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ATITUDES RACIAIS DE PRETOS E MULATOS EM SAO PAULO EDIGAG ORGANIZADA POR LT) A publicagao de Atitudes raciais de pretos e mu- OY aM RTS ESE valiosa contribuigao para o conhecimento de uma. fase notavel das ciéncias sociais no Brasil. A au- tora integrou, com Gioconda Mussolini e Oracy Nogueira, a primeira turma de mestres formada SOD et CMO ee Moetcrtetetod oe Dron atencen nT’ PPD EONe (cD SOP ese ese iEw eo) EMBL vre de Sociologia e Politica de Sao Paulo. Este livro é sua dissertagao, defendida em OZER nS te SCM Seu eee Mtog SRS M YM eC CUR oem nog eas rec nhac ON nen mene e pelos trabalhos de Robert Park sobre as rela- Rocca © estudo examina as atitudes so- ret ROMee i nieeateterte Tone ota e mulatos das camadas médias e das camadas Pec rere emrter eck onene Grey Corio tare eet MET WeOnt eR to cor Wore tros atributos da aparéncia. Como os individuos de cor concebem a si préprios, suas inter-rela- s com os indivfduos bran- eon ate rte cos? Virginia Leone Bicudo era negra e men- ciona discretamente a consciéncia dos motivos. Oe eM OE TN OR ate Mir tet) Moose los Rote cene Reon eosin PERM One Menta eM MN MTT retrata © momento fecundo em que o aprendi- PENCE Teen MeM MT orev ome TttCrN dos problemas sociais comegava a ganhar fei- A Circe Sone Ameta cn Mere EC NCO participantes da “Associacdo de Negros Brasi- leiros” (nome fictfcio da Frente Negra Brasilei- POEMS eeMCO er Noe MN Snot TOS EMCI OCTn SCE BCL Poca Tit Corer oe SeeCR SI Hew top St AeC) Fetes WOT SaT Coe CoO TL ae CASTE ores UTS Cr CEESOP TEBE TTY FM yenmceen eee eee Conca eeteeO nt conc de Donald Pierson com Robert Park, seu orien- ATITUDES RACIAIS DE PRETOS E MULATOS EM SAO PAULO te Conselho Superior Avot Dit Veccnio. (Presidente) Prono Laz Gurnes Vice-Pres Francisco Aranscipo Coupao (Vice-Presidente) José Cantos Quam De Camano (Vice-Presidente) Joncr Naot (Secretdrio) idente) Jose Bo Casauzccu Rronarpo Canvmio Conia nr Monsrs Cantona Joserisa Matta Cannozo os Re Boro Sve Mana Sosuis Pisto FExsema Uniecan ne Patna Sast0s Cuswvr0 Jose pe Franca 2 Suva Diretoria Executiva Diretor Geral: Waurenco Zaxverion Vice-Diretor Geral: Fraxcasco be Assis Souzs DaNTAS Diretor Tesoureiro: Auso Vicente Herron Secretaria Geral: Axa Fava be Faria GuIMARAts Unidades de Ensino Diretor Académico (Graduagio ¢ Pés-Graduacdo}: PRov. Atbo Founazient Coordenador do Curso de Sociologia e Politica: Pror. Swwo Fornazient Coordenadora do Curso de Biblioteconomia @ Giéncia da Informacdo: Proms. Vactata Marmns Vatis Coordenador do Curso da Faculdade de Administracdo: Peor, Hera Coxtarnas Atvas PAT) SOCIOLOGIA E POLITIC Diretor-presidente Wacrencio Zanverrox Comisso Editorial ANario Det Vecento Recrsatpo Cansei Cornta pe Monat Scixt Mara Soanes Pato Fesreea Wavtexcio ZaNvertor Coordenagio Editorial Ropnico EsiRasanio DE ALMEIDA ATITUDES RACIAIS DE PRETOS E MULATOS EM SAO PAULO Vircinta LEONE Bicupo EDIGAO ORGANIZADA POR Marcos Cor Mato COTO ETT LTE) Copyright © 2010 by Editora Sociologia ¢ Politica Ficha catalogtifica - Editora Sociologia ¢ Politica - FESPSP Atinudes raciais de pretos € mulatos em Si0 Paulo / Virginia Leone Bicudo, ‘A872. ‘Marcos Chor Maio (org,) ~ $0 Paulo: Editora Sociologia e Politica, 2010. 2p. 1, Ciéncias Sociais 2, Atitudes Emico-Raciais 3. Negros € Aspectos Sociais 4, So Paulo (SP) 1. Bicudo, Virginia Leone. 1, Maio, Marcos Chor ISBN: 978-85-62116-03-2 DD 305. 816 Indice para catélogo sistemdtico: 1, Cigncias Sociais: Atitudes Etnico-Raciais CDD 305.816 Imagem da capa: Ampliacao de foto de Virginia Leone Bicudo. Década de 1930. (ver foto da pagina seguinte) Fonte: Acervo pessoal de Rosa Zingg Direitos Reservados & Editora Sociologia ¢ Politica Rua Genesal Jardim, 522 - Vila Buarque (0123-010 ~ Sao Paulo ~ SP ~ Brasil "Tel. Fax 0 55 11 3123-7800 www fespsp.org.br — edlitora@fespsp.omg br Printed in Brazil 2010 Foj feito depésito legal SUMARIO INTRODUGAO: A CONTRIBUICAO, DE VIRGINIA LEONE BICUDO AOS ESTUDOS. SOBRE AS COES RACIAIS NO BRASIL. 23 Maxcos Cuor Maio ATITUDES RACIAIS DE PRETOS E MULATOS EM SAO PAULO... 61 Vircista Leone Bicubo CADERNO DE IMAGENS ... 165 APRESENTACAO A edigdo ora apresentada da continuidade a série de publi- cagdes sobre Histéria das Ciéncias Sociais Brasileiras da Edi- tora Sociologia e Politica da Fundagdo Escola de Sociologia e Politica de Sao Paulo (FESPSP). Aqui, também, “Atitudes raciais de negros e mulatos em Sao Paulo” é uma homenagem 4 autora. Aluna e professora da Es- cola de Sociologia e Politica, socidloga e psicanalista, pesquisa- dora e profissional da sade e da educag4o, Virginia Leone Bicudo completaria, em 2010, cem anos de vida. Nesta edicdo, além do tratamento critico do organizador e dos colaboradores, est4 a integra da dissertagdo de Bicudo. Até agora nao publicado, o texto teve ortografia e normas atu- alizadas. Pela cessao dos direitos de publicagdo da obra, bem como pelo apoio constante, muito agradecemos a Rosa Zingg, sobrinha de Virginia. Ao fim do volume, um caderno de imagens compila fotos e documentos sobre a autora e sua trajetoria. So Paulo, novembro de 2010 RopziGo EsTRAMANHO DE ALMEIDA. Editora Sociologia e Politica - FESPSP PREFACIO Acomodacao ou consciéncia da discriminagao? ou doente e sei, portanto, onde déi (entrevistado n° 8) Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em Sado Paulo’ é importante documento de um periodo que mostra simulta- neamente 0 processo de desenvolvimento das ciéncias sociais brasileiras e a situacado do negro na capital paulista. Trata-se de texto apresentado em 1945 por Virginia Leone Bicudo a divisio de estudos de Pés-Graduagdo da Escola Livre de Sociologia e Politica de Sao Paulo, naquele momento instituicao comple- mentar da USP. No cenario da sociologia, entio se consolidan- do nos cursos de ciéncias sociais fundados no decénio anterior na cidade, a tese faz parte de um conjunto de pesquisas desen- volvidas por professores e alunos daquela escola dedicado a tematica “populagdes marginais”, referida a negros, imigrantes japoneses e alema A concepg’o de marginalidade tem aqui um cardter defi- nido estritamente se a confrontarmos as aplicagdes do termo em investigagoes desenvolvidas no anos posteriores. Apoia-se nas formulacGes de Everett Stonequist, que considera marginal o individuo que age em um quadro de incerteza psicolégica 1 Esse € 0 titulo original da dissertcto de Virginia Leone Bicudo. No titulo da presente publicagto suprimimos a palavra “Estudo”, — Nota do Editor. 2 Para consultar as pesquisas sobre imigragdo desenvolvidas na Escola € Politica de Sao Paulo, ver Nucci (2010). 1 de Sociologia 1 por estar colocado entre dois mundos sociais (STONEQUIST, 1937). Essa situacao reflete-se em seu intimo, operando através de representacdes opostas em relacdo a esses dois universos: discérdia e harmonia, atracdo e repulsa. Seriam problemas experimentados por pessoas em processo de transicdo entre duas culturas. $ as pesquisas foram realizadas junto a grupos €tnicos minoritérios da sociedade norte-americana. Trata-se de desdobramento de conceitos cunhados por Robert E. Park (1921, 1928, 1932 e 1937) que tém como fundamento a ideia de conflito cultural, o qual remete diretamente 4 formagao da identidade (PARK, 1928, 1932 e 1937; PARK; BURGUESS, 1921). Lembremos que Park foi orientador de Donald Pierson, 0 qual, por sua vez, orientou a tese de Virginia Leone Bicudo. V4rios pontos desenvolvidos por Park embasam a argumen- jam explicitamente discutidos. Primeiramente, a nocgao de relacées raciais, acom- tagdo deste livro, embora nem sempre s panhada dos processos sociais referidos 4 qualidade dessas re- lagdes; em segundo lugar, 0 conceito de atitude, articulado ao de interagao social; em terceiro, a conotagao atribuida a mu- dang¢a social, em