iral e as outras tentaram matar Maven, ele
estava a dar um banquete para dois príncipes do Piedmonte.
Daraeus e Alexandret. Interrogaram-me antes, fazendo
perguntas sobre a Guarda Escarlate, as suas operações no reino
deles. Algo que ver com um príncipe e uma princesa. — A
lembrança ganha nitidez. — Charlotta e Michael.
Desapareceram.
Uma nuvem escura atravessa o rosto de Cal. — Ouvimos
dizer que os príncipes estavam em Archeon. Alexandret
morreu depois. Na tentativa de assassinato.
Pestanejo, admirada. — Como é que sa…
— Mantivemo-nos informados a teu respeito na medida do
possível — explica. — Isso constava dos relatórios.
Relatórios. A palavra rodopia. — Foi por isso que a Babá se
infiltrou na corte? Para me manter debaixo de olho?
— A Babá foi culpa minha — cospe Cal da boca para fora.
Olha os pés, fulgurante. — De mais ninguém.
Ao lado dele, Cameron faz uma carranca. — Estás
malditamente certo.
— Menina Barrow!
A voz não constitui um choque. Onde vai a Guarda
Escarlate vai o Coronel Farley. Quase parece o mesmo de
sempre: atormentado, mal-humorado e bruto, cabelo louro-
branco cortado rente, o rosto sulcado de stress prematuro e um
olho toldado com uma película permanente de sangue
escarlate. As únicas alterações são o firme encanecer do
cabelo, bem como um escaldão no nariz e mais sardas nos seus
antebraços descobertos. O Lakelander não está acostumado ao
sol do Piedmonte e está aqui há tempo suficiente para senti-lo.
Soldados Lakelander seus, com uniformes vermelhos e
azuis, acompanham-no em posição de flanco. Mais dois de
verde vêm também atrás. Reconheço Rash e Tahir à distância,
andando a compasso. Farley não está com eles. E não a vejo
no betão, saindo de nenhum dos jatos. Não é coisa dela furtar-
se a um combate — a menos que não se tenha safado em
Norta. Engulo o inquietante pensamento e foco-me no pai
dela.
— Coronel. — Baixo a cabeça num cumprimento.
Ele surpreende-me estendendo uma mão incrivelmente
calejada.
— É bom vê-la inteira — diz.
— Inteira tanto quanto se pode esperar.
Isto abala-o. Tosse, olhando para nós à vez. Precária
situação para um homem que teme abertamente o que somos.
— Vou ver a minha família agora, Coronel.
Não há razão para pedir permissão. Movo-me para passar-
lhe ao lado, mas a sua mão faz-me estacar. Desta vez resisto à
ânsia visceral de me encolher. Ninguém mais vai ver o meu
medo. Não neste momento. Em vez disso olho-o de frente, e
deixo que se aperceba exatamente do que faz.
— Não é decisão minha — diz firmemente o Coronel.
Ergue os sobrolhos, implorando-me que oiça. Depois inclina a
cabeça de lado. Por sobre o seu ombro, Rash e Tahir assentem
para mim.
— Menina Barrow…
— Fomos instruídos…
— …a escoltá-la…
— …à sua inquirição.
Os gémeos pestanejam para mim em uníssono, terminando
o seu enlouquecedor emparelhado discurso. Tal como o
Coronel, transpiram na humidade. O que lhes faz brilhar as
barbas negras iguais e a pele ocre.
Em vez de pregar um murro em cada um, como desejaria
fazer, dou um pequeno passo atrás. Inquirição. A ideia de
explicar tudo o que passei a uns quaisquer estrategas da
Guarda dá-me vontade de gritar ou atacar — ou ambos.
Cal interpõe-se entre nós, nem que seja para aparar qualquer
golpe que eu lhes possa lançar.
— Vão mesmo obrigá-la a fazer isto agora? — O seu tom
de incredulidade contém um aviso velado. — Isso pode
esperar.
O Coronel exala lentamente, a imagem da exasperação. —
Pode parecer cruel — lança um olhar cortante aos gémeos
Montfort —, mas tem informação vital sobre os nossos
inimigos. São estas as nossas ordens, Barrow. — A sua voz
suaviza-se. — Tomara que não fossem.
Com um toque ao de leve, afasto Cal para o lado. — Eu-
vou-ver-a-minha-família-agora! — berro, falando de um lado
para o outro entre os insuportáveis gémeos. Eles limitam-se a
fazer uma carranca.
— Que grosseria — resmunga Rash em surdina.
— Grande grosseria — corrobora Tahir.
Cameron disfarça uma risada baixa com um acesso de tosse.
— Não a tentem — avisa. — Eu olharei para o outro lado se
explodirem relâmpagos.
— As ordens podem esperar — acrescenta Cal, usando todo
o seu treino militar para parecer autoritário, ainda que pouco
poder tenha aqui. A Guarda Escarlate vê-o como uma arma,
nada mais. Eu sei, pois dantes via-o da mesma maneira.
Os gémeos não se mexem. Rash arma-se em fanfarrão,
empinando-se como um pássaro agitando as penas. —
Certamente que tem tanto motivo como qualquer um para
ajudar a derrubar o Rei Maven?
— Certamente conhece as melhores formas de o derrotar?
— prossegue Tahir.
Não estão enganados. Vi as feridas mais profundas e as mais
obscuras partes de Maven. Onde atingi-lo para o fazer sangrar
mais. Mas neste momento, com todos os que amo tão perto,
mal posso ver direito. Neste preciso instante, se alguém
acorrentasse Maven ao chão à minha frente não me deteria
para lhe dar um pontapé nos dentes.
— Não quero saber quem segura a vossa trela, de nenhum
de vós. — Passo-lhes ao largo. — Digam ao vosso amo para
esperar.
Os irmãos trocam olhares. Falam um com o outro por
pensamento, discutindo. Eu pôr-me-ia a andar se soubesse para
onde ir, mas estou irremediavelmente à deriva.
A minha mente corre já lá adiante, para a Mamã, o Papá,
Gisa, Tramy e Bree. Visualizo-os encafuados noutra caserna,
espremidos num compartimento-dormitório mais pequeno que
a nossa casa nas Stilts. Os maus cozinhados da Mamã
empestando o ar. A cadeira do Papá, os trapos de Gisa. Aperta-
se-me o coração.
— Eu própria darei com eles — sibilo, tencionando deixar
de vez os gémeos para trás.
Em vez disso, Rash e Tahir curvam-se, acenando-me. —
Muito bem…
— A sua inquirição será de manhã, Menina Barrow.
— Coronel, se quiser escoltá-la até…
— Sim — diz o Coronel bruscamente, interrompendo-os.
Dou graças pela sua precipitação. — Siga-me, Mare.
A base do Piedmonte é muito maior que a de Tuck, a julgar
pelo tamanho do aeródromo. No escuro é difícil distinguir,
mas faz-me mais lembrar Fort Patriot27, o quartel-general
militar de Norta em Harbor Bay. Os hangares são maiores,
com dezenas de aeronaves. Em vez de seguirmos a pé para
onde vamos, os homens do Coronel conduzem-nos num
transporte de capota aberta. Como alguns dos jatos, têm os
lados pintados às listas amarelas e brancas. Tuck podia eu
entender. Uma base abandonada, fora de vista, fora de
pensamento, foi provavelmente fácil de tomar pela Guarda
Escarlate. Mas esta não é uma coisa nem outra.
— Onde está o Kilorn? — balbucio em surdina, dando um
toque a Cal ao meu lado.
— Com a tua família, depreendo eu. Ele passava a maior
parte do tempo entre eles e os sanguenovos.
Porque ele não tem família sua.
Baixo mais a voz, para poupar ao Coronel qualquer ofensa.
— E a Farley?
Cameron inclina-se diante de Cal, os seus olhos
singularmente amáveis. — Ela está no hospital, mas não te
preocupes. Não foi a Archeon; não está ferida. Não tardarás a
vê-la. — Pestaneja rapidamente, escolhendo as palavras com
cuidado. — Vocês duas terão… coisas de que falar.
— Bom.
O ar quente cola-se a mim com dedos pegajosos,
enredando-me o cabelo. Mal consigo estar sentada quieta no
lugar, por de mais excitada e nervosa. Quando fui levada,
Shade acabara de morrer — por minha causa. Não censuraria
ninguém, incluindo Farley, se me odiasse por isso. O tempo
nem sempre sara as feridas. De vez em quando fá-las piorar.
Cal mantém uma mão na minha perna, um peso firme como
lembrete da sua presença. Junto a mim, os seus olhos dardejam
para um lado e para o outro, assinalando cada viragem do
transporte. Eu deveria fazer o mesmo. A base do Piedmonte é
território desconhecido. Mas não consigo fazer muito mais do
que morder o lábio e esperar. Os meus nervos zunem, mas não
de eletricidade. Quando descrevemos uma curva à direita,
virando para uma rede de alegres casas geminadas de tijolo,
sinto-me a ponto de explodir.
— Aposentos dos oficiais — resmunga Cal em surdina. —
Esta é uma base real. Financiada pelo governo. Há apenas
umas quantas bases deste tamanho no Piedmonte.
O seu tom diz-me que ele se interroga, tal como eu. Então
como estamos nós aqui?
Abrandamos diante da única casa com todas as janelas
iluminadas. Sem pensar, salto do transporte, quase tropeçando
nos farrapos do meu vestido. A minha visão afunila-se para o
carreiro diante de mim. Piso de gravilha, degraus de pedra.
Ondulações de movimento atrás das cortinas corridas. Oiço
apenas o pulsar do meu coração e o ranger de uma porta a
abrir.
A Mamã chega a mim primeiro, ultrapassando os meus dois
irmãos pernaltas. A colisão quase me tira o ar dos pulmões, e o
seu subsequente abraço fá-lo de facto. Não me importo. Ela
podia partir-me cada osso do corpo que eu não me importaria.
Bree e Tramy quase nos carregam às duas pelos degraus
acima para dentro de casa. Berram alguma coisa enquanto a
Mamã me sussurra ao ouvido. Não oiço nada. Todos os
sentidos subjugados de felicidade e júbilo. Jamais senti uma
coisa assim.
Os meus joelhos roçam contra um tapete e a Mamã ajoelha-
se comigo no meio do grande vestíbulo. Não cessa de me
beijar as faces, alternando uma e outra tão rapidamente que
julgo que ficarei com nódoas negras. Gisa enrosca-se
connosco, o seu cabelo vermelho-escuro flamejante no canto
do meu olho. Tal como o Coronel, tem uma poalha de sardas
novas, pontos castanhos na pele dourada. Aninho-a contra
mim. Dantes era mais pequena.
Tramy ri-se de nós, exibindo uma barba escura e bem
cuidada. Estava sempre a tentar fazê-la crescer quando era
adolescente. Nunca conseguiu mais que uns remendos de
restolho. Bree costumava meter-se com ele. Não agora.
Espalma-se contra as minhas costas, os braços grossos
envolvendo-me e à Mamã. As suas faces estão molhadas. Com
um choque, constato que as minhas também.
— Onde está…? — pergunto.
Graças sejam dadas, não tenho tempo para temer o pior.
Quando ele aparece, interrogo-me se estou a alucinar.
Apoia-se pesadamente no braço de Kilorn e numa bengala.
Os meses foram-lhe favoráveis. Refeições regulares encheram-
no. Vem devagar pelo seu pé de uma sala contígua. Pelo seu
pé. O seu passo é empolado, artificial, estranho. O meu pai não
tem duas pernas há anos. Ou mais do que um pulmão a
funcionar. Quando se aproxima, de olhos brilhantes, escuto.
Não há raspar nenhum. Nenhum clique de máquina para o
ajudar a respirar. Nenhum chiar de uma enferrujada cadeira de
rodas. Não sei o que pensar ou dizer. Esqueci-me de quão alto
ele é.
Curadores. Provavelmente a própria Sara. Agradeço-lhe mil
vezes silenciosamente dentro do meu coração. Lentamente
levanto-me, apertando o blusão do exército contra o corpo.
Tem orifícios de balas. O Papá avalia-as, soldado ainda.
— Podes abraçar-me. Não cairei — diz-me.
Mentiroso. Quase o derrubo quando lhe passo os braços à
volta do tronco, mas Kilorn mantém-no direito. Abraçamo-nos
como não somos capazes de fazer desde que eu era pequena.
As suaves mãos da Mamã arredam-me o cabelo do rosto, e
ela encosta a cabeça à minha. Mantêm-me entre eles, abrigada
e segura. E por esse momento esqueço-me. Não há Maven
nenhum, algemas nenhumas, marca nenhuma, cicatrizes
nenhumas. Guerra nenhuma e rebelião nenhuma.
Shade nenhum.
Eu não era a única que faltava na nossa família. Nada pode
mudar isso.
Ele não está aqui, e jamais voltará a estar. O meu irmão está
sozinho numa ilha abandonada.
Recuso deixar que outro Barrow tenha o mesmo destino.
27
Forte Patriota. (N. da T.)
CAPÍTULO VINTE E UM

Mare

A água do banho redemoinha castanha e vermelha. Terra e


sangue. A Mamã escoa a água duas vezes e continua
ainda assim a encontrar-me mais no cabelo. Pelo menos o
curador no jato tratou-me das feridas frescas, de modo que
posso desfrutar do banho quente de espuma sem mais dores.
Gisa está empoleirada num banco junto à banheira, a sua
espinha direita na postura hirta que aperfeiçoou ao longo dos
anos. Ou ficou mais bonita ou seis meses embotaram a
lembrança que tenho do seu rosto. Nariz direito, lábios cheios
e faiscantes olhos escuros. Os olhos da Mamã, os meus olhos.
Os olhos de todos os Barrow, exceto Shade. Ele era o único de
nós com olhos cor de mel ou dourados. Da mãe do meu pai.
Esses olhos foram-se para sempre.
Desvio os pensamentos do meu irmão e fito a mão de Gisa.
A que eu quebrei com os meus erros idiotas.
A pele está lisa agora, os ossos reconstituídos. Não há sinais
da sua mão mutilada, estilhaçada pela coronha da arma de um
oficial de Segurança.
— Sara — explica Gisa gentilmente, fletindo os dedos.
— Fez um bom trabalho — digo-lhe. — Com o Papá
também.
— Esse levou uma semana inteira, sabes. A fazer crescer
tudo de novo da coxa para baixo. E ainda se está a habituar.
Mas não doeu tanto como isto. — Flete os dedos, abrindo-se
num sorriso. — Sabes que ela teve de voltar a partir estes
dois? — Os seus dedos indicador e médio mexem-se. — Usou
um martelo. Doeu como o caraças.
— Gisa Barrow, estás com uma linguagem pavorosa. —
Esparrinho um pouco de água para os seus pés. Ela pragueja
de novo, encolhendo os dedos.
— A culpa é da Guarda Escarlate. Parece que estão o tempo
todo a praguejar e a pedir mais bandeiras. — Até que soa
certo. Não se deixando ficar, Gisa mete a mão dentro da
banheira e salpica-me também de água.
A Mamã manda-nos calar com um tch-tch. Tenta parecer
severa e falha redondamente. — Parem com isso, vocês duas.
Uma felpuda toalha branca abre-se nas suas mãos,
estendida. Por muito que me apeteça passar mais uma hora de
molho na água quente e apaziguadora, quero ainda mais voltar
lá para baixo.
A água esparrinha à minha volta quando me levanto e saio
da banheira, enroscando-me na toalha. O sorriso de Gisa vacila
ligeiramente. As minhas cicatrizes estão bem vívidas, pedaços
perlados de carne branca contra pele mais escura. Até mesmo
a Mamã desvia os olhos, dando-me um segundo para enrolar a
toalha um bocadinho melhor, ocultando a marca na minha
clavícula.
Foco-me na casa de banho e não nas suas caras
envergonhadas. Não é tão fina como a que tinha em Archeon,
mas a ausência de Pedra Silenciosa mais que o compensa.
Fosse qual fosse o oficial que aqui vivia, gostava muito de
coisas garridas. As paredes são de um cor de laranja berrante
debruado a branco a condizer com as loiças, incluindo um
lavatório estriado, a banheira funda e um chuveiro escondido
atrás de um cortinado verde-lima. O meu reflexo fita-me do
espelho sobre o lavatório. Pareço um rato afogado, ainda que
bem limpinho. Ao lado da minha mãe, vejo mais claramente a
nossa semelhança. Ela é pequena de ossos como eu, a nossa
pele do mesmo tom dourado. Conquanto a dela esteja mais
desgastada e enrugada, esculpida pelos anos.
Gisa conduz-nos lá para fora para o corredor, seguida pela
Mamã enxugando-me o cabelo com outra toalha macia.
Levam-me para um quarto azul-pastel com duas camas fofas.
É pequeno mas mais que suficiente. Antes um chão de terra
que o mais sumptuoso quarto no palácio de Maven. A Mamã
enfia-me rapidamente um pijama de algodão, para não falar de
meias e um xaile macio.
— Mamã, vou assar — protesto amavelmente, afastando o
xaile do pescoço.
Ela pega nele com um sorriso. Depois beija-me de novo,
agarrando-me para me roçar ambas as faces. — Só te quero
pôr confortável.
— Acredite que estou — digo, apertando-lhe o braço.
No canto, reparo no meu sumptuoso vestido do casamento,
agora reduzido a trapos. Gisa segue-me o olhar e cora.
— Achei que podia salvar um pouco dele — admite a minha
irmã, parecendo quase envergonhada. — São rubis. Não vou
desperdiçar rubis.
Ao que parece tem mais dos meus instintos de ladra do que
eu julgava.
E, aparentemente, a minha mãe também.
Fala antes que eu dê sequer um passo para a porta do quarto.
— Se julgas que te vou deixar ficar a pé até de madrugada,
a falar de guerra, estás mais que enganada. — Para cimentar o
que diz, cruza os braços e interpõe-se bem no meu caminho. A
minha mãe é baixa, como eu, mas tem muitos anos de trabalho
em cima. Está longe de ser fraca. Vi-a pôr na ordem os meus
três irmãos e sei por experiência que me meterá à força na
cama se tiver de ser.
— Mamã, preciso de dizer umas coisas…
— A tua inquirição amanhã de manhã é às oito horas. Di-lo
então.
— …e quero saber o que perdi…
— A Guarda tomou Corvium. Estão a trabalhar no
Piedmonte. É tudo o que toda a gente lá em baixo sabe. —
Fala de uma assentada, levando-me para a cama.
Olho para Gisa a pedir ajuda, mas ela recua, de mãos
erguidas.
— Eu não falei com o Kilorn…
— Ele compreende.
— Cal…
— Está mais que bem com o teu pai e os teus irmãos. É
capaz de invadir a capital; pode lidar com eles.
Com um sorriso malicioso, imagino Cal ensanduichado
entre Bree e Tramy.
— Além disso, ele fez tudo o que podia para te trazer de
volta para nós — acrescenta com um piscar de olho. — Eles
não lhe darão qualquer problema, pelo menos esta noite.
Agora mete-te na cama e fecha os olhos, ou eu fecho-tos por
ti.
A luz silva nas lâmpadas; os fios elétricos do quarto
serpenteiam ao longo de linhas elétricas de luz. Nada se
compara à força da voz da minha mãe. Obedeço-lhe, enfiando-
me por baixo dos cobertores da cama mais próxima. Para
minha surpresa, ela enfia-se na cama ao meu lado, abraçando-
me contra ela.
Pela milésima vez esta noite, beija-me o rosto. — Não vais
a sítio nenhum.
No meu coração, sei que isso não é verdade.
Esta guerra está longe de estar ganha.
Mas pelo menos pode ser verdade por esta noite.
Os pássaros no Piedmonte fazem uma algazarra horrível.
Cantam e chilreiam do outro lado das janelas, e imagino
carradas deles empoleirados nas árvores. É a única explicação
para tanto barulho. Mas valem por uma coisa: nunca ouvi
pássaros em Archeon. Mesmo antes de abrir os olhos, sei que
isto não foi sonho nenhum. Sei onde estou a acordar e para o
que estou a acordar.
A Mamã é madrugadora por hábito. Gisa também não se
encontra aqui, mas não estou sozinha. Espreito pela porta do
quarto e dou com um rapaz magricela sentado no cimo das
escadas, as pernas estendidas sobre os degraus.
Kilorn põe-se em pé de sorriso arreganhado e braços
abertos. Sou bem capaz de me ir abaixo com tantos abraços.
— Levaste tempo — diz ele. Mesmo após seis meses de
captura e tormento, não me trata com luvas de pelica. Caímos
de volta nos velhos hábitos à velocidade da luz.
Bato-lhe nas costelas. — Não graças a ti.
— Pois, incursões militares e ataques táticos não são
exatamente a minha especialidade.
— Tens uma especialidade?
— Bem, além de ser um estorvo? — ri-se ele, levando-me lá
para baixo. Tachos e panelas soam algures, e sigo o cheiro de
bacon frito. À luz do dia a casa geminada parece amistosa e
deslocada numa base militar. Paredes amarelo-manteiga e
tapetes floridos roxos aquecem o vestíbulo central, mas há
uma suspeitosa ausência de decorações. Buracos de pregos
salpicam o papel de parede. Talvez uns doze quadros foram
retirados. As salas por onde passamos — um salão e um
escritóro — estão igualmente pouco mobiladas. Ou o oficial
que aqui vivia esvaziou a casa, ou alguém o fez por ele.
Para com isso, digo de mim para mim. Conquistei o direito
de não pensar em traições ou facadas nas costas por um
maldito dia. Estás a salvo; estás a salvo; acabou. Repito as
palavras na minha cabeça.
Kilorn estende um braço, detendo-me à porta da cozinha.
Inclina-se para mim, até não lhe poder evitar os olhos. Verdes
como me lembro. Semicerram-se de preocupação. — Estás
bem?
De costume assentiria, descartando a insinuação com um
sorriso. Fi-lo tantas vezes antes. Afugentei as pessoas mais
próximas de mim, achando poder sangrar sozinha. Não o farei
de novo. Tornava-me odiosa, horrível. Mas as palavras que
quero derramar da boca para fora não saem. Não para Kilorn.
Ele não compreenderia.
— Começo a achar que preciso de uma palavra que
signifique sim e não ao mesmo tempo — sussurro, olhando as
pontas dos pés.
Ele pousa-me uma mão no ombro. Não por muito tempo.
Kilorn sabe as linhas que eu tracei entre nós. Não as forçará.
— Estou aqui quando precisares de falar. — Não se, quando.
— Perseguir-te-ei até que o faças.
Brindo-o com um sorriso trémulo. — Bom. — O som de
gordura a fritar estraleja no ar. — Espero que o Bree não tenha
comido tudo.
O meu irmão certamente faz por isso. Enquanto Tramy a
ajuda a cozinhar, Bree paira de volta da Mamã, tirando tiras de
bacon do óleo quente. Ela enxota-o para regozijo de Tramy,
que sorri maliciosamente para uma frigideira com ovos. São
ambos adultos mas parecem crianças, tal como os recordo.
Gisa está sentada à mesa da cozinha, observando pelo canto do
olho. Fazendo todo o possível por manter a compostura.
Tamborila os dedos sobre o tampo de madeira da mesa.
O Papá é mais contido, encostado a uma parede de
armários, a sua perna nova estendida à sua frente. Avista-me
antes dos outros e brinda-me com um sorrisinho só nosso.
Apesar da cena bem-disposta, a tristeza rodeia-o subtilmente.
Ele sente a peça que nos falta. Aquela que jamais será
encontrada.
Faço por engolir o nó na garganta, afugentando o fantasma
de Shade.
Cal está notoriamente ausente. Não que se deixe ficar longe
por muito tempo. Está provavelmente a dormir, ou talvez a
planear a próxima fase de… seja o que for que se passa.
— Há mais pessoas a precisar de comer — ralho ao passar
por Bree. Velozmente, roubo-lhe o bacon dos dedos. Seis
meses não embotaram os meus reflexos e impulsos. Lanço-lhe
um sorriso arreganhado enquanto me sento ao lado de Gisa,
agora torcendo o longo cabelo num impecável carrapito.
Bree faz uma careta ao sentar-se, um prato na mão cheio de
torradas com manteiga. Ele nunca comeu assim tão bem no
exército, ou em Tuck. Tal como todos nós, está a tirar pleno
proveito da comida ao seu dispor. — Pois, Tramy, guarda
alguma coisa para nós.
— Como se precisasses mesmo — riposta Tramy, dando um
beliscão a Bree na bochecha. Acabam os dois à bofetada.
Crianças, penso de novo. E soldados também.
Foram ambos recrutados e ambos sobreviveram mais tempo
que a maioria. Há quem lhe chame sorte, mas são fortes, um e
outro. Inteligentes em batalha, se não em casa. Por baixo dos
seus sorrisos fáceis e comportamento de rapazolas jazem
guerreiros. Por agora congratulo-me por não ter de vê-lo.
A Mamã serve-me primeiro. Ninguém se queixa, nem
mesmo Bree. Atiro-me aos ovos com bacon, bem como a uma
chávena de rico café bem quente com natas e açúcar. A
comida é digna de um nobre Prateado e eu bem o sei. —
Mamã, como é que arranjou isto? — pergunto entre duas
garfadas de ovo. Gisa faz uma careta, enrugando o nariz à
comida à vista na minha boca enquanto falo.
— Entrega diária na rua — responde a Mamã, atirando uma
trança de cabelo castanho-grisalho por sobre o ombro. — Esta
fiada é toda de oficiais da Guarda, altas patentes e pessoas
relevantes… e respetivas famílias.
— Pessoas relevantes quer dizer… — tento ler nas
entrelinhas. — Sanguenovos?
Kilorn responde em vez disso. — Se forem oficiais, sim.
Mas os recrutas de sangue novo vivem nas casernas com os
restantes soldados. Achei melhor assim. Menos divisão, menos
medo. Nunca teremos um exército como deve ser se a maior
parte das tropas tiverem medo da pessoa ao seu lado.
Contra minha vontade, sinto as sobrancelhas erguerem-se de
surpresa.
— Eu disse-te que tinha uma especialidade — sussurra ele
com um piscar de olho.
A minha mãe abre-se num sorriso, pousando o prato
seguinte de comida à frente dele. Afaga-lhe o cabelo
carinhosamente, despenteando-lhe os caracóis fulvos. Ele tenta
constrangidamente alisá-los de volta. — O Kilorn tem vindo a
melhorar as relações entre os sanguenovos e a restante Guarda
Escarlate — diz ela orgulhosamente. Ele tenta ocultar o
resultante rubor com uma mão.
— Warren, se não vais comer isso…
O Papá reage mais depressa do que qualquer um de nós,
batendo na mão estendida de Tramy com a bengala. —
Maneiras, rapaz — rosna. Depois rouba bacon do meu prato.
— Está bem bom.
— O melhor que jamais comi — concorda Gisa. Come
delicada mas avidamente ovos polvilhados de queijo. — Lá de
comida sabe Montfort.
— Piedmonte — corrige o Papá. — Comida e
abastecimentos são do Piedmonte.
Registo a informação e contraio-me ao instinto de fazê-lo.
Estou tão acostumada a dissecar as palavras de toda a gente à
minha volta que o faço sem pensar, mesmo com a minha
família. Estás a salvo; estás a salvo; acabou. As palavras
repetem-se na minha cabeça. O seu ritmo acalma-me um
bocadinho.
O Papá ainda se recusa a sentar-se.
— Então que tal se dá com a perna? — pergunto.
Ele coça a cabeça, impaciente. — Bem, não a devolverei
nos tempos mais próximos — diz com um raro sorriso. —
Requer que me habitue a ela. A curadora de pele ajuda sempre
que pode.
— Que bom. Bom mesmo.
Eu nunca tive verdadeiramente vergonha da deficiência do
Papá. Significava que estava vivo e a salvo do recrutamento.
Tantos outros pais, o de Kilorn incluído, morreram por uma
guerra sem sentido enquanto o meu viveu. A falta da perna
tornou-o azedo, descontente, melindrado com a sua cadeira.
Fazia mais carranca do que sorria, amargo eremita para a
maior parte das pessoas. Mas era um homem vivo. Disse-me
uma vez que era cruel dar esperança quando nenhuma deveria
haver. Não tinha esperança de voltar a andar, de ser o homem
que fora antes. Agora aí está de pé a provar o contrário e essa
esperança, por mais pequena que seja, por mais impossível que
seja, ainda pode ser correspondida.
Na prisão de Maven eu desesperava. Consumia-me.
Contava os dias e desejava um fim, fosse ele qual fosse. Mas
tinha esperança. Tola, ilógica esperança. Por vezes um só
bruxulear, por vezes uma chama. Parecia igualmente
impossível. Tal como o caminho adiante, de guerra e
revolução. Bem podemos todos morrer nos próximos dias.
Bem podemos ser traídos. Ou…bem que podemos vencer.
Não sei sequer com o que isso se parece, ou exatamente o
que esperar. Apenas sei que devo manter a minha esperança
viva. É o único escudo que tenho contra a escuridão interior.
Olho à volta da mesa da cozinha. Outrora lamentava que a
minha família não me conhecesse, não compreendesse aquilo
em que me tornara. Julgava-me separada, só, isolada.
Não podia estar mais errada. Agora bem sei. Sei quem sou.
Sou Mare Barrow. Não Mareena, não a rapariga-relâmpago.
Mare.
Os meus pais oferecem-se calmamente para me
acompanharem à inquirição. Gisa também. Recuso. Isto é um
empreendimento militar, tudo trabalho, tudo pela causa. Ser-
me-á mais fácil recordar em pormenor se a minha mãe não me
estiver a segurar a mão. Posso ser forte diante do Coronel e
dos seus oficiais, mas não diante dela. Ela faz com que seja
demasiado tentador quebrar. A fraqueza é aceitável, perdoável,
em família. Mas não quando vidas e guerras pendem na
balança.
O relógio da cozinha indica oito da manhã, e à hora exata
um transporte de capota aberta rola diante da casa geminada.
Saio calmamente. Só Kilorn me segue até lá fora, mas não
para me acompanhar. Ele sabe que não tem aqui qualquer
papel.
— Então, o que farás hoje? — pergunto ao abrir de repelão
a porta com maçaneta de latão.
Ele encolhe os ombros. — Tinha um programa em Trial.
Um pouco de treino, rondas com os sanguenovos, lições com a
Ada. Depois de vir para aqui com os teus pais achei por bem
continuar.
— Um programa — bufo, saindo para a luz do Sol. — Falas
como uma dama Prateada.
— Bem, quando se é tão bem parecido como eu… —
suspira.
Já está calor, o Sol abrasador acima do horizonte oriental, e
dispo o fino casaco que a Mamã me forçou a vestir. Árvores
frondosas ladeiam a rua, emprestando à base militar um
disfarce de bairro de classe alta. A maior parte das casas de
tijolo geminadas parecem vazias, as janelas escuras e
fechadas. Ao fundo da escada, o meu transporte aguarda. O
condutor ao volante puxa os óculos de sol para baixo, olhando-
me por sobre as lentes. Já era de esperar. Cal deu-me todo o
tempo de que precisava com a minha família, mas não se
aguentou longe muito tempo.
— Kilorn — exclama ele, saudando com um aceno de mão.
Kilorn retribui o gesto com à-vontade e um sorriso. Seis meses
cortaram a rivalidade de ambos pela raiz.
— Vou ter contigo mais tarde — digo-lhe. — Comparar
notas.
Ele assente. — Certo.
Embora esteja Cal ao volante, atraindo-me como um farol,
dirijo-me lentamente para o transporte. À distância rugem
motores de jatos aéreos. Cada passo deixa-me uns centímetros
mais perto de reviver seis meses de cativeiro. Se virasse costas
ninguém me censuraria. Mas apenas prolongaria o inevitável.
Cal observa, o seu rosto sombrio à luz do dia. Estende a
mão, ajudando-me a sentar no lugar da frente como se eu fosse
alguma espécie de inválida. O motor ronrona, o seu coração
elétrico um conforto e um lembrete. Posso estar assustada, mas
não sou fraca.
Com um último aceno para Kilorn, Cal engrena o motor e
gira o volante, conduzindo-nos rua fora. A brisa agita-lhe o
cabelo toscamente cortado, ressaltando irregularidades.
Passo-lhe a mão pela nuca. — Foste tu que o cortaste?
Ele ruboriza-se de prata. — Tentei. — Deixando uma mão
no volante, toma a minha na outra. — Vais estar capaz disto?
— Sairei viva. Suponho que os teus relatórios contenham a
maior parte das coisas mais importantes. Eu limitar-me-ei a
preencher as lacunas. — As árvores vão escasseando de cada
lado de nós, quando a Rua dos Oficiais chega a uma avenida
mais larga. À esquerda fica o aeródromo. Viramos à direita, o
transporte descrevendo uma curva suave sobre o pavimento.
— E espero que alguém comece a pôr-me a par de tudo… isto.
— Com esta gente tens de exigir respostas em vez de ficares
à espera delas.
— Tendes sido exigente, Vossa Alteza?
Ele solta uma risadinha do fundo da garganta. — Eles
certamente assim pensam.
É uma viagem de cinco minutos até ao nosso destino, e Cal
faz todo o possível por me atualizar. Havia um quartel-general
ao longo da fronteira com as Lakelands, perto de Trial. Todos
os soldados do Coronel evacuaram para norte antecipando
uma invasão da ilha. Passaram meses debaixo de terra, em
búnqueres gelados, enquanto Farley e o Coronel trocavam
comunicações com o Comando e se preparavam para o
próximo alvo. Corvium. A voz de Cal vacila um bocadinho ao
descrever o cerco. Ele próprio liderou o ataque, tomando as
muralhas numa incursão de surpresa e depois a cidade-
fortaleza, bloco a bloco. É possível que conhecesse os
soldados que combatia. É possível que tivesse matado amigos.
Não remexo em qualquer das feridas. No fim completaram o
cerco, removendo os últimos oficiais Prateados, oferecendo-
lhes rendição ou execução.
— A maior parte estão agora feitos reféns, outros foram
devolvidos às famílias a troco de um resgate. E alguns
escolheram a morte — murmura ele, a voz tremendo-lhe.
Olha-me de relance, por um momento só, os olhos ocultos
atrás das lentes de vidro fosco.
— Lamento — murmuro, e falo a sério. Não só por Cal
estar a sofrer, mas porque há muito aprendi quão cinzento é
este mundo. — O Julian estará na inquirição?
Cal suspira, grato pela mudança de assunto. — Não sei. Esta
manhã disse que os manda-chuvas de Montfort têm sido muito
obsequiosos no que lhe toca… dando-lhe acesso aos arquivos
da base, a um laboratório, sempre que quiser continuar os seus
estudos dos sanguenovos.
Não posso pensar em melhor recompensa para Julian Jacos.
Tempo e livros.
— Mas pode ser que não estejam muito interessados em
deixar um singer28 aproximar-se do seu dirigente — acrescenta
Cal, pensativo.
— É compreensível — replico. Embora as nossas aptidões
sejam mais destrutivas, a de Julian para manipular é
igualmente mortal. — Então, há quanto tempo está Montfort
metido nisto?
— Também não sei — diz ele, obviamente irritado. — Mas
meteram-se a valer desde Corvium. E agora, com a aliança de
Maven com as Lakelands? Ele também se está a unir, na
rebelião — explica. — Montfort e a Guarda fizeram o mesmo.
Em vez de armas e comida, Montfort começou a enviar
soldados. Vermelhos, sanguenovos. Eles já tinham um plano
para te porem fora de Archeon. Uma manobra minuciosa. Nós
de Trial, Montfort do Piedmonte. São bons organizadores, isso
lhes concedo. Precisavam apenas do momento certo.
Troço. — Escolheram um momento do diabo. — Tiroteio e
derramamento de sangue toldam-me os pensamentos. — Isso
tudo por mim. Parece estúpido.
A mão de Cal aperta mais a minha. Foi criado para ser o
perfeito soldado Prateado. Lembro-me dos seus manuais, dos
seus livros de tática militar. Vitória a todo o custo, diziam. E
ele acreditava nisso. Tal como eu pensava que nada no mundo
me poderia fazer voltar para Maven.
— Ou eles tinham outro alvo em Archeon, ou Montfort
quer-te mesmo a sério — resmunga Cal baixinho quando o
transporte abranda.
Paramos diante de outro edifício de tijolo, a fachada
decorada com colunas brancas e um longo pórtico a todo o
comprimento. Penso de novo em Fort Patriot, nos seus portões
decorados com bronze pressagiador. Os Prateados gostam de
coisas belas, e esta não é exceção. Trepadeiras amarinham
pelas colunas acima, floridas com cachos púrpura de glicínias
e fragrante madressilva. Soldados de uniforme caminham sob
as plantas, mantendo-se à sombra. Avisto membros da Guarda
Escarlate com as suas roupas desirmanadas e lenços
vermelhos, Lakelanders de azul e um emaranhado do verde
oficial de Montfort. Sinto um aperto no estômago.
O Coronel marcha ao nosso encontro, felizmente sozinho.
Fala antes mesmo que eu logre descer do transporte. —
Reunir-se-á comigo, dois generais de Montfort e um oficial do
Comando.
Tanto Cal como eu ficamos chocados, de olhos arregalados.
— Comando? — repito apenas.
— Sim. — O olho bom do Coronel lampeja. Roda nos
calcanhares, forçando-nos a acompanhá-lo. — Digamos
apenas que a engrenagem está em movimento.
Reviro os olhos, já exasperada. — Que tal simplesmente
explicar o que quer dizer?
— Provavelmente não sabe — replica uma voz familiar.
Farley está reclinada à sombra de uma das colunas, os
braços cruzados bem acima do peito. Olho embasbacada, de
boca caída. Pois ela está monstruosamente, hilariantemente,
grávida. O seu ventre retesa-se contra um uniforme alterado de
túnica solta a atar em frente e calças largas. Não me admiraria
se desse à luz nos próximos trinta segundos.
— Ah! — é tudo o que me ocorre dizer.
Ela parece quase divertida. — Faz as contas, Barrow.
Nove meses. Shade. A reação no jato de carga quando lhe
contei o que Jon dissera. A resposta à tua pergunta é sim.
Eu não percebi o que ele queria dizer, mas ela percebeu.
Tinha as suas suspeitas. E soube que estava grávida do bebé do
meu irmão menos de uma hora depois de ele ser morto. Cada
revelação é um pontapé nas entranhas. Alegria e pesar em
partes iguais. Shade tem um filho — filho que jamais chegará
a ver.
— Não posso crer que ninguém se lembrasse de te contar —
continua Farley, lançando olhares significativos a Cal, que
mete as mãos pelos pés, constrangido. — Tempo não faltou.
Tomada de choque, tudo o que posso fazer é concordar. Não
só Cal como a minha mãe, o resto da família. — Toda a gente
sabia disto?
— Bem, agora de nada serve discutir. — Farley endireita-se
a custo, empurrando a coluna. Mesmo nas Stilts, a maior parte
das mulheres recolhem à cama nesta fase da gravidez, mas não
ela. Mantém uma arma no quadril, presa no coldre bem à vista.
Uma Farley grávida é ainda assim uma Farley perigosa.
Provavelmente mais ainda. — Tenho a sensação de que queres
ver isto acabado o mais depressa possível.
Quando vira costas, conduzindo-nos para dentro, dou a Cal
uma pancada nas costelas. Duas para reforçar.
Ele cerra os dentes, soprando de dor. — Desculpa —
resmunga.
O interior do que deve ser o edifício de comando da base
mais parece uma mansão. Uma escadaria sobe em espiral de
cada lado do átrio, conduzindo a uma galeria em cima ladeada
de janelas. Uma sanca esculpida em torno do teto, pintado à
imagem das glicínias lá fora. O chão é de tacos de madeira,
alternando entre mogno, cerejeira e carvalho em desenhos
intrincados. Mas, tal como nas casas geminadas, tudo o que
não possa ser aparafusado desapareceu. Há espaços brancos ao
longo das paredes, enquanto vãos destinados a esculturas ou
bustos contêm guardas em vez disso. Guardas de Montfort.
De perto, os seus uniformes são de melhor corte do que tudo
o que a Guarda Escarlate ou os Lakelanders do Coronel
vestem. Mais parecidos com os uniformes dos oficiais
Prateados. São produzidos em massa — robustos —, com
distintivos, insígnias e o triângulo branco brasonado nos
braços.
Cal observa tão atentamente como eu. Dá-me uma
cotovelada, assentindo quando subimos a escada. Na galeria,
não menos que seis oficiais de Montfort veem-nos passar. Têm
cabelo grisalho, ar desgastado da guerra, com medalhas
suficientes para afundar um navio. Generais.
— Há câmaras também — sussurro para ele. Mentalmente
assinalo-as, anotando cada assinatura elétrica enquanto
atravessamos o átrio de entrada.
Apesar das paredes nuas e escassa decoração, os estreitos
corredores arrepiam-me a pele. Não paro de dizer para mim
que a pessoa ao meu lado não é nenhum dos Arven. Que isto
não é o Fogo Branco. A minha aptidão disso é prova. Ninguém
me mantém prisioneira. Tomara conseguir baixar a guarda. Por
esta altura já é uma segunda natureza.
A sala de reunião faz-me lembrar a câmara do conselho de
Maven. Tem uma longa mesa polida e cadeiras finamente
estofadas, e é iluminada por uma fiada de janelas sobranceiras
a outro jardim. Mais uma vez as paredes estão nuas, à exceção
de um selo diretamente pintado na parede. Listas amarelas e
brancas, com uma estrela púrpura no centro. Piedmonte.
Nós somos os primeiros a chegar. Conto que o Coronel se
sente à cabeceira da mesa, mas não o faz, elegendo uma
cadeira à sua direita em vez disso. Nós instalamo-nos a seguir
a ele, de frente para o lado vazio que deixamos livre para os
oficiais de Montfort e do Comando.
O Coronel olha, perplexo. Vê Farley sentar-se, o seu olho
bom de aço frio. — Capitã, não tem licença para isto.
Cal e eu trocamos olhares de relance, de sobrancelhas
erguidas. Farley e o Coronel têm fricções frequentes. Pelo
menos isso não mudou.
— Oh, não foi informado? — replica ela, sacando uma
folha de papel dobrada do bolso. — Coisa lamentável. — Com
um jeito de mão faz deslizar o papel para o Coronel.
Ele abre-o avidamente, os olhos varrendo uma página de
letras grosseiramente datilografadas. Não é longa, mas ele fita-
a por um momento, não acreditando no que lê. Finalmente
alisa a nota contra a mesa. — Isto não pode estar certo.
— O Comando quer um representante à mesa. — Farley
arreganha um sorriso. Espalma as mãos bem abertas. — Aqui
estou eu.
— Então o Comando cometeu um erro.
— Eu sou agora o Comando, Coronel. Não há erro nenhum.
O Comando governa a Guarda Escarlate, o centro de uma
roda muito secreta. Eu apenas ouvi sussurros da sua existência,
mas os bastantes para saber que controlam toda uma vasta e
complicada operação. Se fizeram de Farley um deles,
significará isso que a Guarda Escarlate está verdadeiramente a
sair das sombras — ou será apenas Farley que querem?
— Diana, não podes…
Ela eriça-se, afogueando-se de vermelho. — Porque estou
grávida? Asseguro-lhe que posso haver-me com duas tarefas
ao mesmo tempo. — Não fosse a inquietante semelhança entre
ambos, tanto em aparência como atitude, seria fácil esquecer
que Farley é filha do Coronel. — Ainda quer insistir mais no
assunto, Willis?
Ele cerra um punho sobre a nota, os nós dos dedos pondo-se
brancos como osso. Mas abana a cabeça.
— Bom. E agora sou General. Aja em consonância.
Uma réplica morre na garganta do Coronel, dando-lhe um ar
estrangulado. Com um malicioso sorriso de satisfação, Farley
recolhe a nota e guarda-a. Dá por Cal a olhar, simplesmente
tão confuso como eu.
— Agora não és o único oficial de alta patente na sala,
Calore.
— Suponho que não. Parabéns — acrescenta, oferecendo
um sorriso contido.
Isso apanha-a desprevenida. Após a franca hostilidade do
seu pai, não contava com o apoio de ninguém, muito menos do
relutante príncipe Prateado.
Os generais de Montfort entram por outra porta,
resplandecentes nos seus uniformes verde-escuros. Uma delas
vi eu na galeria. Tem cabelo branco à garçonne, olhos
castanhos aguados e longas pestanas adejantes. Pisca
rapidamente os olhos. A outra, uma mulher de cabelo escuro,
pele morena, parece ter quarenta anos e constituição de boi.
Inclina a cabeça para mim, como que cumprimentando uma
amiga.
— Eu conheço-a — digo, tentando situá-la. — Como a
conheço eu?
Ela não responde, virando a cabeça sobre o ombro à espera
de mais uma pessoa, um homem de cabelo grisalho vestido à
paisana. Mas eu mal dou por ele, distraída pelo seu
companheiro. Mesmo sem as cores da sua casa, trajando
simples cinzentos em vez do usual dourado desbotado, Julian
dificilmente passa despercebido. Sinto uma explosão de calor
à visão do meu antigo professor. Julian inclina a cabeça,
brindando-me com um pequeno sorriso de saudação. Parece
melhor do que alguma vez o vi, mesmo quando o conheci no
palácio de verão. Então estava desgastado, consumido por uma
corte de inimigos, assombrado por uma irmã morta, uma
destruída Sara Skonos, e pela sua própria dúvida. Embora o
seu cabelo esteja agora mais grisalho que castanho, as rugas
mais vincadas, parece vibrante, vivo, desoprimido. Inteiro. A
Guarda Escarlate deu-lhe propósito. E Sara também, aposto.
A sua presença apazigua Cal ainda mais que eu. Relaxa um
bocadinho ao meu lado, dirigindo ao tio um ligeiríssimo aceno
de cabeça. Ambos vemos o que isto é, que tipo de mensagem
Montfort está a tentar passar. Eles não odeiam os Prateados —
e não os temem.
O outro homem fecha a porta atrás de si enquanto Julian se
senta, instalando-se firmemente do nosso lado da mesa. Muito
embora tenha um metro e oitenta e tal de altura, parece
pequeno sem uniforme. Em vez disso veste traje civil. Uma
simples camisa, calças, sapatos. Arma alguma que me seja
dado ver. Tem sangue vermelho, isso é certo, a julgar pela
subtonalidade rósea da sua pele cor de areia. Sanguenovo ou
Vermelho, não sei. Tudo nele é decididamente neutro,
agradavelmente mediano, e sem pretensões. Parece uma
página em branco, por natureza ou desígnio. Nada mais há a
indicar quem ou o que poderá ele ser.
Mas Farley sabe. Põe-se de pé e ele faz-lhe sinal para que se
sente.
— Não há necessidade disso, General — diz. De certo
modo faz-me lembrar Julian. Têm os mesmos olhos selvagens,
a única coisa digna de nota nele. Os seus são angulosos,
dardejando de um lado para o outro, tudo registando para
observação e entendimento. — É um prazer finalmente
conhecer-vos a todos — acrescenta, assentindo para cada um
de nós à vez. — Coronel, Menina Barrow, Vossa Alteza.
Debaixo da mesa, os dedos de Cal contraem-se contra a
perna. Ninguém lhe chama já isso. Pelo menos pessoas que
falem a sério.
— E quem é o senhor, exatamente? — pergunta o Coronel.
— Claro — replica o homem. — Lamento não ter podido
vir mais cedo. O meu nome é Dane Davidson, senhor. Sirvo
como presidente da República Livre de Montfort.
Os dedos de Cal contraem-se de novo.
— Obrigado a todos por virem. Há já algum tempo que
queria ter esta reunião — continua Davidson — e julgo que,
juntos, poderemos conseguir coisas magníficas.
Este homem é o dirigente do país inteiro. Foi ele que
perguntou por mim, que quis que me juntasse a ele. Terá feito
isto tudo para levar a sua avante? Tal como o rosto da sua
general, o seu nome faz soar uma campainha distante.
— Esta é a General Torkins. — Davidson indica uma e
outra. — E a General Salida.
Salida. Não conheço o seu nome. Mas agora estou certa de
que já a vi antes.
A general de constituição robusta repara na minha confusão.
— Eu fiz algum reconhecimento, Menina Barrow. Apresentei-
me ao Rei Maven quando ele estava a entrevistar Ardente…
quero dizer sanguenovos. Porventura lembrar-se-á. — Para o
demonstrar varre a mão sobre a mesa. Não, não na. Através.
Como se de nada fosse feita — a mesa ou ela própria.
A recordação ganha bruscamente nitidez. Ela exibiu as suas
aptidões e foi aceite à «proteção» de Maven, juntamente com
muitos outros sanguenovos. Um deles, no seu medo, expôs a
Babá diante da corte inteira.
Fito-a. — Estava lá no dia em que a Babá… a sanguenovo
capaz de transformar o rosto… morreu.
Salida parece verdadeiramente pesarosa. Baixa a cabeça. —
Se eu tivesse sabido, se tivesse podido fazer alguma coisa, tê-
lo-ia feito verdadeiramente. Mas Montfort e a Guarda
Escarlate então não comunicavam abertamente. Nós não
conhecíamos todas as vossas operações e eles não conheciam
as nossas.
— Isso acabou. — Davidson permanece de pé, os punhos
apoiados na mesa. — A Guarda Escarlate tem necessidade de
secretismo, sim, mas receio que doravante isso faça mais mal
que bem. Demasiadas partes em movimento para não se
intrometerem no caminho umas das outras.
Farley mexe-se no assento. Ou tem vontade de discordar ou
a cadeira é desconfortável. Mas sustém a língua, deixando
Davidson prosseguir.
— Pelo que, no interesse da transparência, achei melhor que
a Menina Barrow detalhasse o seu cativeiro, o mais que
pudesse, para todas as partes. E em seguida eu responderei a
todas e quaisquer questões que possam ter a meu respeito, do
meu país, e do caminho que temos pela frente.
Na História de Julian havia registos de governantes que
eram eleitos, não nascidos. Granjeavam as suas coroas com
uma série de atributos — alguma força, alguma inteligência,
algumas promessas vazias e intimidação. Davidson governa a
chamada República Livre e o seu povo escolheu-o para a
liderar. Com base em quê não sei dizer ainda. Tem uma
maneira firme de falar, uma convicção natural. E é obviamente
muito inteligente. Para não mencionar que é o tipo de homem
que se torna mais atrativo com o passar dos anos. Vejo
facilmente porque quiseram as pessoas que ele governasse.
— Menina Barrow, assim que estiver preparada.
Para minha surpresa, a primeira mão a segurar a minha não
é de Cal, mas de Farley. Dá-me um apertão tranquilizador.
Começo pelo princípio. O único lugar por onde posso
pensar começar.
A voz falta-me quando pormenorizo como fui forçada a
lembrar-me de Shade. Farley baixa os olhos, a sua dor tão
profunda como a minha. Eu prossigo firmemente, para a
crescente obsessão de Maven, o menino-rei que retorcia
mentiras em armas, usando o meu rosto e as suas palavras para
virar tantos sanguenovos quanto possível contra a Guarda
Escarlate. Tudo isto enquanto as suas arestas esfiapadas se
tornavam cada vez mais aparentes.
— Ele diz que ela deixou buracos — conto-lhes. — A
rainha. Jogava com a sua cabeça, removendo pedaços,
colocando pedaços, desconjuntando-o. Ele sabe que está
errado, mas crê estar num caminho e dele não se arredará.
Uma corrente de calor alastra. A meu lado, Cal mantém o
rosto impávido, os olhos coruscantes sobre a mesa. Avanço
cautelosamente.
A mãe dele tirou-lhe o seu amor por ti, Cal. Ele amava-te.
Ele sabe que amava. Simplesmente já lá não está, nem nunca
mais estará. Mas essas palavras não são para Davidson ou o
Coronel, ou mesmo Farley, ouvirem.
Os de Montfort parecem sumamente interessados na visita
do Piedmonte. Empertigam-se à menção de Daraeus e
Alexandret, e eu narro-lhes a visita passo a passo. As suas
perguntas, as suas maneiras, até o género de roupa que
usavam. Quando menciono Michael e Charlotta, o príncipe e a
princesa desaparecidos, Davidson franze os lábios.
À medida que falo, despejando mais e mais da minha
provação, sou tomada por um torpor. Desapego-me das
palavras. A minha voz torna-se monocórdica. A rebelião das
casas. A fuga de Jon. A quase morte de Maven. A visão de
sangue Prateado jorrando-lhe do pescoço. Outro
interrogatório, meu e da mulher Haven. Essa foi a primeira vez
que vi Maven verdadeiramente abalado, quando a irmã de
Elane prestou a sua fidelidade a um rei diferente. A Cal.
Resultou no exílio de muitos membros da corte, possíveis
aliados.
— Eu tentei separá-lo da Casa Samos. Sabia que eles eram
o mais forte aliado que lhes restava, pelo que joguei com a sua
fraqueza por mim. Se ele se casasse com Evangeline, disse-lhe
eu, ela matar-me-ia. — As peças encaixam-se no lugar à
medida que as verbalizo. Ruborizo-me à implicação de que
sou eu a razão de tão mortal aliança. — Julgo que isso o
poderá ter convencido a olhar para as Lakelands em vista de
uma noiva diferente…
Julian interrompe-me. — Volo Samos já estava à procura de
uma desculpa para se desligar de Maven. O fim do noivado foi
apenas a última gota. E parto do princípio de que as
negociações com as Lakelands já se desenrolavam há muito
mais tempo do que pensa. — Esboça um pálido e malicioso
sorriso. Mesmo que ele esteja a mentir, faz-me sentir um
pouco melhor.
Percorro as minhas recordações da viagem de coroação, um
glorioso desfile para ocultar as suas negociações com os
Lakelanders. A revogação de Maven das Medidas, o fim da
Guerra das Lakelands, o seu noivado com Iris. Cuidadosas
manobras para conquistar a boa vontade do seu reino, para ter
o crédito de acabar com uma guerra sem pôr fim à sua
destruição.
— Os nobres Prateados voltaram para a corte antes do
casamento e Maven manteve-me sozinha a maior parte do
tempo. Então teve lugar a cerimónia matrimonial. A aliança
Lakelander foi selada. Seguiu-se o ataque… o vosso ataque.
Maven e Iris fugiram para o seu comboio de fuga, mas fomos
separados.
Foi apenas ontem. Ainda assim, sinto-me como se estivesse
a recordar um sonho. A batalha está envolta em adrenalina,
reduzindo as minhas memórias a cor, dor e medo. — As
minhas guardas arrastaram-me de volta para o palácio.
Faço uma pausa, hesitante. Mesmo agora, não posso crer no
que Evangeline fez.
— Mare? — incita Cal, a sua voz e o roçar da sua mão
gentis. Ele está simplesmente tão curioso como os restantes.
É mais fácil encará-lo do que aos outros. Só ele entende
quão estranha foi a minha fuga. — Evangeline Samos barrou-
nos o caminho. Matou os guardas Arven e… e libertou-me.
Soltou-me. Ainda não sei porquê.
Um silêncio desce sobre a mesa. A minha maior rival, uma
rapariga que ameaçou matar-me, uma pessoa com aço frio no
lugar do coração, é a razão de eu aqui estar. Julian não tenta
ocultar a sua surpresa, as suas sobrancelhas finas quase
desaparecendo na linha do cabelo. Mas Cal não parece
surpreendido de todo. Em vez disso, inspira fundo, o seu peito
elevando-se com o movimento. Poderá ser… orgulho?
Não tenho energia para adivinhar. Ou para detalhar a forma
como Samson Merandus morreu, manipulando-me e a Cal um
contra o outro até o queimarmos vivo.
— Sabem o resto — termino, exausta. Sinto-me como se
estivesse a falar há décadas.
O Presidente Davidson levanta-se, distendendo-se. Conto
com mais perguntas, mas em vez disso abre um armário e
enche-me um copo de água. Não lhe toco. Estou num lugar
desconhecido governado por gente desconhecida. Pouca
confiança me resta, e não a desperdiçarei em alguém que
acabei de conhecer.
— É a nossa vez? — pergunta Cal. Inclina-se para diante,
desejoso de começar o seu próprio interrogatório.
Davidson inclina a cabeça, os lábios repuxados numa linha
plana e neutra. — Claro. Calculo que se interroguem quanto
ao que fazemos aqui no Piedmonte e ainda por cima numa
base da frota real?
Como ninguém o detém, Davidson lança-se em frente.
— Como sabem, a Guarda Escarlate teve início nas
Lakelands e infliltrou-se em Norta este ano que passou. O
Coronel Farley e a General Farley foram partes integrantes em
ambas as empresas, e agradeço-lhes o seu duro trabalho. —
Assente para um e outra. — Às ordens do vosso Comando,
outros operacionais levaram a cabo uma campanha semelhante
no Piedmonte. Infiltrar, controlar, derrubar. Foi aqui, de facto,
que agentes de Montfort se encontraram pela primeira vez com
agentes da Guarda Escarlate, o que, até ao ano passado, nos
parecia ficção. Mas a Guarda Escarlate era muito real e
partilhávamos certamente um objetivo. Tal como os vossos
compatriotas, buscamos derrubar os opressores governantes
Prateados e expandir a nossa república democrática.
— Ao que parece fizeram-no já. — Farley indica a sala.
Cal semicerra os olhos. — Como?
— Concentrámos os nossos esforços no Piedmonte devido à
sua precária estrutura. Príncipes e princesas governam os seus
territórios em tremida paz sob um alto príncipe eleito das suas
fileiras. Alguns controlam largas extensões de terra, outros
uma cidade ou simplesmente uns quantos quilómetros de
herdades. O poder é fluido, sempre em mutação. Atualmente,
o Príncipe Bracken de Lowcountry29 é o alto príncipe, o mais
forte Prateado do Piedmonte, com o maior território e os
maiores recursos. — Com um varrer de mão, Davidson passa
os dedos pelo selo na parede. Delineia a estrela púrpura. —
Esta é a maior das três fortalezas militares em sua posse. Está
agora cedida para nosso uso pessoal.
Cal inspira de um trago. — Estão a trabalhar com Bracken?
— Ele está a trabalhar para nós — replica Davidson
orgulhosamente.
A minha mente entra em parafuso. Um membro da realeza
Prateada a operar em nome de um país que procura tirar-lhe
tudo? Por um momento soa grotesco. Então lembro-me
exatamente de quem está sentado ao meu lado.
— Os príncipes visitaram Maven em nome de Bracken.
Interrogaram-me por ele. — Foco os olhos no presidente. —
Disse-lhes que o fizessem?
A General Torkins mexe-se no lugar e aclara a garganta. —
Daraeus e Alexandret são aliados juramentados de Bracken.
Não tínhamos conhecimento do seu contacto com o Rei
Maven até um deles acabar morto no meio de uma tentativa de
assassínio.
— Graças a si sabemos porquê — acrescenta Salida.
— E o sobrevivente? Daraeus. Ele está a trabalhar contra
vós…
Davidson pestaneja devagar, os seus olhos inexpressivos e
indecifráveis. — Ele estava a trabalhar contra nós.
— Oh!… — murmuro, pensando em todas as formas como
o príncipe do Piedmonte poderia ter sido morto.
— E os outros? — insiste o Coronel. — Michael e
Charlotta. O príncipe e a princesa desaparecidos.
— Filhos de Bracken — diz Julian, a sua voz tensa.
Sinto-me inundada por uma sensação de agonia. —
Tomaram os seus filhos? Para fazê-lo cooperar?
— Um rapaz e uma rapariga pelo controlo do Piedmonte
costeiro? Por todos estes recursos? — zomba Torkins, o seu
cabelo branco ondulando ao abanar a cabeça. — Uma troca
fácil. Pense nas vidas que perderíamos a lutar por cada
quilómetro. Em vez disso, Montfort e a Guarda Escarlate
progridem realmente.
O meu coração aperta-se ao pensamento de duas crianças,
Prateadas ou não, feitas cativas para fazer o seu pai ajoelhar.
Davidson lê o sentimento no meu rosto.
— Estão a ser bem tratados. Com tudo a que têm direito.
Acima das nossas cabeças, as luzes tremulam como o adejar
de asas de mariposa. — Uma cela não deixa de ser uma cela,
por mais disfarçada que seja — desdenho eu.
Ele não se retrai. — E uma guerra é uma guerra, Mare
Barrow. Por melhores que possam ser as suas intenções.
Abano a cabeça. — Bem, que pena. Salvar todos esses
soldados que aqui estão, mas desperdiçá-los a resgatar uma
pessoa. Essa foi também uma troca fácil? As vidas deles pela
minha?
— General Salida, qual foi o último cômputo? — pergunta
o presidente.
Ela assente, recitando de memória. — Dos cento e dois
Ardentes recrutados para o exército de Norta nos últimos
meses, sessenta estavam presentes como guardas especiais no
casamento. Esses todos foram resgatados e inquiridos a noite
passada.
— Devido em grande parte aos esforços da General Salida,
que estava incorporada com eles. — Davidson dá-lhe uma
palmada no ombro carnudo. — Incluindo-a a si, salvámos
sessenta e um Ardentes do seu rei. A todos será dada comida,
abrigo e uma opção de restabelecimento ou serviço. Além
disso, fomos capazes de assaltar uma grande quantia do
Tesouro de Norta. As guerras não são baratas. O pagamento de
resgates de prisioneiros fracos ou sem valor não nos leva
longe. — Faz uma pausa. — Isso responde à sua questão?
Alívio mescla-se de uma corrente subterrânea de pavor que
não pareço jamais conseguir afugentar. O ataque a Archeon
não foi unicamente por mim. Não fui libertada de um ditador
apenas para ser tomada por outro. Nenhum de nós sabe o que
Davidson porventura fará, mas ele não é Maven. O seu sangue
é vermelho.
— Só mais uma pergunta para si, receio — prossegue
Davidson. — Menina Barrow, diria que o rei de Norta está
apaixonado por si?
No Fogo Branco estilhacei demasiados copos de água para
serem contados. Sinto a ânsia de fazê-lo de novo. — Não sei.
— Uma mentira. Uma mentira fácil.
Davidson não é assim tão fácil de dissuadir. Os seus olhos
selvagens tremulam, divertidos. Refletindo a luz parecem
dourados, depois castanhos e de novo dourados. Mudando
como o sol num campo de trigo ondulante. — Pode dar um
palpite abalizado.
Uma raiva escaldante lambe-me por dentro como uma
chama.
— O que Maven considera amor não é amor de todo. —
Puxo para o lado o colarinho da camisa, revelando a minha
marca. O M é claro como o dia. Inúmeros olhos roçam-me a
pele, abarcando as arestas elevadas de perlado tecido
cicatricial e carne queimada. O olhar de Davidson delineia as
linhas de fogo e eu sinto o toque de Maven nos seus olhos.
— Chega — sopro, puxando a camisa de volta para o lugar.
O presidente assente. — Muito bem. Pedir-lhe-ei que…
— Não, quero dizer que me chega disto. Preciso de…
tempo. — Inspirando tremulamente, empurro a mesa para me
levantar. A minha cadeira arrasta no chão, ecoando no súbito
silêncio. Ninguém me detém. Observam apenas, os olhos
cheios de piedade. Para variar, congratulo-me por isso. A
piedade deles permite-me sair.
Outra cadeira se segue à minha. Não preciso de olhar para
trás para saber que é Cal.
Tal como no jato aéreo, sinto o mundo começar a fechar e
sufocar, expandir e subjugar. Os corredores, tão semelhantes
ao Fogo Branco, estendem-se numa linha interminável. As
luzes pulsam acima das nossas cabeças. Entrego-me à
sensação, na esperança de que me ancore. Estás a salvo; estás
a salvo; acabou. Os meus pensamentos entram numa espiral
descontrolada e os meus pés movem-se de sua própria volição.
Escadas abaixo, através de outra porta, lá para fora, para um
jardim sufocado de fragrantes flores. O céu límpido lá em
cima é um tormento. Quero que chova. Quero ser lavada.
As mãos de Cal vêm ao encontro da minha nuca. As
cicatrizes doem sob o seu toque. A sua calidez jorra para os
meus músculos, tentando apaziguar e eliminar a dor. Primo as
bases das palmas das mãos contra os olhos. Ajuda um
bocadinho. Não consigo ver nada na escuridão, incluindo
Maven, o seu palácio ou os limites daquele quarto horrível.
Estás a salvo; estás a salvo; acabou.
Seria fácil ficar no escuro, afogar-me. Lentamente, baixo as
mãos e forço-me a olhar à luz do sol. Requer mais esforço do
que julguei possível. Recuso-me a deixar que Maven me
mantenha prisioneira um segundo mais do que já o fez.
Recuso-me a viver desta forma.
— Posso levar-te a casa? — pergunta Cal, baixinho. Os seus
polegares descrevem círculos constantes entre o meu pescoço
e os ombros. — Podemos andar, dar-te algum tempo.
— Não lhe darei mais do meu tempo. — Zangada, dou
meia-volta e levanto o queixo, forçando-me a olhar Cal nos
olhos. Ele não se move, paciente e sem pretensões. Todo ele
reação, ajustando-se às minhas emoções, deixando-me marcar
o passo. Depois de tanto tempo à mercê de outros, é bom saber
que alguém me permitirá fazer as minhas próprias escolhas. —
Ainda não quero voltar.
— Tudo bem.
— Não quero ficar aqui.
— Nem eu.
— Não quero falar de Maven, nem de política, nem de
guerra.
A minha voz ecoa nas folhas. Soo como uma criança, mas
Cal limita-se a assentir. Por uma vez parece uma criança
também, com um corte de cabelo incerto e roupa simples. Sem
uniforme, sem parafernália militar. Apenas uma camisa fina,
calças, botas e as suas pulseiras. Numa outra vida, porventura
parecesse normal. Fito-o, esperando que as feições se
transformem nas de Maven. Não transformam. Apercebo-me
de que também não é exatamente Cal. Ele aflige-se mais do
que julguei possível. Os últimos seis meses arruinaram-no
também.
— Estás bem? — pergunto-lhe.
Os seus ombros descaem, ínfima libertação de tensão de
aço. Pestaneja. Cal não é pessoa para ser apanhada
desprevenida. Interrogo-me se alguém se terá dignado fazer-
lhe esta pergunta desde o dia em que me levaram.
Após uma longa pausa, ele inspira a custo. — Hei de estar.
Espero.
— Também eu.
Este jardim foi amanhado por greenwardens em tempos, os
seus muitos canteiros de flores espiralando em cerrados tufos
de intrincados desenhos. A natureza reina agora, diferentes
flores e cores derramando-se umas sobre as outras.
Mesclando-se, decompondo-se, morrendo, florescendo à sua
vontade.
— Lembrem-me para vos incomodar aos dois por uma
amostra de sangue num momento mais oportuno.
Rio-me sonoramente ao desajeitado pedido de Julian. Ele
deixa-se ficar na orla do jardim, afável intruso. Não que eu me
importe. Abro-me num sorriso e atravesso rapidamente o
jardim, abraçando-o. Ele retribui o gesto, feliz.
— Isso soaria estranho vindo de outra pessoa qualquer —
digo-lhe afastando-me. Cal solta uma risadinha de
concordância ao meu lado. — Fique certo, Julian. Sinta-se à
vontade. Além disso, sou sua devedora.
Julian inclina a cabeça de confusão. — Oh?
— Encontrei uns livros seus no Fogo Branco. — Não minto,
mas sou cuidadosa com as palavras que profiro. De nada serve
magoar Cal mais do que já foi magoado. Ele não precisa saber
que foi Maven que me deu os livros. Não lhe darei mais falsas
esperanças pelo irmão. — Ajudou a passar… o tempo.
Conquanto a menção do meu aprisionamento deixe Cal
mais sóbrio, Julian não nos deixa tardar na dor. — Então
entende o que estou a tentar fazer — diz rapidamente. O seu
sorriso não chega aos olhos que se ensombram. — Não
entende, Mare?
— Não os eleitos de um deus, mas os amaldiçoados de um
deus — murmuro, recordando as palavras que ele rabiscou
num livro esquecido. — Vai apurar de onde viemos e porquê.
Julian cruza os braços. — Vou certamente tentar.
28
Cantor. (N. da T.)
29
Província Inferior. (N. da T.)
CAPÍTULO VINTE E DOIS

