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FRANKFORT, H; WILSON, J.A e JACOBSEN, T. El pensamiento prefilosofico.I.

Egipto y Mesopotamia. México: Fondo de cultura econômica, 1998.

O COSMOS CONCEBIDO COMO UM ESTADO

Influência do meio ambiente no Egito e na Mesopotâmia

O “caráter” de uma civilização é o resultado de processos tão intrincados e


tão complexos que desafiam o exame mais rigoroso. Portanto, simplesmente
notaremos um dos fatores que parece ter desempenhado um papel considerável – o
meio ambiente.
A civilização mesopotâmia se desenvolve em um meio notavelmente distinto.
Aqui encontramos a mesma regularidade cósmica, mas também, temos um
elemento de força e violência que não se observava no Egito. O Tigre e o Eufrates
não são como o Nilo; suas vias são caprichosas e imprevisíveis, podem romper os
diques construídos pelo homem e arrasar suas colheitas. Sopram ventos
abrasadores que arrastam uma poeira asfixiante e sufocam o homem; caem chuvas
torrenciais, que convertem o solo firme em um mar de lodo e impedem que o homem
se mova com liberdade, sob pena de afundar-se na lama. Assim, na Mesopotâmia a
natureza não se impõe limites; na plenitude de seu poderio, interfere e contrapõe a
vontade do homem, fazendo-o sentir claramente sua pouca importância. Isto se
reflete no caráter da civilização mesopotâmia.
Colocado entre estas forças, o homem se deu conta de sua impotência, com
o temor produzido ao encontrar-se no campo de ação de forças gigantescas. Seu
caráter tornou-se tenso, sua falta de poder o proporcionou uma consciência aguda
de suas trágicas possibilidades.
A experiência da natureza que produziu esse caráter teria sua expressão
direta na noção que o mesopotâmio formou acerca do cosmos em que vivia. De
modo algum foi cego à grande regularidade do cosmos; o considerou como ordem e
não como um conjunto anárquico. Porém essa ordem não estava tão próxima da
segurança e periodicidade como no caso do egípcio. Nele e abaixo dele percebia
uma multidão de poderosas vontades individuais, virtualmente divergentes,
potencialmente em conflito, repletas de elementos anárquicos. Estava diante da
natureza e de suas forças gigantescas e obstinadas.
Em conseqüência, para o mesopotâmio, a ordem cósmica não se
apresentava como algo dado, mas como algo realizado. Portanto em sua concepção
de cosmos tratava de dar expressão a esta integração de vontades, isto é, o
representava como uma espécie de ordem social, à semelhança da família, da
comunidade e, mais particularmente, do Estado. Em uma palavra, o mesopotâmio
considerava a ordem cósmica como uma adequação de vontades – como um
Estado.

A antiguidade da concepção do mundo entre os mesopotâmios

A concepção mesopotâmia do universo parece ter tomado sua forma


característica na época em que sua civilização chegou a integrar-se, ou seja, no
período proto-literário, em meados do quarto milênio a.C.
Na esfera econômica aparece a irrigação planejada em grande escala, por
meio de canais, que depois será uma característica da agricultura na Mesopotâmia,
coincidindo com ela e em estreita correlação, um notável aumento da população. Os
antigos povoados se ampliaram até converter-se em cidades e se estabelecem
novas populações em toda a extensão do território. E, ao mesmo tempo em que os
povoados se transformam em cidades, surge a forma política da nova civilização: a
democracia primitiva. Na nova cidade-estado o poder político reside na assembléia
geral constituída por todos os homens livres. Normalmente os assuntos cotidianos
da comunidade eram atendidos por um conselho de anciãos; porém em épocas de
crise, quando havia ameaça de guerra, a assembléia geral podia conferir poderes
absolutos a algum de seus membros proclamando-o rei. Essa função se
desempenhava por tempo limitado e, do mesmo modo que a assembléia podia
conferir-lo, também podia revogá-lo uma vez passada a crise.
É possível que esta centralização da autoridade, permitida pela nova
organização política, seja devido, entre outros fatores, à aparição da arquitetura,
verdadeiramente monumental na Mesopotâmia.
Ao mesmo tempo em que tudo isso se realizou nos campos econômico e
social, foram obtidas novas conquistas nos domínios espirituais da atividade
humana. Inventou-se a escrita, primeiro como um meio de facilitar os cálculos cada
vez mais complicados na medida em que as cidades e os templos se ampliaram.
Desde sua etapa primitiva, a Mesopotâmia encontrou as formas fundamentais
na economia, política e na arte, estabelecendo as diretrizes gerais para enfrentar o
universo em seus diferentes aspectos. Portanto, não surpreende que já possamos
atribuir a essa época uma concepção de universo em conjunto, suficientemente
esclarecida e estruturada. A própria concepção de mundo indica que isso já tinha
sido atingido. Como temos dito, a civilização Mesopotâmia considerava o universo
como um Estado. Contudo, o fundamento desta interpretação não era o Estado que
existiu nas épocas históricas, mas o Estado pré-histórico – ou seja, a democracia
primitiva. Por conseguinte podemos supor que a ideia de Estado cósmico se formou
em uma época primitiva, quando o tipo de Estado que prevalecia era a democracia
primitiva – ou seja, que surgiu com a civilização mesopotâmia.

A atitude do mesopotâmio ante os fenômenos da natureza

Nosso universo está constituído, em sua maior parte, por coisas, por matéria
inanimada, que não possui vida e vontade. Isso nos leva a perguntar por que o
mesopotâmio via nos fenômenos em sua volta, um mundo semelhante à sociedade
em que vivia.
Deste modo o mesopotâmio interpretava todos os fenômenos de seu mundo
sempre que os considerava sob um aspecto diferente de seu cotidiano, prático e
monótono; isto é quando os incluía em seu pensamento mágico, religioso ou
especulativo. Em nosso mundo não tem sentido, mas no do homem mesopotâmio,
sim, ao tratar das relações entre os fenômenos naturais como se trata de relações
sociais, de uma ordem em que operam vontades conjugadas de um Estado.
Não é correto dizer que cada fenômeno era uma pessoa; devemos dizer que
havia uma vontade e uma personalidade em cada fenômeno – nele e, contudo, em
certo modo, atrás dele – porque um fenômeno concreto não limita a vontade e a
personalidade que se associam a ele. Assim, por exemplo, uma pedra de sílex em
particular teria uma personalidade e uma vontade fáceis de reconhecer. Negra,
pesada e dura, mostrava curiosa complacência por deixar-se laminar sob a ação da
ferramenta do artesão, ainda que essa ferramenta fosse de chifre, muito mais suave
que a pedra a que se aplicava. Entretanto essa personalidade característica que
encontramos aqui, nesta pedra de sílex em particular, podemos encontrá-la também
em qualquer outro pedaço de sílex, que parecerá dizer-nos “aqui estou de novo” –
negro, pesado, duro, disposto a deixar-me laminar – “eu o sílex!”. Onde quer que se
encontre teria o nome de “sílex” e se deixaria laminar com facilidade. Isso se deve a
que, em certa ocasião desagradou ao deus Ninurta e este havia lhe imposto como
castigo se deixar laminar.
Podemos tomar outro exemplo: os juncos que crescem nos pântanos da
Mesopotâmia. Era Nidaba quem fazia que os juncos prosperassem na lama; sem ela
não existiria cerca, o pastor não poderia alegrar os corações com a música de sua
flauta de junco, o escriba a louvava quando encontrava algo difícil de escrever e seu
estilo e o fazia bem. Deste modo a deusa era o poder encerrado em todos os juncos;
ela fazia com que estes fossem o que eram atribuindo-lhes suas qualidades
misteriosas. Encontrava-se em cada junco o sentido que o penetrava como agente
inanimado e característico; mas não perdia sua identidade como fenômeno concreto,
nem se limitava a nenhum junco, nem a todos os juncos existentes. Os artistas da
Mesopotâmia apontavam esta relação de um modo tosco, porém gráfico, ao
representar a deusa dos juncos. Apresenta-se em forma humana, como uma
venerável matrona, mas, os juncos também aparecem, brotam de seus ombros;
unidos a ela e parecem surgir diretamente dela.
Em um grande número de fenômenos particulares, como as pedras de sílex e
os juncos, a Mesopotâmia acreditava estar diante a um só ser. Sentia, por assim
dizer, a presença de um centro comum de poder, possuidor de uma personalidade
particular e que, em si mesmo, era pessoal. Esse centro pessoal de poder penetrava
nos fenômenos individuais, transmitindo-lhes o caráter que neles se advertia: “sílex”
em todas as pedras de sílex, Nidaba em todos os juncos, etc.
A identidade buscada é somente parcial. As qualidades possuídas pelos
deuses e pelos símbolos sagrados se infundiam nos membros do homem e os
faziam invioláveis.
Do mesmo modo que era possível pensar que um homem conseguisse uma
identificação parcial com vários deuses, assim também um deus podia adquirir uma
identidade parcial com outros deuses participando em sua natureza e em suas
faculdades. Assim, por exemplo, se dizia que o deus Marduk era o deus Enlil quando
se tratava de tomar conselho de uma questão de governo; em contrapartida, era Sin,
o deus-lua quando atuava como iluminador da noite, e assim sucessivamente. Isso
significa, ao parecer, que quando o deus Marduk exercia o governo e adotava
decisões, participava na personalidade, nas qualidades e nas faculdades do deus
Enlil, o executor divino por excelência. Por outro lado, quando Marduk brilhava no
céu noturno, na forma do planeta Júpiter, compartilhava as faculdades especificas
que caracterizavam aodeus-lua e tinham seu centro nele.
Para compreender a natureza, aos múltiplos e variados fenômenos que
rodeiam o homem, era necessário compreender as personalidades que se
manifestavam em ditos fenômenos, conhecer suas características, o sentido de suas
vontades e, também, a magnitude de seu poderio. Tratava-se de uma tarefa que não
se diferenciava em nada a que devia realizar-se para compreender os homens,
conhecendo suas características, suas vontades e a magnitude de seu poder e de
sua influência. De modo intuitivo o mesopotâmio aplicava à natureza a experiência
que havia adquirido no seio de sua própria sociedade e a interpretava conforme
suas categorias sociais. Isso pode ser ilustrado com um exemplo particularmente
sugestivo. Por assim dizer, a realidade objetiva assume a forma de uma organização
social diante de nossos próprios olhos.
De acordo com as crenças do mesopotâmio, o homem que fora vítima de um
feitiço podia destruir os inimigos que o enfeitiçara ateando fogo a suas imagens. O
eu característico do inimigo estaria tambémem sua imagem.
É claro que o homem recorria ao fogo porque conhecia seu poder destrutivo.
Entretanto o fogo possuía vontade própria; podia destruir as efígies – e nelas os
seus inimigos – somente quando assim o quisera. De tal modo que, para decidir se
destrói ou não as imagens, o fogo se converte em juiz entre o homem e seus
inimigos, a situação se transforma em um litígio, no qual o homem advoga em sua
causa e pede ao fogo que atenda sua queixa. O poder do fogo tem sua forma
definida, e é interpretado conforme as categorias sociais: é um juiz.
Se nos propuséssemos representar o mesopotâmio por uma de suas
características, destacaríamos talvez o grau em que esse povo descobriu e
acentuou as conexões de organização entre as forças que fizeram a advertir. É certo
que todos os povos têm mostradotendência a humanizar as forças não humanas e
que, com freqüência as tem considerado como uma espécie de organização social;
mas o pensamento especulativo dos mesopotâmios parece haver descoberto e
sistematizado as implicações e as funções sociais e políticas compreendidas em dita
interpretação em um grau incomum, chegando a formulá-las em forma de
instituições perfeitamente definidas. Esta acentuação particularparece conectar-se,
de um modo muito estreito, com a natureza da sociedade em que viviam e da qual
extraíram as categorias de que se valiam para a sua interpretação.
Quando o universo começou a adquirir forma para o mesopotâmio, este vivia
como temos dito, em uma democracia primitiva. Todas as empresas grandiosas e
todas as decisões de importância eram tomadas na assembléia geral constituída por
todos os cidadãos; sem que fosse a incumbência de um só indivíduo. De acordo
com isso, era natural que, ao tratar compreender a maneira como se produziam os
grandes acontecimentos cósmicos, dera grande importância à indagação da forma
em que as forças individuais do cosmos cooperavam ao curso do universo. Em sua
concepção do universo as instituições cósmicas chegaram a adquirir enorme
importância e a estrutura do universo veio a ser eternamente igual à organização do
Estado.

