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Ética e Cristianismo

(Primeira Parte)
2018/2019

0.- NOÇÕES INTRODUTÓRIAS E BREVE PERCURSO HISTÓRICO


0.1- NOÇÕES
CRISTIANISMO: religião que, derivando do judaísmo, foi fundada pela
totalidade da vida de um Jesus Cristo que, tido pelos cristãos históricos
como sendo Deus não obstante seja igualmente plenamente humano, a
estabeleceu sobre a Igreja enquanto comunidade daqueles que acolheram,
livremente e para o anunciarem, o dom amoroso de Jesus.
CULTURA: ambiente secundário que o ser humano edifica sobre a natureza,
compreendendo: linguagem, hábitos, ideias, crenças, costumes,
organização social, artefactos herdados, processos técnicos e valores. Por
outras palavras: ela “é toda a actividade do ser humano, a sua inteligência
e a sua afectividade, a sua busca de sentido, os seus costumes e as suas
referências éticas”.
Note-se, portanto, que “não há cultura que não seja do homem, pelo homem
e para o homem”, a ponto de não haver nada na sua identidade “que não
se manifeste na sua cultura”, embora deva-se admitir que “o homem não
se esgota na cultura”, pois a natureza humana leva-o a transcender a
mesma, afirmando tal natureza sua dignidade pessoal pelo viver conforme
à verdade profunda do seu ser.
CRISTIANISMO E CULTURA: o Cristianismo não é uma cultura, nem tem,
propriamente falando, uma cultura, antes estando chamado, pela sua
natureza e mesmo nesta “época em que vivemos, ao mesmo tempo
dramática e fascinante”, a fecundar a cultura, que sendo verdadeira tem o
seu centro “constituído pela sua aproximação ao mistério mais excelso”,
com princípios que a elevem a promovam na linha do maior bem, da maior
verdade e da maior beleza.
Não se trata, portanto e para o Cristianismo, de negar o valor da cultura
(sendo anti-cultura), pois o mesmo reconhece e defende que é “próprio da
pessoa humana necessitar da cultura para chegar a uma autêntica e plena
realização”. Também não se trata de a assumir acriticamente ao sabor das
modas e pressões mediáticas. Trata-se, isso sim e mesmo que isso convide
à crítica de alguns aspectos da mesma (sendo-se contra-cultura), de viver
no seu seio (inculturação), de modo individual e colectivo, para a fomentar

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de um modo que se pretende que seja humano e humanizador, restituindo
ao ser humano a sua plenitude.
Em suma: o Cristianismo concebe-se como sendo filho (herdeiro e
acolhedor) e progenitor (criador e educador) da cultura onde está inserido,
criticando o que de criticável há na cultura para a melhorar, mas apenas
porque se lhe dá um imenso valor para a querer melhorar.

0.2- HISTÓRIA DO CRISTIANISMO


0.2.1- AS ORIGENS DO CRISTIANISMO
A Igreja pode ser considerada a configuração histórica do Cristianismo, a
realidade institucional que lhe dá corpo. Hoje em dia, como noutras épocas
da história, a Igreja é posta em questão de muitas maneiras e a partir de
muitos sectores da sociedade e da cultura, basicamente por ser uma
instituição pesada e que não se manifesta atraente nem relevante para a vida
das pessoas.
Teoricamente, os marxistas e seus sucessores dizem que a Igreja é uma
instituição conservadora que quer impedir o progresso e a justiça; Nietzche
e os seus seguidores dizem que a Igreja faz a apologia do sacrifício, da
resignação, da tristeza e, portanto, não interessa ao Homem; Freud e os seus
seguidores dizem que a Igreja alimenta ilusões religiosas infantis, não deixa
o Homem ser adulto, até porque apresenta a um Deus castrador da sua
autonomia.
Do ponto de vista prático, a Igreja também é posta em questão: os liberais
aceitam que a Igreja pode ter algum interesse histórico-arqueológico, mas
hoje não interessa e está ultrapassada; os laicistas dizem que a Igreja ganhou
grandes poderes na sociedade e querem remetê-la para dentro das capelas e
para o culto ( tudo o resto é tarefa e dever do Estado); e mesmo dentro da
Igreja há muito desinteresse e mal-estar, muitos pensando que a Igreja não
lhes diz nada, a não ser algumas leis com que não estão de acordo e algumas
ocasiões (casamentos, baptizados…) em que é normal servirem-se dela
para alguma festa…
Contudo, a verdade é que a Igreja nem sempre foi uma instituição pesada
nem tem fatalmente que o ser assim. Talvez até que essa faceta mais
jurídico-institucional represente um afastamento, um desvirtuamento da
praxis e projecto de Jesus (o que está muitíssimo bem interpretado pelo
capítulo ‘O grande inquisidor’ da famosa obra de Dostoyevski “Os irmãos
Karamazov”). Pelo contrário, quer seus inícios quer nos lugares onde ainda
hoje é profética e corajosa, a Igreja pode constituir uma proposta válida
para as pessoas, para a cultura, para o mundo.

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A Igreja começou por ser uma pequena comunidade em Jerusalém, com um
programa de vida simples mas bonito. Quando lemos a parte da Bíblia
redigida pelos cristãos, vemos que a Igreja é uma comunidade, um grupo
de amigos que sentem irmãos, solidários, rezando em conjunto, vivendo
unidos e partilhando bens e responsabilidades (sempre com Jesus no
pensamento e como critério de vida).
Foi esta maneira simples e bela que atraiu muitas pessoas. E, rapidamente,
em volta do Mar Mediterrâneo, já seja na Ásia Menor, no Norte de África,
na Grécia ou até Roma (capital do Império), começaram a formar-se
comunidades do mesmo tipo daquela que existia em Jerusalém. É verdade
que tais comunidades conheceram problemas morais, étnicos e de falta de
partilha; mas o ideal comunitário de vida falou sempre mais forte.
Além disso, todos se sentiam responsabilizados pela vida do
grupo/comunidade e eram activos. Muitos serviços apareceram nas
comunidades: profetas, apóstolos, doutores (palavra); milagreiros ou
diáconos (caridade); bispos ou presbíteros (para o governo e para o culto).
Hoje em dia, a igreja tem aquele mesmo desafio das origens: viver em
estruturas comunitárias mais simples e leves, procurando um equilíbrio
entre os 3 grandes sectores da vida eclesial: evangelização, celebração da
fé, caridade. Vivendo assim, a Igreja será aquilo que Jesus pediu aos
discípulos e amigos que fossem: ‘sal da terra’ e ‘luz do mundo’.
Afinal, a Igreja hoje já não se encontra em luta com o mundo nem se
identifica com ele: a Igreja sabe-se no mundo (geográfico) sem ser do
mundo (moral, cultural). A Igreja procura o bem comum, o serviço das
pessoas, a defesa da vida contra todas as injustiças e situações degradantes.
Recentemente a Igreja afirmou categoricamente como uma verdade que não
pode ser negada por si mesma: «As alegrias e tristezas, as esperanças e
angústias dos homens do nosso tempo, são as alegrias e tristezas,
esperanças e angústias da Igreja». Isto é, a Igreja vive no mundo, quer-se
solidária com o mundo, assumindo a cultura de cada tempo e lugar. Ao
mesmo tempo, sem pretensões de ser a dona exclusiva da verdade ou com
qualquer outro tipo de superioridade, a Igreja procura humildemente ser
‘lumen gentium’, isto é, oferta de sentido para as pessoas, na busca de um
mundo mais ao gosto de Deus e dos homens. E tal proposta será feita em
diálogo interessado e sincero, recebendo e dando.

0.2.2- AS ORIGENS DO CRISTIANISMO


Segundo Manuel Antunes, a utopia não só aponta para algo de possível e
ainda não realizado, como acentua uma «vontade de ruptura com o
presente». Quando olhamos para o Cristianismo primitivo, tanto o das

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gerações apostólicas – de que dá conta o Novo Testamento – como o dos
três ou quatro primeiros séculos – até à sua oficialização definitiva no
Império e de que temos testemunhos vivos nalguns padres da Igreja –,
podemos realmente constatar essa nota utópica: os primeiros cristãos
trazem algo de novo e entram em ruptura com muita da realidade
circundante, seja ela considerada no domínio religioso, no político-social
ou cultural em geral.
Assim, se historicamente é possível distinguir três grandes modelos na
relação ‘Cristianismo-cultura’ – ruptura, identificação, diálogo/síntese –,
modelos esses que muitas vezes têm os seus defensores e representantes na
mesma época da história, poderíamos dizer que, globalmente, o
Cristianismo primitivo assume a ruptura com o judaísmo, o helenismo e o
império romano, ainda que, minoritariamente, haja alguns expoentes dos
outros modelos atrás referidos.
É a vida e ressurreição de Jesus que, atestadas firmemente do ponto de vista
histórico como demonstrou N. T. Wright, transforma a vida dos seus
discípulos e impulsiona o nascimento da Igreja. A ressurreição de Jesus traz
também a esperança da ressurreição de todos os cristãos e, nesse sentido,
alimenta a heroicidade diante das perseguições e martírios. Contudo, face
às grandes religiões com que se confrontava, não é essa a grande novidade
do Cristianismo. Com efeito, a ressurreição, se bem que original, quanto ao
modo, inscreve-se no quadro da crença numa imortalidade, numa vida para
além da morte – algo comum a quase todas as religiões.
A verdadeira novidade e ruptura na compreensão do transcendente por parte
do Cristianismo, para além da afirmação clara do monoteísmo, é a fé num
Deus não só Absoluto, poderoso, totalmente-outro, mas sim, também, um
Deus próximo dos homens e do mundo, um Deus ‘humano’, cheio de
compaixão, fraco, capaz de sofrer e partilhar a vida dos homens. E essa
novidade do Cristianismo é sobretudo verificável nos mistérios da
incarnação e da cruz . A diferença essencial entre catolicismo e todas as
demais religiões é que estas partem do homem e são uma tentativa
emocionante, por vezes belíssima, que se eleva muito acima para encontrar
a Deus; mas só no Cristianismo existe o movimento contrário, a descida de
Deus ao mundo para comunicar a sua vinda. Só na religião judeo-cristã se
dá a resposta à aspiração do universo inteiro. E a religião verdadeira, a
religião católica, é a que se compões destes dois elementos, quer dizer,
aquela que ao apelo dos homens respondeu a graça de Deus.
É este Deus revelado, de forma plena na incarnação de Jesus Cristo, que é
dificilmente aceitável e acreditado pelo paganismo religioso de então.
Mais: a cruz de Jesus representa, paralelamente, um outro motivo de
escândalo para as religiões de então. Já Paulo declarara que ela era
escândalo para os judeus e loucura para os gentios e, dum modo geral, a
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historicidade de Jesus e o seu fim trágico na cruz chocavam frontalmente
com a filosofia religiosa grega. Essa quebra do ‘Absoluto’ de Deus, essa
linguagem e crença que faziam de Jesus o igual a Deus era ímpia: fazia rir
os homens gregos, religiosos ou filósofos, e os judeus helenistas.
Curiosamente, essa facilidade em conceber um Absoluto que se revela e se
faz carne, não levou sempre os cristãos à consequente aceitação do
simbólico para a representação de Deus ou para a comunicação com o
transcendente. É verdade que o baptismo e a eucaristia simbolizaram desde
sempre a presença de Deus, é verdade que imagens como a do peixe, a
âncora ou a cruz desempenharam a mesma função.
Depois da ruptura entre Cristianismo e cultura moderna, é-nos mais difícil
não querer o diálogo com a cultura, a relação de empatia e serviço ao
mundo, esquecer a prioridade a conceder aos ‘sinais dos tempos’, mas em
geral, embora denunciando a imoralidade e a ilogicidade das religiões
pagãs, os pensadores cristãos procuram algum diálogo com a vida e
pensamento/sabedoria pagãs. Ireneu de Lyon e Justino de Siquém falam nas
‘sementes do Verbo’, Eusébio de Cesareia falará na ‘preparação
evangélica’ que são as filosofias pagãs, na linha, aliás, de Clemente de
Alexandria, para quem a filosofia grega era uma ‘pedagogia’ para se
aproximar do Cristianismo.
Uma das características mais inovadoras do Cristianismo primitivo é, sem
dúvida, a sua ruptura com qualquer tipo de elitismo ou exclusivismo. Neste
ponto, historiadores e pensadores dos mais diversos quadrantes, crentes e
não-crentes, todos estão de acordo: a vida cristã, nos primeiros séculos,
configurou-se em comunidades abertas a todo o tipo de pessoas
convertidas.
Certamente que a intuição subjacente a essa realidade era a do projecto de
Jesus: o Reino de Deus é visível pela prática da fraternidade universal, onde
todos são filhos e filhas do mesmo Pai – Deus. São Paulo compreendeu-o
muito bem quando rompeu com a perspectiva judaízante/nacionalista dos
primeiros discípulos e por isso afirmou: em Cristo «já não há judeu nem
grego, homem ou mulher, escravo ou homem livre».
A civilização greco-romana era essencialmente aristocrática. Assentava na
desigualdade social das famílias, algumas pretendendo descender de deuses
ou heróis; daí o direito a mandar, para uns, e de obedecer, para outros. O
Cristianismo introduz uma verdadeira revolução ao proclamar que todos os
homens provêm do mesmo par original e que todos podem ser salvos pela
cruz de Jesus Cristo. São assim reabilitadas as classes mais baixas, aos
próprios escravos é dada a dignidade e a liberdade de filhos de Deus.
Lactâncio (cerca do ano 300) escreve: «Entre nós não existem escravos ou
senhores. Não fazemos distinções entre nós e chamamo-nos irmãos entre

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todos, porque nos consideramos todos iguais. Servidores e senhores,
grandes e pequenos, todos são iguais pela modéstia e pela disposição do
coração, que afasta todos da vaidade». Isto explica, em parte, o sucesso
inicial do Cristianismo junto dos pobres e escravos (mas a que rapidamente
se começam a juntar grandes pensadores e membros de classes sociais mais
elevadas).
Se bem que o superar das classes sociais fosse algo de fundamental, outros
aspectos da igualdade proposta pelo Cristianismo se tornavam relevantes:
os nacionalismos ou fundamentalismos étnicos eram superados, as
mulheres ganhavam dignidade: o Cristianismo transformou a condição da
mulher e modificou a legislação do casamento; santidade e
indissolubilidade desconhecidas no direito antigo, liberdade de escolha
entre matrimónio e celibato, enfim, possibilidade para todos, incluindo os
escravos, de concluir uma união segundo os princípios cristãos. Os que se
apresentavam ao bispo deviam regularizar a sua situação, desposar ou
recusar uma concubina, comprometer-se numa monogamia. A mulher,
além disso, assumiu importantes serviços e ministérios nas comunidades
cristãs, até como diaconisas.
Mas é realmente na comunicação de bens que as comunidades cristãs são
mais surpreendentes: já a Bíblia falava dessa partilha, na comunidade de
Jerusalém, «para que não houvesse necessitados» e São Paulo chega mesmo
a falar do ideal da igualdade, já que os bens da criação a todos pertencem.
A solidariedade e partilha efectiva com os orfãos e viúvas, os pobres e os
escravos, é então louvada por muitos padres da Igreja, com afirmações que
não deixam lugar a dúvidas. Basílio de Cesareia, na Capadócia, advertiu:
«o pão que há na tua dispensa pertence ao que tem fome; a roupa que está
guardada no teu armário pertence a quem dela necessita; os sapatos que lá
estão a estragar-se pertencem ao descalço; o dinheiro que acumulas
pertence aos pobres»; S. Ambrósio, em Milão, diria: «Não estás a oferecer
ao pobre nada de teu, apenas lhe devolves uma parte do que lhe pertence,
pois tudo o que foi dado para o uso de todos, estava-lo tu usurpando
sozinho».
Por tudo isto, escrevia um dia, envergonhado, o imperador apóstata Juliano,
referindo-se aos cristãos: «Cuidam dos mortos e não se contentam em
alimentar os seus pobres, mas dão também de comer aos nossos pobres, que
estavam privados da nossa ajuda».
Louis Rougier, um autor contemporâneo nada simpático para com o
Cristianismo, concluiu: «A filantropia activa dos cristãos eclipsou a
misantropia passiva de que os acusavam. No meio da tormenta que foram
os séculos III e IV, a Igreja surgiu como um porto de abrigo, uma enseada
de perdão. A Cidade de Deus salvou do desespero a cidade dos homens».

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0.2.2- CRISTIANISMO E CULTURA NA IDADE MÉDIA
Como vimos, nos primeiros 3 a 4 séculos do Cristianismo deu-se uma ruptura
generalizada entre as culturas greco-romana e a religião cristã. Aliás, já
antes se dera uma ruptura do Cristianismo com a cultura/religião judaica.
Entretanto, com a conversão do Imperador Constantino (313) e a
declaração do Cristianismo como religião oficial de todo o Império (com
Teodósio, em 381), tudo se vai alterar.
O Cristianismo vai substituir a religião oficial do Império e vai assumir
inúmeras funções sociais nesse mesmo Império Romano: a Igreja passa a
estar ligada ao poder temporal, o rei/imperador serão coroados ou
consagrados pela Igreja, os eclesiásticos vão deter poderes civis, a Igreja
passará a estar ligada aos impostos do estado, etc.
Há, pois, uma, historicamente compreensível, fusão entre Cristianismo e
cultura e, com isso, uma sacralização do estado e uma secularização da
Igreja. Ser cristão significa ser cidadão romano e vice-versa; ser membro
da Igreja é ser membro do estado e vice-versa. Tudo isto, afinal, ajuda a
explicar e compreender o fenómeno do ‘monaquismo’: pode ser entendido
como uma ‘fuga mundi’… mas é também uma fuga a este modelo de
Igreja, agora ligada ao poder e às facilidades, tendo perdido a frescura e
radicalidade evangélicas iniciais.
Neste período as principais características do modo de se viver o
Cristianismo eram: o Cristianismo passa de minoritário e marginal a
fenómeno de massas; há uma identificação Cristianismo-sociedade; os
chefes convertem-se e os súbditos também (conversão em massa dos
povos ‘bárbaros’ que fez com que, até hoje, a generalidade dos cristãos
desconheçam o que é ser cristão); a cultura latina-romana junta-se ao
Cristianismo (por exemplo: o latim, o direito, as festas litúrgicas como a
do Natal, as vestes dos clérigos, etc.); os sábios na cultura são os notáveis
na Igreja: ‘clérigo’ passa a ser ‘doutor’ (e ainda hoje usamos a expressão:
‘leigo na matéria’); a Igreja assume tarefas civis, nomeadamente no
sistema de ensino, que é confiado monopolisticamente à instituição
eclesial.
Numa palavra, a cultura identifica-se com o Cristianismo (Igreja). E os não
cristãos são declarados heréticos (face à Igreja) e marginais (face à
sociedade).
Os séculos XI a XIV serão os mais importantes neste período. O
Cristianismo passa a ter valor absoluto e definitivo como sistema de vida
pessoal e colectiva. A gestão do poder político é uma gestão que é serviço
à fé cristã. O Cristianismo adquire um estatuto político: interpenetração
de leis, funções e instituições – simultaneamente religiosas e culturais. A
cristandade é, pois, a Igreja e a sua influência na sociedade. E a influência
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é tal que o Cristianismo se torna exclusivo e exclusivista: os cristãos têm
privilégios (como outrora os cidadãos romanos, no Império) e os
muçulmanos ou judeus ou heréticos não serão tolerados (aparecem com
toda a força as cruzadas e a inquisição).
Com o final da Idade Média perde-se o regime da cristandade. Começa o
processo de secularização do poder político, mas mantêm-se alguns dos
seus traços (sequelas) até aos dias de hoje: privilégio das instituições
eclesiais (por exemplo em matéria de impostos), valor civil de actos
sacramentais (o matrimónio…), salvaguarda de instituições escolares
cristãs, concepção da Igreja como ‘sociedade ‘perfeita’ (daí os partidos
confessionais…).
Mas não se faça uma valoração apenas negativa da cristandade: ela também
produziu os seus frutos e revelou muita criatividade. Houve uma
inculturação (embora extrema) do Cristianismo, que deu os seus frutos nas
artes (as catedrais românicas ou góticas, a música litúrgica do canto
gregoriano, etc.) e nas escolas (primeiro monásticas, depois episcopais e
universitárias, nas cidades).
Contudo, é inegável que a cristandade tem os seus limites: a fé, como suporte
da sociedade, fez com que o ser cristão fosse buscado como vantagem
social (Cristianismo sociológico, sem verdadeira conversão nem
personalização), muito paganismo-superstição (mesclados com essa
realidade social-cristã), simbiose unívoca com uma só cultura (romana-
ocidental) e desconsideração das outras culturas.