Mare

C ada manhã começa da mesma maneira. Não consigo ficar


no quarto; os pássaros acordam-me sempre cedo. É bom
que o façam. Está demasiado calor para correr a uma hora
mais tardia. Mas a base do Piedmonte dá uma boa pista de
corrida. Está bem protegida, os seus limites guardados por
soldados de Montfort e do Piedmonte. Os últimos são todos
Vermelhos, claro está. Davidson sabe que Bracken, o príncipe-
fantoche, está provavelmente a maquinar silenciosamente e
não deixa nenhuns dos seus Prateados passar dos portões. Com
efeito, não tenho visto quaisquer Prateados de todo, à exceção
daqueles que já conheço. Todos os possuidores de aptidões são
sanguenovos ou Ardentes, dependendo de com quem
estivermos a falar. Se é que Davidson tem Prateados com ele,
servindo igualmente na sua república livre como ele diz, não
vi nenhuns.
Aperto bem os atacadores. Uma neblina enrosca-se na rua lá
fora, pairando baixa no desfiladeiro de tijolo. Destrancando a
porta da frente, abro-me num sorriso quando sinto o ar fresco
na pele. Cheira a chuva e trovoada.
Tal como esperado, Cal está sentado no degrau de baixo, as
pernas estendidas sobre o passeio estreito. Ainda assim, o
coração salta-me no peito à sua vista. Ele boceja sonoramente
à laia de saudação, quase deslocando o maxilar.
— Vá lá — censuro-o —, isto é tarde para um soldado.
— O que não significa que eu não prefira dormir até tarde
quando posso. — Levanta-se com irritação exagerada, quase
deitando a língua de fora.
— És livre de voltar para aquele quartinho minúsculo em
que insistes ficar na caserna. Sabes, terias um pouco mais de
tempo se te mudasses para a Rua dos Oficiais… ou deixasses
simplesmente de correr comigo. — Encolho os ombros com
um sorriso manhoso.
Imitando o meu sorriso, ele puxa-me pela ponta da
camisola, atraindo-me para junto dele. — Não insultes o meu
quartinho — resmunga baixinho, antes de me plantar um beijo
nos lábios. Depois no maxilar. Depois no pescoço. Cada toque
desabrochando uma explosão de fogo sob a minha pele.
Relutantemente, afasto-lhe o rosto. — Há uma real
possibilidade de que o meu pai dispare sobre ti da janela, se
continuares com isso aqui.
— Certo, certo. — Ele recupera rapidamente,
empalidecendo. Se eu não soubesse melhor, diria que Cal tem
de facto medo do meu pai. O pensamento é cómico. Um
príncipe Prateado, um general capaz de criar infernais
braseiros com um jeito de dedos, com medo de um Vermelho
velho e coxo. — Vamos fazer estiramentos.
Fazemos os exercícios, Cal mais meticulosamente que eu.
Ele sacode-me gentilmente, encontrando defeito em cada
movimento. — Não faças força. Não balances para trás e para
diante. Suavemente, devagar. — Mas eu estou ansiosa,
sequiosa de correr. Ele acaba por ceder. Com um assentir de
cabeça, deixa que comecemos.
A princípio vamos a passo suave. Quase danço na ponta dos
pés, esfuziante com os passos. Dão a sensação de liberdade. O
ar puro, os pássaros, a neblina roçando-nos com dedos
húmidos. A minha respiração regular e constante e a pulsação
constantemente mais acelerada. Da primeira vez que aqui
corremos tive de parar a chorar, demasiado feliz para deter as
lágrimas. Cal estabelece um bom ritmo, impedindo-me de
correr disparada até os meus pulmões cederem. O primeiro
quilómetro e meio passa bastante bem, levando-nos até ao
muro circundante da base. Meio de pedra, meio de rede
encimada por arame farpado, com uns quantos soldados
patrulhando o lado de lá. Homens de Montfort. Acenam para
cada um de nós, acostumados à nossa rota ao fim de duas
semanas. Outros soldados fazem jogging à distância, levando a
cabo os exercícios habituais, mas não nos juntamos a eles.
Exercitam-se em fileiras com sargentos aos berros. Não é para
mim. Cal já é suficientemente exigente. E, graças sejam dadas,
Davidson não me pressionou quanto à opção
«restabelecimento ou serviço». Com efeito, não tornei a vê-lo
desde a minha inquirição, muito embora ele agora viva na base
com todos nós.
Os três quilómetros seguintes são mais difíceis. Cal impõe
um passo mais forte. Está mais calor hoje, mesmo tão cedo,
com nuvens formando-se no céu. À medida que a neblina se
dissipa suo cada vez mais e o sal acumula-se nos meus lábios.
Com as pernas a bombear, limpo o rosto à ponta da camisola.
Cal também sente o calor. Ao meu lado, simplesmente despe a
camisola, enfiando-a na cintura das calças de treino justas. O
meu primeiro instinto é preveni-lo contra um escaldão. O
segundo é parar a olhar os músculos bem definidos do seu
abdómen nu. Em vez disso, foco-me no caminho à minha
frente, forçando mais um quilómetro. Mais um. Mais um. A
sua respiração junto a mim é subitamente uma grande
distração.
Contornamos o pequeno bosque que separa as casernas e a
Rua dos Oficiais do aeródromo, quando um trovão ribomba
algures. A uns quilómetros de distância, certamente. Cal
estende um braço ao ruído, fazendo-me abrandar. Estaca
encarando-me, ambas as mãos agarrando-me os ombros
enquanto se inclina à altura dos meus olhos. Olhos de bronze
perfuram os meus, à procura de alguma coisa. O trovão soa de
novo, mais perto.
— O que se passa? — pergunta, todo ele preocupação.
Leva-me uma mão ao pescoço para apaziguar as cicatrizes que
ardem rubras de esforço. — Acalma-te.
— Não sou eu. — Aponto a cabeça para as escuras nuvens
de trovoada com um sorriso. — É apenas o tempo. Às vezes,
quando está muito calor e humidade, trovoadas podem…
Ele ri-se. — Tudo bem, já percebi. Obrigado.
— Arruinar uma corrida perfeita — digo com um estalido
de língua, dando-lhe a mão. Ele ri-se retorcidamente, com um
sorriso tão rasgado que lhe enruga os olhos. À medida que a
trovoada se aproxima sinto o seu coração elétrico pulsar. A
minha pulsação ajusta-se à sua, mas afugento o sedutor
ronronar de relâmpagos. Não posso desencadear uma trovoada
com ele tão perto.
Não tenho controlo sobre a chuva, que cai numa repentina
cortina, fazendo-nos queixar. Fossem quais fossem os pedaços
da minha roupa que não estavam cobertos de suor,
rapidamente ficam encharcados. O frio súbito é um choque
para ambos, para Cal em particular.
A sua pele nua liberta vapor, envolvendo-lhe o tronco e os
braços numa fina camada de neblina pardacenta. As gotas de
chuva silvam quando estabelecem contacto, fervilhando.
Quando ele se acalma o ruído cessa, mas ele pulsa ainda de
calor. Sem pensar aninho-me contra ele, com a espinha
arrepiada.
— Devíamos voltar — murmura-me ele no cocuruto da
cabeça. Sinto a voz reverberar-lhe no peito, a palma da minha
mão espalmada no lugar onde o seu coração bate acelerado.
Ribomba sob o meu toque, em puro contraste com o seu rosto
calmo.
Algo me impede de concordar. Outra contração, bem lá
dentro. Num lado qualquer que não sei nomear.
— Devíamos? — sussurro, contando que a chuva abafe a
minha voz.
Os seus braços contraem-se à minha volta. Ouviu mais que
bem.
As árvores são novas, as suas folhas e ramos não
suficientemente frondosos para oferecer cobertura total do céu.
Mas a suficiente da estrada. A minha camisola voa primeiro,
aterrando na lama. Lanço a dele na lama também, para que
fiquemos quites. A chuva cai a bom cair em gotas gordas, cada
qual uma fria surpresa a descer-me pelo nariz ou espinha ou
braços à roda do seu pescoço. Umas mãos cálidas debatem-se
nas minhas costas, em deliciosa oposição à água. Os seus
dedos percorrem-me a coluna, pressionando cada vértebra. Eu
faço o mesmo, contando-lhe as costelas. Ele estremece
arrepiado, e não da chuva, à medida que as minhas unhas lhe
arranham o flanco. Cal responde com dentes. Roçam-me o
maxilar antes de encontrarem a orelha. Fecho os olhos por um
segundo, incapaz de qualquer coisa que não sentir. Cada
sensação é um fogo de artifício, um trovejante raio, uma
explosão.
Os trovões aproximam-se. Como que atraídos para nós.
Passo-lhe os dedos pelo cabelo, usando-o para o puxar mais
contra mim. Mais. Mais. Mais. Ele sabe a sal e fumo. Mais.
Parece que não consigo tê-lo suficientemente encostado. — Já
fizeste isto antes? — Deveria ter medo, mas só o frio me faz
tremer arrepiada.
Ele inclina a cabeça para trás e eu quase choramingo em
prostesto. — Não — sussurra, desviando os olhos. As pestanas
escuras escorrem chuva. O maxilar crispa-se, como que
envergonhado.
É tão de Cal, sentir-se envergonhado por uma coisa como
esta. Ele gosta de saber o fim de um caminho, a resposta a uma
pergunta antes de perguntar. Quase me rio.
Esta é uma espécie diferente de batalha. Não há treino. E em
vez de envergarmos armaduras, lançamos fora o resto das
nossas roupas.
Depois de seis meses sentada ao lado do seu irmão,
emprestando todo o meu ser a uma causa maléfica, não tenho
medo de dar o meu corpo a uma pessoa que amo. Mesmo na
lama. Relâmpagos lampejam no céu e atrás dos meus olhos.
Cada nervo faísca de vida. É necessária toda a minha
concentração para impedir que Cal sinta a extremidade errada
de tais coisas.
O seu peito infla-se sob as palmas das minhas mãos,
erguendo-se com desenfreado calor. A sua pele parece ainda
mais pálida contra a minha. Usando os dentes, ele abre as
pulseiras lança-flamas e atira-as para a vegetação rasteira.
— Pelas minhas cores, graças sejam dadas pela chuva —
murmura.
Eu sinto o oposto. Quero arder.
Recuso-me a voltar para casa coberta de lama e, dados os tão
inconvenientes aposentos de Cal, não me posso lavar na sua
caserna a menos que me apeteça partilhar os chuveiros com
uma dúzia de soldados. Ele tira-me folhas do cabelo enquanto
nos dirigimos para o hospital da base, um edifício atarracado
coberto de hera.
— Pareces um arbusto — diz ele, exibindo um sorriso quase
maníaco.
— É isso exatamente que deves dizer.
Cal quase desata às gargalhadas. — Como é que sabes?
— Eu… hã — esquivo-me, mergulhando entrada dentro.
O hospital está praticamente deserto a esta hora, contando
apenas alguns enfermeiros e médicos para supervisionar os
doentes. Os curadores tornam-nos quase irrelevantes,
necessários apenas para doenças prolongadas ou ferimentos
extremamente complicados. Percorremos sozinhos os
corredores de blocos de betão, sob ásperas luzes fluorescentes
e confortável silêncio. As faces ainda me ardem enquanto a
minha mente se guerreia. O instinto faz-me querer empurrar
Cal para o quarto mais próximo e trancar a porta atrás de nós.
O bom senso diz-me que não posso.
Pensei que fosse diferente. Pensei que me fosse sentir
diferente. O toque de Cal não apagou o de Maven. As minhas
memórias ainda lá estão, tão dolorosas como ontem. E, por
mais que tente, não me esqueci do abismo que sempre se
estenderá entre nós. Espécie alguma de amor pode apagar as
suas falhas, tal como nenhuma pode apagar as minhas.
Uma enfermeira com uma braçada de cobertores dobra a
esquina à nossa frente, os seus pés uma mancha esfumada no
chão de ladrilhos. Ela detém-se ao ver-nos, quase deixando
cair a roupa. — Oh! — exclama. — É rápida, Menina Barrow!
O meu rubor intensifica-se quando Cal rapidamente
transforma uma risada num ataque de tosse. — Desculpe?
Ela arreganha um sorriso. — Acabámos de enviar recado
para sua casa.
— Hã…?
— Siga-me, meu doce, eu levo-a a ela. — A enfermeira
acena, mudando os cobertores para o quadril. Cal e eu
trocamos olhares confusos. Ele encolhe os ombros e segue a
trote atrás dela, singularmente despreocupado. A sua cautela
treinada no exército parece muito longe.
A enfermeira tagarela excitada enquanto seguimos na sua
peugada. O seu sotaque é piedmontês, tornando as palavras
mais lentas e doces. — Não deve demorar. Ela está a progredir
rapidamente. Soldado até ao tutano, suponho. Não quer perder
tempo.
O nosso corredor desemboca numa ala maior, bem mais
buliçosa do que o resto do hospital. Janelas largas dão para
mais um jardim, agora escuro e açoitado pela chuva. O
Piedmonte tem certamente um fraco por flores. Várias portas
ramificam-se de cada lado, conduzindo a quartos e camas
vazios. Uma delas está aberta, e mais enfermeiras se apressam
de lá para cá. Um soldado armado da Guarda Escarlate está de
vigília, embora não pareça muito alerta. Ainda é cedo e ele
pestaneja lentamente, entorpecido pela silenciosa eficiência da
enfermaria.
Sara Skonos parece suficientemente desperta pelos dois.
Antes que eu possa chamá-la, ela levanta a cabeça, os olhos
cinzentos como as nuvens lá fora.
Julian tinha razão. Ela tem uma voz encantadora.
— Bom-dia — diz. É a primeira vez que a oiço falar.
Não a conheço muito bem, mas abraçamo-nos mesmo
assim. As suas mãos roçam-me os braços nus, enviando
estrelas cadentes de alívio para os músculos sobrecarregados.
Quando se inclina para trás tira-me outra folha do cabelo,
depois sacode-me inocentemente lama da omoplata. Os seus
olhos tremulam, reparando nos veios de lama nos braços e
pernas de Cal. Contra a atmosfera estéril do hospital, com as
suas superfícies reluzentes e luzes brilhantes, nós destacamo-
nos como um par de polegares bem doridos e sujos.
Os seus lábios retorcem-se num ligeiríssimo e malicioso
sorriso. — Espero que tenham apreciado a corrida matinal.
Cal pigarreia e o seu rosto ruboriza-se. Limpa uma mão às
calças, mas apenas consegue espalhar a incriminadora lama
ainda mais. — Pois.
— Cada um destes quartos está equipado com uma casa de
banho, incluindo um chuveiro. Eu também posso providenciar
uma muda de roupa. — Sara aponta com o queixo. — Se
quiserem…
O príncipe baixa o rosto para ocultar o rubor que se adensa.
Escapa-se de mansinho, deixando um rasto de pegadas
húmidas atrás de si.
Eu fico, deixando-o ir à frente. Embora ela já possa falar de
novo, a sua língua restituída por outro curador de pele,
depreendo, Sara não fala grande coisa. Tem formas mais
significativas de comunicar.
Toca-me novamente no braço, empurrando-me gentilmente
na direção da porta aberta. Com Cal fora de vista, consigo
pensar com um pouco mais de clareza. Os pontos unem-se, um
a um. Algo se contrai no meu peito, um aperto igualmente de
tristeza e entusiasmo. Quem me dera que Shade aqui estivesse.
Farley está sentada na cama, o rosto vermelho e inchado,
uma película de suor na fronte. A trovoada lá fora acabou,
diluindo-se numa carga de chuva sem fim escorrendo pelas
janelas. Ela solta uma risada à minha vista, depois faz uma
careta com o movimento repentino. Sara precipita-se para o
seu lado, pousando-lhe as mãos apaziguadoras nas faces.
Outra enfermeira mantém-se ociosa contra a parede, esperando
até poder ser útil.
— Correste para aqui ou nadaste através de um esgoto? —
pergunta Farley por sobre o alvoroço de Sara.
Entro pelo quarto dentro, tendo o cuidado de não sujar nada.
— Fui apanhada pela tempestade.
— Certo. — Ela soa não convencida de todo. — Era o Cal
lá fora?
O meu rubor equipara-se subitamente ao dela. — Sim.
— Certo — diz ela de novo, arrancando a palavra à força.
Os seus olhos perpassam por mim, como se pudesse ler a
última meia hora na minha pele. Resisto ao ímpeto de procurar
em mim quaisquer marcas suspeitas de mãos. Então ela
estende o braço, acenando para a enfermeira. Esta inclina-se e
Farley sussurra-lhe ao ouvido, as suas palavras demasiado
rápidas e baixas para que eu as capte. A enfermeira assente,
debandando apressada para tratar seja do que for que Farley
quer. Brinda-me com um sorriso contido ao sair.
— Podes chegar-te mais perto. Não vou explodir. — Olha
de relance para Sara. — Ainda.
A curadora de pele brinda-a com um bem ensaiado,
obsequioso sorriso. — Já não falta muito.
A medo dou uns passos em frente, até poder estender o
braço e pegar na mão de Farley se quiser. Algumas máquinas
piscam ao lado da cama, pulsando lenta e silenciosamente.
Atraem-me, hipnóticas no seu ritmo uniforme. A saudade de
Shade multiplica-se. Iremos ter um pedaço dele não tarda, mas
ele jamais voltará. Nem mesmo num bebé com os seus olhos,
o seu nome, o seu sorriso. Um bebé que ele nunca chegará a
amar.
— Pensei em Madeline.
A sua voz arranca-me da espiral. — O quê?
Farley puxa o lençol branco. — Era o nome da minha irmã.
— Oh.
No ano passado encontrei uma fotografia da família dela
nos aposentos do Coronel. Foi tirada há anos, mas Farley e o
pai eram inconfundíveis, posando ao lado da sua igualmente
loura mãe e irmã. Todos se pareciam. Ombros largos, atléticos,
olhos azuis de aço. A irmã de Farley era a mais pequena de
todos, desenvolvendo ainda os seus traços.
— Ou Clara. Como a minha mãe.
Se ela quer continuar a falar, estou aqui para escutar. Mas
não me intrometerei. De forma que fico calada, à espera,
deixando-a conduzir a conversa. — Elas morreram há alguns
anos. Lá nas Lakelands, em casa. A Guarda Escarlate não era
então tão cuidadosa, e um dos nossos operacionais foi
apanhado sabendo de mais. — A dor perpassa-lhe pelo rosto
de vez em quando, tanto da memória como do seu estado
atual. — A nossa aldeia era pequena, esquecida, sem
importância. O sítio perfeito para uma coisa como a Guarda
crescer. Até que um homem deixou escapar o seu nome sob
tortura. O próprio rei das Lakelands nos castigou.
A memória que dele tenho lampeja-me na cabeça. Um
homem pequeno, calmo e agoirento como a superfície de
águas paradas. Orrec Cygnet. — Eu e o meu pai estávamos
fora quando ele subiu as margens do Hud, impelindo a água da
baía para inundar a nossa aldeia e varrê-la da face do reino.
— Afogaram-se — murmuro.
A voz dela não vacila sequer. — Os Vermelhos por todo o
país inflamaram-se com a Submersão das Northlands30. O meu
pai contou a nossa história pelos lagos acima e abaixo, em
aldeias e cidades sem conta, e a Guarda floresceu. — A
expressão vazia de Farley transforma-se numa carranca. —
«Pelo menos elas morreram por alguma coisa», costumava ele
dizer. «Podemos dar-nos por felizes.»
— Mais vale viver por alguma coisa — concordo, uma lição
duramente aprendida.
— Sim, exatamente. Exatamente… — Cala-se, mas pega-
me na mão sem vacilar. — Então, estás a adaptar-te?
— Lentamente.
— Isso não é mau.
— A família fica por casa na maior parte dos dias. O Julian
visita-nos quando não está enfiado no laboratório da base. O
Kilorn também está sempre por perto. Vêm enfermeiros
trabalhar com o meu pai, ajudá-lo a adaptar-se à perna… a
propósito, está a progredir lindamente — acrescento, olhando
para trás para Sara, silenciosa no seu canto. Ela abre-se num
sorriso, agradada. — Ele é bom a ocultar o que sente, mas vejo
que está feliz. Tão feliz quanto possível.
— Eu não perguntei pela tua família. Perguntei por ti. —
Farley bate-me com o dedo no interior do pulso. Contra minha
vontade, encolho-me, lembrando-me do peso das algemas. —
Para variar, dou-te permissão para te lamuriares, rapariga-
relâmpago.
Suspiro.
— Não… não consigo estar sozinha em quartos com portas
trancadas… — Devagar, tiro o pulso da sua mão. — Não
gosto de coisas nos meus pulsos. Parecem-se demasiado com
as algemas com que Maven me mantinha prisioneira. E não
consigo ver nada pelo que é. Procuro logro em todo o lado, em
toda a gente.
Os olhos dela ensombram-se. — Isso não é necessariamente
um instinto terrível.
— Eu sei — resmungo em surdina.
— E o Cal?
— O Cal o quê?
— Da última vez que vos vi juntos, antes… de tudo aquilo,
estavam a um passo de se desfazerem mutuamente em
pedaços. — E a um passo do cadáver de Shade. — Parto do
princípio de que está tudo sanado.
Recordo o momento. Não falámos dele. O meu alívio, o
nosso alívio pela minha fuga relegou-o para segundo plano,
esquecido. Mas à medida que Farley fala sinto a velha ferida
reabrir-se. Tento racionalizar. — Ele ainda aqui está. Ajudou a
Guarda a atacar Archeon; liderou a tomada de Corvium. Eu só
queria que ele escolhesse um lado, e ele claramente escolheu.
Palavras sussurram-me nos ouvidos, puxando por um fundo
de memória. Escolhe-me a mim. Escolhe a alvorada. — Ele
escolheu-me a mim.
— Levou o seu tempo.
Tenho de concordar. Mas pelo menos não há como desviá-lo
deste caminho agora. Cal é da Guarda Escarlate. Maven
certificou-se de que o país o soubesse.
— Tenho de me lavar. Se os meus irmãos me veem assim…
— Vai. — Farley ajeita-se contra as almofadas levantadas,
tentando acomodar-se numa posição mais confortável. — És
capaz de já ter uma sobrinha ou sobrinho quando voltares.
Mais uma vez é um pensamento agricode. Forço um sorriso
por ela.
— Interrogo-me se o bebé será… como Shade. — O que
quero dizer é óbvio. Não em aparência, mas na aptidão. Será o
filho deles um sanguenovo como ele era e eu sou? É assim
sequer que a coisa funciona?
Farley encolhe simplesmente os ombros, percebendo. —
Bem, ainda não se teletransportou para fora de mim. Portanto,
quem sabe?
À porta, a enfermeira dela está de regresso, trazendo um
copo raso. Recuo para a deixar passar, mas ela aproxima-se de
mim, não de Farley. — A general pediu-me que lhe arranjasse
isto — diz, estendendo-me o copo. Nele está um único
comprimido. Branco, sem nada de especial.
— A escolha é tua — diz Farley da cama. Os seus olhos
estão graves quando as mãos envolvem o ventre. — Achei que
deverias ter isso, pelo menos.
Não hesito. O comprimido desce facilmente.
Algum tempo mais tarde tenho uma sobrinha. A Mamã recusa-
se a deixar que outra pessoa qualquer pegue em Clara ao colo.
Clama ver Shade na recém-nascida, conquanto isso seja
praticamente impossível. A bebé parece mais um tomate
vermelho e enrugado do que qualquer irmão meu.
Lá fora na enfermaria, o resto dos Barrow congrega-se
tomado de entusiasmo. Cal foi-se embora, regressando ao seu
programa de treino. Não se quis intrometer num momento
privado de família. Dando-me espaço, como a toda a gente em
geral.
Kilorn está sentado comigo, apertado numa pequena cadeira
contra as janelas. A chuva enfraquece a cada segundo que
passa.
— Bom tempo para pescar — diz, olhando de relance o céu
cinzento.
— Oh, não comeces tu também a balbuciar quanto ao
tempo.
— Que melindrosa, que melindrosa.
— Estás a viver de tempo emprestado, Warren.
Ele ri-se, alinhando na piada. — Acho que estamos todos
neste ponto.
Vindo de qualquer outra pessoa soaria agoirento, mas eu
conheço Kilorn demasiado bem para isso. Dou-lhe um toque
no ombro. — Então, como vai o treino?
— Bem. Montfort tem dezenas de soldados sanguenovos,
todos treinados. Algumas aptidões coincidem — Darmian,
Harrick, Farrah, uns quantos mais — e estão a fazer
progressos a passos largos com os seus mentores. Eu exercito-
me com Ada e com os miúdos quando Cal não o faz. Eles
precisam de uma cara familiar.
— Não há tempo para pescar, então?
Ele solta uma risada, inclinando-se para diante para pousar
os cotovelos nos joelhos. — Não, não por aí além. É
engraçado… dantes odiava levantar-me cedo para ir trabalhar
para o rio. Odiava cada segundo de pele queimada de sol, pele
queimada de cordas e ganchos presos e vísceras de peixe por
toda a minha roupa. — Rói as unhas. — Agora sinto a falta
disso.
Também eu sinto falta desse rapaz.
— O cheiro dificultava mesmo fazer amizade contigo.
— Foi provavelmente por isso que ficámos juntos. Ninguém
mais suportava o meu fedor ou a tua atitude.
Sorrio e inclino a cabeça para trás, encostando o crânio ao
vidro da janela. As gotas de chuva rolam por ela abaixo,
gordas e constantes. Conto-as mentalmente. É mais fácil do
que pensar em tudo o mais à minha volta ou à minha frente.
Quarenta e uma, quarenta e duas…
— Não sabia que eras capaz de ficar sentada quieta assim
tanto tempo.
Kilorn observa-me, pensativo. É um ladrão também, e tem
instintos de ladrão. Mentir-lhe de nada servirá, apenas o
afastará ainda mais. E isso não é coisa que eu possa suportar
neste momento.
— Não sei o que fazer — sussurro. — Mesmo no Fogo
Branco, como prisioneira, tentava escapar, tentava maquinar,
espiar, sobreviver. Mas agora… não sei. Não estou certa de
poder continuar.
— Não tens de fazê-lo. Ninguém na terra te censuraria se te
afastasses disto tudo e nunca mais voltasses.
Mantenho os olhos fitos nas gotas de chuva. Sinto uma
agonia no fundo do ventre. — Eu sei. — A culpa corrói-me.
— Mas mesmo que pudesse desaparecer já, com todos aqueles
de quem gosto, não o faria.
Há demasiada raiva em mim. Demasiado ódio.
Kilorn anui em sinal de compreensão. — Mas tão-pouco
queres lutar.
— Não quero tornar-me… — A voz falta-me.
Não quero tornar-me um monstro. Uma concha com nada lá
dentro senão fantasmas. Como Maven.
— Não tornarás. Eu não te deixarei. E nem me faças falar
de Gisa.
Contra minha vontade, riposto com uma risada. — Certo.
— Não estás sozinha nisto. Em todo o meu trabalho com os
sanguenovos, descobri que é isso que eles mais temem. —
Inclina também a cabeça para trás contra a janela. — Devias
falar com eles.
— Devia — murmuro, e falo a sério. Um diminuto alívio
desabrocha-me no peito. Aquelas palavras confortam-me
como nada mais.
— E no fim precisas de descobrir o que queres — afirma
gentilmente.
A água do banho redemoinha, fervendo preguiçosamente
em bolhas gordas e brancas. Um rapaz pálido levanta os olhos
para mim, olhos arregalados e pescoço a descoberto. Na
realidade fiquei simplesmente ali. Fui fraca, estúpida e
assustei-me. Mas no sonho acordada envolvo-lhe o pescoço
com as mãos e aperto. Ele agita-se na água escaldante,
afundando-se. Para nunca mais vir à tona. Para nunca mais me
assombrar.
— Quero matá-lo.
Os olhos de Kilorn semicerram-se quando um músculo se
lhe contrai no rosto. — Então tens de treinar, e tens de ganhar.
Lentamente, assinto.
Na orla da enfermaria, praticamente imerso na sombra, o
Coronel mantém-se de vigília. Está de olhos fitos nos pés, sem
se mexer. Não entra para ver a filha e a nova neta. Mas
também não vai embora.
30
Terras do Norte. (N. da T.)
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