A estrutura do Estado cósmico

O Estado formado pelo cosmos mesopotâmio compreendia todo o mundo


existente, de fato, tudo podia ser pensado como um ente: homens, animais, objetos
inanimados e fenômenos naturais, o mesmo que noções como justiça, retidão, a
forma do círculo, etc. Já temos dito como podiam considerar-se tais entes como
membros do Estado, tinham vontade, caráter e poder. Não obstante mesmo quando
todas as coisas imagináveis formavam parte do Estado cósmico, nem todos os
membros ocupavam o mesmo nível político. O critério que servia para diferenciá-los
era a magnitude de seu poder.
No Estado terreno havia grandes grupos que não tinham participação no
governo. Os escravos, as crianças e as mulheres não tinham o direito de falar nas
assembléias. Somente os adultos livres podiam decidir os negócios públicos:
somente eles eram cidadãos no sentido estrito da palavra. No Estado constituído
pelo universo encontramo-nos com algo eternamente análogo. Somente aquelas
forças naturais cujo poderio inspirava temor ao mesopotâmio e que, em
conseqüência, teriam classificado de deuses, eram considerados como cidadãos do
universo, atribuindo-lhes direitos políticos e reconhecendo que podiam exercer
influência na marcha do Estado. Portanto, a assembléia geral dentro do Estado
cósmico era uma assembléia de deuses.
Na literatura mesopotâmia existem freqüentes referencias a esta assembléia
que nos levam, a saber, como funcionavam e confirmavam todas as decisões
importantes a respeito do curso das coisas e acerca da sorte de todos os seres.
Porém, antes de chegar a ele, as proposições eram discutidas, talvez, em forma
acalorada pelos deuses que estavam pró ou contra elas. O dirigente da assembléia
era Anu, o deus do céu. Ao seu lado falava seu filho Enlil, deus da tempestade. Por
meio da discussão se esclareciam os problemas levantados, até que se chegasse a
uma solução. No curso dos debates se concedia grande importância às palavras de
um pequeno grupo formado pelos deuses mais proeminentes, “os sete deuses que
determinam os destinos”. Por último, a discussão culminava com um completo
acordo, quando os deuses pronunciavam a palavra “aprovado” e então Anu e Enlil
proclamavam a decisão tomada. As faculdades executivas estavam encomendadas,
ao parecer, ao deus Enlil.

Os dirigentes do Estado Cósmico

Temos dito que os deuses que constituíam a assembléia divina eram aquelas
forças da que os mesopotâmios reconheciam em, e, por trás dos diversos
fenômenos da natureza. Mas quais dessas forças eram as que desempenhavam as
funções mais destacadas na assembléia e, em conseqüência, teriam maior
influência sobre o curso do universo?
Anu, o deus supremo era o deus do céu e seu nome era a palavra usual para
designar o “céu”. A função dominante que o céu desempenha na composição do
universo visível e a posição eminente que ocupa, colocado acima e por cima de
todas as coisas, explica perfeitamente porque considerava Anu como a força mais
importante do cosmos.
Enlil, o segundo em importância, era o deus da tempestade. A tempestade
que domina todo o espaço que se estende sob o firmamento, ocupava o segundo
lugar entre os grandes componentes do cosmos.
A terra era o terceiro elemento fundamental do universo visível. Como fonte
das águas, a terra era masculina, era En-ki, “o senhor da terra” ou mais literalmente,
“Senhor Terra”. Entre os deuses da mesopotâmia o terceiro e quarto lugar
correspondiam a estes dois aspectos da terra, Nihursaga e Enki.
a) O poder do céu: a autoridade

É, o que inspira majestade. Há nele a experiência de grandeza ou, mais


exatamente do terrível. O homem se dá conta de sua própria insignificância, de sua
distância intransponível.
No fundo, a experiência da majestade é a experiência do poder, da força que
colida com terrível; mas de um poder em repouso, que não impõe conscientemente
sua vontade. O poder que está por trás da majestade é tão grande que não
necessita exercer-se. Sem nenhum esforço de sua parte obriga a submissão por sua
mera presença; o espectador obedece voluntariamente, seguindo um imperativo
categórico que surge do fundo de sua própria alma.
Esta majestade e esta autoridade absoluta que podem experimentar-se a
respeito do céu eram chamadas Anu pelos mesopotâmios. Anu era a personalidade
toda poderosa do céu, o “Tu” que o penetravae se fazia sentir nele.
E onde quer que queira encontrar alguma manifestação de majestade ou de
autoridade sabia que era o poder do céu, que era Anu. Estava em todas as partes, já
que a autoridade é um dos elementos fundamentais de toda organização social
humana. Se não fosse por essa obediência incondicional aos costumes, as leis e a
dita “autoridade” a sociedade se dissolveria na anarquia e no caos. Por isso os
mesopotâmios consideravam que naquelas pessoas nas quais reside a autoridade –
O pai de família, o governante do Estado – se encontrava algo de Anu e da essência
de Anu. Como pai dos deuses, Anu era o protótipo de todos os pais; como “primeiro
rei ou governante”, era o protótipo de todos os governantes. As insígnias que
encarnavam a essência da realeza lhes pertenciam – o cetro, a coroa e o cajado de
pastor – provinham dele. Antes que houvesse reis entre os homens estas insígnias
existiam e estavam no céu diante de Anu. Dali descendeu a terra. Também era Anu
quem reinava a terra; quando o rei dava uma ordem e esta se obedecia em forma
incondicional e de imediato, seu cumprimento era uma manifestação da essência de
Anu. Era Anu quem pronunciava o mandato pela boca do rei; e também era o poder
de Anu que o fazia eficaz de imediato.
Para o mesopotâmio, a sociedade humana era simples parte de uma
sociedade muito mais ampla do universo. O universo do mesopotâmio se fundava
igualmente na autoridade – já que não estava formado por matéria inerte, mas que
cada pedra, cada árvore, cada uma das coisas concebíveis que o integravam teriam
uma vontade e um caráter próprios – além disso, seus membros obedeciam
voluntariamente e sem atraso, as ordens que lhes eram dadas, comportando-se de
modo que lhes havia atribuído. Nós chamamos estas ordens de leis naturais. Desse
modo o universo em conjunto manifestava a influência exercida pela essência
peculiar de Anu.
Assim advertimos que Anu é a origem e o princípio ativo de toda a autoridade,
tanto na sociedade humana como na sociedade mais ampla do universo. É a força
que oarrancou do caos e da anarquia, estabelecendo sua estrutura e seu conjunto
organizado; é a força que assegura a necessária obediência às ordens,às leis e aos
costumes na sociedade e às leis naturais no mundo físico, ou seja,a ordem do
mundo.

b) O poder da tempestade: a força

Em-lil, o “Senhor Tempestade”, é em certo sentido, a própria tempestade. A


tempestade que domina sem oposição todo espaço que existe entre o céu e a terra,
Enlil era evidentemente o segundo grande poder do universo visível, que só era
antecedido pelo céu que o cobria.
Enlil se revela na tempestade. A violência, a força que a constitui e que se
experimenta nela era o deus, era Enlil.
Em todas as grandes catástrofes da história, nos ventos demolidores
aprovados pela assembléia dos deuses, sempre se encontra Enlil, a essência da
tempestade. Nele reside a força, como executor do veredicto dos deuses.
Porém Enlil não desempenha somente as funções de polícia divina o executar os
castigos impostos pelo estado cósmico. Também participa em todas as ações
legítimas de força, e, portanto quem leva aos deuses a guerra.
Por isso não se aplica a Enlil, a tempestade, Aqui também há poder, porém é
poder da força de coação. As vontades que se opõem são esmagadas e reduzidas à
submissão. Na assembléia dos deuses, o organismo que governa o universo, é Anu
quem preside e quem dirige os debates. Sua vontade e sua autoridade aceitas de
maneira voluntária, dirigem a assembléia, assim como a constituição política dirige
os atos de um corpo legislativo. Sua vontade é, realmente, a constituição não
escrita, porém eficaz, que rege o Estado do mundo mesopotâmio. Entretanto, cada
vez que o Estado cósmico trata de impor sua vontade e encontra oposição, Enlil se
converte no personagem principal. Põe em prática as sentenças ditadas pela
assembléia e conduz aos deuses a guerra. Portanto Anu e Enlil personificam no
nível cósmico as duas forças que são elementos fundamentais de qualquer Estado:
a autoridade e o uso legítimo da força.
Por esta razão podemos dizer que seeram os poderes de Anu que faziam do
universo mesopotâmio uma organização social, eram os poderes complementares
de Enlil que davam a essa sociedade o caráter distinto de um Estado.
Enlil é a força e, como tal, seu caráter representa um dualismo peculiar: inspira ao
homem, ao mesmo tempo, confiança e temor. É a força legítima em que se apóia o
Estado, a rocha que sustenta os deuses.
Contudo, posto que Enlil representa a força, a violência e a brutalidade se
encontram ocultas na obscura profundidade de sua alma. Normalmente, Enlil serve
de apoio ao cosmo e garante a ordem frente ao caos; mas sempre é possível que
surja bruscamente, de improviso a brutalidade que está oculta. Este aspecto
anormal de Enlil é verdadeiramente terrível e arrasa toda a vida e com todo meio de
vida. Em conseqüência, o homem nunca pode estar tranqüilo ante Enlil, mas que
experimenta uma sensação de ansiedade que, com freqüência encontra expressão
nos hinos.

c) O poder da terra: a fertilidade

Ki, a “Terra” se manifesta antes de tudo como “Mãe Terra”, como a grande
fonte inesgotável e misteriosa da nova vida e da fecundidade em todas as suas
formas. Cada ano dá nascimento a pastos e plantas novas. Em uma só noite o árido
deserto se transforma em campo verde. Os pastores levam seus rebanhos para
pastar. As ovelhas e as cabras parem cordeiros e cabritos. Todas as coisas crescem
e prosperam. Nas boas terras da Suméria “o grão, a donzela verde, olha para cima
nos canais” em breve uma rica colheita preencherá os celeiros e os armazéns, até
que se transbordem. A humanidade bem alimentada farta de cerveja, de pão e de
leite sentirá como a vida move em seus corpos em ondas de um tranqüilo e profundo
bem estar.
É representada como uma mulher que amamenta seu filho. Sob suas vestes
se refugiam outros filhos que se acotovelam e está rodeada de embriões. Como
encarnação de todas as forças reprodutoras do universo, a terra é a “mãe dos
deuses” e também, a mãe do criador da humanidade; é na verdade – como afirma
uma inscrição – “a mãe de todos os filhos”. Se assim quisesse, podia negar que o
perverso tivesse filhos e até mesmo que cessasse todo nascimento.
Sendo o princípio ativo de todo nascimento e na fecundidade que se
manifestava na contínua renovação da vegetação, no crescimento dos cultivos, no
aumento dos rebanhos e na perpetuação da raça humana, a terra ocupava
legitimamente seu posto como potencia dominante, sentando-se ao lado de Anu e
Enlil na assembléia dos deuses, a instituição que dirige o universo. É Ninmah, “a
rainha exaltada”; é a rainha dos reis e dos senhores, a senhora que determina o
destino, a senhora que decide sobre tudo que ocorre no céu e na terra.