quarto, a concep¢io de marginalidade. Ve- jamos brevemente o significado dessas categorias para aquele autor € verifiquemos como s&o operacionalizadas por Virginia. Em sentido amplo, Park concebe as relac6es raciais presentes em uma sociedade — levando em consideragSo a historia da imigracao — como estaveis ou tensas, as tltimas podendo ge- rar conflitos de varias ordens. Considera esse desenvolvimento através de passos sucessivos, representados pelos processos sociais de contato, competi¢do, acomodacio e assimilacao. Certamente, 0 contato significa situacdo sine qua non para a exist€ncia e a evolucao dos outros processos. Segue-se a com- petigao, consequéncia da busca de lugares sociais € profissio- 12 nais, e ainda a afirmacdo e/ou conquista de um espaco cultural. O terceiro passo supde um duplo movimento, que compreende os diferentes componentes da sociedade envolvente e o(s) grupo(s) minoritério(s): trata-se da acomodagao, Quando nao consegue a realizacdo deste objetivo, resta ao “grupo de fora” abrir mao da maior parte de suas caracteristicas diferenciado- ras € assumir a assimilacdo. No sentido que Park lhe confere, similagdo € o processo de interpenetrag4o e fusao pelo qual individuos ou grupos adquirem lembrangas, sentimentos e ati- tudes de outras pessoas ou outros grupos e partilham de sua experiéncia e histéria, integrando-se a estes numa vida cultural comum (PARK; BURGUESS, 1921). A visio de Park sobre a sociologia como a ciéncia do comportamento coletivo permite que conceba atitude como o modo de percepgdo de pessoas ou objetos, elemento da personalidade que nado se confunde com as ideias de valor ou agado. O conceito péde ser usado por ele como estratégia para refletir sobre as transformag6es sociais, mas, ao mesmo tempo, se traduz em posicdo de certo modo ambigua quando referida 4 mudanga e ao modo como as pessoas poderiam provoca-las, De um lado, conflito e acomodacao sucediam-se, e essa alternAncia teria a comunicacdo como instrumento, pos- sibilitando o equilibrio nas diferentes situagdes em que ambos aparecem. De outro, atribuia ao individuo a quase impossi- bilidade de conhecimento do outro (a tese de Blindness, de William James), o que faz avancar a andlise e também a limita na diregao de compreender como as pessoas foram configura- das segundo as imposi¢gdes dos conflitos grupais. Em outros termos, a tensdo reside na dupla face apresentada pelas so- ciedades humanas: um aspecto é explicitado através dos con- flitos entre individuos e grupos independentes pelo dominio 13 econémico, social, territorial; o outro mostra os elementos de sua sustentagao — consenso, solidariedade e objetivos sim- bolicamente compartilhados.’ Dessa posicao decorre a conotagao conferida 4 mudanca social. Chamo a atengo do leitor para a nogdo operada por Virginia Leone Bicudo, que lembra: “Consoante as observagoes de Robert E. Park, as mudancas sociais comecam com as mu- dangas nas atitudes condicionadas pelos individuos, operando- se posteriormente mudangas nas instituicdes e nos mores’ (BI- CUDO, 1945, p. 2; ver, neste volume, p. 64) Fisher € Strauss, em seu estudo sobre o interacionismo, mos- tram como essa concep¢do de passagem automatica entre in- dividuo e instituigdes configura a visio de Robert Park da so- ciedade como autorreguladora. Park podia ver o influxo de sulistas, de negros rurais para as cidades do Norte como causa inevitavel de conflito racial, sem tratar esses choques como oportunidades de pressionar pelos programas de integragao racial. Os processos basicos de mudan¢a social estavam além da legislacio. As pessoas resolveriam os problemas basicos de contlito e acomodacao muito melhor do que a legislagio pouco realista (FISHER; STRAUSS, 1980, p. 609). Retomando 0 que foi dito antes, marginalidade, para Park, é um trago da personalidade. Apresenta-se como um fendmeno psicolégico individual resultante de tensdes e conflitos decor rentes de elementos antag6nicos provenientes de culturas diver- sas incorporados pelo individuo em uma situacdo de mudanca social (PARK, 1928). As criticas que tém sido feitas a essa con- cep¢ao sdo conhecidas, o que me poupa da retomada de seu exame. Lembro apenas um aspecto importante presente nessas ctiticas: 0 enfoque no individuo ressalta apenas as consequén- 3 Ver a anilise sobre Park de Coser (1979. 14 cias de uma situacao social que condiciona a marginalidade. Em outros termos, as condi¢ées sociais que geram a marginalidade ficam intocadas numa reflex4o que toma a dire¢do psicolégico- cultural. Além disso, sem o estudo da situacdo social que gera a marginalidade, fica comprometida a andlise sobre as possibi- lidades da competicao em uma situagdo de igualdade. Volto agora ao trabalho de Virginia Leone Bicudo. Seguindo a reflexao das ciéncias sociais da época, que associam mu- danga social ao processo de integracdo dos grupos na socie- dade envolvente, conforme procurei apontar anteriormente, as discussdes sobre a igualdade de condigdes para o exercicio da competicao estao ausentes dos objetivos de sua tese. No entanto, apesar desse problema nao constar do protocolo da pesquisa, sua profunda intuicao sobre a situacdo social do ne- gro permite a emergéncia, através das histérias de vida e tam- bém do estudo da “Associagao de Negre questao, a qual so mais tarde entrara no debate da sociologia brasileira sobre a questio racial. ; do ponto central da A autora opera com a questéo da identidade, mostrando como esta se expressa em atitudes e mesmo na organiz: do da acao individual. Para o desenvolvimento dessa tematica, es- tuda dois grupos — negros ¢ mulatos —, subdivididos segundo sua classe social, utilizando para essa classificagdo a condicao econémica, a profissdo e o nivel de instrugao dos entrevis ados. Nos relatos, atitudes e expressdes sobre a ac&o individual se entrelagam. As historias de vida mostram os contatos primarios. A descrigao da “Associagdo de Negros Brasileiros” e passagens do mensdrio “Os Descendentes de Palmares” dio a dimensao das possibilidades da acdo coletiva, tanto em direcao da as- similacdo “dos grupos de cor 4 populacado branca”, quanto da denincia da discriminacdo. 15 Aspecto crucial da formulagdo dessa identidade — 0 pro- cesso de socializagéo — € reconstruido através das histéri- as de vida, estas mais aprofundadas nos casos dos negros pertencentes 4s classes sociais intermediarias. A situacdo de contato ou néo com brancos durante a infancia é lembrada, sem a anilise direta da construcdo do self decorrente dessas relagdes. Mas, novamente, a sensibilidade da autora, via en- trevistas, abre uma brecha para a visualizagdo de novas pers- pectivas abertas 4 andlise: a) a percepcdo tardia, por grande parte dos negros da existéncia da discriminagio; b) os claros limites no desenvolvimento dos papéis sociais, econdmico- profissionais e culturais, que nado alcangam correspondéncia entre si; c) o isolamento autoimposto por negros e mulatos que alcancaram ascensao social; d) 0 conflito existente entre a acio na direcao da integrac4o-assimilacao e a aceitagio da situacdo racial. Um entrevistado, criado por brancos na casa de quem sua mae trabalhava como doméstica, aponta para o fato de que essas relagdes mascaram a situagao de discriminagao racial presente na sociedade. Sentia-se tratado “como igual” no seio da familia; contudo, lembra: “Mas o vigério me advertia sem- pre: ‘Lembre-se que vocé nao é igual a eles.’ Eu, porém, néo compreendia o sentido daquelas palavras. Somente muito mais tarde as entendi” (ver, neste volume, p. 74). Outro, profissional liberal, recorda a infancia pobre, cerca- da de restrigdes e de sua descoberta da existéncia do precon- ceito racial, primeiramente por meio de um quadro na igreja, que representava um santo branco pisando na cabega de um satands negro. Depois, aos 7 anos de idade, lendo um livro, “onde uma figura representava os anjos bons e os maus. Havia me despertado a atencao o fato de os anjos escurecerem 4 me- 16 dida que se tornavam maus. Com tristeza, eu identifiquei a cor preta ao mal.” (ver, neste volume, p. 80). A consciéncia da separacdo entre os papéis profissionais e 08 sociais aparece em intimeros relatos. A do chefe negro, que recebe um convite de formatura de seu subordinado branco € ouve o comentario deste no dia seguinte: “Ontem minha irma ficou preocupada vendo-me convida-lo para a festa de forma- tura e me censurou. Tranquilizei-a imediatamente, dizendo-lhe que © havia convidado porque sabia que o senhor nao iria.” (ver, neste volume, p. 73). Ou ainda: “Ha tempos, fui home- nageado com um almogo pelos meus amigos brancos. Estes procuraram o Hotel d’Oeste para a homenagem, mas, quando O gerente soube que o almocgo seria oferecido a um preto, em- bora me conhecesse, recusou aceitar a encomenda” (ver, neste volume, p. 76). O isolamento social autoimposto por negros e mulatos surge em varias narrativas. Como na do entrevistado que conta ser sempre convidado por um amigo intimo branco 4s festas em sua casa, “As quais nao comparego. No dia seguinte, sempre me telefona, indagando por que nao compareci. Houve uma festa de formatura no Esplanada, convidou-me e ndo fui, mas noto que, ndo sendo em sua casa, ele até hoje nao reclamou por eu nao ter ido” (ver, neste volume, p. 7). Ou na do dentista que diz: “Quanto mais minha consciéncia se foi esclarecendo, tanto mais fui me afastando dos meios de recreagdo. Nesses ambi- entes nao me sinto bem” (ver, neste volume, p. 92). O conflito entre a “necessidade de assimilac4o” e a conscién- cia de existéncia da discriminagdo aparece em varias falas. Sio expressivas desse conflito as palavras da funciondria ptiblica mulata que, de um lado, sente a dor da discriminagdo e, de outro, evita o enfrentamento do problema, buscando “integrar- 17 se”. No inicio da entrevista, diz: “A cor motiva grande complexo de inferioridade: a gente se sente inferior ao branco, feia, di- ferente, e muitas vezes tem vergonha de si mesma” (ver, neste volume, p. 110). Mais adiante, afirma: “Nao seria capaz de amar um preto ou um mulato, mas, desde que ndo se percebam tragos de ascendéncia preta, eu me casaria com uma tal pessoa. O que importa é a aparéncia” (ver, neste volume, p. 111). Ou ainda as afirmacdes da mulata — casada com um branco — que reconhece a existéncia do preconceito de cor manifesto de varias maneiras: “Uns demonstram 0 preconceito com be- nevoléncia exagerada € outros com muito desprezo. Naturali- dade ou igualdade no trato do branco para as pessoas de cor nao ha” (ver, neste volume, p. 111). E, no decorrer da conversa, mostra ambiguidade de sentimentos: “Nao tenho experiéncias pessoais desagradaveis, porque fugi muito do negro, e, como mulata, procurei me assemelhar ao branco” (ver, neste volume, Pp. 112). Logo a seguir, afirma constatar o aborrecimento do marido “por eu ser de cor [...] demonstra pena ou vergonha quando observa algum traco fisico nos filhos. Estes ressenti- mentos dele me ofendem, e nos poem em conflito” (ver, neste volume, p. 112). Embora quase sempre velada, a dentincia de uma socie- dade cruel — que, ao mesmo tempo, através dos compor- tamentos e€ acoes, afirma a inferioridade racial e nega essa afirmagao — coloca, para alguns entrevistados, a necessidade de interioriza r, de algum modo, a dignidade que lhes é tantas vezes negada. Por exemplo, um dos entrevistados lembra, de passagem, a longa hist6ria das sofisticadas civilizagdes afri- canas, embora nao as articulasse 4 sua difusdo entre os bran- cos europeus. Outro inveja a situagdo dos negros nos Estados Unidos, por viverem uma clara situagdo de desigualdade que 18 Ihes permite forte coesio social, a qual abre espaco a reivin- dicacdes de direitos, As vezes, o siléncio diz muito mais do que as palavras. £ interessante notar que Virginia ndo se refere a movimentos so- ciais que denunciem ou lutem contra a situagdo de exclusio tantas ve zeS apontada nas entrevistas existentes no momento de sua pesquisa.’ Ela se refere a uma “Associagao de Negros Brasileiros” e ao jornal por esta publicado,’ e indica seu ini- cio e seu fim: 1931 e 1937, respectivamente. Portanto, ambos desapareceram no inicio do Estado Novo, e a pesquisa feita pela autora encerrou-se antes do término deste periodo. A re- pressdo exercida sobre os movimentos sociais na época pode ser considerada como uma das explicagdes que levam a que varios entrevistados afastem a possibilidade de mobilizacdes direcionadas contra a discrimina¢do racial. O quadro de limitagdo das liberdades caracteristico daquele momento é de grande importincia quando relacionado ao comportamento individual (veja-se o isolamento que alguns entrevistados se impdem). Nesse nivel, a recusa ao enfrenta- mento de varias situagGes sociais que “exporiam” sua condi¢ao racial caracteriz: se como estratégia de evitar o conflito, mas creio que as raz6es so mais amplas: pode representar, tam- bém, a fuga 4 dor com que a discriminacao, expressa por varios comportamentos em relacdo aos negros, os atingiria. A nao admissao clara da discriminagao talvez os protegesse naquele dado momento, mas os afasta da andlise do quadro em que estao inseridos. Afasta-os de perceber 0 conflito como cons- 4 Os dados foram coletados entre 1941 ¢ 1945. 5 Ela diz: “Por razdes Gbvias, 0 nome da associ seguir, 0 titulo do seu mensario Sdo ficticios” (ver, neste volume, nota 4p. 122). Gragas a uma consulta que 82 a Mario Augusto Medeiros da Silva, a quem nio escapa nem mesmo o mais obscuro boletim da imprensa negra, pude identificar tanto a associagao quanto o jornal. Agradego muito a ele, mas respeitarei o desejo da autora, ndo os divulgando. 19 titutivo da sociedade; e, no caso da discriminagao racial, da teflexao sobre as razées que fundam esse conflito. Embora a tese da existéncia de uma democracia racial no Brasil esteja por tras de varias narrativas dos entrevistados — e, segundo Pierson (BICUDO, 1945, p. 61; ver, neste volume, p. 156), a mobilidade social do mulato expresse essa situacdo —,, Virginia insiste em mostrar, mediante algumas entrevistas, a Ppresenca da consciéncia da exclusao. Embora extrapolando os termos por ela usados, eu diria o sentimento da discriminacao. Veja-se, como ilustracdo, a expressio “sou doente e sei por- tanto onde me déi” (ver, neste volume, p. 76), usada por um deles e que coloco como epigrafe deste prefacio. A vivéncia da discriminagao como dor lembra-me um conto de Primo Levi. Ele, que foi sempre consciente das conspiracdes contra a continuidade da vida, escreve sobre seu personagem: Ruminou uma ideia sobre a qual ndo pensava havia tempos, porque sofrera bastante: que nao se pode extirpar a dor, nem se deve, pois cla nossa guardia. Frequentemente é uma guardia esttipida, porque inflexivel, fiel a sua tarefa com uma obstinacdo maniaca, ¢ nunca se cai , 20 Passo que todas as outras sensagdes se cansam, se dete- rioram, especialmente as mais prazerosas. Mas ndo se pode suprimir a dor, fazé-la calar, porque faz parte da vida, € a sua salvaguarda (LEVI, 2005, p. 9D) De certo modo, a tese da existéncia de uma democracia racial no Brasil funciona como a versamina do conto de Levi, droga descoberta ¢ aplicada por Kleber e capaz de transformar a dor em prazer. Ja foi apontado por varios analistas da questo racial como essa afirmagao funda uma consciéncia falsa da realidade (varias vezes denunciada pelos entrevistados por Virginia) e 20 opera como um impeditivo a coesao do grupo discriminado. Ou, ainda, funciona como obstéculo a movimentos sociais que io do negro na sociedade brasileira. Sem fazer diretamente uma critica ao que sera pos- denunciem a precariedade da condi teriormente denominado “mito da democracia racial”, a tese de Virginia Leone Bicudo, agora publicada como livro, contribuiu para 0 avanco dessa tematica e possibilitou novas abordagens sobre o problema da discriminacdo racial. Sao Paulo, novembro de 2010 Eupe Rucat Bastos Professora titular do Programa de Pés-Graduagao em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Referéncias BICUDO, Virginia Leone. Estudo de atitudes raciais de pretos e mu- latos em Sao Paulo. 