Evangeline

E la ri-se contra o meu pescoço, o seu toque um roçar de


lábios e aço frio. A minha coroa está precariamente
empoleirada nos seus caracóis vermelhos, aço e diamante
brilhando entre cachos de rubis. Com a sua aptidão, ela faz os
diamantes piscarem como estrelas luminosas.
Relutante, sento-me e deixo a cama, os sedosos lençóis e
Elane para trás. Ela solta um gemido quando abro as cortinas
de par em par, deixando o sol entrar a jorros. Com um jeito da
sua mão a janela obscurece, desabrochando sombra até que a
luz se reduza a seu gosto.
Visto-me na obscuridade, envergando diminuta roupa
interior preta e um par de sandálias de presilhas. O dia de hoje
é especial e levo o meu tempo a moldar uma vestimenta à
minha forma, a partir das folhas de metal, no meu guarda-
roupa. Titânio e aço escurecido ondulam-me através das
pernas. Negro e prata, refletem a luz numa brilhante gama de
cores. Não preciso de uma camareira para completar a minha
aparência, nem quero uma a perambular pelo meu quarto.
Faço-o eu própria, combinando um faiscante batom azul-negro
e delineador de olhos carvão-escuro salpicado de cristais
especialmente feitos. Elane dormita o tempo todo, até eu lhe
tirar a coroa da cabeça. Serve-me na perfeição.
— É minha — digo-lhe, baixando-me para a beijar mais
uma vez. Ela sorri preguiçosamente, os seus lábios
recurvando-se contra os meus. — Não te esqueças, deves estar
presente hoje.
Ela faz uma vénia jocosa. — Como Vossa Alteza ordena.
O título é tão delicioso que tenho vontade de lhe lamber as
palavras diretamente da boca. Mas sob risco de arruinar a
maquilhagem refreio-me. E não olho para trás, não vá perder o
pouco autocontrolo que me resta por estes dias.
A Casa da Cumeeira pertence à minha família há gerações,
estendendo-se ao longo da orla de cristas montanhosas das
muitas brechas que dão à região o seu nome. Toda ela aço e
vidro, é claramente a minha favorita das propriedades da
família. Os meus aposentos pessoais dão para leste, para a
alvorada. Eu gosto de me levantar com o Sol, por muito que
Elane discorde. A passagem que liga os meus aposentos às
salas principais da casa é concebida por magnetrons, feita com
passadiços de aço abertos dos lados. Alguns correm ao longo
do chão, mas muitos arqueiam-se acima das frondosas copas
das árvores, rochedos recortados e nascentes que pontilham a
propriedade. Chegue alguma vez a batalha à nossa porta, uma
força invasora ver-se-á em apuros para combater e ganhar
terreno numa estrutura disposta contra ela.
Apesar da floresta cuidada e dos luxuriosos terrenos da
Cumeeira, poucos pássaros aqui vêm. Eles lá sabem. Em
crianças, Ptolemus e eu usávamos muitos para treinar a
pontaria. Os restantes caíam aos caprichos da minha mãe.
Há mais de trezentos anos, antes da era dos reis Calore, a
Cumeeira não existia, nem tão-pouco Norta. Este canto de
terra era governado por um senhor da guerra Samos, meu
antepassado direto. O nosso é sangue de conquistadores e as
nossas fortunas de novo se ergueram. Maven já não é o único
rei em Norta.
Os serviçais são bons a fazerem-se escassos por aqui,
aparecendo apenas quando necessários ou chamados. Nestas
últimas semanas parecem quase demasiado bons no seu
trabalho. Não é difícil adivinhar porquê. Muitos Vermelhos
estão a fugir, ou para as cidades, por uma questão de
segurança contra uma guerra civil, ou para se juntarem à
rebelião da Guarda Escarlate. O Pai diz que a própria Guarda
escapou para o Piedmonte, que mais não é que um fantoche
dançando sob os cordelinhos de Montfort. Ele mantém vias de
comunicação com os dirigentes de Montfort e da Guarda,
ainda que com relutância. Mas, por agora, o inimigo do nosso
inimigo nosso amigo é, fazendo de todos nós cautelosos
aliados no que respeita a Maven.
Tolly aguarda na galeria, o largo corredor aberto a todo o
comprimento da casa principal. Janelas a toda a volta
oferecem uma vista em todas as direções, por sobre
quilómetros da Brecha. No mais límpido dos dias ser-me-ia
possível ver Pitarus para oeste, mas as nuvens mantêm-se
baixas à distância enquanto as chuvas primaveris correm todo
o vasto vale fluvial. Para leste, vales e colinas desenrolam-se
em declives cada vez mais abruptos, terminando em
montanhas azul-esverdeadas. A região da Brecha é, na minha
correta opinião, o mais belo pedaço de Norta. E é minha. Da
minha família. A Casa Samos governa este paraíso.
O meu irmão certamente parece um príncipe, o herdeiro do
trono da Brecha. Em vez de armadura, Tolly usa um novo
uniforme. Cinzento-prata em vez de preto, com reluzentes
botões de ónix e aço e uma faixa negra como óleo
atravessando-o do ombro ao quadril. Sem medalhas ainda,
pelo menos nenhuma que ele possa usar. As restantes foram
ganhas ao serviço de outro rei. O seu cabelo prateado está
molhado, bem alisado para trás contra a cabeça. Acabado de
sair do duche. Mantém a mão nova chegada ao corpo,
protegendo o apêndice. Wren levou quase um dia a fazê-la
crescer de novo como deve ser, e mesmo então precisou de
muitíssima ajuda de dois congéneres seus.
— Onde está a minha esposa? — pergunta ele, olhando a
longa passagem atrás de mim.
— Há de vir. Preguiçosa que é. — Tolly casou-se com Elane
há uma semana. Não sei se a viu desde a noite do casamento,
mas ele pouco se rala. O arranjo foi por concordância mútua.
Ele enfia o seu braço são no meu. — Nem toda a gente pode
funcionar com tão pouco sono como tu.
— Bem, e tu? Ouvi dizer que todo aquele trabalho com a
tua mão levou a umas noitadas com a Senhora Wren —
replico, com um olhar lúbrico. — Ou fui mal informada?
Tolly arreganha um sorriso, acanhado. — Isso é de todo
possível?
— Não aqui. — Na Casa da Cumeeira é quase impossível
manter segredos. Especialmente da Mãe. Os seus olhos estão
por todo o lado, em ratos e gatos e num ocasional atrevido
pardal. A luz do sol coa-se obliquamente galeria dentro,
projetando reflexos sobre muitas esculturas de metal fluido.
Quando passamos, Ptolemus torce a mão nova no ar e as
esculturas torcem-se com ela. Adotam nova forma, cada uma
mais complexa que a anterior.
— Não te ponhas com coisas, Tolly. Se os embaixadores
chegam antes de nós, o Pai espeta-nos as cabeças no portão —
repreendo-o. Ele ri-se à ameaça do costume e velha piada.
Nenhum de nós jamais viu tal coisa. O Pai já matou,
certamente, mas nunca tão grosseiramente ou tão perto de
casa. Não sujes de sangue o teu próprio jardim, costumava ele
dizer.
Descemos a serpenteante galeria, mantendo-nos nos
passadiços exteriores para melhor gozarmos o tempo
primaveril. A maior parte dos salões interiores dão para o
passadiço, com as suas janelas de vidro polido ou as suas
portas abertas de par em par para apanhar a brisa primaveril.
Guardas Samos estão perfilados num e acenam com as cabeças
quando nos aproximamos, prestando deferência ao seu
príncipe e princesa. Sorrio ao gesto, mas a sua presença
perturba-me.
Os guardas Samos supervisionam uma operação violenta: o
fabrico de Pedra Silenciosa. Até mesmo Ptolemus empalidece
ao passarmos. O odor a sangue subjuga-nos por um momento,
enchendo o ar com um travo de ferro. Dois Arven estão
sentados dentro do salão, acorrentados aos assentos. Nenhum
deles está aqui por sua vontade. A sua casa é aliada de Maven,
mas nós temos precisão de Pedra Silenciosa e por isso eles
estão aqui. Wren paira entre eles, apreciando o seu progresso.
Os pulsos de ambos foram cortados e eles sangram livremente
para grandes baldes. Quando atingirem o seu limite, Wren
curá-los-á e estimular-lhes-á a produção sanguínea, para de
novo recomeçarem. Entretanto, o sangue será misturado com
cimento, endurecido na forma dos mortais blocos de pedra
supressora de aptidões. Para quê não sei, mas o Pai tem
certamente planos para ela. Uma prisão, talvez, como a que
Maven construiu para Prateados e sanguenovos.
A nossa maior câmara de receção, justamente denominada
Rasto do Sol-Pôr, fica na encosta ocidental. Suponho que seja
agora tecnicamente a nossa sala do trono também. Quando nos
aproximamos, há cortesãos da nobreza recém-criada pelo meu
pai aqui e ali pelo caminho, em maior número a cada passo
que damos. Na sua maior parte são primos Samos, elevados
pela nossa declaração de independência. Uns quantos de
sangue mais chegado, os irmãos do meu pai e respetivos
filhos, clamam títulos de príncipes para si próprios, mas os
restantes permanecem senhores e senhoras, dando-se por
contentes como sempre por viverem do nome do meu pai e das
suas ambições.
Cores garridas destacam-se entre o negro e prata do
costume, óbvia indicação da assembleia de hoje.
Embaixadores das outras casas em aberta revolta vieram fazer
tratados com o reino da Brecha. Ajoelhar. A Casa Iral
argumentará. Tentará negociar. Os silks pensam que os seus
segredos lhes podem comprar uma coroa, mas aqui poder é
dinheiro. Força a única moeda. E ambos se renderam ao entrar
em território nosso.
A Haven veio também, os shadows deleitando-se ao sol,
enquanto os windweavers Laris de amarelo se mantêm juntos
uns dos outros. Estes últimos já prestaram fidelidade a meu pai
e trazem com eles o poderio da Frota Aérea, tendo tomado o
controlo da maior parte das bases. Mas interessa-me mais a
Casa Haven. Elane não o diz, mas sente falta da família.
Alguns juraram já lealdade aos Samos, mas não todos,
incluindo o pai dela, e dilacera-a ver a sua casa fragmentar-se.
Na verdade, acho que foi por esse motivo que ela não desceu
comigo. Não suporta ver a sua casa dividida. Tomara poder
fazê-los ajoelhar por ela.
À luz matinal, o Rasto do Sol-Pôr é ainda assim
impressionante, com o seu suave piso rochoso de leito fluvial e
amplas vistas do vale. O Rio Leal serpenteia qual fita azul
sobre seda verde, curvando-se e recurvando-se
preguiçosamente rumo à distante tempestade de chuva.
A coligação não chegou ainda, dando-me tempo e a Tolly
para tomarmos os nossos lugares — tronos. O dele à direita do
Pai, o meu à esquerda da Mãe. São todos feitos do mais fino
aço, espelhado de tão polido. É frio ao toque e digo de mim
para mim para não tremer arrepiada quando me sentar. Fico
com pele de galinha de qualquer forma, sobretudo por
antecipação. Sou uma princesa, Evangeline da Brecha, da real
casa de Samos. Juguei que o meu destino fosse ser rainha de
outro, sujeita à coroa de outro. Isto é bem melhor. Para isto é
que sempre deveríamos ter feito planos. Quase lamento os dias
da minha vida desperdiçados a treinar apenas para ser esposa
de alguém.
O Pai entra no salão com uma multidão de conselheiros, de
cabeça baixa, a ouvir. Ele por natureza não fala muito. Os
pensamentos são seus, mas é bom ouvinte, tudo levando em
consideração antes de tomar decisões. Não como Maven, o
tolo rei que apenas seguia a sua bússola defeituosa.
Segue-se a Mãe sozinha, no seu verde de sempre, sem
senhoras ou conselheiras. A maior parte das pessoas põe-se ao
largo dela. Provavelmente devido à pantera negra de noventa
quilos que lhe vem silenciosamente no encalço. Anda ao seu
compasso, apenas saindo do seu lado quando ela chega ao
trono. Depois põe-se a andar à minha volta, fuçando-me o
tornozelo com o enorme focinho. Eu por hábito mantenho-me
imóvel. O controlo que a Mãe exerce sobre as suas criaturas é
bem praticado, mas não perfeito. Vi os seus animais de
estimação morderem muitos serviçais, quisesse-o ela ou não.
A pantera sacode uma vez a cabeça antes de voltar para junto
da Mãe, sentando-se à sua esquerda, entre nós. Ela pousa-lhe
na cabeça uma só mão fulgurante de esmeraldas, afaga-lhe o
sedoso pelo negro. O gigantesco felino pestaneja lentamente,
com os seus redondos olhos amarelos.
Sustenho o olhar da Mãe por sobre o animal, erguendo uma
sobrancelha. — Que raio de entrada.
— Era a pantera ou a pitão — replica ela. As esmeraldas
lampejam-lhe na coroa, magistralmente embutidas em prata. O
cabelo cai-lhe num espesso lençol negro, perfeitamente liso e
macio. — Não encontrei vestido a condizer com a serpente. —
Aponta com um gesto as dobras verde-jade do seu vestido de
chiffon. Duvido que fosse essa a razão, mas não o digo em voz
alta. As suas maquinações não tardarão a tornar-se aparentes.
Inteligente que é, a Mãe pouco talento tem para subterfúgios.
As suas ameaças são explícitas. O Pai é boa parelha para ela
neste sentido. As suas manobras levam anos, movendo-se
sempre nas sombras.
Mas de momento está bem postado à luz do sol. Os seus
conselheiros recuam a um gesto da sua mão e ele sobe para se
sentar junto de nós. Uma visão poderosa. Tal como Ptolemus,
traja brocado prata, abandonadas as suas antigas vestes negras.
Posso sentir a armadura sob o traje de gala. Crómio. Tal como
a simples faixa sobre a fronte. Nada de pedras preciosas para o
Pai. Pouco uso tem para lhes dar.
— Primos de ferro — diz calmamente para o Rasto do Sol-
Pôr, olhando para os muitos rostos Samos que salpicam a
multidão expectante.
— Reis de aço! — berram eles de volta, erguendo os
punhos no ar. A força com que o fazem vibra-me no peito.
Em Norta, nas salas do trono do Fogo Branco ou de
Summerton, alguém sempre grasnava o nome do rei,
anunciando a sua presença. Tal como com as pedras preciosas,
o Pai não quer saber de tão desnecessárias exibições. Toda a
gente aqui sabe o nosso nome. Repeti-lo apenas demonstraria
fraqueza, uma sede de garantia. O Pai não tem uma coisa nem
outra.
— Começai — diz ele. Os seus dedos tamborilam sobre o
braço do trono e abrem-se de par em par as pesadas portas de
ferro na extremidade oposta do salão.
Os embaixadores são poucos mas de alto nível, dirigentes
das suas casas. O Senhor Salin da Iral parece usar todas as
joias que faltam ao meu pai, o seu amplo colar de rubis e
safiras estendendo-se de ombro a ombro. O resto do seu traje
tem igual padrão de vermelho e azul, e as suas vestes
ondulam-lhe em torno dos tornozelos. Outro porventura
tropeçaria, mas um silk Iral não teme tal coisa. Move-se com
graça letal, os olhos escuros e duros. Ele faz todo o possível
por estar à altura da memória da sua predecessora, Ara Iral. A
sua escolta também é composta por silks, igualmente
exuberantes. São uma bonita casa, com fria pele brônzea e
luxuriante cabelo negro. Sonya não está com ele. Tive-a como
uma amiga na corte, na medida em que considero seja quem
for amigo. Não sinto a sua falta e provavelmente é melhor que
ela não esteja aqui.
Os olhos de Salin semicerram-se à vista da pantera da
minha mãe, agora ronronando ao seu toque. Ah! Tinha-me
esquecido. À mãe dele, a assassinada senhora de Iral,
chamavam Pantera na sua juventude. Que subtileza, Mãe.
Meia dúzia de shadows Haven vão-se fazendo aparecidos,
os seus rostos decididamente menos hostis. Ao fundo do salão
vejo Elane aparecer também. Mas o seu rosto permanece na
sombra, ocultando a dor de todos os presentes na sala
apinhada. Tomara poder sentá-la ao meu lado. Mas, muito
embora a minha família tenha sido mais que obsequiosa no
que lhe toca, isso jamais poderá acontecer. Ela sentar-se-á
atrás de Tolly um dia. Não de mim.
O Senhor Jerald, pai de Elane, é o membro dirigente da
delegação Haven. Tal como ela, tem vibrante cabelo vermelho
e pele resplandecente. Parece mais novo do que é, suavizado
pela sua aptidão natural para manipular a luz. Se sabe que a
sua filha está ao fundo da sala não o mostra.
— Vossa Majestade. — Salin Iral inclina a cabeça apenas o
bastante para ser cortês.
O Pai não se curva. Apenas os seus olhos se movem,
lampejando entre os embaixadores. — Meus senhores. Minhas
senhoras. Bem-vindos ao reino da Brecha.
— Agradecemos-lhe a hospitalidade — retribui Jerald.
Quase posso ouvir o meu pai ranger os dentes. Ele despreza
perda de tempo e tais cordialidades são certamente isso. —
Bem, viajaram de tão longe. Espero que seja para manterem o
vosso juramento.
— Jurámos apoiá-lo na sua coligação para suplantar Maven
— diz Salin. — Não para isto.
O Pai suspira. — Maven foi suplantado na Brecha. E com a
vossa lealdade isso pode alastrar.
— Consigo como rei. Um ditador por outro. — Irrompem
murmúrios na multidão, mas nós permanecemos em silêncio
enquanto Salin cospe os seus disparates.
A meu lado, a Mãe inclina-se para diante. — Não é justo
comparar o meu marido a esse atrapalhado príncipe, que não é
chamado a estar sentado no trono do seu pai.
— Não permitirei que tomem uma coroa que não é vossa —
ruge Salin.
A Mãe dá um estalido com a língua. — Quer dizer uma
coroa que vós próprios não pensastes tomar? Que pena a
Pantera ter sido morta. Ela teria feito planos para isto, pelo
menos. — Continua a afagar o lustroso predador a seu lado.
Este rosna do fundo da garganta, mostrando as presas.
— O facto mantém-se, meu senhor — interrompe o Pai —,
que enquanto Maven estrebucha, os seus exércitos e recursos
em muito ultrapassam os nossos. Especialmente agora que os
Lakelanders se ligaram a ele. Mas juntos podemos defender-
nos. Atacar em força. Esperar que o seu reino mais se esboroe.
Esperar que a Guarda Escarlate…
— A Guarda Escarlate. — Jerald cospe no nosso lindo chão.
O seu rosto tinge-se de um rubor cinzento. — Quer dizer
Montfort. O verdadeiro poder por trás desses desgraçados
terroristas. Outro reino.
— Tecnicamente… — começa Tolly, mas Jerald persiste.
— Começo a pensar que não querem saber de Norta, mas
apenas do vosso título e da vossa coroa. Em manter cada
pedaço que puderem enquanto monstros maiores devoram a
nossa nação — dardeja Jerald. Na multidão, Elane encolhe-se
e fecha os olhos. Ninguém fala assim ao meu pai.
A pantera rosna de novo, a condizer com o crescente mau
génio da Mãe. O Pai recosta-se simplesmente no trono, vendo
a clara ameaça alastrar através do Rasto do Sol-Pôr.
Após um longo e trémulo momento, Jerald tomba sobre um
joelho. — As minhas desculpas, Vossa Majestade. Não me
expressei bem. Não era minha intenção… — Cala-se sob o
olhar vigilante do rei, as palavras morrendo-lhe nos lábios
carnudos.
— A Guarda Escarlate jamais se firmará aqui. Sejam quais
forem os radicais que os apoiem. — O Pai fala resolutamente.
— Os Vermelhos são inferiores, abaixo de nós. Isso é obra da
biologia. A própria vida sabe que nós somos seus senhores.
Por que mais somos nós Prateados? Por que mais somos nós
seus deuses, se não para governá-los?
Os primos Samos aclamam. — Reis de aço! — ecoa
novamente por toda a câmara.
— Se os sanguenovos querem confiar o seu destino aos
insetos, deixá-los. Se querem virar costas ao nosso modo de
vida, deixá-los. E quando voltarem para nos combater, para
combater a natureza, matá-los.
A aclamação cresce, alastrando da nossa casa à Laris.
Mesmo uns quantos das delegações vão aplaudindo ou
assentindo. Duvido que alguma vez tenham ouvido Volo
Samos falar assim tanto — ele tem vindo a poupar a sua voz e
as suas palavras para os momentos que importam. Este é
certamente um deles.
Apenas Salin permanece em silêncio. Os seus olhos escuros,
delineados de negro, destacam-se penetrantemente. — Foi por
isso que a sua filha libertou uma terrorista? Que chacinou
quatro Prateados de uma casa nobre para fazê-lo?
— Quatro Arvens juramentados a Maven. — A minha voz
soa como um estalido de chicote.
O senhor Iral vira o seu olhar para mim e sinto-me
eletrizada, quase a elevar-me acima da cadeira. Estas são as
minhas primeiras palavras como princesa, as minhas primeiras
palavras proferidas com uma voz que é verdadeiramente a
minha. — Quatro soldados que vos tomariam tudo o que sois
se o seu ignóbil rei lhe pedisse. Chora por eles, meu senhor?
Salin franze o sobrolho desgostado. — Choro a perda de
uma valiosa refém, nada mais. E obviamente questiono a sua
decisão, Princesa.
Mais uma gota de escárnio na tua voz e arranco-te a
língua.
— A decisão foi minha — diz o Pai calmamente. — Como
o senhor disse, a Barrow era uma valiosa refém. Arrebatámo-
la a Maven. — E soltámo-la na Praça, qual besta da sua
jaula. Interrogo-me quantos dos soldados de Maven ela levou
consigo nesse dia. Os bastantes para cumprir o plano do Pai,
pelo menos para cobrir a nossa própria fuga.
— E agora está livre! — implora Salin. O seu mau génio
insinua-se aos poucos.
O Pai não dá mostras de interesse e declara o óbvio. — Ela
está no Piedmonte, claro. E asseguro-lhe, a Barrow era mais
perigosa sob o comando de Maven do que alguma vez será sob
o comando deles. A nossa preocupação deveria ser eliminar
Maven, não radicais destinados a fracassar.
Salin põe-se lívido. — Fracassar? Eles detêm Corvium.
Controlam uma vasta área do Piedmonte, usando um príncipe
Prateado como fantoche. Se isso é fracasso…
— Eles buscam fazer igual o que não é fundamentalmente
igual. — A minha mãe fala friamente, e as suas palavras soam
verdadeiras. — É uma tolice, como tentar resolver uma
equação impossível. E acabará num banho de sangue. Mas
acabará. O Piedmonte erguer-se-á. Norta rechaçará os
demónios Vermelhos. O mundo continuará a girar.
Toda a discussão parece morrer com a voz da Mãe. Tal
como o Pai, ela recosta-se, satisfeita. Para variar, está sem o
seu familiar silvo de cobras. Apenas a grande pantera,
ronronando ao seu toque.
O Pai prossegue, ansioso por desferir o golpe fatal. — O
nosso objetivo é Maven. As Lakelands. Separar o rei do seu
novo aliado deixá-lo-á vulnerável, mortalmente vulnerável.
Apoiar-nos-ão na nossa demanda de livrar deste veneno o
nosso país?
Lentamente, Salin e Jerald trocam olhares de relance, os
seus olhos cruzando-se através do espaço vazio entre eles. Um
ímpeto de adrenalina corre-me nas veias. Eles ajoelharão. Têm
de ajoelhar.
— Apoiarão a Casa Samos, a Casa Laris, a Casa Lerolan…
Uma voz interrompe-o. Uma voz de mulher. Ecoa… do
nada. — Presume falar por mim?
Jerald torce o pulso, movendo os dedos num círculo rápido.
Toda a gente na câmara sustém o ar, incluindo eu, quando uma
terceira embaixadora se materializa entre Iral e Haven. A sua
casa aparece atrás dela, uma dúzia deles em trajes vermelhos e
laranja, como o ocaso. Como uma explosão.
A Mãe estremece de choque a meu lado, surpreendida pela
primeira vez em muitos, muitos anos. A minha adrenalina
transforma-se em espigões de gelo, gelando-me o sangue.
A chefe da Casa Lerolan dá um desafiador passo em frente.
A sua aparência é severa. Cabelo grisalho preso num carrapito
impecável, os seus olhos ardendo como bronze aquecido. A
velha senhora não conhece a palavra medo. — Eu não apoiarei
um rei Samos enquanto viver um herdeiro Calore.
— Bem me pareceu cheirar fumo — resmunga a Mãe em
surdina, tirando a mão da pantera. Esta contrai-se
imediatamente, pondo-se de pé num deslizar das garras.
Ela limita-se a encolher os ombros, com um sorriso
malicioso. — Fácil de falar, Larentia, agora que me vê aqui
postada. — Os seus dedos tamborilam-lhe no flanco. Eu
observo-os atentamente. Ela é uma oblivion, capaz de fazer
explodir coisas com um toque. Se chegasse suficientemente
perto, poderia obliterar-me o coração no peito ou o cérebro no
crânio.
— Eu sou uma rainha…
— Também eu. — Anabel Lerolan arreganha mais o sorriso.
Embora finamente trajada não usa joias, que me seja dado ver,
nem coroa. Metal algum. Cerro o punho em garra no flanco.
— Nós não viraremos costas ao meu neto. O trono de Norta
pertence a Tiberias Sétimo. A nossa é uma coroa de flamas,
não aço.
A ira do Pai ganha forma como uma trovoada e irrompe
como um raio. Ele levanta-se do trono, um punho cerrado. Os
reforços metálicos da própria câmara dão de si, gemendo sob a
tensão da sua fúria.
— Nós tínhamos um acordo, Anabel! — rosna. — A
rapariga Barrow a troco do vosso apoio.
Ela pestaneja simplesmente.
Mesmo deste lado, posso ouvir o meu irmão silvar. —
Esqueceu-se da razão de a Guarda deter Corvium? Não viu o
seu neto a lutar contra os seus em Archeon? Como pode o
reino postar-se atrás dele agora?
Anabel não se encolhe. O seu rosto enrugado permanece
impávido, a sua expressão aberta e paciente. Uma amável
velha senhora em tudo, salvo as ondas de ferocidade que dela
emanam. Espera que o meu irmão continue a ofensiva, mas ele
não o faz e ela inclina a cabeça. — Obrigada, Príncipe
Ptolemus, por pelo menos não propagar a ultrajante falsidade
do assassínio do meu filho e do exílio do meu neto. Ambos
cometidos às mãos de Elara Merandus, ambos espalhados
através do reino na pior propaganda que jamais vi. Sim,
Tiberias fez coisas horríveis. Mas fê-lo para sobreviver.
Depois de todos nós nos termos virado contra ele, o termos
abandonado, depois de o seu próprio irmão envenenado ter
tentado matá-lo na arena como um vulgar criminoso. Uma
coroa é o mínimo que lhe podemos dar para nos redimirmos.
Atrás dela, Iral e Haven mantêm-se firmes. Uma cortina de
tensão cai sobre a câmara. Toda a gente a sente. Somos
Prateados, nascidos para a força e o poder. Todos nós
treinamos para lutar, para matar. Ouvimos o tiquetaquear de
um relógio em cada coração, numa contagem decrescente para
um banho de sangue. Olho de relance para Elane, sustenho-lhe
o olhar. Ela comprime os lábios numa linha sombria.
— A Brecha é minha — ruge o Pai, soando como uma das
bestas da Mãe. O ruído faz-me estremecer os ossos, e sou
instantaneamente criança de novo.
Não tem tal efeito na velha rainha. Anabel inclina
simplesmente a cabeça de lado. A luz do sol brilha nos férreos
e lisos fios de cabelo reunido na nuca.
— Então fique com ela — replica com um encolher de
ombros. — Tal como você disse, tínhamos um acordo.
E assim sem mais, o iminente tumulto ameaçando
submergir o salão dissipa-se. Alguns dos primos, bem como o
Senhor Jerald, exalam visivelmente.
Anabel abre as mãos de braços estendidos, num gesto
cordial. — É o rei de Brecha, e possa reinar por muitos e
prósperos anos. Mas o meu neto é o legítimo rei de Norta. E
precisará de cada aliado que pudermos congregar para tomar o
seu reino de volta.
Nem mesmo o Pai anteviu esta reviravolta. Anabel Lerolan
não marcou presença na corte durante muitos anos, preferindo
permanecer em Delphie, assento da sua casa. Desprezava
Elara Merandus e não a suportava — isso, ou temia-a.
Suponho que agora, com a rainha whisper desaparecida, a
rainha oblivion possa retornar. E bem que retornou.
Digo a mim própria para não me deixar tomar de pânico.
Ofuscado que possa estar o Pai, isto não é rendição. Mantemos
a Brecha. Mantemos a nossa casa. Mantemos as nossas coroas.
Passaram-se apenas umas semanas, mas repugna-me abrir mão
do que planeámos. Do que mereço.
— Interrogo-me como intenta restabelecer um rei que não
quer de todo um trono — cisma o Pai. Une as pontas dos
dedos em triângulo e avalia Anabel acima deles. — O seu neto
está no Piedmonte…
— O meu neto é um relutante operacional da Guarda
Escarlate, que por sua vez é controlada pela República Livre
de Montfort. Verificará que o seu dirigente, aquele que se
autodenomina presidente, é um homem bastante razoável —
acrescenta com o ar de alguém que discute o estado do tempo.
O meu estômago contrai-se e sinto-me vagamente agoniada.
Algo em mim, um profundo instinto, grita-me que a mate
antes que ela possa continuar.
O Pai ergue uma sobrancelha. — Entrou em contacto com
ele?
A rainha Lerolan esboça um sorriso forçado. — O suficiente
para negociar. Mas falo com o meu neto mais amiúde
ultimamente. Ele é um rapaz de talento, muito bom com
máquinas. Contactou-me no seu desespero, pedindo apenas
uma coisa. E graças a si providenciei-lha.
Mare.
O Pai semicerra os olhos. — Ele sabe dos seus planos,
então?
— Há de saber.
— E Montfort?
— Anseia por se aliar a um rei. Apoiarão uma guerra de
restauração em nome de Tiberias Sétimo.
— Como fizeram no Piedmonte? — Se ninguém mais lhe
apontar a sua loucura, eu certamente tenho de fazê-lo. — O
Príncipe Bracken dança sob os seus cordelinhos, controlado.
Os relatórios indicam que lhe tiraram os filhos. De bom grado
deixaria que o seu neto se tornasse fantoche deles também?
Vim aqui ansiosa por ver outros ajoelharem. Permaneço
sentada, mas sinto-me nua ante Anabel, que arreganha o
sorriso. — Tal como disse tão eloquentemente a sua mãe, eles
buscam fazer igual o que não é fundamentalmente igual. A
vitória é impossível. O sangue Prateado não pode ser
derrubado.
Até a pantera está quieta, observando o diálogo com olhos
expectantes. A sua cauda agita-se lentamente. Foco-me na sua
pelagem, negra como o céu noturno. Um abismo, tal como
aquele do qual nos aproximamos. O meu coração bate a um
ritmo atormentado, bombeando simultaneamente medo e
adrenalina para o meu corpo. Não sei para que lado o Pai
penderá. Não sei o que será feito deste caminho. Deixa-me a
pele arrepiada.
— Claro — acrescenta Anabel — que o reino de Norta e o
reino da Brecha estariam estreitamente unidos pela sua
aliança. E por casamento.
O chão parece inclinar-se debaixo de mim. Preciso de cada
grama de vontade e orgulho para permanecer no meu frio e
vicioso trono. És aço, sussurro mentalmente. O aço não
quebra nem verga. Mas já me posso sentir inclinar numa
vénia, abrindo caminho à vontade do meu pai. Ele negociar-
me-á num piscar de olhos, se isso significar manter a coroa. O
reino de Brecha, o reino de Norta — Volo Samos tomará seja o
que for a que puder deitar mão. Se o último estiver fora de
alcance, fará tudo o que puder para manter o primeiro. Nem
que isso signifique quebrar a sua promessa. Vender-me uma
vez mais. Sinto a pele formigar. Julguei que tudo isto estivesse
para trás. Sou princesa agora, meu pai rei. Não preciso de me
casar com ninguém por uma coroa. A coroa está no meu
sangue, em mim.
Não, isso não é verdade. Ainda precisas do Pai. Precisas do
seu nome. Nunca estás por tua conta.
O sangue ribomba-me nos ouvidos, o rugido de um furacão.
Não tenho coragem para levantar os olhos para Elane.
Prometi-lhe. Ela casou-se com o meu irmão para que nunca
fôssemos apartadas. Ela respeitou a sua parte do trato, mas
agora? Enviar-me-ão para Archeon. Ela ficará aqui com Tolly
como sua esposa e, um dia, sua rainha. Quero gritar. Quero
desfazer em pedaços a infernal cadeira debaixo de mim e
desmembrar toda a gente nesta sala. Incluindo eu própria. Não
posso fazer isto. Não posso viver assim.
Algumas semanas da coisa mais próxima de liberdade que
alguma vez conheci — e não posso largá-la. Não posso voltar
a viver por ambições alheias.
Respiro pelo nariz, tentando manter a fúria controlada. Não
tenho quaisquer deuses, mas rezo certamente.
Diz que não. Diz que não. Diz que não. Por favor, Pai, diz
que não.
Ninguém olha para mim, meu único alívio. Ninguém
observa o meu lento desenredar. Apenas têm olhos para o meu
pai e para a sua decisão. Tento desapegar-me. Tento meter a
minha dor numa caixa e enfiá-la num canto. É coisa fácil de
fazer nos Treinos, em combate. Mas é praticamente impossível
agora.
Claro. A voz na minha cabeça ri-se tristemente. O teu
caminho sempre conduziu aqui, fosse como fosse. Fui feita
para casar com o herdeiro Calore. Fisicamente feita.
Mentalmente feita. Construída. Como um castelo ou um
túmulo. A minha vida nunca foi minha e nunca será.
As palavras do meu pai perfuram-me o coração de pregos,
cada qual mais uma explosão de sangrento pesar.
— Ao reino de Norta. E ao reino de Brecha.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