d) O poder da água: a criação

Da terra provêm também as frescas águas, portadoras de vida, a água que


brota nas nascentes, que corre nos rios, e no tempo mais remotos se considerava
“águas que atravessam a terra” como parte de seu próprio ser, como um dos
múltiplos aspectos em que se manifestava. Porém ao enfocá-la deste modo se
estimava que o poder que apresentava era masculino, era Em-ki, o “Senhor da
Terra”. Somente na época histórica o nome de Enki e o papel que a ele se atribui em
certos mitos nos indicam que ele e a água que representa foram antes um simples
aspecto da terra. As águas e o poder que nelas reside havia se emancipado,
adquirindo uma personalidade própria e uma essência peculiar. O poder que se
revelava ao mesopotâmio em sua experiência subjetiva da água era um poder
criador, uma potencia divina que produzia vida nova, novos seres e novas coisas.
Sob esse aspecto era semelhante aos poderes da terra, do solo fértil, porém nele
podemos advertir a diferença entre o ativo e o passivo. A terra, Ki, Ninhursaga, ou
qualquer outro nome que lhe deram, era imóvel; tinha uma produtividade passiva, a
fecundidade. Ao invés disso, a água vai e vem. Inunda os campos, regando-os;
depois escorre e desaparece. Parece perseguir um propósito. E a representação da
produtividade ativa, do pensamento consciente da criação.
Igualmente, os caminhos que a água segue são tortuosos. Trata de evitar
obstáculos, mais do que superá-los e, dando rodeios alcança por fim a sua meta. O
camponês que a utiliza para regar, a conduz de um canal a outro, sabe que é
enganosa e facilmente escapa tomando cursos inesperados. Podemos supor que
assim se chegou a considerar que a astúcia e a inteligência superior pertenciam a
Enki. Este aspecto de seu ser se afirma depois pela contemplação das águas
escuras, ocultas e impenetráveis dos mananciais e das lagunas, que, talvez,
sugerem as qualidades mais profundas, a sabedoria e o conhecimento. As
faculdades peculiares de Enki se manifestam frequentemente, e em muitos lugares,
na atividade do universo. Em particular, sua ação se revela diretamente em algumas
funções da água: quando cai do céu em forma de chuva, quando corre pelo curso
dos rios e quando é conduzida ao campo e ás plantações por meio de canais, dando
lugar ao crescimento dos cultivos e a prosperidade do povo. Porém essência de Enki
se manifesta também em todo o conhecimento. É o elemento criador do
pensamento, ou para produzir novas normas de ação efetivas, para dar um sábio
conselho (Enki é quem proporciona aos governantes sua ampla inteligência e lhes
“abre as portas da compreensão”), o bem, para produzir coisas novas, por exemplo,
a habilidade do artesanato (Enki é o deus dos artesãos por excelência), também,
sua essência e seu poder se mostram, sobretudo, nas poderosas fórmulas mágicas
dos sacerdotes. É ele quem dá as poderosas ordens que tomam a forma dos feitiços
e dos sacerdotes, ordens que podem acalmar as forças de ira ou perseguir aos
demônios maus que teriam atacado o homem.
A função atribuída a Enki no estado formado pelo mundo se expressa com
exatidão a magnitude das forças que o pertencem e o lugar que o corresponde no
universo organizado. Enki é um Nun, ou seja, um grande nobre que se destaca por
sua experiência e sabedoria – um conselheiro, semelhante ao witandos anglo-
saxões – Porém não é um rei, não governa por direito próprio. Sua autoridade é
proveniente de Anu e de Enlil; é um ministro. Em nossa linguagem poderia ser
chamado de secretário da agricultura do universo. Tem a seu cargo a vigilância dos
rios e dos canais e da irrigação em geral, assim como a organização das forças
produtivas do país. Ameniza as dificuldades que podem surgir por meio de seu sábio
conselho, por arbitragem ou reconciliação. Há um hino sumério que descreve
claramente Enki e suas funções.
Resumo: o Estado cósmico e sua estrutura

Elementos fundamentais da concepção de universo dos mesopotâmios


podem ser resumidos assim:
O universo mesopotâmio não era dividido, como o nosso, em duas partes
fundamentais, em matéria animada e inanimada, em objetos vivos e inertes. Não se
estabeleceram diferentes níveis de realidade: qualquer coisa suscetível a ser
percebida, experimentada ou pensada,existia e, portanto, formava parte do universo.
Em conseqüência, no universo do mesopotâmio, todas as coisas, sejam seres
viventes, objetos inanimados ou conceitos abstratos – toda pedra, toda árvore, toda
noção – possuíam vontade e caráter próprios.
De acordo com isso, a ordem do mundo, a regularidade e a conexão
sistemática observáveis no universo – um universo formado exclusivamente por
indivíduos – somente se podia conceber de uma maneira: como uma ordenação de
vontades. O universo, como um conjunto organizado, era uma sociedade, um
Estado.
A forma que os mesopotâmios atribuíram ao Estado do universo foi a de uma
democracia primitiva; esta parece haver sido a forma de Estado que prevalecia na
época em que surgiu a própria civilização mesopotâmia.
Na democracia primitiva da Mesopotâmia – o mesmo que nas democracias
mais desenvolvidas do mundo clássico – a participação no governo era um direito de
grande parte dos membros do Estado, entretanto, de nenhum modo de todos. Os
escravos, as crianças e as mulheres, por exemplo, não tomavam parte no governo
ateniense; tampouco teriam voz na assembléia popular das cidades-estado da
Mesopotâmia. Em forma correspondente, no Estado universal havia também muitos
membros que não tinham influencia política e estavam excluídos do governo. Entre
estes grupos se encontrava, para citar um exemplo, o homem. A posição do homem
no Estado do universo era exatamente igual a que tinha um escravo na cidade-
estado humana.
No universo a influencia política era exercida exclusivamente por aqueles
membros que, em virtude do poder que lhes era inerente, podiam ser classificados
como deuses. Somente eles eram verdadeiros cidadãos em um sentido político. Já
mencionamos alguns dos mais importantes: o céu, a tempestade, a terra e a água.
Também se considerava cada deus como a expressão ou a manifestação de uma
vontade e de um poder, eram assim e atuavam dessa maneira. Enlil, por exemplo, é
a vontade e o poder que se enfurece na tempestade e também o poder que destrói
uma populosa cidade; tanto a tempestade como a destruição eram tidas como
manifestações de uma mesma essência. Contudo, a atuação de todas essas
vontades não produzia a anarquia ou o caos. Cada um desses poderes tinha limites
para as funções, as tarefas e os postos que desempenhavam.Sua vontade se
integra com a dos outros poderes, dentro de uma norma geral de conduta que faz do
universo uma estrutura, um conjunto organizado.
Entretanto, tal como deve ser todo Estado, o universo mesopotâmio é
dinâmico e não estático. A simples atribuição de tarefas e funções não forma o
Estado. O Estado é e funciona pela cooperação das vontades que desempenham as
distintas tarefas, por meio de sua coordenação recíproca e seu acordo para realizar
ações de conjunto em certas situações quando se trata de um interesse geral. Para
lograr esse acordo de vontades, o universo mesopotâmio teria uma assembléia geral
composta por todos os cidadãos. Anu preside e dirige os debates na assembléia. Os
assuntos são discutidos pelos membros que sustentam opiniões pró ou contra até
que se estabeleça um acordo; os argumentos são julgados com a aprovação dos
sete deuses mais importantes, entre os quais se encontram Anu e Enlil; e, desta
maneira, se tomam as decisões acerca dos destinos e dos grandes acontecimentos
do universo, para serem executados depois por Enlil. É desta forma que funciona o
universo.

Reflexões sobre a concepção de mundo nos mitos primitivos

A filosofia que temos esboçado até aqui, a apreensão da realidade como um


conjunto em forma de Estado, teve sua origem, como já foi dito, com a própria
civilização mesopotâmia em meados do quarto milênio antes de nossa era.
Como filosofia acerca da vida em seu conjunto, como concepção básica de
uma civilização, essa concepção teve, em grande medida, o caráter de um axioma.
E assim como a matemática se ocupa muito pouco de seus axiomas, já que estes
não constituem problemas, mas que são as verdades patentes e imediatamente
óbvias das quais se parte; assim também, o pensamento mesopotâmio do terceiro
milênio não prestou atenção particular a seu fundamento filosófico. Não dispomos de
nenhum mito sumério primitivo – se trata, indubitavelmente, mais do que uma
casualidade – nele se tratam os problemas fundamentais: por que o universo é um
Estado? Como ele chegou a sê-lo? Ao contrário, encontramos que se considerava o
Estado como algo indubitável. Sempre aparece como base geral e aceita de todas
as narrações, porém nunca é o tema principal. O argumento é sempre um detalhe:
algum problema sobre o ajuste de uma característica ou de um grupo de
características individuais dentro da norma universal, problema que o mito levanta e
resolve. Trata-se de uma época que tem resolvido todos os problemas e dedica sua
atenção aos detalhes. Somente muito mais tarde, quando o “Estado cósmico” deixou
de ser, ao parecer, algo evidente por si mesmo, se preocuparam pelos problemas
fundamentais de sua concepção de mundo.
Os problemas levantados e resolvidos pela prolífica e variada literatura
mitológica do terceiro milênio podem resumir-se, em sua maior parte, em três
grupos. Em primeiro lugar, temos os mitos sobre a origem que se referem a origem
de algum ente particular ou de um grupo de entes dentro do cosmo: os deuses, as
plantas e os homens. O desenlace consiste quase sempre em atribuir sua origem a
um nascimento e só raramente a um ato de criação ou a obra de um artesão. O
segundo grupo está formado pelos mitos de organização. Nesses mitos, se pergunta
acerca da causa de alguma característica, ou de certo elemento da ordem existente
no mundo, de como fora atribuída a algum deus uma função ou tarefa, de como se
organizou a agricultura, de como se formaram certos tipos de seres humanos e de
que como chegaram a colocar-se na situação que ocupam. O mito responde
sempre: “se trata de um decreto divino”. Finalmente temos os mitos de avaliação
que, em certo sentido, formam um subgrupo dos mitos de organização. Nesta classe
de mitos se discute o direito que se têm algumas coisas para desempenhar funções
determinadas dentro da ordem do mundo. Neles se comparam o agricultor ao pastor
ou o grão à lã; se indaga os méritos relativos do valioso ouro em contraste com o
cobre, menos valioso, porém, mais útil, etc. Sempre se afirma que as valorizações
implícitas na ordem existente se devem a uma decisão divina. Vamos nos ocupar,
primeiro dos mitos que tratam detalhadamente a origem.

a) Pormenores sobre as origens


Nós só podemos discutir alguns exemplos típicos das narrações sobre as
origens, escolhidos, principalmente, entre os relatos a que nos referimos, para
resumir os tipos mais comuns.
"O mito de Enlil e Ninlil": a Lua e seus irmãos.
"'O mito de Enlil e Ninlil" responde à pergunta: como a lua se originou e como
chegou, essa brilhante divindade celestial, a ter três irmãos, todos ligados ao outro
mundo? O mito nos leva à cidade de Nippur no centro de Babilônia no início dos
tempos, dando à cidade seus honrosos nomes antigos, Duranki e Durgishimmar e
identifica o rio que atravessa por ela, seu desemboque, seu porto, seu manancial e
seu canal com os nomes de Idsalla, Kargeshtinna Karusar, Pulal e Nembirdu,
respectivamente; sendo todos lugares da Nippur histórica e conhecidos dos
ouvintes. Em seguida, o mito identifica os habitantes da cidade. Se trata das
deidades Enlil, Ninlil e Ninshebargunu.