1945. Dissertagao (Mestrado em Ciéncia) — Es- cola Livre de Sociologia e Politica de Sao Paulo, Sao Paulo, 1945. COSER, Lewis. Masters of Sociological Thought: ideas in historical and social context. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971 FISHER, Berenice M.; STRAUSS, Anselm L. O interacionismo. In: BOTTOMORE, Tom; NISBET, Robert (Orgs.). Hist6ria da andlise sociologica. Traducio de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980, p. 596-649. LEVI, Primo. Versamina. In: LEVI, Primo. 71 contos. Tradugio de Mauricio Santana Dias. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2005. 21 NUCCI, Priscila. Os intelectuais diante do racismo antiniponico no Brasil: textos ¢ siléncios, Sao Paulo: Annablume, 2010. PARK, R. E. Human Migration and the Marginal Man. American Journal of Sociology, 33, p. 881-893, 1928. - Introduction, In: STONEQUIST, E. The Marginal Man: a study in personality and culture conflict. New York: Charles Scrib- ner’s Sons, 1937 - Introduction. In: YOUNG, Pauline V. The Pilgrims of Rus- sian-Town: the community of spiritual christian jumpers in Amer- ica. Chicago: University of Chicago Press, 1932. PARK, R. E.; BURGUESS, E. W. Introduction of the Science of Soci- ology. Chicago: University Of Chicago Press, 1921. STONEQUIST, E. The Marginal Man: a study in personality and Culture Conflict. New York: Charles Scribner's Sons, 1937. 22 INTRODUGAO: A CONTRIBUICAO DE VIRGINIA LEONE BICUDO AOS ESTUDOS SOBRE AS RELAGOES RACIAIS NO BRASIL Marcos Cor Mato" Desde crianca eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de socio- logia porque, se 0 problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nivel sociocultural (BICUDO, 1994, p. 6). Os elos entre subjetividade, preconceito de cor e a Escola Livre de Sociologia e Politica (ELSP) parecem evidentes no depoi- mento de Virginia Leone Bicudo (1910-2003). Passaram-se prati- camente cinco décadas desde que ela defendeu sua dis de mestrado intitulada Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em Sao Paulo (1945), investigac4o pioneira sobre as ertacaio relagdes raciais em um grande centro urbano, sob a orientagado do sociélogo Donald Pierson. A pesquisa foi desenvolvida en- tre os anos 1941 e 1944 e a dissertacdo defendida no ano se- guinte. Tendo por base estudos de caso, entrevistas, exame de documentagao da Frente Negra ,Brasileira (1931-1937) e do jornal Voz da Raga, Virginia Bicudo traca um amplo painel das relagdes sociais na cidade de Sao Paulo. Por meio do estudo das “atitudes raciais” e orientada pelas intersegdes entre Socio- logia, Antropologia e Psicologia Social — Bicudo apresenta um * Socidlogo, Doutor em Giéncia Politica € Professor do Programa de P6s-Graduacio em t6ria das Ciencias € da ido Cruz (FIOCRUZ) € pesquisador do ‘NPG. 23 universo dividido em cla: ses representado por negros, mulatos e brancos. Este mundo desigual é permeado por conflitos, competicao, mobilidade social, busca de status, preconceito de cor e discriminacdo racial. A partir dos ricos depoimentos de homens e mulheres das camadas populares e médias , Virginia Bicudo demonstra, lem- brando as reflex6es de Dumont (1997, p. 303-316), que no mo- mento em que a percepc4o hierarquica do mundo cede lugar ao idedrio igualitério, emerge o racismo. Assim, a socidloga torna evidente a possibilidade do conflito racial em contexto intelectual em que prevalecia a visio do consenso. Altitudes Raciais de Pretos e Mulatos em Sdo Paulo, junto com os trabalhos de Oracy Nogueira, apresenta nova reflexao sobre as relag6es entre cor/raca e classe social. Evidencia a persistén- cia do preconceito de cor mesmo quando se atenua as dife- rengas sociais. O estudo suscita uma visao mais rica e matizada da produgao das ciéncias sociais desenvolvida por instituicdes brasileiras. Sob a direcao de Donald Pierson, a Divisio de Es- tudos Pés-Graduados da Escola Livre de Sociologia e Politica produziu um conjunto de pesquisas, a exemplo da investigacao sociolégica de Virginia Bicudo, que permite repensar os estu- dos sobre as relag6es raciais no Brasil. A partir das marcas da trajet6ria de Virginia Bicudo, considero que ela concebeu o conflito como parte constitutiva da vida social. Os achados sociolégicos de sua dissertagdo de mestrado contrapdem-se as visdes tradicionais acerca da existéncia de har- monia racial na sociedade brasileira calcada no pressuposto de que 0 preconceito de cor estaria subsumido ao de classe. Nesse sentido, 0 trabalho pioneiro de Bicudo, ao lado das pesquisas realizadas por Oracy Nogueira, revelam o protagonismo e a atu- alidade dos estudos sobre as relagGes raciais no Brasil realizados 24 pela Escola Livre de Sociologia e Politica nos anos 1940 e 1950. Educadora sanitaria, visitadora psiquiatrica, cientista social, professora universitaria, psicanalista, divulgadora cientifica, protagonista de diversas iniciativas no plano da institucionaliza- cdo da psicanilise no Brasil, eis o mundo diverso em que Virgi- nia transitou. Cabe entéo conhecermos um pouco da trajetoria multifacetada de Virginia Bicudo em periodo de efervescéncia intelectual na ELSP. Primeiros Tempos: da Educagao Sanitaria as Ciéncias Sociais Virginia Leone Bicudo nasceu na cidade de Sao Paulo, filha de Joana Leone, branca, imigrante pobre de origem italiana, e de Te6filo Bicudo, negro e afilhado de fazendeiro de café em Campinas. © padrinho de Teofilo, Bento Augusto de Almeida Bicudo, foi senador pelo Partido Republicano Paulista (PRP), positivista e fundador do jornal O Estado de Sdo Paulo. Durante a infancia e adolescéncia residiu no bairro popular da Luz, na Rua Sado Caetano, a Vila Economizadora, conjunto de habi- tacdes construidas no final do século XIX que abrigava fun- ciondrios publicos, imigrantes e operarios (MEDRANO, 2006). LA morou com os pais e cinco irmaos. Seu pai, Tedfilo, contou com 0 apoio financeiro do coronel Bicudo, quando se trans- feriu para a cidade de Sao Paulo a fim de realizar sua formagdo escolar. Estudou no tradicional Gindsio do Estado e ingressou, por influéncia politica do padrinho, nos Correios e Telégrafos, onde veio a se tornar alto funcionario. ° 6 Virginia Leone Bicudo, Documentos Divessos, CEDOC-FESPSP, http://almanaque info, ProvinciaSP/PROVINCIASP.him; http:/Awww.al.sp.gov.br/web/legislativo/parlament/capi- tulo2/partel L.pdf, acessado em 23/03/2010; Os avés matemos de Virginia Bicudo vieram da Sicilia (alia) para © Brasil no fim do século XIX, no contexto da grande leva de imi gragio italiana, Trabalharam em Campinas, na fazenda de café do coronel Bicudo. O pai morou ¢ trabslhou na fazenda do coronel Bicudo, sendo tratado como filho pelo coronel 25 Fle: Dis Docu asus Hsin da Ponte SBPSP Familia de Virginia Leone Bicudo na casa da Vila Economizadora. Da esquerda para a direita véemse as irmas Lourdes e Helena, a mae, Dona Joana, a imma Carmemn com a boneca, o pai St. Tedfilo Bicudo, Teofilo Filho e Virginia Bicudo. SGo Paulo, 3 de marco de 1929. Em 1933, a morte de Tedfilo Bicudo levou a primogénita a assumir a responsabilidade pelo sustento da familia.” Da Luz ao Jardim Paulista, eis a circulacao de Virginia Bicudo pela geogra- fia da cidade espelhando 0 processo de mobilidade social me- diante a educagao, espaco privilegiado no qual as mulheres de classe média comecaram a ascender ao mundo das profissdes de maior reconhecimento social. Em 1930, apés estudar na Es- cola do Bras e no Gindsio do Estado, Bicudo concluiu o curso secundario na tradicional Escola Normal Caetano de Campos.