Você está na página 1de 23

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/230824004

Panorama Atual de Drogas e Dependências

Book · January 2006

CITATIONS READS

14 5,126

2 authors:

Dartiu X Silveira Fernanda Gonçalves Moreira


Universidade Federal de São Paulo Universidade Federal de São Paulo
147 PUBLICATIONS 2,943 CITATIONS 17 PUBLICATIONS 209 CITATIONS

SEE PROFILE SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Addiction and Substance Use Disorders View project

Internet addiction View project

All content following this page was uploaded by Fernanda Gonçalves Moreira on 08 February 2021.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


C A P Í T U LO

10
Alcoolismo

10.1
Conceitos Gerais, Avaliação
Diagnóstica e Complicações Clínicas
Marcelo Niel
Alessandra Maria Julião

INTRODUÇÃO • Deficiência na fiscalização tanto dos pontos de ven-


da como das restrições legais à venda de álcool
O alcoolismo figura entre os dez principais proble- (menores, pessoas já alcoolizadas, densidade dos
mas de saúde pública no mundo, sendo a quarta doença pontos de venda).
mais incapacitante, de acordo com dados da Organização • É uma substância cujo uso crônico, além das alte-
Mundial da Saúde20. De acordo com dados do CEBRID rações de comportamento, geralmente traz diver-
(Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas) de sos comprometimentos clínicos.
2002, o álcool é a substância psicoativa mais utilizada • Alta prevalência de acidentes automobilísticos e
no Brasil, e o seu uso durante a vida variou de 53% na acidentes de trabalho associados ao uso de álcool,
região norte a 71,7% na região sudeste2. Com relação à assim como violência doméstica e urbana.
dependência do álcool, a prevalência entre homens é de
três a quatro vezes maior que entre mulheres. O álcool, Desta forma, são altos os custos econômicos para as
em comparação com as outras substâncias psicoativas, sociedades decorrentes do uso problemático de álcool.
apresenta algumas particularidades que contribuem para De acordo com levantamento realizado pelo Ministério
o desenvolvimento do quadro relatado acima, tais como: da Saúde, os gastos com internações hospitalares rela-
• O fato de ser uma droga lícita e culturalmente acei- cionados a problemas com álcool ultrapassou as cifras
ta, onde não só o uso social é considerado aceitá- de 300 milhões de reais no período de 1995 a 1997.
vel, mas também uma série de situações em que o De acordo com Murray e Lopez17, mais de 47 mi-
uso problemático é inclusive estimulado, por exem- lhões de anos de vida perdidos por incapacitação em
plo, um jovem que toma seu primeiro “porre”. De 1990 poderiam ter sido atribuídos ao consumo de ál-
forma geral, observa-se uma excessiva tolerância cool, número esse equivalente aos anos de vida perdidos
com o uso de álcool, inversamente à intolerância atribuídos à prática de sexo sem proteção. As estimati-
observada com qualquer uso de outras drogas. vas de mortalidade relacionada ao álcool, a nível mundi-
• Fácil acesso e baixo preço. al, são de 774.000 pessoas ao ano1.
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

EVOLUÇÃO DO CONCEITO HISTÓRICO De fato, podemos notar que essa conceituação é mui-
to próxima das diretrizes diagnósticas utilizadas hoje com
É consenso entre os historiadores que, do mesmo modo o advento da Classificação Internacional de Doenças
que várias outras substâncias psicoativas, o uso de álcool (CID) e do Manual de Diagnóstico e Estatística de Doen-
é tão antigo quanto a existência das civilizações e, mesmo ças Mentais (DSM)4,27.
que os textos históricos façam referência ao uso habitual
do álcool, encontramos várias citações de seu uso proble- DIAGNÓSTICO
mático: entre os egípcios, cerca de cinco mil anos antes
de Cristo, por exemplo, encontramos inscrições em seus O profissional de saúde deve estar apto, não apenas
templos que demonstram cenas de embriaguez; Hipócra- a diagnosticar a “síndrome de dependência”, mas tam-
tes (460 a.C.), já teria feito descrições da loucura provo- bém diferenciar os diferentes padrões de uso (uso, abuso
cada pelo álcool e dos problemas de seu uso pelos epilép- ou dependência) e a existência de problemas associados
ticos; em Gênesis, na Bíblia, é descrito o episódio em a estes. Por exemplo, é de conhecimento geral a fre-
que Noé, alegre por ter salvado os seres vivos do dilúvio, qüente associação entre uso de álcool e acidentes de trân-
embebeda-se com vinho. sito. No entanto, os dados estatísticos demonstram que,
No que diz respeito à Medicina, até o século XIX na maioria dos casos, tal problema se relaciona com
não havia um consenso sobre sua utilização; em alguns pessoas que fazem uso abusivo de álcool, como ingerir
momentos temos relatos de seu uso medicinal e seus várias doses de cerveja num curto período de tempo, e
benefícios à saúde e, em outros, visto como algo que não com dependentes1.
devia ser banido. Somente em 1849, o médico sueco
Magnus Huss cunhou o termo “alcoolismo” para des- Uso
crever os problemas relacionados ao uso crônico do ál-
cool e convertendo-o a uma entidade médica. Da mesma forma que ocorre com as outras drogas,
Em 1882, o norte-americano J.E. Todd fez referên- nem todo consumo de álcool é prejudicial ao organismo,
cia ao alcoolismo como um vício, no lugar de conside- haja vista pesquisas que demonstraram uma relação posi-
rá-lo uma doença e, como tal, composto de elementos tiva entre o uso diário de baixas doses de vinho tinto, e o
de uma espécie de “fraqueza moral”, contribuindo so- risco diminuído para doenças cardiovasculares. Além dis-
bremaneira para aumentar a polêmica em relação à vi- so, o álcool ocupa uma posição de destaque na cultura
são do alcoolismo, polêmica essa que perdura até os ocidental, sendo amplamente utilizado em contextos co-
dias de hoje15. memorativos, religiosos e de socialização.
Em 1951, Fouquet declarou que o alcoolismo era Apesar da existência de dados contraditórios, há indí-
caracterizado principalmente por uma alteração de com- cios de que a educação e a informação adquirida por
portamento que se manifestava principalmente pela in- cada indivíduo no âmbito familiar sobre a forma corre-
gestão excessiva de bebidas alcoólicas, irredutível a ar- ta de beber possa se configurar num fator protetor para
gumentações lógicas. Fouquet nos fornece, nessa época, o desenvolvimento da dependência, a exemplo do que
um esboço de um dos critérios diagnósticos das depen- ocorre entre italianos e judeus que tradicionalmente
dências, que é a perda de controle21. ensinam suas crianças a beber responsavelmente e apre-
Em 1960, Jellinek ampliou a definição de Fouquet, sentam menores taxas de dependência ao álcool26.
dando um caráter mais abrangente: “alcoolismo é qual- Portanto, devemos lembrar que é possível que uma
quer uso de bebidas alcoólicas que ocasiona prejuízo ao pessoa faça um uso social, controlado, não prejudicial
individuo ou a ambos”. de álcool e que nem toda pessoa que consome bebida
Em 1976, Edward e Gross estabeleceram o conceito alcoólica se tornará dependente devendo, conseqüente-
para a síndrome da dependência de álcool, caracteriza- mente abster-se da mesma. Embora esse conceito pare-
da por um conjunto de sintomas repetitivos e incapaci- ça extremante simples, trata-se de um importante preâm-
tantes, como: bulo ao abordarmos a questão das dependências: devemos
• Estreitamento do repertório de beber. admitir que as drogas, incluindo-se o álcool são substân-
• Dar preferência a beber em lugar de realizar ou- cias cuja existência acompanha a humanidade e que exis-
tras atividades. tem algumas pessoas que farão uso não prejudicial du-
• Aumento da tolerância. rante a vida.
• Sintomas de abstinência.
• Busca da bebida para alívio dos sintomas de absti- Abuso
nência.
• Consciência da compulsão para beber. O abuso é caracterizado como um padrão de uso já
• Reinstalação da síndrome, mesmo após longos pe- problemático, que não guarda relação específica com a
ríodos de abstinência. quantidade e a freqüência de consumo, mas princi-

136
A LCOOLISMO

palmente com a presença de algum tipo de problema • Dificuldade em controlar o comportamento de con-
com relação ao beber, atingindo cerca de 20% da po- sumir a substância.
pulação geral16. • Síndrome de abstinência e necessidade de uso da
De acordo o DSM-IVr (Diagnostic and Statistical mesma substância para aliviar seus sintomas.
Manual of Mental Disorders, quarta edição revisada), o • Evidência de tolerância, isto é, necessidade de do-
abuso é definido como um padrão prejudicial de uso de ses maiores para conseguir os mesmos efeitos.
álcool que afeta alguma das áreas a seguir, como: pre- • Abandono progressivo dos prazeres ou interesses
sença de problemas legais, agravo à saúde, dificuldade alternativos em favor do uso da substância, bem
em honrar compromissos e persistência no uso, apesar como aumento de tempo necessário para obter ou
da consciência da presença de problemas nas esferas fazer uso da substância ou para se recuperar de
pessoal e social11. seus efeitos.
Segundo o I Levantamento domiciliar sobre o uso • Persistência no uso da substância, a despeito de
de drogas psicotrópicas no Brasil, realizado pelo CE- evidência clara das conseqüências nocivas, como
BRID, 68,7% das pessoas fazem uso de álcool na vida. transtornos físicos, mentais ou sociais.
Porém, de acordo com o mesmo levantamento, existe
uma tendência mundial para um uso mais precoce de A importância de efetuarmos o diagnóstico da de-
substâncias psicoativas e que esse uso passa a ocorrer de pendência de álcool trará, sem dúvida, benefícios à saú-
forma cada vez mais pesada: o estudo revelou percen- de física e mental do paciente, se considerarmos que o
tual altíssimo de adolescentes que já haviam feito uso de uso problemático do álcool traz prejuízos em diversos
álcool na vida – cerca de 74% – e cerca de 14% com setores da vida do mesmo.
uso freqüente. O estudo também aponta que cerca de
19% dos estudantes faltaram à escola após beber e 11% COMPLICAÇÕES CLÍNICAS ASSOCIADAS
brigaram sob efeito do álcool2. AO USO CRÔNICO DE ÁLCOOL
De acordo com estudo multicêntrico, realizado em
1997, 61% das pessoas envolvidas em acidentes de tran- Conforme tem sido observado na literatura científi-
sito apresentavam alcoolemia positiva e, entre os que ca e na experiência de atendimento clínico dos pacien-
sofreram atropelamentos, 56,2% apresentavam algum tes alcoolistas, as queixas clínicas são responsáveis, em
nível de álcool no sangue. Quanto às pessoas vítimas de grande número de vezes, pela busca voluntária, por par-
choque e capotamento, cerca de 70% das pessoas apre- te do paciente, de tratamento médico. Em função disso,
sentavam alcoolemia positiva. Em outro estudo realiza- trata-se de fundamental importância que os médicos das
do durante o carnaval na cidade de Recife, 88% das diversas especialidades estejam atentos para a causa subja-
vítimas fatais de acidentes de trânsito apresentavam al- cente àquelas alterações clínicas e dêem um direciona-
coolemia positiva16. A importância desses dados alar- mento adequado, seja iniciando algum tipo de orienta-
mantes diz respeito ao fato de, se considerarmos que, ção ao paciente, seja encaminhando-o para atendimento
na população geral a prevalência de dependência ao ál- em unidade especializada21,26.
cool fica em torno dos 10%, uma grande soma de pes- As alterações clínicas são variadas, podendo acometer
soas, que provavelmente não preenche critérios para diversos órgãos e sistemas. Citaremos a seguir as compli-
dependência ao álcool, apresentar um padrão que deve cações mais importantes, seja pela gravidade ou pela maior
ser considerado problemático pela gama de ocorrências freqüência21,26.
em diversos setores, como os acidentes de trânsito e
violência. Aparelho Digestivo

Dependência • Gastrite e úlcera péptica.


• Pancreatite.
Conforme se pode perceber na evolução do concei- • Hepatite alcoólica e maior risco de manifestação
to histórico do alcoolismo, a identificação dos proble- das hepatites virais.
mas relacionados ao uso do álcool foi gradativamente • Esteatose e cirrose hepática.
ganhando importância na área médica e, aos poucos, • Câncer.
conquistando seu espaço como entidade nosológica e • Taxas significativamente aumentadas de neoplasias
critérios que facilitassem a sua definição. Atualmente, do trato digestivo (especialmente de esôfago e estô-
a décima edição da Classificação Internacional de mago), cabeça e pescoço e pulmões.
Doenças (CID-10) define como seguintes os critérios • Principais fatores de etiológicos: irritação local, redu-
para dependência de álcool20: ção da ação protetora do revestimento mucoso das
• Um forte desejo ou compulsão para consumir a vias pulmonares e digestivas e decréscimo na res-
substância. posta imunológica do organismo.