Vivemos na mesma cidade, [em] Duranki,


Vivemos na mesma cidade, [em] Durgishimmar.
Este mesmo rio, o Idsalla, era o seu rio puro,
Este mesmo desembarque, o Kargeshtinna, era seu desembarque
Este mesmo porto, o Karusar, era seu porto,
Este mesmo manancial, o Pulal, era a sua fonte de água doce
Este mesmo canal, o Nunbirdu, foi seu canal cintilante.
Seus campos cultivados não tinham menos do que dez iku cada um
- Se foram medidos-
E o jovem que ali vivia era Enlil;
E a jovem virgem que ali vivia era Ninlil;
E a mãe que ali vivia, era Ninshebargunu.

Ninshebargunu previne sua jovem filha, dizendo que não se banhe sozinha no
canal; pode haver olhos que lhe espiem, ou um jovem que a viole.
Naqueles dias, a mãe que deu-lhe à luz deu suas instruções a jovem virgem,
dizia Ninshebargunu a Ninlil:

Na pura corrente, oh, mulher! Na pura corrente não te banhes!


Na pura corrente, oh, Ninlil! Na pura corrente, oh, mulher, não te banhes!
Oh, Ninlil, não subas a margem do canal Nunbirdu.
Com seus brilhantes olhos o senhor, com seus brilhantes olhos, te espiará;
Com seus brilhantes olhos te espiará, a grande montanha, o pai Enlil
Com seus brilhantes olhos te espiará, o...pastor, o que determina os destinos.
Sem tardar, te abraçará! Te beijará!

Porém, Ninlil é jovem e obstinada.

Acaso escutou as instruções sua mãe lhe deu?


Nesta mesma corrente, a pura, nesta mesma corrente, a pura, se banha a
jovem mulher,
À margem do canal, à margem de Nunbirdu, sobe Ninlil.

Tudo aconteceu conforme temia Ninshebargunu. Enlil viu Ninlil, tratou de


seduzi-la e, quando esta recusou, tomou à força. Assim Ninlil ficou grávida de Sin, o
deus lua.
Porém, o crime de Enlil não passou inadvertido. Ao voltar à cidade, quando
cruzava a praça – devemos imaginar a Kiur, o grande espaço descoberto em que
estava situado o templo – é arrastado e conduzido ante as autoridades. A
assembléia dos deuses, os cinqüenta grandes deuses e os sete cuja opinião
particular era decisiva, o condenaram ao ostracismo, como culpado por estupro. (o
significado da palavra que traduzimos como “estuprador” é algo mais geral: é o que
está sob tabu em respeito a questões sexuais.)

Enlil caminhava por Kiur,


E enquanto Enlil cruzava Kiur
Os cinqüenta grandes deuses
E os sete deuses cuja palavra é decisiva
Determinaram que Enlil fosse detido em Kiur:
Enlil, o estuprador, deve abandonar a cidade;
Este estuprador Nunamnir, deve abandonar a cidade

Em cumprimento da pena que se havia imposto, Enlil abandona Nippur se


dirige para além do território dos vivos, ao sinistro domínio dos mortos.

Enlil obedecendo ao veredicto estabelecido,


Nunamnir obedecendo ao veredicto estabelecido, se foi
E Ninlil o seguiu
Então, Enlil, que não estava disposto a levá-la, abertamente começou
experimentar o medo de que os outros homens que se encontravam pelo
caminho pudessem abusar da moça indefesa como ele havia feito. O primeiro
homem com quem se encontrou fora o guardião da entrada da cidade. Enlil
tomou se lugar e assumiu sua aparência ordenando-lhe que não dissesse
nada a Ninlil se ela o interrogasse.

Enlil gritou ao guardião:


Oh, homem da porta! Oh, homem do ferrolho!
Oh, homem da chave! Oh, homem do ferrolho sagrado!
Tua rainha Ninlil está para chegar
Se perguntar por mim,
Não lhe digas onde estou
Enlil gritou ao guardião:
Oh, homem da porta! Oh homem do ferrolho!
Oh, homem da chave! Oh, homem do ferrolho sagrado!
Tua rainha Ninlil está para chegar
A virgem tão doce, tão bela
Tu não deves, oh, homem, abraçá-la,
Tu não deves, oh, homem, beijá-la!
A Ninlil, tão doce, tão bela
Mostrou-lhe Enlil seu favor, que a olhou como brilhantes olhos

Deste modo, quando Ninlil chega, encontra Enlil disfarçado. Não o reconhece,
acreditando que se trata do guardião. Ele diz o que seu rei, Enlil o recomendou, e
ela por sua vez, o contesta, posto que Enlil é seu rei, ela é uma rainha e que leva o
filho de Enlil, Sin, o deus lua sob seu coração. Enlil, em seu papel de guardião – isto
parece algo pressuposto – simula comover-se profundamente ante a idéia de que
ela possa levar consigo ao domínio Hades o brilhante filho de seu senhor e propõe
unir-se em matrimônio para gerar um filho que pertença ao Hades e tomo o lugar do
filho de seu rei, a brilhante lua.

Deixe que o filho de meu rei vá ao céu


Deixe que meu próprio filho vá ao outro mundo
“Deixe que meu próprio filho vá ao outro mundo no lugar do precioso filho do
meu rei.
Abraça Ninlil e deixa um novo filho, o deus Meslamtaea (considerado,
segundo sabemos, irmão de Sin, a lua). Enlil continua sua viagem até o Hades e
Ninlil volta a segui-lo. Todavia, pára outras duas vezes, a primeira, se encontra com
“o homem do rio de Hades” a quem suplanta em forma análoga e gera ao deus
Ninazu, também deus do outro mundo; a segunda vez encontra o barqueiro que
cruza o rio de Hades. Na figura do barqueiro gera um terceiro deus do outro mundo,
porém como o texto está danificado não é possível identificar seu nome. Aqui – de
maneira demasiadamente brusca para nosso modo de pensar – termina o relato
com um curto hino de louvor a Enlil e Ninlil:

Enlil é senhor, Enlil é rei.


A palavra de Enlil não se pode alterar;
A impetuosa palavra de Enlil não se pode mudar.
Louvada seja a mãe mão Ninlil!
Louvor ao pai Enlil.

Em nossa opinião a narração que acabamos de expor não é agradável.