0.2.3- O CRISTIANISMO NA ERA DAS DESCOBERTAS DOS EUROPEUS


A pergunta que aqui nos fazemos é esta: qual a relação do Cristianismo com
os povos e culturas que foram novidade para a Europa a partir dos séculos
XV-XVI?
Esta pergunta tem sentido, porque o Cristianismo era um fenómeno europeu,
isto é, era o resultado, mais ou menos feliz, do casamento do evangelho de
Jesus com a cultura do Império romano, a cultura europeia. Ora, quando
esse Cristianismo – de europeus – descobre outros povos e culturas,
algumas delas milenares e extremamente ricas e complexas, que atitude
tomou?
Dum modo geral, podemos dizer que a expansão do Cristianismo
acompanhou a expansão político-comercial europeia. Por isso, tratou-se de
um encontro muito ambíguo com os povos e culturas africanos, asiáticos
ou americanos. A todos esses povos e culturas era necessário baptizar
(porque eram pagãos…) e civilizar (porque considerados ignorantes…).

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Esse movimento originou, portanto, muito desrespeito para com as religiões
e culturas desses povos. É difícil, assim, olhar para o passado e dizer,
romântica e ingenuamente, que apenas houve um maravilhoso encontro de
culturas e uma genuína e desinteressada expansão da fé cristã.
Os governantes europeus, em nome dos seus interesses estratégicos e
comerciais, muitas vezes não hesitaram em servir-se da religião como meio
de se imporem nos demais continentes. A Igreja, por seu lado, nem sempre
soube ser corajosa a denunciar isso, mas a maior parte dos seus membros
encetou por uma forma verdadeiramente respeitadora das culturas
autóctones.
Na América, poderíamos e deveríamos lembrar Bartolomeu de las Casas e
todos os que propuseram um encontro amigável com os povos e culturas
índias, sem conquista prévia dos seus territórios. De lembrar, também, os
jesuítas com as suas famosas ‘reduções’.
Na África, para além da generosidade de muitos missionários,
individualmente tomados, temos a destacar o princípio magistral dado à
maioria dos missionários: «despojai-vos da Europa, fazei-vos negros com
os negros».
Na Ásia, temos os sobretudo os casos dos jesuítas na China e na Índia
(respectivamente com Ricci e Nobili), que estudam a fundo o
confucionismo e o sânscrito, apreciam verdadeiramente as milenares
culturas e religiões locais e aproveitam até muitos dos seus elementos para
enriquecimento do Cristianismo (europeu). A este respeito merece ser
citado um texto maravilhoso exarado a partir de Roma para os missionários
na China: «Não ponham nenhum zelo nem avancem nenhum argumento
para convencer esses povos a mudar os seus ritos, os seus costumes, os seus
hábitos, que não sejam evidentemente contrários à religião e à moral. O que
é mais absurdo que transportar a França, a Espanha, a Itália ou outro país
da Europa para entre os chineses? Não lhes introduzam nada disso, mas
apenas a fé, que não menospreza ou destrói os ritos e costumes de nenhum
povo (…) Não ponham então nunca os costumes da Europa em paralelo
com os desses povos; pelo contrário, adaptai-vos aos deles com diligência»
Servem-nos estes exemplos para equacionar, hoje e sempre, a relação
Cristianismo-cultura. Mas do mesmo modo nos servem para nos lembrar
que constituíram excepções à regra da violência e incompreensão do
Cristianismo face a esses povos e culturas que os europeus descobriram.

0.2.4- O CRISTIANISMO NA IDADE MODERNA


Como vimos, os séculos XV-XVI conduziram a Europa da velha cristandade
a um encontro com outros povos e culturas, à margem do Cristianismo,

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noutros continentes. Mas a verdade é que esses mesmos séculos XV-XVI
viram a Europa tradicionalmente cristã confrontar-se com uma nova
Europa, em progressiva fase de secularização, e a construir-se, portanto, à
margem da Igreja. É a Idade Moderna que, podemos dizer, vem até final do
séc.XX. E, dum modo geral, a Igreja/Cristianismo vão reagir muito mal a
esta nova cultura que defendeu e promoveu a emancipação do Homem e da
Razão face à fé cristã. Daí que, olhando para os últimos quatro séculos, o
Papa Paulo VI tenha humildemente constatado, em Dezembro de 1975: «a
ruptura entre a Igreja e a cultura moderna é o maior drama do nosso tempo».
Como caracterizar, então, a Idade Moderna, de modo a compreender essa
luta que o Cristianismo lhe moveu e vice-versa?
Em primeiro lugar, há uma filosofia ou pensamento humanistas que
aparecem. O Renascimento recupera muito da cultura clássica e afirma que
«o Homem é a medida de todas as coisas». Este é o começo da ruptura, já
que se o homem é a medida de tudo, então já não é Deus, nem a Bíblia, nem
as leis da Igreja ou as orientações do Papa. Este, aliás, começa mesmo a ser
contestado dentro da própria Igreja. Este humanismo que aparece na
Europa, inicialmente, não está em oposição ao Cristianismo. Vejam-se os
casos exemplares de Erasmo ou, entre nós, de Damião de Góis. Mas as
grandes divisões da Igreja (com lutas terríveis entre católicos e protestantes)
vão como que criar as circunstâncias para que uma cultura laica se comece
a impor e a Igreja – porque ocupada em lutas internas – vai permitir o seu
divórcio com a sociedade, com a cultura europeia.
Em segundo lugar, o avanço dos conhecimentos científicos vai permitir ao
Homem ir encontrando as causas para os porquês dos fenómenos,
descoberta essa conseguida pela razão e sem necessidade de recurso ao
divino ou à Bíblia. O caso de Galileu é exemplar. Parece, pois, que o
Homem já não precisa de deus para a explicação das coisas: basta-lhe a
ciência, embora esta não o realize totalmente como pessoa nem logre
explicartudo o que é importante para a humanidade.
Em terceiro lugar, parece também que o Homem já não precisa de Deus nem
d’Ele depende para a organização da vida. Isto é, as técnicas – que se
desenvolvem muitíssimo com a revolução Industrial – vão levar o Homem
a prescindir do respeito temeroso de Deus diante das dificuldades e
fatalidades. As técnicas conduzer o Homem a uma maior emancipação e a
um ser mais senhor do seu destino e da sua história.
Em quarto lugar, e consequência deste progresso bem como da recusa do
Cristianismo/Igreja em aceitar esta nova cultura, aparecem mesmo
pensadores que vão racionalmente justificar a não necessidade do
Transcendente. São os famosos ‘mestres da suspeita’: Marx, Nietzche,
Freud são os mais conhecidos, mas estão longe de serem os únicos. Para

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todos eles Deus deve ser posto de lado, justamente porque é visto como um
rival do Homem, Alguém que oprime o Homem e não o deixa explorar
todas as suas capacidades ou potencialidades.
E é assim que a Europa deixa de ser, oficialmente, uma sociedade ou cultura
incuravelmente cristã. Os ideais bíblicos da liberdade-igualdade-
fraternidade são agora proclamados pelos laicos, na Revolução francesa,
contra a Igreja.
A Igreja, já o dissémos, não reagiu nada bem a estas ideias, a esta nova
cultura europeia e laica. Só na segunda metade do séc. XX, com o Concílio
Vaticano II (1962-1965), que reuniu os bispos do mundo inteiro, a Igreja
vai alterar a sua postura. Mas, de facto, durante os últimos 400 anos, à
medida que avançava o movimento secularizador, a Igreja fechou-se em si
mesma e lutou com a sociedade para manter os seus privilégios, sobretudo
o grande privilégio de se considerar ‘sociedade perfeita’, porque de direito
divino, e, como tal, devendo ser a ‘mestra’ da sociedade. Os sucessivos
papas, mesmo os mais progressistas (como Leão XIII), nunca escaparam a
esta lógica de querer manter a Igreja com os privilégios da cristandade,
como orientadora de toda a sociedade e cultura.
Só então com o Vat.II se dará uma primeira reconciliação entre Cristianismo
e cultura moderna. A Igreja vai afirmar-se solidária com os homens do seu
tempo, com as suas angústias e esperanças, com as suas tristezas e
angústias, e vai propor um diálogo sem condições nem limites entre a fé e
a cultura, entre a fé a as ciências e as artes, consciente de que nesse diálogo
há influências recíprocas, tendo a cultura muito a oferecer à Igreja e à vida
cristã e, por outro lado, o Evangelho sempre constituirá novidade
libertadora para todo o homem e cultura, tanto mais que a sociedade que se
quis construir à margem de todo o Transcendente, alicerçada no mito do
progresso, tão pouco trouxe a felicidade total ao ser humano: se é justo
reconhecer o bem das democracias ou do bem-estar para muitos, não é
menos verdade que o mundo nunca assistiu a diferenças entre ricos e pobres
tão grandes, a desiquíbrios ecológicos tão ameaçadores e a perturbações
psicológicas tão generalizadas.

0.2.5- O CRISTIANISMO NA IDADE MODERNA


O Cristianismo são palavras e obras que deseja transformar a realdiade na
linha do maior e melhor amor, daí que haja uma ‘doutrina social da Igreja’.
A Igreja, assim, passa a recuperar a ideia bíblica de que a sua missão é a
promoção humana, tendo-se passado a usar vocabulário radicalmente
bíblico como “solidariedade”, “ajuda”, “justiça”, “paz”, “libertação”…
Digamos que a Igreja reconhece o que de melhor fizeram neste campo os

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milhares e milhares de missionários que se preocuparam quase sempre com
a alfabetização e a escola, a assistência e a saúde, a promoção da mulher, a
melhoria das condições de vida de todos aqueles a quem se anunciava o
Evangelho.
A missão da Igreja recupera a ideia de que deve ajudar a viver-se
humanamente no presente, donde os cristãos acabam por ser chamados a
trabalharem e colaborarem na recta ordenação dos problemas económicos
e sociais, num sentido de instauração de melhores condições de vida e com
a estabilização da paz no mundo debelando a fome, a ignorância e as
doenças. Afinal, a Igreja tem de escutar as vozes de todos e empenhar-se
até ao fim de si mesma e com todas as suas forças na luta para superar tudo
aquilo que os condena a ficar à margem da vida: fomes, doenças crónicas e
endémicas, analfabetismo, pobreza, injustiça nas relações internacionais e
especialmente nos intercâmbios comerciais, situações de neo-colonialismo
económico e cultural, por vezes tão cruel como o polític.
O Cristianismo é equidistante das culturas, donde deve haver a adequação
daquele a cada cultura – a‘inculturação’ – de modo a se criar múltiplos
Cristianismos através do respeito franco do que de verdadeiro humano há
em cada cultura. Assim, rompe-se claramente com concepções do passado,
onde ‘missão’ significou muitas vezes pretensão a ‘civilizar’ povos e
culturas atrasados ou ignorantes. Agora respeitam-se as culturas dos povos
e recupera-se a muito antiga intuição de vários Padres da Igreja para quem
as culturas eram portadoras de ‘sementes do Verbo’.
Os cristãos em geral e os missionários em particular são chamados a:
participarem na vida social e cultural através dos vários intercâmbios e
problemas da vida humana; familiarizarem-se com as suas tradições
nacionais e religiosas; fazerem assomar à luz, com alegria e respeito.
Face às demais religiões a Igreja entregou-se a um nível, do seu lado acente
na verdade, a três níveis:espiritual, de colaboração e doutrinal. Conscientes
de que o mundo não-cristão é habitado por milenares tradições religiosas,
o Cristianismo aceitou o radical princípio bíblico que Deus é maior do que
a Igreja e que, assim, as religiões não-cristãs podem ser, embora com menos
segurança, meios por onde também se realiza a salvação.
Relativamente àquelas três grandes perspectivas para a compreensão e
prática do diálogo inter-religioso, a Igreja passa a fala do diálogo necessário
e profundo que deve existir entre a fé cristã e as distintas culturas dos povos,
sendo muito clara na afirmação de que a evangelização implica a
‘libertação’ que se baseia no amar com respeito os crentes das religiões não-
cristãs enquanto sendo estas vias extraordinárias de salvação.

12
1.- CONTRIBUTOS DO CRISTIANISMO PARA A CIVILIZAÇÃO
Civilização: é uma sociedade complexa, assinalada pelo: desenvolvimento
urbano; a estratificação social, que tem no seu topo uma elite cultural;
sistemas simbólicos de comunicação; e uma divisão e domínio patentes
sobre as circunstâncias naturais envolventes.
Ao longo de dois mil anos foram imensos os contributos do Cristianismo
para a Civilização, notavelmente ocidental. Não se abordará aqui os
contributos que decorrem de alguém que, sendo cristão, logrou algo de
notável, mas apenas dos contributos que decorreram da mundividência
cristã; isto é, do modo como o Cristianismo entende a realidade e sobre
ela pretende actuar.
Na exposição que se seguirá não se seguirá uma ordem específica. Tentar-
se-á que os assuntos sejam abordados de modo independente uns dos
outros, embora não se ignorando um cuidado pela sua interligação, quando
esta exista.

1.1- Estando nós num curso da área mais ampla da SAÚDE talvez se possa
começar por fazer uma brevíssima referência ao contributo do
Cristianismo nessa mesma área.
Em termos gerais tudo o que na mesma ocorreu fruto da intervenção do
Cristianismo, deve-se a uma tripla percepção claríssima no Novo
Testamento.
Em primeiro lugar, as doenças físicas e até mentais de um sujeito não
possuem a sua causa no seu pecado, antes na condição biológica de cada
ser humano que, segundo o Cristianismo, deve ser amado e estimado de
modo incondicionado independentemente do seu estatuto social ou
condição de saúde.
Em segundo lugar, as mesmas devem, sempre que isso seja possível, ser
curadas, nomeadamente por médicos que, quando honestos e
competentes, são tidos como meios da própria acção de Deus.
Em terceiro lugar e acreditando o Cristianismo num Jesus Cristo que
deseja a saúde integral do ser humano e que mostrou que o amor é
sempre mais forte do que a morte, os cristãos nunca se eximiram ao
serviço, muitas vezes gratuito, dos mais necessitados, concretamente os
mais enfermos, fossem estes cristãos ou não.
Como vemos: acaba-se por des-estigmatizar as doenças, as suas curas e o
lidar com os doentes, tornando aquelas inerentes a um processo natural
que pode ser conhecido, estudado e, dentro dos limites concedidos pelas

13
leis da natureza e do respeito por si e pelos demais, modificado,
nomeadamente através do uso de medicamentos feitos a partir de
elementos presentes numa natureza que não é tida como malévola, mas
uma expressão da generosa bondade e da solicitude do Deus-Amor
(prerrogativa única, na história da humanidade, justamente do
Cristianismo).
Fruto do delineado anteriormente, podemos referir que, alguns dos mais
antigos movimentos de apoio médico generalizado a todos os que o
aceitassem, independentemente de serem cristãos e terem posses para
pagar os tratamentos, começaram a surgir nos séculos II e III, quando,
fruto das perseguições infligidas aos cristãos (explícita ou implicitamente,
directa ou indirectamente) pelos governantes romanos, o Cristianismo
organizou, por vezes naquilo que incrementava o risco de se auto-
denunciar e não exigindo a conversão de ninguém nem fazendo
proselitismo, redes de apoio àqueles que, tendo sofrido castigos corporais
aquando de tais perseguições e não tendo morrido na ocasião dos mesmos,
acabavam doentes, mutilados, incapacitados.
Foi também no decurso de tais séculos que, quando ocorreram duas maciças
epidemias no Império Romano e de modo particular nas suas grandes
cidades (uma de varíola e de tifo, entre 165 e 180, culminando na morte
de 20% da população e outra de sarampo entre 251 e 270), que o
Cristianismo, em vez de se refugiar em zonas mais aprazíveis e menos
afectadas pelas ditas epidemias e no que contrastou com os responsáveis
de outras crenças, se manteve firme onde vivia (também por estimar,
segundo velhas teorias gregas, que a circulação de local para local poderia
potenciar o contágio), de modo a apoiar os padecentes, fossem estes de
que religião fossem, facto que levou o médico pagão Cláudio Galeno
(130-210), que não tinha propriamente simpatia pelas crenças cristãs, a
admitir que os cristãos haviam tornado as cidades mais salubres,
mormente, por um lado, devido ao seu não abandono das mesmas aquando
de focos de doenças, e, por outro lado, devido à sua actividade terapêutica
de horizontes transversais à sociedade.
Foi já no séc. IV que, na linha de tentativas anteriores mais efémeras e em
menor escala (concretamente algumas que foram impulsionadas pelo I
Concílio Universal da Igreja Cristã (325 d.C.) que levou à edificação
maciça de casas para tratamentos de enfermidades em cada cidade
catedralícia), surgem duas figuras fundamentais para o estabelecimento,
bem-sucedido e duradoiro, de espaços semelhantes (quanto à sua natureza,
organização e finalidade) ao que hoje denominamos de “hospitais”. Isto é,
espaços abertos ao público, geridos por médicos e até gratuitos para o
paciente (embora com isenção de pagamento de impostos para o estado)
de acolhimento, realização de diagnóstico e terapia, por pessoas

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especializadas na medicina e na enfermagem (fossem estas cristãs ou não),
de enfermidades mais ou menos graves (fossem aqueles que as tinham
crentes ou não; varões ou mulheres; ricos ou pobres; crianças ou adultos).
A primeira dessas pessoas foi um bispo, de nome Basílio de Cesareia (330-
379) e natural justamente de Cesareia da Capadócia (na actual Turquia
central). Ele fundou, em 369 e aquando de uma série de anos com
terríveis catástrofes atmosféricas que levaram ao proliferar dos pobres,
subnutridos, doentes e mortos, um enorme espaço para aquele fim,
sendo, por conseguinte, um “nosokomium” (do grego: “komeo”,
“cuidar de”, e “nosus”, “doença”) ao qual se denominou, em honra do
nome do seu fundador, “Basilias”. Este local tinha edifícios separados
para: os médicos (“iatroi” em grego) e os enfermeiros (“hypourgoi”,
em grego, de “hypo”, “sob”, e “ergon”, “trabalho”; ou seja,
“auxiliador”), fossem aqueles ou estes masculinos ou femininos,
viverem quando estivessem lá a trabalhar; a formação, diferenciada, de
mais médicos e enfermeiros; padecentes apartados segundo as suas
enfermidades (em especial, problemas digestivos, febres, infecções,
lepra, doenças da pele, problemas com as articulações, dores de cabeça,
etc.); bibliotecas; laboratórios para a produção de fármacos; espaços
para se escreverem as descobertas no âmbito da farmacologia; etc.
A segunda foi uma rica matrona romana, de nome Fabíola (?-399) que,
quando se converteu ao Cristianismo, fundou, no ano de 390 e com
verbas próprias, um importante local de acolhimento dos, e terapia para
os, doentes em Roma (em especial os mais pobres e os peregrinos),
tendo sido o primeiro “nosokomium” do género na Europa ocidental,
embora sem a mesma importância e dimensão do que a “Basilias”.
Avançando-se no tempo, diga-se que no ano de 500, a cidade de Edessa (no
sudeste da actual Turquia) possuía três hospitais fundados por bispos
cristãos, cada um para a sua especialidade, sendo que um desses tinha uma
zona dedicada especificamente a doenças femininas.
No ano de 590 a cidade de Gundeshapur (no Este do actual Irão, bem perto
do Golfo Pérsico) possuía um enorme hospital, fundado por um bispo
cristão nestoriano (movimento cristão que recusou a condenação teológica
de Nestório de Constantinopla em 431), famoso pela sua grande biblioteca
com livros de medicina provenientes de locais, quer a Ocidente, quer a
Oriente desse local, os quais acabarão por ser traduzidos para árabe em
Bagdad depois das conquistas islâmicas, verificando-se o curioso
fenómeno de se ter acabado por atribuir a autoria das mesmas, não aos
seus autores pagãos ou cristãos, mas aos mecenas árabes que financiaram
estas últimas referidas traduções.