Cameron

M orrey leva mais tempo que os outros reféns.


Alguns acreditaram em segundos. Outros persistiram
durante dias, teimosamente apegados às mentiras que lhes
tinham sido dadas a engolir. A Guarda Escarlate é um bando
de terroristas. A Guarda Escarlate é maléfica. A Guarda
Escarlate piorará a tua vida. O Rei Maven libertou-te da
guerra e de mais ainda te libertará. Retorcidas meias-
verdades tecidas em propaganda. Posso entender como eles e
tantos outros foram tomados. Maven explorou uma sede nos
Vermelhos que não sabiam o que era serem manipulados. Eles
viram um Prateado comprometendo-se a ouvir quando os seus
predecessores não o faziam, a ouvir as vozes do povo que
jamais tinham sido ouvidas. Uma mentira fácil de engolir.
E a Guarda Escarlate está longe de ser composta por heróis
inocentes. São defeituosos quando muito, combatendo a
opressão com violência. As crianças da Legião Adaga
permanecem desconfiadas. São todos simples adolescentes
ressaltando das trincheiras de um exército para outro. Não os
censuro por manterem os olhos abertos.
Morrey apega-se ainda às suas apreensões. Devido a mim,
ao que sou. Maven acusou a Guarda de assassinar pessoas
como eu. Por muito que o meu irmão tente, não pode afugentar
as palavras.
Quando nos sentamos para tomar o pequeno-almoço, as
nossas tigelas de papa de aveia escaldantes ao toque, preparo-
me para as perguntas do costume. Gostamos de comer lá fora
na relva, sob o céu aberto, com os campos de treinos
estendendo-se à nossa frente. Após quinze anos na nossa
cidade de barracas, cada brisa fresca é sentida como um
milagre. Sento-me de pernas cruzadas, o meu macaco verde-
escuro macio de tanto uso e incontáveis lavagens.
— Porque não te vais embora? — pergunta Morrey,
saltando de imediato. Mexe a papa de aveia três vezes, no
sentido contrário aos ponteiros do relógio. — Não prestaste
juramento à Guarda. Não tens qualquer razão para estar aqui.
— Porque fazes isso? — bato-lhe na colher com a minha.
Uma pergunta estúpida, mas um fácil desvio. Nunca tenho
uma boa resposta para ele e odeio que me faça duvidar.
Ele encolhe os ombros estreitos. — Eu gosto da rotina —
balbucia. — Em casa… bem, sabes que lá em casa era um
perfeito horror, mas… — Mexe de novo, raspando o metal. —
Lembras-te dos horários, dos assobios.
— Lembro. — Ainda os oiço em sonhos. — E tu sentes
falta disso?
Ele troça. — Claro que não. Eu simplesmente… Não sei o
que vai acontecer. Não o entendo. É… é assustador.
Apanho uma colherada de papa. Está espessa e saborosa.
Morrey deu-me a sua ração de açúcar, e a doçura extra anula
qualquer desconforto que eu sinta. — Acho que é isso que
toda a gente sente. Acho que é por isso que eu fico.
Morrey vira-se para olhar para mim, semicerrando os olhos
contra o brilho do sol que desponta ainda. Ilumina-lhe o rosto,
evidenciando com áspero contraste até que ponto ele mudou.
Rações constantes encheram-no. E o ar mais puro claramente
diz bem com ele. Não tenho ouvido a tosse áspera que dantes
pontuava as suas frases.
Uma coisa não mudou, todavia. Ainda tem a tatuagem, tal
como eu. Tinta negra, qual marca em torno do pescoço. As
nossas letras e números são praticamente iguais.
NT-MRPM-188908, diz a dele. New Town, Montagem e
Reparação, Pequena Manufatura. Eu sou o 188907. Nasci
primeiro. Sinto comichão no pescoço à lembrança do dia em
que fomos marcados, permanentemente obrigados aos nossos
contratos de trabalho.
— Não sei para onde ir. — Digo as palavras em voz alta
pela primeira vez, ainda que as tenha pensado diariamente
desde que escapei de Corros. — Não podemos ir para casa.
— Calculo que não — balbucia ele. — Então o que fazemos
aqui? Vais ficar e deixar que esta gente…
— Já te disse antes, eles não querem matar os sanguenovos.
Isso foi mentira, mentira de Maven…
— Não estou a falar disso. Pois então a Guarda Escarlate
não te vai matar… mas não deixam de te pôr em perigo.
Passas cada minuto que não estás comigo a treinar para
combater para matar. E em Corvium eu vi… quando nos
conduziste para fora…
Não digas o que eu fiz. Lembro-me suficientemente bem
sem ele descrever a forma como matei dois Prateados. Mais
depressa do que jamais matara antes. O sangue jorrando-lhes
dos olhos e boca, as suas entranhas morrendo órgão a órgão à
medida que o meu silêncio tudo neles destruía. Senti-o então.
Sinto-o ainda. A sensação da morte lateja-me através do corpo.
— Eu sei que podes ajudar. — Ele pousa a papa e pega-me
na mão. Nas fábricas, costumava dar-lhe eu a mão. Os nossos
papéis invertem-se. — Não quero vê-los transformarem-te
numa arma. És minha irmã, Cameron. Fizeste tudo o que
podias para me salvar. Deixa-me fazer o mesmo.
Abespinhada, caio de costas contra a relva macia, deixando
a tigela ao meu lado.
Ele deixa-me pensar, apontando os olhos para o horizonte.
Acena com uma mão morena para os campos à nossa frente.
— Aqui é tudo tão exuberantemente verde. Achas que o resto
do mundo será assim?
— Não sei.
— Podíamos descobrir. — A sua voz é tão branda que finjo
não ouvir, e deixamo-nos cair num silêncio fácil. Vejo os
ventos primaveris perseguirem nuvens através do céu
enquanto ele come, em movimentos rápidos e eficientes. —
Ou podíamos ir para casa. A Mamã e o Papá…
— Impossível. — Foco-me no azul lá em cima, azul como
nunca vimos naquele inferno em que nascemos.
— Tu salvaste-me.
— E quase morremos. Mais hipóteses, e quase morremos.
— Exalo lentamente. — Nada há que possamos fazer por eles
neste momento. Julguei que talvez outrora mas… tudo o que
podemos fazer é ter esperança.
O pesar repuxa-lhe o rosto, azedando-lhe a expressão. Mas
assente. — E mantermo-nos vivos. Permanecermos nós
mesmos. Ouves-me, Cam? — Agarra-me a mão. — Não
deixes que isto te mude.
Ele está certo. Mesmo estando zangada, embora sentindo
tanto ódio por tudo o que ameace a minha família… será que
alimentar essa raiva valerá o custo?
— Então o que deveria eu fazer? — forço-me finalmente a
perguntar.
— Não sei como é ter uma aptidão. Tu tens amigos que
sabem. — Os seus olhos cintilam enquanto faz uma pausa para
criar efeito. — Tens amigos, certo? — Lança-me um sorriso
malicioso por sobre o rebordo da tigela. Dou-lhe uma pancada
no braço pela implicação.
A minha mente salta para Farley primeiro, mas ela ainda
está no hospital, a adaptar-se a um bebé recém-nascido, e ela
não tem uma aptidão. Não sabe como é ser tão letal, deter o
controlo de algo tão mortal.
— Estou assustada, Morrey. Quando fazes birra,
simplesmente gritas e choras. Comigo, com o que posso
fazer… — Estendo uma mão para o céu, fletindo os dedos
contra as nuvens. — Isso assusta-me.
— Talvez isso seja bom.
— O que queres dizer?
— Em casa, lembras-te de como eles usam os miúdos? Para
arranjar as grandes engrenagens, os fios mais entranhados? —
Morrey arregala os olhos escuros, tentando fazer-me entender.
A memória ecoa. Ferro sobre ferro, o guinchar e retorcer de
maquinaria em constante zumbido através de pisos de fábricas
sem fim. Quase posso sentir o cheiro a óleo, quase sinto a
chave inglesa na mão. Foi um alívio quando eu e o Morrey
ficámos demasiado grandes para servirmos de aranhas — o
que os supervisores chamavam aos miudinhos da nossa
divisão. Suficientemente pequenos para irem onde
trabalhadores adultos não podiam chegar, demasiado novos
para terem medo de ser esmagados.
— O medo pode ser uma coisa boa, Cam — insiste ele. —
O medo não te deixa esquecer. E o medo que tens, o respeito
que tens por essa coisa mortal dentro de ti, acho que é uma
aptidão também.
A minha papa já está fria, mas forço uma colherada para
não ter de falar. Agora o sabor açucarado é avassalador e a
pasta pega-se-me aos dentes.
— As tuas tranças estão todas desfeitas — murmura Morrey
de si para si. Vira-se para outra rotina, uma velha rotina
familiar para nós dois. Os nossos pais saíam para trabalhar
mais cedo que nós e tínhamos de nos ajudar um ao outro a
arranjar-nos ao nascer do dia. Ele sabe desde então como
pentear-me o cabelo, e não leva tempo nenhum a
desembaraçá-lo. Sabe bem tê-lo de volta e sou tomada de
emoção enquanto ele me prende o cabelo negro encaracolado
em duas tranças.
Não me pressiona para tomar uma decisão, mas a conversa é
bastante para deixar vir à superfície perguntas que eu já me
fazia. Quem quero eu ser? Que escolha vou eu fazer?
À distância, junto à orla dos campos de treino, avisto duas
figuras familiares. Uma alta e outra baixa, ambas correndo ao
longo da vedação. Fazem isto todos os dias, os seus exercícios
familiares para a maioria de nós. Apesar das pernas bem mais
compridas de Cal, Mare não tem problemas em acompanhá-lo.
À medida que se aproximam posso vê-la sorrir. Não
compreendo uma data de coisas a respeito da rapariga-
relâmpago, e sorrir enquanto corre é uma delas.
— Obrigada, Morrey — digo, levantando-me quando ele
acaba.
O meu irmão não se põe em pé comigo. Segue o meu olhar,
pousando os olhos em Mare que se aproxima. Ela não o faz
pôr-se tenso, mas Cal faz. Morrey rapidamente se ocupa das
tigelas, baixando a cabeça para ocultar a carranca. Não há
amor de todo entre os Cole e o príncipe de Norta.
Mare ergue o queixo ao correr, assinalando a nossa
presença.
O príncipe tenta ocultar a irritação que sente quando ela
abranda o passo, caminhando direita a mim e a Morrey. Cal
não o faz bem, mas acena para os dois num arremedo de cortês
saudação.
— Bom-dia — diz Mare, pulando de um pé para o outro
enquanto retoma o fôlego. A sua tez melhorou mais que tudo:
uma calidez dourada está de regresso à sua pele morena. —
Cameron, Morrey — diz, os seus olhos cintilando entre um e o
outro com velocidade felina. O cérebro dela está sempre a
girar, à procura de fissuras. Depois do que passou, como
poderia ela ser de outra forma?
Ela deve pressentir a minha hesitação, pois mantém-se
quieta, esperando que eu diga alguma coisa. Quase perco a
coragem, mas Morrey roça-me a perna. Cerra os dentes e
avança, digo de mim para mim. Até pode ser que ela entenda.
— Importavas-te de dar uma volta comigo?
Antes da sua captura ela teria troçado, dito para eu treinar,
enxotando-me para o lado como se fosse uma mosca irritante.
Mal me tolerava. Agora diz que sim com a cabeça. Com um
simples gesto, Mare descarta Cal como só ela pode fazer.
A prisão mudou-a, como a todos nós.
— Claro, Cameron.
Sinto-me como se falasse há horas, despejando tudo o que
tenho guardado cá dentro. O medo, a ira, a sensação de agonia
que tenho de cada vez que penso no que posso fazer e no que
tenho feito. Como isso me deixava exultante. Como tal poder
me fazia sentir invencível, indestrutível — e agora me faz
sentir envergonhada. Sentir-me como se apunhalasse o meu
próprio estômago e deixasse sair as entranhas. Evito os olhos
dela enquanto falo, mantendo o olhar bem fito nos pés
enquanto andamos pelo recinto de treino. À medida que
avançamos, cada vez mais soldados inundam o campo.
Sanguenovos e Vermelhos, todos fazendo os seus exercícios
matinais. Nos seus uniformes, macacos verdes providenciados
por Montfort, é difícil distinguir uns dos outros. Parecemos
todos iguais, unidos. — Eu quero proteger o meu irmão. Ele
diz-me que devíamos ir embora, partir… — A voz fraqueja-
me, emudecendo até não haver mais palavras.
Mare é convincente na sua resposta. — A minha irmã diz a
mesma coisa. Todos os dias. Quer aceitar a oferta de
Davidson. Realojamento. Deixar que outros combatam. — Os
seus olhos ensombram-se de intensidade. Oscilam por sobre a
paisagem cheia de uniformes verdes. É mecânica nas suas
observações, quer o saiba quer não, lendo riscos e ameaças. —
Disse ela que já demos o bastante.
— Então o que farás tu?
— Eu não posso virar costas. — Morde o lábio, pensativa.
— Há demasiada raiva dentro de mim. Se não encontrar
maneira de me ver livre dela, pode envenenar-me para o resto
da minha vida. Mas isso provavelmente não é o que queres
ouvir. — Seria uma acusação vinda de outra pessoa qualquer.
De Cal, ou Farley. De quem Mare era há seis meses. Em vez
disso as suas palavras são mais brandas.
— Persistir consumir-me-á viva — admito. — Continuar
desta maneira, usando a minha aptidão para matar… fará de
mim um monstro.
Monstro. Ela estremece arrepiada quando o digo,
recolhendo-se dentro de si mesma. Mare Barrow já teve o seu
quinhão de monstros. Desvia o olhar, puxando ao acaso uma
madeixa de cabelo que encaracola com a humidade.
— Os monstros são tão fáceis de criar, especialmente em
pessoas como nós — balbucia. Mas recupera rapidamente. —
Tu não lutaste em Archeon. Ou, se o fizeste, não te vi.
— Não, estive lá apenas para… — Manter-te sob controlo.
No momento, um bom plano. Mas agora que sei o que ela
passou, sinto-me horrível.
Ela não força.
— Foi uma ideia do Kilorn em Trial — digo. — Ele faz um
bom trabalho na triagem de sanguenovos e Vermelhos, e sabia
que eu queria dar um passo atrás. De modo que fui… mas não
para lutar, não para matar, a menos que fosse absolutamente
necessário.
— E queres continuar nesse caminho. — Não é uma
pergunta.
Lentamente, assinto. Não deveria sentir-me embaraçada. —
Acho que é melhor assim. Defender, não destruir. — Nos
meus flancos, os meus dedos fletem-se. O silêncio acumula-se
sob a minha pele. Não odeio a minha aptidão, mas posso odiar
o que ela faz.
Mare fixa-me com um sorriso arreganhado. — Eu não sou
tua comandante. Não posso dizer-te o que fazer, ou como lutar.
Mas acho que é boa ideia. E se alguém tentar convencer-te do
contrário, diz-lhes que venham ter comigo.
Sorrio. De algum modo sinto que me tiraram um peso de
cima. — Obrigada.
— Desculpa, a propósito — acrescenta ela, aproximando-se
mais. — Sou a razão de estares aqui. Sei agora que o que te
fiz, forçar-te a juntares-te a nós… foi errado. E lamento.
— Tens toda a razão. Fizeste mal, isso é mais que certo.
Mas no fim obtive o que queria.
— Morrey. — Ela suspira. — Alegra-me que o tenhas de
volta. — O seu sorriso não desaparece mas esmorece,
certamente, atenuado por tanta menção a irmãos.
No declive lá adiante, Morrey aguarda, agora de silhueta
postada contra os edifícios da base espalhados atrás dele. Cal
foi-se. Bom.
Embora esteja connosco há meses, Cal é desajeitado sem
um propósito, mau a manter conversas, e sempre tenso quando
não tem uma estratégia em que cismar. Uma parte de mim
ainda pensa que ele nos vê a todos como descartáveis — cartas
a apanhar e rejeitar ao ditar da estratégia. Mas ele ama Mare,
lembro a mim própria. — Ele ama uma rapariga de sangue
Vermelho.
Isso deve contar para alguma coisa.
Antes que cheguemos de volta ao meu irmão, um último
receio borbulha-me garganta acima.
— Estou a abandonar-vos a todos? Aos sanguenovos?
A minha aptidão é morte silenciosa. Sou uma arma, goste
ou não. Posso ser usada. Posso ser útil. Será egoísta ir-me
embora?
Tenho a sensação de que é uma pergunta que Mare fez a si
própria muitas vezes. Mas a sua resposta é para mim, e só para
mim.
— Claro que não — resmunga baixinho. — Ainda aqui
estás. E és um monstro a menos com que nos preocuparmos.
Um fantasma a menos.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