* Em seguida, exerceu 0 magistério na categoria de “professora substituta permanente” nos Grupos Escolares Carandiru e Con- A mie, Joana, foi baba da filha de criacio do coronel. Na fazenda, Teofilo ¢ Joana se casaram. Posteriormente, Teofilo foi estudar em So Paulo, por decisto de Bento Bicudo. Entrevista de Rosa Zing, sobrinha de Virginia Leone Bicudo, a Marcos Chor Maio. Sio Paulo, 17/12/2009. 7 Entrevista de Rosa Zing a Marcos Chor Maio. Sao Paulo, 17. dez, 2009. 8 A wadicional instituicdo publica de ensino denominada Escola Modelo Cactano de Cam- pos, situada no bairro da Luz, em $20 Paulo, foi criada em 1890. Sobre a ideologia das escolas modelos, ver Carvalho (2002). 26 solagao.? Ela foi chamada a lecionar em escola rural de Maran- duba (Ubatuba), mas acabou seguindo outro destino, induzida pelo pai, ao ingressar no Curso de Educadores Sanitérios do Instituto de Higiene de Sao Paulo.” Criado em 1925, o Curso de Educadores Sanitarios do In- stituto de Higiene estava voltado para professores primdrios devido a longa duragao do curso de enfermagem e 4 falta de profissionais formados nesta Area em $do Paulo. A partir de uma visio preventiva, os educadores ministravam conhecimen- tos teGricos e praticos de higiene em escolas e centros de satide (FARIA, 2006, p.181). O surgimento do curso coincidiu com um momento de crescente profissionalizacao das mulheres das classes médias urbanas. As politicas educacionais entre as déca- das de 1920 e 1940 foram fundamentais a inser¢ao gradativa das mulheres no campo profissional e académico. As mudangas no sistema escolar, ssociadas transformagdes mais amplas — como a urbanizacao e a industrializacao — contribuiram para a redefinicao dos papéis sociais femininos nos centros urbanos da €poca. A expansdo progressiva da economia impulsionou as atividades das mulheres para fora do mundo do trabalho doméstico (AZEVEDO; FERREIRA, 2006, p. 217-220). Desse modo, a presenca das mulheres no curso de educadores san- itérios e nos servicos de satde representou um novo patamar no universo social feminino (ROCHA, 2005). Ao concluir o curso de um ano em 1932 e realizar est4gio no primeiro se- mestre de 1933, Virginia Bicudo foi contratada pela diretoria do Servico de Satide Es ‘olar do Departamento de Educa O._ para 9 Esta informacio me foi concedida gentilmente pela psicanalista Maria Angela Moretz- sohn, da Divisdo de Documentagao € Pesquisa da Historia da Psicanilise da Sociedade ira de Psicanilise de S20 Paulo (SBPSP), a de Rosa Zingg (2009). Lista de alunos da turma de 1932 do Curso de Eduea- fanitérios. Centro de Meméria da Faculdade de Saiide Publica da Universidade de PA z £ 3 3 Professor e colegas do Curso de Educadora Sanitéria do Insituto de Higiene. Virginia & a primeira do esquerde para a direita, na primeira fila, de roupa escura, chapéu e lengo branco no pescaca. Sao Paulo, 1932. dar aulas de higiene em educandarios da cidade de Sao Paulo (ZINGG, 2009). Em 1936 ela ingressou no curso de graduacéio em Ciéncias Politicas e Sociais da Escola Livre de Sociologia e Politica (ELSP). As ciéncias sociais passaram a ser uma das alternativas profis- sionais emergentes para as mulheres" e, no caso de Bicudo, permitiu o aprofundamento da visada sociolégica adquirida no Ambito da educacao sanitaria, na estreita rel. tura e condigdes de vida (MAIO, 2010). Trazendo sua experiéncia sanitarista, Bicudo matriculou-s em instituigado pioneira no campo das ciéncias sociais no Brasil, criada em 1933, fruto dos esforcos intelectuais de setores da elite paulista que buscavam alternativas politic oO entre puericul- s, a partir da formagao de quadros técnicos, a derrota da Revolucao Constitu- cionalista de 1932. As Ciéncias Sociais tornam-se importante 11 Sobre a presenca feminina nos cursos de ciéncias sociais em So Paulo nos anos 1940 1950 ver Anudrios da ELSP. Ver também Miceli (1989), 28 fonte de conhecimento para as incipientes organizagoes de planejamento econémico e desenvolvimento social (LIMONGI, 1989; SIMOES, 2009; DEL VECCHIO; DIEGUEZ, 2009). Sob os auspicios da ELSP foram realizados estudos sobre o negro; pa- drfo de vida e assisténcia filantrépica na cidade de Sao Paulo; enquetes sobre preconceito e atitudes raciais; pesquisas de opiniao publica, imigrantes, condigdes de trabalho e personali- dade dos operarios; higiene mental e psicandlise; experiéncia social de doengas; estudos de comunidades rurais; projetos de desenvolvimento de comunidade, etnologia indigena, etc.” Para contemplar o amplo e¢ diversificado leque tematico de suas pesquisas, a ELSP, sob ascendéncia norte-americana, con- tratou socidlogos e antropdlogos estrangeiros, tais como: Horace Davis, Samuel Lowrie, Donald Pierson, Radcliffe-Brown, e rece- beu a visita temporaria de outros: Franklin Frazier, Melville Her- skovits, Charles Wagley (MASSI, 1989). Inspirando-se na Escola Sociolégica de Chicago", a ELSP adotou perspectiva interdiscipli- nar como nas relagdes entre Antropologia, Sociologia e Psicologia Social. Fez dos problemas urbanos e rurais seus laboratérios. © bacharelado da ELSP tinha a duracao de trés anos e, no periodo em que Virginia Bicudo foi aluna da Escola, a grade curricular era composta das seguintes disciplinas: Biologia Social, Economia Social, Estatisticas, Introdugao 4 Economia, Sociologia, Ciéncia Politica, Contabilidade, Economia Interna- cional, Financas Pablicas, Histéria das Doutrinas Econémicas, Psicoténica, Administracéo Publica, Contabilidade, Economia Internacional, Educacao Nacional, Financas Publicas, Historia 12 Ver Anuarios da Escola Livre de Sociologia ¢ Politica 13 No final do século XIX, Chicago transformou-se num verdadeiro “laborat6rio social” em decorréncia dos problemas sociais advindos da urbanizacdo e da industrializacdo. As Ciencias Sociais da Universidade de Chicago foi pioneira na proposta de uma sociologia empitica tendo em vista propésitos reformistas. (VALLADARES, 2005). 29 Econémica do Brasil e Psicologia Social. Em 1938, Bicudo ba- charelou-se em Ciéncias Sociais e Politicas sendo a tnica mu- Iher formada numa turma de 8 alunos. Ne canalista Durval Marcondes, que atuava no Servico de ste periodo, Virginia Bicudo conheceu 0 médico e psi- aide ‘olar desde meados da década de 1920 ¢ foi professor da disciplina Higiene Mental para 0 Curso de Educadores Sani- trios a partir de 1937. No ano seguinte, criou o Servico de Higiene Mental Escolar (SHME) da Secretaria de Educaco do Estado de Sao Paulo, ocasiaéo em que Virginia Bicudo tornou-se visitadora psiquidtrica. O SHME funcionava por intermédio da: clinicas de orientagdo infantil, cujas funcdes eram a prevencao € 0 tratamento de problemas psiquicos da crianca (BICUDO, 1941). Marcondes e Bicudo tinham outro elo em comum: a psi- canalista alema e judia Adelheid Koch, refugiada do nazismo. Ele a conheceu em 1936 e Bicudo tornou-se a primeira mulher a ser analisada por Koch, a partir de 1937. (BICUDO, 1989; SAGAWA, 2002). No inicio da década de 1940, Bicudo passou a lecionar, junto com Marcondes, as disciplinas Higiene Men- tal e Psicandlise na ELSP. Esta parceria profissional e intelec- tual contribuiu para a transformagdo da instituigdo académica num importante espaco de difusao e de institucionalizacao dos “saberes psi” em Sao Paulo, entre os anos 1930 e 1950."4 “Na Escola de Sociologia se estudava 0 problema do Negro”: a pesquisa sobre atitudes raciais na ELSP Em diversas entrevistas, Virginia fala em “sofrimento” como um importante motivo para sua op¢do pelo curso de ciéncias so- ver Duarte (2005). 