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Em 650, o “nosokomium” de Constantinopla tinha cerca de 300 camas,
sendo que nele realizavam-se operações cirúrgicas e já tinha uma secção
especialmente dedicada ao tratamento de doentes oftalmológicos.
A história subsequente a este período, seja a nível dos hospitais, seja a nível
dos diferentes âmbitos dos cuidados de saúde, será bem mais conhecida,
donde podemos dispensar de a ela fazermos referência aqui.

1.2- Não estamos apenas num curso da área da saúde. Estamos num
estabelecimento de ensino superior, donde podemos, agora, fazer
referência ao papel do Cristianismo no surgir das UNIVERSIDADES.
Na base da valorização do Cristianismo pelo saber em geral, está o amor
profundo pela sabedoria, já presente no Antigo Testamento, mas levando
a um patamar muito mais elevado no Novo Testamento mormente por nele
se afirmar que Jesus Cristo é a causa da racionalidade de tudo o que existe
e que, a dinâmica de se conhecer, quer tal racionalidade, quer tudo o que
existe, é uma forma, ainda que imperfeita, de se chegar ao conhecimento
admirado de um Deus que só é Amor que, pensa com razoabilidade o
Cristianismo, tudo suscita e sustém na existência de um modo contínuo.
Deste modo, a busca do saber, nas mais diversas áreas, é algo de
profundamente conatural ao Cristianismo.
Na senda desta antes apontada convicção, os cristãos, a partir da altura em
que o Imperador romano Flávio Cláudio Juliano (330-361-363) os baniu
de leccionarem nas escolas existentes no Império, começaram a pensar
organizar um sistema de ensino que capacitasse os mesmos para
conhecerem o que de mais relevante existia para ser conhecido nas mais
diversas áreas do saber profano e cristão. O processo para se estabelecer
esse sistema sofreu avanços e recuos devido às vicissitudes que o Império
Romano passou a atravessar: a sua separação em duas partes, dando
origem ao Império Romano do Ocidente (com capital em Milão e
seguidamente em Ravena) e ao Império Romano do Oriente (com capital
em Constantinopla/Bizâncio, actual Istambul); as migrações dos povos
germânicos para as zonas do Império do Ocidente, que levaram à implosão
terminal deste e à divisão dos territórios que este ocupava numa
multiplicidade de Reinos (Suevo, Visigodo, Franco, Alamano, etc.); as
incursões militares dos Hunos e dos Persas Sassânidas; as controvérsias
teológicas que iam separando o Cristianismo à medida que se iam
realizando, e aceitando ou não, os diversos Concílios Universais; etc.
Deste modo foi apenas no séc. V que aquele projecto, já limitado apenas a
um Oriente muito centrado em Constantinopla/Bizâncio (o Império
Romano do Ocidente estava em caos e deixará de existir no fim desse
século, passando o ensino a estar progressivamente entregue às escolas
16
catedralícias e monásticas), foi solidamente estabelecido. Se pelas zonas
em que o poder imperial oriental se fazia sentir as escolas básicas
multiplicaram-se, estabeleceu-se igualmente em Constantinopla/Bizâncio
aquela que se pode denominar, com toda a propriedade, de primeira
Universidade tal como a hoje concebemos (já antes tinham havido escolas
de natureza análoga, mas não com estas características distintivas). Isto é,
uma rede de faculdades, para a transmissão de conhecimento superior, que
tinham os seus programas, exames e títulos.
Temos, então, o surgir, no ano de 425 e pela intervenção de um Imperador
Teodósio II (401-408-450) profundamente imbuído com a antes aduzida
ligação entre o Cristianismo e o saber, da primeira Universidade: o
“Pandidaktêrion” (literalmente: “pan”: tudo/todo; “didaktêrion”:
“ensino”; ou seja “ensino de tudo”). Esta Universidade, que deixará de
existir apenas quando os turcos otomanos conquistaram bizâncio no séc.
XV, possuía, já não professores individuais, mas docentes contratados,
pelo Estado e em função da excelência dos seus conhecimentos, para
leccionarem 31 disciplinas em grego e/ou latim que formassem indivíduos
em quatro grandes áreas do saber: a filosofia natural (o que podemos, hoje
em dia, chamar de “ciências naturais”); leis (civis e canônicas); a filosofia
em geral; e a teologia.
Para o efeito, leccionavam-se disciplinas como gramática, retórica, direito
civil, direito canônico, astronomia, aritmética, geometria, música,
medicina, teologia, filosofia, metafísica, etc. Também foi confiado ao
“Pandidaktêrion” o dever de preservar as obras da antiguidade
relacionadas com as áreas do saber aí leccionadas, bem como a redacção
de novas obras relacionadas com essas mesmas disciplinas, algo que
acabará por chegar ao Ocidente, em primeiro lugar através das redes de
mosteiros medievais, e, depois, pelas suas traduções para árabe.
Já nos finais do séc. XII, e depois de um longo processo de maturação, o
Cristianismo no Ocidente, marcado igualmente pela vinda para Ocidente
de sábios cristãos do oriente que fugiam à violência das conquistas
territoriais islâmicas, estabeleceu, com o apoio fundamental da Igreja e
das Ordens Religiosas que detinham um interesse rigoroso na manutenção
e incremento das fontes de saber, a grande rede ocidental de
Universidades: Bolonha, Oxford, Salamanca, Paris, Cambridge, Pádua,
Coimbra, etc. Nestes estabelecimentos de ensino superior voltamos a
encontrar os traços distintivos de uma Universidade que já foram anotados
anteriormente. Surgem, porém e neste período, outros atributos.
Em primeiro lugar, a prática, instituída pelo papado, de que quem lograva
um título de “mestre” num desses estabelecimentos de ensino poderia
leccionar em qualquer outro, ainda que, na prática, o corpo

17
administrativo de cada estabelecimento gostasse de entrevistar quem se
propunha a ensinar no mesmo.
Em segundo lugar, a protecção, dada pela Igreja e no que os equiparava
nesse aspecto ao clero, aos estudantes para se moverem livremente,
pelas cidades em que estudavam, sem poderem ser alvos de abusos e
ameaças por parte de indivíduos menos escrupulosos e/ou
compreensivos para jovens mais ou menos turbulentos.
Depois, e entre outros que poderiam aqui ser apontados, temos o direito,
conferido novamente pelo papado, de cada Universidade se governar
segundo estatutos próprios, independentes, quer do poder civil, quer de
qualquer intromissão por parte de eclesiásticos da diocese onde aquela
estava localizada, de modo a que houvesse a possibilidade do
estabelecimento de uma agremiação de intelectuais votados à formação
e desenvolvimento académico, onde, além do mais e no âmbito das
diferentes disciplinas leccionadas (a começar, e numa espécie de
tronco-comum, o “trivium” – retórica, lógica/dialéctica e gramática – e
o “quadrivium” – música, aritmética, geometria e astronomia –, e
depois com cadeiras mais especializadas) nas distintas faculdades
(direito civil, direito canónico, filosofia natural, medicina e teologia),
se, não só pudesse, mas se devesse discutir tudo sobre tudo com plena
liberdade, inclusive face a eventuais pressupostos teológicos (na
realidade, e contra o mito comum, no âmbito da física natural era
proibido invocar-se a Deus e as afirmações da fé para se explicar os
fenómenos naturais.

1.3- Muito associado ao tema anterior temos a questão do papel do


Cristianismo no surgir das CIÊNCIAS NATURAIS tal como as hoje
concebemos; isto é, aquelas ciências que aplicam a exactidão da
matemática à observação, de modo a desenvolverem teorias quantitativas
descritivas de leis de pendor universal, sistemático e viável em si mesmo.
Pode parecer estanho, face às contínuas levas de desinformação,
claramente voluntárias, a este respeito, dizer que tais ciências surgiram
graças ao Cristianismo. Mas por mais estranho que pareça, esse é um
facto.
Com o dito precedentemente, não se pretende defender a ideia que outras
culturas não contribuíram para o desenvolvimento da pré-história da
ciência natural, mas apenas sustentar que – seja pelo seu panteísmo, seja
pela sua teológica não-racional e a ideia de um Deus capcioso e caprichoso
– aquelas não deixaram que as leis físicas se tornassem a base de algo
como as ciências naturais tal como as mesmas foram definidas mais
acima. Com efeito, o eclodir destas ciências só foi possível com um

18
Cristianismo que, de um lado, separa claramente o Cosmos do Criador
(recusando toda a forma de panteísmo que acabasse por dizer que o estudar
a natureza fosse um querer devassar a vida da própria divindade) e, do
outro lado, alega que Aquele suscitou esta mesma natureza com «medida,
número e peso» (Livro da Sabedoria, 11,21), imprimindo «uma ordem
sobre o que criou pela Sua sabedoria» (Livro de Ben Sirá, 42,21); isto é,
outorgando à mesma um modo regular de ser, o qual, dentro de certos
limites, é observável, analisável, cognoscível e previsível segundo
modelos matemáticos que, porém e convém mencionar isto com vigor, são
sempre anteriores às ditas ciências naturais.
Ou seja, o Cristianismo – também marcado pela visão hebraica de um Deus
ordenador de todas as coisas – cedo aderiu à confiança numa estrutura
regular e permanente de uma natureza que considera como sendo não
divina e, ao mesmo tempo, desprovida de uma animação inteligente de
todos os corpos que a constituem (que, assim, poderiam, pela sua
deliberação, agir de um modo diferente do estabelecido pelas leis da
natureza). Uma confiança que era concomitante com a, e de certo modo
até justificante da, confiança na criativa fidelidade amorosa, racional,
metódica e lógica de um Deus que, por um lado, «cria do nada» (Segundo
Livro dos Macabeus, 7,28) – e aqui temos a negação de todo o panteísmo
e a base para a ideia de inércia (segundo a qual um corpo não pode alterar,
sem forças internas ou externas que em si actuem, o seu repouso ou o seu
movimento) –, e, por outro lado, não interfere aleatoriamente no Universo,
suspendendo ou limitando, de modo contingente ou não, a autonomia,
quer do mesmo, quer das leis que o regem.
Posteriormente, e baseando-se em João Filipono (precursor, no séc. VI, da
noção de “ciência natural” e do que será conhecido como as duas primeiras
“leis de Newton”), já entre o séc. XII – com Adelardo de Bath (1080-1152)
e a sua recusa de se recorrer a Deus para explicar tudo o que ocorre – e o
séc. XIV – com Jean Buridan (1300-1358) e a sua teoria do “ímpeto” e o
seu, àquela inerente, afastamento da física e da cosmologia de Aristóteles
para explicar o movimento dos corpos –, foram os teólogos cristãos que
lograram purificar contributos científicos anteriores. Foi inclusive deste
modo – não pela observação, nem pela experiência, antes pela crença
numa Trindade-Amor que permite uma Incarnação de Deus que faz do
tempo uma realidade linear e não cíclica – que os pensadores cristãos
instilaram vida naquilo que desaguará no surgir das ciências naturais
autónomas que aparecem de tal matriz a partir, sensivelmente, na
passagem do séc. XVI para o séc. XVII europeu.
A partir deste marco cronológico seria fastidioso falar do contributo dos
cristãos para as ciências naturais (e não só), sendo que, apenas num breve
apontamento e segundo um estudo feito pela Universidade de Cambridge

19
no ano de 2010, por um lado, 93% das grandes descobertas científicas
levadas a cabo desde aquele surgir das ciências naturais foram realizadas
por crentes cristãos, e que, por outro lado, 76% dos vencedores dos
Prémios Nobel naquelas áreas se afirmam como cristãos. Note-se, porém,
que não se deve referir que tais realidades, além daquela mencionada
matriz de valorização da autonomia lógica e matemática do Universo e do
seu conhecimento como forma indirecta de se conhecer a Deus, tenham
decorrido directamente do facto dos mesmos serem cristãos, embora se
possa dizer, com igual verdade, que se fossem pessoas crentes de religiões
que afirmam, nos seus textos ortodoxos interpretados ortodoxamente, que
a divindade se identifica com o Cosmos e/ou pode agir aleatoriamente e
inverter totalmente as leis da natureza a qualquer instante, tais avanços,
pelo que foi apresentado mais acima, não teriam ocorrido.
Dito isto, pode perguntar-se: houve atritos entre alguns cientistas e alguns
membros da hierarquia da Igreja Católica e de outras confissões cristãs (e
até, e justamente por causa da relação entre a fé e a ciência, entre membros
dessas hierarquias)? Sim, houve, mas, sem se estar aqui a entrar em
detalhes, isso não obstou a que tais atritos tenham sido geralmente e
durante séculos entre indivíduos cristãos; isto é, entre pessoas de fé que
entendiam de modo diferente qual deveria ser a natureza e a meta mais
fecundas e proveitosas para aquela relação. Por outro lado também seria
estultícia ignorar que esses atritos não se deveram, do lado dos membros
das hierarquias cristãs, propriamente a convicções religiosas profundas,
mas, pelo contrário, à ausência dessas convicções que, assim e deixando
aqueles inseguros, os fez acometer contra quem ia colocando em causa os
seus supostamente “bem ordenados” “mundinhos” mentais.
Por fim, diga-se, em abono da verdade, que se há alguém, nos dias de hoje,
que tem problemas na relação entre a fé e a ciência não são propriamente
os seguidores do Cristianismo (excepto os membros de grupos biblicistas),
mas alguns cientistas que se arvoraram em expoentes tonitruantes do
“New Atheism”, que, contudo, de “novo” não tem nada, dado que as suas
argumentações anti-Cristianismo não passam de requentares, a partir de
novos embrulhos, de antigas teses há muito tempo rebatidas.

1.4- Outro enorme contributo que surgiu da reflexão universitária por parte
de crentes cristãos, neste caso ante o contacto com outros povos até então
totalmente desconhecidos dos europeus, foi aquilo que passou a ser
conhecido por DIREITO INTERNACIONAL; isto é, e de modo muito
breve, o ordenamento legal das relações internacionais entre nações.
A promulgação de leis e do dever de se respeitar a legislação antecede
enorme e claramente o Cristianismo, mas é igualmente incontestável que

20
os valores desta religião lançaram as bases para fortalecer e regrar a
promulgação de leis e a sua obediência. Convicto da realidade de um
Deus-Amor infinitamente justo (embora não segundo os critérios
humanos do “premiar o bom” e “castigar o mau”, antes sempre esperando
que todos queiram acolher a sua proposta de partilha de vida segundo a
lógica do amor), o Cristianismo valoriza a ideia de que, sendo os seres
humanos criaturas iminentemente sociais, a realização plena dos mesmos,
numa felicidade comunitária justamente no amor, só será possível
mediante leis humanas que considerem as pessoas como o seu princípio,
sujeito e fim.
Na realidade, acreditando que Deus não quis reservar só para Si o exercício
de todos os poderes, antes quis e quer confiar a cada criatura as funções
que ela é capaz de exercer, segundo as capacidades da sua própria
natureza, o Cristianismo advoga que tal modo de proceder deve ser
imitado na vida social, mediante aquelas leis humanas que devem ser
sempre iluminadas por uma sã razão e uma sadia compreensão da natureza
humana. Uma razão que fundamente tais leis que permitirão a constituição
de uma sociedade humana bem estabelecida por garantirem que a ela
presida uma autoridade legítima que salvaguarde as instituições e dedique
o necessário trabalho e esforço à busca do bem comum mediante meios
moralmente legítimos orientados, como se disse, ao bem comum das
pessoas humanas. Pessoas humanas estas que, tenha-se bem em atenção,
são dotadas, por Deus e por um lado, de um igual valor entre si sem
excepção, e, por outro lado, de uma dignidade infinita – a ponto de Deus
ter preferido deixar-se condenar por eles (e morrer humanamente) a
condenar quem quer que fosse.
A verdade é que, sobretudo com, de um lado, o contacto com os povos
africanos, ameríndios e aborígenes australianos em patamares
civilizacionais menos desenvolvidos, e, de outro lado, a exploração, por
parte de dirigentes europeus, daqueles povos, muito do que foi antes
afirmado sofreu um profundo abalo. Muitos chegavam mesmo a
questionar se os mesmos seriam propriamente, na sua totalidade ou em
parte, pessoas humanas. Embora as autoridades do Cristianismo tenham
intervindo rapidamente para debelar estas dúvidas (afirmando
categoricamente o estatuto ontológico de pessoas humanas para os
indivíduos de tais povos), na prática, e devido aos tremendos dividendos
que se quis obter pelo trágico e profundamente desumano comércio e uso
escravos, nomeadamente os comprados pelos povos europeus aos
esclavagistas maometanos em África e na Ásia, tais intervenções
passaram dificilmente do papel. Mas o facto é que foram proclamadas.
Apresentaremos, de seguida, apenas dois exemplos.

