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Antonio Rafael de Oliveira Barros1

Introdução

O presente trabalho pretende fazer um exame da atuação de empresas estrangeiras na


Pan-Amazônia, partindo da análise de operadoras de petróleo na Guiana e da mineração em
Barcarena na Amazônia oriental. Diversos impactos ambientais e sociais decorrem dessas
atividades, sendo a atuação dos Estados nacionais como facilitadoras do avanço do
capitalismo na região. Com efeito, a postura colonial e expansiva dos Estados garante a
supremacia dos interesses capitalistas sobre a região da Pan-Amazônia, como ilustra o recente
interesse do governo brasileiro em participar da exploração de petróleo na Guiana, sem
nenhum reconhecimento da pauta socioambiental.

Algumas consequências dessas ações evidenciam o desinteresse e o baixo


investimento das empresas e governos no combate aos danos provocados pela exploração dos
recursos naturais da região amazônica. Distante do discurso desenvolvimentista sobre a
Amazônia, a realidade dessas interações entre empresas e os Estados apresenta um cenário de
aumento do desemprego, da desapropriação de áreas tradicionais, o deslocamento forçado de
pessoas, o desaparecimento das comunidades tradicionais, o conflito das identidades nativas,
dentre muitos efeitos nocivos do protagonismo de multinacionais na Pan-Amazônia.

A Pan-Amazônia e a atuação de empresas estrangeiras

A noção de Pan-Amazônia surge inicialmente com base em aspectos naturais


compartilhados entre espaços pertencentes da bacia amazônica, caracterizado por florestas
densas e úmidas. Posteriormente, este conceito foi ampliado para o âmbito social, a partir do
momento em que a percepção dos problemas vivenciados nessa região fortaleceram uma
geopolítica dos grupos étnicos, que gravitaram principalmente em torno dos impactos
ambientais das políticas desenvolvimentistas (SOUZA, 2014, p. 59).

A região das Guianas compreende o território da Guiana Francesa e dos Estados do


Suriname (Guiana holandesa), a Guiana Inglesa, além das guianas venezuelana e brasileira.
Essas regiões são espaços marcados por diferenças e complexidades, no que pese a
semelhança dos nomes e origens desses territórios. As guianas são territórios e países
constituídos a partir do século XVI, região esta que se estende da foz do rio Amazonas à do
rio Orinoco, de maioria de sua população nativa pertencente as etnias caribes e aruaques. A
região sempre foi alvo da geopolítica dos estados colonialistas, gerando uma população
1
Graduando em História na Universidade Federal do Pará.
mestiça, combinando elementos de origem europeu, africano e asiático, somando aos grupos
indígenas originários dessa região.

Conforme Gemaque Souza (2014), a postura expansionista e colonialista dos


governos nacionais na Pan-Amazônia compactua com os interesses de companhias
multinacionais estrangeiras, tais como a britânica Tullow Oil, a espanhola Repsol,
ExxonMobil (Estados Unidos, China), empresas que operam a produção de petróleo na
Guiana. Com a descoberta de importantes reservas de petróleo de gás na região fronteiriça
entre Guiana Francesa, Suriname e Brasil em meados de 2020, o governo brasileiro
demonstrou interesse em participar de projetos extrativistas na região, o que reforça o caráter
colonizador e de exploração dos recursos naturais na Pan-Amazônia.

Assim como acontece na região de Barcarena na Amazônia oriental, os incentivos


fiscais para a atividade extrativista nesses territórios fronteiriços, a exclusão do debate da
sociedade civil e a pouca ou nenhuma pauta ambiental vinculada a esses projetos fazem
avistar um futuro pouco promissor para as comunidades da região da Guiana.

De acordo com o fundador do Observatório Da Mineração2, o jornalista Maurício


Angelo, o estabelecimento de projetos de exploração dos recursos naturais nesses países
segue a mesma lógica, apostando no discurso desenvolvimentista, o qual enumera os mesmos
objetivos que permeiam a instalação das industrias de exploração mineral em Barcarena, que
são as promessas de entrada de impostos, divisas, aberturas de negócios e geração de
empregos.

Dessa forma, podemos aproximar as ações do Estado brasileiro e dos governos da


Guiana. Em ambos se percebe a falta de compromisso com as comunidades tradicionais, além
dos danos irrecuperáveis para a saúde e o meio ambiente. De acordo com Gemaque Souza
(2014), os diversos problemas enfrentados pelas populações que habitam as fronteiras entre
Brasil e Guiana “é o resultado dos conflitos e contradições em várias escalas existentes dentro
da realidade da pan-amazônica e a geopolítica dos Estados nacionais (SOUZA, 2014, p.81).