15 Entrevista de Virginia Leone Bicudo a Marcos Chor Maio em 25, Set. 1995; ver Maio, 2010. 30 ciais na ELSP, “imaginando que |é (...) descobriria as causas da dor e, portanto, o lenitivo” (BICUDO, 1989, p. 95)."° Em alguns depoimentos' , ela revela que foi alvo de preconceito na infan- cia pelo fato de ser negra, chegando ao dramitico relato sobre um epis6dio de discriminagdo racial sofrido pelo pai: “ You contar uma coisa tristissima da historia [de Te6filo Bicudo]. Ele queria fazer universidade. Na época era Curso Superior. E ele queria ir para Medicina. Entéo estava no sexto ano do gir io. Veja que homem esforcado, hein? Veio de empregado doméstico que ele era, depois foi subindo e fez 0 Gindsio do Estado. E quando terminou Git > do Estado naquele ano, ele passava direto para Faculdade de Medicina. Naquele tempo nao havia vestibular para Medicina. Termi- nava o gindsio e entrava na Medicina ou em qualquer curso superior 20, © professor que chamava Barros ou Barrinhos, do gindsio do Ultimo ano, quando viu que meu pai ia para Faculdade de Medicina, reprovou. Porque ele disse que negro nao podia ser médico.”” TeOfilo Bicudo tinha forte ascendéncia sobre a filha. Ele era um parametro no plano ético, no mundo do trabalho e na 16 Em outra entrevista declara: “Foi dentro desse curso [de ciéncias sociais da ELSP] que eu tive a felicidade de pela primeira vez encontrar uma nocao de conflito psiquico, um superego, um proceso de sublimacao, um Freud, Entao pela primeira vez eu soube que havia no s6 conflito entre individuo ¢ ambiente, mas havia conflito mental” (CANDIOTA, 1977, p8). 17 O psicanali ar Sandler lembra o comentario de Bicudo: “Desde pequenina eu fui vista como uma ‘negrinha pobre’. Quando cresci, meu crime foi ser mulher emanci- pada”, (SANDLER, 2004, p. 29). Em depoimento a Meyer (2004) Virginia recordou que: “Eu fui criada fechada em casa, quando eu sai foi para ir a escola e foi quando pela primeira vez, na escola, a criangada comecou: ‘negrinha, negrinha’. Quando eu estava dentro de casa eu nunca tinba ouvido. Ent2o eu levei um susto” (p. 17-18). Virginia Bicudo expos a motivagao sociolégica para o ingresso na ELSP, com base em sua vivéncia do preconceito de cor: "Desde crianga eu sentia preconceito de cor. Queria 0 curso de sociologia porque, se 0 problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do pre~ conceito, que € formado ao nivel sociocultural” (BICUDO, 1994, p.6). Damasceno (2010, p.12) aponta para a importincia dos estudos sobre os intelectwais negros no Brasil. 18 Entrevista de Virginia Leone Bicudo a Marcos Chor Maio em 25. Set. 1995; ver Maio (2010). a Paulo 31 centralidade que a educagdo assumiu no seio da familia como um meio indispensavel para a ascensdo social. A vivéncia do racismo pela menina da Vila Economizadora transformou a ex- periéncia social e individual do preconceito de cor em reflexio intelectual, nomeando-a “questao racial”. Em 1942, Bicudo ingressou na recém-criada Divisio de Estu- dos Pés-Graduados da ELSP, coordenada pelo sociélogo norte- americano Donald Pierson (1900-1995). Sob a orientacdo de Pierson, ela se interessou pelos “estudos de atitudes”, na con- fluéncia da sociologia com a psicologia social. Inicialmente, seu projeto de pesquisa se intitulava “Estudo da Consciéncia de Raga entre Pretos e Mulatos de Sao Paulo”, que ja revelava 0 interesse da socidloga pelo tema das tensdes raciais. Indica- va ainda a proposta comparativa implicita com 0 caso baiano, pesquisado por Pierson, O tema das relagdes étnicas e raciais adquiriu maior visibili- dade na agenda de pesquisas da ELSP no inicio dos anos 1940 com 0s estudos acerca “da competi¢ao entre diferentes ‘cores’ e nacionalidades” e “sobre atitudes raciais entre brancos € negros em Sao Paulo”, utilizando questionarios, entrevistas € histérias de vida.” A ELSP estava em sintonia com as transformagdes urbano-industriais que vinham ocorrendo na cidade inspiran- do-se nos estudos sociolégicos sobre Chicago. alunos (Virginia Bicudo, Gioconda Mussolini e Ora- cy Nogueira) da primeira turma do mestrado da ELSP (1942- 1945), Bicudo e Nogueira realizaram pesquisas sobre atitudes raciais, chegando a conclusées distintas do orientador Donald Dos trés 19 Sobre Donald Pierson, ver Coma (1987), 20 Carta de Donald Pierson a Virginia Bicudo, 21. Ago. 1942. Acervo Virginia Leone Bicudo, 10 de Documentagio e Pesquisa da Historia da Psicandlise da SBPSP. 21 A Tentative Outline of Expenditures for Research and Translations in Connection with the Grant of the Rockefeller Foundation for the Year 1941, 3p, Acervo Donald Pierson. Arquivo Edgard Leuenroth (AEL)/UNICAMP. a2) Pierson. Nogueira elaborou dissertacdo sobre o estigma na ex- periéncia social de tuberculosos, na qual se encontram os te- mas das atitudes sociais e dos estere6tipos (NOGUEIRA, 2009). Publicou no curso de gradua¢ao artigo sobre o preconceito de cor com base em investigacao sobre atitudes desfavoraveis de anunciantes de Sao Paulo ao contratarem trabalhadores de cor a partir de anuncios de procura e oferta de emprego do jornal Didrio Popular. Quanto a natureza das atitudes adversas aos negros em Sao Paulo, esta ndo se limitaria ao “preconceito de raca” e tampou- co ao “preconceito de classe”. Nogueira sugere uma “terceira via”, 0 preconceito de cor, que seria um “tipo de preconceito intermediario”, uma espécie de interseccao entre cor e classe, nao se confundindo com o de estrato racial — proprio ao mo- delo norte-americano, no qual a ascendéncia negra, mesmo que longinqua, definiria a identidade racial do individuo — nem com o preconceito de classe, na medida em que negros ¢ pardos localizados em posig6es sociais elevadas na estrutura social nao estariam imunes a atributos negativos preconcebi- dos derivados da cor (NOGUEIRA, 1942, p. 357; CAVALCANTI, 1996; MAIO, 2008). Diferente da chave interpretativa pierso- niana, que privilegia o preconceito de classe, ele afirma que processos de ascensao social nado cancelam as marcas raciais. Em seu estudo sobre atitudes raciais, Bicudo apresenta afini- dades com o trabalho de Nogueira. Durante o mestrado (1942-1945), Bicudo cursou diversas disci- plinas que abordavam aspectos sociologicos e antropolégicos so- bre as relagSes étnico-raciais. Das disciplinas, professores e notas Raga e Cultura (ministrada por Donald Pier- son), na qual obteve nota 9,0; Negro no Brasil (Donald Pierson), alcangadas temos 9 e 4; Etnologia Brasileira (Herbert Baldus), 9,0; Assimilacao e 33 Aculturacgo (Emilio Willems), 6,0; Principios de Antropologia So- cial (A. R. Radcliffe-Brown), 6,0; Estudos da Sociedade (Donald Pierson), 9,0; Métodos nas Ciéncias Sociais (Donald Pierson), 9,0; IntrodugSo 4 Antropologia Social (Antonio Rubbo Miller), 7,02 Da pléiade de professores e da diversidade de cursos, “Negro no Brasil” , ministrado por Donald Pierson, foi a disciplina en que Bicudo alcangou a maior nota. Na dissertagdo, ela aborda tema concernente 4 tradicdo das ciéncias sociais brasileiras, do persistente exercicio de reflexao sobre os problemas e desafios recorrentes da sociedade em se constituir como nagaio moderna. O negro como questao é analisado nos anos 40 em contexto no qual as inquietudes intelectuais sobre nossa sociedade passam a ser vistas mediante a critica ao ensaismo e pela afirmacao de uma rigorosa produgao do conhecimento cientifico no ambito da incipiente institucionalizagdo das ciéncias sociais no Brasil, especialmente em Sao Paulo e no Rio de Janeiro (VILHENA, 1997, p. 134-135). Em seu estudo sobre a “questo racial” (BICUDO, 1945), Virginia Bicudo combina anidlise socioldgica (estrutura de clas- ses, mobilidade social, status, valores sociais, preconceito de cor) com psicologia social (“atitudes sociais”). Converge assim para sua formacdo em ciéncias sociais associada a estudos e experiéncias no campo da psicanilise. Na trilha de Pierson, ela escolheu tema frequentado desde as primeiras décadas do sé- idade de Chicago, a exemplo do estudo classico de Thomas e Znaniecki culo XX pelo Departamento de Sociologia da Univers (1918), que abordam processos de ajustamento dos imigrantes poloneses nos EUA, Este fendmeno, traduzido por expressivas 22 Ver carta de Donald Pierson a Virginia Bicudo, datada de 18 de maio de 1944, no Acervo Virginia Leone Bicudo, Divisio de Documentacio e Pesquisa da Historia da Psicandlise da SBPSP. Os nomes dos professores das disciplinas podem set encontrados nos anudtios da ELSP (1942 a 1944), quando Bicudo fez: os cursos. 