Mesmo assim sempre é muito perigoso aplicar nossas próprias normas morais e
culturais a povos tão distantes no tempo e no espaço, observa-se nesta história um
ambiente particularmente insalubre, inclusive na forma de expô-lo. Sem embargo,
não devemos esquecer as coisas importantes. Primeiro, a narração corresponde a
uma sociedade na qual a honra de uma mulher era um conceito desconhecido. A
violação de uma mulher solteira constituía uma ofensa ao seu guardião; a violação
de uma mulher casada era uma ofensa contra o seu marido; em ambos os casos se
tratava de uma ofensa à sociedade e suas leis. Em nenhum caso, ao contrário, se
considerava uma ofensa à mulher. Simplesmente, sua pessoa e seus sentimentos
não se levavam em conta. Por esta razão, há um conflito moral implícito quando Enlil
quebra as leis da sociedade, violando Ninlil. Em tudo o que lhe ocorrer depois disso,
é unicamente a honra de Enlil que pode ser afetada e, por isso, evita que ela caia
nas mãos de outros homens. Em segundo lugar, porém mais importante, devemos
ter em conta que Ninlil, cuja situação não pode deixar de nos comover e que parece
desempenhar um papel central, quase não interessa ao narrador. O importante são
os filhos que leva em seu seio – a origem do deus lua e seus três irmãos divinos –
Para ele, Ninlil é unicamente a mãe virtual destes filhos e não um ser humano que
importe por si mesmo. Por este motivo o relato termina de uma maneira que nos
parece brusca. Entretanto, para o narrador o interessante se acaba ao nascer o
último dos filhos divinos. Somos nós que desejamos saber o que aconteceu depois
entre Ninlil e Enlil e gostaríamos de saber se Ninlil fora aceita finalmente como
esposa de Enlil.
Portanto, o mito deve ser entendido e interpretado a partir dos filhos. Por que
o brilhante e celeste deus lua teve três irmãos que são potências das baixas regiões
infernais? Por que Enlil, a tempestade, a força cósmica que pertence ao mundo
superior, teve filhos que pertencem ao outro mundo? O mito responde essas
perguntas em termos psicológicos. Busca a causa na própria natureza de Enlil, cheia
de impulsos obscuros e violentos. É este fator de brutalidade e violência o que faz
quebrar as leis e tabus da sociedade, do mundo superior, tomando Ninlil a força e
concebendo Sin. A conseqüência é o desterro imposto pelas forças que sustentam
este mundo e sua ordem fundamental, ou seja, a assembléia dos deuses.
Os outros filhos de Enlil são gerados depois que ele havia transpassado os
limites do mundo da luz, quando estava a caminho do submundo sob sua sombra
sinistra. Por conseguinte, os filhos que gerados pertencem ao Hades e sua natureza
infernal se confirma nas palavras que pronuncia Enlil para induzir a Ninlil a unir-se a
ele. Porque o poder das palavras de Enlil é tal que faz verdadeiro tudo o que diz. Por
isso, o mito termina com um hino dedicado a palavra de Enlil, palavra que não se
pode alterar nem mudar.
A resposta imediata ao problema levantado no mito: Por que são tão
diferentes os filhos de Enlil, é esta: porque assim ordenou Enlil! Porém o mito não se
dá por satisfeito com a resposta. Confirma depois a resposta imediata: relata os
acontecimentos e situações que fizeram Enlil agir assim. Faz perceber que estes
acontecimentos não foram acidentais, mas que se precipitaram assim pelo contraste
fundamental que existe na própria natureza de Enlil. O mito está enquadrado na
concepção do universo como um Estado. Enlil, Ninlil, Sin e os outros personagens
que aparecem na narrativa são forças da natureza. Contudo, como o autor do mito
considera essas forças como pessoas, como membros de uma sociedade, se
empenha em compreendê-las valendo-se da análise psicológica de seu caráter e as
reações que provocam neles as leis que governam o Estado cósmico.
“O mito de Tilmun”: A interação da terra e da água no cosmo e suas
conseqüências. Um mito de caráter distinto sobre as origens e, em certo sentido,
muito menos adulterado, é o mito de Tilmun.
O mito de Enlil e Ninlil se referia um só feito, ao aparecer anômalo: a
diferença de caráter entre os filhos de Enlil. Investiga sua origem até chegar à
conclusão de que a diferença se deve, em última instância, aos contrastes
existentes na natureza de Enlil. O mito de Tilmun não trata de um problema
semelhante. Empenha-se em encontrar uma coincidência causal entre um grande
número de fenômenos diferentes e em falar sua origem comum em um conflito entre
duas naturezas opostas, a masculina e a feminina. Relata o combate entre as
vontades – pela atração mútua e o antagonismo recíproco que entre elas existe – da
constante mãe terra, Ninhursaga e Enki, deus das águas inconstantes.
A narração começa na ilha de Tilmun – a moderna Bahrein – no Golfo
Pérsico. Esta ilha fora atribuída a Enki e Ninhursaga quando o mundo fora repartido
entre os deuses. Enki, a sugestão de Ninhursaga, providenciou água fresca a ilha e
depois se insinua e, embora Ninhursaga se recuse em princípio, acaba por aceitá-lo.
Dessas relações amorosas entre a terra, Ninhursaga, e a água, Enki, nasce uma
filha, a deusa Ninsar, que é a personificação das plantas. Da mesma maneira que as
águas na inundação anual da Mesopotâmia se retiram e regressam a seu leito antes
que brote o cultivo, assim Enki não permanece ao lado de Ninhursaga, como seu
marido, ela a abandona antes que nasça a deusa das plantas, e tal como a
vegetação se aconchega nas ribeiras dos rios ao final do verão, assim surge Ninsar
depois da margem do rio e se encontra com Enki. Este não vê na deusa das plantas
mais que outra linda jovem. Também acontecem relações amorosas com ela, porém,
não viverá a seu lado. A deusa das plantas dá a luz a uma filha que representa –
segundo podemos inferir – as fibras vegetais que são usadas para tecer. Estas
fibras são obtidas por imersão das plantas até que se desprendam as partes mais
suaves e fiquem apenas as fibras duras. São, pois em certo sentido, filhas das
plantas e da água. A história se repete e nasce assim, a deusa das tintas com as
quais se pintam os tecidos, e ela, por sua vez, gera a deusa dos fios e dos tecidos,
Uttu. Para, em seguida, Ninhursaga se dar conta do caráter inconstante de Enki e
trata de proteger Uttu. Seguindo suas advertências, Uttu se empenha em contrair
matrimônio e exige a Enki que lhe leve pepinos, maçãs e uvas – que parecem fazer
papel dos presentes matrimoniais – para poder ser sua. Enki concorda com a
exigência e quando se apresenta em sua casa portando os presentes, como um
pretendente formal Uttu o recebe jubilosamente. Contudo, o vinho que Enki a faz
beber a deixa embriagada, e assim Enki possui Uttu. Aqui há uma lacuna que
obscurece o desenvolvimento dos acontecimentos. Brotam oito plantas sem que
Ninhursaga tenha anunciado quais seriam seus nomes, naturezas e qualidades.
Então, ela descobre que Enki já havia determinado por si mesmo e as havia comido.
Diante desse desacato definitivo, Ninhursaga é tomada por um ódio feroz e
amaldiçoa o deus das águas. Sua terrível maldição – ao que parece, simboliza o
desaparecimento das águas frescas nas obscuras profundidades e sua morte lenta
quando os mananciais e os rios se secam no verão – perturba profundamente todos
os deuses. Então a raposa aparece e promete que lhes levará a Ninhursaga e
efetivamente, cumpre o prometido. Ninhursaga, finalmente se reconcilia com Enki já
doente e o ajuda a dar a luz a oito divindades, uma para cada parte enferma de seu
corpo. Acredita-se que essas deidades são as plantas que Enki havia comido e que
tinham se alojado em seu corpo. O mito termina atribuindo a essas divindades as
diversas épocas da vida.
Temos dito que este mito tratava de uma coincidência causal entre
fenômenos muito diversos, porém, se trata de uma coincidência causal apenas para
o pensamento criador de mitos. Podemos admitir, ainda que com ressalvas, que as
plantas nascem da união do solo com a água. Contudo, ao final do mito as deidades
que nascem ao ser curado Enlil de suas enfermidades não têm conexão intrínseca
com o solo, que as leva em si, nem com a água. Não obstante seus nomes possuem
elementos que recordam as palavras com que se designam certas partes do corpo,
justamente aquelas que Enki as tinha enfermas. Assim, por exemplo, a deidade A-zi-
um-a pode ser interpretada como “o correto crescimento do braço”, nasceu do braço
de Enki que fora curado. Esta é a conexão. Devemos recordar que no pensamento
criador de mitos, o nome é uma força interna da pessoa que a impulsiona em um
sentido definido. Posto que o nome A-zi-um-a significa “o correto crescimento do
braço”, apesar de que esta divindade não tem nenhuma relação com os braços – até
onde podemos saber- pode levantar-se a pergunta: de quem são os braços que a
deidade faz crescer corretamente? O mito tem uma resposta pronta: de Enki. E se
dá por satisfeito em estabelecer esta conexão sem preocupar-se em demonstrar se
existe uma relação natural mais profunda entre as duas forças, os dois deuses em
questão.
Considerando seus próprios termos e enfocando com a lógica própria do
pensamento criador de mitos, o mito aprofunda nossa compreensão das grades
forças do universo, a terra e a água, porque no universo mesopotâmio compreender
significa lograr uma explicação psicológica. No mito chegamos a conhecer a
profunda antítese em que se embasa a frutífera interação destas forças naturais,
advertimos como culmina em um rompimento aberto que ameaça destruir para
sempre a água, e como ao fim acontece a reconciliação, o restabelecimento da
harmonia no universo. Conhecemos também, seguindo a interação dessas forças,
sua importância como fontes da vida: delas provém as plantas e destas surgem os
fios e tecidos, a elas se devem muitas forças potentes e benéficas para a vida – ou
seja, numerosos deuses menores – Deste modo, se faz inteligível uma porção do
universo.
Antes de seguir em frente, devemos chamar a atenção acerca de um
interessante elemento especulativo que contem este mito na imagem que nos
apresenta o mundo, quando este ainda era jovem. O caráter definitivo e identificável
das coisas é algo que se forma depois. No princípio do universo era somente um
mundo de promessas, um mundo em crescimento, que, todavia não adotava uma
fisionomia definida. Nem os animais, nem os homens, haviam adquirido os costumes
e hábitos que lhes são característicos; ainda não possuíam os traços que os
determinam. Estavam em potencia. O corvo não grasnava, todavia, o leão não
matava, o lobo não se apoderava das ovelhas. A doença e a velhice não existiam
como tais, não haviam adquirido seus sintomas e suas características conhecidas, e,
portanto, não podiam se identificar assim como “doença” ou “velhice”, essas são
formas definidas que assumem depois.
Os primeiros versos do mito estão dirigidos a Enki e Ninhursaga, essas
deidades são o “você” do texto. Depois o relato se desenvolve no estilo de costume:

Quando estavas repartindo a terra virgem com seus deuses companheiros


Tu, a terra de Tilmun era uma região pura;
Quando estavas repartindo a terra virgem com seus deuses companheiros
Tu, a terra de Tilmun era uma região pura.
A terra de Timun era pura, a terra de Tilmun era exuberante
A terra de Tilmun era exuberante, a terra de Tilmun era alegre.
Quando eles se estabeleceram no terreno completamente solitário de Tilmun
No momento, o lugar onde se estabeleceu Enki com sua esposa era um lugar
exuberante, um lugar alegre;
Em Tilmun o corvo não grasnava (como o corvo faz agora),
O galo não cantava (como o faz agora),
O leão não matava,
O lobo não se apoderava das ovelhas,
O cão não sabia o modo de achar onde os cabritos se escondiam
O burro o modo de comer o grão;
O olho doente não dizia “sou um olho doente”
A dor de cabeça não dizia “sou dor de cabeça”
A anciã não dizia “sou anciã”
O ancião não dizia “sou ancião”

b) Pormenores sobre a ordem do mundo

Vamos apresentar somente dois exemplos do seguinte grupo de mitos,


daqueles que se ocupam do estabelecimento de alguma fase da ordem do mundo,
mais que da origem das coisas e das forças. O primeiro deles, desgraçadamente
muito deteriorado, é um mito que relata a maneira como se organizou a economia
natural na Mesopotâmia.
Enki organiza a mansão do mundo. Provavelmente, o princípio deste mito que
foi perdido, relata como Anu e Enlil designaram Enki. No primeiro fragmento legível,
Enki está fazendo uma viagem de inspeção pelo território que compreende a maior
parte do mundo até então conhecido, visitando as grandes unidades administrativas
que nele funcionavam.
Enki pára em todos os países e os abençoa. Graças à suas bênçãos eles
prosperam e confirmam suas funções específicas. Em seguida, organiza todas as
massas d’água e as funções que a água deve desempenhar. Ocupa o curso dos rios
Eufrates e Tigre com águas claras e designa a um deus para que os vigie. Depois,
os ocupa de peixes e juncos. Designa outro intendente divino para cuidar deles.
Mais tarde, regula o mar e escolhe o deus que ocupará o cargo. A continuação, se
dedica aos ventos que trazem as chuvas e propiciam a agricultura. Depois, se ocupa
do arado, abre os sulcos e faz crescer o grão nos campos. Também recorre todos os
celeiros. Dos campos passa às populações e às cidades e designa ao deus-tijolo,
que procura por oleiros, constrói alicerces, levanta muros nomeia o mestre-pedreiro-
divino, Mushdama, como intendente deste ofício. Finalmente organiza a vida
selvagem do deserto sob os cuidados do deus Sumukan, ao mesmo tempo constrói
currais para os animais domésticos colocando-os sob a vigilância do deus-pastor
Dumuzi ou Tammuz. Enki institui assim todas as funções importantes da vida
econômica na Mesopotâmia: as inicia e designa os intendentes divinos que devem
cuidá-las. Como se pode ver, a ordem da natureza se enfocava e se interpretava
como se o universo fosse justamente um grande Estado que funcionava com
regularidade, organizado por um administrador eficaz.
“Enki e Ninmah: a formação das raridades”. A ordem do universo é patente e
obvia para o entendimento humano e, geralmente, parece admirável, pois, o homem
não a considera sempre, em todos os seus detalhes como a ordem que ele teria
preferido. Nem sequer um otimista como o Papa Alexandre, como recordará o leitor,
pode chamá-lo algo mais que “o melhor dos mundos possível” afirmação que está
longe de expressar que o considerava como “o mundo ideal”. Também para o antigo
mesopotâmio, havia coisas mal feitas, ou pelo menos, raras no mundo e ficavam
perplexos ante o feito de que os deuses tinham ordenado o mundo desta maneira.
Nele se oferece uma boa resposta para explicar ao Mesopotâmio, tanto de modo
psicológico como social esse comportamento estranho das forças do universo: os
deuses, apesar de todo o seu poderio, possuem suas fraquezas humanas. Suas
emoções, particularmente, depois de tomar cerveja em demasia, colocavam em
dúvida o seu julgamento, e quando isso ocorria, se viam em perigo de serem
atrapalhados por seu próprio poder, pelas forças terríveis que se encontravam sob
seu controle.
O mito trata como, muitos dos relatos sumérios, de Enki, o deus das águas e
Ninhursaga, a deusa da terra. Neste mito se designa pelo ímpeto de Ninmah, “a
sublime senhora”, nome que utilizaremos para expor a narrativa. Novamente a
começar, nos encontramos à época em que o mundo era jovem:

Nos dias de outrora, dias em que o céu havia sido separado da terra,
Nas noites de outrora, noites em que o céu havia sido separado da
terra.

Naqueles remotos dias ainda os próprios deuses tinham que trabalhar para
viver. Todos os deuses tinham que usar a foice, a picareta e outros instrumentos
agrícolas, tinham que escavar canais e, em geral se ganhava o pão com o suor de
seus rostos. Coisa que os aborrecia. O mais sábio, e de amplo entendimento, Enki,
jazia em sono profundo, sem despertar nunca. Os deuses se voltaram a ele
querendo penalizá-lo, e sua mãe Nammu, a deusa das águas profundas, levou suas
queixas ante seu filho adormecido. Não advogou em vão. Enki ordenou a Nammu
que se dispusera a dar nascimento “ao barro que se encontra por cima do Apsu”
(significa debaixo da terra, sobre as profundas águas que correm sob a terra, quase
idênticas a deusa Nammu). Este barro seria separado de Nammu da mesma
maneira que um filho se separa das entranhas de sua mãe. A deusa Ninmah, a terra
estaria em cima dela – a terra se encontra, desde logo, acima das águas
subterrâneas – e a ajudaria a dar a luz, assistida por outras oito deusas.
Devemos supor que o barro que se encontra acima do Apsu nasceu assim e
que ele formou o homem. Sem embargo, o texto está deteriorado nesta passagem e
esta interpretação do relato nos impede saber com certeza como se formou a
humanidade. Quando o texto volta a ser legível, Enki prepara uma festa em honra de
Ninmah e de sua mãe, provavelmente para celebrar a distribuição. Todos os
grandes deuses são convidados, que louvavam Enki por seu talento, pois, quando a
festa estava a terminar Ninmah faz uma estranha afirmação:
Como Enki e Ninmah beberam muita cerveja, seus corações se regozijaram,
e Ninmah perguntou a Enki:

De fato, o quão bom ou quão ruim é o corpo do homem?