No que pese alguns esforços de cooperação entre os governos brasileiro e da Guiana,


como a implementação de centros de formação superior em biodiversidade 3, a região de
fronteiras entre esses países carece de infraestrutura que seja capaz de modificar o quadro
social desfavorável para as populações locais que vivem nessa região, que ainda prevalece a
exploração dos garimpos, o tráfico de drogas e de pessoas, a prostituição, a ocupação ilegal

2
https://observatoriodamineracao.com.br/category/amazonia/
3
Implementação da Universidade da Biodiversidade, uma proposta de caráter binacional (Brasil e
França).
do solo, o colapso das identidades dos povos tradicionais, o aprofundamento de conflitos
étnicos, dentre tantas consequências que seguem à margem do discurso oficial.

Segundo Gemaque Souza (2014), a atividade de exploração dos garimpos na fronteira


guianense já existia livremente desde os anos 80, geralmente praticada por brasileiros. A
partir da pressão da sociedade crioulo-guianesa, as autoridades francesas passaram a
intensificar a repressão à atividade mineradora, o que ocasionou o aumento da tensão nessa
região de fronteira, ação que mudou permanentemente o cotidiano e o imaginário local
(SOUZA, 2014, p. 78).

Sobre a constituição de uma identidade nacional na Guiana, Souza (2014) afirma que
a identidade crioula (guianense) está integrada com a cultura dominante (europeia), sendo que
a participação do Estado francês na região da Guiana, especialmente na instalação de projetos
estrangeiros de extração mineral, são uma demonstração da postura colonialista e do
escravismo, ações que afetaram a constituição da identidade nacional, pois aceleram o
processo de assimilação da população crioula, o que produziria a perda cultural para cada
grupo minoritário.

O caso de Barcarena, uma Chernobyl4 na Amazônia

O município de Barcarena, localizado no nordeste do estado do Pará, na Amazônia, é


palco de diversos crimes ambientais. Empresas transnacionais de exploração mineral
provocam impactos no meio ambiente, afetando a saúde e as relações sociais de comunidades
tradicionais da região. O Estado brasileiro, ao adotar uma perspectiva econômica guiada pela
globalização neoliberal, demonstra dificuldades para assegurar direitos e garantias
fundamentais da população afetada pela atividade industrial na região amazônica.

A antropóloga Rosa Acevedo5 (2022) argumenta que a região de Barcarena é alvo de


ações e políticas de desenvolvimento que se iniciam com o estabelecimento do Programa de
Integração Nacional em 1970, sendo consolidado por meio do Projeto Grande Carajás, um
megaempreendimento econômico, político e social implementado em 1982. Essas iniciativas
visavam a exploração de recursos naturais em uma das maiores áreas de exploração mineral
do mundo, sendo a maior reserva de ferro, manganês, cobre, níquel, ouro, estendendo-se por
cerca de 900.000 quilômetros quadrados, entre os rios Xingu, Tocantins e Araguaia.
Barcarena trata-se de uma pequena e antiga cidade localizada no Pará. A energia consumida

4
Em alusão ao acidente Chernobyl na extinta União Soviética, que aconteceu em 26 de abril de 1986, o
maior acidente nuclear da história.
5
Professora e pesquisadora do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia da Universidade Federal do Pará.
nas indústrias de extração mineral vem da Usina de Tucuruí (1984), sendo instalado um porto
em Vila do Conde, para servir de suporte à instalação das indústrias.

O governo brasileiro por meio de acordos comerciais, como por exemplo o consórcio
empresarial nipo-brasileiro Alunorte/Albrás, um projeto que teve início ainda em 1976,
alimentou estratégias de implementação de empresas que visavam transformar esse espaço
tradicional em um enorme complexo metalúrgico. Para essa finalidade, foi criada na década
de 1980 a Companhia de Desenvolvimento Industrial de Barcarena, para intervir em uma
companhia regional, a Companhia de Desenvolvimento de Barcarena. Essas empresas, as
duas companhias, se coadunaram para realizar aquilo que vai ser a retirada de ocupantes
tradicionais dessas áreas e o deslocamento para áreas que foram estabelecidas dentro de um
planejamento. Aqui se identifica a primeira redução dessas famílias que habitavam as
margens do Rio Murucupí.