34 mudan¢as culturais, foi analisado na intersecdo entre valores coletivos € atitudes individuais, ressaltando a dimensio sub- jetiva nas interacdes sociais. Nesse momento, as pesquisas so- bre atitudes raciais (preconceitos e esteredtipos) enfatizavam as criticas ao determinismo biolégico, ao suposto carater in- ato das agdes humanas, buscando as razdes_psicossociolégi- cas das hostilidades entre grupos sociais — étnicos, religiosos, econédmicos, etc. (KLINEBERG, 1940, p. 346-347; RICHARDS, 1997). Em sintonia com esta perspectiva, Robert Park concebe as atitudes a partir de motivagdes econémicas, religiosas, de busca de status ou suscitadas pela discriminacdo a minorias, entre outras (PARK, 1931, p. 31)”. eral omar Gan A a) mo coma mee ne meme sae mA re svi ores Mes curacao bis sca a cs Cope do original da disserlacdo de mesttado Ge Virginia Leone Bicudo. Sac Paulo, 1945. 23 sobre a exper de Park no Brasil, ver Valladares (2010). 35 Além de Park, Bicudo inspira-se em outro socidlogo da Uni- versidade de Chicago, Ellsworth Faris, que entende a atitude dos individuos a partir de determinados objetos que, no caso da professora da ELSP, € 0 preconceito. Na perspectiva de Faris (1937, p. 9-11), as atitudes deveriam ser analisadas em momen- tos de crise, pois revelam periodos de desorganizacao social; ele segue interpretacdo de Park, que concebe as atitudes como expressao de momentos de tensdo, de transformacdo social. Na chave interpretativa de Park, “as mudang¢as sociais comecam com as mudan¢as nas atitudes condicionadas pelos individuos, operando-se posteriormente mudancas nas instituig6es e nos ‘mores” (BICUDO, 1945, p. 2; PARK, 1931, p. 27 € 43). A pesquisa de Virginia Bicudo foi realizada entre 1941 e 1944, durante 0 Estado Novo e ao longo da Segunda Guerra Mundial. Utilizou sua experiéncia como visitadora psiquidtrica, que ja vinha abordando criticamente, embasada em historias de vida, os casos da “chamada ‘crianca-problema’”” (BICUDO, 1942, Pp. 42-43), alvos de preconceito ao serem transformadas em “cri- ancas escorracadas [...] criancas estigmatizadas como perver: (BICUDO, 1942a, p. 23). Elas € psiquico derivado das tensdes familiares, do contexto so © wabalho como visitadora psiquiatrica expds Bicudo riam um fendmeno sociolégico tensGes, preconceitos, violéncia e marginalizagao social que Esta realidade estava longe do consenso. Sua pritica profissional influenciou envolviam as criangas das camadas populares a perspectiva sociolégica de Bicudo, ao conceber um mundo marcado pelo conflito social. Esta visada ganhou refinamento s6cio-antropolégico na ELSP, especialmente no mestrado. Em sua investigacao, ela orientou-se pelos estudos de N joguei- ra (1942), Pierson (1945) e Stonequist (1937) e por artigos sobre is” de Park e Faris. Elegeu relatos de pais de alu- nos de escolas piblicas residentes em quatro bairros populares (Bela Vista, Santana, Barra Funda e Mooca) e um de classe média (Vila Mariana). As entrevistas foram realizadas com fa- miliares que frequentavam a Clinica de Orientacao Infantil da Secao de Higiene Mental da Secretaria de Satie do Estado de Sao Paulo. Constou ainda do conjunto de depoentes™, ex-mili- tantes da Frente Negra Brasileira (FNB), organizagao politica de ampla visibilidade nos anos 1930 em Sao Paulo, que foi coloca- da na ilegalidade pelo governo estadonovista, assim como ou- tras organizac6es da sociedade civil (Andrews, 1991, 148-156). Bicudo utilizou também o jornal da FNB: Voz da Raca® A pesquisadora usou duas varidveis para qualificar seu uni- verso: cor e classe social. Selecionou aspectos fenotipicos, sendo que os pretos* foram clasificados pela cor, pelos ca- belos “encarapinhados” e pelos pais que exibiam semelhantes caracteristicas. O principio classificatério para os entrevistados mulatos foi um dos pais ser preto e outro branco, ou um pardo € outro branco, ou ambos pardos. Em termos de configuracao das classes sociais dos depoentes, as varidveis foram: renda, profissdo e instrugao. (BICUDO, 1945, p.5).”” Bicudo verificou que os negros de menor poder aquisitivo apresentavam atitudes de maior rejeico em relagdo aos proprios negros e mulatos, quando comparados com os brancos. Alguns 24 Foram realizadas mais de 30 entrevistas (BICUDO, 1945, p.3). 25 Bicudo deu nomes ficticios a FNB, denominada “Associacao dos Negros Brasileiros", € 0 jomal Voz da Raga, intitulado “Os Descendentes ce Palmares”. Uma das razdes para © uso dessas denominagdes diz respeito a0 contexto politico autoritirio em que Bicudo realizou a pesquisa. 26 Em "Estudo de Atitudes Raciais entre Pretos e Mulatos em Sao Paulo”, Bicudo utiliza predominantemente as categorias: preto, mulato e branco, Neste wabalho, uso os termos negro, mulato € branco. 27 No caso da educacio, os critérios foram: 1) até o curso primério completo para as cama- das populares; 2) 0 curso secundério para os setores médios. Em termos de renda familiar, Bicudo definiu acima de Cr$ 500,00 0 perfil de classe média, e menos de Cr$ 500,00 as classes populares (BICUDO, 1945, p5). 37 entrevistados declararam nao haver uniao entre og negros, pois ram “invejosos ¢ competitivos”. Outros afirmaram ser mais bem tratados por brancos do que por negros. De acordo coma andlise dos relatos, tais atitudes de rivalidade entre os pretos e de convivio mais harmonioso destes com os brancos estariam calcadas no sentimento de inferioridade dos negros suscitado pelo grupo dominante. Ao perceberem os brancos como mais simpaticos, os negros das camadas populares seriam movidos por um mecanismo de evitagdo do conflito com os brancos e assim produziriam uma compensacao ao sentimento de subal- ternidade (BICUDO, 1945, p. 63). Em relagao aos negros das camadas médias, as atitudes ra- ciais apareceram com maior énfase, na medida em que os en- trevistados seriam alvos mais visiveis do preconceito de cor. Um deles, criado por brancos e com curso secundario, chegou a colocar em divida a citagdo do soci6logo Donald Pierson: “Afirma-se na Bahia, como fez 0 professor Pierson, que o negro rico nao sofre preconceitos (sic). ‘Tal afirmacdo nao é verda- deira em Sao Paulo” (BICUDO, 1945, p. 9). O depoente contou que passara por diferentes situaco de preconceito no cotidi- ano: ndo ser convidado para festas na casa de amigos brancos, sofrer restricoes na entrada em restaurantes da elite e nado con- seguir namorar mulheres brancas ou mulatas por oposigao das familias (BICUDO, 1945, p. 10-20). Os negros das clas as t€m ressentimento e so pessimistas quanto a possibilidade de haver solidariedade entre brancos e negros. Estes, segundo médi- Bicudo, pertencentes aos estratos médios, enfrentavam o sen- timento de inferioridade provocado pelas atitudes de precon- ceito dos brancos, mediante determinados meios de ascensio social, tais como © casamento, o exercicio de profissdes liberais e da “boa aparéncia” (BICUDO, 1945, Pp. 22). Mesmo quando 38 ascendiam profissionalmente ou conseguiam um diploma de nivel superior, eles continuavam a sofrer constrangimentos no meio social branco, 0 que provocaria a consciéncia de cor (BI- CUDO, 1945, p. 21-22), Reforcando