137
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

Sistema Nervoso graus de comprometimento e que pode ser definida como


uma combinação de várias alterações, tais como:
• Neuropatia periférica: 5 a 15% dos alcoolistas.
• Baixo peso ao nascer (redução do perímetro cefá-
• Transtornos mentais orgânicos, temporários ou
lico, da estatura e do peso).
permanentes, tanto pelo efeito direto do álcool,
• Retardo mental de intensidade variável.
como por deficiência de vitaminas específicas (Sd.
• Atraso de desenvolvimento neuropsicomotor.
de Wernicke e Sd. de Wernicke-Korsakoff ) em
• Problemas de fala e linguagem.
cerca de 5% dos pacientes.
• Fendas palpebrais menores.
• Incoordenação motora permanente por degenera-
• Ponte nasal baixa e ausência de sulco nasolabial.
ção cerebelar em menos de 1% dos pacientes.
• Lábio superior extremamente fino.
• Risco aumentado de acidente vascular cerebral do
• Defeitos no septo ventricular cardíaco.
tipo hemorrágico.
• Malformações das mãos e pés, especialmente sin-
• Demência alcoólica.
dactilia.
Sistema Cardiovascular • Problemas no comportamento e aprendizagem que
podem persistir pelo menos durante a infância.
• Estima-se que 25% dos alcoolistas desenvolve al- • Transtornos de déficit de atenção e hiperatividade.
gum tipo de comprometimento cardiovascular. • Além destas alterações que podem acometer a crian-
• Miocardiopatias. ça, a mãe pode ter história anterior de múltiplos
• Hipertensão arterial sistêmica. abortos e ao realizar a anamnese é importante es-
• Dislipidemias. tar atento a esta possibilidade.
• É importante lembrar que o álcool pode diminuir Os mecanismos envolvidos na etiologia da SFA ain-
os sinais dolorosos de alerta enquanto aumenta a da não estão esclarecidos, mas sabe-se que a quantidade
lesão cardíaca potencial ou a isquemia em pacien- e freqüência de álcool consumida interferem no risco de
tes com angina. uma mulher alcoolista ter um filho com SFA. Estima-se
que este risco seja de aproximadamente 20% em mu-
Sistema Hematológico lheres que fazem uso de 4 ou mais doses diárias de ál-
cool. O mecanismo teratogênico do etanol ainda não é
• Anemia megaloblástica, provavelmente relaciona- bem conhecido, mas informações disponíveis até o pre-
da à deficiência de ácido fólico. sente momento sugerem um mecanismo direto e indire-
• Leucopenia. to do álcool nos problemas de desenvolvimento fetal.
• Produção reduzida dos fatores da coagulação e pla-
quetas. COMPLICAÇÕES PSIQUIÁTRICAS
• As diminuições em vários aspectos do sistema imu- ASSOCIADAS AO USO CRÔNICO
nológico podem contribuir para o aumento da vul-
DO ÁLCOOL
nerabilidade a tuberculose, infecções virais ou bac-
terianas e neoplasias.
Da mesma forma que o álcool pode acarretar diver-
Sistema Reprodutório e Função Sexual sas alterações clínicas e com diferentes níveis de gravi-
dade, justamente pela facilidade com que ele se distri-
• As alterações no sistema reprodutivo são, em geral, bui por todos os tecidos do organismo, são grandes as
temporárias e com melhora após cerca de três a complicações psiquiátricas decorrentes de seu uso crô-
quatro meses de abstinência. nico. É importante nos valermos de uma avaliação crite-
• Redução na produção do esperma. riosa da história do uso da substância, bem como a pre-
• Redução na produção e defeitos na mobilidade do sença de relação temporal com o aparecimento da
esperma. sintomatologia psiquiátrica, visto que é de suma impor-
• Produção reduzida de testosterona e impotência tância efetuarmos o diagnóstico diferencial dos trans-
nos homens. tornos decorrentes do uso de álcool com transtornos psi-
• Irregularidades menstruais nas mulheres. quiátricos comórbidos, como depressão, ansiedade,
• Aumento da prevalência de abortos espontâneos transtornos psicóticos (a exemplo da esquizofrenia) e
entre mulheres alcoolistas. transtornos de personalidade14,19.

Síndrome Fetal Alcoólica (SFA) Intoxicação Aguda

Essa síndrome se caracteriza por um conjunto de A intoxicação aguda pode ser definida como um con-
alterações em filhos de mães alcoolistas, com diferentes junto de sinais clínicos e alterações de comportamento

138
A LCOOLISMO

decorrente da ingestão de uma quantidade elevada de alguns autores apontem a para a possibilidade da persis-
álcool. A gravidade das alterações e dos sintomas depen- tência dos sintomas por longos períodos de tempo e, em
derá da susceptibilidade individual, da quantidade e do casos mais raros, para sua cronificação.
tipo de substância ingerida. É importante lembrarmos As psicoses de início tardio são quadros semelhantes
que esse quadro não acomete somente alcoolista. Qual- aos quadros psicóticos desencadeados pelo uso crônico
quer indivíduo que faça uso de bebida alcoólica pode de álcool, com a particularidade de poderem iniciar-se
apresentar esse quadro14,19,26. mesmo após longos períodos de abstinência. Atualmen-
Os sinais clínicos mais comuns são a fala pastosa, o te, tem-se sugerido que tais quadros se caracterizam por
déficit de atenção, a ataxia de marcha, o hálito etílico sintomas psicóticos relacionados à evolução de quadros
proeminente, a dificuldade de coordenação motora. As demenciais14,26.
alterações de comportamento mais comuns são o humor
eufórico, a inadequação frente às regras sociais e, em Depressão
casos mais graves, o comportamento agressivo. Depen-
dendo da gravidade da intoxicação, ocorrerá a transição O uso pesado de álcool pode acarretar reações de-
do aspecto desinibitório e euforizante do álcool para a pressivas em 60 a 80% dos pacientes, que em geral
sedação, sonolência, podendo evoluir para coma. apresentam melhora com a interrupção do uso. Entre-
tanto, é de fundamental importância diferenciarmos tais
Síndrome de Abstinência (SAA) reações depressivas de transtornos depressivos maiores,
também bastante freqüente e que não apresentarão re-
Ocorre em indivíduos dependentes, de forma que, missão sintomática com a interrupção do uso, podendo
cerca de 24 ou 48 horas da diminuição ou parada da interferir negativamente no prognostico do paciente8,12,24.
ingestão alcoólica o paciente passa a cursar com sinais
de descontrole autonômico, como tremores de extremi- Síndromes Demenciais
dades, sudorese, hipertermia e hipertensão arterial. São
relativamente comuns a irritabilidade, queixas ansiosas Conforme já relatado nas complicações neurológi-
vagas, o mal-estar subjetivo e a sensação de fissura pelo cas atribuídas ao uso crônico do álcool, alguns indiví-
álcool. duos podem evoluir para quadros demenciais, sobretu-
A SAA pode evoluir com delirium tremens, que se do pelo intenso neurotropismo do álcool. Embora o
caracteriza pela presença de alucinações visuais, habitu- álcool possa apresentar distribuição por todo o sistema
almente zoopsias, ideação delirante persectória, estado nervoso central, sabemos que as regiões comumente mais
hipervígil da consciência. afetadas são o córtex frontotemporal e o cerebelo. No
Em casos mais graves, a SAA pode evoluir com pio-
que se refere às alterações degenerativas da região do
ra da instabilidade autonômica, do padrão de consciên-
cerebelo, a sintomatologia está mais relacionada ao equi-
cia, surgimento de convulsões e coma. Sabe-se que esse
líbrio e à coordenação motora. Quanto às afecções na
quadro tem altas taxas de mortalidade, que podem che-
região do córtex frontotemporal, esses pacientes geral-
gar a 20%5,26.
mente vão cursar com déficits nas funções executivas,
no pragmatismo, na capacidade de planejamento e ela-
QUADROS PSICÓTICOS
boração de frustrações e estratégias frente a dificulda-
Os quadros psicóticos relacionados ao uso crônico des. No caso da síndrome de Wernicke-Korsakoff, os
de álcool, embora possam apresentar manifestações clí- pacientes apresentam prejuízo na memória imediata,
nicas semelhantes, sobretudo no que se refere às mani- com dificuldade de retenção de informações, prolixida-
festações psicopatológicas, mas é importante recorrer- de e confabulações19.
mos aos dados da história clínica para diferenciarmos
entre transtornos induzidos, alucinose e transtornos de DIRETRIZES GERAIS PARA O DIAGNÓSTICO
início tardio. Podem cursar com ideação delirante fran- DA DEPENDÊNCIA AO ÁLCOOL
ca, de caráter persecutório, paranóide, associadas a alu-
cinações, mais freqüentemente auditivas, de cunho di- Anamnese
famatório.
A alucinose alcoólica é um quadro caracterizado pre- Seja qual for a área de atuação do profissional de saúde,
dominantemente de alucinações auditivas vívidas, de o mesmo deve estar atento à possibilidade de se deparar
cunho acusatório e por vezes acompanhadas de ideação com um paciente que seja dependente de álcool, haja vista
delirante frouxa, pouco estruturadas, que pode ter iní- sua alta prevalência em nosso meio. A primeira fonte de
cio durante o uso contínuo de álcool ou após a interrup- informação que pode levar a tal diagn[ostico é a anamne-
ção abrupta. Geralmente de duração efêmera, embora se, se considerarmos a obrigatoriedade de perguntar-

139
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

mos aos pacientes sobre seus hábitos e “vícios”. Porém, relacionados ao uso crônico e podem ser usados num
sabemos que nem sempre os pacientes são interrogados so- contexto de tratamento e prevenção, como, por exemplo,
bre isso. Por exemplo, é relativamente comum um médico no monitoramento da abstinência durante um tratamen-
deixar de perguntar a uma senhora idosa se ela ingere to ou no rastreamento de problemas em ambiente de
bebidas alcoólicas pois, de fato, a dependência de álcool trabalho em exames admissionais e periódicos.
ainda é carregada de julgamentos morais e, mais ainda, o
uso problemático de álcool em mulheres costuma ser sub- CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O USO
diagnosticado. Um estudo realizado entre estudantes de DE ESCALAS DIAGNÓSTICAS
medicina e médicos recém-formados procurou avaliar a
importância da educação médica no diagnóstico das de-
Embora relativamente recente, o uso de escalas como
pendências: esse estudo dividia os estudantes quartoanis-
forma de avaliação no âmbito das dependências passou
tas em dois grupos, um grupo que receberia orientações
a ser utilizado como forma de padronizar a coleta de
especiais sobre diagn[ostico e tratamento das dependên-
informações por parte dos pesquisadores, criando me-
cias e outro, que serviria de controle, não receberia ne-
didas que possam ser reproduzidas, facilitando assim a
nhuma orientação especial. Passado algum tempo, anali-
evolução na pesquisa científica na área. Devemos ter
sando esses estudantes, percebeu-se que os médicos que
sempre em mente que, apesar de muitas vezes as escalas
recebiam formação especial diagnosticavam problemas
oferecerem a possibilidade de traduzirmos informações
de dependência duas a três vezes mais que os médicos do
clínicas para um padrão com maior rigor, com mais
grupo-controle3,6.
facilidade de mensurarmos essas informações, não são
todas as escalas que podem ser utilizadas como ferramen-
Alterações Físicas
tas na prática clínica e, por serem construções muito
específicas, os dados provenientes podem nem sempre
Da mesma forma que a anamnese, sintomas e altera-
refletir a realidade clínica global para aquele paciente.
ções ao exame físico podem fazer o profissional da área
Existem vários tipos de instrumentos com diferentes ti-
de saúde suspeitar de um quadro de dependência e,
mesmo que o paciente não tenha revelado seu uso, a pos de aplicação9,10,13,23,25.
presença de uma alteração poderá servir como uma opor- • Instrumentos para triagem: também chamados de
tunidade de abordar o problema a partir de um dado screening, destinam-se a detectar indivíduos com
objetivo. Por exemplo, um paciente alcoolista que tenta problemas na população geral, sendo que os ins-
ocultar ou minimizar seu problema e que apresenta al- trumentos mais utilizados são a AUDIT (Alcohol
terações, desde as mais simples, como hálito alcoólico, Use Disorders Identification Test), a CAGE, a MAST
marcha atáxica, tremores sugerindo síndrome de absti- (Michigan Alcoholism Screening Test), a T-ACE e
nência e até alterações sugestivas de insuficiência hepá- a DUSI, que se destina ao rastreio de álcool e ou-
tica, como hepatomegalia, alterações de pele e fâneros tras drogas.
(p”elos), recorrência de hemorragias digestivas, entre • Instrumentos para diagnóstico: são constituídos
outras, tais sintomas poderão servir de elementos para o com base nos principais sistemas internacionais
profissional abordar a questão6. de classificação. Entre as mais utlizadas, estão a
ADS (Alcohol Dependence Scale), a CIDI (Com-
Alterações Laboratoriais posite International Diagnostic Interview), DrInC
(The Drinker Inventory of Consequences), SADD
Embora os chamados marcadores biológicos não apre- (Short Alcohol Dependence Data), SADQ (Seve-
sentem alterações que possam ser consideradas patogno- rity of Alcohol Dependence Questionnaire), a
mônicas da dependência de álcool, existem algumas altera- PRISM (anteriomente denominada SCID-A/D,
ções laboratoriais que podem sugerir seu uso crônico7,14,28, Psychiatric Research Interview for Substance and
tais como: Mental Disorders) e a CIWA-A (Clinical Institute
• Hemograma: anemia megaloblástica, evidenciada
Withdrawal Assesment for Alcohol Scale.
• Instrumentos para avaliação do consumo: são uti-
pelo aumento do Volume Corpuscular Médio (VCM).
• Alteração das Enzimas Hepáticas: TGO, TGP,
lizados para avaliar intensidade, freqüência e
GAMA-GT. quantidade de consumo, como a QFV (Quantiy-
• Diminuição da carboidrato-transferrina.
Frequency Variability Index), a NIAAA-QF (Na-
• Aumento do HDL-colesterol.
tional Institute of Alcohol Abuse and Alcoholism
Quantity – Frequency), e a LDH (Lifetime Drinking
Embora tais marcadores não apresentem uma eficiên- History). Para avaliação das conseqüências asso-
cia absoluta na determinação diagn[ostica, suas alterações ciadas ao uso de álcool, têm sido utilizadas a SADD
conforme dito anteriormente, podem sugerir problemas e a ADS.