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No séc. XIII, Tomás de Aquino (1225-1274), uma das maiores mentes da
humanidade, afirmou que: a escravatura é um pecado gravíssimo contra
a natureza humana no seu estado desejado por Deus; nada que procede
de Deus anula o que procede da razão natural; e nada de natural pode
ser retirado ou outorgado a nenhum ser humano em função dos seus
pecados.
Já em 1537, o papa Paulo III (1468-1534-1549), pela encíclica “Sublimis
Deus” afirma categoricamente, e sob uma eventual pena de quem
ignorasse as suas indicações se deveria considerar como estando fora
da comunhão com a Igreja e Deus, que os povos ameríndios, bem como
todos os demais, são constituídos por sujeitos integralmente humanos
nas suas naturezas e pessoas, e que, assim e na linha do já postulado por
predecessores seus a respeito de outros povos já conhecidos – por
exemplo Eugénio IV (1383-1431-1447), em 1435, com o texto “Sicut
Dudum” –, não podiam ser escravizados nem expropriados das suas
terras que lhes pertenciam legitimamente.
Posto isto, o facto é que foi preciso reflectir de um modo muito mais
profundo sobre as bases filosófico-teológicas de tais posições para que se
desse um salto qualitativo para que as mesmas lançassem raízes mais
profundas nas acções humanas, devendo nós todos saber muito bem que,
por um lado, a abolição, no Ocidente, da escravatura só surge quase
plenamente no séc. XIX, e, por outro lado e ainda nossos dias, persistem
a haver países que aceitam legalmente que pessoas que não pertençam à
religião (maioritária) do estado possam ser escravizadas (já para não falar
das práticas de escravização de meninas raptadas no Sudão, na Nigéria, no
Paquistão, etc.). Tal reflexão foi sobretudo levada a cabo pelo sacerdote
católico Francisco de Vitoria (1483-1546), honrada e justamente
denominado o “pai do ‘Direito Internacional’”.
Francisco de Vitoria ponderou as fontes e os limites dos poderes civis e
eclesiásticos e apontou a necessidade de uma separação entre ambos, pois,
por exemplo, um dirigente político pode não ser crente (como era o caso
no tempo em que foram escritos os textos do Novo Testamento que apelam
ao respeito pelas autoridades legítimas e a separar o que é de Deus do que
é dos governantes) e isso não lhe retira a legitimidade para governar. Por
outro lado, e em particular na sua obra “Acerca dos índios”, deixou claro
o fundamento racional para a consideração insofismável e incontestável
de que todos os habitantes de terras que iam sendo descobertas pelos
Europeus eram plenamente humanos, seja na sua natureza, seja nas suas
pessoas, tendo, por isso mesmo e no que negava a existência de diferenças
de caracter ontológico entre os seres humanos, os mesmíssimos direitos
naturais à liberdade, dignidade e posse de bens e terras.

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Ainda no âmbito da relação dos Europeus com os povos que aqueles iam
conhecendo, Francisco de Vitoria, argumentando apenas a partir da “lei
natural” (o que o ser humano descobre, com o uso racional da razão, ser o
certo para a realização da sua natureza humana), esclareceu e reiterou
cabalmente, na linha do já afirmado categoricamente por exemplo pelo
papa Gregório Magno (540-590-604) e o IV Concílio de Toledo (633),
que ninguém podia ser forçado a abraçar a fé cristã, embora, também fruto
daquela “lei natural”, esta devesse poder ser anunciada livremente. Nesta
linha, mostrou que não há nenhuma justificação para se decretar guerra a
um povo desconhecedor de Cristo Jesus para, desse modo, o obrigar a
aderir formalmente ao Cristianismo, acabando por apontar a moldura
clássica que ainda hoje norteia o conceito, provavelmente equívoco, de
“guerra justa”. A saber: o ser sempre uma resposta proporcional (1.º
princípio) a uma ameaça real, iminente e injusta (2.º princípio), tendo
como meta a implementação de um estado de paz (3.º princípio). Ou seja:
não é justo nunca uma guerra para aumentar o território ou impor uma fé.
Seja como for, com estas suas considerações antes apontadas, juntamente
com a alegação de que cada estado não é moralmente autónomo face aos
demais, este autor delineou os princípios fundamentais da relação entre as
nações, não mais baseados na força, mas no uso recto da razão dentro do
“direito natural”. Em concreto:
1.- Os seres humanos nascem livres;
2.- Nenhum ser humano é superior a outro ser humano;
3.- O ser humano não pode ser um lobo para o ser humano, antes deve ser
sempre um ser humano.
4.- É melhor renunciar ao próprio direito do que violentar o do outro;
5.- O ser humano tem direito à propriedade privada, mas há situações em
que deve compartir a mesma, ou os seus frutos, com os demais tendo
em vista o bem comum;
6.- Não se pode coagir ninguém, seja por meios físicos, seja por meios
psicológicos, a confessar, e se por acaso tais meios forem usados, a
confissão é inválida;
7.- Toda a nação tem o direito a governar-se a si mesma e pode escolher
e/ou aceitar (mas nunca impor) um dado regime político, ainda que este
não seja o melhor;
8.- O poder dos governantes não lhes pertence, mas é delegado neles pelo
conjunto da população;
9.- A humanidade inteira tem a responsabilidade comum de instituir leis
justas e convenientes de modo a que toda a humanidade se realize
enquanto humanidade;
10.- Nenhuma guerra é justa contra outra nação ou povo se estiver baseada
numa injustiça.

23
1.5- Avançando um pouco com esta apresentação referente aos contributos
do Cristianismo à Civilização, passaremos a entrar na temática da ARTE.
À primeira vista parece impensável que se negue esse contributo, mas
contemporaneamente tende-se a afirmar que a arte, sobretudo europeia,
surge, não graças ao Cristianismo, mas apesar do Cristianismo. Mas será
assim?
No Antigo Testamento surge a proibição para se fazer imagens do que existe.
Claro que esta proibição não pode ser entendida em sentido literal, pois o
próprio Deus pede que se façam imagens e até no mais sagrado dos locais
do judaísmo (o Templo em Jerusalém) havia imagens gravadas. Ou seja:
aquela proibição referia-se, não aos objectos em si mesmos, mas ao uso
idolátrico que podia ser feito com os mesmos. Já com Jesus Cristo, tido
com razoabilidade racional pelos cristãos como a imagem visível do Deus
invisível (Carta de Paulo aos Colossenses 1,15), a própria Divindade, ao
ter assumido a natureza humana em Jesus, torna-se representável
justamente no que concerne àquela humanidade. Ou seja: o Cristianismo
torna-se, mesmo no meio da vicissitude do iconoclasmo (rejeição e/ou
destruição de imagens religiosas) bizantino do início séc. VIII, a única
religião monoteísta a abrir as portas à representação, que se pretendia
digna e respeitadora, de tudo aquilo que era, e é, importante para o ser
humano.
O Cristianismo, pela sua, antes apresentada, atitude face às imagens, acaba
por defender a bondade radical da matéria e da beleza estética, não só em
si mesmas, mas igualmente como meio de transmitir uma experiência da
bondade essencial de um Deus que é tido como o Artista por excelência;
isto é, como a base de toda uma beleza existente no Universo que convida
à consideração do seu suscitador. As evidências textuais para o que foi
referido a respeito de um Deus-Artista são inúmeras, mas aqui ficam
apenas algumas:
i) o Arquitecto que criou o Universo como um belíssimo templo material
para, com encanto e espanto, vivermos e crescermos em adoração e
agradecimento até podermos viver por amor e com amor no Templo
que é Ele mesmo (cf. Carta aos Hebreus 11,3.10; Evangelho segundo
João 2,19ss);
ii) o Escultor que suscita e molda, com carinho e admiravelmente, a
nossa existência sob, e sobre as nossas decisões livres, até podermos
ser e amar como um Jesus que é o modelo da humanidade liberta do
egoísmo (cf. Livro de Isaías 64,8; Livro do Génesis 1,26);
iii) o Autor, não só, juntamente com aqueles a quem inspirou, da grande
biblioteca a que chamamos “Bíblia”, mas, também com a nossa
colaboração, da história de amor entre Si e nós e que é gravada, com

24
ternura amorosa, no nosso coração (cf. Segunda Carta de Paulo aos
Coríntios 3,3; Segunda Carta de Pedro 1,20s);
iv) o Músico que canta e dança entusiasticamente com regozijo sempre
que aceitámos que, depois do nosso pecado, Ele nos perdoe com amor
misericordioso (cf. Livro de Sofonias 3,17).

Mas não só: considerando o ser humano como sendo criado à imagem e
semelhança (no sentido de serem capazes de conhecer e amar de modo
reflexo) desse Deus Criador, o Cristianismo entende, e estimula a que, o
ser humano seja um co(m)-criador enquanto músico, poeta, escritor,
bailarino, pintor (e pintor do mundo natural, incluindo a nudez, com o
máximo de rigor notavelmente pelo desenvolvimento medieval, por
Cimabue e Giotto, da perspectiva para representar a tridimensional em
duas dimensões), etc.
Na realidade o Cristianismo crê que a arte, enquanto ponto entre o visível e
o invisível (divino ou não como, por exemplo, os nossos sentimentos,
pode mostrar a possibilidade de uma transformação criativa da realidade
mediante a interacção entre tradição (portadora de sentido) e inovação
(propulsora desse sentido), aduzindo, ainda, que os espaços imaginativos
em que habitamos moldam o carácter da nossa vivência individual e
comunitária, donde, confiando na capacidade humana de apostar (fruto de
se saber amado de modo incondicional e ilimitado) naquele amor que é a
única realidade que fundamenta a confiança para se enfrentarem os riscos
e desafios, aponta para a dimensão artística do ser humano como meio de
humanização do mundo, tão sagrado quão ordinário, em que se vive.
É graças a esta percepção que, no próprio contexto da vida crente, surgem
obras artísticas, não só pictóricas, que marcaram e definiram a identidade
humana da Civilização: a igreja de Sant’apollinare Nuovo em Ravena; as
iluminuras do “Book of Kells”; a Anastasis no Mosteiro de Chora; a
Adoration des mages na Catedral de Strasbourg; a Maria Magdalena da
Catedral de Toruń; a Catedral de Chartres; a Catedral de Notre-Dame de
Paris; as Madonnas de Raffaello Sanzio; a Pièta de Michelangelo
Buonarroti; a Transverberação de Santa Teresa de Gian Lorenzo Bernini;
as Nozze di Cana de Paolo Veronese; a Ultima Cena de Leonardo da
Vinci; os ícones de Andrei Rublev; a Vocazione di san Matteo de
Caravaggio; o Joseph Charpentier de Georges de La Tour; o Ecce Homo
de José de Ribera; a 2ª Sinfonia, ou Auferstehungssinfonie, de Gustav
Mahler; o Opus 45, ou Ein deutsches Requiem, de Johannes Brahms; a
Missa solemnis de Ludwig van Beethoven; o Magnificat de Johann
Sebastian Bach; a “Psychomachia” de Aurélio Prudêncio; as
“Confessiones” de Agostinho de Hipona; a “Divina Commedia” de Dante

25
Alighier; “Paradise Lost” de John Milton; “Faust” de Johann Wolfgang
Goethe; etc.
Não se pense que este modo de encarar a arte seria natural numa qualquer
religião. De modo algum.
Para não se ir mais longe, refira-se, por exemplo, o iconoclasmo do islão,
bem como, por um lado, o ditame do seu fundador de que nenhuma obra
seria/poderia ser melhor do ponto de vista artístico do que o Corão (tendo
mesmo mandado matar quem, produzido poesia, tentou mostrar que isso
não era verdade, como a poetisa ‘Asma’ bint Marwan); a afirmação
presente nesta última obra de que é Satã quem inspira os poetas; a
afirmação daquele fundador de que “é preferível estar cheio de pus do que
de poesia” (Sahih al-Bukhari, 8, 73, 175); a afirmação desta mesma
pessoa de que a sua divindade irá destruir todos aqueles que “usem
instrumentos musicais” (Sahih al-Bukhari, 7, 69, 494) e que “as pessoas
mais atormentadas, entre os habitantes do Inferno no Dia da
Ressurreição, serão os pintores de pinturas” (Sahih Muslim, 3, 5271).
Claro que tudo isto pode ser interpretado e reinterpretado dentro da moldura
interpretativa seguida pelos fiéis de tal religião (que não permite a leitura
alegórica típica da poesia, como deixa claro a surah 69,41 do Corão: “isto
[a mensagem do Corão] não são as palavras de um poeta”), mas os
factos, presentes nestes textos absolutamente ortodoxos e normativos, são
factos.
Dito isto, aqui ficam, mais abaixo, algumas imagens de algumas das obras
de arte pictóricas que, tendo sido evocadas mais acima como havendo
surgido de um contexto especificamente cristãos, marcaram
indelevelmente a civilização em que nos movemos.

fig. 1 - Abside da igreja de Sant’Apollinare Nuovo


(séc. VI – Ravena – actual Itália)
26
fig. 2 - Iluminura do “Book of Kells”
(séc. VIII – Dublin – actual Irlanda)

fig. 3 - Afresco da “Anastasis” no Mosteiro de Chora


(séc. XIV – actual Turquia)

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fig. 4 - Mosaico de Cristo “Pantokrátor” na Catedral de Cefalù
(séc. XII – actual Itália)

fig. 5 - “Adoração dos Magos” na Catedral Strasbourg


(séc. XV – actual França)

fig. 6 - “Maria Madalena” na Catedral de Toruń


(séc. XIV – actual Polónia)

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fig. 7 - “Transverberação de Santa Teresa” de Bernini
(séc. XVII – Roma – actual Itália)

fig. 8 - “Vocação de Mateus” de Caravaggio


(séc. XVI – Roma – actual Itália)

1.6- Para não se prolongar em demasia a apresentação dos contributos


fundamentais do Cristianismo na Civilização, pode falar-se, ainda que de
modo muito breve e esquemático, de alguns de tais contribuições no
âmbito da MORAL. Também neste âmbito se crê, nos nossos dias de
experiências morais e éticas sempre mais novas do que aqueles que as
propõem, que o Cristianismo é mais uma força de travão do que progresso.
Acontece que sempre foi assim que se imaginou o Cristianismo e, não

29
obstante e olhando com atenção para a História, o que é que seria da
Civilização se este não tivesse existido? Teria, por outros caminhos,
chegado a onde chegou? Não o sabemos, mas o mais provável é que sem
as bases das crenças fundamentais do Cristianismo a humanidade, tal
como a concebemos hoje, não seria a humanidade.
Em primeiro lugar, o Cristianismo afirma e defende, baseado em raízes já
presentes no Antigo Testamento, um igual valor ontológico e jurídico para
os dois sexos, os quais, embora não sejam iguais em tudo (mesmo do
ponto de vista biológico não o são), são chamados à mesmíssima meta na
construção, individual e comunitária, de uma identidade pessoal plena,
mormente pelo amor.
Em segundo lugar, o Cristianismo atribui, na senda do realizado por Deus,
um valor infinito a cada pessoa ao longo de todo o arco da sua existência,
de tal modo que foi o mesmo a levar ao fim do infanticídio, mormente de
crianças com debilidades e até meninas sem outro motivo além de serem
meninas, no Império Romano, prática que, na verdade, era aceite quer por
romanos, quer por gregos.
De seguida podemos referir que o Cristianismo combateu e logrou que se
proibissem os espetáculos em que, como acontecia no “circo romano” e
na prática do “duelo de honra”, se matavam outros seres humanos apenas
por diversão, busca de lucro económico ou readquirição da honra
ofendida.
Em quarto lugar, temos a prática de apoio social por todo e qualquer ser
humano, realidade que chocava com as práticas dos demais credos
religiosos que, em geral, ignoravam os mais desvalidos e incapacitados,
votando-os, directa ou indirectamente, à morte, quanto mais não seja pela
indiferença e abandono.
Em quinto lugar, o Cristianismo logrou humanizar, a larga escala, a
sexualidade humana, vendo nela o mais notável dos sinais do amor de
Deus pela humanidade e, assim, não mais algo susceptível de ser
banalizado, vituperado, comercializado ou rebaixado até níveis sub-
humanos que promovessem a desvalorização, coisificação e redução do
ser humano a um mero objecto para a satisfação do prazer, por vezes
perverso, de alguém.
Em sexto lugar, o Cristianismo defendeu que era tão grave ser um varão ou
uma mulher a cometer o adultério, não mais aceitando que este fosse
condenável apenas quando cometido por esta última.
Posteriormente, e na linha de algo que já vimos, temos a defesa intransigente
do valor e da dignidade de todo e qualquer ser humano, levando isto a que

30
se tenha começado a postular ideias que nos são absolutamente conaturais
hoje em dia.
De um lado, a condenação da escravatura, algo que já no Novo
Testamento surge patente na “Carta de Paulo a Filémon”, onde o autor
deste texto apela a que um dono (Filémon) de um escravo (Onésimo) o
trate, não mais como escravo, mas como um irmão numa fé que deseja
que todos sejam livres.
De outro lado, a afirmação, laicizada e republicanizada pela “Revolução
Francesa” de 1789, dos valores fundamentais da liberdade (Carta de
Paulo aos Gálatas 5,1), igualdade (Carta de Paulo aos Colossenses, 3,
11) e fraternidade (Carta de Paulo aos Romanos, 12,10).
Em oitavo lugar, temos o cuidado moral que o Cristianismo sempre defendeu
para com a natureza, a qual, ainda que não seja endeusada, é encarada
como a matriz da possibilidade de realização do ser humano, devendo ser
encarada, porém e na sua relação com a humanidade, em duplo sentido
orientador: ela é para a humanidade (no sentido que o ser humano dela
pode desfrutar com bondade) e a humanidade é para ela (para a guiar, mais
uma vez com bondade, até à sua meta).
Por fim, basta recordar, trazendo para aqui, de modo mais sucinto, o já dito
acerca dos fundamentos cristãos dos “direitos internacionais”: as nações
devem ser, no seu conjunto, como uma república que busca o bem
verdadeiro para todos os sujeitos que a compõe, e isto porque, como
sempre defendeu o Cristianismo, há valores humanos fundamentais, aos
quais se chega pelo recto uso da razão, que acabaram consagrados, na
“Declaração Universal dos Direitos do Homem”, texto escrito por um
cristão libanês e aceite de um modo relativamente geral (pois, por
exemplo, as nações que seguindo como religião normativa uma outra
crença religiosa recusam tais direitos, a ponto de os terem reescrito no ano
de 1990 para acomodarem, no documento que se passou a denominar de
“Declaração do Cairo”, como norma fundamental a sua jurisprudência
religiosa).

2.- CONTRIBUTOS RELEVANTES DE CRISTÃOS PARA A CULTURA NO SÉC. XX


Já tivemos a oportunidade de ver, num momento anterior destes
apontamentos, o que é a cultura, donde, e podendo-se supor que não se
ignora o que é um cristão – alguém que vive ou se esforça sinceramente
por viver, na prática e quotidianidade da sua vida, os critérios da vida de
Jesus Cristo retirados dos textos cristãos ortodoxos interpretados
ortodoxamente – podemos, já de seguida, a tratar do segundo tema do

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presente curso. Vamos dividi-lo em três momentos: a literatura, o cinema
e a música.

2.1- A LITERATURA é um dos traços fundamentais de qualquer civilização.