a critica de seu depoen- te a Pierson, Virginia considera Sao Paulo um contraponto a experiéncia baiana. Ela pondera que no caso paulista, “talvez mais acentuadamente do que na Bahia, a posicao ocupacional inferior do negro incluiria aspectos da luta no nivel de status social, isto é, com mais dificuldades venceriam os méritos pes- soais, por que encontrariam maior resisténcia como negros” (BICUDO, 1945, p. 42). De acordo com Bicudo, entre os mulatos das camadas popu- lares se observava consciéncia de cor mais acentuada do que entre os pretos do mesmo estrato social, pois manifestavam atitudes de evitacao, receosos de serem chamados de “negros”. Nos depoimentos, ficou evidente 0 desejo das mulatas das classes baixas de procurar cénjuges da mesma cor, pois nao desejavam se unir a negros e tampouco sofrer preconceito por terem se casado com brancos (BICUDO, 1945, p. 30). No caso das atitudes dos mulatos das classes médias, os de- poimentos demonstrariam a presenca do sentimento de inferi- oridade. Na vii iavam ser reconhecidos de Bicudo, eles a1 como brancos uma vez que estavam conscientes de que a cor era uma barreira 4 ascensao social. (BICUDO, 1945, p. 36-37). Ela se inspira em Nogueira (1942), ao considerar que o mu- lato procurava adquirir simbolos do grupo branco dominante, consciente de que a discriminag4o estaria na razdo direta da Este seria um associagéo de sua cor com a origem africana indicador preciso da existéncia no Brasil de “ de cor, distinto do preconceito de raga ou de classe” (BICUDO, 1945, p. 38). m_preconceito 39 Na segunda parte da dissertacao, Bicudo aborda, como men- cionado acima, a Frente Negra Brasileira (FNB), através de en- trevistas com militantes ¢ andlise de exemplares do porta-voz da organizacao: 0 jornal Voz da Raca. A instituigdo era fruto da mobilizagado dos estratos sociais médios que creditavam 4 “barreira de cor” as condi¢Ses adversas vividas pelos negros na sociedade brasileira. O objetivo da FNB era criar uma soli- dariedade entre os negros para a luta “contra os obstaculos a ascensao social em consequéncia da cor” (BICUDO, 1945, p. 47). Por meio da educacao, do trabalho, da valori: cao profis- sional e da acao politica, os negros seriam reconhecidos pelo grupo branco dominante (BICUDO, 1945, p. 47). Na conclusao, Bicudo observa que, quanto mais o negro ascende social e economicamente, maior é a possibilidade de ocorrer consciéncia racial, destoando assim de seu orientador Donald Pierson. Em Brancos e pretos na Babia, Pierson (1945, p. 421) conclui que “existe preconceito no Brasil, mas € pre- conceito antes de classe que de raca, apesar de estar, até certo ponto, ligado a cor”. No capitulo “‘Ideologia racial’ ¢ atitudes raciais”, ele constata, com base em pesquisa de fontes orais e documentais realizada em Salvador, a reduzida atengdo confe- tida ao conflito racial ou ao seu controle pela sociedade baiana (PIERSON, 1945, p. 269-270). As atitudes raciais seriam carac- terizadas por uma série de esteredtipos, especialmente quanto a mulatos e negros. Pierson (1945, p. 295-296) vé a sociedade ba- iana como “constituida em classes, em que a competigdo toma antes a forma de luta entre as classes (que por motivo de ordem hist6rica vieram a coincidir em considerivel extensio com a cor) que de luta entre as racas ou cores em si mesmas”. Os negros que conseguem alcancar certo status social, segundo o socidlogo, tenderiam a ser incorporados ao grupo dominante 40 branco. Assim, a consciéncia racial dos negros baianos seria minima, pois as atitudes estariam no Ambito da chave classista. Diferente de Pierson, Bicudo indica a importancia da andlise do conflito social e do racismo. Os esforcos de pretos e mu- latos pela conquista de novo status social, mediante investi- mentos em educa¢do e formagao profissional, nao levariam a eliminagao “das disténcias sociais na linha de cor”, devido a persisténcia do preconceito de cor (BICUDO, 1945, p. 65). As tenses sociais entre brancos e negros seriam mais explicitas, tendo em vista as barreiras raciais impostas aos negros dos se- tores médios, que procurariam ascender socialmente. O estudo sociolégico de Virginia Bicudo guarda afinidade com investigagdes desenvolvidas somente nos anos 1950. Os limites 4 ascensao social de negros de classe média produzem movimentos sociais a exemplo da FNB e processos de afirma¢ao de identidades raciais como caminho 4 superacgao das “barrei- ras de cor”. Assim como Bicudo, inclusive com um capitulo in- titulado “Atitudes, Esteredtipos e Relagdes Raciais”, 0 socidlogo Luiz de Aguiar Costa Pinto (O Negro no Rio de Janeiro, 1953), chegou a conclusao semelhante a cientista social ao analisar a atuacao do Teatro Experimental do Negro na virada dos anos 1940 para os anos 1950.”* No final da Segunda Guerra Mundial, Virginia Bicudo apre- sentou reflexdo inovadora, ao considerar a cor como importante varidvel na produgao de desigualdades sociais em contexto in- telectual no qual prevalecia a maxima de que o preconceito de classe seria reinante na sociedade brasileira. Sua arguta andlise sociologica antevé interpretag6es realizadas apenas na década 28 Além do trabalho de Pinto (1953), 0 estudo de Bicudo (1945) aproxima-se da pesquisa de Nogueira (1955) e se diferencia da andlise de Bastide e Fernandes (1955), a qual considera as assimetrias raciais a partir das desigualdades sociais. Sobre as diferentes perspectivas presen- tes no Projeto Unesco, ver Maio (1997); sobre Pinto, ver Maio (2009) e Villas BOas (2006). Al de 50, no contexto do ciclo de Pesquisas sobre as relagdes ra- ciais no Brasil patrocinado pela Unesco. Virginia Bicudo no Projeto Unesco Ao concluir a primeira dissertacao de mestrado sobre a “questao. racial” defendida em uma instituigdo universitaria_brasilei- ta, Bicudo continuou lecionando na ELSP e exercendo suas atividades de visitadora psiquiatrica e psicanalista, Em 1945, conheceu o psicélogo social Otto Klineberg, da Columbia Uni- versity, que chegara dos FUA com a mis ‘© de, a um s6 tempo, trazer a experiéncia norte-americana no campo da psicologia social para o Brasil € criar o Departamento de Psicologia da Universidade de Sao Paulo (USP). Bicudo assistiu ao Seminario de Psicologia Social,” oferecido por Klineberg na Faculdade de Filosofia, Ciéncias e Letras (FFCL) da USP, em 1946. Foi ainda convidada a participar do livro Psicologia modern , organizado pelo psicélogo canadense, durante a estada de Klineberg no Brasil, entre 1945 e 1947. Esta obra, publicada em 1953, teve © propésito de estimular o desenvolvimento da psicologia no Brasil, em didlogo com outros campos disciplinares. A coletanea contou com a colaboragao de pesquisadores oriundos da an- tropologia, da psicologia social, da sociologia, da educagio, da higiene mental e da psicanilise.* Eles estavam vinculados a 29 A partir de 1945, Bicudo tornou-se professora-assistente da cadeira de Higiene Mental da Faculdade de Higiene e Satide Publica da USP. Em 1946, comecou a ministrar 0 corso de Higiene Mental na Faculdade de Enfermagem, anexa 4 Faculdade de Medicina da USP. Deu aulas de Higiene Mental do Trabalho no curso de Organizacio Racional do Trabalho Promovido pelo Instituto de Organizacio Racional do Trabalho (Idort), do curso de Higiene Mental patrocinado pela Legiio Brasileira de As Virginia Leone Bicudo, Documentos Diversos, CEDOC-FESPSP. 30 0 livro Psicologia moderna contém artigos que tratam de t6picos como cultura e perso- nalidade, diferencas individuais e grupais, atitudes e opinides, etc. Fizeram parte da cole. zea, entre outros, Durval Marcondes, Anita Cabral, Herbert Baldus, Mario Wagner Vieita da Cunha, Lourenco Filho, Virginia Leone Bicudo, Aniela Ginsberg e Betti Katzenstein, @ncia (LBA). Ver 42

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