140
A LCOOLISMO

• Outros instrumentos: existem ainda instrumentos 12. Hufford MR. Alcohol and suicidal behavior. Clinical Psychology
Review 21(5):797-811, 2001.
utilizados para avaliação dos comportamentos as-
13. John U et al. A new measure of the alcohol dependence syndrome: The
sociados ao consumo, como IDS (Inventário das Severity Scale of Alcohol Dependence. Eur. Addict. Res. 9:87-93,
Situações de Beber); instrumentos para avaliação 2003
de outras áreas, como problemas legais, relaciona- 14. Kaplan HI, Sadock BJ. Compêndio de psiquiatria. Ciências do
mentos interpessoais, bem-estar psicológico, condi- comportamento e psiquiatria clinica. Sétima Edição. Artes medicas,
Porto Alegre, 1997.
ções sociais, entre outros como a ASI (Addiction
15. Levine HG. The Discovery of Addiction: Changing Conceptions
Severity Index); instrumentos para planejamento of Habitual Drunkenness in America. Journal of Studies on Alco-
e análise do processo de tratamento, como a ASI; hol. 15. 493-506, 1978
intrumentos para avaliação de resultados, como a 16. Ministério da Saúde. A Política do Ministério da Saúde para Atenção
DrInC (The Drinker Inventory of Consequences). Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Série E. Legislação
da Saúde. Ministério da Saúde, Brasil, 2003.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 17. Murray CJ, Lopez AD. Evidence-based health policy – lessons
from the Global Burden of Disease Study. Science. 1996 Nov
1;274(5288):740-3. Burden of Disease Unit, Harvard School of
1. Bunning E, Gorgulho M, Melcop AG, O’Hare P. Álcool e Redução Public Health, Cambridge, MA 02138, USA.
de Danos – uma abordagem inovadora para países em transição. 18. Nery, AF e cols. Impacto do Uso de Álcool e outras Drogas em
Ministério da Saúde, Brasil, 2004. Vítimas de Acidentes de Trânsito. ABDETRAN, Brasília, 1997.
2. Carlini EA. I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas 19. Norhtey G et al. Alcohol and Injury: A selective annotated biblio-
Psicotrópicas no Brasi – 2001. Centro Brasileiro de Informações graphy. Injury Prevention Research Centre - University of Au-
sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), SENAD, São Paulo, 2002. ckland, Nova Zelândia, 2003.
3. Chappel JN. Training of residents and medical students in the 20. Organização Mundial de Saúde. Classificação Internacional de Do-
diagnosis and treatment of dual diagnosis patients. Journal of enças – CID10. Capítulo V: Classificação de Transtornos Mentais
Psychoactive Drugs 25 (4) : 293-300, 1993. e de Comportamento. ARTMED, Porto Alegre, 1993.
4. Edwards G. The Alcohol Dependence Syndrome. In: Edwards and 21. Papet N. Les addictions. Annales medico-psychologiques. 161 (5):
Grant (editores). Alcoholism: New Knowledge and New Respon- 224-238, 2003.
ses. London: Croom-Helm, 1977.
22. Ramstedt M. Alcohol and suicide in 14 European countries. Addic-
5. Edwards G, Brown D, Duckitt A, Oppenheimer E, Sheehan M, tion 96 (Supplement 1): S59-S75, 2001.
Taylor C. Outcome of alcoholism: the structure of patient attribu-
tions as to what causes change. British Journal of Addiction, 82, 23. Reoux JP et al. The Alcohol Use Disorders Identification Test
533-545, 1987. (AUDIT) predicts alcohol withdrawal symptoms during inpatient
detoxification. Veterans Affairs Puget Sound Health Care System,
6. Edwards G, Marshall EJ, Cook CCH. O tratamento do alcoolismo: Addictions Treatment Center. J Addict Dis. 21(4):81-91, 2002.
Um Guia para Profissionais da Saúde. 3a edição. Artes Médicas,
Porto Alegre, 1999. 24. Rossow I, Romelsjo A, Leifman H et al. Alcohol abuse and suicidal
behaviour in young and middle age men: differentiating between
7. Edwards G, Gross M. Alcohol Dependence: provisional description attempted and completed suicide. Addiction 94(8): 1199-1207,
of a clinical syndrome. British Medical Journal, 1, 1058-1061, 1976. 1999.
8. Foster T. Dying for a drink. British Medical Journal (BMJ) 323(13 25. Saitz R et al. Alcohol Abuse and Dependence in Latinos living in
October): 817-818. 2001. the United States. Validation of CAGE (4M) Questions. Arch.
9. Friedmann PD et al. Validation of the screening strategy in the Intern. Med. 159: 718-754, 1999.
NIAAA “Physicians’ Guide to Helping Patients with Alcohol Pro- 26. Shuckit M. Abuso de álcool e drogas: uma orientação clínica ao
blems. J Stud Alcohol. 62(2):234-8, Mar 2001 diagnóstico e tratamento. Artes Médicas, Porto Alegre, 103-124,
10. Gorenstein C et al. Escalas de Avaliação Diagnóstica em Psiquiatria. 1991.
Versão atualizada e ampliada da Revista de Psiquiatria Clínica 27. Silveira DX. Dependência. Conceito e assistência às toxicomanias.
1998,25 (5,6);, 26(1,2) : 267-356, 1999 Casa do Psicólogo, São Paulo, 1996.
11. Hasin DS et al. Differentiating DSM-IV Alcohol Dependence and 28. Szegedi A. Carbohydrate-deficient transferrin (CDT) and HDL
Abuse by Course: Community Heavy Drinkers. Journal of Subs- cholesterol (HDL) are highly correlated in male alcohol dependent
tance Abuse (9): 127-135, 1997 patients. Alcohol Clin Exp Res. Apr;24(4):497-500, 2000.

141
10.2
Tratamento do Alcoolismo:
O Acompanhamento Psiquiátrico
Dartiu Xavier da Silveira
Alessandra Julião
Marcelo Niel

INTRODUÇÃO de álcool e o desejo de parar de beber, tendo como meta


principal a abstinência total.
O diagnóstico e o tratamento do alcoolismo é certa- Outras modalidades que também são oferecidas com
mente um desafio freqüente que se coloca no cotidiano freqüência em nosso meio são o “Modelo Minnesota”10,
de clínicos e psiquiatras, tendo em vista a alta prevalência originado a partir das teorias dos Alcoólicos Anônimos
dos transtornos relacionados ao uso de álcool e as inúme- associados a técnicas cognitivo-comportamentais, e as
ras complicações físicas e psíquicas que estes acarretam. Comunidades Terapêuticas, cuja expansão tem sido enor-
A ausência, até o momento, de explicações etiológi- me, em geral associadas a grupos religiosos, cuja pro-
cas claras para o alcoolismo tem propiciado não só o posta de tratamento é baseada em internações prolonga-
aparecimento de diversas concepções acerca do seu con- das que podem variar de alguns meses a um ano.15
ceito, bem como a persistência de teorias com pouca ou É inegável a importante contribuição dos AA para o
nenhuma fundamentação científica. Esse conjunto de fa- reconhecimento, por parte da população geral, do alcoo-
tores, somado à falta de um tratamento que seja indiscu- lismo como um problema que demanda algum tipo de
tivelmente eficaz para a maioria dos pacientes, acaba por tratamento, além de representarem uma garantia de aces-
se refletir na existência de diversas modalidades terapêu- so a algum tipo de abordagem para o problema em mui-
ticas, cujas práticas guardam grandes diferenças entre si. tas regiões onde a rede pública de saúde é precária, ou
Diversos estudos de eficácia têm apontado as baixas taxas inexista. Entretanto, alguns fatores podem ser citados como
de recuperação dos pacientes, em torno de 30%, mesmo pontos vulneráveis desse tipo de abordagem com base
nos melhores centros de tratamento14. nos “Doze Passos” e no modelo de doença, a saber:
Entre as diversas modalidades terapêuticas ofereci-
das aos alcoolistas, os grupos de auto-ajuda e apoio, a • Tais abordagens tendem a ver as dependências em
exemplo dos Alcoólicos Anônimos (AA), são a mais an- termos dicotômicos, ou seja, uma pessoa tem ou
tiga forma de tratamento do alcoolismo e constituem não tem a doença, e caso tenha, o tratamento é sem-
até hoje a modalidade mais difundida em nosso meio, e pre uma abstinência total para impedir a progres-
não poderiam, portanto, deixar de ser citados. Seu sur- são da doença. O principal problema que surge a
gimento ocorreu nos anos 1940, nos Estados Unidos. partir desta categorização dicotômica é a ausência
Suas abordagens estão baseadas em concepções teóricas de um “campo intermediário” no qual estejam in-
que retratam, de um lado, o alcoolismo como um “ví- cluídos indivíduos com um padrão menos crônico
cio” (modelo moral), correlacionando-o dessa forma com e grave de ingestão de álcool. Essa suposição de que
falhas de caráter que devem ser assumidas pelo indiví- todos os indivíduos que tenham problemas com ál-
duo e, por outro lado, pautadas em conceitos iniciais e cool sejam semelhantes (com uma má evolução pre-
já ultrapassados da Organização Mundial de Saúde que visível a menos que adotem um estilo de vida que
definiam o alcoolismo como uma doença crônica, pro- inclui a abstinência total) acaba por afastar muitos
gressiva, incurável e fatal (modelo médico). Baseados na adultos jovens do tratamento, por estes não se iden-
teoria dos “Doze Passos”, os grupos de AA são consti- tificarem com as histórias de uso crônico e pesado
tuídos sob a forma de uma “irmandade” composta de de álcool e rejeitarem o rótulo de alcoolistas. Estes
pessoas que têm em comum a história de dependência indivíduos que apresentam condições menos crôni-