Mas o que é a literatura? Numa aproximação muito elementar e, assim a
requerer eventualmente polimentos ulteriores, podemos dizer que se trata
de uma criação escrita preocupada em contar e interpretar, de modo
artístico, a experiência humana na sua totalidade.
Num contexto que podemos considerar de religioso – e todos nós somos
ontologicamente religiosos pois andamos sempre em procura de uma
religação a algo que nos transcende –, a mesma adquire a tonalidade de
ser uma criação literária que expõe intencionalmente a dimensão de
acolhimento e de abertura ao Transcendente por parte do ser humano.
A partir do cenário expresso no parágrafo anterior, pode dizer-se que a
literatura cristã é aquela literatura religiosa que, surgindo sobretudo de
pessoas cristãs, apresenta traços identificativos que orbitam, de modo
essencial e incontornável – embora não necessariamente de uma forma
explícita –, a pessoa de Jesus Cristo e tudo o que dele decorre,
exemplificando uma relação vital, tão espiritual quão histórica, com este
mesmo Jesus. Neste sentido, a literatura cristã distingue-se da literatura de
cristãos, que é composta por textos que, escritos por cristãos que são
autores, versam sobre qualquer assunto: desde o estudo do Universo a
reportagens jornalísticas, incluindo, por vezes e naquilo que converte em
literatura cristã, temáticas, implícita ou explicitamente, cristãs.
O Cristianismo não é uma religião do livro nem de uma palavra escrita e
muda, mas da Palavra divina incarnado e vivo. Isto é, do eterno e sempre
dinâmico diálogo amoroso estabelecido pelas Pessoas divinas, o qual é
prolongado, com o intuito de estabelecer uma dadivosa relação de amor
com toda a Criação e de modo particular com o ser humano, no único e
multiforme gesto da criação, salvação e santificação, no qual o ser humano
está chamado a associar-se pela sua criatividade, nomeadamente literária
que é, de algum modo, um prolongamento artístico de tal acção.
De entre os autores de literatura cristã do séc. XX que são mais
significativos, seja em si mesmos, seja no impacto que tiveram para o
ulterior compor literário universal, acreditamos que, numa qualquer lista
honesta dos mesmos, não podem faltar pelo menos os que passaremos a
mencionar. E mencionar segundo um esquema que será o seguinte: i)
breve apresentação do autor e das características gerais da sua produção
literária; ii) apresentação sucinta do conteúdo de algumas das suas mais
relevantes obras; iii) pequeno conjunto de algumas citações retiradas
destas mesmas obras.

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a) PAUL CLAUDEL (1868–1955).

Toda a obra do escritor francês Paul Claudel tem subjacente um objectivo


que podemos considerar como sendo propriamente cristão: amar a Deus
através do amor gratuito e comparativo aos demais. Segundo ele, a poesia
e o drama deviam trazer um sentido coerente e uma alegria verdadeira à
vida, e, assim, conduzir o leitor ou o espectador a experienciar o elo
dourado que une todas as coisas a Deus: justamente o amor.
A fé cristã permitiu a um Claudel, marcado por uma experiência de
conversão adulta fora do comum que o fez passar a vivenciar «o
sentimento comovente da inocência, da eterna infância de Deus», resolver
dialecticamente as oposições entre a ordem presente nas obras e a
desordem presente no coração humano (e no seu próprio coração),
manifestando, assim, uma habilidade singular em articular a lucidez com
uma harmonização entre o visível e o invisível.
Por conseguinte, na sua obra, transformada a partir de certa altura num
comentário alegórico aos textos bíblicos, os temas do perdão e da paz são
palpáveis por todos os lados. Perdão e paz que são vivíveis, na comunhão
dos santos, sobretudo nas experiências de amor prescindido por amor;
quer dizer, da superação, por um amor maior, do amor recíproco e a
aceitação da renúncia recíproca que, assim, abre como nenhuma outra
realidade, o seu coração ao coração de Deus: «nada como a ausência
aceite nos leva à união, dilacerante mas elevante, com Deus».
Há, talvez, qualquer coisa de provocante na certeza e na plenitude da fé de
Claudel; alguma coisa de quase impúdico na sua proclamação de uma tal
fé inabalável e de um amor inquebrável pela Igreja, bem como na sua
fidelidade jubilante até à morte, vivida para além das lágrimas, à
quotidianidade, quer do do seu trabalho de embaixador e escritor, quer da
sua vida familiar, além dos pecados e de um carácter difícil: «a humildade
foi sempre o único defeito que não me disseram ter».

33
Vivendo na tensão, quer de um apelo nunca confirmado à vida monástica e
ao sacerdócio, quer a um amor irrealizável com uma mulher casada,
Claudel viveu toda a sua vida no seio do sofrimento de sentir que os seus
melhores louvores e oferendas de amor só poderiam ser as suas, não
menos espirituais, palavras e acções, como aquela renúncia reciproca a um
amor mais autêntico do que todos os demais.
Pois bem, entre todas as suas obras há duas que precisam de aqui
mencionadas.
Em primeiro lugar, “Cinco grandes Odes”.

Esta obra, verdadeiro testamento poético de fé no homem decorrente da


fé de Deus pelo próprio homem, segue uma ordem simétrica que
expressa o drama da existência. A primeira ode termina com a
deflagração do Mundo observado por um casal adúltero; a última
celebra a comunhão intimíssima entre toda a humanidade, passada,
presente e futura.
Entre estas, temos a segunda ode, onde na última visão se celebra a
pessoa que abdica do seu orgulho e acede à visão do amor de Deus,
opondo-se, assim, à quarta, onde o sujeito, naquilo que crê ser uma
tentação, recusa a liberdade – que oferece, pela bondade divina que
ela permite tornar-se fecunda no seu coração, a verdadeira felicidade
– e entrega-se à escravatura do prestígio e da arrogância.
No centro e cume de tudo temos a terceira ode, em que se celebra um
Deus que, pelo voltar do ser humano à sua autenticidade na gratuidade,
exulta de alegria por aquele ter chegado à sua própria alegria.

Depois temos “O sapato de cetim”.

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Esta obra de teatro trata-se, no fundo, da expressão pública da própria
problemática da vida de Claudel, em que um drama sentimental se
transforma num drama místico.
É o relato de um amor por uma mulher casada que recusa entregar-se
àquele único varão (Rodrigo) que a amava verdadeiramente para, por
um lado, não ferir o sacramento do matrimónio, e, por outro lado, não
desiludir, com as suas fraquezas, o amor louco que Rodrigo nutria por
si, preferindo, mesmo depois de ficar viúva, por estabelecer uma
relação adúltera com outro homem. Não podendo ser o paraíso de
Rodrigo e dar-lhe o céu, ela escolhe ser a sua cruz e arranca-lo da terra.
O seu abdicar de se entregar àquele que mais a amava irá contribuir, na
sua convicção de cristã que a leva a acreditar na união entre todos os
seres humanos (como se a humanidade se tratasse de um sistema de
vasos comunicantes) e reversibilidade do amor, na salvação de
Rodrigo, a quem é dado, ao preço de um desapego completo, a alegria
sobrenatural.

«Temos um impulso para o Deus absoluto que nos liberta do


contingente. Mas nesta vida estamos separados d’Ele» (“Cinco
grandes Odes”).
«Para onde quer que olhe vislumbro a oitava da criação! O Mundo
abre-se e, por maior que seja a distância, o meu olhar atravessa-
o de um lado ao outro» (“Cinco grandes Odes”).
«Qual é o preço do Mundo depois da vida? E que valor tem a vida
senão for para a dar?» (“O anúncio feito a Maria”).
«Que poderoso que é o sofrimento quando ele, saindo do amor, é tão
voluntário quão o pecado» (“O anúncio feito a Maria”).
«Senhor, agradeço-Vos por me terdes preso deste modo. Por vezes
achei os vossos mandamentos peníveis (…), mas hoje, amarrado
a esta cruz que flutua sobre o mar, é-me impossível estar mais
junto de Vós» (“O sapato de cetim”).
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«Que interessa a dor de hoje se ela, decorrendo do amor, é sempre
o começo de outra coisa!» (“O sapato de cetim”).

b) GEORGE BERNANOS (1888–1948).

Bernanos foi uma voz profética. Extraordinariamente sensível ao facto do


mal, em diversas formas, estar a atingir a humanidade, atesta-o como uma
realidade densa e espessa que, saindo do coração daqueles que são
chamados à humanização do seu ser, perverte a vida de todos.
Face a isto, ele quis que a sua escrita fosse um visibilizar desse mal e dos
seus ataques, donde as personagens principais dos seus textos estão
sempre entre a vida e a morte, vivendo a doença e o sofrimento que
expressam e carregam, como Jesus Cristo humilhado e desprezado cada
vez mais, as feridas, provocadas pelo egoísmo humano, do Mundo.
O mal, para ele, tem expressão física e o cristão, mais ainda o santo que
jamais surge como uma figura angelical mas distorcida como Cristo por
tal mal, deve ser o último a preocupar-se com a sua saúde, pois, segundo
ele, a virtude cristã por excelência é a de visibilizar, num apelo à
conversão na linha do Servo de YHWH e do Cruxificado, tal mal, «sendo
um, e vivendo entre os, humildes, rejeitados, miseráveis». Ou seja, nas
obras deste autor o cristão não é um super-homem, mas os mais débeis;
não o psicologicamente astuto, mas o simples e o franco, pois só estes
carregam em si o mal sem se corromperem por ele.
Neste sentido, o pobre é-lhe particularmente querido, em especial aquele que
escolheu voluntariamente a pobreza por querer ser como Deus: pobre de
si por ser rico no amor: «no Mundo moderno apenas os pobres têm tempo
para esperar, amar e sonhar; eles fazem-nos no lugar dos demais, tal
como os santos amam e expiam por nós». O cristão, assim e recusando-se
a resignar ante o mal, deve abraçar estes amigos de Cristo, não os deixando
nas mãos dos “defensores dos direitos dos pobres”.

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Neste contexto a Igreja morrerá se não for a força radiante do amor que faz
com que o sofrimento, e o sentimento de se ser pecador, seja partilhado:
apenas há comunhão de santos se houver, antes, uma comunhão de amor
e compreensão entre os pecadores na Igreja. Mais: ela morrerá, sobretudo,
se a oração desaparecer, pois, em última análise, é ela que une as “células
vivas” do corpo místico de Jesus.
A primeira obra deste autor que devemos referir é “Sob o sol de Satã”.

Nesta obra Bernanos, através do padre Donissan, mostra a decepção do


pós-I Guerra Mundial, denunciando, ao mesmo tempo, a retórica
inflacionada mas vácua que, incarnada no mais idoso e resignado padre
Saint-Marin, vigorava.
Donissan, jovem e atormentado, quer pela crueldade dos seus
paroquianos, quer pelo sentimento da sua incompetência, depara-se
com a figura de Satã, que lhe confere o poder de “conhecer as almas”.
Contudo, nem isto impede o suceder, ao seu redor, de um mal
decorrente de uma dor que se faz insuportável sem o amor de Deus.
Operando, em desespero, um pelo menos aparente milagre (a revitalização
de uma criança), Donissan adquire a fama de santo, quando, no fundo e
no que apenas lhe levará a um maior sofrimento, sabe bem ser tudo
menos isso, sentindo-se, assim, um instrumento do mal contra Deus,
revelando o texto, deste modo, que a vontade do indivíduo não é
autónoma, mas sujeita a forças que não facilmente discerníveis.
Outra obra fundamental de Bernanos é “A alegria”.

37
Esta foi a primeira e última abordagem de Bernanos a temas
explicitamente místicos. Trata-se da história de Chantal de Clergerie,
jovem iluminada pelo amor de Deus, resplandecendo de pureza,
frescura e alegria. O seu carácter separa-se do conjunto mais geral do
envelhecido castelo da Normandia em que vive com um pai historiador
somente preocupado com a sua carreira, uma avó empedernida na
mentira e um conjunto de funcionários domésticos autoritários e
maliciosos.
Outras personagens envolvem o tecido sobrenatural da vida de Chantal,
acabando esta por, pela sua personalidade, libertar a sua avó da mentira,
embora isso também a leve a morrer assassinada por um daqueles
funcionários, sendo que, porém, esta morte resgatando das suas vidas
de pecado a outras personagens.

Por fim, é incontornável referir-se a “Diário de um pároco de aldeia”.

Neste texto, tão odiado (a seu tempo e nos nossos dias) por todos aqueles
que odeiam conhecer a verdade do ser humano preferindo viverem sob
camadas de ilusões, estamos perante a verdadeira incarnação literária,

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da espiritualidade vivida e proposta pela freira carmelita francesa
Thérèse de Lisieux, num protagonista – um padre jovem, ingénuo e de
fraquíssima saúde – que se enfrenta, com uma bondade e inocência
comovedora, com um conjunto de paroquianos corroídos, como a
generalidade de nós, pela apatia e o gosto pela murmuração e a
maledicência que acabam por dilacerar a dignidade dos demais.
Todos os projectos, de tal anónimo padre, de revitalização da vida cristã
da comunidade ao seu encargo fracassam, acabando ele por se enfrentar
com a hostilidade dos seus paroquianos. Acusado, injustamente, de ter
levado a cabo um conjunto de iniquidades (alcoólico, homicida e
oportunista) por pessoas que, no fundo, eram elas que as viviam e
causavam, a sua vida começa a corroer-se pelo cansaço, o sentir a
impotência do seu amor desinteressado face à impiedade daqueles que,
não só de modo involuntário mais igualmente de modo explicitamente
voluntário, lhe desejavam o mal por ser tão diferente das suas
mediocridades.
Estranhamente é esta sua fraqueza que faz com que o padre se torne um
instrumento do amor divino para algumas poucas pessoas, revelando o
seu itinerário de vida uma dimensão crística que o leva a morrer, ainda
jovem, de cancro, longe da sua paróquia e abandonado por todo o seu
presbitério, mas pronunciando como últimas palavras “tudo é amor de
Deus”.

«A impotência gosta de espelhar o seu nada no sofrimento de


outrem» (“Sob o sol de Satã”).
«O seu exterior é o de um santo, contudo há qualquer coisa nele que
afasta e mete à defensiva… falta-lhe a alegria» (“Sob o sol de
Satã”).
«O pecado… estamos todos dentro dele; uns para o gozarem, outros
para o sofrerem, mas em derradeira análise é o mesmo pão que
partimos à beira da fonte, retendo a nossa saliva, o mesmo
desgosto» (“A alegria”).
«Ser capaz de encontrar a sua alegria na alegria de outrem; eis o
segredo da felicidade» (“A alegria”).
«As pequenas coisas parecem ser um nada, mas elas dão a paz»
(“Diário de um pároco de aldeia”).
«O inferno, minha senhora, é não mais amar» (“Diário de um
pároco de aldeia”).

39
c) J.R.R. TOLKIEN (1892–1972).

Um dos mais famosos defensores e proponentes do sub-género literário


denominado de “fantasia”, Tolkien foi um devoto católico, participante na
I Grande Guerra Mundial e académico formado em Oxford.
O âmago da sua produção decorre da constatação de que o mito não é algo
de ilusório ou falso, mas a única forma de se expressar algumas das
realidades mais fundamentais da realidade, aponto de ter postulado que
Cristo Jesus é o «verdadeiro mito; o mito feito realidade». Daqui surgiu a
percepção, concomitante à anterior, de que na esfera do “fantástico” – com
paisagens, perspectivas e relatos mitológicos – pode-se ir “além da
familiaridade” que frequentemente impede que nos espantemos com o
maravilhoso que se encontra no que conhecemos. Ou seja: que nos impede
de ver a realidade com clareza e lucidez.
Com efeito, na descrição do “fantástico” não se está restringido ao que se
conhece (ou se pensa conhecer) do Mundo real: as suas cores, formas,
criaturas, linguagens, predicados, permitindo, além do mais, sublinhar,
com uma textura mais firme e cativante, os dilemas espirituais que
qualquer pessoa deve viver para adquirir as “virtudes comuns” necessárias
– tais como a coragem, a honestidade, a amizade e, entre outras, a
singeleza – para se vencer o mal que oblitera a Verdade, o Bem e a Beleza.
Tolkien não deixa nunca de chamar a atenção de qua toda e qualquer pessoa
simples, humilde e amante da paz precisa, diversas vezes, de se erguer
para defender, com as armas do amor, os seus e, por vezes, a si mesmo,
caminhando, assim, ao encontro de um embate, como que crístico, entre
diferentes cosmovisões que, para coexistirem, precisam de ser encaradas
de frente e na verdade sem qualquer subterfúgios do “politicamente
correcto”.
Acerca de Tolkien só se fará alusão a duas obras.
A primeira, embora tenha sido publicada cerca de cinquenta anos depois
da outra que mencionaremos, chama-se “O Silmarillion”.
40
Esta obra trata-se, no fundo, de uma história da criação, análoga às
presentes no bíblico “Livro do Génesis”, em que o criador –
denominado de “o Um” e “o iluminador” – associa-se aos anjos, já
criados por si, para cantar em harmonia a partir de partes muito díspares
que embelezam, em conjunto, tudo o que então existia na realidade.
Ocorre, então, aquilo que pode ser denominado de “queda” de um de tais
anjos, que, repleto de orgulho e vaidade (como é comum, aliás, em
todos nós), tudo busca fazer para, com a sua própria música, distorcer e
destruir a música dos demais. Outras criaturas, de perfil mais material,
seguem a este anjo e procuram tornar-se criadores por sua própria conta,
esquecendo-se, nesse processo, da única fonte das suas faculdades
criativas.
Para se começar a inverter este estado de coisas, uma daquelas criaturas,
criada originalmente imortal e numa lógica quase que semelhante ao
amor desbordante do Deus-Amor incarnado que prefere morrer
biologicamente a condenar quem quer que seja, prescinde da sua
imortalidade, dando origem ao que só pode ser descrito como a
continuação de um combate cósmico entre a luz e as trevas; a abertura
e a clausura; o amor e o desamor. No fim os primeiros elementos destes
três pares antes apontados sairão vencedores, mas as feridas deixadas
na criação, por tal combate, perdurarão e, a partir delas, novos focos de
revolta tornar-se-ão comuns.
A outra obra – composta, no fundo, de três livros – é “O Senhor dos
Anéis”.

41
Nesta longa epopeia fantasiosa temos, no fundo, uma exaltação, senão
mesmo uma quase que “santificação”, dos humildes e desprezados
pelos poderosos do Mundo, os quais (estes poderosos) se haviam
corrompido ao terem visto a sua vontade e o seu coração dominado pela
arrogância, a mentira, o despotismo e o orgulho.
As figuras mais importantes neste relato não são propriamente heróicas,
nem são, propriamente, inspiradas no modelo que é Jesus Cristo, mas
torna-se patente que é o resultado cumulativo das suas decisões e acções
mais banais que lhes permitem levar o bem a derrotar Sauron,
verdadeira personificação do mal.
Um mal que, por sinal e depois de se desdobrar num “tecnologismo” anti-
ecológico, se destrói, numa purificação total, a si mesmo, naquilo que
permite que se diga que, no fundo, até para ele se pode esperar uma,
talvez cómico-trágica, redenção numa “eucatástrofe” final. Esta
“eucatástrofe” é uma sinfonia de alegria sofrida, mas, por isso mesmo,
é a única aberta à felicidade que permite a abertura definitiva à
Transcendência.

«Não nos podemos furtar à guerra se quisermos defender as


nossas vidas contra um aniquilador que, deixado sozinho,
devoraria tudo» (“O Silmarillion”).
«Se a alegria é a fonte que se ergue no Sol, as suas nascentes estão
nos poços de lágrimas incomensuráveis que se encontram no
centro da Terra» (“O Silmarillion”).
«Nunca desprezes a compaixão que é o presente de um coração
gentil» (“O Senhor dos Anéis”).
«Recordemo-nos que aquele que é traidor poderá sempre trair-se
a si mesmo e fazer um bem que ele não tenciona» (“O Senhor
dos Anéis”).

42
d) GRAHAM GREENE (1904–1991).