No Rio Murucupí, por meio de documentos, é possível ver grandes grupos de famílias
em comércio com Belém, em sítios onde eram produzidos mandioca, frutas e artesanatos. A
redução é o deslocamento compulsório dessas famílias para irem morar em lugares distantes.
Não há pagamento de indenizações, os projetos industriais se instalam com o mínimo de
segurança em relação aos recursos naturais e recursos hídricos, afetando diretamente os povos
tradicionais. O desenvolvimento e os empregos que esses projetos pretendiam apresentar
como justificativa de sua existência continua a ser algo mínimo.

Políticas de integração nacional e desenvolvimentista para a região amazônica


incentivaram a instalação de empresas produtoras de produtos primários para exportação,
atualizando, dessa forma, o perfil colonizador do Estado na região. Para David Ibarra (2011),
o neoliberalismo e a globalização demandam dos governos medidas autoritárias, que quase
sempre não são planejadas em conjunto com a população afetada. A acomodação de
Barcarena ao mercado internacional tem graves consequências sociais e ambientais, violando
os direitos humanos e aprofundando o racismo ambiental.

Efeitos colaterais da geração de lucro

Barcarena foi rapidamente inserida numa dinâmica econômica global, tornando-se um


importante polo industrial de beneficiamento e exportação de alumina e caulim. Conforme
Hazeu (2019), a atividade industrial na região vem provocando inúmeras perturbações no
meio ambiente, causando a poluição de rios e igarapés, o que prejudica a saúde dos
moradores locais. A poluição dos recursos naturais promove o deslocamento forçado de
milhares de famílias, visto que “Cada vez mais, a população sente a necessidade e a
urgência de sair daquele lugar que prejudica a sua saúde, suas plantações e seus modos de
vida” (HAZEU, 2015).

O município possui uma formação social que acomodou ribeirinhos, extrativistas,


indígenas e quilombolas. Essas comunidades vivem um modo de vida tradicional, orientado
para os rios e a floresta. A degradação dos recursos hídricos da região alterou o
desenvolvimento dessas comunidades tradicionais, que passaram a viver afetados pelos danos
ambientais provocados por empresas de mineração. Em particular, o despejo de efluentes
industriais nos leitos dos rios impossibilitam a atividade pesqueira, prejudicando a qualidade
da água consumida pelas comunidades que passam a desenvolver doenças.

A cidade, localizada no bioma amazônico, tem 5 comunidades quilombolas: Sítio


Conceição, Sítio São João, São Sebastião do Burajuba (cerca de 500 famílias), Gibrié de São
Lourenço e Sítio Cupuaçu, comunidades que aguardam a emissão dos títulos de suas terras.
Todas as comunidades são certificadas pela Fundação Cultural Palmares. Diversas
consequências da atividade mineradora na região atingem as comunidades, sendo a lista de
crimes ambientais bem extensa, chamando a atenção a reincidência das empresas que
continuam a receber licenças de funcionamento e com suas atividades ocorrendo
normalmente.

Entre 2000 e 2008, pelo menos 16 episódios de crimes ambientais de vazamento de


rejeitos à fumaça tóxica, passando por mortandade de peixes e rompimento de dutos com
resíduos ácidos.

Ano Caso

200 Naufrágio da balsa Miss Rondônia em frente ao porto de Vila


0 do Conde, com derramamento de aproximadamente 2 milhões de litros
de óleo no rio Pará