142
A LCOOLISMO

cas poderiam responder melhor a outras formas de mento, época esta em que o fundamental pode ser ofe-
abordagem do problema. recer um ambiente acolhedor que permita ao indivíduo
• A ausência de um olhar profissional representa uma estabelecer uma relação de confiança e parceria com a
importante limitação em todos os programas com- equipe.
pletamente formados por pessoas sem formação Embora o foco deste capítulo seja o vértice psiquiátri-
profissional para lidar com o fenômeno da depen- co do tratamento do alcoolismo, todas estas considera-
dência, habilitados apenas pela própria experiên- ções são necessárias para enfatizar que estaremos tratan-
cia da dependência7,15. Na prática clínica, temos do aqui de apenas um dos vários recursos que podem, e
nos deparado, por exemplo, com programas que quando indicados, devem ser oferecidos ao paciente. As-
são totalmente contrários ao uso de qualquer me- sim, a avaliação e o acompanhamento psiquiátrico, os
dicação para pacientes dependentes, mesmo quan- grupos de acolhimento, as várias formas de abordagem
do há evidências de que o uso seria seguro e po- psicoterápica, a terapia ocupacional, as oficinas terapêu-
tencialmente benéfico para o indivíduo. ticas, as intervenções familiares e do serviço social deve-
rão ser combinados para formar um projeto terapêutico
Em contraste com o que foi descrito acima, existem
abrangente e dinâmico, já que pode se modificar tanto de
tratamentos baseados no modelo biopsicossocial, entre
indivíduo para indivíduo, como para um mesmo pacien-
os quais o PROAD se inclui, e que tendem a ver os
te ao longo de um determinado período.
problemas do álcool numa série contínua e a admitir
que as pessoas podem deslocar-se em qualquer sentido
nesta série contínua ao longo do tempo. Os defensores AVALIAÇÃO E O ACOMPANHAMENTO
deste modelo propõem uma maior variedade de opções PSIQUIÁTRICO
de tratamento, que freqüentemente inclui a ingestão
moderada e outras abordagens de redução de danos. Embora todos os pacientes necessitem passar por uma
avaliação psiquiátrica, nem todos terão indicação de man-
O MODELO DE TRATAMENTO DO PROAD ter o acompanhamento posteriormente. A presença de
comorbidade, a gravidade do quadro de dependência e o
O modelo de tratamento oferecido pelo PROAD procu- comprometimento físico do paciente são alguns dos fato-
ra levar em consideração as evidências de que o alcoo- res que justificam a necessidade de incluir o acompanha-
lismo é um transtorno de origem multifatorial – modelo mento psiquiátrico dentro do projeto de tratamento.
biopsicossocial ou sistêmico – e que, portanto, precisa
ser visto dentro do contexto global do indivíduo que Abordagens Farmacológicas
procura ajuda. Isto gera uma maior flexibilidade na cons-
trução da proposta terapêutica para um determinado Durante o acompanhamento psiquiátrico de um pa-
paciente, a começar pela meta a ser atingida por meio ciente alcoolista, os psicofármacos podem ser utilizados
do tratamento, já que procuramos construí-la juntamente com as seguintes indicações8:
com o paciente, a partir da escuta de sua demanda e do • Durante a fase de desintoxicação, para o tratamento
respeito por sua subjetividade. Portanto, a abstinência da Síndrome de Abstinência ao Álcool (SAA). Esta
total não será, a priori, a única meta e, mesmo para indicação será devidamente abordada no capítulo
aqueles indivíduos que desejam alcançá-la, é importante sobre a SAA.
estar atento a outros aspectos da vida do paciente que • Para ajudar o paciente a não beber:
podem ser incluídos entre os objetivos que buscamos – tratamento aversivo;
alcançar. – medicamentos para reduzir a fissura de beber.
Desta forma, nenhum aspecto pode ser subestimado • Para o tratamento de comorbidades.
ou negligenciado na elaboração da proposta terapêutica:
aspectos físicos e psíquicos devem ser avaliados com a Agentes Aversivos ao Álcool
mesma atenção que será dispensada às questões que
envolvem a vida social do paciente, ou seja, sua situação Dissulfiram
profissional, familiar, econômica, de moradia etc.
Ao longo do tratamento, estes aspectos podem apre- O etanol ingerido é oxidado pela enzima álcool-desi-
sentar diferentes graus de prioridade, como acontece, drogenase em acetaldeído, substância tóxica para o or-
por exemplo, com a importância que pode desempe- ganismo e que em condições normais é rapidamente
nhar o trabalho de reinserção social para a manutenção metabolizado pela enzima aldeído-desidrogenase. O dis-
de melhoras obtidas em fase mais iniciais e intermediá- sulfiram inativa de maneira irreversível essa enzima,
rias do acompanhamento, ao contrário do que comu- gerando um acúmulo na concentração de acetaldeído,
mente se observa com o momento da chegada ao trata- efeito esse conhecido como antabuse.

143
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

Desta forma, a ingestão de álcool pelo indivíduo que a última ingestão de álcool. É importante informarmos
usou dissulfiram é seguida (após cerca de cinco minu- ao paciente que a interação pode ocorrer mesmo com a
tos) de vários sinais e sintomas causados pelo aumento utilização de alimentos, cosméticos e produtos de lim-
da acetaldeído no sangue: rubor facial, taquicardia, des- peza que contenham álcool, como desodorantes, perfu-
conforto físico, cefaléia intensa, aumento ou queda da mes, tinturas para cabelo, molhos, desinfetantes, entre
pressão arterial, náuseas e vômitos, agitação psicomoto- outros. Portanto seja frente à ingestão de álcool ou pela
ra ou sonolência. O efeito pode durar de 30 minutos a utilização desses produtos, o paciente e acompanhantes
várias horas e, caso a quantidade de álcool ingerida seja devem ser orientados a procurar auxílio médico em pron-
grande, podem ocorrer confusão mental e síncope. Não to-socorro, informando ao profissional que o atender o
existe nenhum tratamento específico uma vez que a rea- uso da medicação.
ção álcool–dissulfiram tenha começado, e a maioria dos
autores recomenda medidas de suporte geral e anti-his- Contra-indicações
tamínicos para bloquear os efeitos de liberação de hista-
mina mediada pelo acetaldeído8,14. Pacientes com insuficiência cardíaca e arritmias, doen-
O uso do dissulfiram pode auxiliar alguns pacientes ças pulmonares crônicas graves, demência, durante a ges-
a resistir ao impulso de beber pelo conhecimento das tação e hepatopatias são contra-indicações absolutas.
reações que podem ocorrer. Ele pode ser útil quando Outras condições clínicas, tais como diabetes, hiperco-
incluído num tratamento mais abrangente, com acom- lesterolemia, epilepsia e pacientes em uso de medicações
panhamento psicológico e em pacientes altamente moti- de metabolização hepática (fenitoína, barbitúricos, benzo-
vados. No entanto, é importante ressaltar que os achados diazepínicos e outros) são contra-indicações relativas. Efei-
de pesquisa não são uniformes em apontar os benefícios
tos adversos independentes da ação do álcool: erupções
do uso de dissulfiram para o tratamento de pacientes
acneiformes, urticária, cansaço, tremor, inquietação, cefa-
alcoolistas. São poucos os ensaios controlados e rando-
léia, gosto metálico e perturbações gastrointestinais leves.
mizados, e o maior deles foi o “Veterans Administration
Embora sejam eventos raros, já foram descritos casos de
Cooperative Study”. Este estudo acompanhou mais de
neurites (incluindo neurite óptica) e hepatites graves e pos-
600 alcoolistas por no mínimo 12 meses e não encon-
sivelmente irreversíveis14.
trou diferenças no que diz respeito ao tempo de absti-
nência total, ao tempo para o primeiro drinque, empre-
go ou estabilidade social entre os grupos que tomaram Medicamentos que Reduzem o Desejo de Beber
dissulfiram 250 mg/dia e 1 mg/dia (uma dose ineficaz), (Anticraving)
e os grupos placebo. Entre os pacientes que beberam,
aqueles do grupo de 250 mg/dia relataram um número Naltrexone (Antagonista Opióide)
significativamente menor de dias em que beberam. Es-
tes trabalhos, assim como o conhecimento de efeitos O aumento da atividade opióide endógena que se
colaterais potencialmente sérios, justificariam maior segue ao consumo de álcool parece estar relacionado ao
cautela na prescrição do dissulfiram, não o fazendo in- mecanismo reforçador do beber, justificando o uso de anta-
discriminadamente para o alcoolista médio, mas para gonistas opióides.Os estudos indicam que, quando as-
subgrupos de pacientes que provavelmente terão maior sociado com psicoterapia, ocorre diminuição de dias
chance de se beneficiar do uso desta droga, como aque- bebidos, doses e freqüência de recaídas. No entanto,
les com altos níveis de funcionamento e motivação14. esses resultados precisam ser analisados com cautela,
Outro aspecto que tem sido descrito como um proble- pois são ensaios clínicos de curta duração e com amos-
ma freqüente é que os pacientes deliberadamente param tras pequenas. Ainda não se sabe se esta medicação pode
de tomá-lo para poderem beber8. trazer benefícios a longo prazo e que grupo de pacientes
Antigamente o dissulfiram era utilizado sob a forma se beneficiariam mais6,13.
líquida, sem o conhecimento do paciente. Atualmente essa O efeito colateral mais freqüente é náusea.
forma de uso é proscrita e o que se recomenda é a utiliza-
ção de um termo de consentimento informado, onde se Posologia
declara que o paciente foi informado dos potenciais efeitos
na ingestão concomitante com o álcool e da necessidade Um comprimido (50 mg ), via oral, uma vez ao dia.
de procurar auxílio médico na vigência desses efeitos.
Contra-indicações
Posologia
Hepatopatia (pode ser tóxico para o fígado, sendo
Duzentos a 250 mg/dia ou 400 a 500 mg em dias aconselhável controle de TGO e TGP nos pacientes em
alternados. Nunca iniciada antes de passadas 24 h desde uso), usuários de analgésicos opióides ou dependentes de

144
A LCOOLISMO

opióides (pode desencadear síndrome de abstinência pressão, embora não seja raro encontrarmos na clínica
de opióide). pacientes portadores de transtornos psicóticos, quadros
demenciais, transtornos mentais orgânicos e transtor-
Acamprosato nos de personalidade. Sabe-se que a presença de comor-
bidade psiquiátrica é fator determinante, em linhas ge-
O acamprosato tem se mostrado um tratamento se- rais, de piora da evolução e do prognóstico. Embora as
guro e eficaz para o alcoolismo em vários estudos controla- informações na literatura sejam contraditórias no que
dos. Possui estrutura semelhante à de alguns neurotrans- se refere aos benefícios da identificação e tratamento
missores, como a taurina e o ácido gama-aminobutírico de quadros comórbidos, a prática do atendimento aos
(GABA). O mecanismo de ação do acamprosato no al- alcoolistas tem demonstrado que seu tratamento ade-
coolismo ainda não está elucidado, mas parece ser deri- quado interfere positivamente no tratamento, já que sin-
vado de um somatório de ações em diversos sistemas, tomas psiquiátricos podem configurar, na percepção do
incluindo inibição da hiperestimulação de aminoácidos paciente, na chamada “realidade insustentável” que trans-
excitatórios (como o glutamato), redução do influxo de forma a substância psicoativa em uma espécie de “alívio
ions cálcio, aumento da recaptação de GABA, aumento sintomático”.
dos níveis de serotonina e ação de antagonismo nora- Outro aspecto bastante polêmico é o questionamento
drenérgico. É bem absorvido por via oral, apresenta realizado por grande parte dos profissionais sobre a
meia-vida de 13 horas e não é metabolizado, sendo, utilização de farmacoterapia em pacientes dependen-
portanto, totalmente excretado pelo rim. tes, pelo risco do uso concomitante de medicamentos
Os efeitos colaterais mais freqüentes são diarréia e e substâncias psicoativas, no caso o álcool. Porém, tal
cefaléia, sendo em geral bem tolerado. Os estudos são discussão dá origem a um paradoxo no tratamento das
mais consistentes (amostras maiores, maior tempo de comorbidades, pois se percebermos que utilização de
acompanhamento) e mostram que os indivíduos trata- farmacoterapia pode melhorar a evolução do paciente,
dos com acamprosato permanecem mais dias abstinen- melhorando assim seu padrão de uso, de que forma
tes no total e com períodos de abstinência contínua deixaremos de tratá-lo, com chances de piorar a evolu-
maiores, além de apresentarem melhor aderência ao tra- ção do quadro? Essa questão deve ser sempre discuti-
tamento6. da, mantendo-se a atenção na relação risco–benefício da
utilização de medicação para um determinado pacien-
Posologia te, bem como o preparo do profissional na segurança
da utilização desses medicamentos e o conhecimento dos
1,3 g/dia para pacientes com peso menor que 60 kg e princípios da psicofarmacologia. Sabe-se que quando
2,0 g/dia para pacientes com peso superior a 60 kg, via um paciente recebe orientação adequada em relação à
oral, divididos em três doses diárias (junto das refeições). utilização dos medicamentos ou, na ausência de condi-
ções psíquicas adequadas, que essa orientação seja for-
necida a um familiar, cuidador ou responsável, cientes
Contra-indicações
dos riscos de uso de medicação concomitante, como
aumento do nível sérico de alguns medicamentos e do
Pacientes com insuficiência renal e durante a gesta-
álcool, risco de convulsões, sedação excessiva, quedas,
ção e lactação.
entre outros, o tratamento farmacológico pode ser via-
bilizado2,7,11,12,14.
Estabilizadores de Humor
A utilização de medicamentos deve seguir os mes-
mos princípios no tratamento de pacientes não-alcoo-
Embora a literatura científica sobre a eficácia da sua
listas, correlacionando o tipo de medicamento com o
utilização seja bastante controversa, alguns estudos4,9 e a
perfil de sintomas, presença de doenças clínicas que in-
prática clínica têm demonstrado alguma eficácia na sua
terfiram no perfil farmacológico da droga, adaptação aos
utilização no controle da compulsão para beber, alívio
efeitos colaterais, uso concomitante de outras medica-
dos sintomas de fissura e diminuição dos sintomas ansio- ções e suas potenciais interações1,5,6.
sos, sobretudo a carbamazepina e o ácido valpróico16. A única classe de medicamentos que, se não evitada,
deve ser utilizada com maior parcimônia, são os benzo-
ABORDAGEM FARMACOLÓGICA NO diazepínicos, pelo seu alto potencial de desenvolvimen-
TRATAMENTO DAS COMORBIDADES to de dependência e tolerância, sobretudo entre pacien-
tes alcoolistas, pela atuação semelhante ao álcool em
Diversos estudos apontam alta prevalência de comor- receptores GABA. Mesmo assim, a sua utilização tem
bidades psiquiátricas nos pacientes dependentes de ál- fundamental importância no tratamento da síndrome de
cool14, em torno dos 80%, sobretudo ansiedade e de- abstinência e, realizando-se avaliação criteriosa e indivi-