Mare

M uito embora o meu tempo no Entalhe fosse carregado


de exaustão e desgostos, ainda tem um canto no meu
coração. Para variar, lembro-me do bom mais vividamente do
que do mau. Dias em que regressávamos com sanguenovos
vivos, arrancados às mandíbulas da execução. Sentíamo-lo
como um progresso. Cada rosto era prova de que eu não estava
sozinha — e de que podia salvar pessoas tão facilmente como
matá-las. Dias havia em que parecia simples. Acertado. Tenho
vindo a perseguir essa sensação desde então.
A base do Piedmonte tem as suas próprias instalações de
treino, tanto interiores como exteriores. Algumas estão
equipadas para Prateados, as restantes para os soldados
Vermelhos aprenderem a guerra. O Coronel e os seus homens,
agora totalizando milhares e aumentando diariamente, clamam
a carreira de tiro. Sanguenovos como Ada, aqueles com
aptidões menos devastadoras, treinam com ele, aperfeiçoando
a sua pontaria e técnicas de combate. Kilorn alterna entre as
suas fileiras e os sanguenovos nos recintos de treino Prateados.
Ele não pertence a nenhum dos grupos, contudo a sua presença
apazigua muitos. O aprendiz de pescador é o oposto de uma
ameaça, para não dizer um rosto familiar. E não os teme, como
tantos dos «verdadeiros» soldados Vermelhos. Não, Kilorn já
viu o suficiente de mim para nunca mais na vida ter receio de
um sanguenovo.
Ele acompanha-me agora, escoltando-me em torno de um
edifício mais ou menos do tamanho de um hangar de jatos
aéreos. Mas desprovido de pista. — É um ginásio Prateado —
diz, apontando para a estrutura. — Há ali todo o género de
coisas. Pesos, uma pista de obstáculos, uma arena…
— Estou a ver. — Aprendi as minhas competências num
lugar assim, rodeada de Prateados mal-intencionados que me
matariam se vissem uma gota do meu sangue. Pelo menos não
tenho de me preocupar mais com isso. — Provavelmente não
deveria treinar em sítio nenhum com telhado ou lâmpadas
elétricas.
Kilorn bufa. — Provavelmente não.
Uma das portas do ginásio abre-se de rompante e sai uma
figura, com uma toalha ao pescoço. Cal enxuga o suor do
rosto, ainda afogueado de prata do esforço. Levantamento de
pesos, calculo.
Semicerra os olhos e transpõe a distância entre nós o mais
depressa que pode. Ofegando ainda, estende uma mão. Kilorn
aperta-a com um sorriso aberto. — Kilorn. — Cal assente. —
Andas a fazer o giro com ela?
— Si…
— Ná, ela vai começar com alguns dos outros hoje — diz
Kilorn ignorando-me, e eu resisto ao ímpeto de lhe dar uma
cotovelada no estômago.
— O quê?
Cal ensombra-se. Inspira fundo. — Julguei que te ias dar
mais tempo.
Kilorn surpreendeu-me no hospital, mas tem razão. Não
posso ficar sentada por aí mais tempo. Dá uma sensação de
inutilidade. E eu estou inquieta, com a raiva fervendo-me à
flor da pele. Eu não sou Cameron. Não sou suficientemente
forte para recuar. Até as lâmpadas já começaram a faiscar
quando entro numa sala. Preciso de libertação.
— Já se passaram uns dias. Pensei no assunto. — Ponho as
mãos nos quadris, preparando-me para a sua inevitável
contestação. Sem sequer se dar conta, Cal cai na sua
patenteada postura de contestar-a-Mare. De braços cruzados,
sobrolhos franzidos, pés firmemente plantados. Com o sol
atrás de mim, tem de esforçar os olhos, e após o treino
tresanda a suor.
Kilorn, miserável cobarde, recua alguns passos. — Vejo-te
quando acabarem o vosso momento. — Lança um sorriso
amarelo por sobre o ombro, deixando-me a braços com a
situação.
— Só um minuto — grito-lhe nas costas. Ele acena
simplesmente, desaparecendo para lá da esquina do ginásio. —
Um apoio e tanto. Não que precise dele — acrescento
rapidamente —, dado que a decisão é minha e se trata de
simples treino. Ficarei mais que bem.
— Bem, metade da minha preocupação é para com as
pessoas na zona de explosão. E o resto… — Pega-me na mão,
usando-a para me aproximar dele. Franzo o nariz, fincando os
calcanhares. Não que importe grande coisa. Deslizo no
pavimento seja como for.
— Estás todo suado.
Ele passa-me o braço pelas costas com um sorriso
arreganhado. Sem escape. — Iá.
O odor não é inteiramente desagradável, ainda que devesse
ser. — Então não te vais opor a mim à conta disto?
— É como disseste. A decisão é tua.
— Bom. Não tenho energia para segunda dose de bicadas
numa manhã.
Ele muda de posição e empurra-me suavemente para trás,
para me ver melhor a cara. Os seus polegares roçam-me o
contorno inferior do maxilar. — Gisa?
— Gisa — abespinho-me, afastando uma madeixa de cabelo
do rosto. Sem a Pedra Silenciosa, a minha saúde melhorou
imenso, a ponto de as unhas e cabelos me crescerem ao ritmo
normal de novo. Mas continuam as pontas cinzentas. Isso não
vai desaparecer nunca. — Está sempre a chatear-me com o
realojamento. Ir para Montfort. Deixar tudo para trás.
— E disseste-lhe que fosse à vontade, não disseste?
Coro que nem um tomate. — Escapou-me! Às vezes… não
penso antes de falar.
Ele ri-se. — O quê? Tu?
— E depois a Mamã pôs-se do lado dela, evidentemente, e o
Papá não se pôs de lado nenhum, armado em pacificador, claro
está. É como se — o ar silva-me dos pulmões — é como se
nada tivesse mudado. Bem podíamos estar de volta nas Stilts,
na cozinha. Acho que isto não me devia incomodar assim
tanto. No contexto geral. — Embaraçada, forço-me a levantar
os olhos para Cal. Sinto-me horrível por me queixar da família
a ele. Mas ele perguntou. E simplesmente saiu. Ele limita-se a
estudar-me como se eu fosse um terreno de batalha. — Isto
não é coisa com que te devas ralar. Não é nada.
A sua mão aperta a minha com mais força antes que eu
possa sequer pensar afastar-me. Ele sabe como eu corro. — Na
verdade, estava a pensar em todos os soldados com que treinei.
Na frente, especialmente. Vi soldados voltarem inteiros de
corpo, mas sem qualquer coisa. Não conseguem dormir ou
talvez não consigam comer. Por vezes resvalam de volta
direitos ao passado… para a memória de uma batalha,
desencadeada por um som ou um cheiro ou qualquer outra
situação.
Engulo em seco e envolvo o pulso com dedos trémulos.
Apertando, lembro-me das algemas. O toque deixa-me doente.
— Soa familiar.
— Sabes o que ajuda?
Claro que não sei, de contrário fá-lo-ia. Abano a cabeça.
— Normalidade. Rotina. Falar. Sei que não gostas
propriamente desta última — acrescenta, abrindo-se num
sorriso malicioso. — Mas a tua família apenas te quer a salvo.
Passaram um inferno quando estiveste… ausente. — Ainda
não descobriu a palavra adequada para o que me aconteceu.
Capturada ou aprisionada não tem exatamente o peso certo.
— E agora que estás de volta, eles fazem o que qualquer
pessoa faria. Protegem-te. Não a rapariga-relâmpago, não
Mareena Titanos, mas a ti. Mare Barrow. A rapariga que
conhecem e de que se lembram. É tudo.
— Certo. — Assinto lentamente. — Obrigada.
— Então quanto à tal coisa de falar.
— Oh, vá lá, agora?
O seu sorriso rasga-se e vira riso, os músculos do seu
estômago endurecendo contra mim. — Está bem, mais tarde.
Depois do treino.
— Devias ir tomar um duche.
— Estás a gozar? Vou estar dois passos atrás de ti o tempo
todo. Queres treinar? Então vais treinar como deve ser. —
Empurra-me na base das costas, fazendo-me cambalear para
diante. — Vamos.
O príncipe é incessante, correndo virado de costas até eu
acertar o passo com ele. Passamos a pista de corrida, a pista de
obstáculos exterior, um vasto campo de relva bem aparada,
para não falar em vários círculos de terra para combate e uma
carreira de tiro ao alvo com quase meio quilómetro de
comprimento. Alguns sanguenovos correm na pista de
obstáculos e na pista de corrida, enquanto uns quantos
praticam sozinhos no campo. Não os reconheço, mas as
aptidões que vejo são bastante familiares. Um sanguenovo do
género nymph forma colunas de água límpida antes de deixá-
las cair sobre a relva, criando poças cada vez maiores de lama.
Uma teletransportadora paira fluidamente sobre o recinto.
Aparece e desaparece por todo o lado, rindo-se para outros que
se deparam com mais dificuldades. De cada vez que salta, o
meu estômago contrai-se, recordada de Shade.
Os círculos de combate são os que mais me perturbam. Não
luto com alguém por divertimento, por desporto, desde que
lutei com Evangeline há tantos meses. Não foi uma
experiência que eu queira repetir. Mas certamente terei de
fazê-lo.
A voz de Cal estabiliza-me, reconduzindo-me o foco de
volta para a tarefa em mãos. — Iniciar-te-ei numa rotina de
pesos a partir de amanhã, mas hoje podemos saltar para o alvo
e teoria.
Alvo entendo eu. — Teoria?
Detemo-nos na orla da longa carreira, fitando a neblina que
se dissipa à distância.
— Chegaste aos Treinos mais ou menos uma década
atrasada para isso. Mas antes que as nossas aptidões estejam
em forma de combate, passamos algum tempo a estudar as
nossas vantagens e desvantagens, como usá-las.
— Como nymphs derrotarem burners, água sobrepondo-se
ao fogo.
— Algo assim. Essa é fácil. Mas se fores tu o burner? — Eu
abano simplesmente a cabeça, e ele abre-se num sorriso. —
Vês, é complicado. Requer muita memorização e
compreensão. Treino. Mas tu vais fazer isto de improviso.
Esqueci-me de como Cal é calhado para isto. Está como
peixe na água, à vontade, sorridente. Ardente. É nisto que ele é
bom, que ele entende, aquilo em que se distingue. É uma corda
de salvação num mundo que não parece nunca fazer sentido.
— É demasiado tarde para dizer que já não quero treinar?
Cal ri-se simplesmente, inclinando a cabeça para trás. Um
pingo de suor rola-lhe pelo pescoço. — Estás presa comigo,
Barrow. Agora, atinge o primeiro alvo. — Estende uma mão,
indicando um bloco quadrado de granito a dez metros de
distância, pintado em forma de alvo. — Um raio. Bem no
meio.
Com um sorriso malicioso, faço o que me pedem. Não
posso falhar a esta distância. Um único raio púrpura-
esbranquiçado risca o ar e acerta em cheio. Com um
ressonante estalido, o relâmpago deixa uma marca negra no
centro do alvo.
Antes que tenha tempo para me sentir orgulhosa, Cal
empurra-me para o lado. Desprevenida, cambaleio, quase
caindo por terra. — Ei!
Ele limita-se a afastar-se e apontar. — Próximo alvo. Vinte
metros.
— Está bem — abespinho-me, assentando os olhos no
segundo bloco. Levanto o braço de novo, pronta a fazer
pontaria — e Cal volta a empurrar-me. Desta vez os meus pés
reagem mais rapidamente, mas não o bastante, e o meu raio sai
à toa, estralejando terra dentro.
— Isso parece-me muito pouco profissional.
— Eu costumava fazê-lo com alguém a disparar-me tiros de
pólvora seca junto à cabeça. Preferias isso? — pergunta-me.
Apresso-me a abanar a cabeça. — Então atinge-o-alvo.
Normalmente ficaria irritada, mas o seu sorriso rasga-se,
fazendo-me corar. É treino, penso. Controla-te.
Desta vez, quando ele vai para me empurrar, eu desvio-me
para o lado e disparo, lascando o marcador de granito. Mais
um desvio, mais um disparo. Cal começa a mudar de tática,
passando às minhas pernas ou mesmo incendiando-me uma
bola de fogo diante dos olhos. Da primeira vez que o faz, caio
ao chão tão depressa que acabo a cuspir terra. «Atinge o alvo»
torna-se o seu hino, seguido de um marcador de metros algures
entre cinquenta e dez. Berra os alvos ao acaso, enquanto isso
forçando-me a dançar em bicos de pés. É mais difícil do que
correr, muito mais difícil, e o sol torna-se brutal à medida que
o dia passa.
— O alvo é um swift. O que fazes? — pergunta.
Cerro os dentes, ofegante. — Alastro o raio. Apanho-o ao
esquivar-se…
— Não mo digas, fá-lo.
Com um grunhido, balanço o braço num cortante
movimento horizontal, lançando um jato de voltagem na
direção do alvo. As faíscas são mais fracas, menos
concentradas, mas o suficiente para fazer abrandar um swift.
Ao meu lado, Cal limita-se a assentir, única indicação de que
fiz alguma coisa certa. Mas sabe bem na mesma.
— Trinta metros. Banshee.
Tapando os ouvidos com as mãos, esforço a vista no alvo,
intentando um relâmpago sem usar os dedos. Um raio sai-me
disparado do corpo, arqueando como um arco-íris. Falha o
alvo, mas eu esparrinho a eletricidade, fazendo as faíscas
explodirem em diferentes direções.
— Cinco metros. Silêncio.
O pensamento de um Arven inunda-me de pânico. Tento
focar-me. A minha mão desvia-se para uma arma que não está
lá e finjo disparar para o alvo. — Bang.
Cal bufa ligeiramente. — Isso não conta, mas tudo bem.
Cinco metros, magnetron.
Esse conheço eu intimamente. Com quanta força posso
congregar, lanço uma relampejante explosão para o alvo. Este
desfaz-se em dois, fendendo-se bem ao meio.
— Teoria? — diz uma voz suave atrás de nós.
Estava tão focada no alvo que não reparei em Julian ali
postado a olhar, com Kilorn a seu lado. O meu antigo
professor brinda-me com um sorriso contido, as mãos cruzadas
atrás das costas ao seu modo habitual. Nunca o vi tão
informalmente vestido, com uma leve camisa de algodão e
calções revelando umas finas pernas de galinha. Cal deveria
pô-lo num esquema de pesos também.
— Teoria — confirma Cal. — De certo modo. — Faz-me
sinal para baixo, dando-me um breve descanso. Sento-me
imediatamente por terra, de pernas estendidas. Apesar do
constante esquivar, é o relampejar que me deixa cansada. Sem
a adrenalina da batalha ou a ameaça da morte pendendo-me
sobre a cabeça, o meu vigor é decididamente menor. Para não
mencionar o facto de que estou mais ou menos há seis meses
sem praticar. Com movimentos suaves, Kilorn adianta-se e põe
uma garrafa de água gelada ao meu lado.
— Achei que podias precisar disto — diz com uma
piscadela de olho.
Lanço-lhe um sorriso arreganhado. — Obrigada — logro
dizer, antes de engolir uns quantos frescos tragos. — O que
está a fazer aqui, Julian?
— Ia a caminho dos arquivos. E então decidi ver que
alvoroço era este. — Faz um gesto por sobre o ombro. Sofro
um choque à vista de sensivelmente uma dúzia de pessoas
reunidas na orla da carreira de tiro, todas de olhos fitos em
nós. Em mim. — Ao que parece tens uma pequena audiência.
Cerro os dentes. Fantástico.
Cal muda de posição, muito ligeiramente, para me ocultar
de vista. — Desculpa. Não te queria quebrar a concentração.
— Tudo bem — digo-lhe, forçando-me a levantar. Os meus
membros gemem em protesto.
— Bem, vejo-vos a ambos mais tarde — diz Julian, olhando
de mim para Cal e vice-versa.
Apresso-me a responder. — Podemos ir consigo…
Mas ele corta-me a palavra com um sorriso sabedor,
acenando para a multidão de basbaques. — Oh, acho que tem
apresentações a fazer. Kilorn, importas-te?
— De todo — replica Kilorn. Tenho ganas de lhe tirar com
um estalo o sorriso arreganhado da cara, e ele sabe-o. — Sigo-
te, Mare.
— Muito bem — forço através do maxilar crispado.
Lutando contra o meu natural instinto de me esgueirar para
fora das atenções, dou alguns passos na direção dos
sanguenovos. Mais uns. Mais uns. Até que os alcanço, com
Cal e Kilorn a meu lado. No Entalhe, eu não queria amigos. É
mais difícil dizer adeus a amigos. Isso não mudou, mas vejo o
que Kilorn e Julian estão a fazer. Não me posso fechar mais
aos outros. Tento forçar um sorriso vencedor para as pessoas à
minha volta.
— Viva. Sou a Mare. — Soa estúpido e sinto-me estúpida.
Uma dos sanguenovos, a teletransportadora, balança a
cabeça. Usa uniforme verde-floresta de Montfort, tem pernas
compridas e cabelo castanho cortado curto. — Sim, nós
sabemos. Eu sou a Arezzo — diz, estendendo uma mão. —
Fui eu que te teletransportei e ao Calore de Archeon.
Não admira que não a reconhecesse. Os minutos após a
minha fuga são ainda um borrão de medo, adrenalina, e
avassalador alívio. — Pois, claro. Obrigada por isso. —
Pestanejo, tentando lembrar-me dela.
Os outros são igualmente amigáveis e abertos, tão
agradados por conhecer outro sanguenovo como eu estou.
Todos neste grupo são naturais de Montfort ou seus aliados,
usando uniformes verdes com triângulos brancos no peito e
insígnias em cada bíceps. Alguns são fáceis de decifrar —
duas linhas ondulantes para o sanguenovo do género nymph,
três setas para o swift. Mas ninguém tem medalhas ou
distintivos. Não há como dizer quem poderá ser oficial. No
entanto todos têm treino militar, se não educação militar.
Usam os últimos nomes e têm firmes apertos de mão, cada
qual um soldado nato ou feito. A maioria conhece Cal de vista
e acena para ele de uma forma muito oficial. A Kilorn,
saúdam-no como a um velho amigo.
— Onde está a Ella? — questiona Kilorn, dirigindo a
pergunta para um homem de pele negra e cabelo
chocantemente verde. Pintado, claramente. O seu nome é
Rafe. — Mandei-lhe mensagem para vir cá conhecer a Mare.
A Tyton também.
— Da última vez que vi, estavam a praticar no cimo da
Colina Trovejante. Que, tecnicamente — olha de relance para
mim, quase apologético —, é onde os eletricões supostamente
devem treinar.
— O que é um eletricão? — pergunto, e imediatamente me
sinto idiota.
— Tu.
Suspiro, encabulada. — Pois. Percebi-o assim que
perguntei.
Rafe faz flutuar uma faísca sobre a sua mão, deixando-a
descrever-lhe uma teia entre os dedos. Sinto-a, mas não como
os meus relâmpagos. As faíscas verdes respondem-lhe a ele e
só a ele. — É uma palavra bizarra, mas nós somos coisas
bizarras, não somos?
Fito-o, quase esbaforida de excitação. — Tu és… como eu?
Ele assente, indicando os relâmpagos nas suas mangas. —
Sim, somos.
A Colina Trovejante é tal e qual como soa. Ergue-se num
suave declive no meio de outro campo na extremidade oposta
da base, o mais longe possível do aeródromo. Menos hipóteses
de se atingir um jato com um raio extraviado. Fico com a
sensação de que a colina é uma nova adição, a julgar pela terra
solta sob os meus pés à medida que nos aproximamos do
cume. A relva é recente também, obra de um greeny ou
equivalente sanguenovo. É mais farta do que a do campo de
treino. Mas o topo do declive está num caos, terra carbonizada
e compactada, entrecruzada de fissuras e com o odor de uma
trovoada distante. Enquanto o resto da base desfruta de
luminosos céus azuis, uma nuvem negra revolve-se sobre a
Colina Trovejante. Uma carregada nuvem de trovoada,
elevando-se milhares de metros no céu como uma coluna de
fumo escuro. Nunca vi uma coisa assim, tão controlada e
contida.
A mulher de cabelo azul de Archeon está postada sob a
nuvem, de braços estendidos, palmas viradas para a trovoada.
Um homem de costas direitas e cabelo branco espetado como
a crista de uma onda afasta-se dela recuando, magro e enxuto
no seu uniforme verde. Ambos têm insígnias de relâmpagos.
Faíscas azuis dançam sobre as mãos da mulher, pequenas
como vermes.
Rafe conduz-nos, com Cal bem junto ao meu lado. Embora
ele lide com a sua quota de relâmpagos, a nuvem negra põe-no
tenso. Está sempre a olhar para cima, como que à espera que
ela expluda. Um clarão azul lampeja debilmente na escuridão,
iluminando-a por dentro. Com ele ribombam trovões, baixos e
vibrantes como um ronronar de gato. Arrepia-me os ossos.
— Ella, Tyton — chama Cal. Acena com uma mão.
Eles viram-se aos seus nomes, e os lampejos nas nuvens
detêm-se abruptamente. A mulher baixa as mãos, ocultando as
palmas, e a nuvem negra começa a dissolver-se ante os nossos
olhos. Ela desce aos saltos, esfuziante de energia, seguida do
homem, mais estoico.
— Interrogava-me quando é que nos conheceríamos — diz
ela, a sua voz aguda e ofegante a condizer com a sua delicada
estatura. Sem aviso, pega-me nas mãos e beija-me em ambas
as faces. O seu toque provoca um choque, faíscas pulando da
sua pele para a minha. Não faz doer, mas certamente arrebita-
me. — Eu sou a Ella, e tu és a Mare, claro. E este copázio de
água é o Tyton.
O homem em questão é decerto alto, com pele avermelhada,
um polvilhar de sardas e um maxilar mais pronunciado que a
orla de um penhasco. Com um jeito de cabeça lança o cabelo
branco para um lado, deixando-o cair-lhe sobre o olho
esquerdo. Pisca o direito. Contava que ele fosse velho, com
um cabelo daqueles, mas não pode ter mais de vinte e cinco
anos. — Olá — é tudo o que diz, a sua voz profunda e segura.
— Ei. — Assinto para os dois, subjugada simultaneamente
pela presença deles e pela minha própria inaptidão para agir de
forma minimamente normal. — Desculpem, isto é a modos
que um choque.
Tyton revira os olhos, mas Ella irrompe numa gargalhada.
Meio segundo depois percebo e retraio-me.
Cal solta uma risadinha a meu lado. — Que coisa mais bera,
Mare. — Toca-me no ombro o mais discretamente que pode,
um sopro cálido emanando dele. Um muito pequeno conforto
no calor do Piedmonte.
— Nós percebemos — adianta Ella rapidamente,
afugentando as palavras. — É sempre subjugador conhecer
outro Ardente, quanto mais três com a nossa aptidão. Certo,
rapazes? — Dá uma cotovelada a Tyton no peito e ele mal
reage, irritado. Rafe assente simplesmente. Fico com a
sensação de que Ella é a que mais fala e, com base no que me
lembro do relampejar azul em Archeon, a que mais luta. —
Vocês fazem-me desesperar — resmunga Ella baixinho,
abanando a cabeça para eles. — Mas agora tenho-te a ti, não
tenho, Mare?
A sua natureza ardente e sorriso franco apanham-me
seriamente desprevenida. As pessoas assim tão simpáticas
escondem sempre alguma coisa. Engulo a minha suspeita o
bastante para lhe dirigir o que espero seja um genuíno sorriso.
— Obrigada por a trazeres — acrescenta ela para Cal,
mudando de tom. A vivaça duende de cabelo azul empertiga a
espinha e endurece a voz, transformando-se num soldado ante
os meus olhos. — Acho que podemos tê-la a treinar aqui.
Cal solta uma risada surda. — Sozinhos? Estás a falar a
sério?
— E tu estavas? — dispara ela, semicerrando os olhos. —
Eu vi a tua «prática». Pequenas explosões numa carreira de
tiro mal chegam para maximizar as aptidões dela. Ou sabes
como levá-la a explodir numa tempestade?
Com base na forma como os lábios dele se contraem, bem
vejo que ele quer dizer algo decididamente inapropriado.
Detenho-o antes que possa fazê-lo, agarrando-lhe o pulso. —
Os antecedentes militares de Cal…
— …são muito bons para condicionamento. — Ella
interrompe-me. — E perfeitos para te treinar para lutares
contra Prateados da forma como ele faz. Mas as tuas aptidões
estendem-se além do seu entendimento. Há coisas que ele não
te pode ensinar, coisas que tens de aprender duramente, por ti
própria, ou facilmente… connosco.
A lógica dela é sólida, ainda que inquietante. Há coisas que
o Cal não me pode ensinar, coisas que ele não entende.
Lembro-me de quando comecei a treinar Cameron — não
conhecia a sua aptidão da mesma forma que conhecia a minha.
Era como falar uma língua diferente. Ainda era capaz de
comunicar, mas não verdadeiramente.
— Ficarei a assistir, então — diz Cal com empedernida
resolução. — É aceitável?
Ella arreganha um sorriso, a sua disposição retomando a sua
jovialidade. — Claro. Embora eu te aconselhasse a manteres-
te à distância e alerta. O relampejar é como um potro
selvagem. Por mais que lhe cerceemos a rédea, ele tentará
sempre correr desenfreado.
Ele lança-me um último olhar e o mais ínfimo vislumbre de
sorriso de apoio antes de se dirigir para a orla da colina, bem
para lá do anel de marcas de explosão. Quando lá chega,
deixa-se cair e reclina-se sobre os braços, os olhos assestados
em mim.
— Ele é simpático. Para um príncipe — adianta Ella.
— E um Prateado — intervém Rafe.
Olho de relance para ele, confusa. — Não há Prateados
simpáticos em Montfort?
— Sei lá. Nunca lá estive — replica ele. — Nasci no
Piedmonte, lá em baixo nas Floridians. — Afasta os dedos no
ar, ilustrando a cadeia de ilhas pantanosas. — Montfort
recrutou-me há uns meses.
— E vocês dois? — Olho de Ella para Tyton e vice-versa.
Ella é rápida a responder. — Prairie. Das Sandhills31. É terra
de corsários, e a minha família vivia a mudar. Por fim
radicámo-nos a oeste nas montanhas. Montfort anexou-nos
quase há dez anos. Foi então que conheci Tyton.
— Nascido em Montfort — diz ele, como se isso fosse uma
explicação. Não é lá muito falador, provavelmente porque Ella
fala o bastante por nós todos. Ela encaminha-me para o centro
do que só pode chamar-se uma zona de explosão, até eu estar
diretamente abaixo da nuvem de tempestade que se dissipa
ainda.
— Bem, deixa cá ver com o que trabalhamos nós — diz
Ella, pondo-me no lugar com um ligeiro empurrão. A brisa
despenteia-lhe o cabelo, soprando-lhe cachos azul-brilhante
por sobre o ombro. Movendo-se em simultâneo, os outros dois
posicionam-se à minha volta, até formarmos os quatro cantos
de um quadrado. — Começa em pequena escala.
— Porquê? Eu posso…
Tyton levanta os olhos. — Ela quer verificar o teu controlo.
Ella assente.
Respiro fundo. Excitada que estou com camaradas
eletricões, sinto-me um bocadinho como uma criança
superprotegida. — Muito bem. — Com as mãos em concha,
congrego os relâmpagos, deixando que entrecortadas faíscas
púrpura-esbranquiçadas se desloquem em torno dos dedos.
— Faíscas púrpura? — diz Rafe de sorriso arreganhado. —
Giro.
Olho as cores não naturais nas cabeças deles, com um
sorriso malicioso. Cachos verdes, azuis, brancos.
— Não faço tenção de pintar o cabelo.
O verão atinge o Piedmonte com um impiedoso braseiro e Cal
é a única pessoa capaz de suportá-lo. Arquejando do esforço e
do calor, dou-lhe uma pancada nas costelas até ele se afastar
rolando. Ele fá-lo lentamente, preguiçosamente, quase se
deixando adormecer. Mas em vez disso vai longe de mais e cai
da cama estreita para o duro chão laminado. Isso acorda-o. Dá
um pulo em frente, o cabelo negro todo espetado, nu como
veio ao mundo.
— Pelas minhas cores — pragueja, esfregando o couro
cabeludo.
Pouca piedade tenho pela sua dor. — Se não insistisses em
dormir num glorificado armário de vassouras não teríamos
este problema. — Até mesmo o teto, blocos de reboco
manchado, é deprimente. E a única janela aberta nada faz
quanto ao calor, especialmente a meio do dia. Não quero
pensar nas paredes ou em quão finas serão. Pelo menos ele não
tem de partilhar a camarata com outros soldados.
Ainda no chão, Cal resmunga. — Eu gosto da caserna. —
Apalpa à procura de uns calções antes de os enfiar. Depois vão
as pulseiras, ajustando-se com um estalido de volta aos pulsos.
Os fechos são complicados, mas ele fá-los deslizar como se
fossem uma segunda natureza. — E tu não tens de partilhar o
quarto com a tua irmã.
Mudo de posição e enfio uma camisola pela cabeça. O
nosso intervalo do meio-dia acabará dentro de uns minutos e
esperam-me na Colina Trovejante daqui a pouco. — Tens
razão. Só tenho de superar a pequena coisa de dormir sozinha.
— Claro está, por coisa refiro-me a um trauma ainda
debilitante. Tenho terríveis pesadelos se não tiver ninguém no
quarto comigo.
Cal imobiliza-se, a camisola meio enfiada na cabeça. Inspira
fundo, crispado. — Não era isso que eu queria dizer.
É a minha vez de resmungar. Puxo os lençóis de Cal. Roupa
de cama militar, tantas vezes lavada que estão quase
transparentes de tão gastos. — Eu sei.
A cama mexe-se, as molas rangendo, quando ele se inclina
na minha direção. Os seus lábios roçam-me o cimo da cabeça.
— Tens tido mais pesadelos?
— Não. — Respondo tão depressa que ele ergue uma
sobrancelha desconfiada, mas é verdade. — Desde que a Gisa
esteja lá. Ela diz que eu não emito um som. Ela, por outro
lado… tinha-me esquecido de como tanto barulho podia provir
de uma pessoa tão pequena. — Rio para comigo própria e
encontro a coragem de o olhar nos olhos. — E tu?
Lá no Entalhe dormíamos lado a lado. Na maior parte das
noites ele virava-se e revirava-se, murmurando no sono. Às
vezes gritava.
Um músculo contrai-se-lhe no maxilar. — Só alguns. Talvez
duas vezes por semana, que eu me lembre.
— Com quê?
— Com o meu pai, sobretudo. Contigo. Como foi lutar
contra ti, ver-me a tentar matar-te e não ser capaz de fazer
nada para detê-lo. — Cerra as mãos à recordação do sonho. —
E com Maven. Quando era pequeno. Seis ou sete anos.
O nome ainda me parece ácido vertido sobre os meus ossos,
mesmo tendo passado tanto tempo desde que o vi pela última
vez. Ele protagonizou várias transmissões e comunicados
desde então, mas eu recuso-me a vê-los. As minhas memórias
dele são suficientemente aterrorizadoras. Cal sabe disso, e por
respeito para comigo não fala absolutamente nada do irmão.
Até agora. Tu é que perguntaste, sacudo-me a mim própria.
Cerro os dentes, sobretudo para tentar impedir-me de vomitar
todas as palavras que não lhe contei. Demasiado doloroso para
ele. De nada servirá saber em que tipo de monstro o irmão foi
forçado a tornar-se.
Ele prossegue, os olhos muito longe, recordando. — Ele
tinha medo do escuro, até que um dia simplesmente deixou de
ter. Nos meus sonhos, ele está a brincar no meu quarto, mais
ou menos a andar às voltas. A olhar para os meus livros. E a
escuridão segue-o. Eu tento dizer-lhe. Tento avisá-lo. Ele não
se rala. Não se importa. E eu não posso detê-la. Ela engole-o
todo. — Devagar, Cal passa a mão pelo rosto. — Não é
necessário ser-se um whisper para saber o que isso significa.
— Elara está morta — murmuro, movendo-me de modo a
ficarmos lado a lado. Como se isso servisse de algum conforto.
— E ele mesmo assim levou-te. Mesmo assim fez coisas
horríveis. — Cal fita o chão, incapaz de me suster o olhar. —
Simplesmente não consigo entender porquê.
Eu podia manter-me calada. Ou distraí-lo. Mas as palavras
fervilham-me furiosamente na garganta. Ele merece a verdade.
Relutante, pego-lhe na mão.
— Ele lembra-se de te amar, de amar o vosso pai. Mas ela
arrebatou esse amor, disse ele. Extirpou-lho como um tumor.
Tentou fazer o mesmo com os sentimentos dele por mim… e
por Thomas antes disso… mas não resultou. Certos tipos de
amor… — Falta-me o fôlego. — Disse ele que são mais
difíceis de remover. Julgo que a tentativa o retorceu, ainda
mais do que era. Ela tornou-lhe impossível abrir mão de mim.
Tudo o que ele sentia por nós dois foi corrompido,
transformado em algo pior. Contigo, em ódio. Comigo, em
obsessão. E nada há que qualquer um de nós pudesse fazer
para mudá-lo. Acho que nem mesmo ela podia desfazer o que
ela própria fez.
A sua única resposta é silêncio, deixando a revelação pairar
no ar. Parte-se-me o coração pelo príncipe exilado. Dou-lhe o
que julgo ele precisar. A minha mão, a minha presença e a
minha paciência. Ao fim de muito, muito tempo, abre os
olhos.
— Que eu saiba, não há sanguenovos whispers — diz. —
Nem um que eu tenha encontrado ou de que tenha ouvido
falar. E bem que procurei.
Por isto não esperava eu. Pisco os olhos, confusa.
— Os sanguenovos são mais fortes que os Prateados. E
Elara era simplesmente Prateada. Se alguém conseguir…
conseguir consertá-lo, não vale a pena tentar?
— Não sei — é tudo o que posso dizer. Só a ideia me deixa
embotada, e eu não sei o que sentir. Se Maven pudesse ser
curado, por assim dizer, seria isso suficiente para redimi-lo?
Certamente não mudará o que ele fez. Não só a mim e a Cal, e
ao seu pai, mas a centenas de outras pessoas. — Não sei
mesmo.
Mas isso dá esperança a Cal. Vejo-a lá, qual minúscula luz à
distância dentro dos seus olhos. Suspiro, alisando-lhe o cabelo.
Precisa de outro corte com mão mais firme que a dele. —
Acho que se a Evangeline pode mudar, talvez qualquer pessoa
possa.
A sua súbita risada ecoa-lhe no fundo do peito. — Oh, a
Evangeline é a mesma de sempre. Simplesmente tinha mais
incentivo para te deixar ir do que para te deixar ficar.
— Como sabes?
— Porque sei quem lhe disse que o fizesse.
— O quê? — pergunto bruscamente.
Com um suspiro, Cal levanta-se e atravessa o quarto. A
parede oposta é toda composta de armários, na sua maioria
vazios. Não tem muitos pertences além da sua roupa e um ou
outro equipamento tático. Para minha surpresa, põe-se a andar
de um lado para o outro. Faz-me cerrar os dentes.
— A Guarda bloqueou todas as tentativas que eu fiz para te
ter de volta — diz, movendo rapidamente as mãos enquanto
fala. — Nem mensagens, nem apoio para infiltrações. Espiões
de espécie alguma. Eu não ia ficar sentado naquela base gelada
à espera que alguém me dissesse o que fazer. De modo que
entrei em contacto com alguém em quem confio.
A constatação é como um murro no meu estômago. —
Evangeline?
— Pelas minhas cores, não — arqueja ele. — Mas a
Vovobel, a minha avó… a mãe do meu pai…
Anabel Lerolan. A rainha decana. — Chamas-lhe…
Vovobel?
Ele cora de prata e o meu coração dá um salto. — Força de
hábito — resmunga. — Seja como for, ela nunca foi à corte
enquanto Elara esteve presente, mas pensei que acaso o fizesse
depois de ela morrer. Ela sabia o que Elara era, e conhece-me.
Teria visto além da mentira da rainha. Teria entendido o papel
de Maven na morte do nosso pai.
Comunicação com o inimigo. Não há forma de que Farley
pudesse saber disto, ou o Coronel. Príncipe de Norta ou não,
qualquer um dos dois o teria abatido a tiro se soubesse.
— Estava desesperado. E ao retardador, foi mesmo, mesmo
estúpido — acrescenta. — Mas resultou. Ela prometeu
libertar-te quando a oportunidade se apresentasse. O
casamento foi essa oportunidade. Ela deve ter dado apoio a
Volo Samos para assegurar a tua fuga, e valeu a pena. Estás
aqui agora devido a ela.
Falo devagar. Tenho de entender. — Então deste-lhe a
conhecer que a invasão de Archeon estava iminente?
Ele volta para junto de mim a toda a velocidade, ajoelhando
e tomando-me ambas as mãos. Os seus dedos estão a arder de
quentes, mas forço-me a não me afastar. — Sim. Ela está mais
aberta a estabelecer contacto com Montfort do que eu me tinha
apercebido.
— Ela comunicou com eles?
Ele pisca os olhos. — Ainda o faz.
Por um segundo, tomara eu ter cores com as quais
praguejar. — Como? Como é isto possível?
— Depreendo que não queiras uma explicação de como
funcionam os rádios e radiodifusoras. — Sorri. Eu não me rio
da piada. — Montfort está obviamente aberto a trabalhar com
Prateados, seja em que capacidade for, para atingir os seus
objetivos. Isto é uma… — procura as palavras certas —
parceria equitativa. Eles querem a mesma coisa.
Quase zombo de incredulidade. A realeza Prateada a
trabalhar com Montfort… e a Guarda? Soa positivamente
grotesco. — E o que querem eles?
— Maven fora do trono.
Um arrepio percorre-me apesar do calor de verão e da
proximidade do corpo de Cal. Lágrimas incontroláveis
assomam-me aos olhos.
— Mas querem um trono ainda assim.
— Não…
— Um rei Prateado para Montfort controlar, mas um rei
Prateado não obstante. Vermelhos na lama, como sempre.
— Garanto-te, não é disso que se trata.
— Longa vida a Tiberias Sétimo — sussurro. Ele retrai-se.
— Quando as casas se rebelaram, Maven interrogou-os. E
cada um deles morreu dizendo essas palavras.
O rosto dele abate-se de tristeza. — Eu nunca pedi isso —
murmura. — Nunca quis isso.
O jovem ajoelhado à minha frente nasceu para uma coroa. O
querer nada teve que ver com a sua educação. O querer foi-lhe
arrebatado desde tenra idade, substituído por dever, pelo que o
seu miserável pai lhe disse que um rei devia ser.
— Então o que queres tu? — Quando Kilorn me fez esta
mesma pergunta, deu-me foco, propósito, um caminho claro
na escuridão. — O que queres tu, Cal?
Ele responde rapidamente, os olhos flamejantes. — A ti. —
Os seus dedos apertam os meus, quentes mas com temperatura
constante. Ele está a conter-se tanto quanto possível. — Estou
enamorado de ti, e quero-te mais do que tudo no mundo.
Amor não é palavra que usemos. Sentimo-lo, intentamo-lo,
mas não o dizemos. Soa tão final, uma declaração da qual não
há retorno fácil. Eu sou uma ladra. Conheço as minhas saídas.
E fui prisioneira. Odeio portas trancadas. Mas os seus olhos
estão tão próximos, tão ávidos. E é o que sinto. Ainda que as
palavras me aterrorizem, são a verdade. Eu não disse que
começaria a dizer a verdade?
— Amo-te — sussurro, inclinando-me para diante para
encostar a testa à sua. Pestanas que não as minhas adejam-me
junto à pele.
— Promete-me. Promete-me que não partirás. Promete-me
que não voltarás. Promete-me que não irás fazer tudo pelo que
o meu irmão morreu.
O seu suspiro grave sopra-me no rosto.
— Prometo.
— Lembras-te quando dissemos um ao outro nada de
distrações?
— Sim. — Ele passa-me um dedo abrasador pelos brincos,
tocando um de cada vez.
— Distrai-me.
31
Dunas. (N. da T.)
CAPÍTULO VINTE E SEIS

Mare

O meu treino continua a aumentar, deixando-me exausta. É


pelo melhor. A exaustão torna fácil dormir e difícil ralar-
me. De cada vez que a dúvida me puxa pelo cérebro, quanto a
Cal, ao Piedmonte ou seja o que for que mais venha, estou por
de mais cansada para acalentar os pensamentos. Corro e treino
com pesos com Cal de manhã, tirando vantagem dos efeitos
que perduram da Pedra Silenciosa. Após a sua opressão, nada
físico parece difícil. Ele deixa-se igualmente deslizar para um
bocadinho de teoria entre voltas, embora eu lhe assegure que
Ella tem isso em conta. Ele encolhe simplesmente os ombros e
continua. Não menciono que o treino dela é mais brutal,
concebido para matar. Cal foi criado para combater, mas com
um curador de pele nos bastidores. A sua versão de luta é
muito diferente da dela, que se foca em total aniquilação. Cal
está mais orientado para a defesa. A sua relutância em matar
Prateados a menos que absolutamente necessário é posta em
cru destaque pelas horas que passo com os eletricões.
Ella é um pé de vento. As suas tempestades formam-se com
ofuscante velocidade, tecendo nuvens negras de céus limpos
para alimentar uma impiedosa fuzilaria de relâmpagos.
Lembro-me dela em Archeon, brandindo uma arma com uma
mão e relâmpagos com a outra. Só a rapidez de pensamento de
Iris Cygnet a impediu de transformar Maven numa pilha de
cinzas e fumo. Não acho que o meu relampejar venha a ser
alguma vez tão destrutivo como o dela, não sem anos de
treino, mas a sua tutela é inestimável. Com ela aprendo que
relâmpagos de trovoada são mais poderosos do que quaisquer
outros, mais ardentes que a superfície do sol, com força para
fender mesmo vidro de diamante. Um só raio como os dela
drena-me tão completamente que mal me consigo ter de pé,
mas ela fá-lo por divertimento e tiro ao alvo. Uma vez fez-me
correr através de um campo minado, com os seus relâmpagos
de trovoada, para testar a minha destreza de pés.
Os relâmpagos de teia, como Rafe lhes chama, são mais
familiares. Ele usa raios e faíscas congregados das suas mãos e
pés, usualmente em grandes teias verdes, para proteger o
corpo. Conquanto também possa congregar trovoadas, prefere
métodos mais exatos e luta com precisão. O seu relampejar
pode tomar forma. Ele é melhor no escudo, um estralejante
urdir de energia elétrica que pode deter uma bala, e um chicote
para cortar pedra e osso. Este último é impressionante de
contemplar: um arco franjado de eletricidade que se move
como uma corda mortal, capaz de tudo queimar no seu
caminho. Sinto a sua força de cada vez que treinamos. Não me
magoa tanto como faria a outra pessoa qualquer, mas cada
relâmpago que não consigo controlar atinge-me fundo. Em
geral chego ao fim do dia com o cabelo em pé, e quando Cal
me beija apanha sempre um ou dois choques.
O silencioso Tyton não treina com qualquer um de nós, nem
com ninguém, verdade seja dita. Ele não deu nome à sua
especialidade, mas Ella chama-lhe relampejar pulsado. O seu
controlo da eletricidade é de pasmar. As puras faíscas brancas
são pequenas mas concentradas, contendo a força de um raio
tempestuoso. Qual bala eletrificada.
— Eu mostrava-te o relampejar cerebral — murmura-me
certo dia —, mas duvido que alguém se voluntariasse para
ajudar na demonstração.
Passamos juntos pelos círculos de treino, iniciando a longa
caminhada através da base para a Colina Trovejante. Agora
que estou com eles há algum tempo, Tyton já me dirige mais
que umas simples palavras. Ainda assim é uma surpresa ouvir
a sua voz baixa e circunspecta.
— O que é o relampejar cerebral? — pergunto, intrigada.
— É o que soa.
— Grande ajuda — desdenha Ella ao meu lado. Continua a
entrançar o cabelo berrante para libertar o rosto. Não é pintado
há algumas semanas, conforme evidencia o louro-sujo que
aparece nas raízes. — Quer ele dizer que um corpo humano
funciona à base de um pulsar de sinais elétricos. Muito
pequenos, ridiculamente velozes. Difíceis de detetar e quase
impossíveis de controlar. Estão maioritariamente concentrados
no cérebro e é mais fácil dominá-los aí.
Os meus olhos arregalam-se quando olho para Tyton. Ele
continua simplesmente a andar, o cabelo branco sobre um
olho, as mãos enfiadas nos bolsos. Sem pretensões. Como se o
que Ella acabou de dizer não fosse estarrecedor. — És capaz
de controlar o cérebro de uma pessoa? — Um medo frio corta-
me como uma faca nas entranhas.
— Não da maneira como estás a pensar.
— Como sabes…?
— Porque és muito fácil de prever, Mare. Não sou leitor de
mentes, mas sei que seis meses à mercê de um whisper
deixariam qualquer um desconfiado. — Com um suspiro
irritado, ergue uma mão. Uma faísca mais brilhante e mais
ofuscante que o sol ganha forma através dos seus dedos. Um
toque dela poderia virar um homem do avesso com a sua
força. — A Ella está a tentar dizer que eu posso olhar para
uma pessoa e fazê-la cair como uma saca de batatas. Afetar a
eletricidade no seu corpo. Provocar-lhe uma convulsão, se me
sentir misericordioso. Matá-la simplesmente, de contrário.
Olho de volta para Ella e Rafe, piscando os olhos ora para
um ora para o outro. — Algum de vocês aprendeu isto?
Ambos zombam. — Nenhum de nós tem nem de longe o
controlo requerido — diz Ella.
— O Tyton é capaz de matar uma pessoa discretamente,
sem mais ninguém saber — explica Rafe. — Podíamos estar a
jantar na messe e o presidente tombar por terra do outro lado
da sala. Convulsão. Morto. Tyton não pestaneja e continua a
comer. Claro que — acrescenta, dando uma palmada nas
costas de Tyton — não é que achemos que alguma vez o faças.
Tyton mal reage. — Que reconfortante.
Que monstruosa — e útil — maneira de usarmos a nossa
aptidão.
Nos círculos de combate, alguém grita de frustração. O som
chama a minha atenção e viro-me para dar com um par de
sanguenovos à luta. Kilorn supervisiona o treino e acena para
nós.
— Vais tentar hoje os ringues? — diz, acenando para os
círculos de terra que assinalam os pontos de combate. — Há já
algum tempo que não vejo a rapariga-relâmpago faiscar.
Sinto uma surpreendente compulsão. Treinar com Ella ou
Rafe é excitante, mas equiparar relâmpagos com relâmpagos
não é exatamente proveitoso. Não há razão para a prática de
combate contra algo com que não nos iremos defrontar durante
muito tempo.
Ella responde antes que eu possa fazê-lo, avançando. —
Nós treinamos na Colina Trovejante. E já estamos atrasados.
Kilorn ergue simplesmente um sobrolho. Quer a minha
resposta, não a dela.
— Por acaso não me importaria. Devíamos praticar contra o
que Maven tem no seu arsenal. — Tento manter um tom
diplomático. Gosto de Ella; gosto de Rafe. Até gosto do que
sei de Tyton, que é muito pouco. Mas também tenho voz. E
acho que há limites para o que podemos treinar juntos. —
Gostava de treinar aqui hoje.
Ella abre a boca para contestar, mas é Tyton quem fala
primeiro. — Muito bem — diz. — Com quem?
— Com a coisa mais parecida com Maven que tivermos.
— Sabes, eu sou muito melhor nisto do que ele.
Cal estende um braço acima da cabeça, o bíceps retesando-
se contra o fino algodão. Abre-se num sorriso quando olho,
desfrutando da atenção. Eu lanço simplesmente um olhar
fulgurante e cruzo os braços sobre o peito. Ele não acedeu ao
meu pedido, mas também não disse que não. E o facto de Cal
encurtar a sua própria rotina de treino para vir até aos círculos
de combate já diz bastante.
— Bom. Isso tornará mais fácil combatê-lo. — Tenho
cautela com as palavras. — Combatê-lo, não matá-lo. Desde
que Cal mencionou a sua busca de alguém capaz de
«consertar» o seu irmão, tenho de andar em bicos de pés. Por
mais que queira matar Maven pelo que ele me fez, não posso
dar voz a esses pensamentos. — Se eu treinar contra ti, ele não
será difícil de todo.
Ele raspa a terra debaixo dos pés. Testando o terreno. —
Nós já combatemos.
— Sob a influência de um whisper. Outra pessoa puxava os
cordelinhos. Não é o mesmo.
Na orla do círculo, uma pequena multidão reúne-se a
assistir. Quando Cal e eu pisamos o mesmo recinto de
combate, depressa se espalha a palavra. Acho que Kilorn até
poderá estar a recolher apostas, serpenteando através da mais
ou menos dúzia de sanguenovos com um sorriso manhoso. Um
deles é Reese, o curador que agredi quando fui resgatada.
Permanece à espera como os curadores de pele faziam quando
eu treinava com Prateados. A postos para consertar seja o que
for que estraguemos.
Os meus dedos tamborilam-me contra os braços,
formigando. Do fundo dos ossos invoco o relampejar. Este
eleva-se ao meu comando e sinto as nuvens formarem-se
acima das nossas cabeças. — Vais continuar a fazer-me perder
tempo, enquanto elaboras uma estratégia, ou podemos
começar?
Ele simplesmente pisca o olho e continua os seus
alongamentos. — Estou quase.
— Ótimo. — Baixando-me, passo a areia finamente moída
pelas mãos, para enxugar qualquer vestígio de suor. Cal
ensinou-me isso. Ele arreganha um sorriso e faz o mesmo.
Depois, para surpresa e deleite de muito boa gente, arranca a
camisola e atira-a para o lado.
Melhor comida e treino duro deixaram-nos a ambos mais
musculosos, mas enquanto eu sou magra e ágil, suavemente
torneada, todo ele é anguloso e linhas de definição. Já o vi
despido muitas vezes e ainda me faz parar, afoguear-me das
faces até aos dedos dos pés. Engulo a custo. Na orla da minha
visão, tanto Ella como Rafe avaliam-no com interesse.
— Estás a tentar distrair-me? — Finjo não ligar, ignorando
o calor que me afogueia o rosto.
Ele empertiga a cabeça de lado, imagem da inocência. Bate
mesmo com a mão no peito, forçando um falso arquejar como
que a dizer, Quem, eu? — Seja como for, fritavas-me a
camisola. Estou a poupar material. Mas — acrescenta,
começando a andar em círculos — um bom soldado usa
qualquer vantagem ao seu dispor.
Acima de mim, o céu continua a escurecer. Agora posso
definitivamente ouvir Kilorn a aceitar apostas. — Oh, achas
que tens vantagem? Que querido. — Os meus pés movem-se
por sua própria iniciativa. Confio neles. A adrenalina é-me
familiar, nascida das Stilts, da arena de treino, de cada batalha
em que já participei. Apossa-se dos meus nervos.
Oiço a voz de Cal na minha cabeça, mesmo quando ele se
põe tenso, instalando-se numa postura por de mais familiar.
Burner. Dez metros. Deixo as mãos tombar ao longo dos
flancos, os dedos rodopiando à medida que faíscas púrpura-
esbranquiçadas me saltam da pele. Do outro lado do círculo
ele roda os pulsos — e um calor cauterizante incendeia-me as
palmas das mãos.
Solto um grito, saltando para trás e vendo que as minhas
faíscas se tornaram chamas vermelhas. Ele tomou-as de mim.
Com uma explosão de energia, arremesso-as de volta na forma
de relâmpagos. Estes ondulam, querendo virar fogo, mas eu
mantenho a concentração, impedindo as faíscas de explodirem
descontroladas.
— Primeiro golpe para Calore! — grita Kilorn na orla do
círculo. Um misto de grunhidos e vivas percorre a crescente
multidão. Ele aplaude e bate com os pés. Faz-me lembrar a
arena, as Stilts, quando ele gritava para os campeões
Prateados. — Vamos, Mare, força!
Uma boa lição, constato. Cal não tinha de abrir o nosso
combate revelando algo para que eu não estava preparada.
Podia ter-se refreado. Esperado para usar essa vantagem
invisível. Em vez disso, jogou essa cartada primeiro. Está a ser
brando comigo.
Primeiro erro.
A dez metros de distância, Cal incita, indicando-me que
continue. Mais uma provocação que outra coisa qualquer. Ele
é melhor à defesa. Quer que invista eu contra ele. Ótimo.
Na orla do círculo, Ella murmura um aviso para a multidão.
— Eu recuava, se fosse a vocês.
O meu punho cerra-se e irrompe um relâmpago. É desferido
com força ofuscante, atingindo o círculo mesmo no meio, qual
seta em cheio no alvo. Mas não penetra o solo, fazendo estalar
a terra como deveria. Em vez disso uso uma combinação de
trovoada e teia. O raio púrpura-esbranquiçado fulgura através
do círculo de combate, correndo disparado sobre a terra à
altura dos joelhos. Cal estende um braço para proteger os
olhos do clarão, usando a outra mão para ondular as faíscas à
sua volta, amalgamando-as numa abrasadora chama azul. Eu
corro disparada e irrompo do relampejar que ele não suporta
olhar. Com um rugido, deslizo direita às suas pernas,
derrubando-o. Ele atinge as faíscas e tomba, numa convulsão
de choque, enquanto me ponho em pé de um pulo.
Um calor abrasador roça-me o rosto, mas eu rechaço-o com
um escudo de eletricidade. Depois também eu sou derrubada,
as pernas varridas debaixo de mim. Caio com força de cara no
chão e sinto o sabor a terra. Uma mão agarra-me o ombro,
uma mão que queima, e eu dou ao cotovelo, apanhando-lhe o
maxilar. Também isso queima. Todo o seu corpo está em
chamas. Vermelho e laranja, amarelo e azul. Ondas de
distorção de calor pulsam dele para fora, fazendo o mundo
oscilar e ondular.
Debatendo-me, recolho uma braçada de terra e arremesso,
lançando-lhe tanta quanto posso ao rosto. Ele encolhe-se e isso
apaga-lhe parte do fogo, dando-me tempo suficiente para me
pôr de pé. Com outra oscilação de braços dou forma a um
relampejante chicote, faiscando e silvando no ar. Ele esquiva-
se a cada golpe, rolando e baixando-se, ligeiro de pés como
um bailarino. Bolas de fogo são cuspidas da minha
eletricidade, peças que não consigo inteiramente controlar. Cal
congrega-as em revoltos chicotes seus, rodeando o círculo com
um infernal braseiro. Púrpura e vermelho colidem, faíscam e
ardem, até que a terra batida debaixo de nós se revolve como
um mar tempestuoso e o céu se põe negro, chovendo
relâmpagos.
Ele dança suficientemente perto para um golpe. Sinto a
força do seu punho alastrar quando caio debaixo dele, e cheira-
me a cabelo chamuscado. Desfiro um golpe por minha vez,
fazendo-lhe aterrar brutalmente um cotovelo num rim. Ele
grunhe de dor mas responde na mesma moeda, rasgando-me as
costas com os dedos em chamas. A minha pele ondula de
bolhas e mordo o lábio para me impedir de gritar. Cal poria
termo à luta se soubesse como isto dói. Se dói… A dor
guincha-me pela espinha acima e os joelhos cedem.
Debatendo-me, estendo os braços para deter a queda, e o
relampejar impele-me de volta sobre os pés. Prolongo a dor
cauterizante, pois tenho de saber qual é a sensação. Maven
fará provavelmente pior quando a hora chegar.
Uso teia de novo, uma manobra defensiva para manter as
mãos dele fora de mim. Um forte raio amarinha-lhe pela perna
acima, através de músculos, nervos e ossos. O esqueleto de um
príncipe lampeja-me na cabeça. Abrando o golpe o bastante
para evitar danos permanentes. Ele contorce-se, caindo de
lado. Ponho-me em cima dele sem pensar, manejando as
pulseiras que o vi abrir e fechar uma dúzia de vezes. Debaixo
de mim, os seus olhos rolam e ele tenta rechaçar-me. As
pulseiras voam, cintilando cor púrpura contra as minhas
faíscas.
Um braço envolve-me o tronco, virando-me. O chão contra
as minhas costas é como uma língua de fogo branco-rubro.
Grito desta vez, perdendo o controlo. Faíscas explodem-me
das mãos e Cal voa para trás por sua própria iniciativa,
fugindo atabalhoado da fúria de relâmpagos.
Lutando contra as lágrimas persisto, enterrando os dedos
das mãos na terra. A uns metros de distância, Cal faz o
mesmo. Tem o cabelo em pé da energia estática. Estamos
ambos magoados, mas somos demasiado orgulhosos para
parar. Pomo-nos cambaleantes de pé como velhos, vacilando
sobre os membros instáveis. Sem as suas pulseiras, ele
convoca a relva a arder na orla do círculo, das brasas
formando chama. Esta é disparada contra mim no momento
em que os meus relâmpagos irrompem de novo.
Uma e outros colidem — com uma tremeluzente muralha
azul. Que silva, absorvendo a força de ambos os golpes.
Depois desaparece, qual janela transparente de tão limpa.
— Talvez da próxima vez devessem treinar na carreira de
tiro — chama Davidson. Hoje o presidente assemelha-se a
todos no seu simples uniforme verde, postado na orla do
círculo. Pelo menos do que foi um círculo. Agora a terra e a
relva formam uma confusão chamuscada, completamente
dilacerada, um campo de batalha destruído pelas nossas
aptidões.
Sibilando, sento-me no chão, silenciosamente grata pelo
fim. Até respirar me faz doer as costas. Tenho de me inclinar
para diante sobre os joelhos, cerrando os punhos contra a dor.
Cal dá um passo na minha direção, depois colapsa também,
tombando para trás sobre os cotovelos. Arqueja pesadamente,
o peito subindo e descendo do esforço. Sem forças sequer para
me brindar com um sorriso. Está coberto de suor da cabeça aos
pés.
— Sem audiência, se possível — acrescenta Davidson.
Atrás dele, à medida que o fumo se dissipa, outra muralha azul
de seja o que for divide os espectadores do nosso combate.
Com um gesto de mão de Davidson, eclipsa-se num piscar de
olhos. Ele esboça um forçado sorriso amarelo e indica o
símbolo no seu braço, a sua designação. Um hexágono branco.
— Escudo. Muito útil.
— Digo eu — vocifera Kilorn, investindo direito a mim.
Agacha-se ao meu lado. — Reese — acrescenta por sobre o
ombro.
Mas o curador de pele ruivo detém-se a uns metros de
distância. Finca os pés. — Sabes que não é assim que
funciona.
— Para com isso, Reese! — sibila Kilorn. Cerra os dentes
de exasperação. — Ela tem as costas todas queimadas e ele
mal consegue andar.
Cal pisca os olhos para mim, ainda arquejando. O seu rosto
contorce-se de preocupação e pesar, mas igualmente de dor.
Estou numa agonia e ele também. O príncipe faz todo o
possível por parecer forte e tenta sentar-se. Limita-se a soltar
um silvo, imediatamente caindo para trás.
Reese mantém-se firme. — Lutar tem consequências. Não
somos Prateados. Precisamos de saber o que fazem as nossas
aptidões aos outros. — As palavras soam ensaiadas. Se eu não
estivesse com tantas dores concordaria. Lembro-me das arenas
onde os Prateados lutavam por desporto, sem medo. Lembro-
me dos meus Treinos na Mansão do Sol. Um curador de pele
estava sempre à espera, a postos para remendar cada arranhão.
Os Prateados não se ralam quanto a magoar outra pessoa
porque os efeitos não perduram. Reese avalia-nos a ambos e
simplesmente abana um dedo admoestador. — Não correm
risco de vida. Passam vinte e quatro horas assim. É o
protocolo, Warren.
— Normalmente eu concordaria — diz Davidson. Em passo
seguro, transpõe o círculo para junto do curador e fita-o com
um olhar vazio. — Mas infelizmente preciso destes dois em
forma, e preciso já. Trata disso.
— Senhor…
— Trata disso.
A terra esgueira-se-me por entre os dedos, num ínfimo
alívio, quando cravo as mãos no solo. Se isso significa acabar
com esta tortura, ouvirei seja o que for que o presidente queira,
e fá-lo-ei com um sorriso.
O meu fato-macaco faz-me comichão e cheira a desinfetantes
químicos. Queixar-me-ia, mas não tenho capacidade cerebral.
Não depois das últimas instruções de Davidson aos
operacionais. Até mesmo o presidente parece abalado,
andando de um lado para o outro diante da longa mesa de
conselheiros militares, incluindo Cal e eu. Davidson cerra os
punhos em bola sob o queixo e fita o chão com olhos
indecifráveis.
Farley observa-o por um longo momento, antes de baixar os
olhos de relance para ler a meticulosa caligrafia de Ada. A
sanguenovo de inteligência perfeita é agora oficial,
trabalhando em estreita parceria com Farley e a Guarda
Escarlate. Não me admiraria se a bebé Clara também fosse
promovida a oficial. Dormita contra o peito da mãe, bem
apertada num porta-bebés de pano. Uma coroa de penugem
castanha-escura tinge-lhe o topo da cabeça. Parece-se mesmo
com Shade.
— Cinco mil soldados Vermelhos da Guarda Escarlate e
quinhentos sanguenovos de Montfort detêm atualmente a
guarnição de Corvium — recita Farley das notas de Ada. —
Os relatórios contabilizam as forças de Maven em milhares,
todos Prateados. Reunindo-se em Fort Patriot em Harbor Bay
e na periferia de Detraon, nas Lakelands. Não temos números
exatos ou um cômputo de aptidões.
As minhas mãos tremem sobre o tampo da mesa e
rapidamente as enfio debaixo das pernas. Mentalmente
enumero quem poderá possivelmente estar a ajudar Maven na
sua tentativa de retomar a cidade-fortaleza. Samos
desapareceu. Laris, Iral e Haven também. Lerolan, se é que se
pode crer na avó de Cal. Por mais que queira desaparecer,
forço-me a falar. — Ele tem forte apoio em Rhambos e Welle.
Strongarms, greenwardens. Arvens também. Eles conseguirão
neutralizar qualquer ataque de sanguenovos. — Não dou mais
explicações. Sei do que são capazes os Arven em primeira
mão. — Não conheço os Lakelanders, além da realeza nymph.
O Coronel inclina-se para diante, apoiando as mãos na
mesa. — Conheço eu. Combatem duramente e são resistentes.
E a sua lealdade para com o seu rei é inabalável. Se ele der o
seu apoio ao miser… — Contém-se e olha de lado para Cal,
que não reage — … a Maven, eles não hesitarão em segui-lo.
Os seus nymphs são evidentemente mais mortais, seguidos dos
storms, shivers e windweavers. Os endemoninhados
stoneskins32 são igualmente um bando temível.
Encolho-me às sucessivas nomeações.
Davidson gira nos calcanhares para encarar Tahir no seu
assento. O sanguenovo parece incompleto sem o seu gémeo e
inclina-se bizarramente, como que para compensar a sua
ausência. — Alguma atualização quanto ao prazo? — vocifera
o presidente. — Uma semana não é suficientemente apertado.
Enviesando os olhos, Tahir olha para outro lado, bem para
lá da sala. Seja para onde for que possa estar o seu gémeo. Tal
como muitas operações aqui, a localização de Rash é
confidencial, mas posso adivinhar. Salida esteve em tempos
infiltrada no exército de sanguenovos de Maven. Rash é o
substituto perfeito para ela, provavelmente trabalhando como
serviçal Vermelho algures na corte. É simplesmente brilhante.
Usando a sua ligação com Tahir, ele pode passar informações
tão rapidamente como qualquer rádio ou elo de comunicação,
sem qualquer dos seus indícios ou possibilidade de
intercetação.
— Em confirmação ainda — diz ele devagar. — Murmúrios
de… — O sanguenovo imobiliza-se e a boca descai-lhe num O
de surpresa. — Dentro de um dia. Um ataque de ambos os
lados da fronteira.
Mordo os lábios, fazendo sangue. Como pôde isto acontecer
tão rapidamente? Sem aviso?
Cal sente o mesmo. — Julguei que estivessem a vigiar os
movimentos de tropas. Exércitos não se reúnem da noite para
o dia. — Uma baixa corrente de calor alastra dele, assando-me
o flanco direito.
— Sabemos que o grosso das forças está nas Lakelands. A
nova noiva de Maven e a sua aliança deixam-nos ligeiramente
amarrados — explica Farley. — Não temos recursos
suficientes lá, agora que a maior parte da Guarda se encontra
aqui. Não podemos monitorizar três países diferentes…
— Mas estão seguros de que é Corvium? Absolutamente
seguros? — dardeja Cal.
Ada assente sem hesitação. — Todos os dados informativos
apontam para aí.
— Maven gosta de ciladas. — Odeio pronunciar o seu
nome. — Pode ser uma maquinação para nos atrair em força,
apanhar-nos em trânsito. — Lembro-me do guincho do nosso
jato dilacerado em pleno voo, desfazendo-se em pedaços
entrecortados contra as estrelas. — Ou um subterfúgio. Nós
vamos para Corvium. Ele invade o Lowcountry. Tira-nos os
alicerces de baixo dos pés.
— Razão por que esperamos. — Davidson cerra um punho
resoluto. — Deixá-los avançar primeiro de modo a podermos
contrariá-los. Se eles se contiverem, saberemos que era um
ardil.
O Coronel ruboriza-se, a pele vermelha como o olho. — E
se for uma ofensiva, pura e simples?
— Avançaremos rapidamente assim que se souberem as
intenções.
— E quantos dos meus soldados morrerão enquanto vocês
avançam rapidamente?
— Tantos como dos meus — zomba Davidson. — Não aja
como se a sua gente fosse a única a derramar sangue por isto.
— A minha…?
— Chega! — Farley manda-os calar a ambos,
suficientemente alto para acordar Clara. A bebé tem melhor
feitio do que qualquer um que eu conheça, e apenas pestaneja
ensonada à interrupção da sua sesta. — Se não pudermos obter
mais informações, então esperar é a nossa única opção. Já
cometemos erros bastantes atacando de cabeça.
Incontáveis vezes.
— É um sacrifício, admito. — O presidente parece tão
sóbrio como os seus generais, todos estoicos e de rosto
empedernido às notícias. Se outra maneira houvesse, tomá-la-
íamos. Mas nenhum de nós vê alguma. Nem mesmo Cal, que
permanece em silêncio. — Mas um sacrifício de centímetros.
Centímetros por quilómetros.
O Coronel engasga-se de ira, dando um soco na mesa de
reunião. Um jarro de vidro cheio de água balança e Davidson
endireita-o calmamente com reflexos rápidos e certeiros.
— Calore, precisarei de si para a coordenação.
Com a sua avó. Com os Prateados. Pessoas que me fitaram
e às minhas cadeias e nada fizeram até ser conveniente.
Pessoas que ainda acham que a minha família deve ser sua
escrava. Mordo a língua. Pessoas de quem precisamos para
vencer.
Cal baixa a cabeça. — O Reino da Brecha prometeu o seu
apoio. Teremos soldados Samos, Iral, Laris e Lerolan.
— O Reino da Brecha — digo em surdina, quase cuspindo.
Evangeline lá obteve a sua coroa, afinal de contas.
— E você, Barrow?
Levanto os olhos e dou com Davidson fitando-me, ainda
com a mesma expressão em branco. É impossível de decifrar.
— Temo-la a si também?
A minha família tremeluz ante os meus olhos, mas apenas
por um momento. Deveria envergonhar-me de que a minha
própria raiva, a fúria que mantenho a fervilhar na boca do
estômago e nos recessos do cérebro se sobreponha a eles
todos. A Mamã e o Papá matar-me-ão por partir outra vez.
Mas estou na disposição de me juntar a uma guerra para
encontrar algum tipo de paz.
— Sim.
32
Peles de pedra ou empedernidos. (N. da T.)
CAPÍTULO VINTE E SETE