200 Derramamento de cerca de 100 quilos de coque no rio Pará por


2 falha no transporte para o complexo industrial Albrás/Alunorte

200 Vazamento de grande proporção de lama vermelha da bacia de


3 rejeitos da Alunorte, com contaminação do rio Murucupi

200 Chuva de fuligem em Vila do Conde, que encobriu praias, rios,


3 casas e comércios com material particulado de coloração preta

200 Estouro de tanques de soda cáustica da Alunorte, causando


3 contaminação do Rio Pará

200 Vazamento de grande proporção de material proveniente da


4 bacia de rejeitos da Imerys, com contaminação dos igarapés Curuperé e
Dendê

200 Contaminação do rio Pará por solda cáustica da Alunorte


5

200 Vazamento de material da bacia de rejeitos da Imerys, com


6 contaminação dos cursos d’água

200 Vazamento de rejeitos da Imerys, em maior proporção,


7 atingindo o rio Pará

200 Vazamento de Caulim no rio das Cobras e nos igarapés


8 Curuperé, Dendê e São João

200 Vazamento de lama vermelha da bacia de rejeitos da Alunorte,


9 atingindo várias comunidades

201 Rompimentos de duto com efluentes ácidos da Imerys,


1 atingindo os igarapés Curuperé e Dendê

201 Vazamento de material da bacia de rejeitos da Imerys,


2 contaminando o rio Maricá

201 Vazamento de rejeitos da Imerys contaminando os igarapés


4 Curuperé e Dênde

201 Despejo de soja e fezes de bois no rio Arrozal, na região do


4 porto da Vila do Conde, pela Bunge

201 Naufrágio do navio Haidar de bandeira libanesa (5 mil bois).


5

201 Vazamento de Caulim da bacia de rejeitos da Imerys,


6 contaminando o rio das Cobras, os igarapés Curuperé, Dendê e São
João e a praia de Vila do Conde

201 Naufrágio do rebocador Ciclope


6

201 Contaminação das praias, do rio Pará e do igarapé Dendê por


6 metal pesado e resíduos de esgotamento urbano

201 Vazamento de rejeitos da Hydro/Alunorte seguido da


8 descoberta de tubulação clandestina, desvio de drenagem e canal

Fonte: baseado em Movimento Barcarena Livre6 e STEINBREENER, R. A. et al

Em pesquisa de 2019 com moradores do bairro Dom Manoel e Laranjal, distante entre
20 a 200 metros do parque industrial de Barcarena, foram coletadas amostras de sangue que
confirmaram o alto nível de exposição ao chumbo desses moradores.

O modo de exploração capitalista na região de Barcarena gera doenças nas populações


locais e desequilíbrios ambientais permanentes.

Por exemplo, a mineradora Imerys Rio Capim Caulim. Líder brasileira da produção de
caulim, a Imerys foi protagonista de vários desastres ambientais na região desde a sua
instalação. O capítulo mais recente aconteceu em meados de dezembro de 2021, quando uma
grande explosão seguida de incêndio em um dos depósitos de produtos químicos da
mineradora francesa liberou uma fumaça tóxica de cor branca que rapidamente se espalhou
por cima das vilas e bairros. Há relatos dos moradores sobre dificuldades para respirar,
problemas na boca, nos olhos e na pele.

Integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) 7 se dirigiram ao local


para acompanhar a situação. A coordenação do movimento lamentou que este seja mais um
fato triste que demostra o desrespeito da implantação dos grandes projetos na Amazônia. De
acordo com o site do Movimento pela Soberania Popular na Mineração – MAM, a
mineradora Imerys já possuía registros de crimes contra a natureza e a população de
Barcarena. No ano de 2007, a investigação de órgãos competentes descobriu uma tubulação
clandestina no complexo industrial da Imerys, por onde era lançado efluente sem tratamento
nos corpos hídricos locais.

Existe uma fraca atuação do Estado no enfrentamento dos danos causados por essas
industrias. Instituições como o Ministério Público (MP) atuam no município de forma branda,
enfatizando muito mais negociações de termos e ajustes de conduta da empresa, além da
aplicação de multas. Após o mais recente episódio de crime ambiental envolvendo a Imerys,
6
Movimento Barcarena Livre. Barcarena Livre informa. 2016 dez. [citado em 2020 mar. 15];1.
Disponível em: https://issuu.com/marcelhazeu/docs/informativo-bacarena_livre.
7
A luta das populações atingidas por barragens contra as injustiças praticadas por empresas e governos
na construção dessas obras é antiga. O movimento surgiu a partir das mobilizações de agricultores contra a
construção de usinas hidroelétricas na região do Alto Uruguai, nos estados do Rio Grande do Sul e Santa
Catarina, no ano de 1979, quando foi criada uma Comissão de Barragens durante uma reunião promovida pela
Comissão Pastoral da Terra. A partir de 1985 as comissões passaram a atuar sob o nome de Movimento dos
Atingidos por Barragens. Ver o site do MAB: https: //mab.org.br .
o MP entrou com uma ação civil pública para suspensão das atividades da empresa em
Barcarena.

Empresas transnacionais como a Imerys seguem lucrando alto, aproveitando as


brechas de incentivos fiscais e da logística do Estado brasileiro para a região, deixando um
legado de poluição e desagregação social.

Para o pesquisador Marcelo Lima (2017), a degradação ambiental e a contaminação


dos recursos hídricos são os principais problemas no município. Esta poluição não é
acidental, ela faz parte de uma estratégia das empresas diminuírem seus custos. Há evidencias
que as taxas de morbidade e mortalidades na região está relacionada aos impactos e toda
poluição provocada pela atividade industrial sobre o meio ambiente, também há evidências
sobre o aumento de doenças respiratórias e a poluição industrial.