Impulsionada pelo meu coração, eu posso fazer seu destino bom ou
posso fazê-lo mau.

Enki aceita desde logo o desafio, dizendo-lhe: “De fato, o destino que tens
pensado, seja bom ou ruim, serei capaz de equilibrá-lo?”
Então, Ninmah pega o barro acima do Apsu e modela a seu capricho vários
seres humanos com algum defeito corporal: um homem que não pode conter a
urina, uma mulher estéril, um ser que não tem órgãos sexuais masculinos nem
femininos. No total, seis desses seres, porém Enki encontra, para cada um deles um
destino específico. A todos encontra um lugar na sociedade, de maneira que
possam ganhar a vida. Enki destina ao ser que não possui órgãos masculinos ou
femininos, provavelmente um eunuco, o serviço ao rei; coloca a mulher estéril entre
as damas de companhia da rainha, etc. Dificilmente se pode duvidar de que esses
seis caprichos formados por Ninmah correspondiam grupos definidos dentro da
sociedade suméria que, por uma ou outra razão diferiam corporalmente dos demais
seres humanos e que, portanto, representavam um problema.
Porém, então, a discussão se inflama. Enki tem demonstrado que é um
adversário cuidadoso, o que a derrotada Ninmah é forçada a reconhecer. Agora o
propõe que troquem os papéis. Ele formará novas criaturas e ela terá que gerir o
que será feito com elas, assim, Enki põe mãos à obra. Não sabemos qual foi sua
primeira criação, pois o texto está avariado neste local, porém temos notícias do
segundo, um ser chamado U-um-ul, “meu dia é remoto”, ou seja, um homem tão
velho que o dia de seu nascimento se perde no passado. Os olhos desse infeliz
estão enfermos, sua vida é uma ruína, o acometem dores no fígado, no coração,
suas mãos tremem, para não mencionar mais algumas das calamidades que o
aflige. Enki apresenta essa criatura a Ninmah, dizendo-lhe:

Eu determinei o destino dos homens que tu formaste, de maneira que


puderam subsistir.
Agora determine um destino para o homem que formei de maneira
que ele possa subsistir.

Contudo, isso se encontra completamente fora do alcance de Ninmah.


Aproxima-se da criatura e o faz uma pergunta, mas, o homem não pode respondê-
la; o oferece um pedaço de pão que está a comer, porém, o homem está tão débil
que não pode levantar a mão para pega-lo; etc. Ninmah, irritada, censura Enki: a
criatura que criou não é um homem vivente. Enki somente responde, em tom de
insulto, que ele foi capaz de cumprir o desafio encontrando uma maneira de fazer
com que essas criaturas pudessem viver.
Outro dano no texto nos impede seguir os detalhes desta contenda. Quando
podemos voltar a ler, a disputa alcançou seu ponto culminante. Por meio do
segundo engendro de Enki, introduziram-se no mundo a enfermidade e as outras
misérias que acompanham a velhice. É indubitável que sua primeira criação que fora
perdida no texto, enviou ao mundo uma carga semelhante de males. Ninmah não
pode fazer nada com elas. Não foi capaz de incorporá-las na ordem do mundo
encontrando um lugar em que fossem úteis na sociedade. Permaneceram aqui como
um mal irremediável. É possível que os efeitos produzidos por estas criaturas
(velhice, e outros males que possuía a criatura desconhecida) sobre o território e a
cidade de Ninmah a tenham desesperado, mas também é possível que, todavia,
sofrera novas humilhações por parte de Enki. Ninmah se lamenta:

Minha cidade está destruída, minha casa arruinada, meus filhos foram
feitos prisioneiros
Se for obrigada a deixar Eku, sou fugitiva? Porém, ainda não escapo
ao alcance de sua mão.

Então, cega pelo desespero, o amaldiçoou: “Em diante não habitarás o céu,
nem morarás na terra”, assim, confina o deus das águas tranqüilas às escuras
regiões subterrâneas. Esta maldição nos recorda aquela que o mito de Tilmun
lançou a Enki e, ao que parece ,tenta explicar a mesma característica misteriosa do
universo. Por que se desterram as benéficas águas e as obriga a viver nas sobras
eternas sob a Terra? E ali para encontrá-las é necessário fazer uma escavação
suficientemente profunda. Enki já não pode fazer nada uma vez que foi
amaldiçoado, pois, a maldição tem o apoio absoluto da força decisiva que é inerente
ao mandado de um dos grandes deuses. Assim, desse Ninmah: “Um mandado
pronunciado pela sua boca, quem pode mudá-lo?
Sem embargo, parece possível que essa sentença terrível havia sido mitigada
e que, como o mito de Tilmun, se havia produzido uma reconciliação. Esse ponto do
texto está muito fragmentado e é difícil de ler, de maneira que não podemos saber
com certeza. Não obstante, o fato de que o mito, todavia, prossiga em certa
extensão demonstra que a maldição lançada por Ninmah não foi o resultado final e
decisivo do conflito.
O mito que retratamos trata de explicar algumas características misteriosas
que existem na ordem do mundo: os curiosos grupos anormais – eunucos,
hieródulos, etc. – que formavam parte da sociedade mesopotâmia; os desagradáveis
males, aparentemente desnecessários, que acompanhavam a velhice; etc. Ao
interpretar as características do mito, não só as explica, as julga. Em realidade, não
pertencem à ordem do mundo, não formam parte do plano ordenado. Foram
produzidos em um momento de irresponsabilidade, os deuses estavam ébrios e
sucumbiram momentaneamente à inveja e ao desejo de ostentação. Igualmente, o
mito examina e atribui valores às distintas características de um modo diferente.
Enquanto que a caprichosa conduta de Ninmah resulta inocente e seus engendros
puderam ser incorporados à ordem social pelo engenhoso Enki, se perde toda a
esperança no momento em que Enki dedica seu cérebro lúcido à produção de males
irreparáveis.
Com esta estimação das características cuja origem descreve, o mito
estabelece uma espécie de link que o conecta, ou seja, com o terceiro grupo de
mitos, aqueles cujo tema principal é a avaliação das características da ordem no
mundo.

c) Pormenores sobre a avaliação

Alguns dos mitos pertencentes a este grupo adotam quase a mesma forma
dos hinos de louvor. Ocupam-se de um único elemento do universo –, uma deidade,
um objeto, ou qualquer coisa existente – e enaltece suas qualidades, fazendo uma
minuciosa análise de todas as suas características. Entre eles, temos. Por exemplo,
o “Mito da picareta” no qual relata como Enlil criou este implemento tão
indispensável e se explica suas qualidades e utilidades. Em contrapartida, outros
mitos desse mesmo grupo apresentam a dois dos entes do universo e tratam de
equilibrá-los entre si, fazendo um esforço racional por compreender e justificar as
posições que ocupam dentro da ordem existente. Geralmente, esses mitos adotam a
forma de uma disputa entre os dois elementos a que se reporta, na qual cada um
deles exalta suas próprias virtudes até que a discussão é resolvida por algum deus.
Valendo-se de uma única passagem podemos ilustrar o provérbio. Utilizaremos um
mito no qual o cobre, considerado útil, porém, não muito valioso, disputa com a prata
o direito que tem para formar parte da corte do rei. O cobre argumenta a inutilidade
da prata:
Quando o tempo está frio, não podes formar um machado para partir
lenha;
Quando chega a época da colheita, não podes formar uma foice que
possa cortar o grão.
Portanto, o homem não se interessará por ti...

Em uma região como a Mesopotâmia, onde as primeiras atividades


econômicas eram o pastoril e o cultivo da terra, é natural que esses meios de vida
fossem os termos mais usados para comparar e para estabelecer um juízo
estimativo. Qual é o melhor, o mais importante, o mais útil? Têm-se conservado pelo
menos três mitos que tratam desse tema. Um deles se refere à origem dos rebanhos
e dos grãos desde o princípio dos tempos, quando somente os deuses os
desfrutavam e prossegue narrando uma larga disputa entre eles acerca de quem
deveria ter a prioridade. Outro mito relata a discussão surgida entre os irmãos
divinos, Enten e Emesh, filhos de Enlil que, ao que parece, personificavam o
lavrador e o pastor. Enlil decide a disputa a favor do lavrador. Contudo, a
apresentação mais animada do assunto está em um mito chamado “O namoro de
Inanna”
“O namoro de Inanna”: os méritos do pastor e os méritos do lavrador. Este
mito nos fala de como o divino lavrador Enkimdu e o divino pastor Dumizi aspiravam
ao mesmo tempo a mão da deusa Inanna, a quem não se considera neste relato
como a esposa de Anu e rainha do céu, mas simplesmente, como uma jovem núbil.
Seu irmão e guardião, o deus-sol Utu, se inclina a favor do pastor e trata de influir
nesse sentido sua irmã.

Seu irmão, o guerreiro, o herói, Utu, disse a sagrada Inanna:


“O pastor é quem deve casar-se contigo, irmã.
Por que, oh, virgem Inanna, não o queres?
Sua manteiga é boa, seu leite é bom;
Tudo o que o pastor produz é esplêndido.
Dumizi é quem deve casar-se contigo, Inanna.”

Porém, Inanna não escuta as palavras do irmão, e toma uma decisão. Ela
escolhe o lavrador.
Nunca me casarei com o pastor;
Nunca me vestirei com suas franjas;
Nunca me tocariam suas mais finas lãs.
Eu, a virgem, quero o lavrador,
E somente com ele me casarei;
O lavrador é quem faz crescer as favas
O lavrador é quem faz crescer o grão.

Assim, a situação favorece o lavrador e faz que o pobre pastor se sinta


desesperado. Não somente tinha perdido a mulher que ama como também é
repudiado por ela em favor de um lavrador e isto fere profundamente seu
orgulho.
Portanto começa a comparar-se com o lavrador. Cada uma das coisas
que o lavrador produz, o pastor encontra algum de seus próprios produtos e
os equipara valor:

Em que leva vantagem o lavrador? Um lavrador a mim!


Um lavrador a mim!
O lavrador, Enkimdu, o homem do dique e do canal,
em que leva vantagem?
Se me desse seu pano negro, eu daria ao lavrador minha lã negra;
Se me desse seu pano branco, eu daria ao lavrador minha lã branca;
Se me derrama sua melhor cerveja, eu derramo meu melhor leite amarelo
como resposta.