Greene, que chegou a ser um espião ao serviço da Grã-Bretanha, converte-


se ao Catolicismo quando estudava em Oxford e depois de uns breves anos
como jornalista, torna-se um aclamado escritor de novelas e romances
onde encontramos a sua relação de amor-ódio com o Catolicismo, bem
como pelas suas lutas pessoais com um Deus que ele sentia escapar-se-lhe
continuamente.
Para Greene, o Mundo era um lugar ferido pelo egoísmo e as suas
personagens tendem a ser, todas elas, buscadores esperançosas e (ou)
desesperadas de uma existência anterior ao pecado que, uma e outra vez,
se revela inalcançável pelo esforço humano. Talvez marcado pela sua
complexa personalidade, tais personagens surgem repletas de maldade e
levadas, pela sua fragilidade, a cometer actos repreensíveis.
Descontente com a perda do sentido do religioso na literatura, que apenas
fazia com que, na sua opinião, a generalidade das obras suas
contemporâneas apresentassem personagens sem profundidade, Greene
esforça-se por trazer aos seus leitores a percepção do drama da luta pela
busca da autenticidade pessoal, precisamente no meio do conflito mais
amplo entre o bem e o mal.
Do dito anteriormente, se compreende que o sofrimento e a tristeza; o
egoísmo e a dúvida; a fé e a coragem estejam patentes nos seus textos.
Estes, na realidade, estão repletos, menos com uma descrição exterior
daquelas personagens, quão do caracter da vida psicológica e espiritual
das mesmas nas suas relações com o Mundo, a sua demanda por Deus e
os seus dramas interiores. Assim, e por entre o tema central da busca da
autenticidade que leva à felicidade, aqueles que se podem manifestar
como “santos” não são tanto os que negam o mal, mas aqueles que se
entregam voluntariamente à aceitação da inescrutável tolerância e
condescendência de Deus para com a Sua Criação.
Das suas diversas novelas três devem ser aqui trazidas à consideração.

43
Desde logo temos “A inocência e o pecado”.

Este texto, sob a aparente inocente trama de uma aventura policial (ao
redor de uma guerra de gangues no sub-mundo criminoso de cidade de
Brighton) e romântica, foca-se em temas como: a natureza e a finalidade
deste Mundo; a existência e a natureza de Deus; a realidade e a
finalidade do inferno e do Céu; e, enfim, a liberdade do ser humano (ou
falta da mesma) para mudar e superar as circunstâncias, geralmente
adversas, em que se acabaram por encontrar, e se encontram, sem
grandes hipóteses de as alterar.
Para o fazer, Greene, nesta obra, não investe muito no delinear
personagens complexas cheias de intrincadas camadas psicológicas,
mas em personagens com visões pessoais intimamente díspares sobre
tais interrogações. No fundo, a questão resume-se a um breve conjunto
de interrogações, que até parecem ser um decalque das inquietações de
Nietzsche: qual de tais visões é a verdadeira e qual delas é a ilusória? O
que é mais real: o que vemos e vivemos ou o que pressentimos que
precisa de ser real para que a vida seja vivível justamente como vida?
Desde a perspectiva cristã católica – que não acredita, como é o caso dos
cristãos reformados na senda de Calvino, que Deus predestina, desde
sempre e por pura arbitrariedade, alguns para o Inferno e outros para o
Céu –, a preocupação, claramente presente na escrita deste autor
mormente nesta obra, pelo encontrar-se e comunicar tais respostas é o
motor de toda a trama. Contudo, Greene não dá respostas fáceis a
nenhuma destas questões; aliás, não as responde sequer, deixando, sem
moralizar, ao leitor a tarefa de, querendo, elaborá-las a partir da sua
própria consciência.

Segundamente temos “O fim da aventura”.

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Eis-nos perante um estudo, genuinamente mais teológico do que
psicológico (no que levou, e ainda leva, tantos a desprezarem esta
genuína obra-prima), da natureza do amor, do ódio, do desejo e, por
fim, da perda. E isto pelo colocar tais mais básicas emoções sob o
microscópio potente da sua descrição das motivações das suas
personagens. Descrição essa que mostra, no fundo, que aquelas
emoções não se distinguem com facilidade, se é que se podem inclusive
distinguir sem se incorrer numa evidente indefinição das mesmas.
Com isto em consideração, todas tais quatro emoções abarcam um certo
grau de separação do fluir da vida e da existência, sendo que a passagem
dos pólos positivos das mesmas para os negativos decorre,
frequentemente, da insegurança da personagem em, e da inaptidão para
se entregar aos demais, numa atitude existencial e vital de doação e de
oferecimento. Quem se prende a si mesmo perde-se e perde tudo o que
estima; quem se dá, encontra-se e, com isso, adquire tudo o que, mesmo
sem o saber tematicamente, sempre desejou de um modo susceptível de
realizar as suas mais ínclitas aspirações.
Daqui resulta que, por um lado, se descubra a verdade sempre tarde
demais, e, por outro, nunca se manifeste, aos demais, a mais genuína
interioridade, o que leva a que o protagonista (agnóstico) nunca seja
capaz de compreender a fé da protagonista (católica) que sacrifica,
numa promessa, o amor por aquele. No fim, e de um modo que soa a
paradoxal acaso não se conheça o amor, é a morte desta que leva, pelo
choque que provoca no exterior auto-absorvido daquele, a que este se
torne uma melhor pessoa.
Por fim, e porventura naquela que é porventura a mais brilhante obra de
literatura ficcional cristã a tratar a figura de um sacerdote, temos “O
Poder e a Glória”.

45
Neste romance, genuinamente visceral e comovedor, deparamo-nos com
o dilema da luta do último sacerdote católico no, anti-clerical, estado
mexicano de Tabasco.
Alcoólico e incumpridor dos seus deveres de castidade, o mesmo vive a
tensão de ter que decidir entre, por um lado, fugir para poder confessar-
se e, assim, poder voltar a estar em paz com Deus, e, por outro, o
continuar a viver escondido das autoridades para, embora carregando o
peso insuportável da sua mediocridade humana e sacerdotal e correndo
o risco de ser preso e morto, ministral os sacramentos a toda uma
população que continuava a ser, e a querer ser, católica.
No fundo, este romance é o relato da vida espiritual de todo o crente
católico e, até de todo o ser humano: o do crescer no desapego de si até
se esquecer de tal modo de si que se pode viver em doação aos demais.
«Tu não consegues conceber, nem eu, a estranheza fenomenal da
misericórdia de Deus» (“A inocência e o pecado”).
«Um católico é mais capaz de realizar o mal do que qualquer
outra pessoa, pois, acreditando em Deus, estamos mais em
contacto com Satanás do que as demais pessoas quando
cometemos um pecado» (“A inocência e o pecado”).
«A insegurança é o pior dos sentimentos que aqueles que amam
sentem, pois ela retorce os sentidos e envenena a confiança»
(“O fim da aventura”).
«Podemos amar com as nossas mentes, mas será que só podemos
amar com as nossas mentes? O amor expande-se em todas as
ocasiões, de tal modo que acabamos a amar até com as nossas
unhas insensíveis» (“O fim da aventura”).
«É demasiado fácil morrer por aquilo que era bom e belo, pela
nossa casa ou pela nossa civilização – mas era preciso Deus
para se morrer pelos desinteressantes e os corrompidos» (“O
Poder e a Glória”).

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«Ó Deus, perdoa-me: sou orgulhoso, lascivo, ambicioso. Estas
pessoas são mártires, protegendo-me com as suas próprias
vidas. Elas merecem que seja um mártir a tomar conta delas e
não alguém como eu que ama todas as coisas erradas» (“O
Poder e a Glória”)

e) FLANNERY O’CONNOR (1925–1964).

Apesar de uma saúde muito frágil e de diversos ataques de lúpus, esta autora
dos EUA foi uma voz activa e vibrante que criou, com uma penetrante
análise das dinâmicas humanas, obras de arte literária de uma beleza
desconcertante e repleta do, mas não subserviente ao, entendimento
católico de realidades-chave para a relação com Deus.
Penetrada da aguda percepção de ter sido chamada a ajudar os seus leitores
a compreenderem, o melhor possível, a si mesmos e à sua cultura,
Flannery não hesita em enveredar por estratégias dramáticas que
chocassem as suas sensibilidades ou perturbassem as suas noções de
propriedade e comportamento social normativo.
Servindo-se de personagens de desajustados sociais e de criminosos que,
ante os crentes eivados de costumes piedosos, incarnam o encargo
profético de denunciarem todos os que se criam “justos” e viviam numa
sociedade complacente e racista, as suas histórias nunca apresentam um
momento em que o amor divino não surge, embora, na maior parte das
ocasiões, do modo mais doloroso, trágico e desorientador.
Com efeito, criando Flannery situações de violência em que o amor de Deus
mais pode despontar face ao negro cenário de fundo, tal violência nunca é
gratuita, mas, pelo contrário, é sempre um momento possível, embora nem
sempre provável, de uma misteriosa redenção. Neste sentido, apesar do
seu uso do grotesco, as suas histórias estão repletas de uma ironia cómica
que gera a empatia mesmo com a mais agressiva das personagens, criando

47
nos seus leitores a consciência de que, bem no fundo, o que os separa
daquelas são meros aspectos circunstanciais.
Dois romances devem ser aqui referidos: o primeiro é “Sangue Sábio”.

Eis uma texto em que nos deparamos com um suceder de cenas bizarras e
excêntricas cheias de horror e furor que procuram descrever, como num
negativo que realça o que normalmente é visível mas se evita
contemplar em profundidade, todo um conjunto de questões religiosas
que vão surgindo ao redor de um ex-soldado que se faz ministro de um
movimento anti-religioso.
Entre estas podemos temos: a busca de uma vocação; a demanda pela
justificação ante Deus e a redenção por esse mesmo Deus; e, enfim, o
combate entre um mal esplendoroso alimentador da dúvida e um bem
discreto nutriente da fé. Todas essas questões formam um caixilho em
que se chama a tenção para o facto de que mesmo quando se nega a
Deus, não é possível furtar-se à Sua presença.

O segundo desses romances é “O violento carregá-lo-á para longe”.

48
Nesta obra, através de uma combinação astuta de compaixão e
padecimento, surge a luta, levada a cabo no ringue dos legados
familiares, entre o que se cria ser um chamamento interior e a
conformidade com a mundanidade da modernidade.
Tentando apontar, com requintes de uma análise psicológica
extraordinária, para onde é que o sagrado pode subsistir ou não, o
passado surge sob a feição de uma soma de determinismos de exercem
um controlo férreo e cegam o discernimento a fazer entre os impulsos
e a razoabilidade.
Apontando para extremos cheios do fogo da violência para mostrar um
equilíbrio que revela, antinomicamente, que tudo o que destrói e
consome também pode criar e redimir: o fogo que queima e abre; a água
que afoga e baptiza.
«A fé é o que alguém sabe ser a verdade, quer acredite nela ou
não» (“Sangue Sábio”).
«Nunca ninguém com um grande carro quis saber
verdadeiramente da sua justificação e da sua salvação»
(“Sangue Sábio”).
«Não basta dizer uma só vez “não” a Deus. É preciso fazer “não”.
Precisa-se de o mostrar mediante fazê-lo» (“O violento
carregá-lo-á para longe”).
«A dignidade do homem está no dizer: “eu nasci uma vez e não
mais; aquilo que posso ver e fazer por mim e pelos demais nesta
vida é a minha porção e isso basta-me”» (“O violento carregá-
lo-á para longe”).

2.2- O CINEMA não é fácil de descrever, não menos devido à complexidade


de técnicas que, desde o início do mesmo, ele engloba. De qualquer modo
não nos arriscaremos muito se dissermos que o mesmo é uma criação
artística essencialmente visual (mas também auditiva), particularmente
eficaz na evocação e suscitação de estados de emoção e/ou de reflexão,
que se tornou a primeira verdadeira forma de entretenimento artístico em
massa.
Na realidade, pela sua natureza semi-hipnótica, decorrente da ilusão de
movimento e de presença real do espectador ao evento retratado, o
espectador sente-se frequentemente transportado para uma profunda
identificação, de atracção ou de repulsa, por este ou aquela personagem,
saindo, muitas vezes, do cinema como se estivesse ainda a prolongar essa
identificação.
Não deixa de ser curioso que há, de modo metafórico, algo de muito
semelhante ao cinema nos textos mais importantes para os cristãos: os

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“Evangelhos”, em especial os escritos nas comunidades de Lucas e de
Mateus. Referimo-nos aos, assim denominados, ‘Evangelhos da Infância’
(relatos dos eventos que precederam e sucederam ao nascimento de Jesus
Cristo), que precedem o texto narrativo mais notável de cada um de tais
“Evangelhos”. Na realidade, tais ‘Evangelhos da Infância’ não são senão
uma espécie de ‘trailer’ de tudo o que se seguirá; ou, se se quiser passar
da ordem narrativa à ordem cronológica da redação textual, de tudo o que
já se sabia que se ia relatar a seguir.
No que passaremos a mencionar a seguir, procuraremos dar a atenção a
directores cinematográficos que sejam cristãos, mas procurando evitar,
mesmo entre estes, obras de perfil explicitamente cristão, embora não
possamos negar o imenso valor e impacto, mormente na história do
cinema, de obras como, por exemplo, “Quo Vadis” de Mervyn LeRoy,
“Ben-Hur” de William Wyler, “O Evangelho segundo São Mateus” de
Pasolini, “Um homem para a eternidade”, de Fred Zinnemann,“A
missão” de Roland Joffé e, para não findarmos, “A festa de Babete” de
Gabriel Axel.
O esquema das nossas apresentações, assaz semelhante ao seguido para o
ponto anterior deste segundo tema do nosso curso, seguirá o seguinte
plano: i) breve referência às características gerais da produção
cinematográfica de dado director de cinema; ii) apresentação sucinta de
um dos mais relevantes dos seus filmes; iii) pequeno conjunto de citações
provindas deste mesmo filme.

a) ALFRED HITCHCOCK (1899–1980).

Os seus filmes são todos o fruto e a consequência de uma personalidade


atormentada, fruto de uma aguda percepção psicológica de quem passou
a reconhecer, de modo adulto e contra as ilusões infantis, que a Igreja não
existe porque os católicos são santos, mas justamente por serem pecadores
e precisarem se ser ajudados a ser melhor pessoas.
50
Três são os seus grandes temas: o do inocente que é erroneamente suspeito
ou acusado de um crime e que deve, então, provar a sua inocência,
denunciando, ou não, os culpados; o da mulher culpada que manipula um
protagonista masculino, acabando por o destruir, ou, então, por ser salva
justamente por ele; o do assassino cuja identidade é estabelecida durante
o desenrolar da história.
Ele tinha, como um qualquer católico culto em geral que não se resigna a
viver adormecido na sua mediocridade, uma extraordinária compreensão
da psicologia humana, manifestada na sua abordagem daquela vida mais
banal de onde brotam as situações mais tensas e arrepiantes, em especial
pelo evocar, de uma forma subtil e credível, a ameaça, o subterfúgio e o
medo.

Pois bem, o filme que desejamos trazer até aqui é “Confesso”.

Esta obra aborda o dilema de um padre, taciturno e inseguro acerca do


valor da sua vida, que, garantindo em confissão a um assassino que
jamais dirá a quem quer que seja que este cometeu tal crime, acaba por
ser incriminado por tudo e por todos (a polícia, a hermeticamente
sensual mulher que o ama e ele – embora não querendo abandonar o
sacerdócio – ama, e, enfim, o próprio culpado).
Toda esta densa trama, maravilhosamente orquestrada pelo ‘mestre do
suspense’ que traz para o ecrã um tremendo sentido de aventura e
atracção sexual, coloca o espectador a interrogar-se sucessivamente
com questões que orbitam a interrogação fundamental que é: com lidará
o sacerdote católico com tal facto? Acabará por romper o selo
sacramental da confissão e acusar o criminoso, para não ser condenado?
Ou assume uma culpa que não tem, para se manter fiel à sua missão de
sacerdote?

51
Muitas vezes, a sabedoria existencial católica de Hitchcock deixava
entrever que não existe, em nenhuma pessoa, pureza moral ou ausência
de culpabilidade. Mas, neste filme, a percepção é que se existe um bem
absoluto (o respeito da promessa dada a quem pediu a garantia de sigilo
total), então também existe alguma forma de um, logicamente
repreensível, mal absoluto.

«Eu nunca pensei que o sacerdócio fosse uma forma de encontrar


um esconderijo» (“Confesso”).
«Os católicos sabem que um padre não pode revelar o segredo do
confessionário, mas os protestantes, os ateus, os agnósticos e
pessoas de outras religiões dizem: “Ridículo! Nenhum homem
iria permanecer em silêncio e sacrificar a sua vida,
respeitabilidade e fama de demandador da justiça por uma coisa
assim”» (“Confesso”).

b) RIDLEY SCOTT (1937–).

Eis uma pessoa atormentada até à raiva (que não esconde nos seus filmes
muitas vezes críticos do Cristianismo) pelo facto de, por um lado,
reconhecer que as grandes respostas que a humanidade anseia são dadas,
melhor do que outra realidade, pelo Cristianismo e, por outro lado, se
sentir profundamente angustiado por esse Cristianismo raramente viver à
altura das suas medidas.
Com um talento visual inegável, ele abordou, com sucesso, vários períodos
históricos (desde o passado, com “Êxodo: Deuses e Reis”, até ao futuro,
com “Prometheus”), mas contando sempre a mesma história: a da sua
vida que ele entende ser a de um estranho desafiando quase tudo e todos
ao seu redor, para resgatar, por si só, algo excepcionalmente precioso para
si mesmo.

52
Isso levou-o a renunciar exteriormente à crença no Bem Maior, em favor do
seu próprio sistema de valores (e, pior ainda, no sistema de sucedâneos de
valores de Hollywood), gerando um crescendo de tensão nos seus filmes,
pois ele não consegue negar, nem o quanto foi a sua crença que fez dele
um cineasta popular, nem a sua contínua busca pela verdade e o
significado, que ele sabe (mas que quer forçosamente mostrar que ignora)
que se encontra maximamente no Cristianismo.
Das quase inúmeras obras por si dirigidas, trazemos até aqui “Blade
Runner: Perigo Iminente”.

Este filme, adaptação imensamente criativa de uma novela de Philip K.


Dick, é a história de um polícia que é um assassino de máquinas “mais
humanas do que o ser humano” que, descobrindo que têm uma
durabilidade de apenas três anos, buscam encontrar o seu fabricador de
modo a pedirem-lhe mais tempo de vida.
No decurso da sua missão, tal assassino começa a interrogar-se, não só se
matar uma tal máquina é ser-se humano, como também se poderá amar
uma tal máquina, acabando, numa reviravolta tremenda no fim do filme,
por descobrir que aquilo que distingue o “verdadeiro humano” do “falso
humano” não é senão a capacidade de amar e amar de verdade,
porventura até à doação de vida àqueles que nos odeiam e querem
destruir?
Apesar do filme ter sido um fracasso na bilheteria – devido à
complexidade teológico-filosófica subjacente à sua trama, a qual levou
a epítetos de confuso e desordenado – o facto é que ele coloca o
espectador ante um dos mais extraordinários e prementes desafios
humanos: o da, sempre assustadora, intimidade verdadeira com quem
pode ser diferente do que aparenta ser.