Segundo David Ibarra (2011), um modelo econômico sob a perspectiva neoliberal se


fundamenta ideologicamente na promessa do fim da pobreza crônica e na difusão de
melhorias tecnológicas capazes de elevar o padrão de vida das pessoas. Mas não é o que
acontece em Barcarena, onde ocorre um precário investimento na construção de hospitais e
centros de saúde suficientes para o atendimento da população, por exemplo.

Com efeito, “o fracionamento das políticas sociais no âmbito de cada país reflete as
imperfeições dos sistemas democráticos” (Ibarra, 2011), em particular na Amazônia
brasileira, a ordem econômica assumiu novos contornos, com o fim do protecionismo e a
supressão das fronteiras comerciais. Cada vez mais a região passa a fazer parte de um
corredor industrial internacional do capitalismo neoliberal. Em vista disso, a indiferença às
demandas sociais aprofunda as desigualdades, aumentando a pobreza, a subnutrição, o
desemprego, as doenças, dentre muitos efeitos e sequelas da degradação ambiental.

A exploração mineral em Barcarena, no âmbito do capitalismo neoliberal, alimentou


visões ideológicas onde o Estado ora atua como predador, ora como Estado protetor. O
neoliberalismo como uma tecnologia de governo (Ibarra, 2009) é assentado sobre uma lógica
de autoridade, por exemplo as desapropriações em áreas no entorno do complexo industrial;
com o Estado forte, ou seja, um tipo de governança que ceda ao mercado não apenas
vantagens fiscais, mas o próprio manejo socioeconômico dos resultados.

O processo de difusão de políticas neoliberais na região de Barcarena foi baseado no


modelo de desenvolvimento exportador como via de progresso e de investimentos
estrangeiros, mediados pela presença do governo brasileiro. No que pese as promessas de
desenvolvimento regional por meio da instalação de grandes projetos na Amazônia,
observam-se poucos avanços em corrigir as desigualdades sociais, aplicar as garantias da
Constituição Federal de 1988 e incluir a população local no debate das políticas públicas.

Direitos humanos e o racismo ambiental

O Estado, ao financiar e dar apoio logístico a empresas transnacionais poluidoras e


destruidoras da natureza, vai na contramão da Constituição Federal de 1988 que assegura a
proteção dos direitos humanos e do meio ambiente. A degradação da vida no município de
Barcarena através da expansão industrial promove o adoecimento e o desmembramento da
população nativa, uma complexa estrutura social ligada por laços de parentesco e
religiosidade, praticantes da pesca, caça e do extrativismo. (Hazeu e Rodrigues, 2019).

A Declaração de Estocolmo de 1972 recomenda que,

“Deve-se pôr fim à descarga de substâncias tóxicas e de outras matérias e à


liberação de calor, em quantidades ou concentrações tais que não possam ser
neutralizadas pelo meio ambiente, a fim de se evitar danos graves e irreparáveis aos
ecossistemas. Assim deverá ser apoiada a justa luta de todos os povos contra a
poluição”.

Mbaya (1997) ao refletir sobre a universalidade dos direitos humanos e os desafios


para se consolidar uma democracia social, recorda que “a democracia política sem a social
ignora os laços entre democracia, solidariedade e direitos humanos” (p. 32). Os impactos na
saúde dos moradores de Barcarena, o constante deslocamento forçado de pessoas, assim
como as desapropriações de áreas tradicionais na região de Barcarena, visando a expansão do
processo industrial no município, desafia o Estado brasileiro em busca de soluções para os
abusos e violações às normas ambientais e aos direitos humanos provocadas pela atividade
mineradora.

Ao analisar a forma como catástrofes podem revelar o funcionamento e a atuação do


capitalismo neoliberal e o Estado, José Manuel Mendes (2016) avalia que

“Os desastres são ocasiões que revelam de forma clara as dinâmicas sociais das
sociedades afetadas (estruturas sociais, redes sociais, desigualdades, capacidade de
resistência) e a qualidade dos serviços estatais, sua organização e lógica de
funcionamento”.