O mito segue citando todos os produtos do pastor e do lavrador, o leite se


equipara a cerveja, o queijo com as leguminosas, a coalhada com mel a uma fatia
de pão. E assim, então o pastor teria um excedente de manteiga e leite.
A situação descrita pelo pastor é uma típica discussão oriental sobre dotes.
Quem dá mais é o melhor homem. Não deve nada a ninguém, o outro é seu
devedor. O pastor continua seu monólogo e vai se estimando cada vez mais até se
sentir valioso. Com toda coragem leva um rebanho a mesma margem do rio, no
coração do campo de cultivo. Logo vê o lavrador e Inanna e, envergonhado de sua
conduta, volta rapidamente sobre seus passos e foge para o deserto. Contudo,
Enkimdu e Inanna vão atrás dele e – se nossa interpretação estiver correta – Inanna
lhe diz:
Por que devo competir contigo, oh, pastor, contigo, pastor, contigo?
Tuas ovelhas estão em liberdade para devorar o pasto da margem;
Tuas ovelhas estão em liberdade de pastar às barbas de meu campo.
Podem comer grãos nos campos de Uruk;
Teus cordeiros e teus cabritos podem beber água em meu canal de
Adab.

Ainda que tenha escolhido o lavrador como marido, não sente reprovação pelo
pastor:
Embora você, um pastor – não pode [para ser meu marido]
Converter-se em pastor, a classe de homem que prefiro,
Não pode converter-se em meu amigo
O lavrador Enkimdu, em meu amigo o lavrador,
Levarei-te trigo, levarei-te favas...

Deste modo, a narrativa termina em uma reconciliação. O relato compara o


lavrador com o pastor e a preferência é dada ao lavrador, pois, a deusa se casa com
ele. Pois, se estima que ao colocar o pastor em uma posição inferior ao lavrador é
simplesmente questão de preferência pessoal e, nesse caso, do capricho de uma
jovem. Na realidade, um é tão bom quanto o outro e ambos são igualmente úteis e
necessários na sociedade: o que um produz se equipara com os produtos do outro.
Se há rivalidade entre eles, não deve haver inimizade. O lavrador deve saber que
Inanna oferece ao pastor, de bom grado, as barbas de seu campo para os rebanhos
e que permite que suas ovelhas bebam nos canais do lavrador. Tanto o lavrador
como o pastor devem tratar de viver em harmonia.
Com isso damos por terminado nossa análise do material mitológico mais
antigo da Mesopotâmia. A maior parte deste material chegou até nós através de
cópias escritas de finais do terceiro milênio e durante a primeira metade do segundo.
Porém é indubitável que esses mitos sejam muito mais antigos. Isto mostra com toda
clareza no sentido de que sempre constituem resposta a questões de detalhe. Neles
se tratam diversos problemas como a origem, o lugar que a corresponde e o valor
relativo de certas entidades específicas ou grupos de entidades dentro do cosmo.
Todos eles coincidem, sem embargo, na concepção do mundo em que se baseiam.
Seu cosmo é um Estado, uma organização de indivíduos. Os mitos coincidem
também na explicação sobre os problemas apresentados. Trata-se de uma
explicação de caráter psicológico: a chave para entender as forças que existem na
natureza e a compreensão de suas características, ou seja, e a mesma que serve
para explicar e entender os homens.

Reflexões sobre a concepção de mundo nos mitos posteriores “Enuma elis”

Mesmo quando a concepção do universo como um Estado é o que constitui o


fundo de todos esses relatos – é, justamente, a base sobre a qual se desenvolvem –
quase não se faz nenhum esforço por representá-la como um todo. Uma
cosmogonia propriamente dita que trate os problemas fundamentais do cosmo
segundo a visão do homem mesopotâmio não aparece até a primeira metade do
segundo milênio a.C.. Esta cosmogonia que se ocupa da origem e da ordem do
universo adota a forma de uma grandiosa composição poética chamada Enuma Elis:
ao topo. Tem um argumento largo e complicado e está escrita em acádio, ao que
parece, em acádio de meados do segundo milênio a.C. Nesta época se deu ao
poema, provavelmente, a forma em que agora o conhecemos. Sua personagem
central é Marduk, o deus da Babilônia, em conformidade com o fato de que a
Babilônia era o centro político e cultural do mundo mesopotâmio. Posteriormente, no
primeiro milênio, quando a Assíria se transformou na potência dominante do Oriente
Próximo, os escribas assírios substituíram Marduk pelo seu próprio deus Assur,
fazendo algumas modificações no relato, para adaptá-lo ao novo herói. Conhecemos
esta versão posterior por algumas cópias do mito encontradas na Assíria.
A substituição de Marduk por Assur – como herói e personagem central da
narrativa – não foi, seguramente, nem a única nem a primeira. É indubitável que
antes da versão que conhecemos, na que Marduk é o herói, existiram outras mais
antigas, em que a personagem central era Enlil de Nippur. Esta forma original pode
deduzir-se por muitos indícios do próprio mito. O mais importante é o fato de que
Enlil não figura como personagem, apesar de ser a segunda deidade mesopotâmia,
e todos os outros deuses importantes desempenham algum papel. Além disso, a
função que se atribui a Marduk não se encaixa no caráter desse deus.
Originalmente, Marduk era uma deidade agrícola, ou talvez solar; contudo o
personagem central de Enuma elis é um deus da tempestade como era Enlil. Com
efeito, uma das proezas que o relato atribui a Marduk – a separação do céu e da
terra – é precisamente a façanha que atribui a Enlil em outros mitos, com todo
direito, já que é o vento situado entre o céu e a terra, o que os separa como as
partes de uma pele inflamada. Em conseqüência, parece que o herói original da
narrativa era Enlil, porém, fora substituído por Marduk ao se escrever a versão mais
antiga, conhecida em meados do segundo milênio. É impossível saber a que época
remonta originalmente o mito. Entretanto, contém temas e idéias que indicam o
terceiro milênio a. C.

a) Elementos originais do cosmo


Passemos agora ao conteúdo do mito. Este se divide em duas partes, a
primeira trata da origem das características fundamentais do universo e a segunda
se refere ao estabelecimento da ordem atual no mundo. Não há, contudo, uma
divisão tangente entre ambos. As ações se desenrolam na segunda parte do mito, já
se anunciam e se entrelaçam com os acontecimentos que relata a primeira parte.
O poema começa por uma descrição do universo como era no princípio:

Quando, todavia, não se falava de um céu acima


E não se pensava em um nome de um solo firme abaixo;
Quando unicamente o primordial Apsu, seu criador, e Mummu e Tiamat – a
que deu nascimento a todos eles – mesclavam-se suas águas em uma;
Quando não se havia criado nenhum pântano e não podia falar-se em ilha
alguma;
Quando nenhum deus havia surgido,
Nem havia recebido nome, nem tinha determinado seu destino,
Então foi quando se formaram os deuses em seu interior.

Desta maneira, se descreve a etapa primitiva do universo como um caos


aquoso. Tal caos compreende três elementos entrelaçados: Apsu, que representa as
águas doces, Tiamat, que representa o mar, e Mummu, ao que podemos identificar
com certeza, pois possivelmente representa as nuvens e a névoa. Estas três classes
de água estavam mescladas em uma grande massa indefinida. Não tinham ainda
idéia do que seria um céu acima ou uma terra firme abaixo; tudo era água, não se
havia formado um só pântano, muito menos uma ilha; e nem ao menos existiam os
deuses.
Então, no seio desse caos aquoso, nasceram dois deuses: Lahmu e Lahamu.
O texto insinua claramente que foram criados por Apsu, as águas doces e
concebidos no corpo de Tiamat, o mar. Ao que parece, representam o sedimento
que se havia formado nas águas. Lahmu e Lahamu criaram outro casal divino,
Anshar e kishar, dois aspectos do “horizonte”. O autor do mito considera o horizonte,
ao que parece, tanto masculino como feminino: como um círculo (masculino) que
circunscreve o céu e como um círculo (feminino) que circunscreve a terra.
Anshar e Kishar criam Anu, o deus do céu; e depois Nudimmut. Este é outro
nome de Ea ou Enki, o deus das águas doces. Porém, aqui se considera seu
aspecto mais antigo, como representante de própria terra; é En-ki, o senhor da terra.
Dizia-se que Anshar havia feito Anu semelhante a si mesmo, e que o céu se parece
ao horizonte, pois, também é redondo. Também se dizia que Anu havia feito
Nudimmut, a terra, a sua semelhança; porque, para os mesopotâmios, a terra teria a
forma de um disco ou de uma tigela:

Nasceram Lahmu e Lahamu e lhes fora dado um nome;


Aumentando, através da idade, seu grande tamanho;
Então foram criados Anshar e kishar, que os superaram;
Vivendo muitos dias, através dos anos.
Seu filho, fora Anu, igual aos seus pais.
Anshar fez seu primogênito, Anu, a sua semelhança,
Anu, por sua vez, fez a sua semelhança Nudimmut.
Nudimmut superou os deuses, seus pais;
Com ouvidos muito abertos, sábio, dotado de grande força.
Mais poderoso que o pai de seu pai, Anshar,
Não teve igual entre os deuses.

As especulações que encontramos aqui, e que, segundo acreditavam os


mesopotâmios, serviam para penetrar no mistério da origem do universo, se fundam,
evidentemente, na observação real da formação das novas terras na Mesopotâmia.
Trata-se de um terreno de aluvião, que fora formado no transcurso de milhares de
anos pelos sedimentos carregados pelos grandes rios, Eufrates e Tigre, que se
depositavam em suas desembocaduras. Esse processo, todavia contínuo: e dia a
dia, ano a ano, o território cresce lentamente adentrando o Golfo Pérsico. Esta
imagem – as águas doces dos rios que se unem e se mesclam com as águas
salgadas do mar, enquanto que as nuvens envolvem o todo – que se tem projetado
desde o início dos tempos. Aqui existe, todavia, o caos aquoso primordial, no qual
Apsu, as águas doces, se mescla com Tiamat, o mar; e o sedimento – representado
pelos primeiros deuses, Lahmu e Lahamu – se separa das águas e se fazem
visíveis, ao se depositarem.
Lahmu e Lahamu criaram Anshar e Kishar, ou seja, o lodo primordial nascido
das águas salgadas e das águas doces, no caos aquoso original, foi depositado
dentro de uma circunferência, um anel, e de Kishar, sua parte inferior, nasceram
com o transcurso de dias e anos de depósitos, Anu, o céu e Nudimmut-Enki, a terra.
Segundo Enuma Elis, primeiro se formou Anu, o céu, e este depois criou Nudimmut,
a terra.
Com isso se rompe a progressão por casais – Lahmu e Lahamu, Anshar e
Kishar – depois deles esperávamos uma terceira, Na e Ki, “o céu e a terra”, porém,
nós encontramos com Anu e a continuação com Nudimmu. Essa irregularidade nos
faz pensar que se trata de uma alteração do relato original introduzida, talvez pelo
redator que fez de Marduk de Babilônia o herói do mito. Possivelmente tratou de
acentuar o aspecto masculino da terra, Ea-Enki, já que na mitologia babilônica, se
considerava como o pai de Marduk. Pode ser, portanto, que Anshar e Kishar tinham
seguido, originalmente, o casal de deuses Na e Ki “o céu e a terra”. Esta conjectura
se apóia em outra variante do relato que se conservou na grande relação
mesopotâmia com os deuses, conhecida pelo nome de An-Anum. Nela encontramos
uma versão mais primitiva, menos desfigurada, da especulação: o céu e a terra
nasceram do horizonte, da união do casal formado por Anshar e Kishar. Ao que
parece se considerava o céu e a terra como dois enormes discos, formados pelo
limo que se deposita continuamente no anel do horizonte, depois de que havia vivido
“muito dias, através dos anos” Mais adiante, o vento obrigou estes discos a separar-
se, soprando, cujo lado inferior é a terra e o superior é o céu.
Deste modo, em sua especulação acerca da origem do mundo, os
mesopotâmios tomaram como ponto de partida as coisas que conheciam e que
podiam observar na geologia de seu próprio território. Sua terra, a Mesopotâmia,
está constituída pelo lodo que se deposita no lugar em que as águas doces se
reúnem com a água salgada do mar; o céu que, ao que parece, está formado de
matéria sólida, como a terra, deve ter sido depositado da mesma maneira para ser
elevado, depois, a sua posição atual.