145
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

dualizada, pode ser utilizada com adjuvante no trata- com conseqüente desidratação e desequilíbrio eletrolíti-
mento das comorbidades com relativa segurança1,6. co, podendo desencadear um quadro de intoxicação pelo
lítio, por este se tratar de um sal extremamente suscep-
Transtornos Depressivos tível a alterações da concentração sérica e possuir uma
estreita faixa terapêutica muito próxima da faixa de in-
Freqüentemente ocorre remissão de sintomas depres- toxicação, cujos efeitos podem variar de desagradáveis
sivos após o paciente ter se desintoxicado completamente, a potencialmente letais5,11.
o que tem levado muitos autores a sugerirem que a in-
trodução do antidepressivo seja feita após um período Síndromes Demenciais e Transtornos
de abstinência de 15 dias, caso ocorra a persistência Mentais Orgânicos
desses sintomas, configurando um transtorno depressi-
vo. Entretanto, parece ser útil fazer uma avaliação indi- Nas síndromes demenciais, deve-se proceder a cui-
vidualizada no sentido de que para alguns pacientes o dadosa investigação etiológica, pois é possível que o
quadro depressivo pode estar fortemente relacionado às quadro demencial não seja decorrente somente do uso
recaídas e até mesmo à impossibilidade de aderir ao crônico de álcool, mas de outro processo degenerati-
tratamento5. vo. Portanto, o tratamento consiste na utilização, quan-
Podem ser utilizados todos os antidepressivos, em do existente, de medicações específicas e utilização de
doses habituais, considerando que devemos ter especial medicações que contribuam para o controle sintomáti-
cuidado na utilização dos tricíclicos em pacientes com co, como antipsicóticos para quadros de agitação e sun-
antecedente de crises convulsivas, pelo rebaixamento do downing. Com certa freqüência podemos observar
limiar convulsivo, comprometimento hepático e conco- maior dificuldade no controle da compulsão para be-
mitância de quadros demenciais pelo risco aumentado ber e em exercer o controle de comportamentos. Nes-
de desencadeamento de confusão mental5,11,14. ses casos, o uso de antipsicóticos, de carbamazepina e
de ácido valpróico têm demonstrado relativa melhora
Transtornos Fóbico-ansiosos nesses quadros5.
O tratamento farmacológico de pacientes portado-
Um fator importante a ser descartado antes de inici- res de transtornos mentais orgânicos deve englobar, se
armos o tratamento é a presença de sintomas ansiosos possível, a detecção e a remoção da causa básica e o uso
que estejam relacionados ao período da SAA. Do mes- de medicações relacionadas ao tipo de sintomatologia
mo modo que os quadros depressivos, o tratamento des- apresentada, como por exemplo, o uso de carbamazepi-
ses quadros pode ser realizado com antidepressivos. A na em transtorno orgânico de humor secundário ao hi-
buspirona se caracteriza por apresentar um perfil não- potireoidismo.
sedativo, com baixo potencial para desenvolver depen-
dência; e atuação, como agonista serotoninérgico, tam- Transtornos de Personalidade
bém pode ser usada. Embora não considerados de
primeira escolha, outros medicamentos podem ser utili- O tratamento para esses casos segue os mesmos pa-
zados, como o propranolol e a carbamazepina5. drões em casos de pacientes não-alcoolistas, sendo que
a utilização de medicações nesses casos se destina ao
Transtornos Psicóticos controle dos sintomas apresentados, como uso de car-
bamazepina, ácido valpróico, antipsicóticos e inibido-
O tratamento de alcoolistas portadores de transtor- res da recaptação de serotonina para comportamentos
nos psicóticos deve seguir os princípios gerais de trata- agressivos. É importante considerar o tratamento de
mento para esses transtornos, com utilização de antipsi- outras comorbidades psiquiátricas, como os quadros
cóticos. Deve-se ter especial cuidado com a utilização depressivos 5.
de antipsicóticos que maior potencial para rebaixarem
o limiar convulsivo, como os de baixa potência, como a Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
clorpromazina ou a clozapina, em pacientes com ante- (THDA)
cedente de crises convulsivas3,5.
Embora os estudos sejam recentes, tanto no que con-
Transtorno Afetivo Bipolar cerne ao diagnóstico desse transtorno em pacientes adul-
tos como ao tratamento, há indícios de que a farmaco-
Os estabilizadores de humor podem ser utilizados, terapia possa interferir positivamente na evolução desses
mas deve-se ter especial cuidado em pacientes que este- quadros. Apesar do metilfenidato ser a medicação de
jam fazendo uso contínuo do álcool pois comumente a escolha no tratamento do TDAH, deve ser evitado em
intoxicação pelo álcool provoca diminuição da volemia, pacientes que estão fazendo uso contínuo do álcool, pelo

146
A LCOOLISMO

potencial risco de agitação psicomotora, reservando-se 10. Owen P. Approaches to Drug Abuse Counseling. Minnesota Mo-
del: Description of Counseling Approach. National Institute on
sua utilização para um outro momento, quando a situa- Drug Abuse (NIDA). U.S. Department of Health and Human
ção do uso de álcool estiver em melhor controle, procu- Services, National Institutes of Health. Disponivel em http://
rando-se utilizar outras medicações, como a venlafaxi- www.dualdiagnosis.org/library/nida_00-4151/11.html, em 01/
05/2004.
na, a nortriptilina, a fluoxetina, a carbamazepina, o ácido
11. Peindl KS et al. Alcohol dependency and affective illness among
valpróico e a clonidina. women of childbearing age. Arch. W. Mental Health 1(3): 117-123,
2002.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 12. Saitz R, O’Malley SS. Pharmacotherapies for alcohol abuse. Wi-
thdrawal and treatment. Med Clin North Am. 81 (4) : 881-907,
1. Anton R, Swift RM. Current Pharmacotherapies of Alcoholism: 1997.
AUS Perspective. Am. J. Addict. 2003; 12 (s1): S53-S58. 13. Schaffer A, Naranjo CA. Recommended drug treatment strategies
2. Araújo NP, Monteiro MG. Family history of alcoholism and co- for the alcoholic patient. Drugs 56 (4) : 571-85, 1998.
morbidity in brazilian male alcoholics and controls. Addiction 14. Shuckit M. The Alcoholic Woman: A literature Review. Int. J. Psyc.
90(9): 1205-1206, 1995. Med. 3(1): 23-38, 1973.
3. Crome IB. Alcoholism and Schizophrenia: a challenge for treat- 15. Swora MG. Personhood and disease in Alcoholics Anonymous: a
ment and research. Addiction 95(12): 223-228, 2002. perspective from the anthropology of religious healing. Mental
Health Rel. Cult. 4(1): 1-21, 2001.
4. Johnson BA, Ait-Daoud N. Neuropharmacological treatments for
alcoholism: scientific basis and clinical findings. Psychofarm. 149 16. Ting-Kai L. Clinical perspectives for the study of craving and relap-
(4): 327-344, 2003. se in animal models. Addiction 90 (9): 1205-1206, 1995.
5. Kranzler HR, Rosenthal RN. Dual Diagnosis: Alcoholism and Co-
Morbid Psychiatric Disorders. Am. J. Addict. 12 (S1): S26-S40, BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
2003.
6. Litzen RZ, Allen JP. Advances in development of medications for 1. Davids E, Gastpar M. Attention-deficit/hyperactivity disorder and
alcoholism treatment. Psychopharmacology 139 (1-2) : 20-30, substance abuse. Psychiatr. Prax. 30(4): 182-6, 2003.
1998.
2. Motavalli N, Abali O. Venlafaxine in children and adolescents with
7. Mark TL et al. Barriers to the Use of Medications to Treat Alcoho- attention deficit hyperactivity disorder. Psychiatry Clin Neurosci.
lism. Am. J. Addict. 12(4): 281-294, 2003. 58(1):92-5. Feb 2004.
8. Mueser KT et al. Disulfiram Treatment for Alcoholism in Severe 3. Ting-Kai L. Clinical Perspectives for the study of craving and relap-
Mental Ilness. Am. J. Addict. 12(3): 242-252, 2003. se in animal models. Addiction 95 (2): 55-60, 2000.
9. Myrick H et al. New Developments in the pharmacotherapy of 4. Tucker P. Attention-deficit/hyperactivity disorder in the drug and
alcohol dependence. Am. J. Addict 10 Suppl.: 3-15, 2001. alcohol clinic. Drug and Alcohol Review, 18(3) :337-, 1999.

147
10.3
Síndrome de Abstinência ao Álcool
Mônica Cristina Di Pietro

DEFINIÇÃO e pela hiperatividade de receptores NMDA (N-


Metil-D-Aspartato). O que desencadeia os sinto-
Pacientes com uso prolongado e pesado de álcool, mas: efeitos cardiovasculares, náuseas, vômitos, pi-
quando diminuem a ingesta ou param de beber, podem loereção, midríase, tremores, hipertermia.
apresentar um conjunto de sinais e sintomas denominado • Hipoatividade dopaminérgica, que leva à disforia
Síndrome de Abstinência ao Álcool (SAA). Alguns dos e ao negativismo.
sintomas podem se iniciar até seis horas após a parada • Hiperatividade glutamatérgica, reponsável pela con-
ou diminuição, sendo mais comum que ocorram entre fusão mental, alucinações e convulsões.
24 e 48 horas. Os sinais e sintomas mais comuns são: tre- • Hipoatividade GABAérgica. Receptores GABAA têm
mores, taquicardia, hipertensão arterial, náuseas e vômi- uma atividade inibitória e quando deixam de exer-
tos; e ao exame psíquico: ansiedade, agitação psicomotora e cer sua atividade na SAA há uma estimulação do SNC.
alteração do humor (irritabilidade e disforia). Podendo Acarretando: ansiedade, convulsões, hiperestimu-
evoluir para um quadro de delirium tremens, cursando lação glutamatérgica.
com confusão mental, alucinações, idéias deliróides e • Aumento da densidade dos canais de cálcio tipo L,
hipertermia. Convulsões tônico-clônicas generalizadas o que leva ao aumento da atividade elétrica gene-
também podem ocorrer2. ralizada no SNC, potencializando os efeitos dos
neurotransmissores e contribuindo em todos os sin-
EPIDEMIOLOGIA tomas da SAA.