Em vista disso, as diversas tragédias sociais e ambientais provocadas há mais de 30


anos por empresas, em particular do ramo da mineração, contra a população barcarenense,
revelam a precariedade de mecanismos governamentais de controle dos impactos no
ecossistema local, além do pouco investimento em políticas públicas.
O modelo de expansão das atividades industriais causadoras de impactos e danos ao
ecossistema, sob a conivência e incentivo do Estado, afetam de forma desproporcional a
sociedade de Barcarena. Comunidades tradicionais, indígenas e negras, os desfavorecidos
economicamente, são as que mais convivem com os efeitos da poluição e da ocupação do
território. Essa realidade de exclusão e opressão das camadas menos favorecidas, que são
vulneráveis aos riscos ambientais provocados por empresas capitalistas, caracteriza o racismo
ambiental vivenciado nessas comunidades do entorno do complexo industrial.

Para Moreira (2020), o racismo ambiental se caracteriza por uma distribuição desigual
dos riscos ambientais provocados por rejeitos tóxicos no ambiente, produzidos pelo processo
de extração de recursos naturais, de forma que atinja grupos desprovidos de poder e
representatividade.

De acordo com o Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., criador da noção de racismo
ambiental nos anos 1981,

“Racismo ambiental é a discriminação racial no direcionamento deliberado de


comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos
tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na
formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais” (Fonte: Stephanie
Ribeiro, 2019).

Em vista disso, José Manuel Mendes (2016) esclarece que a condição de vítima ou de
afetado “não se pode ater ao número de pessoas atingidas, mas sim à justiça, aos direitos, à
dignidade e à qualidade de vida”. Dessa maneira, os crimes ambientais em Barcarena, por
afetarem uma pequena porção de moradores, são muitas vezes negligenciados e esquecidos
pela mídia. A degradação do ecossistema em Barcarena pode ser avaliada como uma
catástrofe ou um desastre, conduzido de forma proposital por empresas transnacionais. Para
Mendes, catástrofes trazem “uma linha divisória para o interior do Estado (...) estabelecida
por critérios raciais, mas também por critérios etários, geográficos, de classe e de diferença
sexual” (Mendes, 2016).

Considerações finais

A região amazônica atravessou séculos de opressão e de dominação colonial e


neocolonial. Sobre o potencial de exploração dos recursos naturais na região, a pesquisadora
Edna Castro afirma que “o estado tem optado pela solução mais tradicional de
desenvolvimento, ineficaz social e ambientalmente, que é a construção de grandes obras de
infraestrutura para garantir a produção de bens primários de exportação”. Dessa maneira, o
avanço da fronteira econômica entra em choque com a garantia constitucional dos direitos
humanos, aprofundando desigualdades sociais e impactando os modos de vida e a saúde da
população de Barcarena.

Entretanto, os efeitos danosos da atividade industrial atingem a sociedade de forma


desproporcional, atingindo sobretudo comunidades indígenas, quilombolas e grupos com
poucos recursos de enfretamento político, o que agrava a violação aos direitos fundamentais
da constituição brasileira, aprofundando o racismo ambiental.

Para Hazeu (2019) o estabelecimento de grandes projetos de acumulação capitalista


em Barcarena colocou em risco permanente a saúde e a permanência de comunidades
tradicionais que passaram a disputar o território com o grande capital e o Estado. Esta
percepção neocolonial sobre a Amazônia atualiza o mito da região como fonte inesgotável de
recursos naturais, mas coloca o Estado brasileiro em contradição com o próprio ordenamento
jurídico.

Na Constituição Federal de 1988, o ser humano se sobrepõe ao Estado, garantindo a


saúde como um direito de todos e dever do Estado. A Constituição Federal é também
reconhecida como uma Constituição Cidadã, por elevar os interesses dos cidadãos perante os
demais interesses públicos e privados. A legislação ambiental brasileira, norteada pelos
princípios constitucionais que asseguram os direitos humanos, segue tratados e acordos
internacionais sobre a proteção aos ecossistemas e o dever em priorizar o direito a um
ambiente limpo, saudável e sustentável.

Em vista disso, ao analisarmos o conflito socioambiental em Barcarena, é necessário


considerar alguns referenciais teóricos que nos auxiliam a compreender a relação do ser
humano com o meio ambiente. Assim, Bruno Latour elaborou a teoria do Ator-Rede,
definindo que não há distinção entre humanos e não-humanos, e que deveríamos focar os
estudos sempre nas ações e interações entre esses elementos. Assim, o presente artigo buscou
levantar um debate sobre as ações de empresas capitalistas, políticas do Estado brasileiro para
a região, e os impactos da globalização neoliberal em comunidades vulneráveis, vítimas de
um racismo ambiental estruturado por políticas econômicas que priorizam a acumulação de
capital e o avanço das fronteiras econômicas.

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