Mare

N ão é uma cilada e não é um ardil.


Gisa acorda-me abanando-me pouco depois da meia-
noite, os seus olhos castanhos arregalados e preocupados.
Contei ao jantar à minha família o que ia acontecer. Como era
de esperar, eles não ficaram exatamente felizes com a minha
decisão. A Mamã retorceu a faca o mais que pôde. Chorou por
Shade, a ferida ainda fresca, e pela minha captura. Disse-me
quão egoísta eu era. A abandoná-los mais uma vez.
Mais tarde, as suas repreensões transformaram-se em
pedidos de desculpas e sussurros de quão corajosa sou. Por de
mais corajosa e obstinada e preciosa para ela abrir mão de
mim.
O Papá fechou-se simplesmente, os nós dos dedos brancos
sobre a bengala. Somos iguais, ele e eu. Fazemos escolhas e
arcamos com elas, ainda que seja a escolha errada.
Pelo menos Bree e Tramy entenderam. Não foram
chamados para esta missão. Isso já é conforto suficiente.
— O Cal está lá em baixo — sussurra Gisa, as suas mãos
ansiosas sobre os meus ombros. — Tens de ir.
Quando me sento direita, já de uniforme vestido, puxo-a
para um último abraço.
— Abusas disto — resmunga ela baixinho, tentando soar
jovial e contornar os soluços que lhe sufocam a garganta. —
Volta desta vez.
Assinto, mas não prometo.
Kilorn vem ao nosso encontro no corredor, de olhos
remelosos e pijama. Também ele não vem. Corvium está muito
além dos seus limites. Outro amargo conforto. Por mais que
dantes me queixasse de arrastá-lo a reboque, preocupada com
o aprendiz de pescador bom artífice de nós e nada mais,
sentirei muito a sua falta. Especialmente porque nada disso é
verdade. Ele protegeu-me e ajudou-me mais do que alguma
vez lho fiz a ele.
Abro a boca para dizer tudo isto, mas ele cala-me com um
beijo rápido na face. — Tentas sequer dizer adeus e atiro-te
pelas escadas.
— Muito bem — forço-me a dizer. Sinto um aperto no
peito, contudo, e é-me mais difícil respirar a cada degrau que
desço para o andar de baixo.
Todos esperam reunidos, sombrios como um pelotão de
fuzilamento. Os olhos da Mamã estão vermelhos e inchados,
tal como os de Bree. Ele abraça-me primeiro, levantando-me
do chão. O gigante deixa escapar um soluço na curva do meu
pescoço. Tramy é mais reservado. Farley está na entrada
também. Aperta Clara contra si, embalando-a. A Mamã irá
ficar com ela, claro está.
Tudo se tolda numa névoa, por muito que eu queira agarrar-
me a cada fragmento deste momento. O tempo passa
demasiado depressa. A cabeça anda-me à roda e, antes que me
dê conta, já saí porta fora, desci os degraus e estou enfiada a
salvo num transporte. O Papá apertou mesmo a mão de Cal ou
fui eu que imaginei? Ainda estarei a dormir? Estarei a sonhar?
As luzes da base jorram através da escuridão como estrelas
cadentes. Os holofotes cortam as sombras, iluminando a
estrada para o aeródromo. Oiço já o rugir de motores e o
guinchar de jatos a elevarem-se no céu.
Na sua maioria são jatos de largada, concebidos para
transportar velozmente grande número de soldados. Aterram
na vertical, sem pistas, e podem ser pilotados diretamente para
dentro de Corvium. Sou tomada por uma terrível sensação de
familiaridade quando entramos no nosso. Da última vez que
fiz isto passei seis meses como prisioneira e voltei feita num
fantasma.
Cal pressente o meu mal-estar. Trata de me prender no
assento, os dedos movendo-se com presteza enquanto eu fito a
grade metálica sob os meus pés. — Não voltará a acontecer —
murmura, suficientemente baixo para que só eu possa ouvir. —
Desta vez é diferente.
Tomo-lhe o rosto nas mãos, fazendo-o parar e olhar para
mim. — Então porque tenho a mesma sensação?
Os olhos de bronze buscam os meus. À procura de uma
resposta. Não encontra nenhuma. Em vez disso beija-me,
como se isso pudesse resolver tudo. Os seus lábios ardem
contra os meus. Dura mais do que deveria, especialmente com
tanta gente à nossa volta, mas ninguém faz alarde.
Quando ele recua, enfia-me alguma coisa na mão.
— Não te esqueças de quem és — sussurra.
Não preciso de olhar para saber que é um brinco, uma
minúscula pedra colorida embutida em metal. Algo com que
dizer adeus, com que dizer mantém-te a salvo, com que dizer
lembra-te de mim se nos apartarmos. Outra tradição da minha
antiga vida. Guardo-o bem apertado no punho cerrado, quase
deixando o aguçado espigão perfurar-me a pele. Só quando ele
se senta diante de mim é que olho.
Vermelho. Pois claro. Vermelho como sangue, vermelho
como fogo. Vermelho como a raiva que nos consome a ambos
vivos.
Impossibilitada de furar a orelha agora, guardo-o, tomando
o cuidado de manter a pedra minúscula a salvo. Não tardará a
juntar-se às outras.
Farley avança, vingativa, tomando o seu assento junto dos
pilotos de Montfort. Cameron segue-a de perto, lançando-me
um sorriso contido ao sentar-se. Tem finalmente um uniforme
verde oficial, tal como Farley, embora o de Farley seja
diferente. Não verde mas vermelho-escuro, com um C branco
no braço. Comando. Rapou o cabelo de novo à laia de
preparativo, desfazendo-se de centímetros de cabelo louro a
favor do seu antigo estilo. Tem um ar severo, com a retorcida
cicatriz facial e olhos azuis capazes de perfurar qualquer
armadura. Vai-lhe bem. Percebo porque a amava Shade.
Ela tem uma razão para parar de lutar, mais do que qualquer
um de nós. Mas continua. Um bocadinho da sua determinação
inunda-me. Se ela pode fazer isto, também eu posso.
Davidson é o último a embarcar no nosso jato, completando
os quarenta a bordo. Segue um pelotão de gravitrões
assinalados por insígnias de linhas descendentes. Usa ainda o
mesmo uniforme amassado, e o seu cabelo, de costume
alisado, está todo despenteado. Duvido que tenha dormido.
Isso faz-me gostar dele um bocadinho mais.
Acena-nos ao passar, percorrendo pomposamente todo o
jato para se sentar ao lado de Farley. Baixam ambos as cabeças
em reflexão quase de imediato.
O meu sentido elétrico melhorou desde o meu trabalho com
os eletricões. Posso sentir o jato integralmente até à sua
cablagem. Cada faísca, cada pulsar. Ella, Rafe e Tyton vêm
também, claro, mas ninguém ousa pôr-nos a todos num único
jato. A acontecer o pior, pelo menos não morreremos todos
juntos.
Cal mexe-se inquieto no assento. Nervoso miudinho. Eu
faço o oposto. Tento sentir-me embotada, ignorar a irada fúria
implorando por ser largada à solta. Ainda não voltei a ver
Maven desde a minha fuga, e imagino o seu rosto como estava
então. Berrando para mim através da multidão, tentando dar a
volta. Não queria deixar-me ir. E quando lhe envolver a
garganta com as mãos, não o largarei. Não me assustarei.
Apenas uma batalha se interpõe no meu caminho.
— A minha avó vai trazer tantos consigo quantos puder —
murmura Cal. — Davidson já o sabe, mas não me parece que
alguém te tenha informado.
— Oh.
— Ela tem Lerolan, as outras casas rebeldes. Samos
também.
— A Princesa Evangeline — resmungo em surdina, rindo
ainda à ideia. Cal escarnece comigo.
— Pelo menos agora tem a sua própria coroa e não tem de
usurpar a de ninguém — diz.
— Vocês dois estariam casados por esta altura. Se… — Um
se que significa tanta coisa.
Ele assente. — Casados há tempo bastante para
enlouquecermos de todo. Ela daria uma boa rainha, mas não
para mim. — Pega-me na mão sem olhar. — E daria uma
terrível esposa.
Não tenho energia para seguir esse fio de implicação, mas
uma explosão cálida desabrocha-me no peito.
O jato dá um solavanco, engrenando a todo o motor.
Rotores e motores zumbem, abafando qualquer conversa. Com
outro solavanco elevamo-nos no ar, subindo na quente noite de
verão. Fecho os olhos por um momento e imagino o que aí
virá. Conheço Corvium de fotografias e transmissões.
Muralhas de granito negro, reforços de ouro e ferro. Uma
espiralada fortaleza que dantes era a última paragem para
qualquer soldado rumando ao Caldeirão. Numa outra vida, eu
por lá teria passado. E agora está cercada pela segunda vez
este ano. As forças de Maven partiram há umas horas,
aterrando na pista de Rocasta, por elas controlada antes de
rumarem por via terrestre. Não deverão tardar a chegar às
muralhas. Antes de nós.
Centímetros por quilómetros, disse Davidson.
Espero que ele esteja certo.
Cameron lança as suas cartas para o meu colo. Quatro
ardorosas e provocadoras damas. — Quatro senhoras, Barrow
— diz ela com uma risadinha. — E agora? Vais apostar o raio
das tuas botas?
Arreganho um sorriso e arrebato as cartas para o meu
monte, descartando a minha inútil mão de números vermelhos
e um único valete preto. — Não te serviriam — respondo. —
Os meus pés não são canoas.
Ela cacareja sonoramente, atirando a cabeça para trás e
espetando os pés para a frente. Com efeito, os seus pés são
bem compridos e finos. Espero, por uma questão de recursos,
que Cameron já tenha parado de crescer. — Outra jogada —
incita ela, e estende uma mão para agarrar nas cartas. —
Aposto uma semana de lavagem de roupa.
Diante de nós, Cal interrompe os seus alongamentos
preparatórios e bufa. — Achas que a Mare lava roupa?
— E Vossa Alteza, lava? — respingo, de sorriso
arreganhado. Ele simplesmente finge que não me ouve.
O ligeiro gracejar é simultaneamente um bálsamo e uma
distração. Não tenho de cismar na batalha que temos pela
frente, se estou a ser esbulhada de couro e cabelo pela perícia
de Cameron às cartas. Ela aprendeu nas fábricas, claro está. Eu
mal percebo sequer como se joga, mas ajuda-me a manter
focada no momento.
Debaixo de nós, o jato de largada oscila, balançando numa
bolha de turbulência aérea. Após tantas horas de voo não me
inquieto e continuo a baralhar as cartas. O segundo solavanco
é maior, mas não motivo de alarme. O terceiro faz-me voar as
cartas das mãos e espalharem-se pelos ares. Sou projetada com
força contra o assento e levo as mãos atabalhoadamente ao
cinto de segurança. Cameron faz o mesmo enquanto Cal
coloca rapidamente o seu, os seus olhos lampejando para a
cabina de comando. Sigo-lhe o olhar e vejo ambos os pilotos
esforçando-se furiosamente por manter o jato nivelado.
Mais preocupante é a vista. Deveria estar a nascer o Sol por
esta altura, mas o céu à nossa frente está negro.
— Tempestades — sopra Cal, referindo-se simultaneamente
ao tempo e a Prateados. — Temos de subir.
As palavras mal lhe saem dos lábios quando sinto o jato
inclinar-se debaixo de mim, elevando-se para maior altitude.
Relâmpagos lampejam bem dentro das nuvens. Verdadeiros
relâmpagos, oriundos de nuvens de trovoada e não da aptidão
de um sanguenovo. Sinto-os pulsar como um coração distante.
Aperto mais as faixas que me prendem o peito. — Não
podemos aterrar no meio daquilo.
— Não podemos aterrar de todo — rosna Cal.
— Talvez eu possa fazer alguma coisa, parar os
relâmpagos…
— Não serão simples relâmpagos lá em baixo! — Mesmo
acima do rugir do jato que se eleva, a sua voz ribomba. Mais
do que umas quantas cabeças viram-se na sua direção. A de
Davidson é uma delas. — Windweavers e storms vão rebentar
connosco no instante em que descermos das nuvens. Far-nos-
ão despenhar.
Os olhos de Cal tremulam por todo o jato, fazendo um
balanço de todos nós. As rodas da engrenagem giram na sua
cabeça, trabalhando em marcha acelerada. O meu medo dá
lugar a fé. — Qual é o teu plano?
O jato sofre novo solavanco, sacudindo-nos nos assentos.
Cal não se deixa perturbar.
— Preciso de gravitrões e preciso de ti — acrescenta,
apontando para Cameron.
O olhar dela transforma-se em aço. Ela assente. — Acho
que sei qual é a tua ideia.
— Comuniquem via rádio com os outros jatos. Vamos
precisar de um teletransportador aqui, e eu preciso de saber
onde estão os outros gravitrões. Têm de se distribuir.
Davidson baixa o queixo num brusco assentimento. —
Ouviram-no.
Sinto um baque no estômago à implicação quando o jato
irrompe num alvoroço de atividade. Soldados verificam as
suas armas e envergam equipamento tático, com os rostos
plenos de determinação. Cal mais que todos.
Força-se a levantar do assento, agarrando-se aos apoios para
se firmar. — Ponham-nos diretamente sobre Corvium. Onde
está esse teletransportador?
Arezzo materializa-se num ápice, tombando sobre um
joelho para travar o ímpeto. — Isso não me agrada — cospe
ela.
— Infelizmente, tu e os outros teletransportadores vão ter de
fazê-lo às carradas — replica Cal. — Consegues saltar entre
jatos?
— Claro — diz ela, como se fosse a coisa mais óbvia do
mundo.
— Bom. Quando estivermos lá em baixo leva a Cameron
para o jato atrás de nós.
Lá em baixo.
— Cal — quase choramingo. Posso fazer uma data de
coisas, mas isto?
Arezzo estala os nós dos dedos, ignorando-me. —
Afirmativo.
— Gravitrões, usem os vossos cabos. Seis por corpo.
Mantenham-nos bem apertados.
Os sanguenovos em questão põem-se em pé de um pulo,
puxando cordas enroladas de aberturas especiais nos seus
coletes de segurança. Cada um tem um emaranhado de
ganchos, permitindo-lhes transportar várias pessoas com a sua
aptidão de manipularem a gravidade. Lá no Entalhe, eu
recrutei um homem chamado Gareth. Ele usava a sua aptidão
para voar ou saltar grandes distâncias.
Mas não para saltar de jatos.
Subitamente sinto-me por de mais enjoada e o suor brota-
me da testa.
— Cal? — digo de novo, a minha voz esganiçando-se.
Ele ignora-me. — Cam, a tua tarefa é protegeres o jato.
Irradia todo o silêncio que puderes… visualiza uma esfera;
ajudar-nos-á a mantermo-nos nivelados na tempestade.
— Cal? — grito. Serei a única a pensar que isto é suicídio?
Serei a única pessoa lúcida aqui? Até mesmo Farley não
parece atrapalhada, os seus lábios comprimidos numa linha
sombria enquanto se acopla a um dos seis gravitrões. Sente o
meu olhar e levanta o seu. O rosto tremula por um instante,
refletindo um grama do terror que eu sinto. Depois pisca o
olho. Por Shade, articula mudamente.
Cal força-me, ou ignorando o meu medo ou não reparando
nele. Ele próprio me prende ao gravitrão mais alto, uma
mulher esguia. Acopla-se a si próprio junto de mim, um braço
pesado sobre os meus ombros enquanto o restante do meu
corpo fica esmagado contra a sanguenovo. Por todo o jato os
outros fazem o mesmo, flanqueando as suas cordas de
salvação gravitrão.
— Piloto, qual é a nossa posição? — berra Cal por sobre a
minha cabeça.
— Cinco segundos até ao centro — vem a resposta gritada.
— Planta toda passada?
— Afirmativo, senhor! Centro, senhor!
Cal cerra os dentes. — Arezzo?
Ela faz a continência. — Pronta, senhor.
Há uma boa hipótese de eu vomitar sobre a pobre gravitrão
no meio desta colmeia de gente. — Calma — sopra-me Cal ao
ouvido. — Aguenta-te, vai correr tudo bem. Fecha os olhos.
Eu quero definitivamente fazê-lo. Agito-me, batendo nas
pernas, estremecendo. Toda eu nervos, toda eu movimento.
— Isto não é loucura nenhuma — sussurra Cal. — As
pessoas fazem isto. Os soldados treinam para coisas destas.
Aperto-o com mais força, suficiente para doer. — Tu
treinaste?
Ele engole simplesmente em seco.
— Cam, podes começar. Piloto, comece a largar.
A onda de silêncio atinge-me como uma marreta. Não o
suficiente para doer, mas a sua memória faz-me os joelhos
cederem. Cerro os dentes para me impedir de gritar e aperto os
olhos com tanta força que vejo estrelas. A calidez natural de
Cal atua como uma âncora, ainda que trémula. Aperto-lhe
mais os braços à volta das costas, como se me pudesse enterrar
dentro dele. Ele murmura-me qualquer coisa mas não consigo
ouvi-lo. Não para lá da sensação de lenta e sufocante escuridão
e ainda pior morte. O meu coração bate três vezes mais
depressa, martelando-me com força no peito até me parecer
que vai explodir de mim para fora. Não posso crer, mas de
facto quero saltar já do jato. Tudo para fugir ao silêncio de
Cameron. Tudo para parar de me lembrar.
Mal sinto o jato descer ou balançar contra a tempestade.
Cameron exala em constantes baforadas, tentando manter a
respiração regular. Se o resto do jato sente a dor da sua
aptidão, não o mostram. Descemos em silêncio. Ou talvez o
meu corpo se recuse simplesmente a ouvir mais.
Quando recuamos a monte, apinhando-nos na plataforma de
largada, apercebo-me de que é agora. O jato ronca, açoitado
por ventos que Cameron não consegue desviar. Ela berra algo
que não logro decifrar acima do martelar de sangue nos meus
ouvidos.
Depois o mundo abre-se debaixo de mim. E caímos.
Pelo menos quando a Casa Samos dilacerou o meu último
jato, no meio do ar, tiveram a decência de nos deixar numa
jaula de metal. Nada temos além do vento e chuva gelada e
redemoinhante escuridão a puxar-nos para todos os lados. O
nosso ímpeto deve ser suficiente para nos manter no alvo,
além do facto de nenhuma pessoa no seu juízo perfeito contar
que desçamos de jatos a milhares de pés de altitude no meio de
uma tempestade. O vento assobia como um grito de mulher,
assolando cada centímetro do meu corpo. Pelo menos a
pressão do silêncio de Cameron desapareceu. Os veios
relampejantes no céu chamam por mim, como que a dizer
adeus antes de eu ser transformada numa cratera.
Todos gritam na descida. Mesmo Cal.
Ainda estou a gritar quando começamos a abrandar uns
quinze metros acima dos pináculos recortados de Corvium,
espiralando por um hexágono de edifícios e muralhas
interiores. E estou rouca quando aterramos com um gentil
baque contra o chão suavemente pavimentado, escorregadio,
com pelo menos cinco centímetros de água da chuva.
A nossa sanguenovo solta-nos apressadamente a todos, e
caio para trás, não me ralando com a amargamente gelada
poça onde fico deitada. Cal põe-se em pé de um pulo.
Quedo-me ali por um segundo, pensando em nada. Apenas
de olhos fitos no céu do qual mergulhei — e de alguma forma
sobrevivi. Até que Cal me agarra no braço e me levanta,
puxando-me literalmente de volta à realidade.
— Os outros vão aterrar aqui, temos de nos mexer. —
Empurra-me à sua frente e cambaleio ligeiramente através da
água que esparrinha. — Gravitrões, Arezzo irá descer com o
próximo lote para vos teletransportar de volta para cima.
Mantenham-se a postos.
— Sim, senhor — ecoam eles, preparando-se para outra
rodada. Sou acometida de um vómito com esse pensamento.
Farley vomita já. Esvazia as tripas num beco, largando fosse
qual fosse o rápido pequeno-almoço que tomou. Esqueci-me
de que ela odeia voar, quanto mais ser teletransportada. A
largada foi o pior de uma e outra coisa.
Chego-me a ela, curvando o braço para a ajudar a pôr-se
direita. — Estás bem?
— Fina — replica. — Só a dar à parede uma camada nova
de tinta.
Olho de relance o céu, açoitando-nos ainda com chuva
gelada. Estranhamente fria para esta época do ano, mesmo no
Norte. — Vamos pôr-nos a andar. Eles ainda não estão nas
muralhas, mas hão de estar.
Cal exala um ligeiro vapor e corre o fecho do colete para
cima, para se proteger da água. — Shivers — exclama. —
Tenho a sensação de que vamos apanhar com um nevão.
— Deveríamos ir para os portões?
— Não. Estão guardados com Pedra Silenciosa. Os
Prateados não podem arrombá-los. Têm de passar por cima. —
Acena-nos e aos restantes largados pelo jato para que o
sigamos. — Temos de estar nas muralhas, prontos a rechaçar
seja o que for que eles lançarem. A tempestade é simplesmente
a vanguarda. Para nos bloquear, reduzir-nos a visão. Manter-
nos cegos até estarem em cima de nós.
O seu passo é difícil de acompanhar, especialmente através
da chuva, mas abro caminho para o seu lado de qualquer
maneira. Tenho as botas ensopadas de água e não tardo a
perder a sensibilidade dos dedos dos pés. Cal olha fixamente
em frente, como se só os seus olhos pudessem atear fogo ao
mundo. Acho que o deseja. Isso tornaria tudo mais fácil.
Mais uma vez tem de combater — e provavelmente matar
— pessoas que foi criado para proteger. Pego-lhe na mão, pois
não há palavras que possa dizer neste momento. Ele aperta-me
os dedos com força, mas larga-os com igual rapidez.
— As tropas da tua avó não podem chegar da mesma forma.
— Enquanto falo, mais gravitrões e soldados mergulham do
céu. Todos aos gritos, todos a salvo quando aterram.
Dobramos uma esquina, passando de um anel de muralha para
o seguinte, deixando-os para trás. — Como reunimos as nossas
forças?
— Eles vêm da Brecha. De sudoeste. Idealmente,
manteremos a força de Maven ocupada tempo suficiente para
eles assumirem a retaguarda. Entalamo-la entre nós.
Engulo em seco. Uma tão grande parte do plano depende do
trabalho de Prateados. Sei de mais para confiar em tais coisas.
A Casa Samos pode simplesmente não chegar e deixar-nos a
todos ser capturados ou mortos. Então ficariam livres para
desafiar Maven de uma vez. Cal não é estúpido. Sabe tudo
isto. E sabe que Corvium e a sua guarnição são inestimáveis
para serem deitados a perder. Esta é a nossa bandeira, a nossa
rebelião, a nossa promessa. Erguemo-nos contra o poder de
Maven Calore e o seu retorcido trono.
Sanguenovos patrulham as muralhas, reforçados por
soldados Vermelhos com armas e munições. Não disparam,
apenas olham à distância. Um deles, um pau de virar tripas
com um uniforme como o de Farley e um C no ombro, avança.
Troca um aperto de braços com ela primeiro, assentindo com a
cabeça.
— General Farley — diz.
Ela baixa o queixo. — General Townsend. — Depois
assente para outra alta patente de verde, provavelmente a
comandante dos sanguenovos de Montfort. A mulher baixa e
atarracada com pele brônzea e longa trança branca enrolada
em torno da cabeça retribui o gesto. — General Akkadi.
— Para onde estamos a olhar? — pergunta Farley a ambos.
Outra soldado aproxima-se de vermelho e não de verde. O
seu cabelo está diferente, pintado de escarlate, mas reconheço-
a.
— É bom ver-te, Lory — diz Farley, toda atarefada. Eu
saudaria a sanguenovo também se tivéssemos tempo. Estou
bem satisfeita por ver outra recruta do Entalhe não só viva mas
vicejante. Tal como Farley, tem o cabelo vermelho cortado
curto. Lory pertence à causa.
Assente para todos nós antes de estender um braço por
sobre os baluartes com arestas de metal. A sua aptidão consiste
em sentidos extremamente intensificados, permitindo-lhe ver
muito mais longe do que nós. — A força deles está para oeste,
de costas para o Caldeirão. Têm storms e shivers mesmo
dentro do primeiro anel de cobertura de nuvens, fora da vossa
vista.
Cal inclina-se para diante, esforçando os olhos na direção
das espessas nuvens negras e chuva torrencial. Estas
impossibilitam-no de ver para lá de nem quinhentos metros a
partir das muralhas. — Têm atiradores furtivos?
— Tentámos — suspira o General Townsend.
Akkadi corrobora. — Desperdício de munições. O vento
desvia as balas.
— Windweavers também, então. — Cal crispa o maxilar. —
Têm pontaria para isso.
O significado é claro. Os windweavers de Norta, da Casa
Laris, rebelaram-se contra Maven. Pelo que esta força é
Lakelander. Outra pessoa talvez perdesse o esgar de sorriso ou
o libertar de tensão nos ombros de Cal, mas não eu. E sei
porquê. Ele foi criado para combater Lakelanders. Este é um
inimigo que não lhe destroçará o coração.
— Precisamos da Ella. É a melhor em relâmpagos de
trovoada. — Aponto para as torres, que assomam sobranceiras
a esta secção de muralha. — Se a pusermos lá em cima ela
pode virar a tempestade contra eles. Não controlá-la, mas usá-
la como combustível.
— Bom, trata disso — diz Cal num tom seco. Vi-o
combater, em batalhas, mas nunca numa coisa assim. Torna-se
completamente noutra pessoa. Focado como laser, de forma
inumana, sem um laivo sequer do príncipe gentil e dividido.
Qualquer calidez que lhe reste é um infernal braseiro,
destinado a destruir. Destinado a vencer. — Quando os
gravitrões acabarem as largadas põe-nos aqui, uniformemente
espaçados. Os Lakelanders vão atacar as muralhas.
Dificultemos-lhes os movimentos. General Akkadi, quem mais
tem à mão?
— Uma boa mescla de defensivo e ofensivo — responde
ela. — Suficientes bombistas para transformarem a estrada do
Caldeirão num campo minado. — Com malicioso sorriso de
orgulho indica os sanguenovos nas proximidades, que têm o
que parecem ser explosões solares nos ombros. Bombistas.
Melhores que oblivions, capazes de fazer explodir alguma
coisa ou alguém à vista em vez de ao toque apenas.
— Soa como um plano — diz Cal. — Mantenha os seus
sanguenovos a postos. Ataque a seu critério.
Se Townsend se rala por receber ordens, e de um Prateado
ainda por cima, não o mostra. Tal como todos nós, ele sente o
pulsar da morte no ar. Não há lugar para políticas agora. — E
os meus soldados? Tenho um milhar de Vermelhos nas
muralhas.
— Mantenha-os lá. Balas são tão boas como aptidões, por
vezes ainda mais. Mas conserve munições. Vise apenas os que
se escaparem através da primeira vaga de defesas. Eles querem
que esgotemos forças e não vamos fazer isso. — Olha de
relance para mim. — Pois não?
Abro-me num sorriso, pestanejando para afugentar a chuva.
— Não, senhor.
A princípio interrogo-me se os Lakelanders serão demasiado
lentos para se moverem, ou demasiado estúpidos. Leva bem
quase uma hora, mas entre Cameron, os gravitrões e os
teletransportadores logramos colocar toda a gente em Corvium
com umas trinta largadas de jatos. Mais ou menos um milhar
de soldados, todos treinados e letais. A nossa vantagem, diz
Cal, jaz na incerteza. Os Prateados ainda não sabem como
lutar contra pessoas como eu. Não sabem do que somos
verdadeiramente capazes. Penso que é por isso que Cal deixa
Akkadi maioritariamente por sua conta. Ele não conhece as
suas tropas suficientemente bem para as comandar
adequadamente. Mas Vermelhos conhece ele. Isso deixa-me
um travo amargo na boca, que faço por engolir. Ao longo do
tempo tento não me interrogar quantos Vermelhos a pessoa
que amo sacrificou por uma guerra vazia.
A tempestade não se altera. Uma constante agitação e chuva
torrencial. Se é que estão a tentar inundar-nos, isso irá levar
muito tempo. A maior parte da água é drenada, mas algumas
das ruas e vielas mais baixas estão debaixo de quinze
centímetros de água turva. O que deixa Cal desconfortável.
Não para de enxugar o rosto ou puxar o cabelo para trás, a pele
exalando um ligeiro vapor no ar frio.
Farley não tem vergonha. Atirou o casaco para cima da
cabeça já há algum tempo e parece uma espécie de espetro
castanho-avermelhado. Não me parece que ela se mova
durante vinte minutos, a cabeça pousada nos braços cruzados e
de olhos fitos na paisagem. Tal como todos nós, espera um
ataque que pode vir a qualquer segundo. O que me faz cerrar
os dentes, e a constante fúria de adrenalina drena-me quase
tanto como a Pedra Silenciosa.
Dou um salto quando Farley fala.
— Lory, estás a pensar o mesmo que eu?
Noutro poleiro, Lory também tem o casaco sobre a cabeça.
Não se vira, incapaz de desligar dos seus sentidos. — Espero
bem que não.
— O quê? — pergunto, olhando de uma para a outra. O
movimento faz-me escorrer mais água da chuva pela gola da
camisola e tremo arrepiada. Cal dá por isso e chega-se mais às
minhas costas, irradiando algum do seu calor para mim.
Lentamente, Farley vira-se, tentando não ficar ensopada. —
A tempestade está a avançar. Cada vez mais próxima. Uns
passos por minuto e cada vez mais depressa.
— Merda — sopra Cal atrás de mim. Depois põe-se em
ação de um pulo, levando com ele o seu calor. — Gravitrões,
aprestem-se! Quando eu disser apertem o controlo naquele
campo. — Apertem. Nunca vi um gravitrão usar a sua aptidão
para reforçar a gravidade, só para a afrouxar. — Derrubem
seja o que for que aí vem.
Enquanto observo, a tempestade ganha velocidade, o
suficiente para ser visível à distância. Continua a redemoinhar,
mas espirala cada vez mais perto a cada rotação, as nuvens
esvaindo-se em água sobre terreno aberto. Um relampejar
estraleja bem lá dentro, uma cor pálida e vazia. Semicerro os
olhos, e, por um momento, vejo um lampejo púrpura, raiado
de força e raiva. Mas nada tenho ainda a que fazer pontaria.
Relâmpagos, por mais poderosos que sejam, de nada servem
sem um alvo.
— A força está a marchar atrás da tempestade, encurtando a
distância — grita Lory, confirmando os nossos piores medos.
— Vêm aí.
CAPÍTULO VINTE E OITO