Entre os pacientes submetidos a desintoxicação, 13 ANAMNESE


a 71 % apresentarão SAA.5
Entre os pacientes com SAA não-tratados, 5% po- É importante que se obtenha uma história completa
dem ter convulsões. sobre o paciente.
A mortalidade nos pacientes com delirium tremens é Em relação ao uso do álcool: o padrão de consumo
de 5 a 25%.3 nos últimos anos, precisando a quantidade e a freqüência
do uso; último consumo ou o momento da diminuição
BASES BIOLÓGICAS do consumo, tentando saber se houve uma parada volun-
tária do uso do álcool ou alguma intercorrência que moti-
Ainda não se conhece perfeitamente o funcionamen- vou a parada; investigar história de SAA anterior e, caso
to dos neurotransmissores ligados à dependência e à SAA. positivo, se ocorreu convulsão ou delirium tremens.
O que se conhece dos sintomas da SAA tem sido expli- A presença de comorbidades clínicas ou psiquiátri-
cado pelo fenômeno de neuroadaptação que ocorre no cas. A SAA será mais complicada na vigência de outros
SNC devido à exposição crônica ao álcool. Os sinais e quadros orgânicos. A presença de comorbidade psiquiá-
sintomas da SAA estão relacionados à alteração dos ní- trica deve ser diagnosticada no sentido do tratamento
veis de liberação de noradrenalina e dopamina3,5. posterior da dependência ao álcool.
• Hiperatividade noradrenérgica, que ocorre pela re- A investigação do suporte social será fundamental.
dução da atividade de adenorreceptores inibitó- Na ausência de suporte social e familiar a permanência
rios pré-sinápticos do subtipo α2 (down-regulation) no hospital para o tratamento será obrigatória mesmo

148
A LCOOLISMO

que os sintomas sejam leves. O suporte social será im- sentido de estruturar e quantificar a severidade do qua-
portante para um encaminhamento para acompanhamen- dro de abstinência. A escala mais utilizada é a CIWA-Ar
to a longo prazo. (Clinical Institute Withdrawal Assessment for Alcohol, Re-
vided). Esta escala tem sua validade bem documentada
CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS em uma série de trabalhos de pesquisa clínica. Altos
escores na CIWA-Ar (por exemplo, acima de 15) são
Os critérios diagnósticos da CID-10 são os seguintes1: preditivos de convulsões ou delirium.3,4,5

F10.3 – Síndrome de Abstinência DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL


Um conjunto de sintomas, de agrupamento e gravida- O diagnóstico diferencial é muito importante prin-
de variáveis, ocorrendo em abstinência absoluta ou relati- cipalmente nos casos de delirium, pois a abordagem te-
va do álcool, após uso repetido e usualmente prolongado rapêutica será outra, havendo necessidade de tratamen-
e/ou uso de altas doses. O início e o curso do estado de to do quadro de base. O delirium pode ser de origem:
abstinência são limitados no tempo e relacionados à dose
de álcool consumida imediatamente antes da parada e da • Metabólica: hipopotassemia, cetoacidose, hipogli-
redução do consumo. A síndrome de abstinência pode cemia.
ser complicada com o aparecimento de convulsões. Os • Cérebro e orgânica: tumor, traumatismo crania-
sintomas mais freqüentes são: hiperatividade autonômi- no, hematoma subdural.
ca; tremores; insônia; alucinações ou ilusões visuais, tá- • Infecciosa: pneumonias, meningites, encefalites.
teis ou auditivas transitórias; agitação psicomotora; ansi-
edade e convulsões tipo grande mal. CRITÉRIOS PARA INTERNAÇÃO
O diagnóstico pode ainda ser mais especificado, uti- HOSPITALAR5
lizando-se os seguintes códigos:
• F10.30 – Síndrome de Abstinência Não-Complicada. A permanência do paciente em SAA no hospital de-
• F10.31 – Síndrome de Abstinência com Convulsões. penderá de uma série de fatores a serem levados em
consideração, no momento da avaliação.
F10.4 – Síndrome de Abstinência com Delirium A severidade dos sintomas. Se ocorrer uma convul-
Tremens (DT) são o paciente deve ser mantido em observação num
leito hospitalar por no mínimo 24 horas, mesmo na au-
Delirium tremens induzido por álcool deve ser codifi- sência de outros sintomas neste momento.
cado aqui. DT é um estado confusional breve, mas oca- A presença do delirium tremens cujo tratamento é
sionalmente com risco de vida, que se acompanha de em regime de internação, muitas vezes sendo necessária
perturbações somáticas. É usualmente conseqüência de uma a realização de exames complementares para esclareci-
abstinência absoluta ou relativa de álcool em usuários mento de possíveis comorbidades e para um diagnósti-
gravemente dependentes, com uma longa história de uso. co diferencial.
O início usualmente ocorre após abstinência de álcool. Caso existam comorbidades clínicas ou cirúrgicas,
Em alguns casos o transtorno aparece durante um episó- sendo estas, muitas vezes, a causa original da internação
dio de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, em cujo e o fator motivador da interrupção do uso do álcool. A
caso deve ser codificado aqui. Os sintomas prodrômicos SAA tende a se complicar na vigência de intercorrências
tipicamente incluem: insônia, tremores e medo. O iní- clínicas ou cirúrgicas.
cio pode também ser precedido de convulsões por absti- Outros fatores como a gestação ou a idade avançada
nência. A clássica tríade de sintomas inclui: obnubila- do paciente também motivam a internação.
ção de consciência, confusão, alucinações e ilusões O suporte social e familiar é um fator levado em
vívidas, afetando qualquer modalidade sensorial e com consideração ao se decidir pelo tratamento domiciliar
tremores marcantes. Delírios, agitação, insônia ou in- ou hospitalar.
versão do ciclo do sono e hiperatividade autonômica
estão também usualmente presentes*. EXAMES COMPLEMENTARES

Escala de Avaliação (Fig. 10.3.1) Com a permanência do paciente com SAA em trata-
mento hospitalar alguns exames serão necessários para
Uma escala de avaliação de sintomas pode ser usada nortear a conduta e esclarecer comorbidades.
para diagnóstico e principalmente para tratamento, no Exames laboratoriais como o hemograma (observan-
do o valor do VCM); as provas de função hepática: como
* Exclui delirium não induzido por álcool. TGO, TGP, AP, que ajudaram na decisão de uma con-

149
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

Nome: Data:
Pulso ou FC: PA: Hora:

1. Você sente um mal-estar no estômago (enjôo)? Você tem 7. você se sente nervoso(a)? (observação)
vomitado?
0 Não
0 Não 1 Muito leve
1 Náusea leve e sem vômito 4 Leve
4 Náusea recorrente com ânsia de vômito 7 Ansiedade grave,um estado de pânico, semelhante a um
7 Náusea constante, ânsia de vômito e vômito episódio psicótico agudo?

2. Tremor com os braços estendidos e os dedos separados: 8. Você sente algo na cabeça?Tontura, dor, apagamento?
0 Não 0 Não 4 Moderado/grave
1 Não visível, mas sente 1 Muito leve 5 Grave
4 Moderado, com os braços estendidos 2 Leve 6 Muito grave
7 Severo, mesmo com os braços estendidos 3 Moderado 7 Extremamente grave

3. Sudorese: 9. Agitação: (observação)


0 Não 0 Normal
4 Facial 1 Um pouco mais que a atividade normal
7 Profusa 4 Moderadamente
7 Constante
4. Tem sentido coceiras, sensação de insetos andando no corpo,
formigamentos, pinicações? 10. Que dia é hoje? Onde você está? Quem sou eu?
(observação)
Código da questão 8
0 Orientado
5. Você tem ouvido sons a sua volta? Algo perturbador, sem 1 Incerto sobre a data, não responde seguramente
detectar nada por perto? 2 Desorientado com a data, mas não mais do que 2 dias
3 Desorientado com a data, com mais de 2 dias
Código da questão 8
4 Desorientado com o lugar e pessoa
6. As luzes tem parecido muito brilhantes? De cores diferentes?
Incomodam os olhos? Você tem visto algo que lhe tem perturbado?
Você tem visto coisas que não estão presentes?
Escore
0 Não 4 Alucinações moderadas
1 Muito leve 5 Alucinações graves
2 Leve 6 Extremamente graves
3 Moderado 7 Contínua

Fig. 10.3.1
Anexo 1 – Escala de avaliação de sintomas para ser usada para diagnóstico e para tratamento da síndrome de abstinência do
álcool.

duta medicamentosa (em pacientes hepatopatas utiliza- SAA e o seu tratamento (AMB-2000) e na experiência
mos benzodiazepínicos de curta duração); a dosagem de do Pronto-socorro de Psiquiatria da Unifesp3,4,5.
eletrólitos como Na e K, cujos valores podem estar alte- A Terapia Guiada por Sintomas mostra-se muito mais
rados em função dos vômitos. eficaz que a terapia de doses pré-fixadas. Ela é realizada
Outros exames como radiografias e tomografias se- por uma equipe treinada que avalia o doente a cada hora,
rão necessários de acordo com o quadro clínico ou mes- aplicando uma escala de avaliação de sintomas ou ava-
mo em função da ausência de dados de história. liando-o clinicamente, e prescreve a medicação ou ou-
tros cuidados de acordo com o que é encontrado. Evita-se
TRATAMENTO assim que o paciente receba subdoses dos medicamen-
tos ou seja medicado exageradamente.
O que proponho como tratamento da SAA baseia- Os benzodiazepínicos são medicamentos com eficá-
se: no artigo Pharmacological Management of Alcohol Wi- cia comprovada na SAA. Eles tem uma eficácia seme-
thdrawal4, que é uma metanálise de 134 artigos obtidos lhante entre si e um custo baixo. Os agentes de longa
no Medline (entre 1966 e 1995); no Consenso sobre duração podem ser mais efetivos em prevenir convul-

150
A LCOOLISMO

sões, enquanto os agentes de curta duração podem ter benzodiazepínicos circulante que as previna. A clorpro-
menor risco de sedação exagerada, principalmente em mazina deve ser evitada. Não é recomendado o uso em
idosos e hepatopatas. A infusão contínua não é mais monoterapia.
eficaz que o uso de agentes de longa duração. Deve-se A tiamina (vitamina B1) é usada na prevenção da sín-
ter um cuidado especial ao prescrever agentes de rápido drome de Wernicke. Nunca deve ser dada glicose ao
início de ação (diazepam, lorazepam, alprazolam) para paciente usuário de álcool sem ter sido administrada a
uso em esquema ambulatorial, devido ao seu maior po- tiamina, com o risco da indução da Síndrome de Wer-
tencial de abuso. Recomendamos o uso de: nicke. Recomendamos o uso de:
• Diazepam 10 a 20 mg, via oral, com avaliação a • Tiamina 100 a 300 mg ao dia EV ou IM (intra-
cada hora. muscular).
• Lorazepam 2 mg, via oral, com avaliação a cada O magnésio muitas vezes quando dosado nos pacien-
hora, em população de hepatopatas e idosos. tes em SAA encontra-se diminuído, mas sua adminis-
Quando for necessário o uso do Diazepam EV (en- tração não mostrou nenhum benefício.
dovenoso) ele deve ser feito lentamente (administrado Realizado o tratamento hospitalar devemos sensibili-
em quatro minutos) e em local com recursos para rever- zar o paciente a um prosseguimento de tratamento am-
ter uma possível parada cardiorrespiratória. bulatorial para a sua dependência ao álcool. Mesmo que
Outros agentes sedativo-hipnóticos, como o fenobar- a SAA tenha ocorrido na circunstância de uma parada
bital, não são recomendados devido à menor eficácia e involuntária do uso do álcool, o que é muito freqüente
menor margem de segurança. Não se deve hidantalizar no pronto-socorro geral.
as convulsões por SAA. A hidantalização deve ser feita
enquanto investiga-se outras causas para a convulsão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Os beta-bloqueadores diminuem as manifestações
1. Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da
autonômicas, podendo provocar um equívoco na avalia- CID-10. Porto Alegre : Artes Médicas, 1993.
ção da severidade dos sintomas, além de não terem ati- 2. DSM-IV: Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Men-
vidade anticonvulsivante. Não são utilizados como mo- tais, 4a edição. Porto Alegre : Artes Médicas, 1995.
noterapia no tratamento da SAA. 3. Laranjeira R, Nicastri S, Jerônimo C, Marques AC. Consenso so-
A carbamazepina potencialmente previne as convul- bre a Síndrome de Abstinência do Álcool (SAA) e o seu tratamento.
sões e é segura quando associada ao álcool, mas não é Rev Bras Psiquiatr 22(2): 62-71, 2000.
eficaz no tratamento do delirium. Não deve ser usada 4. Mayo-Smith MF et al. Pharmacological Management of Alcohol
Withdrawal. A Meta-analysis and Evidence-Based Practice Guide-
em monoterapia. line. JAMA, July, 278(2): 144-151, 1997.
Os neurolépticos devem ser usados na presença de 5. Samet JH, Stein MD, O’Connor PG. The Medical Clinics of North
grande agitação e de alucinações, mas como aumentam America. Alcohol and Other Substance Abuse. Vol 81. Number 4:
o risco de convulsões são usados quando há um nível de 883-893, 1997.