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«É uma pena que ela [a máquina amada pelo polícia-assassino]
não viva! Mas, de qualquer modo, quem é que vive?» (“Blade
Runner: Perigo Iminente”).
«Eu não sei porque ele salvou a minha vida. Talvez naqueles
últimos momentos ele amou a vida mais do que alguma vez
antes. Não apenas sua vida – a vida de qualquer pessoa; mesmo
a minha vida. Tudo o que ele queria eram as mesmas respostas
que os restos de nós querem: de onde vim? Para onde vou?
Quanto tempo tenho? Tudo o que eu, então, pude fazer, foi
sentar-me e vê-lo morrer» (“Blade Runner: Perigo Iminente”).

c) WILLIAM FRIEDKIN (1935–).

Friedkin não é um cristão de fundo. Ou talvez seja um cristão mais honesto


do que muitos outros, enquanto andou sempre em volta do Cristianismo,
mormente católico, sem ter entrado de coração no mesmo até ao ano de
2016, fruto da realização do documentário “The Devil and Father
Amorth”. Mas esta sua, tão honesta quão dolorosa, inquietação existencial
e religiosa transpira por cada ‘frame’ dos filmes por si realizados, dando-
lhes uma textura extraordinária.
As suas obras são, claramente, as de uma pessoa obstinada e autodidacta que
não esconde que teve de “sobreviver”, quer ao crescer no seio de uma
pobre família da classe operária, quer ao ter deixado a faculdade por se
sentir um inadaptado ante o que imaginava ser a genialidade, por si
estimada como inalcançável, dos demais. Em consequência disto, o seu
labor como director cinematográfico raramente é abertamente artístico,
mas vive do imediatismo; isto é, do querer expressar a realidade, por mais
crua e estranha que seja, tal como ela é.
As obras por si dirigidas apresentam, como poucas (e apesar de algumas
testemunharem uma estranheza que, geralmente, queremos ignorar, apesar
de fazer parte do nosso dia-a-dia), o comportamento humano real em

54
tempo real. E isto, com uma frescura que encanta e, ao mesmo tempo,
perturba, recordando, com uma visualização descritiva exemplar, que, em
situações de apuros como as em que tantas vezes nos vemos submergidos,
as pessoas geralmente cometem erros que lhes são custosos, mas a verdade
é que é isso mesmo que o que as faz humanas.
A obra que escolhemos trazer para aqui é “O exorcista”.

É desnecessário trazer para aqui a recordação de que este filme se baseia


em eventos reais. Hoje em dia, só é considerado verdadeiro, não o que
é verdadeiro, mas o que cada um quer acreditar que é verdadeiro, donde
não perderemos tempo nessa dimensão de fundo desta história. Uma
história, não de terror, mas de amor e de entrega no seio de um conflito,
levado ao extremo mas bem comum nas nossas vidas, entre o bem e o
mal; entre a verdade e a mentira; entre o amor e o desamor.
A história aborda a situação desarmada de uma mãe ateia que se vê com
uma filha com problemas que a ciência não consegue explicar e sarar.
Orientada a buscar um sacerdote católico que possa ajudar a sua filha,
acaba por se cruzar com um que, apesar de especialista em psicologia e
psiquiatria, vive carregado de dúvidas, inquietações e mágoas pessoais
que não acredita, nem na autenticidade do que se está a passar, nem,
depois, que possa ser de ajuda.
Entra, então, em cena um outro sacerdote (inspirado na figura histórica do
padre jesuíta Teilhard de Chardin). Este é um arqueólogo veterano em
situações como as que se estavam a passar. Apesar de idoso e com
graves problemas de coração, não hesita em, por amor e espirito de
obediência à lei do amor que convida a mar mais aos demais do que ao
seu próprio bem, ir intervir, pedindo apenas que o sacerdote céptico o
acompanhe. Morrendo o sacerdote mais idoso, fruto precisamente do
seu problema de saúde cardíaco, o outro padre intervém e, através de
um gesto de sacrifício total de si, leva ao desenlace da situação.

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«A possessão não se encontra em guerras, como alguns tendem a
acreditar… não… e muito raramente em eventos fora do comum
tal como este… esta rapariga… esta pobre criança… Não. A
possessão encontra-se mais frequentemente nas pequenas
coisas, Damien: nas incompreensões e questiúnculas
insignificantes; nos gestos e palavras cruéis e cortantes que
saem espontaneamente da boca dos amigos. Entre pessoas que
se amam. Entre maridos e esposas. Entre pais e filhos. Entre
alunos e professores. Com o multiplicar destas coisas não
precisamos de Satanás para estimular as nossas guerras; nós
somos suficientes para fazermos e trazermos o mal para o nosso
coração e para o coração dos demais» (“O exorcista”).
«Eu estimo que o Maligno realiza isto para nos fazer desesperar.
Para nos vermos, e querermos ser, como feios animais que se
deleitam em tornar feios os demais. Para, no fundo, nos fazer
rejeitar a possibilidade de que Deus nos possa amar tal como
somos» (“O exorcista”).

c) TERRENCE MALICK (1943–).

Cristão de ascendência assíria, como os milhares de cristãos que têm sido


mortos no Iraque apenas por serem cristãos, Malick é uma das pessoas
mais enigmáticas e reservadas no mundo do cinema. Enigmático, sim,
quase com receio de viver tal como é, por medo que isso lhe impedisse de
poder continuar a produzir as suas obras num Hollywood usualmente
recalcitrante com tudo o que pode soar a cheirar aos valores cristãos que
são associados, contemporaneamente, a uma direita política dos EUA que
é odiada até à medula pelos focos artísticos mais acratas.
Tudo isto é a tela de fundo dos problemas presentes nos filmes de Malick
que se entretecem com a mistura da tradição melancólica do
existencialismo cristão, a espiritualidade ansiosa de quem se sente incapaz
de amar como mereciam aqueles a quem se ama, e, enfim, a teologia
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nostálgica e anti-moderna que se recusa a aceitar, como meio de resolução
dos problemas do Mundo e da humanidade, estratégias análogas às de
Prometeu, em vez de apostar numa fé nos demais que conta com a ajuda
humilde e discreta do Deus-Amor que, tendo corrido o risco de tudo
perder, apostou tudo em nós.
Confundidos por um Mundo que está, por sua livre iniciativa, a cair aos
bocados (fruto de ter colocado os interesses económicos e pseudo-
humanistas à frente da verdade), os personagens dos filmes dirigidos por
Malick parecem encastrados em si mesmos. Ou seja, encerrados em si
numa busca, vã, de respostas ante um Deus que parece, mas só parece,
silencioso e até inexistente, tardando, tais personagens, a reconhecer que
sendo tal Deus apenas Amor, o mesmo nunca pode ser de tal modo
evidente que nos obrigasse, numa negação da nossa liberdade, a acreditar
em si, nesse caso, não como Amor, mas como um qualquer faraó déspota
e arrogante.
Não podíamos não trazer para aqui o filme “A árvore da vida”.

Não é fácil descrever, muito menos explicar, este filme. Poder-se-á ter a
ilusão de poder descrever, ou explicar, a terrível luta que existe, nos
interstícios das nossas vidas, entre, por um lado, o apego à nossa
sobrevivência até ao desprezo de tudo o mais além de nós mesmos fruto
de milhões de anos em que a lei do mais forte imperava, e, por outro
lado, o amor, tido por louco e por parvo por cada vez mais pessoas, que
nos leva a esquecer de nós para o bem dos demais? Não cremos, e, não
obstante, esse é o cenário das nossas vidas. De todas as nossas vidas.
O filme, aliás, coloca mais perguntas do que dá respostas (algo que, por
sinal, é o que acontece com todos os momentos da nossa vida), mas
aponta para a constatação, só ignorada daqueles que não amam nem
querem amar de verdade, que toda avida, em todas as suas formas, está
toda conectada e mesmo que a força da auto-preservação esteja inscrita
nas nossas células, cada um tem a capacidade de escolher o caminho do

57
amor e compaixão que está inscrita a lágrimas de Deus no nosso
“coração”.
Não há humor nem risos histriónicos neste filme, mas ele até é divertido
para quem não se importa de colocar em causa e for capaz de aguentar
o ritmo pausado, tão característico na natureza e do amor, do suceder
das imagens. Mas, dito isto, este filme é um filme que aposta na verdade
e na beleza verdadeira que lhe permitem ser portador de um sentido
magnífico, não menos por ser o sentido que todos nós devemos
descobrir se quisermos ser felizes: colocar o amor à frente de tudo o
mais, que este “tudo o mais” acabará, por vezes através de caminhos
muito tortuosos, por vir atrás.

«Há dois caminhos que podem ser seguidos no decurso da nossa


vida: o caminho da natureza e o caminho do amor. Cada um
tem que decidir qual desses dois caminhos quer seguir. O amor
não tenta satisfazer-se. Aceita ser desprezado, esquecido,
odiado. Aceita insultos e ferimentos. A natureza só busca
satisfazer-se a si mesma. Ter os demais a satisfazerem-na. Ela
gosta de os dominar. Fazer tudo como lhe apetece. Ela encontra
razões para ser infeliz mesmo quando todo o mundo está a
brilhar ao seu redor» (“A árvore da vida”).
«Onde é que tu estavas, Deus? Tu deixaste um menino morrer. Tu
deixas que tudo aconteça. Por que deverei eu ser bom? Tu não
o foste» (“A árvore da vida”).

2.3- Resta-nos, agora e para terminarmos o segundo tema deste curso, fazer
referência à MÚSICA. Melhor dizendo: ao contributo marcante de alguns
cristãos para a música no séc. XX.
A música, retenha-se desde logo o início, é uma realidade primária. Tão
primária como o falar, os sons e o silêncio que, no fundo a compõem. Do
ponto de vista histórico, a mesma está intimamente conectada com a
experiência, tão antiga quanto a humanidade, do sagrado, do
transcendente e do Transcendente Absoluto e Infinito a que se denomina
pelo termo “Deus”. Apenas na modernidade ocidental é que a mesma se
tornou uma realidade puramente secular, por mais que existam muitas
evidências que ela é tremendamente capaz de prover experiências que são,
pelo menos a nível implícito, religiosas. E isto, sobretudo, por três razões:
a) trata-se de uma realidade primordialmente comunitária e participativa,
tal como o é o diálogo humano; b) acaba por ser um símbolo do mistério
que é o viver; c) é o elemento dialético do diálogo, na imperiosa tensão
entre o “discurso” e o “desejo”.

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Vejamos, de seguida e de modo sintético (seja no conjunto dos autores
apresentados, seja em cada um), alguns músicos cristãos do séc. XX que
marcaram decididamente o modo de se fazer música e de se a entender.

a) ENNIO MORRICONE (1928–).

Como cristão católico que é, Morricone levou, para a música e sobretudo ao


nível da sua imensa produção de músicas para bandas-sonoras para filmes,
muito da visão do Cristianismo acerca da humanidade ferida e
desorientada por causa da sua recusa em amar, mas, apesar de tudo,
chamada a uma meta maravilhosa na comunhão com Deus. Enquanto
compositor, ele é um mestre na manifestação da singularidade dos opostos
que subsistem numa mesma realidade: alegria e tristeza, vitória e derrota,
amor e desamor, beleza e fealdade. Baseado na sua experiência, quase que
laboratorial, na exploração de técnicas de produção de sons atípicos que
conjugados apresentam uma harmonia inesperada, Morricone mostrou
que a música, e a música de orquestra em especial, pode criar, a partir de
um limitado conjunto de possibilidades harmónicas, sons de uma
magnitude inimaginável, tal como se pode ouvir, de modo singular, em
“The ecstasy of Gold”.
Ao longo das suas músicas, há sempre uma pulsação de fundo que nunca
desaparece totalmente, desejando ele significar com isso que mesmo que
nós não nos apercebamos disso, Deus é o ritmo subjacente a toda a nossa
existência, inclusive aquela que é entretecida por elementos que parecem
infinitamente afastados do Mesmo. Sempre que um instrumento deixa de
se fazer ouvir, um outro assume o lugar do precedente e, se assim o
pudermos dizer, transporta o ritmo, cada vez mais vibrante, para os
momentos seguintes, tal como se fosse uma corrida por estafetas em que
cada interveniente de uma equipa corresse mais rapidamente do que
aquele que o antecedeu (isto é notoriamente patente na música de abertura
do filme “O bom, o mau e o vilão”).

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Na sequência do mencionado no parágrafo precedente, um outro elemento
fundamental nas composições de Morricone é a voz humana (bem como
os sons humanos) tida e assumida, não como um elemento de condução
para a prosa ou o verso, mas como um instrumento melódico em si mesmo,
como se pode ver ao longo de toda a banda-sonora de “Era uma vez no
Oeste”. Eis a voz humana celebrada, por este compositor, como a forma
mais excelente de dizer o Deus-Amor que, de acordo com a teologia
bíblica, cria “falando”; cria “chamando”, de modo intemporal (desde a
perspectiva divina) e em cada instante (desde a perspectiva humana), a
cada ser à existência pelo seu nome. Se cada ser é criado pelo ser
“chamado” continuamente à existência, não admira que este compositor
use a repetição de vozes e sons, não de um modo mecânico, mas dotando
aquelas e estes de uma personalidade própria, deixando, muitas vezes, que
o elemento lírico seja secundário face à voz em si mesma. Nisto, podemos
e devemos dizer, Morricone é exemplar e só o logrou fazer desde a sua
cosmovisão cristã.
A fé cristã, para Morricone – e como se pode constatar nas músicas presentes
no filme “A missão” acerca de missionários jesuítas defensores (face aos
interesses esclavagistas de governantes portugueses e espanhóis) de povos
ameríndios na América do Sul –, é a base da sua compreensão da
realidade, uma compreensão que, para ele, passa pela aceitação desarmada
de um Deus desarmado que envolve a sua pessoa enquanto compositor e
o ajuda a escrever filamentos musicais que ele deseja que, nos que os
ouvem, ajudem a desgostar aquele mesmo Deus presente amorosamente
em todos os interstícios da existência.

b) BOB DYLAN (1941–).

Se há um dado incontornável que ressalta á vista de todas as listas, realizadas


na passagem do século transacto para a presente centúria, acerca dos
músicos mais relevantes do séc. XX, é que Dylan está em todas elas, sendo
só precedido pelos Beatles. Mais importante ainda, é o reconhecimento da
60
sua importância pelos demais compositores e músicos mundiais, elemento
em que o mesmo só é antecedido, uma vez mais, pelo quarteto de
Liverpool. A questão que pode nortear estas palavras a partir daqui é a
seguinte: qual o motivo disto? Apontaremos, de seguida, algumas
reflexões pessoais sobre isto, a partir do que de mais cristão elas podem
possuir e expressar.
Em primeiro lugar, trata-se de alguém que ousou, em todos os momentos da
sua carreira e inclusive até ao presente, escrever acerca de temas que eram,
voluntariamente ou não, ignorados até ele os começar a abordar, como,
por exemplo, as suas músicas de desdém. Enquanto muitos escreveram
sobre o “amor perdido” e a “duplicidade do amante”, Dylan ousou focar-
se, antes de toda a gente e como um profeta cristão a atrever-se a denunciar
os podres da indústria musical, naquelas pessoas e instituições que, na sua
opinião, estavam a destruir a beleza e o sentido espiritual da música (basta
recordar “Like a Rolling Stone”, centrada na música absolutamente banal
do grupo musical nomeado no título desta música, e “Please crawl out
your Window”, focada na ânsia do mesmo em que as pessoas não se
deixem arrastar para serem meras criaturas da noite, aprisionadas no que
de menos humano há nelas). Por outras palavras: Dylan, trazendo os seus
mais viscerais ímpetos humanos para a sua música, mostrou que nada
precisa de ser alheio à boa música contemporânea e que só o que não é
dito musicalmente pode desumanizar.
Em segundo lugar, porque ele abarca um leque tremendo de diferentes
aproximações à arte da canção, alguns dos quais nunca haviam sido
considerados antes dele. Por outras palavras: ele, como cristão (que não se
sente ligado absolutamente a nenhuma Igreja determinada), desejou, e
logrou efectivamente, elevar a música popular, e até o rock entendido à
sua maneira, a um nível muito mais elevado do que alguma vez antes havia
sido. E isto, por exemplo, mediante o trazer, para a música, o característico
de expressões humanas a nível das vertentes simbólicas, abstractas,
surrealistas e até religioso-espirituais, conforme, no que concerne a este
último aspecto, ocorre em músicas como “Shot of Love” e “Saved”.
Em terceiro lugar, porque Dylan nunca se poupou a cessar de experimentar
e inovar, enquanto testemunho que deseja ser do Deus-Amor que é sempre
uma novidade, independentemente do que os seus críticos pudessem dizer.
Dylan nunca estagnou, antes tentou criar continuamente como acontece
com o Deus em que ele acredita. Ele não tem medo dos críticos, pois
acredita que o único crítico que para ele é importante é o próprio Deus que
suscita, continuamente e por amor, tudo o que existe numa dinâmica de
originalidade fecunda, tal como este músico, imensamente conhecedor do
passado da literatura e da música, celebra no álbum “Times they are a
Changing”.

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c) PAUL DAVID HEWSON (BONO) (1960–).

Muitos conhecem os U2, mas poucos são aqueles que sabem, ou se dão
conta, que os mesmos são uma banda que compõe e interpreta músicas
cristãs. Isto tanto se deve ao facto dos mesmos, por diversos motivos, não
se reconhecerem explicitamente como tal, como à evidência que cada vez
mais pessoas – desprezando e até odiando, por motivos geralmente
infantis encapsulados em mentes adultas, aquilo que é o Cristianismo, ou
decorrendo do mesmo – já nem se dão conta da mensagem radicalmente
cristã das músicas compostas por Bono. Com efeito, só quem nada
conhece do Cristianismo não se dá conta que, por exemplo e num caso
flagrante, a música “I still haven’t found What I’m looking for” é um
verdadeiro hino de fé religiosa acerca da busca amorosa por um Deus-
Amor que vem até à nossa busca, também Ele podendo dizer que ainda
não nos encontrou, pois estamos longe de nós mesmos; longe da nossa
verdade; longe da nossa autenticidade.
As músicas escritas por Bono só são banais para quem desconhece a
radicalidade da mensagem cristã das mesmas, ainda que a sua perspectiva
sobre a Igreja, enquanto comunidade organizada de pessoas que acolhem
e tentam viver o amor do Deus-Amor, seja assaz ténue. De qualquer modo,
desde a música “Gloria” do álbum “October” (com o seu coro litúrgico
cantado em inglês) é evidente que a tensão do que é ser um cristão – no
interface entre o crer e o duvidar, entre a disciplina e a vulnerabilidade,
entre a ordem e a abertura, sensualidade e santidade, entre o ter para dar e
o ser desprendido e até pobre, entre o activismo político e o não acreditar
que a política seja a solução para os problemas da humanidade – é a
preocupação-chave presente nas grandes músicas compostas por Bono,
como se pode ver, mais uma vez apenas a título de exemplo, em “Sunday
Bloody Sunday” (tanto um hino de memória e protesto por um massacre
de cristãos católicos por tropas inglesas protestantes, como um hino de

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celebração quase eucarístico pela vida dada até ao fim dela mesma por
amor).
Daqui decorre que, quando nas suas letras surgem palavras como “amor”,
“querido”, “doçura”, “dor” e até “prazer”, tais termos remetam para Deus.
Mas isto escapa a muita gente; gente que nem se dá conta que até no título
(e mais ainda no decorrer da música em si) “With or without You”, este
“You”/“Tu” refere-se a Deus; ao Deus-Amor que, amando-nos mais do
que a Si, acabou, como diz a letra da música, com um ‘thorn twist in Your
side»/«espinho torcido no Teu lado». Eis uma música acerca de quão as
exigências do amor, que é comunicado a nós (e a nós pedido) por Deus,
são simultaneamente dilacerantes e valiosíssimas.
E que dizer de “Until the End of the World”? Eis outra música da qual nada
se entenderá se não se reconhecer que é uma canção de amor por Jesus
Cristo cantada por Bono a representar um apóstolo Judas que, ao contrário
do que muita gente pensa por décadas e décadas de má formação religiosa,
amava profundamente a Jesus (embora não O entendesse). E isto,
apontando para a constatação de que a maior traição não é a cometida por
alguém que não nos ama, mas que nos ama e que, assim, o maior perdão
não está no perdoar aquele, mas este. Aqui, como noutros locais das suas
músicas, Bono é um tremendo teólogo que marcou, como poucos, a
música pop do século passado, seja nela mesma, seja com valores e
aspirações propriamente cristãs.