Mare

O vento uiva. Açoita as muralhas e baluartes, soprando


mais do que uns quantos da sua posição. A chuva
congela na cantaria, tornando o nosso equilíbrio precário. A
primeira baixa é uma queda. Um soldado Vermelho, um dos de
Townsend. O vento apanha-lhe o casaco, soprando-o para trás
ao longo do escorregadio passadiço. Berra ao cair dele para
fora, mergulhando quase dez metros — antes de se elevar no
céu, fruto da concentração de um gravitrão. Aterra com força
na muralha, caindo com um nauseante som de algo a estalar. O
gravitrão não teve controlo suficiente. Mas o soldado está
vivo. Ferido, mas vivo.
— Preparem-se! — ressoa através das fileiras de soldados,
passando entre uniformes verdes e vermelhos. Quando o vento
ruge de novo firmamo-nos. Aferro-me ao metal gelado de um
baluarte, a salvo do pior. Um golpe de windweaver é
imprevisível, ao contrário do tempo meteorológico normal.
Fende-se e recurva-se, abrindo-se em garras. Tudo enquanto a
tempestade se aperta à nossa volta.
Cameron enfia-se à força junto de mim. Olho-a de relance,
surpreendida. Ela deveria estar na retaguarda com os
curadores, para formar uma última muralha contra qualquer
cerco. Se alguém pode defendê-los dos Prateados, dar-lhes
tempo e espaço para tratar os nossos soldados, é ela. A chuva
fá-la tremer arrepiada, batendo os dentes. Parece mais
pequena, mais nova, na escuridão fria que se adensa.
Interrogo-me se já terá completado sequer dezasseis anos.
— Tudo bem, rapariga-relâmpago? — diz com alguma
dificuldade. A água escorre-lhe pelo rosto.
— Tudo bem — murmuro. — O que estás a fazer aqui em
cima?
— Queria ver — diz ela, mentindo. A miúda está aqui
porque acredita que tem de estar. Estou a abandonar-vos?,
perguntou há tempos. Vejo a pergunta agora nos seus olhos. E
a minha resposta é a mesma. Se ela não quer ser uma
assassina, não deverá ter de sê-lo.
Abano a cabeça. — Tu proteges os curadores, Cameron.
Volta para junto deles. Estão indefesos, e se caírem…
Ela morde o lábio. — Caímos todos.
Entreolhamo-nos, tentando ser fortes, tentando encontrar
força uma na outra. Tal como eu, ela está ensopada. As suas
pestanas escuras colam-se umas às outras, e de cada vez que
pestaneja parece que está a chorar. As gotas de chuva aterram
com força, fazendo-nos fechar os olhos ao caírem-nos pela
cara. Até que não caem mais. Até que começam a rolar na
direção oposta, fluindo para cima. Os olhos dela arregalam-se
como os meus, olhando com horror.
— Ataque de nymph! — grito a avisar.
Acima de nós, a chuva tremula cintilante, dançando no ar,
acumulando-se em gotas cada vez maiores. E as poças, os
centímetros de água nas ruas e vielas — esses tornam-se rios.
— Preparar! — ressoa de novo. Desta vez o golpe é de água
gelada em vez de vento, espumando branca ao rebentar como
uma onda, curvando-se por sobre e através das muralhas e
edifícios de Corvium. Uma enxurrada apanha-me com força,
lançando-me a cabeça contra o baluarte, e o mundo rodopia.
Uns quantos corpos caem para lá da muralha, rodopiando
tempestade dentro. As suas silhuetas desaparecem
rapidamente, tal como os seus gritos. Os gravitrões salvam uns
quantos, mas não todos.
Cameron afasta-se deslizando, de gatas, para voltar às
escadas. Usa a sua aptidão para fazer um casulo de segurança
enquanto se apressa de volta ao seu posto, bem no interior da
segunda muralha.
Cal derrapa ao meu lado, quase se desequilibrando.
Atordoada, agarro-me a ele, puxando-o contra mim. Se ele cair
da muralha sei que simplesmente irei atrás dele. Ele observa,
aterrorizado, a água assaltando as nossas fileiras como as
vagas de um mar encapelado. Torna-o inútil. As flamas não
têm aqui lugar. O seu fogo não pode arder. E o meu relampejar
é a mesma coisa. Uma faísca e provocarei um choque em
sabe-se lá quantos dos nossos próprios soldados. Não posso
arriscar.
Akkadi e Davidson não têm tal restrição. Enquanto o
presidente lança um brilhante escudo azul na aresta da
muralha, protegendo seja quem for de cair por ela abaixo,
Akkadi ruge para as suas tropas de sanguenovos, vociferando
ordens que não consigo ouvir acima das vagas que rebentam.
A água forma espigões, estremecendo. Subitamente em
guerra consigo própria. Nós também temos nymphs.
Mas nenhum storm. Nenhum sanguenovo que possa tomar o
controlo do furacão que nos rodeia. A sua escuridão adensa-se,
tão absoluta que parece meia-noite. Lutaremos às cegas. E
ainda nem sequer começou. Ainda não vi um só dos soldados
de Maven, ou do exército Lakelander. Nem um estandarte
vermelho ou azul. Mas eles vêm aí. Vêm certamente.
Cerro os dentes. — Levanta-te.
O príncipe é pesado, tornado mais lento pelo medo.
Levando-lhe a mão ao pescoço, dou-lhe um ligeiríssimo
choque. Dos bem suaves que Tyton me ensinou. Ele põe-se em
pé de um salto, vivo e alerta. — Certo, obrigado — resmunga
baixinho. Com um olhar de relance faz um balanço. — A
temperatura está a baixar.
— Que génio — silvo. Toda eu me sinto congelada.
Acima de nós a água golpeia, furiosa, fendendo-se e
tomando nova forma. Quer abater-se, quer dissipar-se. Parte
dela fragmenta-se e passa por sobre o escudo de Davidson,
correndo direita à tempestade qual estranho pássaro. Passado
um momento a restante abate-se, encharcando-nos a todos de
novo. Um viva eleva-se seja como for. Os nymphs
sanguenovos, embora em menor número e apanhados
desprevenidos, acabam de vencer o primeiro assalto.
Cal não se junta à celebração. Em vez disso esfrega os
pulsos um contra o outro, inflamando as mãos com débeis
chamas. Estas engasgam-se na enxurrada, esforçando-se por
arder. Até que, de súbito, a chuva se transforma numa amarga
nevasca. Na mais completa escuridão, tremula vermelha,
brilhando às luzes fracas de Corvium e das flamas de Cal.
Sinto o cabelo começar a congelar-me na cabeça e sacudo o
rabo de cavalo. Lascas de gelo voam em todas as direções.
Um rugido eleva-se da tempestade, diferente do vento. Com
muitas vozes. Uma dezena, uma centena, um milhar. A negra
nevasca persiste. Brevemente, os olhos de Cal adejam,
fechando-se, e ele solta um sonoro suspiro.
— Preparar para o ataque — diz em voz rouca.
A primeira ponte de gelo atravessa o baluarte, qual espigão,
a um passo de mim e caio para trás de um salto, gemendo.
Outra fende a pedra a seis metros de distância, perfurando
soldados com as suas arestas entrecortadas. Arezzo e os outros
teletransportadores põem-se em ação de um pulo, recolhendo
os feridos para os levar até aos nossos curadores. Quase
instantaneamente, soldados Lakelanders, as suas sombras
assemelhando-se a monstros, pulam para fora das pontes —
correram gelo acima à medida que crescia. Prontos a atacar.
Já vi batalhas Prateadas antes. São um caos.
Isto é pior.
Cal mergulha em frente, os seus fogos saltando bem
ardentes e altos. O gelo é espesso, não se fundindo assim tão
facilmente, e ele trincha pedaços da ponte mais próxima qual
lenhador com uma motosserra. O que o deixa vulnerável.
Dilacero o primeiro Lakelander para chegar a ele, e as minhas
faíscas fazem rodopiar o homem couraçado escuridão dentro.
Outro segue-se rapidamente, até que a minha pele se arrepanha
com veios púrpura-esbranquiçados de sibilantes relâmpagos. A
artilharia abafa seja que ordens forem que alguém possa estar
a berrar. Foco-me em mim, em Cal. Farley mantém-se por
perto, arma assestada. Tal como Cal, põe-me nas suas costas,
deixando-me defender os seus pontos cegos. Não se encolhe
ao disparar a sua arma, massacrando a ponte mais próxima de
balas. Concentra-se no gelo, não nos guerreiros que irrompem
da nevasca. Este estala e lasca-se sob os endemoninhados,
esboroando na escuridão.
Ribombam trovões, mais próximos a cada segundo que
passa. Raios de eletricidade azul-esbranquiçada explodem
através das nuvens, abatendo-se em torno de Corvium. Das
torres, a pontaria de Ella é mortal, atacando o exterior
adjacente às muralhas. Uma ponte de gelo tomba sob a sua ira,
desfazendo-se em duas — mas torna a crescer, ganhando nova
forma no meio do ar a mando de um shiver escondido algures.
Os bombistas fazem o mesmo, obliterando fragmentos
vidrados de gelo com erupções de força explosiva. E
esgueiram-se simplesmente para trás, saltitando através de
outro baluarte. Relâmpagos verdes estralejam algures à minha
esquerda, à medida que Rafe desfere os seus chicotes sobre
uma horda furiosa de Lakelanders. O seu golpe confronta-se
com um escudo de água, que absorve a corrente à medida que
eles avançam. Mas água não detém balas. Farley criva-os de
tiros, fazendo cair uns quantos Prateados ali mesmo. Os seus
corpos resvalam para a escuridão.
Volto a minha atenção para a ponte de soldados mais
próxima. Em vez do gelo foco-me nas figuras que investem da
escuridão. As suas armaduras azuis são espessas, escamadas, e
com os seus elmos parecem inumanas. O que torna mais fácil
matá-las. Forçam-se mutuamente para diante, exercendo
pressão contra as muralhas. Uma linha serpenteante de
monstros sem rosto. Relâmpagos púrpura explodem das
minhas mãos em garra e trespassam-lhes os corações, pulando
de uma armadura para outra. O metal sobreaquece, desbotando
de azul para vermelho, e muitos caem da ponte em agonia.
Mais os substituem, irrompendo da tempestade. É uma
carnificina, um sorvedouro de morte. As lágrimas congelam-
se-me nas faces quando perco conta aos esqueletos que
dilacero.
Então a muralha da cidade fende-se sob os meus pés, um
lado resvalando para longe do outro. Um golpe abalador faz-
me estremecer os ossos. Depois outro. A fenda alarga-se.
Rapidamente escolho um lado, pulando para junto de Cal antes
que a fenda me engula inteira. Raízes insinuam-se pela fissura
acima, grossas como o meu braço e cada vez maiores.
Apartam a pedra como dedos monstruosos, fazendo alastrar
rachas araneiformes para lá dos meus pés como raios
relampejantes de pedra. A muralha resiste sob a pressão.
Greenwardens.
— A muralha vai quebrar-se — sopra Cal. — Eles arrombá-
la-ão e virão atrás de nós.
Cerro um punho. — A menos que? — Ele olha
simplesmente sem expressão, à toa. — Tem de haver algo que
possamos fazer!
— É a tempestade. Se nos conseguirmos livrar da
tempestade, ganhar visibilidade, podemos usar o nosso
alcance… — Enquanto fala pega fogo às raízes, que se
insinuam cada vez mais perto. Uma chama percorre-as,
cauterizando a planta. Esta simplesmente volta a crescer. —
Precisamos de windweavers. Soprar as nuvens para longe.
— Casa Laris. Então aguentamos até eles aqui chegarem?
— Aguentamos e esperamos que eles sejam o suficiente.
— Muito bem. Quanto a isto… — Aceno com a cabeça para
a brecha que alastra a cada segundo que passa. Um exército
Prateado não tardará a irromper através dela. — Vamos dar-
lhes um acolhimento explosivo.
Cal assente, entendendo. — Bombistas! — ruge por cima do
vento uivante e da neve. — Desçam aí e aprestem-se! —
Apontando, indica a rua que corre mesmo no interior da
muralha exterior. O primeiro lugar por onde os Lakelanders
nos invadirão.
Mais ou menos uma dúzia de bombistas ouvem-no e
obedecem, abandonando os seus postos para patrulharem a
rua. Os meus pés movem-se de sua própria volição, intentando
segui-los. Cal agarra-me o pulso e quase resvalo. — Eu não te
mandei a ti — ruge. — Ficas aqui.
Rapidamente desprendo-lhe os dedos. Apertam-me com
demasiada força, pesados como algemas. Mesmo no calor da
batalha dou comigo atirada para trás no tempo, para um
palácio onde estive prisioneira. — Cal, vou ajudar os
bombistas a aguentarem-se. Posso fazer isso. — Os seus olhos
de bronze lampejam na escuridão, quais chamas vermelhas de
duas velas acesas. — Se eles abrirem uma brecha na muralha
irás ficar rodeada. E então a tempestade será a menor das
nossas preocupações.
A sua decisão é rápida — e estúpida. — Muito bem, eu vou.
— Precisam de ti aqui. — Espalmo-lhe uma mão no peito,
empurrando-o para longe de mim. — Farley, Townsend,
Akkadi… os soldados precisam de generais na linha. Precisam
de ti na linha.
Não fosse pela batalha, Cal contestaria. Roça-me
simplesmente a mão. Não há tempo para nada. Especialmente
quando estou certa.
— Eu safo-me — digo-lhe ao saltar para longe, deslizando
sobre as pedras congeladas. A tempestade abafa a sua resposta.
Dispenso um pulsar de coração para me preocupar por ele,
para me interrogar se acaso nunca mais nos veremos de novo.
O pulsar de coração seguinte apaga o pensamento. Não tenho
tempo para isso. Tenho de me manter focada. Tenho de me
manter viva.
Levanto os pés e deslizo escadas abaixo, os corrimãos
congelados deslizando-me entre as mãos enroscadas. Na rua,
ao abrigo do vento, o ar está bastante mais tépido e as poças
desapareceram. Ou congeladas ou a água foi usada lá em cima
para assaltar os defensores da muralha de Corvium.
Os bombistas encaram a fenda na muralha, alastrando mais
a cada segundo que passa. Lá em cima nos baluartes alarga-se
ainda mais, mas aqui a fenda tem uns centímetros apenas, que
vão crescendo. Outro estremeção trespassa a pedra debaixo
dos meus pés, como uma explosão ou um terramoto no solo.
Engulo em seco, imaginando uma strongarm do outro lado da
muralha, os seus punhos fazendo chover golpe atrás de golpe
sobre os nossos alicerces.
— Esperem para atacar — digo aos bombistas. Eles olham-
me na expetativa de ordens, embora eu não seja oficial. —
Nada de explosões até estar claro que eles vêm através dela.
Não precisamos de lhes facilitar o trabalho.
— Eu escudarei a brecha durante o maior tempo possível —
diz uma voz atrás de mim.
Giro e dou com Davidson, o seu rosto raiado de sangue
cinzento que se vai fazendo preto. Parece pálido sob o sangue,
por ele aturdido. — Presidente — murmuro, baixando a
cabeça. Ele responde passado um longo momento. Atordoado
pela batalha. Tão diferente em campo do que é na sala de
guerra.
Em vez disso viro a minha eletricidade contra os nossos
atacantes. Usando as raízes como um mapa, percorro de
relâmpagos a matéria vegetal, fazendo-as enroscar-se e
espiralar ao longo do trilho da planta. Não consigo ver o
greenwarden do lado de lá, mas sinto-o. Embora embotadas
pela densa raiz, as minhas faíscas rasgam-lhe o corpo. Um
guincho distante ecoa através das fendas na pedra, de algum
modo audível acima do caos à nossa volta.
O greenwarden não é o único Prateado capaz de derrubar
pedra. Outro toma o seu lugar, um strongarm a julgar pela
forma como a pedra estremece e se racha. Golpe após golpe
mandam entulho e pó através da abertura cada vez maior.
Davidson está postado à minha esquerda, de boca
ligeiramente aberta. Entorpecido.
— Primeira batalha? — murmuro quando outro ribombante
golpe se abate certeiro.
— De todo — diz ele para minha surpresa. — Também fui
soldado em tempos. Disseram-me que estava numa lista sua?
Dane Davidson. O nome adeja-me na mente, uma borboleta
roçando as asas contra as grades de uma jaula de osso. Volta
como que através de lama, lentamente, com grande esforço. —
A lista de Julian.
Ele assente. — Homem inteligente, o Jacos. A unir pontos
que mais ninguém sequer vê. Sim, eu era um dos Vermelhos
de Norta para ser executado pela legião deles. Por crimes de
sangue, não de corpo. Quando escapei, os oficiais assinalaram-
me como morto. Para não terem de explicar outro criminoso
perdido. — Passa a língua pelos lábios gretados do frio. —
Fugi para Montfort, recolhendo outros como eu pelo caminho.
Outra racha. A abertura diante de nós alarga-se à medida
que recupero a sensibilidade dos dedos dos pés. Contorço-os
dentro das botas, preparando-me para lutar. — Soa familiar.
A voz de Davidson ganha força e ímpeto ao falar. Ao
lembrar-se da razão por que lutamos. — Montfort estava uma
ruína. Um milhar de Prateados clamando as suas próprias
coroas, cada montanha um reino, o país irreconhecível de tão
dividido. Só os Vermelhos permaneciam unidos. E os Ardentes
estavam nas sombras, à espera de serem largados à solta.
Dividir para reinar, Menina Barrow. É a única maneira de
batê-los.
O Reino de Norta, o Reino da Brecha, Piedmonte,
Lakelands. Prateados virados às gargantas uns dos outros,
disputando pedaços cada vez mais pequenos enquanto
esperamos para tomar o lote todo. Embora Davidson pareça
subjugado, quase posso cheirar o aço nos seus ossos. Um
génio, talvez, e decerto perigoso.
Uma rajada de neve traz-me de volta. A única coisa com
que preciso de me ralar é com o que acontece agora.
Sobreviver. Vencer.
Uma energia tingida de azul irrompe através da muralha que
soçobra, pulsando por toda a extensão de trinta centímetros de
vazio. Davidson sustém o escudo no lugar com uma mão
estendida. Uma gota de sangue escorre-lhe do queixo,
exalando vapor ao frio.
Uma silhueta do outro lado massacra o escudo, os punhos
desferindo infernais socos sobre o campo encrespado. Outro
strongarm junta-se ao shadow e trabalha para alargar a
abertura, atacando a pedra em vez disso. O escudo cresce com
os seus esforços.
— Preparem-se — diz Davidson. — Quando eu fender o
escudo lancem fogo a tudo.
Obedecemos, prontos a atacar.
— Três.
Faíscas púrpura enredam-se entre os meus dedos e tecem
uma bola pulsante de luz destrutiva.
— Dois.
Os bombistas ajoelham em formação, como atiradores
furtivos. Em vez de armas de fogo têm simplesmente os dedos
das suas mãos e os olhos.
— Um.
Com uma torção, o escudo azul corta-se em dois e esmaga o
par de strongarms contra as muralhas num nauseante estalar
de ossos. Disparamos através da abertura, os meus relâmpagos
incendiados. Que iluminam a escuridão mais além, mostrando
uma dúzia de soldados endemoninhados prontos a arremeter
através da brecha. Muitos caem de joelhos, cuspindo fogo e
sangue quando os bombistas lhes fazem explodir as entranhas.
Antes que algum possa recuperar, Davidson sela de novo o
escudo, aparando uma saraivada de balas em resposta.
Parece admirado com o nosso sucesso.
Na muralha acima de nós, uma bola de fogo revolve-se na
tempestade negra, qual tocha contra a falsa noite. O fogo de
Cal alastra e ataca numa serpente chamejante. O calor em
brasa transforma o céu num inferno escarlate.
Cerro simplesmente o punho e aceno para Davidson.
— De novo — digo-lhe.
É impossível marcar a passagem do tempo. Sem o sol, não
faço ideia de por quanto tempo se prolonga a batalha que
travamos contra a brecha. Ainda que rechacemos o assalto
uma e outra vez, cada tentativa alarga a abertura pouco a
pouco. Centímetros por quilómetros, digo para mim. Na
muralha, a vaga de soldados não tomou os baluartes. As
pontes de gelo continuam a reaparecer e nós continuamos a
combatê-las. Uns quantos cadáveres aterram na rua, fora do
alcance sequer de um curador de pele. Entre ataques,
arrastamos os corpos para as vielas, para fora de vista. Busco
cada rosto morto, sustendo a respiração de cada vez. Não é
Cal, não é Farley. O único que reconheço é Townsend, com o
pescoço decepado. Conto sentir-me inundada de culpa ou
piedade mas nada sinto. Apenas o conhecimento de que
também há strongarms lá em cima nas muralhas, a desfazerem
os nossos soldados.
O escudo de Davidson estende-se através da abertura na
muralha, agora com pelo menos três metros de largura, qual
bocarra de pedra escancarada. Jazem corpos na boca aberta.
Cadáveres fumegantes derrubados por relâmpagos, ou
brutalmente dilacerados pelo olhar impiedoso de um bombista.
Através do trémulo campo azul, shadows reúnem-se na
escuridão, aguardando nova tentativa de investida à nossa
muralha. Martelos de água e gelo abatem-se sobre a aptidão de
Davidson. Um grito de banshee reverbera através dela, e só o
eco nos faz doer os ouvidos. Davidson encolhe-se. Agora o
sangue no seu rosto está raiado de suor que lhe goteja da
fronte, nariz e faces. Intensifica esforços próximo do seu
limite, e o nosso tempo está a esgotar-se.
— Alguém me traga o Rafe! — berro. — E Tyton.
Um corredor sai disparado assim que as palavras me saem
da boca, pulando escadas acima à procura deles. Observo a
muralha lá no alto, buscando uma silhueta familiar.
Cal trabalha a um ritmo maníaco, perfeito como uma
máquina. Avançar, girar, atacar. Avançar, girar, atacar. Tal
como eu, ele descobre um lugar vazio em que a sobrevivência
é o único pensamento. A cada intervalo no constante jorro de
inimigos ele dá nova forma aos seus soldados, dirigindo os
Vermelhos no seu fogo, ou trabalhando com Akkadi e Lory
para eliminar outro alvo na escuridão. Quantos estão mortos,
não sei dizer.
Outro cadáver rebola dos baluartes, de cabeça para baixo.
Agarro-lhe os braços para o arrastar antes de me aperceber de
que a sua armadura não é uma armadura, mas pedaços
escamados de carne empedernida, cauterizada com a ardorosa
ira de um príncipe de fogo. Recuo surpreendida, como que eu
própria queimada. Um stoneskin. A pouca roupa que resta no
seu corpo morto é azul e cinzenta. Casa Macanthos. Norta. Um
dos de Maven.
Engulo em seco ante a implicação. As forças de Maven já
chegaram às muralhas. Já não estamos a lutar contra
Lakelanders apenas. Um rugido de fúria eleva-se no meu peito
e quase desejo poder investir eu própria através da brecha.
Tudo rasgar do outro lado. Caçá-lo. Matá-lo entre o seu
exército e o meu.
Então o cadáver agarra-me.
Torce, e o meu pulso parte-se com um estalo. Solto um
guincho contra a maldita guinada de dor que me sobe pelo
braço.
Um relâmpago irrompe da minha carne, escapando-se de
mim como um grito. Cobre o corpo dele de faíscas púrpura e
de letal luz dançante. Mas ou a sua pele empedernida é
demasiado espessa ou a sua determinação demasiado forte. O
stoneskin não larga, os seus dedos de pinça cravando-se-me
agora no pescoço. Explosões deflagram ao longo das suas
costas, obra de bombistas. Pedaços de pedra soltam-se dele
como pele morta e ele uiva. As suas mãos ainda mais apertam
com a dor. Cometo o erro de tentar soltar-lhe os dedos, que se
cravam agora em torno da minha garganta. O seu courato
rochoso corta-me a pele, e o sangue acumula-se entre os meus
dedos, vermelho e quente no ar gelado.
Dançam-me manchas diante dos olhos e solto outra
relampejante explosão, num derramar da minha agonia. O
golpe projeta-o para longe de mim, arremessado por um
edifício adentro. Trespassa-o com a cabeça, ficando com o
corpo suspenso sobre a rua. Os bombistas acabam com ele,
fazendo-lhe explodir a pele exposta das costas.
Davidson treme sobre os pés, sustendo ainda o escudo cada
vez mais rarefeito. Ele viu tudo e nada podia fazer a menos
que quisesse que a força invasora nos derrubasse. Um canto da
sua boca treme, como que pedindo desculpa por tomar a
decisão errada.
— Quanto tempo mais consegue aguentar? — pergunto,
soprando as palavras num arquejo. Cuspo sangue na rua.
Ele cerra os dentes. — Um bocadinho mais.
Isso não ajuda, quero respingar. — Um minuto? Dois?
— Um — força-se ele a articular.
— Um servirá.
Olho fulgurante através do escudo que enfraquece, o vívido
tom de azul desvanecendo-se a par da força de Davidson. À
medida que se aclara, o mesmo acontece com os números do
outro lado. Armadura azul e negro cortado de vermelho.
Lakelands e Norta. Coroa alguma, rei algum. Apenas tropas de
choque destinadas a subjugar-nos. Maven não porá pé em
Corvium a menos que a cidade seja sua. Enquanto o irmão
Calore, na muralha, lutará até à morte, Maven não é
suficientemente estúpido para arriscar a vida a combater. Sabe
que a sua força jaz atrás das linhas, num trono e não num
campo de batalha.
Rafe e Tyton aproximam-se de lados opostos, tendo
defendido a sua extensão de muralha. Enquanto Rafe tem um
ar meticuloso, o cabelo verde ainda alisado para trás do rosto,
Tyton está positivamente tingido de sangue. Todo prateado.
Não está ferido. Os seus olhos brilham com uma estranha
espécie de ira, ardendo vermelhos em brasa na luz de fogo que
se revolve acima das nossas cabeças.
Reparo em Darmian na companhia de outros destruidores,
todos eles dotados com carne invulnerável. Brandem cruéis
machados, com as arestas afiadas como lâminas. Bons para
combater strongarms. A curta distância, são a nossa melhor
hipótese.
— Formar — diz Tyton, taciturno até mais não.
Nós obedecemos, organizando-nos apressadamente em
fileiras nas costas de Davidson. O seu braço sacode-se à
medida que nos movemos, aguentando enquanto lhe é
possível. Rafe toma a minha esquerda, Tyton a minha direita.
Olho de relance um e outro, interrogando-me se deverei dizer
alguma coisa. Posso sentir a energia estática irradiando de
ambos, familiar mas estranha. Eletricidade deles, não minha.
Na tempestade, a trovoada azul continua a ribombar. Ella
abastece-nos e nós sugamos os seus relâmpagos.
— Três — diz Davidson.
Verde à minha esquerda, branco à minha direita. As cores
tremulam na orla da minha visão, cada faísca um minúsculo
pulsar de coração.
— Dois.
Inspiro fundo uma vez mais. Dói-me a garganta, massacrada
pelo stoneskin. Mas ainda respiro.
— Um.
O escudo colapsa de novo, abrindo o nosso interior à
tempestade que aí vem.
— BRECHA! — ecoa ao longo dos baluartes quando as
forças voltam as suas atenções para a abertura na muralha. O
exército Prateado responde na mesma moeda, arremetendo
direito a nós com um grito ensurdecedor. Relâmpagos verdes e
púrpura estremecem através da carnificina, pulando ao longo
da primeira vaga de soldados. Tyton move-se como um
homem lançando dardos, as suas minúsculas agulhas
relampejantes explodindo na forma de ofuscantes parafusos
que lançam as tropas Prateadas pelos ares. Muitos agarram e
torcem. Ele não tem misericórdia.
Os bombistas seguem-nos, movendo-se connosco ao
fecharmos a brecha. Eles apenas precisam de uma linha aberta
de visão para trabalhar, e a sua destruição revolve pedra, carne
e terra em igual medida. Com a neve cai terra, e o ar sabe a
cinzas. É isto a guerra? É isto combater no Caldeirão? Tyton
lança-me para trás, estendendo um braço para mover o meu
corpo. Darmian e os outros destruidores irrompem diante de
nós, qual escudo humano. Os seus machados cortam e
retalham, espalhando sangue até que as muralhas arruinadas de
cada lado se revestem de faixas espelhadas de prata líquida.
Não. Eu lembro-me do Caldeirão. Das trincheiras. Do
horizonte estendendo-se em cada direção, ao encontro de uma
terra pejada de crateras por décadas de derramamento de
sangue. Cada lado conhecia o outro. Essa guerra era maléfica,
mas definida. Isto é apenas um pesadelo.
Soldado após soldado, Lakelanders e Nortans, entram
pulsando através da brecha. Cada um empurrado pelo homem
ou mulher que vem atrás. Tal como nas pontes, afunilam numa
carnificina. A multidão move-se como uma maré oceânica,
uma vaga arrastando-nos antes de outra avançar. Nós temos
vantagem, mas apenas ligeira. Mais strongarms massacram as
muralhas, na esperança de alargarem a abertura. Telkies
arremessam entulho pela nossa linha dentro, pulverizando um
dos bombistas, enquanto outro se queda congelado, a boca
petrificada aberta num grito silencioso.
Tyton dança com movimentos fluidos, cada palma de mão
incendiada com relâmpagos brancos. Eu uso uma teia no chão,
espalhando uma poça de energia elétrica sob o espezinhar do
exército que avança. Os seus corpos empilham-se, ameaçando
formar outra muralha através da brecha. Mas os telkies
afastam-nos com um simples aceno, fazendo rodopiar
cadáveres pela negra tempestade dentro.
A boca sabe-me a sangue, mas o meu pulso partido é agora
um simples zumbido de dor. Pende-me inerte no flanco e dou
graças pela adrenalina que não me deixa sentir o osso estalado.
A rua e a terra transformam-se em líquido sob os meus pés,
fluindo vermelho e prateado. O terreno alagadiço clama mais
que uns quantos. Quando um sanguenovo cai um nymph salta
sobre ele, vertendo-lhe água pelo nariz e garganta abaixo. Ele
afoga-se ante os meus olhos. O cadáver de uma mulher jaz de
lado, raízes brotando-lhe das órbitas. Eu nada mais conheço
que relâmpagos. Não me lembro do meu nome, do meu
propósito, pelo que estou a lutar — além do ar que me entra
nos pulmões. Além de um segundo mais de vida.
Um telky aparta-nos, fazendo recuar Tyton pelo ar. Depois a
mim na direção oposta. Espiralo para diante, por sobre o topo
da força que faz por investir através da brecha na muralha.
Para o outro lado. Para os campos de matança de Corvium.
Aterro com força, rolando de pés e cabeça até estacar
abruptamente, meio enterrada em lama semicongelada. Um
golpe de dor trespassa o meu escudo de adrenalina,
lembrando-me de um osso mais que partido e talvez de uns
quantos mais. Os ventos tempestuosos rasgam-me a roupa
quando tento sentar-me, fragmentos de gelo dilacerando-me os
olhos e as faces. Ainda que o vento uive, não está tão escuro
aqui fora. Não negro, mas cinzento. Uma nevasca ao
crepúsculo e não à meia-noite. Forço a vista para um e outro
lado, demasiado esbaforida para fazer mais que jazer prostrada
de dor.
O que eram campos abertos, relvados verdes descendo os
declives de cada lado da Estrada de Ferro, é agora uma tundra
gelada, cada haste de relva qual cortante pingente de gelo.
Deste ângulo, Corvium é impossível de divisar. Tal como não
podíamos ver através do negrume de breu da tempestade, as
forças assaltantes também não podem. Ele entrava-as tanto
como a nós. Vários batalhões aglomeram-se como sombras, as
suas silhuetas recortadas contra a tempestade. Alguns tentam
transpor as pontes de gelo que ainda se formam e tornam a
formar, mas agora irrompem maioritariamente na direção da
brecha. Os restantes jazem à espera atrás de mim, uma mancha
fora do pior da tempestade. Talvez centenas aguentem de
reserva, talvez milhares. Bandeiras azuis e vermelhas adejam
sonoramente ao vento, suficientemente coloridas para se
divisarem. Presa entre a espada e a parede, suspiro para mim
própria. E estou atolada na lama, rodeada de cadáveres e de
feridos cambaleantes. Pelo menos estão na sua maioria
focados em si próprios, em membros amputados ou ventres
rasgados, mais do que numa única rapariga Vermelha entre
eles.
Soldados Lakelanders dardejam à minha volta, e preparo-
me para o pior. Mas eles avançam para diante, marchando para
as nuvens ribombantes e o resto do exército que se vai
desleixando rumo à destruição. — Vai aos curadores! — berra
um deles por sobre o ombro, sem sequer olhar para trás. Baixo
os olhos, apercebendo-me de que estou coberta de sangue
prateado. Algum vermelho, mas sobretudo prateado.
Rapidamente esfrego lama sobre as minhas feridas
ensanguentadas e pedaços ainda verdes do meu uniforme. Os
golpes ardem de dor, fazendo-me silvar entre dentes. Olho
para trás, para as nuvens, observando os relâmpagos que
pulsam dentro delas. Azuis em cima, verdes em baixo, onde
está a brecha. Para onde eu tenho de voltar.
A lama impregna-se-me nos membros, tentando congelar à
minha volta. Com o pulso partido encostado ao peito, faço
força com um braço, esforçando-me por me libertar. Solto-me
com um sonoro regurgitar e corro disparada, respirando
pesadamente. Cada alento queimando-me.
Percorro dez metros, quase até à retaguarda do exército
Prateado, antes de me aperceber de que isto não vai resultar.
Estão demasiado próximos uns dos outros para me esgueirar
através deles, mesmo eu. E provavelmente deter-me-ão se
tentar. A minha cara é bem conhecida, mesmo coberta de
lama. Não posso arriscá-lo. Nem as pontes de gelo. Alguma
poderá esboroar-se debaixo de mim, ou os soldados Vermelhos
poderão abater-me a tiro enquanto tento voltar por sobre a
muralha. Seja qual for a escolha, acabará mal. Mas o mesmo
acontece se ficar aqui especada. As forças de Maven investirão
noutro assalto e enviarão outra vaga de tropas. Não vejo saída
para a frente nem para trás. Por um aterrorizante e vazio
momento fito o negrume de Corvium. Relâmpagos tremulam
dentro da tempestade, mais fracos que antes. Parece um
gigantesco furacão encimado por uma nuvem de trovoada,
entremeado de uma nevasca e vendaval. Sinto-me pequena
ante aquilo, uma só estrela num céu de violentas constelações.
Como poderemos derrotar isto?
O primeiro guinchar de um jato faz-me cair de joelhos,
cobrindo a cabeça com a mão sã. Repercute-se no meu peito,
uma explosão de eletricidade martelando como um coração.
Uma dúzia deles seguem-se a baixa altitude, os seus motores
espiralando neve e cinza à sua estridente passagem entre as
duas metades de exército.
Mais jatos espiralam na orla exterior da tempestade, às
voltas e mais voltas, esculpindo-a e penetrando-a. As nuvens
flutuam com os jatos, como que magnetizadas às asas. Então
oiço outro rugido. Outro vento, mais forte que o primeiro,
soprando com a fúria de cem furacões. O vento dissipa a
tempestade, destruindo-a à força. As nuvens apartam-se o
bastante para mostrar as torres de Corvium, onde reinam
relâmpagos azuis. O vento segue os jatos, acumulando-se sob
as asas pintadas de fresco.
Pintadas de amarelo-brilhante.
Casa Laris.
Os meus lábios repuxam-se num sorriso. Aqui estão eles.
Anabel Lerolan manteve a sua palavra.
Procuro as outras casas, mas um falcão guincha à minha
volta, as suas asas negro-azuladas batendo no ar. Garras
cintilam, aguçadas como lâminas, e dou um salto para trás
para cobrir o meu rosto do pássaro. Ele limita-se a soltar um
agudo piado antes de bater asas para longe, planando por sobre
o campo de batalha direito a — oh, não…
As reservas de Maven vêm aí. Batalhões, legiões.
Armaduras negras, armaduras azuis, armaduras vermelhas.
Vou ser esmagada entre as duas metades do seu exército.
Não sem dar luta.
Dou-me vazão, raios púrpura projetando-se à minha volta.
Rechaçando soldados, fazendo-os questionar cada passo. Eles
sabem como são as minhas aptidões. Já viram o que pode a
rapariga-relâmpago fazer. Detêm-se, mas apenas por um
momento. O suficiente para me deixarem fincar pés e girar,
enviesando o corpo. Menor o alvo, maior a hipótese de
sobrevivência. O meu punho são cerra-se, pronto a derrubá-los
a todos comigo.
Muitos dos Prateados que tomam a brecha de assalto viram-
se na minha direção. A distração é a sua derrocada.
Relâmpagos verdes e brancos pulsam através deles, abrindo
caminho para a chama vermelha que investe direita a mim.
Os swifts transpõem primeiro a distância e apanham uma
teia de relâmpagos. Alguns zunem para trás mas outros caem,
incapazes de fugir às faíscas. Raios tempestuosos, estralejando
do céu, mantêm o pior ao largo, formando um círculo protetor
à minha volta. De fora parece uma jaula de eletricidade, mas é
uma jaula feita por mim. Uma jaula que eu controlo.
Desafio qualquer rei a pôr-me numa jaula agora.
Conto que os meus relâmpagos o atraiam, qual traça para
chama de vela. Procuro Maven na horda que aí vem. Uma
capa vermelha, uma coroa de férreas flamas. Um rosto branco
no mar, os seus olhos suficientemente azuis para perfurar
montanhas.
Em vez disso, os jatos Laris aproximam-se para outra
passagem, rasando ambos os exércitos. Separam-se à minha
volta, fazendo os soldados procurar atabalhoadamente refúgio
quando o metal guinchante ruge lá em cima. Sensivelmente
uma dúzia de vultos rebolam das traseiras dos jatos maiores,
descrevendo cambalhotas no ar antes de caírem no solo a uma
velocidade que reduziria a maioria dos humanos a papa. Em
vez disso, estendem os braços, estacando abruptamente,
revolvendo terra, cinza e neve. E ferro. Montes de ferro.
Evangeline e família, irmão e pai incluídos, voltam-se para
enfrentar o exército que se aproxima. O falcão pia em volta
deles, guinchando qual dardo arremessado ao vento agreste.
Evangeline lança um olhar de relance por sobre o ombro, os
seus olhos dando com os meus.
— Não faças disto um hábito! — berra.
A exaustão dá conta de mim, pois, estranhamente, sinto-me
segura.
Evangeline Samos protege-me.
Fogo deflagra na orla da minha visão. Cerca-me, quase
ofuscante. Cambaleio para trás e vou contra uma parede de
músculo e armadura tática. Cal envolve-me o pulso partido,
segurando-o gentilmente.
Por uma vez não me lembro das algemas.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