151
10.4
Uma Reflexão Sobre o Modelo
de Tratamento no PROAD
Cecilia Maria de Azevedo Marques Motta
Eleny Ribeiro S. de Queiroz

BREVE HISTÓRIA ao indivíduo, à sociedade ou a ambos”. Esse conceito é


sem dúvida um marco importante na evolução da com-
Nos nossos dias, o consumo de álcool tornou-se quase preensão do alcoolismo enquanto doença. A partir daí
que universalmente aceito e seu consumo tem sido bas- originou-se o modelo Minnesota de tratamento que em-
tante incentivado nos mais diversos contextos: bebe-se basa os princípios dos Alcóolicos Anônimos. Após o
em festas, em eventos esportivos e até em velórios. En- desenvolvimento dos estudos epidemiológicos se pode
tretanto, o uso de bebidas alcoólicas é tão antigo quanto determinar melhor as conseqüências do uso de álcool.
a história da humanidade: “E começou Noé a ser lavra- Existem vários modelos para a compreensão do al-
dor da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do vinho e coolismo13:
embebedou-se; e descobriu-se no meio de sua tribo.” • Modelos que levam em consideração sua etiolo-
Esta citação bíblica, do livro do Gênesis, comprova essa gia, como o modelo biológico de doença, que pres-
afirmação e, ao longo da história, há várias alusões à supõe que o abuso e a dependência são determina-
cultura da uva e ao vinho ilustradas com exemplos de dos por uma predisposição biológica e constituem
embriaguez7,15. doença crônica, progressiva e incurável.
O relato acima registra episódios de embriaguez co-
• Modelos psicológicos, baseados em teorias psico-
muns. Certos tipos de reação ao álcool em determina-
dinâmicas que fazem referência a defeitos estrutu-
das pessoas, assim como o modo delas se relacionarem
rais da personalidade preexistentes ao consumo do
em longo prazo, foram considerados por Hipócrates15,
álcool. Esses defeitos, tais como: insegurança, baixa
o qual descreveu a loucura alcoólica e considerou como
resistência à frustração, busca de prazer imediato,
veneno seu uso pelos epilépticos, mas a posição da me-
fraqueza de ego, oralidade e outros, levariam o
dicina em diferentes épocas se mostrou ambivalente fren-
indivíduo a ter um ganho ao beber, atingindo, ain-
te a esse problema, ora empregando o álcool para fins
da que por alguns momentos, o alívio de suas an-
medicinais, ora o proibindo categoricamente.
gústias.
Porém, por diversos motivos, as questões relaciona-
• Modelo sociocultural, que leva em consideração a
das ao álcool foram ficando à margem da ciência. Como
influência da família, do grupo social a que per-
não havia conceitos nem critérios científicos, a carga
tence o indivíduo e dos meios de comunicação,
emocional e moral passou a ser a tônica da compreen-
observando o alcoolismo como algo aprendido no
são do problema. Em 1849, o médico sueco Magnus
início da ingestão de bebidas alcoólicas.
Huss7 usou pela primeira vez o termo alcoolismo, con-
ceituando-o como uma doença crônica que afetava o Todas essas hipóteses geram polêmicas e são, no
sistema nervoso central. Após trinta e três anos, o norte nosso entendimento, bastante reducionistas, pois não
americano J. E. Todd considerou o alcoolismo um ví- existem pesquisas conclusivas sobre o assunto.
cio, atribuindo uma conotação de fraqueza moral. Em
1951 o modelo comportamental estava sendo muito uti- A NOSSA HISTÓRIA
lizado e Fouquet3 considerou que a ingestão excessiva
do álcool era essencialmente um problema de compor- A história do tratamento para alcoolistas no PROAD
tamento. Finalmente, em 1960, Jellinek4 voltou a utili- teve início em 1989, na formação do ambulatório. A
zar o modelo biológico, considerando como alcoolismo proposta inicial era de atendimento a pacientes depen-
“qualquer uso de bebidas alcoólicas que cause prejuízo dentes de drogas ilícitas; no entanto, os pacientes com

152
A LCOOLISMO

problemas relacionados ao uso do álcool batiam diaria- grupo, levou-nos a optar por criar um grupo de acolhi-
mente à nossa porta. Observando que os pacientes de- mento exclusivo para pessoas que no momento de che-
pendentes de álcool se encontravam num nível de sofri- gada ao tratamento apresentassem problemas ligados ao
mento tão grande quanto os dependentes de outras drogas, uso de bebidas alcoólicas. Como alguns pacientes brin-
resolvemos atender essa demanda. A nossa prática clí- cam, é o “alcoolhimento”.
nica nos fazia entender que o sofrimento apresentado Por intermédio desse sistema de entrada, as pessoas
por esses pacientes merecia um cuidado especial e que que procuram o PROAD para tratamento, e que muitas
não era a legalidade ou a ilegalidade do produto utiliza- vezes se encontram em situação limite e de desespero,
do que iria determinar nossa intervenção. têm o primeiro contato com a instituição por meio do
Adotamos, na formulação do tratamento ambulato- grupo de acolhimento. Assim, as pessoas podem inicial-
rial para alcoolistas, o modelo sistêmico, que postula mente desabafar e contar seus problemas imediatos, de-
que os problemas relacionados ao uso de álcool e drogas monstrando seu grau de aturdimento o que, voltamos a
situam-se na interação do indivíduo com o seu meio. ressaltar, era impedido pela tecnicidade da triagem inici-
Existe, portanto, uma interação dinâmica entre variáveis al. Apenas posteriormente é realizado o encaminhamen-
individuais (aspectos biológicos, características psicoló- to para a triagem, que consiste no atendimento clínico-
gicas, atitudes, crenças, valores), ambientais (que po- psiquiátrico.
dem ser divididas em meio ambiente imediato – famí-
lia, grupo de pares, escola, disponibilidade do produto Primeiro Momento
– e meio ambiente distante – influência ambiental, meios
de comunicação, valores e normas sociais) e o padrão O acolhimento não é apenas um lugar, é uma função
de uso de álcool e drogas. institucional que nos permite escutar a subjetividade,
Desde o início da implantação do atendimento, o elaborar a demanda e instaurar o que Olievenstein8 cha-
nosso objetivo foi o de criar um espaço físico e emocio- mou de uma democracia psíquica, acolhendo os ques-
nal, onde os pacientes fossem acolhidos em seu sofri- tionamentos e trabalhando-os da maneira mais clara
mento e em suas angústias, e não um modelo ambulatori- possível. Freqüentemente o uso de uma pedagogia se faz
al clássico. Neste último, o ingresso no serviço se dá por necessário, pois as pessoas chegam ao tratamento isola-
meio de uma triagem que consiste, na maioria das ve- das, com sentimentos contraditórios, defendidas, apre-
zes, numa consulta com o médico ou entrevista indivi- sentando vários mitos de tentativa de controle e fanta-
dual com o psicólogo ou assistente social, e dessa forma siando o tratamento.
se origina uma demanda reprimida. Ao contrário da fantasia, o acolhimento visa propor-
Possibilitamos aos pacientes que apresentavam pro- cionar uma forma de organização ao universo caótico
blemas com o álcool a participação nos grupos de aco- do alcoolista, para que este possa aos poucos, voltando
lhimento já existentes. Esses grupos funcionavam como o olhar para si e para os outros, ir se reconhecendo no
porta de entrada para pacientes usuários de drogas ilíci- caminho trilhado.
tas, eram abertos, coordenados por uma dupla de pro- Os grandes períodos de intoxicação alcoólica pelos
fissionais (psicólogos ou psiquiatras), e eram realizados quais os pacientes passaram os tiraram da realidade de
em horários do período da manhã e da tarde, facilitan- suas próprias vidas. As perdas são inúmeras e de todas
do a presença de pacientes que tinham outros compro- as ordens: afetivas, profissionais, econômicas, sociais,
missos. A presença nos grupos abertos não era obrigató- familiares e de saúde, e este também é o lugar para se
ria, respeitando-se o caráter de voluntariedade que faz falar sobre elas.
parte do nosso tripé de atendimento (voluntariedade, Perrier9 diz que o alcoolismo se constrói ao mesmo
gratuidade e anonimato). tempo com e sem o conhecimento do interessado. A
Com o passar do tempo, através da nossa prática e pessoa não reconhece em que momento de sua história
da nossa observação, percebemos que aqueles que fa- começou a beber e quando passou a precisar beber para
ziam uso exclusivamente do álcool, não se identificavam não sentir os sintomas da abstinência, não compreen-
com os usuários de outras drogas. O fator idade pesava dendo, na maioria das vezes, a evolução do problema.
muito, assim como o momento do ciclo vital diferencia- Citado simbolicamente por Mansur6 como um de-
do em que a pessoa encontrava-se (os usuários de álcool gradê que vai do rosa-claro ao vermelho, o processo que
são em geral mais velhos, profissionais e chefes de famí- vai do uso à dependência obedece a matizes e tons que nem
lia), uma vez que a dependência do álcool demora mais sempre delimitam com clareza as fases da construção da
tempo para se desenvolver. Desta forma, a reflexão e a drogadição.
avaliação dos grupos quanto à inserção dos alcoolistas O grupo de acolhimento tem aí uma importante fun-
junto aos usuários de outras drogas, levando em consi- ção, diríamos pedagógica, de auxiliar a pessoa a com-
deração o fator da identificação, da projeção e da trans- preender o que ocorre com ela mesma e até de localizá-
ferência, fundamentais para o funcionamento de um la numa seqüência de eventos passados que comece a