3.- TEMAS CONTROVERSOS SOBRE O CRISTIANISMO (CATÓLICO)


Um dos “desportos” preferidos de tanta e tanta gente e desde que o
Cristianismo surgiu é o de atacar e denegrir o mesmo. Já o filósofo
neoplatónico Celso dizia, no século II, que o Cristianismo era um conjunto
de fábulas impossíveis de serem reais e que só satisfaziam os pobres, as
mulheres e as crianças.
Na actualidade o panorama não mudou muito, embora as críticas sejam
menos elaborados filosoficamente do que no passado, muito devido à
cultura light típica de uma “era do vazio” em que raciocina, e veiculam
ideias, não através de pensamentos sólidos e firmemente ancorados na
verdade e rectamente articulados entre si, mas através de slogans que
brotam e apelam à visceralidade e à emotividade sem qualquer
fundamentação sólida. Pensar deixou de estar na moda. Saber
fundamentar posições acerca de temas complexos deixou de ser uma
preocupação. O importante parece ter-se tornado meramente o despotismo
da subjectividade ansiosa que não é capaz de ouvir a verdade bem
estruturada sem reagir com agressividade.

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Posto isto, é impossível negar que existiram, e ainda existem, temas
controversos no Cristianismo. O Cristianismo é composto de pessoas
humanas como todas as demais, e embora sejam chamados a um ideal de
perfeição amorosa, a realidade é que muitas vezes se fica por uma
mediocridade triste, sombria e fria. Uma mediocridade que desfigura o
rosto do Cristianismo, da Igreja e até do Deus-Amor, donde não se
procurará defender o indefensável, mas falar a verdade histórica e actual

a) CRUZADAS

O termo “cruzadas”, por mais que tenha sido usado por cristãos que até
combatiam com bandeiras com a Cruz, é infame em si mesmo. E é-o, por
ter na sua raiz o termo “Cruz”, o qual remete para aquela Cruz histórica
de Jesus que é a máxima expressão de um Deus-Amor que não Se defende
para não nos castigar nem condenar. Um Deus-Amor que, pelo contrário,
antes aceita, literalmente de “braços abertos”, as consequências de,
amando-nos (e sendo o amar fazer a vontade real do amado custe o que
nos custar), termos querido matá-Lo por, sendo nós medíocres no amor,
não termos aceitado o resplendor desse mesmo amor.
De qualquer modo as cruzadas são um movimento bélico de defesa – uma
guerra defensiva, portanto – iniciada cerca de 500 anos depois dos
exércitos islâmicos terem conquistado militarmente, e cometendo
verdadeiros genocídios, imensos territórios (desde o Egipto até à actual
Turquia; do actual Portugal ao Irão passando pelo actual sul da Itália e
todo o Norte de África) que eram antes ocupados por cristãos (que não os
haviam conquistado, mas convertido desde dentro).
Tais conquistas islâmicas acabaram a impedir a circulação, seja por terra,
seja por mar, de peregrinos cristãos para Jerusalém, local onde os
principais eventos do Cristianismo eram, e ainda são hoje, celebrados,
mesmo depois de em 1009 os muçulmanos terem arrasado com a Igreja
do Santo Sepulcro (onde se encontra o local onde Jesus foi sepultado e
ressuscitou). Após dezenas de anos a tentar chegar, sem resultados alguns,
a um acordo, com os dirigentes muçulmanos, para estes permitirem aquela

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circulação, optou-se por uma intervenção limitada de reconquista dos
espaços mínimos para que tal circulação se tornasse possível.
Houve mortes? Houve massacres? Sim, houve, e por isso a Igreja Católica
pediu perdão, reconhecendo que não havia nenhuma justificação bíblica
para que se tivesse tirado uma vida a quem quer que fosse. Mas se aquilo
existiu, existiu tal como, infeliz e lamentavelmente, sempre existiu, e
ainda existe, em qualquer guerra. Dever-se-ia ter deixado a situação tal
como estava (sem que os cristãos pudessem ir até Jerusalém)?

b) INQUISIÇÃO

A inquisição surge no séc. XIII como um meio de se julgar pessoas que,


também devido a opiniões distorcidas acerca de dadas passagens bíblicas,
acabavam a cometer actos imorais com graves repercussões sociais.
Repare-se que não eram as opiniões distorcidas que eram julgadas, mas as
consequências sociais das mesmas. E isto, tal como está patente no texto
“Processus inquisitionis” que regrava o modo de proceder nos tribunais
da inquisição, de modo a dar a oportunidade a que tais pessoas fossem
julgadas de um modo justo (e mais justo do que se fossem julgadas em
tribunais “civis” que tinham procedimentos mais arcaicos e bem menos
lenientes) e não se vissem acometidas por grupos de populares que
desejassem fazer “justiça pelas próprias mãos”.
Um avanço imenso que ocorreu nos tribunais da Inquisição, foi o de ninguém
poder ser condenado apenas fruto de acusações verbais. Tinha que haver,
ou admissão da própria culpa por parte do acusado, ou, então, provas que
demonstrassem que o mesmo era culpado, sendo que o acusado, naquilo
que também era um contraste com outras práticas judiciais, podia ter ao
seu dispor um advogado de defesa. Mais: quem realizasse acusações que
se tornariam evidentes como falsas, devia, no mínimo e além de um pedido
formal e público de desculpas a quem acusara indevidamente, passar a
andar publicamente com uma porção de tecido vermelho, em forma de
língua, cozida à sua roupa para que todos soubessem que era um
difamador.

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Infelizmente, ao se ter tornado um instrumento de controlo social na mão dos
governantes civis dos países cristãos na Europa, a intenção original da
Inquisição acaba por ser deturpada, acabando mesmo, por aqueles
governantes terem inserido, nos procedimentos dos tribunais da Inquisição
nos seus países, determinações importadas da antiga “Lei Romana”, por
usar a tortura, nunca por períodos superiores a 15 minutos e sempre na
presença de médicos, para se obter admissões de culpa por parte dos
acusados. Eis um facto que, apesar daqueles cuidados, levou a diversas
intervenções papais para que tal deixasse de ocorrer, recordando tais papas
que uma admissão de culpa em tais condições era a distorção da própria
justiça e raramente era fiável, pois, muitas vezes, as pessoas admitiam a
culpa apenas para deixarem se ser supliciadas.
Dito isto, e porque os números ajudam a ver a dimensão de uma realidade,
apenas 7% das pessoas que foram acusadas foram sujeitas a torturas (coisa
que, como é evidente, nunca devia ter acontecido, mesmo que geralmente
ela ocorria quando outras entidades que não a Igreja estavam a gerir os
procedimentos), e apenas 1% dos acusados foram condenados à morte, ou
biologicamente, ou, como era comum, por “esfinge” (queima de uma
imagem sua, sendo o condenado exilado ou aprisionado para a vida). Ou
seja, em cerca de 700 anos em que existiu a Inquisição e segundo os dados
mais seguros presentes por exemplo no livro “Death by Government” do
historiador ateu Rudolph Joseph Rummel, faleceram quatro mil pessoas,
o que dá em média cerca de seis mortos por ano
Contudo, e como é igualmente evidente, se tivesse havido apenas uma pessoa
morta por causa de algo ligado à Igreja isso já seria absolutamente
inadmissível. Também por causa disso a Igreja pediu perdão.

c) PAGAMENTO PARA CELEBRAÇÃO DE SACRAMENTOS

Quanto a isto não é preciso de dizer muito: os Sacramentos, para serem o que
se deseja que sejam (sinais objectivamente eficazes do amor infinitamente
gratuito de Deus), não deveriam ser pagos. Não há, aliás, dinheiro no
mundo que pudesse pagar o dom imenso de amor que é comunicado, pelo
Deus-Amor e comunitariamente, em cada Sacramento. A Igreja deveria
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arranjar mecanismos para que não se cobrassem dinheiro nos
Sacramentos. Há custos para se financiar as pessoas que trabalham nos
cartórios (paroquiais e diocesanos)? Há. Mas tais custos, mesmo que se
quisesse aplicar o princípio do utilizador/pagador (o que por si só pode ser
uma contradição com a ideia de uma Igreja que, ou é comunidade, ou não
é Igreja) não deveriam ser colmatados por dinheiro recolhido na ocasião
da celebração dos Sacramentos (mesmo que, por exemplo no caso dos
funerais – falado por um discente –, esse dinheiro reverta geralmente para
ajudar as famílias mais pobres a poderem financiar os custos inerentes à
compra de caixões e terrenos em cemitérios que deixaram de ser da Igreja
e passaram a ser do estado).
Associado a isto, e sobretudo no que concerne à Eucaristia, existe ainda a
fixação, fruto geralmente do desconhecimento do que se vive nas
Eucaristias, no querer ouvir o nome dos familiares falecidos ser
pronunciado pelo sacerdote, como se isso fizesse de tal Eucaristia mais
valiosa para aqueles que já faleceram ou, como algumas vezes poderá ser
o caso, um gesto de afagamento do egoísmo de quem quer ouvir isso ser
feito. No fundo, não há necessidade do sacerdote pronunciar qualquer
nome: no momento da oração colecta, e até no momento do ofertório (que,
por mais que isso seja generalizado enquanto um gesto exterior de
expressão de uma atitude interior, não existe para se dar dinheiro, mas para
cada um se entregar em amor aos demais) cada pessoa pode expressar
interiormente as suas intenções de modo absolutamente gratuito.

d) FINANCIAMENTO DO CLERO

De algum modo relacionado com o tema anterior, encontra-se a questão do


financiamento do clero. Como há-de este viver e sustentar-se se tem uma
vida que, por norma, lhe é pedida gratuidade e dedicação total? Não há
respostas fáceis a este respeito, pois há imensos factores que deviam ser
tidos em consideração, em especial porque vivemos numa sociedade em
que para se ter bens é preciso, ou dinheiro para os adquirir (e este tem de
vir de algum lado), ou, então, alguém que os dê de livre vontade em
reconhecimento de um dado serviço prestado (sendo que cada vez menos

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as pessoas reconhecem o serviço sacerdotal como algo que deva ser
recompensado).
Em teoria, e se os sacerdotes estivessem livres de ocupações não estritamente
sacerdotais que poderiam (e até deveriam) ser assumidas por leigos bem
formados, os mesmos teriam tempo para, como era prática comum no
Cristianismo primitivo, terem um dado trabalho civil (o que, porventura,
requereria que tivessem dois cursos superiores se não desejassem
enveredar por trabalhos fisicamente exigentes que, porém e como é
evidente, são tão dignos como os demais) que desse para viverem desse
mesmo trabalho, poupando às suas comunidades o encargo de os financiar
(mesmo que tivessem que financiar, por contribuições gratuitas e não
públicas embora transparentes a nível da contabilidade, as despesas
necessárias para que haja espaços para o culto e demais serviços
pastorais).
Mas quem é que pagava àqueles leigos que passariam a desempenhar os
serviços não-sacerdotais que hoje são desempenhados por sacerdotes?
Confiar-se-ia na boa vontade e no voluntariado? Não poderia isso ser
interpretado como uma forma de exploração? E haveria pessoas
qualificadas para os desempenharem?

e) CELIBATO SACERDOTAL

Ao contrário do que se pensa, a Igreja Católica não impõe a necessidade dos


seus sacerdotes serem célibes. Em primeiro lugar, ninguém é forçado a
querer ser sacerdote com as realidades a ele inerentes. Em segundo lugar,
a Igreja Católica permite que homens casados sejam ordenados
sacerdotes, conquanto não sejam ordenados pelo rito latino (o único que
pede a promessa de celibato), mas antes por outros ritos católicos não
latinos que, devido a vicissitudes históricas, puderam manter-se mais fiéis
ao que era a prática comum no Cristianismo primitivo, antes de se ter
passado, no séc. XIII, a exigir em tal rito latino o celibato obrigatório.
Do ponto de vista histórico, as primeiras tentativas de se solicitarem o
celibato sacerdotal surgem por motivos sociais e económicos. Sociais, no
que concerne a se evitarem escândalos realizados pelas suas esposas e
filhos. Económicos, no que concerne com o facto de terem passado, a
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partir da altura em que as exigências pastorais impediram os sacerdotes de
terem empregos comuns a par do desempenho dos seus encargos pastorais,
a ser as comunidades a pagarem a subsistência dos párocos e das suas
famílias, sendo que, quando um pároco falecia, era necessário continuar a
sustentar-se a sua família – que herdava a casa onde vivia o sacerdote
falecido – e passar-se a sustentar o novo sacerdote, que ia paroquiar tal
comunidade, e a sua família – instalada numa nova casa dada pela
comunidade.
Só depois se tornaram mais firmes as reflexões teológicas decorrentes de se
ter passado a querer ser, não apenas como os apóstolos (que até podem ter
sido casados e não apenas viúvos como parece ter sido o caso de Pedro),
mas como o próprio Jesus que optou por uma vida célibe.
De qualquer modo, o celibato obrigatório não é algo que não possa deixar de
existir e até já há sinais nesse sentido. Quem, tendo vocação reconhecida
pela Igreja enquanto comunidade, desejasse ser célibe, sê-lo-ia, quem
desejasse ser casado e sacerdote, sê-lo-ia. Mas, posto isto, surge a
constatação de que se já é difícil que haja pessoas integralmente
amadurecidas para serem bons sacerdotes, e tão ou mais difícil que haja
pessoas integralmente amadurecidas para serem bons esposos, quão difícil
seria que existissem pessoas suficientemente amadurecidas na
integralidade das dimensões do seu ser (emoções, sentimentos, afectos,
pensamentos, atitudes e comportamentos) para serem simultaneamente
bons sacerdotes e bons esposos. Dito isto, o pedido, feito em Dezembro
de 2016 pelo Papa Francisco, para que os seminários diocesanos se
preocupassem com a formação afectiva dos seminaristas, é uma porta
aberta para que, da esperança, se passe para a realidade de que tais pessoas
possam passar a existir.

f) SEXUALIDADE REDUZIDA À PROCRIAÇÃO

Não há dúvida alguma que – não por causa dos textos bíblicos, mas por
influxos no Cristianismo de antropologias desvalorizadoras da
sexualidade e da sua prática genital – houve períodos em que se passou a
ideia de que a sexualidade tinha principalmente uma finalidade
procriativa. Dito isto, esta nunca foi a única posição vigente na Igreja,
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embora tenha acabado por ser, em largos leques espácio-temporais, a
dominante. Felizmente que sempre houve quem defendesse, e hoje isso é
pacífico na teologia católica, que a finalidade principal da sexualidade é a
ajuda no crescimento humano e espiritual daqueles que a ela se entregam,
pedindo-se apenas que, quando isso for possível, não se absolutize a
recusa da possibilidade de, como Deus, se ser gerador de vida com o
intuito de se partilhar, com alguém que não existia, a alegria de se estar
vivo e, assim, se poder encontrar a felicidade no amar.
Se para imensas gerações de cristão, o corpo e a sexualidade eram “lugares”
proibidos e a culpabilidade inundava os sentimentos impedindo que na
relação sexual se pudesse experimentar a bondade de Deus, tal não se deve
a uma fidelidade ao pensamento cristão verdadeiro, mas apenas a um seu
desvio. Neste sentido, toda a comunicação amorosa sexual permite a
superação da inclinação egoísta e a adesão a um compromisso mútuo, com
relação e interacção significativas, e, assim, moralmente dignas que
possibilitam que o físico se converta num canal de experiência espiritual
não mais, pois, vinculado, à procriação, mas ao prazer compartilhado,
numa intimidade profunda, que faz crescer.
Por outras palavras: a sexualidade na sua expressão genital deve ser a
celebração do amor verdadeiro e não daquele que começa por uma mistura
sem consciência que faria que um pai, ou uma mãe, dissesse ao seu filho,
que lhe pergunta “por que nasci?”, algo como “por causa de um parvo
instinto cego e sendo responsável não te matei no útero”. Celebração, pois,
daquele amor que começa por criar a distância de respeito que permite ver
o amado como uma pessoa e não como um objecto de satisfação instintiva.
Este respeito atestará a profundidade do amor que permite uma união entre
pessoas que, não podendo ser obliterada por nenhuma inclinação
possessiva, faz resplandecer o Infinito pessoal. Aquele de que ela é,
simultaneamente, demanda e dom. Aquele Infinito que quer nascer por
aqueles que se amam, comunicando-lhes o Amor plenamente
desapropriado que Ele mesmo é.
Sim: a consequência natural da atracção sexual e do enamoramento é o
orgasmo. Contudo o ser humano não é apenas uma realidade biológica: é
também biológica, donde a sua culminação não se fica por aquele, mas no
encontro pessoal. Isto mesmo é constatável pela comum afirmação dos
amantes ante a relação sexual, a qual jamais se traduz por um “vamos
atingir o orgasmo”, mas por um “vamos fazer amor”. Na verdade, a esta
constatação se pode chegar desde uma breve descrição dos corolários que
dimanam da relação sexual em contexto de amor genuíno, nomeadamente:
i) a afirmação da identidade pessoal – o amante está a dizer, ao dar-se
sexualmente, implicitamente “quero-te a ti, àquele que tu és” –; ii) a
experiência de uma confiança personalizante – quem ama diz “confio em

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ti, confio-me a ti” –; iii) a vivência gozosa da reconciliação – diante das
dificuldades relacionais no fazer amor diz-se “perdoou-te e aceito o teu
perdão” –; iv) e a comunicação dos sentimentos mais profundos.
Se assim é, na dinâmica sexual vivida no contexto do amor verdadeiro deve
estar presente: i) a paciência dos parceiros para se prepararem mutuamente
para fazer amor e alcançarem o orgasmo juntos; ii) a busca e a construção
de uma comunhão de gostos para a satisfação comum, a qual requer,
sempre, tempo e disponibilidade; iii) a fidelidade, o compromisso e a
exclusividade como garantias e suportes para a entrega desarmada ao
outro. Em síntese: a dinâmica do encontro inter-pessoal entendida deste
modo permite compreender a dignidade da relação sexual, bem como a do
seu clímax gozoso, desde aquele conjunto de parâmetros que resgatam tal
dinâmica da visão redutora da procriação. Mas quem é que vive e fala
disto? E quem ouve?

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