Evangeline

A s portas da torre administrativa de Corvium são de


carvalho sólido, mas os gonzos e guarnições são de
ferro. Abrem-se deslizando à nossa frente, curvando-se ante a
Casa Real de Samos. Entramos graciosamente na câmara do
conselho, ante os olhos da nossa aliança de retalhos. Montfort
e a Guarda Escarlate estão sentados à esquerda, simples nos
seus uniformes verdes, os nossos Prateados à direita, nas
variadas cores das suas casas. Os seus respetivos dirigentes, o
Presidente Davidson e a Rainha Anabel, observam em silêncio
a nossa entrada. Anabel usa agora a sua coroa, assinalando-a
como rainha, ainda que de um rei há muito morto. É um aro
batido de ouro rosa, encastoado de diminutas gemas negras.
Simples. Mas não obstante destacando-se. Ela tamborila com
os dedos letais sobre o tampo da mesa, exibindo impaciente a
sua aliança de casamento. Uma fogosa joia vermelha,
igualmente encastoada em ouro rosa. Tal como Davidson, ela
tem o ar de um predador, sem jamais pestanejar, sem jamais se
distrair. O Príncipe Tiberias e Mare Barrow não estão aqui, ou
pelo menos eu não os vejo. Interrogo-me se se apartarão para
os seus respetivos lados e cores.
Janelas de cada lado da sala da torre abrem-se para o
terreno, onde o ar fumega ainda de cinzas e os campos
ocidentais estão sufocados de lama, inundados e atolados pela
extemporânea catástrofe. Mesmo a esta altura, tudo cheira a
sangue. Esfreguei as mãos pelo que me pareceram horas,
lavando cada centímetro, e ainda não me consigo livrar do
cheiro. Entranha-se como um fantasma, mais difícil de
esquecer do que os rostos das pessoas que matei em campo. O
travo metálico infeta tudo.
Apesar da vista que se impõe, todos os olhos se focam na
pessoa que mais se destaca como dirigente da nossa família. O
Pai não tem vestes negras, apenas a sua armadura cromada
cintilando como um espelho moldado à sua forma elegante.
Todo ele um rei guerreiro. A Mãe não desaponta tão-pouco. A
sua coroa de pedras verdes condiz com a jiboia esmeralda que
lhe envolve o pescoço e ombros como um xaile. Desliza
vagarosamente, as escamas refletindo a luz da tarde. Ptolemus
está parecido com o Pai, conquanto a armadura pintada no seu
peito largo, cintura estreita e pernas enxutas seja negra como
óleo. A minha é uma mescla de ambos, estriada de camadas
justas à pele, de crómio e aço negro. Não é a armadura que
usei em campo, mas aquela de que preciso agora. Terrível,
ameaçadora, mostrando cada grama de orgulho e poder Samos.
Quatro cadeiras como tronos estão dispostas contra as
janelas, e nós sentamo-nos como um, apresentando uma frente
unida. Por mais que eu queira gritar.
Sinto-me como uma traidora para comigo própria, tendo
deixado passar dias, semanas, sem oposição. Sem sequer um
sussurro de quanto o plano do Pai me aterroriza. Não quero ser
rainha de Norta. Não quero pertencer a ninguém. Mas o que eu
quero não importa. Nada ameaçará as maquinações do meu
pai. O Rei Volo não é pessoa a quem se diga não. Não a sua
própria filha, sua carne e seu sangue. Posse sua.
Uma dor por de mais familiar eleva-se-me no peito quando
me instalo no trono. Faço todo o possível por manter a
compostura, silenciosa e respeitadora. Leal ao meu sangue. É
tudo o que conheço.
Não falo com o meu pai há semanas. Apenas consigo
assentir às suas ordens. Estou incapaz de palavras. Se abrir a
boca, receio que o meu temperamento leve a melhor. Foi ideia
de Tolly manter-me calada. Dá tempo ao tempo, Eve. Dá
tempo ao tempo. Mas tempo para quê, não faço ideia. O Pai
não muda de ideias. E a Rainha Anabel está determinada a
empurrar o neto de volta para o trono. O meu irmão está
simplesmente tão desapontado como eu. Tudo o que fizemos
— casá-lo com Elane, trair Maven, apoiar as ambições reais
do Pai — foi para que pudéssemos ficar juntos. Tudo para
nada. Ele governará na Brecha, casado com a rapariga que
amo, enquanto eu sou expedida como um caixote de munições,
uma vez mais um presente para um rei.
Sinto-me grata pela distração quando Mare Barrow decide
agraciar o conselho com a sua presença, com o Príncipe
Tiberias nos seus calcanhares. Esqueci-me de quão trágico
cachorrinho ele se tornou na presença dela, todo ele olhos
arregalados suplicando atenção. O seu apurado sentido de
soldado assesta-se nela e não na tarefa em mãos. Ambos
vibram ainda da adrenalina do cerco, e não é de admirar. Foi
uma coisa brutal. Barrow ainda tem sangue no uniforme.
Ambos percorrem o corredor central que divide o conselho.
Se sentem o peso da sua ação não o mostram. A maior parte
das conversas reduzem-se a um murmúrio ou param
completamente para observar o par, à espera de ver que lado
da sala escolherão.
Mare é rápida, marchando diante da primeira fila de
uniformes verdes para se encostar à parede do fundo. Fora dos
holofotes.
O príncipe, o legítimo rei de Norta, não a segue. Em vez
disso aproxima-se da avó, uma mão estendida para a abraçar.
Anabel é bem mais pequena que ele, reduzida a uma velha na
sua presença. Mas os braços dela rodeiam-no com facilidade.
Têm ambos os mesmos olhos, rubros como bronze aquecido.
Ela abre-se num sorriso para ele.
Tiberias deixa-se ficar no seu abraço só por um momento,
atendo-se o último elemento da sua família. O assento atrás da
sua avó está vazio, mas ele não o ocupa. Escolhe juntar-se a
Mare junto à parede. Cruza os braços sobre o peito largo,
fixando o Pai com um olhar acalorado. Interrogo-me se ele
saberá o que ela planeou para nós.
Ninguém ocupa o assento que ele deixou para trás.
Ninguém ousa tomar o lugar do legítimo herdeiro de Norta.
Meu amado noivo ecoa-me na cabeça. As palavras acirram-me
mais que as cobras da minha mãe.
Subitamente, com um jeito de mão, o Pai arrasta Salin Iral
pela fivela do cinto, arrancando-o do assento, por sobre a sua
mesa e através do chão de carvalho. Ninguém protesta ou
emite um som.
— Vocês são supostamente caçadores.
A voz do Pai ressoa do fundo da garganta.
Iral não se dignou lavar-se depois da batalha, como
evidencia o suor que lhe embacia o cabelo negro. Ou talvez
esteja simplesmente petrificado. Não o censuraria. — Vossa
Majestade…
— Assegurou que Maven não escaparia. Creio que as suas
exatas palavras, meu senhor, foram «serpente alguma pode
escapar ao punho de um silk». — O Pai não condescende em
olhar para este fracasso de senhor, um embaraço para a sua
casa e o seu nome. A Mãe observa por ambos, vendo com os
seus próprios olhos assim como pelos da serpente verde. Esta
dá por mim a fitá-la e dardeja a sua língua cor-de-rosa
bifurcada na minha direção.
Os outros assistem à humilhação de Salin. Os Vermelhos
têm um ar mais sujo que Salin, alguns deles ainda enlameados
e roxos de frio. Pelo menos não estão bêbedos. O Senhor
General Laris oscila na sua cadeira, bebericando
conspicuamente de um frasco maior do que qualquer coisa
passível de se ter em companhia de gente educada. Não que o
Pai ou a Mãe ou seja quem for lhe leve a mal a bebida. Laris e
a sua casa desempenharam lindamente o seu papel, trazendo
jatos aéreos para a causa ao mesmo tempo que dissipavam
aquela infernal tempestade que ameaçava soterrar Corvium de
neve. Provaram o seu valor.
Tal como os sanguenovos. Por tolo que soe o nome
escolhido, sustiveram o ataque durante horas. Sem o seu
sangue e sacrifício, Corvium estaria de volta nas mãos de
Maven. Em vez disso, ele falhou pela segunda vez. Foi
derrotado por duas vezes. Uma pela turba e agora às mãos de
um exército e de um rei como deve ser. As minhas entranhas
revolvem-se. Mesmo tendo nós vencido, a vitória sabe-me a
derrota.
Mare fulmina com o olhar a troca de palavras, todo o seu
corpo se crispando como arame farpado. Os seus olhos detêm-
se em Salin e no meu pai, antes de se desviarem para Tolly.
Sinto um tremor de medo pelo meu irmão, embora ela tivesse
prometido não o matar. Na Praça de César ela deu rédea solta a
uma ira como eu nunca vi. E no campo de batalha de Corvium
aguentou-se sozinha, mesmo rodeada por um exército de
Prateados. Os seus relâmpagos estão de longe mais mortais do
que me lembrava. Se ela escolhesse assassinar Tolly agora
mesmo, duvido que alguém pudesse detê-la. Puni-la, claro,
mas não detê-la.
Tenho a sensação de que não ficará terrivelmente agradada
com o plano de Anabel. Qualquer mulher Prateada apaixonada
por um rei contentar-se-ia em ser consorte, vinculada mas não
casada — mas não creio que os Vermelhos pensem dessa
maneira. Não fazem ideia de quão importantes são os vínculos
entre casas, ou de quão profundamente vitais sempre foram os
herdeiros de sangue forte. Julgam que o amor importa quando
são proferidos votos de casamento. Suponho que isso seja uma
pequena bênção nas suas vidas. Sem poder, sem força, nada
têm a proteger e legado algum a manter. As suas vidas são
inconsequentes, mas ainda assim, são bem suas.
Tal como pensei que a minha fosse, por umas breves, tolas
semanas.
No campo de batalha disse a Mare Barrow para não fazer
um hábito de me deixar salvá-la. Irónico. Agora espero que ela
me salve da prisão dourada de uma rainha e da jaula nupcial
de um rei. Espero que a sua tempestade destrua a aliança antes
sequer de ela ganhar raiz.
— …prepara-se para escapar e simultaneamente atacar.
Estavam swifts a postos, transportes, jatos aéreos. Nem sequer
vimos Maven. — Salin continua o seu protesto, com as mãos
erguidas acima da cabeça. O Pai deixa-o. O Pai dá sempre às
pessoas corda suficiente para se enforcarem. — O rei
Lakelander estava lá. Ele próprio comandou as suas tropas.
Os olhos do Pai lampejam e escurecem, única indicação do
seu súbito desconforto. — E?
— E agora jaz numa sepultura com elas. — Salin levanta os
olhos de relance para o seu rei de aço, qual criança buscando
aprovação. Treme até à ponta dos dedos. Penso em Iris
deixada para trás em Archeon, uma nova rainha num trono
envenenado. E agora sem o seu pai, destituída da única família
que veio para sul a seu lado. Ela era formidável, para dizer o
mínimo, mas isto enfraquecê-la-á imensamente. Se ela não
fosse minha inimiga talvez me apiedasse.
Lentamente, o Pai levanta-se do seu trono. Parece pensativo.
— Quem matou o rei das Lakelands?
O laço aperta-se.
Salin arreganha um sorriso. — Fui eu.
O laço firma-se com um estalido e o mesmo acontece com o
Pai. Com um punho cerrado, num piscar de olhos, arranca os
botões do casaco de Salin, rolando-os em estreitas hastes de
ferro. Cada uma envolve-lhe o pescoço, puxando, forçando
Salin a pôr-se em pé. Continuam a elevar-se, até as pontas dos
seus pés rasparem o chão, buscando apoio.
Nas mesas, o dirigente de Montfort reclina-se na sua
cadeira. A mulher ao seu lado, uma loura muito severa com
cicatrizes faciais, recurva os lábios numa carranca. Lembro-me
dela do ataque a Summerton, o que quase tirou a vida ao meu
irmão. O próprio Cal a torturou e agora estão praticamente
lado a lado. Ela é da Guarda Escarlate, uma alta patente, e, se
não me engano, uma das maiores aliadas de Mare.
— As suas ordens… — engasga-se Salin. Crava as mãos
nos fios de ferro que lhe envolvem o pescoço, enterrando-se-
lhe na carne. O seu rosto torna-se cinzento quando o sangue se
lhe acumula sob a carne.
— As minhas ordens eram para matar Maven Calore ou
impedir a sua fuga. Não fez uma coisa nem outra.
— Eu…
— Matou um rei de uma nação soberana. Um aliado de
Norta que não tinha razão para fazer algo que não defender a
nova rainha Lakelander. Mas agora? — O Pai zomba, usando a
sua aptidão para atrair Salin para mais perto. — Deu-lhes um
portentoso incentivo para nos afogarem a todos. A rainha
governante das Lakelands não tolerará isto. — Dá uma
bofetada no rosto de Salin com um sonoro estalo. O golpe
destina-se a envergonhar, não magoar. Resulta bem. —
Destituo-o dos seus títulos e responsabilidades. Casa Iral,
redistribua-os como julgar adequado. E tirem este verme da
minha vista.
A família de Salin apressa-se a arrastá-lo para fora da
câmara antes que ele possa escavar um buraco ainda mais
fundo. Quando os fios de ferro se soltam, tudo o que ele faz é
tossir e talvez chorar. Os seus soluços ecoam na câmara mas
são rapidamente cortados pelas portas que se fecham com
estrondo. Um homem patético. Conquanto me congratule que
não tenha matado Maven. Se o fedelho Calore morresse hoje
não haveria obstáculo entre Cal e o trono. Entre Cal e eu.
Desta forma, pelo menos, há alguma sombria esperança.
— Alguém tem algum contributo útil a dar? — O Pai senta-
se suavemente e passa um dedo ao longo da espinha da cobra
da minha mãe. Os olhos dela cerram-se deslizando de prazer.
Repulsivo.
Jerald Haven parece querer desaparecer na sua cadeira, e
bem poderá fazê-lo. Fita as mãos cruzadas, intentando que o
meu pai não o humilhe a seguir. Por sorte é salvo pela
carrancuda comandante da Guarda Escarlate. Ela põe-se de pé,
empurrando a cadeira para trás.
— Os nossos serviços de informação indicam que Maven
Calore depende agora de eyes para o manterem a salvo. Eles
podem ver o futuro imediato…
A Mãe dá um estalido com a língua. — Nós sabemos o que
é um eye, Vermelha.
— Tanto melhor — replica a comandante sem hesitação.
Não fosse o Pai e a nossa precária posição, seria de esperar
que a Mãe arremessasse a sua serpente esmeralda pela
garganta abaixo da Vermelha. Mas franze simplesmente os
lábios. — Controle a sua gente, Presidente, ou eu o farei.
— Eu sou general do Comando da Guarda Escarlate,
Prateada — cospe a mulher. Apanho Mare a esboçar um
sorriso malicioso atrás dela. — Se querem a nossa ajuda,
mostrarão algum respeito.
— Claro — concede graciosamente a Mãe. As suas gemas
faíscam quando baixa a cabeça. — Respeito onde é devido
respeito.
A comandante olha ainda fulgurante, fervendo de raiva.
Mira a coroa da minha mãe com repulsa.
Pensando rapidamente, bato palmas. Um som familiar. Uma
convocação. Silenciosamente, uma criada Vermelha da Casa
Samos entra apressadamente na câmara, com um copo de
vinho na mão. Conhece as suas ordens e vem direita para o
meu lado, oferecendo-me a bebida. Com movimentos lentos e
exagerados, pego na taça. Não deixo de suster o olhar da
comandante Vermelha enquanto bebo. Os meus dedos
tamborilam ao longo do vidro esculpido para ocultar os meus
nervos. No pior dos casos, deixarei o Pai zangado. No
melhor…
Estilhaço o copo de vidro no chão. Eu própria me retraio ao
som e à implicação. O Pai tenta não reagir, mas a sua boca
comprime-se. Deverias conhecer-me melhor que isto. Não vou
ceder sem luta.
Sem hesitação, a criada ajoelha-se para limpar o chão,
arrebatando os cacos de vidro nas mãos nuas. E, sem
hesitação, a feroz mulher Vermelha salta por sobre a mesa,
provocando um alvoroço de movimento. Prateados põem-se
em pé de um pulo, tal como Vermelhos, e a própria Mare
avança disparada da parede, interpondo-se no caminho da
amiga.
A comandante Vermelha eleva-se qual torre acima dela, mas
Barrow sustém-na.
— Como podemos aceitar isto? — berra a mulher para mim,
estendendo o punho cerrado para a criada no chão. O
penetrante odor a sangue aumenta dez vezes quando ela
retalha as mãos. — Como?
Toda a gente na sala parece perguntar-se a mesma coisa.
Elevam-se berros entre os membros mais voláteis de cada
lado. Nós somos casas Prateadas de sangue antigo e nobre,
aliadas a rebeldes, criminosos, serviçais e ladrões. Aptidões ou
não, os nossos modos de vida opõem-se diretamente. Os
nossos objetivos não são os mesmos. A câmara do conselho é
um barril de pólvora. Se eu tiver sorte explodirá. Rebentará
com qualquer ameaça de casamento. Destruirá a jaula em que
me querem voltar a pôr.
Por sobre o ombro de Mare, a comandante lança-me um
sorriso de desdém, os seus olhos como dois punhais azuis. Se
esta sala e a minha própria indumentária não gotejassem de
metal, talvez tivesse medo. Fito-a também, encarnando bem a
princesa Prateada que ela foi criada a odiar. A meus pés, a
serviçal termina o seu trabalho e sai atabalhoada, as mãos
todas picadas de fragmentos de vidro. Tomo mentalmente nota
para mais tarde enviar Wren a curá-la.
— Mal feito — sussurra-me a Mãe ao ouvido. Dá-me uma
palmadinha no braço e a cobra desliza-lhe ao longo da mão,
enroscando-se sobre a minha pele. A sua carne é pegajosa e
fria.
Cerro os dentes à sensação.
— Como podemos aceitar isto?
A voz do príncipe corta o caos. Silencia muitos de
aturdimento, incluindo a desdenhosa comandante Vermelha.
Mare remove-a dali, escoltando-a com alguma dificuldade de
volta à sua cadeira. Os restantes viram-se para o príncipe
exilado, observando-o a endireitar-se. Os meses têm sido
clementes para com Tiberias Calore. Uma vida de guerra diz
bem com ele. Parece vibrante e vivo, mesmo depois de mal
escapar à morte nas muralhas. No seu assento, a sua avó
permite-se esboçar um ínfimo sorriso. Sinto o coração
afundar-se-me no peito. Não me agrada aquele olhar. As
minhas mãos cravam-se nos braços do meu trono, as unhas
enterrando-se em madeira em vez de carne.
— Toda e cada pessoa nesta sala sabe que atingimos um
ponto crítico. — Os seus olhos vagueiam ao encontro de Mare.
Ele retira dela a sua força. Se eu fosse uma pessoa sentimental,
talvez me comovesse. Em vez disso penso em Elane, deixada a
salvo para trás na Casa da Cumeeira. Ptolemus tem
necessidade de um herdeiro e nenhum de nós a quis na
batalha. Mesmo assim, quem me dera aqui tê-la sentada ao
meu lado. Quem me dera não ter de sofrer isto sozinha.
Cal foi treinado para a política de Estado e os discursos não
lhe são estranhos. Ainda assim, não tem o talento do irmão e
tropeça umas quantas vezes de olhos postos no chão.
Infelizmente, ninguém se parece importar. — Os Vermelhos
têm vivido as suas vidas como glorificados escravos,
amarrados às suas sortes. Seja numa cidade de barracas, num
dos nossos palácios… ou na lama de uma aldeia fluvial. —
Um rubor alastra nas faces de Mare. — Eu dantes pensava
como fui ensinado. Que os nossos caminhos estavam
predestinados. Que os Vermelhos eram inferiores. Mudarem de
lugar nunca aconteceria, não sem derramamento de sangue.
Não sem grande sacrifício. Outrora julgava que essas coisas
eram um elevado custo a pagar. Mas estava errado.
— Aqueles de vós que discordam — olha-me fulgurante e
eu tremo —, que se julgam melhores, que se julgam deuses,
estão errados. E não porque existem pessoas como a rapariga-
relâmpago. Não porque subitamente damos connosco a
precisar de aliados para derrotar o meu irmão mas porque
estão simplesmente errados.
» Nasci príncipe. Conheci mais privilégios do que quase
toda a gente aqui. Fui criado com serviçais às minhas ordens e
ensinaram-me que o sangue deles, dada a sua cor, significava
menos que o meu. «Os Vermelhos são estúpidos; os Vermelhos
são ratos; os Vermelhos são incapazes de controlar as suas
próprias vidas; os Vermelhos estão destinados a servir.» Estas
são palavras que todos ouvimos. E são mentiras. Convenientes
mentiras que tornam as nossas vidas mais fáceis, a nossa
vergonha inexistente e as vidas deles insustentáveis.
Detém-se junto à sua avó, alto a seu lado. — Isso não pode
mais ser tolerado. Simplesmente não pode. Diferença não é
divisão.
Pobre e ingénuo Cal. A sua avó assente aprovadora, mas eu
lembro-me dela na minha casa, e do que ela disse. Ela quer o
neto no trono e quer o velho mundo.
— Presidente — diz Tiberias, acenando para o dirigente de
Montfort.
Com um pigarrear, o homem põe-se em pé. Mais alto que a
maioria, mas de fraca estrutura. Tem o ar de um peixe pálido
com uma expressão igualmente vazia. — Rei Volo,
agradecemos-lhe a sua ajuda na defesa de Corvium. E aqui,
agora, ante os olhos das nossas chefias e das vossas, gostaria
de conhecer os seus sentimentos quanto ao que o Príncipe
Tiberias acabou de dizer.
— Se tem uma pergunta, Presidente, faça-a — troa o Pai.
O homem mantém o rosto impávido, indecifrável. Dá-me a
sensação de que guarda tantos segredos e ambições como o
resto de nós. Quem me dera poder apertar com ele. —
Vermelho e Prateado, Vossa Majestade. Que cor se eleva nesta
rebelião?
Um músculo treme numa face pálida quando o meu pai
exala. Passa a mão pela barba pontiaguda. — Ambas,
Presidente. Esta é uma guerra para ambos. Quanto a isto tem a
minha palavra, jurada sobre as cabeças dos meus filhos.
Muito obrigada, Pai. O comandante Vermelho cobraria esse
preço com um sorriso se lhe fosse dada a oportunidade.
— O Príncipe Tiberias fala a verdade — diz o Pai, mentindo
com quantos dentes tem na boca. — O nosso mundo mudou.
Temos de mudar com ele. Inimigos comuns dão estranhos
aliados, mas somos aliados ainda assim.
Tal como com Salin, pressinto um nó a apertar-se. Cinge-me
o pescoço, ameaçando suspender-me sobre o precipício. Será
assim que me sentirei para o resto da minha vida? Quero ser
forte. Foi para isto que treinei e sofri. Foi isto que julguei
querer. Mas a liberdade foi por de mais doce. Um agarrar dela
e não consigo largar. Lamento, Elane. Lamento tanto.
— Tem outras perguntas quanto aos termos, Presidente
Davidson? — prossegue o Pai. — Ou continuamos a planear o
derrube de um tirano?
— E que termos seriam esses? — A voz de Mare soa
diferente, o que não é de admirar. Conheci-a ultimamente
como prisioneira, sufocada quase além do reconhecimento. As
suas faíscas regressaram vingativas. Olha de relance o Pai e o
seu Presidente, buscando neles respostas.
O Pai quase rejubila ao explicar, e eu sustenho a respiração.
Salva-me, Mare Barrow. Solta a tempestade que sei que tens.
Enfeitiça o príncipe como fazes sempre.
— O Reino da Brecha será soberano após a remoção de
Maven. Os reis de aço reinarão por gerações. Com concessões
feitas aos meus cidadãos Vermelhos, claro está. Não tenho
intenção de criar um Estado escravo como o que Norta é.
Mare parece longe de convencida, mas sustém a língua.
— Claro está, Norta precisará de um rei seu.
Os olhos dela arregalam-se. Ela esvai-se tomada de horror e
vira a cabeça qual chicote para Cal, à procura de respostas. Ele
parece tão chocado como ela fumegante de raiva. A rapariga-
relâmpago é mais fácil de ler do que as páginas de um livro
infantil.
Anabel levanta-se do seu assento e posta-se orgulhosa. O
seu rosto enrugado resplandece quando se vira para Cal,
levando-lhe a mão ao rosto. Ele está por demais abalado para
reagir ao seu toque. — O meu neto é o legítimo rei de Norta e
o trono pertence-lhe.
— Presidente… — sussurra Mare, olhando agora para o
dirigente de Montfort. Quase implora. Um lampejo de tristeza
perfura-lhe a máscara.
— Montfort compromete-se a apoiar a reposição de Ca…
— Detém-se. O homem olha para todo o lado menos para
Mare Barrow. — Do Rei Tiberias.
Uma corrente de calor repercute-se no ar. O príncipe está
zangado, violentamente zangado. E o pior ainda está para vir,
para todos nós. Se eu tiver sorte, ele reduzirá a torre a cinzas.
— Cimentaremos a aliança entre a Brecha e o legítimo rei
da forma usual — diz a Mãe, retorcendo a faca. Isto dá-lhe
gozo. Recorro a todas as minhas forças para guardar as
lágrimas, lá onde mais ninguém pode ver.
A implicação das suas palavras não passa despercebida a
ninguém. Cal solta uma espécie de latido estrangulado, um
arquejo muito pouco próprio de um príncipe, quanto mais de
um rei.
— Mesmo depois de tudo isto, a Prova da Rainha resultou
ainda assim numa noiva real. — A Mãe passa a mão sobre a
minha, assinalando com os dedos o lugar onde estará a minha
aliança de casamento.
De súbito a alta câmara parece-me asfixiante e o cheiro a
sangue invade-me os sentidos. É tudo em que posso pensar, e
entrego-me à distração, deixando-me assolar pelo áspero travo
a ferro. O meu maxilar crispa-se, os dentes cerrados contra
todas as coisas que quero dizer. Entrechocam-se-me na
garganta, implorando por liberdade. Não quero mais isto.
Deixem-me ir para casa. Cada palavra é uma traição à minha
casa, à minha família, ao meu sangue. Os meus dentes rangem
uns contra os outros, osso contra osso. Uma jaula trancada
para o meu coração.
Sinto-me encurralada dentro de mim mesma.
Fá-lo escolher, Mare. Fá-lo rejeitar-me.
Ela respira pesadamente, o seu peito subindo e descendo a
toda a velocidade. Tal como eu, ela tem demasiadas palavras
que anseia por gritar. Espero que ela veja o quanto eu quero
recusar.
— Ninguém pensou em consultar-me — sibila o príncipe,
afastando a avó para longe. Os seus olhos ardem. Ele
aperfeiçoou a arte de olhar fulgurante para uma dúzia de
pessoas simultaneamente. — Intentam fazer de mim rei… sem
o meu consentimento?
Anabel não tem medo de chamas e toma-lhe o rosto de
novo. — Não estamos a fazer de ti nada. Estamos
simplesmente a ajudar-te a ser o que és. O teu pai morreu pela
tua coroa, e queres lançá-la fora? Para quem? Abandonar o teu
país? Pelo quê?
Ele não tem resposta. Diz que não. Diz que não. Diz que
não.
Mas já vejo a atração. O engodo. O poder a todos seduz e
torna-nos cegos. Cal não é imune a isso. Aliás, ele é
particularmente vulnerável. Toda a sua vida observou um
trono, preparando-se para o dia em que seria seu. Sei por
experiência própria que não é hábito que se quebre facilmente.
E sei por experiência própria que poucas coisas têm um sabor
mais doce do que uma coroa. Penso em Elane de novo.
Pensará ele em Mare?
— Preciso de apanhar ar — sussurra ele.
Claro, Mare segue-o lá para fora, faíscas tremendo no seu
rasto.
Por instinto, quase peço outro copo de vinho. Mas refreio-
me. Mare não está aqui para deter a comandante se ela se
passar de novo, e mais álcool apenas me deixará mais
agoniada do que já estou.
— Longa vida a Tiberias Sétimo — brada Anabel.
A câmara ecoa o sentimento. Eu apenas articulo as palavras
mudamente. Sinto-me envenenada.
EPÍLOGO

E le fricciona as pulseiras uma contra a outra, zangado,


deixando os pulsos cuspirem faíscas. Nenhuma delas
irrompe ou explode em chama. Faísca após faísca, cada uma
fria e fraca em comparação com as minhas. Inúteis. Fúteis.
Sigo-o por uma escada em caracol abaixo até uma varanda. Se
tem uma vista encantadora, não sei. Não tenho capacidade de
ver muito mais longe que Cal. Tudo dentro de mim treme.
Esperança e medo travam uma batalha através do meu ser
em igual medida. Vejo-a em Cal também, lampejando atrás
dos seus olhos. Uma tempestade assola o bronze, duas
espécies de fogo.
— Tu prometeste — sussurro, tentando desfazê-lo sem
mover um músculo.
Cal avança furiosamente e posta-se de costas contra a
amurada da varanda. A sua boca abre-se e fecha-se, buscando
algo que dizer. Alguma explicação. Ele não é Maven. Ele não
é um mentiroso, tenho de me recordar a mim própria. Ele não
te quer fazer isto. Mas isso detê-lo-á?
— Não julguei… que pessoa lógica quereria que eu fosse
rei depois do que eu fiz? Diz-me se pensaste verdadeiramente
que alguém me deixaria aproximar de um trono — diz ele. —
Matei Prateados, Mare, a minha própria gente. — Enterra o
rosto nas mãos em brasa, esfregando-as sobre as feições.
Como que a querer virar-se do avesso.
— Mataste Vermelhos também. Julguei que tinhas dito que
não havia diferença.
— Diferença, não divisão.
Rosno. — Fizeste um maravilhoso discurso sobre igualdade
mas deixaste aquele biltre Samos sentar-se ali e clamar um
trono tal como aquele a que queremos pôr fim. Não mintas
dizendo que não sabias dos seus termos, da sua nova coroa…
— A voz falta-me antes que possa falar o resto em voz alta. E
torná-lo real.
— Sabes que não fazia ideia.
— De todo? — Levanto uma sobrancelha. — Nem um
sussurro da tua avó? Nem mesmo um sonho com isto?
Ele engole em seco, incapaz de negar os seus mais
profundos desejos. Pelo que não tenta sequer. — Nada há que
possamos fazer para deter Samos. Não por enquanto…
Dou-lhe uma bofetada. A sua cabeça move-se com o ímpeto
do golpe e assim fica, olhando o horizonte mais além que eu
recuso ver.
A minha voz esganiça-se. — Eu não estou a falar do Samos.
— Eu não sabia — diz ele, as palavras suaves ao vento
fustigante. Tristemente, acredito nele. O que torna mais difícil
continuar zangada, e sem ira apenas tenho medo e pesar. —
Não sabia mesmo.
Lágrimas esculpem-me sulcos salgados nas faces e odeio-
me por chorar. Acabei de ver sabe-se lá quantas pessoas
morrerem e eu própria matei muitas delas. Como posso
derramar lágrimas por isto? Por uma pessoa que respira ainda
diante dos meus olhos?
Tenho a voz presa. — É esta a parte em que te peço que
escolhas?
Porque é uma escolha. Ele apenas precisa de dizer não. Ou
sim. Uma palavra contém os destinos de ambos.
Escolhe-me. Escolhe a alvorada. Ele não o fez antes. Tem
de fazê-lo agora.
Tremendo, tomo-lhe o rosto nas mãos e volto-o para me
encarar. Quando ele não consegue, quando os seus olhos de
bronze se focam nos meus lábios ou no meu ombro, ou na
marca exposta ao ar tépido, algo dentro de mim se quebra.
— Eu não tenho de casar com ela — murmura. — Isso pode
ser negociado.
— Não, não pode. Sabes que não pode. — Rio-me
friamente da sua presunção absurda.
Os seus olhos escurecem. — E sabes o que o casamento é
para nós… para nós Prateados. Não significa nada. Não tem
influência no que sentimos e por quem sentimos.
— Achas mesmo que é o casamento que me deixa zangada?
— A raiva fervilha dentro de mim, ardente e feroz e
impossível de ignorar. — Achas mesmo que tenho alguma
ambição de ser tua… ou de seja quem for… rainha?
Dedos cálidos tremem contra os meus, apertando mais
quando começo a afastar-me. — Mare, pensa no que posso
fazer. Que espécie de rei posso ser.
— Porque precisa alguém ser rei, de todo? — pergunto
lentamente, aguçando cada palavra.
Ele não tem resposta.
No palácio, durante o meu aprisionamento, apurei que
Maven fora feito pela sua mãe, formado no monstro em que se
tornou. Nada há na Terra que possa mudá-lo ou ao que ela fez.
Mas Cal foi feito também. Todos nós fomos feitos por
terceiros e todos nós temos algum fio de aço que nada e
ninguém pode cortar.
Pensei que Cal fosse imune à tentação corruptora do poder.
Quão enganada estava.
Ele nasceu para ser rei. Foi para isso que foi feito. Foi isso
que lhe foi feito querer.
— Tiberias. — Nunca antes disse o seu verdadeiro nome.
Não condiz com ele. Não condiz connosco. Mas é quem ele é.
— Escolhe-me.
As suas mãos suaves sobre as minhas, os seus dedos
espalmando-se ao encontro dos meus. Quando o faz, fecho os
olhos. Concedo-me um longo segundo para memorizar como é
senti-lo. Como naquele dia no Piedmonte, quando a chuvada
nos apanhou, quero arder. Quero arder.
— Mare — sussurra ele. — Escolhe-me.
Escolhe uma coroa. Escolhe a jaula de outro rei. Escolhe
uma traição a tudo por que sangraste.
Encontro o meu fio de aço também. Fino mas
inquebrantável.
— Estou enamorado de ti e quero-te mais do que tudo no
mundo. — As suas palavras soam ocas vindas de mim. —
Tudo neste mundo.
Lentamente, as minhas pálpebras abrem-se trémulas. Ele
tem o desplante de suster o meu olhar.
— Pensa no que podíamos fazer juntos — murmura,
tentando puxar-me mais para ele. Os meus pés permanecem
firmes. — Sabes o que és para mim. Sem ti não tenho
ninguém. Estou só. Nada mais me resta. Não me deixes só.
A minha respiração torna-se entrecortada.
Beijo-o pelo que podia ser, o que poderá ser, o que será —
pela última vez. Sinto os seus lábios estranhamente frios
quando nos transformamos ambos em gelo.
— Tu não estás só. — A esperança nos seus olhos corta até
ao âmago. — Tens a tua coroa.
Julguei saber o que era um coração destroçado. Julguei que
isso fosse o que Maven me fez. Quando se pôs de pé e me
deixou ajoelhada. Quando me disse que tudo o que sempre o
julguei ser era mentira. Mas então acreditava amá-lo.
Sei agora, não sabia o que era o amor. Ou o que era sentir
sequer um eco de coração destroçado.
Estar postada diante de uma pessoa que é todo o nosso
mundo e ser-lhe dito que não chega. Que não somos nós a
escolha. Que somos uma sombra para a pessoa que é o nosso
sol.
— Mare, por favor. — Ele implora como uma criança, no
seu desespero. — Como julgaste tu que isto ia acabar? O que
julgaste realmente que aconteceria a seguir? — Sinto o seu
calor, ainda que cada parte de mim se ponha fria. — Não tens
de fazer isto.
Mas faço.
Viro costas, surda aos seus protestos. Mas ele não tenta
deter-me. Deixa-me ir.
O sangue tudo abafa menos os meus pensamentos que
gritam. Ideias terríveis, palavras odiosas, quebradas e
retorcidas como um pássaro sem asas. Passam claudicantes,
cada qual pior que a última. Não os eleitos de um deus, mas os
amaldiçoados de um deus. É isso que somos todos.
É de pasmar que eu não caia pelos degraus em caracol da
torre — um milagre que consiga chegar lá fora sem soçobrar.
O Sol lá no alto está odiosamente brilhante, em áspero
contraste com o abismo dentro de mim. Enfio uma mão bem
fundo no bolso do meu uniforme e mal dou pela picada de
alguma coisa. Não levo muito tempo a perceber — o brinco. O
que Cal me deu. Quase me rio com o seu pensamento. Outra
promessa quebrada. Outra traição de Calore.
Uma ardente necessidade de correr contrai-me o coração.
Quero Kilorn, quero Gisa. Quero que Shade apareça e me diga
que isto é outro sonho. Imagino-os junto de mim, as suas
palavras e braços abertos num conforto.
Outra voz abafa-os a todos. Queima-me as entranhas.
Cal segue ordens, mas não é capaz de fazer escolhas.
Suspiro ao pensar nas palavras de Maven. Cal fez uma
escolha, sim. E no mais profundo de mim mesma não estou
surpreendida. O príncipe é como sempre foi. Uma boa pessoa
no seu âmago, mas relutante em agir. Relutante em
verdadeiramente mudar-se a si próprio. A coroa está no seu
coração, e os corações não mudam.
Farley dá comigo numa viela, a fitar uma parede com olhos
inexpressivos, as minhas lágrimas há muito secas. Por uma vez
hesita, a sua audácia há muito desaparecida. Em vez disso
aproxima-se com uma lentidão quase terna, uma mão
estendida para me tocar no ombro.
— Eu não sabia até tu saberes — murmura. — Juro.
A pessoa que ela amava está morta, roubada por alguém
mais. A minha escolheu afastar-se. Escolheu tudo o que odeio
em detrimento de tudo o que sou. Interrogo-me o que mais
doerá.
Antes de me deixar descontrair contra ela, permitir-lhe que
me conforte, reparo em mais alguém nas proximidades.
— Eu sabia — diz o Presidente Davidson. Soa como um
pedido de desculpas. A princípio sinto outro acesso de ira, mas
a culpa não é dele. Cal não tinha de concordar. Cal não tinha
de me deixar ir.
Cal não tinha de avidamente saltar para uma armadilha bem
engendrada.
— Dividir para conquistar — sussurro, recordando as suas
próprias palavras. A névoa de coração destroçado dissipa-se o
suficiente para eu entender. Montfort e a Guarda Escarlate
jamais apoiariam um rei Prateado, não verdadeiramente. Não
sem outros motivos em jogo.
Davidson assente. — É a única forma de vencê-los.
Samos, Calore, Cygnet. A Brecha, Norta, as Lakelands.
Todos movidos por ganância, todos prontos a desfazerem-se
uns aos outros por uma coroa já desfeita. Tudo parte do plano
de Montfort. Forço-me a respirar e tento recuperar. Tento
esquecer Cal, esquecer Maven, focar-me na estrada adiante.
Onde conduz ela, não sei.
Algures à distância, algures nos meus ossos, ribomba um
trovão.
Vamos deixá-los matarem-se uns aos outros.
AGRADECIMENTOS

O brigada aos exércitos de pessoas que tornaram e


continuam a tornar os meus livros uma possibilidade. À
minha editora Kristen e a toda a equipa editorial, à família
HarperTeen e HarperCollins, a Gina, às Elizabeths (Ward e
Lynch), a Margot, a melhor criadora de capas do mundo, a
Sarah Kaufman e à equipa de design. Às nossas editoras e
agentes estrangeiros, à equipa cinematográfica da Universal,
Sara, Elizabeth, Jay, Gennifer e, claro está, à central energética
que é a New Leaf Literary. A Suzie, sempre ao meu lado.
Pouya, Kathleen, Mia, Jo, Jackie, Jaida, Hilary, Chris,
Danielle, e a Sara, que me mantém a cabeça direita e sempre a
alvitrar umas espantosas notas para dar forma a A Jaula do
Rei. À New Leaf, que está sempre a impulsionar em frente. E
uma vez mais a Suzie, pois nunca poderei agradecer-lhe o
suficiente.
Obrigada ao igualmente formidável exército que são os
meus amigos e família. Aos meus pais, Lou e Heather, ainda a
razão de tudo isto e o impulso por detrás de tudo o que sou. Ao
meu irmão, Andy, que é agora um adulto melhor que eu. Aos
meus avós, tias e tios, e primos, com muito amor para Kim e
Michelle, a coisa mais próxima que tenho de irmãs. Obrigada
aos amigos da minha antiga casa, Natalie, Alex, Katrina, Kim,
Lauren, e mais. Obrigada aos amigos da minha nova casa,
Bayan, Angela, Erin, Jenn, Ginger, Jordan, o que parece ser a
maior parte de Culver City, e a quem quer que acabe nas
cadeiras de baloiço para a igreja pentecostal missionária cristã
de domingo. Obrigada às minhas camaradas da Sala Comum
de Slytherin, Jen e Morgan, e à camarada ausente, Tori, que
tem sempre um sofá-cama à espera.
Este bem pode ser um parágrafo fanfarrão, mas tenho feito
tantos amigos a valer e crescido tanto, encontrando-me com
outros escritores ao longo do último ano. Bizarro trabalho o
nosso para que não pudesse passar sem vocês, malta. Seria um
desleixo não nomear, envergonhar e agradecer a alguns de vós.
Primeiro Emma Theriault. Lembrem-se deste nome. O seu
apoio tem sido inestimável ao longo dos anos. Obrigada, por
nenhuma ordem em particular, a Adam Silvera, Renee Ahdieh,
Leigh Bardugo, Jenny Han, Veronica Roth, Soman Chainani,
Brendan Reichs, Dhonielle Clayton, Maurene Goo, Sarah
Enni, Kara Thomas, Danielle Paige e toda a família de
amantes de literatura para jovens adultos. À mãe guerreira
Margie Stohl. À primeira amiga que fiz nesta indústria, Sabaa
Tahir, que continua a ser um archote na noite que cai à nossa
volta. O meu mais profundo amor e admiração para Susan
Dennard, que é não só um ser humano exemplar, como uma
escritora profundamente talentosa com uma perspicácia sem
paralelo no que toca ao nosso ofício. E claro está, para Alex
Bracken, que tolera incontáveis desabafos por mensagem
escrita, é simultânea e igualmente versado na Guerra das
Estrelas e em história americana, tem o mais fofo cão de
imperador infantil do mundo e é um amigo verdadeiramente
constante, adorável, determinado e inteligente que por acaso é
também um escritor de truz. Acho que esgotei os adjetivos.
Sou suficientemente abençoada para ter leitores e, nem é
preciso dizer, alargo a minha mais profunda gratidão a todos e
cada um de vocês. Para citar JK, «não há história que viva a
menos que alguém queira ouvi-la». Obrigada por ouvirem. E
obrigada a toda a comunidade de jovens adultos. Foram uma
luz através das ondas de escuridão de 2016.
Da última vez agradeci a uma piza e isso mantém-se.
Obrigada aos Parques Nacionais e ao Serviço Nacional de
Parques, que continua a manter e proteger a beleza natural do
país que amo. Feliz 100.º aniversário! Para saber mais,
voluntariar-se ou fazer um donativo, vá a
www.nps.gov/getinvolved. Os nossos tesouros nacionais
devem ser protegidos para as gerações vindouras.
Obrigada a Hillary Rodham Clinton, Bernie Sanders,
Elizabeth Warren, ao Presidente Barack Obama, à Primeira-
Dama Michelle Obama, e a todos os que trabalham para
defender os direitos das mulheres, minorias, Americanos
Muçulmanos, refugiados e Americanos LGBTQ+. Obrigada a
Mitt Romney pela sua inabalável oposição à demagogia, e
pelo seu dever patriótico para com os Estados Unidos.
Obrigada a John McCain pela sua continuada luta contra a
tortura, bem como pelos seus anos de serviço e pela sua defesa
das famílias militares. Obrigada a Charlie Baker, Governador
do Massachusetts, pelo seu apoio à reforma bom senso das
armas, dos direitos das mulheres e igualdade de casamento. E
caso algum dos acima referidos sofra uma reviravolta por
altura da publicação, estes agradecimentos foram escritos em
novembro de 2016.
Obrigada aos Khan e a cada família Medalha de Ouro da
nossa nação. Obrigada a cada membro do nosso corpo militar,
a cada veterano, e a cada família militar servindo os Estados
Unidos com sacrifícios que a maior parte de nós não pode
abarcar. E obrigada a cada educador no nosso país. Vocês são
as mãos que modelam o futuro.
Obrigada ao povo da Escócia, que votou contra a divisão e o
medo. Obrigada aos representantes eleitos da Califórnia, que
continuarão a defender os seus constituintes. Obrigada a Lin-
Manuel Miranda e ao elenco de Hamilton, que protagonizou
um verdadeiro serviço ao nosso país através da sua arte
duradoura. Vocês são imparáveis, malta.
Obrigada a toda a gente em posições de poder que fala e se
levanta contra a injustiça, a tirania e o ódio nos Estados
Unidos e por todo o globo. Obrigada a todos que ouvem, veem
e mantêm os olhos abertos.
BIOGRAFIA

VICTORIA AVEYARD é uma autora de 24 anos com


formação em Escrita de Argumentos da Universidade do Sul
da Califórnia que, tendo verififi cado que todas as histórias
boas para fifi lmes já tinham sido usadas (e as más também),
decidiu ela própria escrever uma: Rainha Vermelha.
Agora divide o seu tempo entre East Longmeadow,
Massachusetts e Los Angeles. Neste momento dedica-se ao
segundo volume depois de Rainha Vermelha, enquanto tem
outros projetos literários e cinematográficos.
A Universal Pictures já detém os direitospara uma produção
a partir do livro.
Mais informações em
www.sde.pt
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A ESPADA DO DESTINO

Andrzej Sapkowski

VOLUME II
VENHA CONHECER AS OBRAS-PRIMAS
QUE INSPIRARAM O POPULAR JOGO
THE WITCHER

Continuando as histórias narradas em O Terceiro Desejo, este


é o regresso do misterioso Geralt de Rivia, um homem temido
pela sua reputação de bruxo e assassino sem misericórdia. Ele
erra pelas florestas e cidades à caça de monstros e demónios
saídos de lendas antigas, protegendo inocentes e vítimas do
mal.
As suas aventuras como viajante e feiticeiro irão levá-lo aos
quatro cantos do mundo, conhecendo personagens que irão
influenciar o seu destino e envolvendo-o nas mais
extraordinárias histórias de amor, sacrifício, coragem e
compaixão. Aos poucos prepara-se o caminho para o maior
desafio da sua vida: a guerra iminente que se avizinha entre
todas as raças.
Mais informações em
www.sde.pt

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