153
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

fazer algum sentido. Retirado do torvelinho inicial e da tando redução no uso do álcool, entre outros benefícios
desorientação, o paciente munido de informações vai aos associados à remissão.
poucos encontrando o sentido para um crescente movi- Após a triagem os pacientes continuam em acompa-
mento de reapropriação da sua história. Isto significa um nhamento clínico, sendo medicados quando necessário.
curar-se gradativo da “nebulosidade alcoólica”, permitin- Ao retornarem ao grupo de acolhimento os pacientes
do-nos aqui a criação de uma metáfora nossa. referem, na maioria das vezes, que se sentiram cuidados
Um comportamento observado em vários participan- no que diz respeito a sua saúde geral, e passam a ter no
tes do grupo de acolhimento é a verbalização da dimi- médico mais um aliado, que poderá ajudá-los em sua
nuição do uso do álcool em termos percentuais, do tipo recuperação e também acolher seu sofrimento.
“estou 20% melhor”. A noção de ser algo que se pode
medir dá ao sujeito a concretude da apropriação do pro- Segundo Momento
cesso. Ele não só constata que está bebendo menos, mas
o quanto isto é significativo no reconhecimento do iní- No momento pós-triagem dá-se início à construção
cio do processo. do projeto terapêutico individual, já tendo o diagnósti-
As recaídas fazem parte do processo e são comuns co estabelecido pelo médico triador, o qual irá nortear
no primeiro momento do tratamento. Pode ser que seja as estratégias que serão adotadas.
do nosso imaginário, mas o peso que essas recaídas A questão da existência da comorbidade psiquiátri-
adquirem para o paciente parece estar relacionado ao ca associada ao uso de álcool deve ser levada em conta,
sentimento de vergonha pelo não-cumprimento de um pois a evidência da co-ocorrência de diagnósticos mos-
trato implícito com o terapeuta, o qual se baseia na tra-se importante por direcionar a atenção do especia-
crença de que a pessoa será capaz de manter-se longe lista para prováveis alterações na evolução do quadro e
do álcool. Nesse momento as intervenções pedagógi- para as necessidades de modificação no esquema tera-
cas são feitas no sentido de poder explicar o que se pêutico12. Por exemplo, problemas graves relacionados
passou com ele mesmo. ao uso de álcool podem ocorrer na vigência de mania ou
Os terapeutas coordenadores do grupo de acolhimen- de um distúrbio anti-social da personalidade. O uso de
to têm como parâmetro, após três sessões freqüentadas álcool nesses casos na verdade representa um sintoma.
pelo paciente, agendar a triagem médica. Este critério Deve-se, também, levar em consideração os critérios de
se baseia na nossa observação clínica e na dinâmica des- uso ou abuso de álcool.
ses pacientes, pois enquanto alguns participam apenas As estratégias a serem adotadas no tratamento são
uma vez no grupo, outros, com uma demanda clínica elaboradas pelo próprio paciente de acordo com suas
ocasionada por um mal-estar físico e/ou psíquico e com necessidades e possibilidades e podem incluir mudan-
a crença de que mais rapidamente estarão “curados”, ças dos hábitos em sua rotina que possibilitavam o seu
solicitam ansiosamente uma consulta médica. beber (horários, lugares freqüentados); uma maior par-
Na triagem realizada por um médico psiquiatra, são ticipação no convívio familiar; e novas propostas de
realizadas as avaliações clínica, psiquiátrica e neurológi- participação em outros grupos sociais de diversas or-
ca do paciente, e solicitados exames complementares, dens (religiosos, de auto-ajuda, esportivos, políticos e
tendo como finalidade detectar as alterações que fre- culturais). Tais estratégias são trazidas ao grupo e avalia-
qüentemente acompanham os casos tóxicos agudos ou das em conjunto com o terapeuta. Se essas escolhas ofe-
crônicos. Muitos pacientes, em virtude de seu modo de recem situações que os coloquem em risco para a recaí-
vida (alimentação inadequada, intenso estresse físico e da isso será pontuado pelo terapeuta, pois os episódios
psíquico), estão sujeitos a patologias, sobretudo a infec- constantes de alcoolização acarretam limitações progres-
ções, erros metabólicos e alterações cardiovasculares e sivas ao seu mundo e distorcem sua relação com a reali-
hepáticos5 e, assim sendo, a triagem tem como objetivo dade, consigo mesmo e com os outros.
a realização de um diagnóstico criterioso. A partir da abstinência todos os conteúdos acima ci-
Durante o processo de triagem são feitas entrevistas tados devem ser ressignificados para dar o suporte devido
abertas para identificação de outras patologias e tam- a essa gama tão extensa de modificações e adaptações a
bém dos aspectos ligados à vida social, familiar e sexual, serem feitas. Metaforicamente poderíamos usar o mito
uma vez que esses pacientes apresentam na maioria das da Fênix: é um ressurgir das cinzas – o que sobrou, o que
vezes comportamentos de risco para as doenças sexual- temos que desprezar e o que temos a descobrir, para com
mente transmissíveis. A subjetividade de cada paciente essa finalidade construirmos o projeto terapêutico indivi-
sempre é valorizada, já que é de extrema importância na dual, contemplando a subjetividade, no que diz respeito
complementação dos dados de sua história e na constru- ao seu desejo, suas expectativas, seus sonhos.
ção futura de seu projeto terapêutico. Os recursos com que contamos no PROAD são: psi-
O acolhimento tem se mostrado eficiente, pois mui- coterapia individual, psicoterapia em grupo, grupos de
tas pessoas chegam ao momento da triagem já apresen- terapia ocupacional, grupos de orientação familiar, psico-

154
A LCOOLISMO

terapia familiar, oficina de artes e oficina de histórias. po, no qual se analisam os fenômenos grupais e os con-
Essas intervenções são oferecidas, discutidas e elabora- flitos individuais em sua permanente inter-relação. Uma
das com o paciente, com a participação do coordenador terceira linha muito importante surge pela escola fran-
do grupo de acolhimento e do médico responsável pelo cesa, através de uma equipe de cinco psicanalistas (An-
acompanhamento clínico, pois somente com a partici- zieu, Bejarano, Kaës, Minessard, Pontalis) que elabo-
pação ativa do paciente1 será possível atingir o objetivo rou, em 1970, teses sobre o trabalho psicanalítico nos
almejado. grupos, abrindo caminho para uma reflexão verdadeira-
Para que as formas de intervenções adotadas possam mente psicanalítica a respeito dos grupos14.
estar explicitadas e serem revistas a cada momento do No PROAD desenvolvemos a nossa prática quanto à
processo, é necessário que um dos profissionais da equi- terapia de grupo, baseada no modelo de Psicoterapia
pe ocupe o lugar de referência para o paciente. Via de Analítica de Grupo, que pressupõe que a situação do
regra, num primeiro momento, quem ocupa esse lugar é grupo baseia-se na livre discussão circulante ou da não-
o coordenador do grupo de acolhimento, fazendo a pas- omissão, onde o paciente expressa seus pensamentos,
sagem para o outro terapeuta que dará continuidade ao opiniões, questionamentos e comentários sobre si pró-
atendimento. O espaço do acolhimento, que um dia foi prio e sobre os demais. No início da formação do grupo
porta de entrada, sempre continuará aberto caso o pa- é feito o contrato entre terapeutas e pacientes onde fi-
ciente sinta necessidade. cam explícitos: a livre participação, a importância e a
A psicoterapia, seja em grupo ou individual, não é in-
validez da fala de cada um; a responsabilidade do pa-
dicada especificamente para o problema da bebida, e
ciente pelo tratamento; a noção de que a terapia é um
não deverá ser iniciada enquanto o paciente ainda esti-
trabalho realizado em conjunto; e a questão dos horá-
ver bebendo. Decorrida essa fase, a necessidade de psi-
rios (dia e hora) bem como a duração da sessão (come-
coterapia, a melhor forma e a adequação do indivíduo a
çam e terminam com hora marcada).
ela poderão ser avaliadas exatamente pelos mesmos cri-
térios utilizados para se decidir se qualquer outra pessoa É interessante que se tenha uma certa heterogenei-
(com ou sem problema de bebida) deve ser submetida a dade no grupo, pois isso enriquece o trabalho pelos di-
essa forma de tratamento2. versos enfoques e experiências, uma vez que já se tem
Como diz o Professor Olievenstein, “psicoterapia é uma base comum, que é o alcoolismo, que proporciona
uma coisa séria, um trabalho de verdade, durante o qual o processo de identificação, fundamental na formação
um indivíduo precisa desembaraçar dentro de si tudo o de grupos.
que foi mal ligado com as pessoas que o cercam, com O fenômeno da resistência individual, como em toda
seu pai e sua mãe. Tarefa pesada, muitas vezes dolorosa, terapia, aparece no início da formação do grupo e mui-
mas com resultado compensador, pois é o caminho para tas das vezes pode ser expresso por meio dos atrasos e
uma ressurreição, em nosso mundo ocidental é a única faltas (sem esquecermos que estes também podem ser
aventura que ajuda alguém a renascer”10. ocasionados por fatores reais da vida, como falta de di-
A psicoterapia individual de orientação psicodinâ- nheiro para a condução, trabalhos esporádicos etc., afi-
mica é a escolha de uma minoria de pacientes. Uma vez nal estamos num ambulatório da rede pública de saúde).
que conseguiram resolver satisfatoriamente seu proble- A psicoterapia de grupo possibilita modificações intra-
ma com a bebida num primeiro momento, muitos ao psíquicas, propicia o resgate e a mudança das relações
atingir a abstinência se inserem profissionalmente e nem com o mundo externo e transforma o paciente em sujei-
podem mais freqüentar com assiduidade o tratamento, to de suas ações. Alguns cuidados devem ser tomados
limitando-se a dar continuidade ao acompanhamento pelo terapeuta no que diz respeito às pontuações, pois
clínico e por vezes visitar o grupo de acolhimento. se tratam de pacientes recém-saídos de uma vida aneste-
A psicoterapia de grupo é a escolha prioritária dos siada pelo álcool e, portanto, muito fragilizados, e um
pacientes que optam por uma psicoterapia profunda, sofrimento maior poderá levar a uma recaída.
pois possibilita que se atenda à demanda por meio de O período de participação nos grupos é indetermi-
atenção múltipla e simultânea. Poderíamos descrever nado e a alta é discutida e elaborada pelo paciente no
vários modelos teóricos para o trabalho psicoterápico grupo. A avaliação de todo esse processo tem o seu lu-
em grupos, mas optamos por três grandes linhas teóri- gar na discussão de casos feita semanalmente pela equi-
cas que têm em comum a utilização da teoria psicanalí- pe e também nos espaços de supervisão, cabendo notar
tica, mas que se diferenciam na concepção de grupo. A aqui a importância da multidisciplinaridade da equipe.
primeira delas é representada por Bion e Ezriel, e par- A partir dos anos 1970, a avaliação da eficácia dos
tindo dos conceitos kleinianos aborda o grupo como vários modelos de tratamento para alcoolistas começou a
um todo. A outra, a partir de Foulkes na Inglaterra e de ser realizada cientificamente. Nesta época surgiu o con-
Bach nos Estados Unidos, toma a teoria de Kurt Lewin e ceito de matching, por meio do qual se reconhece que
desenvolve o conceito de psicoterapia analítica em gru- não existe técnica terapêutica mais eficaz para todos os

155
A CLÍNICA DAS FARMACODEPENDÊNCIAS

casos e o que se deve procurar é a adequação de um de- 5. Laks V. O acompanhamento clínico. In: Silveira DX, Gorgulho M
(org). Dependência: compreensão e assistência às toxicomanias. Casa
terminado esquema terapêutico para um dado paciente11. do Psicólogo, São Paulo, 21, 1996.
Queríamos concluir dizendo que ao relatar nosso tra- 6. Mansur J. O que é alcoolismo. 2 a ed. São Paulo, Brasiliense, 24,
balho, o objetivo é o de possibilitar a reflexão sobre a 1991.
nossa prática clínica, trilhando os espaços da subjetivi- 7. Nóbrega AAN. Alcoolismo. In: Silveira DX, Gorgulho M (org).
dade. Observamos que a participação no grupo de aco- Dependência – compreensão e assistência às toxicomanias: uma
experiência do PROAD. Casa do Psicólogo, São Paulo, 105-106,
lhimento, embora este não seja um grupo de psicotera- 1996.
pia, mostra-se muito terapêutica, à medida que se observa 8. Olievenstein C. A clínica do toxicômano. Artes Médicas, Porto
que muitos dos pacientes chegam à triagem abstinentes Alegre, 1990.
ou apresentando redução no beber (tanto na qualidade, 9. Olievenstein C. O destino do toxicômano. ALMED, São Paulo,
quanto na periodicidade). Muitos pacientes que já pas- 1985.
saram por tratamentos de base cognitiva sem obter êxi- 10. Olievenstein C. Os drogados não são felizes. Nova Fronteira, Rio
de Janeiro, 217, 1977.
to encontram no nosso modelo uma alternativa. Não
11. Ramos SP. Grupoterapia para alcoolista. In: Zimermam DE, Oso-
tratamos “o doente”, mas sim a pessoa que está em so- rio LC et al. Como trabalhamos com grupos. Artes Médicas, Porto
frimento por ter, sem o seu consentimento, desenvolvi- Alegre, 219, 1997.
do a síndrome de dependência ao álcool. 12. Seibel SD, Toscano Jr A. Comorbidade psiquiátrica. In: Silveira
Filho DX, Gorgulho M (org). Dependência: compreensão e assis-
tência às toxicomanias: uma experiência do PROAD. Casa do Psi-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS cólogo, São Paulo, p.303, 1996.
13. Silveira DX. Dependências: de que estamos falando, afinal? In: Sil-
1. Da Ros V. Psicoterapia individual no contexto do PROAD. In: veira DX, Gorgulho M (org). Dependência – compreensão e assis-
Silveira DX.; Gorgulho M (org). Dependência: compreensão e as- tência às toxicomanias: uma experiência do PROAD. Casa do Psi-
sistência às toxicomanias. Casa do Psicólogo, São Paulo, 35, 1996. cólogo, São Paulo, p.11, 1996.
2. Edwards G. O tratamento do alcoolismo. São Paulo, Martins Fon- 14. Terzis A. Psicoterapia analítica de grupo nas instituições. In. III
tes, 226,1987. Encontro de Grupanálise e Psicoterapia Analítica de Grupo Guaru-
3. Fouquet P. Réflexions cliniques thérapeutiques sur l´alcoolisme. já, Anais. São Paulo, 1995.
Paris, Évolut Psychiatrie, 11:321-325, 1951. 15. Toscano A. Um breve histórico sobre o uso de drogas. In: Seibel
4. Jellinek EM. The disease concept of alcoholism. Hilhouse Press, SD, Toscano A. Dependência de drogas (editores). Editora Athe-
New Brunswick, 1960. neu, São Paulo, 8-9, 2001.

156

View publication stats

Você também pode gostar