b) Fundamentos da ordem no mundo

Da mesma maneira que os aspectos observados na relação com a origem


física de seu próprio território constituem a base das especulações do mesopotâmio
em torno da origem das características fundamentais do universo, como também, de
certo modo, seus conhecimentos sobre a origem de sua própria organização política
servem de fundamento a suas especulações acerca da origem e organização do
universo. A origem da ordem no mundo é um prolongado conflito entre dois
princípios antagônicos, as forças que lavam a atividade e as que conduzem a
inatividade. Neste conflito, a primeira vitória sobre a inatividade se logra por meio da
autoridade; a segunda, a vitória decisiva, é alcançada pela autoridade combinada
com a força. A transição reflete, por um lado, o desenvolvimento histórico da
organização social primitiva, na qual o costume e a autoridade, sozinhas, sem apoio
da força são capazes de assegurar a ação conjunta da sociedade, até chegar a uma
organização de um verdadeiro Estado, no qual o governante controla tanto a
autoridade como a força, para assegurar a necessária ação conjunta. Por outro, lado
reflete também o procedimento normal dentro de um Estado organizado, em que a
autoridade é o único e primeiro meio empregado, enquanto que a força, a coerção
física, se emprega somente quando a autoridade não resulta suficiente para produzir
o comportamento desejado.
Voltemos a Enuma elis.Com o nascimento dos deuses no seio do caos, surge
no mundo um novo princípio: o movimento, a atividade. Os novos seres são muito
diferentes das forças do caos, que representam o repouso e a inatividade. Seguindo
um traço peculiar do pensamento criador de mitos, este conflito ideal entre a
atividade e a inatividade adquire uma forma concreta em uma situação peculiar: os
deuses se reúnem a dançar.
Os divinos companheiros se reuniram em multidão e
Surgiram turbulentos de todas as partes, perturbando a Tiamat
Perturbando as entranhas de Tiamat,
Dançando em seu seio onde se estabeleceu o céu,
Apsu não pode dominar seu clamor,
E Tiamat guardava silêncio...
Porém detestava seus atos
E não pareciam suas maneiras...

O conflito se manifestou. A primeira potência do caos que rompe abertamente


com os deuses e seus novos costumes é o Apsu.

Então, Apsu, o criador dos grandes deuses,


Chamou a seu servo, Mummu, dizendo-lhe:
“Mummu, meu servo, que alegra meu coração;
Vamos até Tiamat”.
Foram, e sentados diante de Tiamat,
Pediram-lhe conselho acerca dos deuses, seus primogênitos.
Apsu começou a falar,
Dizendo a pura Tiamat:
“Seus costumes me parecem detestáveis.
Não me é possível descansar ao dia, nem dormir a noite.
Acabarei com seus costumes, sim, os destruirei,
Para que a paz possa reinar de novo e possamos dormir.”

Estas notícias provocaram a consternação dos deuses. Davam voltas sem


sentido e acabaram parando, guardando o silêncio que produz o desespero.
Somente um, o sábio Ea-Enki, permanece imperturbável ante esta situação.

A inteligência suprema, o hábil e engenhoso,


Ea, o que conhece todas as coisas, conheceu seu plano.
Ele formou, estabeleceu contra isso
A configuração do universo,
E com habilidade fez seu sagrado encantamento todo poderoso.
Pronunciando-o, o lançou sobre a água [sobre o Apsu],
Derramando sobre ele um sono tranqüilo, para que dormisse tranquilamente.

As águas sobre as quais pronuncia Ea seu encantamento, sua “configuração


do universo” são Apsu. Este sucumbe ao mandado mágico e cai em profundo sono.
Então, Ea lhe remove a coroa e se envolve em seu manto de raios ardentes. Mata
Apsu e estabelece sua morada acima dele. Depois, aprisiona Mummu, lhe passando
uma corda pelo nariz agarrando-o pelo outro cabo da corda.
O significado de tudo isso não é, talvez, evidente, mas, pode ser entendido. O
meio que Ea emprega para submeter Apsu é um encantamento, ou seja, uma
palavra poderosa, um mandado autoritário. Pois, os mesopotâmios consideravam a
autoridade como um poder inerente aos mandados, um poder que fazia com que os
mandados fossem obedecidos, realizando-se, convertendo-se em algo verdadeiro. A
autoridade, o poder do mandado de Ea fora suficiente para criar a situação que o
mandado expressa. A natureza desta situação se indica ao fala e da “configuração
do universo”: isto é agora o que obtém. Ea ordenou que as coisas fossem como são
agora, e assim foi. Apsu, que representa as águas doces, submergiu em um sono da
morte, que mantêm as águas doces e imóveis no subterrâneo. Acima delas Ea
estabeleceu sua morada – ou seja, a terra que se apóia sobre o Apsu –. Ea tem em
suas mãos a corda que passa pelo nariz do cativo, representando provavelmente –
se nossa interpretação dessa difícil imagem for correta – as nuvens baixas que
flutuam sobre a terra. Porém, qualquer que seja a interpretação desses detalhes, é
importante notar que esta primeira grande vitória dos deuses sobre as potencias do
caos, das forças da atividade sobre as forças da inatividade, se logra por meio da
autoridade, sem recorrer a força física. Conquista-se através da autoridade implícita
em um mandado, da magia de um encantamento. Também é interessante observar
que se alcança pelo poder de um só deus, que trabalha por iniciativa própria, e não
pelo esforço da comunidade dos deuses em conjunto. O mito se desenvolve em um
nível primitivo de organização social, em que os perigos que pairam sobre a
comunidade são destruídos pela ação isolada de um ou de vários indivíduos
poderosos e hábeis e não pela ação conjunta da comunidade inteira.
Voltando ao relato, na morada estabelecida por Ea, acima do Apsu, nasce
Marduk, o verdadeiro herói do mito, segundo a versão que chegou até nós; porém é
indubitável que em outras versões mais antigas, o que se relatava nesta conjuntura
era o nascimento de Enlil. O texto o descreve deste modo:

De estrutura grandiosa, com aparência relampejante,


E um porte viril, era um líder nato.
Ea, seu pai, se regozijou ao vê-lo,
Alegrando-se e deleitando-se em seu coração.
O concedeu, sim , lhe assegurou uma dupla divindade
De tamanho avantajado, imponente em tudo,
Mais astuto do que se pudera supor,
Incompreensível, terrível, não devia ser visto.
Com quatro olhos e quatro ouvidos;
Lançava fogo cada vez que seus lábios se moviam.

Contudo, enquanto Marduk cresce entre os deuses, surgem novos perigos


por parte das forças do caos. Estas censuram Tiamat dizendo-lhe:

Quando mataram Apsu, teu marido, não saiu em sua defesa,


Permaneceu quieta.

Por último, logram a inflamar-lhe o ânimo. Aos pouco os deuses se interam de


que as forças do caos estão unidas para combatê-los:

Com raiva, fazendo planos, sem descansar de dia nem de noite,


estavam dispostos a combater,
Raivosos como leões.
Reunidos em concílio, planejaram o ataque.
A mãe, Hubur – criadora de todas as formas – lhes ajudou com armas
invencíveis, criando serpentes monstruosas, com dentes afiados, com
garras cruéis;
Cujo corpo estava cheio de veneno ao invés de sangue.
Há revestidos de terror dragões ferozes,
Coroados de chamas feitos à semelhança dos deuses,
De modo que qualquer um que os visse perecia de medo,
E eles, com os corpos erguidos, não podiam voltar

À cabeça desse formidável exército, Tiamat, coloca seu segundo marido,


Kingu. O concede plena autoridade e o confia as “tabelas do destino”, que
simbolizam o supremo poder do universo. Suas forças se alinham em ordem de
batalha para atacar os deuses. O sempre bem informado Ea recebe a primeira
notícia de tudo o que estava acontecendo. A princípio – é uma reação tipicamente
primitiva – fica completamente atordoado e somente depois de certo tempo pode
recuperar-se e tomar alguma providencia.

Ea escutou esses preparativos,


Guardando profundo silêncio, permaneceu mudo.
Então, havendo examinado profundamente e tranqüilizado seu interior,
Levantou-se e foi ao seu pai Anshar,
Foi ante Ashar, seu pai, quem o criou.
E relatou tudo o que Tiamat havia tramado.

Anshar é também presa da preocupação. Em sua angústia golpeia seus


músculos e morde os lábios. Sua única solução é enviar Ea contra Tiamat. Recorda
Ea sobre sua vitória sobre o Apsu e Mummu e, ao que parece, o aconselha que
utilize agora os mesmos meios. Contudo, nesta ocasião, Ea não tem êxito. A palavra
de um só indivíduo, a poderosa palavra de Ea, não pode enfrentar Tiamat e exército.
Então Anshar volta até Anu, pedindo-lhe que vá a sua ajuda. Anu conta
certamente, com uma autoridade ainda maior do que a de Ea, e disse:

Se ela não obedece ao seu mandado,


Digo nosso mandado para que se acalme.
Se não é possível superar Tiamat com a autoridade de nenhum deus,
isoladamente, se deve usar contra ela o mandado de todos os deuses, respaldado
pó sua autoridade conjugada. Entretanto, também isso falha; Anu é incapaz de
conter Tiamat e, voltando a Anshar, lhe pede que o liberte da tarefa. A autoridade
sozinha assim sendo o máximo que os deuses puderam dar, não foi o suficiente. Os
deuses agora enfrentam um perigo mais grave. Anshar que dirigiu as coisas até
agora, guarda silêncio.

Anshar ficou em silêncio, olhando firmemente o solo,


Balançou a cabeça, fez sinal a Ea.
Reunidos em assembléia, todos os Anunnaki,
Com lábis cerrados, se sentaram silenciosamente.

Ao final, Anshar, erguendo-se em toda sua majestade, propõe que o filho de


Ea, o jovem Marduk, “cuja força é grande” defenda seus pais, os deuses. Ea põe em
conhecimento de Marduk esta proposição e este aceita imediatamente, embora com
uma condição:

Se me constituo em vosso defensor,


Vencendo Tiamat e salvando-os ,
Quero que se reúnam e proclamem meu destino supremo.
Reúnam-se com júbilo em Ubshuukkinna;
E concedam-me que, assim como vocês, possa determinar o destino
Com a palavra da minha boca,
De maneira que o que eu decida não possa ser alterado,
E o mandado que eu pronuncie não possa voltar a mim e não se possa
mudar.

Marduk é um deus jovem. Possui muitas forças, está em plena juventude e


tem completa confiança em sair triunfante de um combate físico. Porém, como é
jovem, carece de influência. Por outro lado, pede que lhe seja concedido autoridade
igual a de seus poderosos superiores. Aparece aqui, um enlace novo de potencias
ante o desconhecido: sua exigência anuncia a aparição do Estado, com sua união
da força com a autoridade na pessoa do rei.
Tal como pediu, os deuses se reúnem em Ubshuukkinna, sede da assembléia
em Nippur. Conforme vão chegando, vão encontrando amigos e parentes, que
também vieram participar da assembléia. Dentro do sagrado tribunal, os deuses
celebram um suntuoso banquete; bem preparado, gratos pelos vinhos e licores
fortes, seu estado de ânimo é muito diferente, se sentem felizes e desaparecem
seus temores e inquietudes, de maneira que a assembléia está em disposição de
ocupar-se já dos assuntos mais graves.

Estalaram a língua e sentaram-se para um banquete;


Comeram e beberam,
As bebidas doces dissiparam seus medos.
Cantavam alegremente, tomaram vinhos fortes;
Livraram-se de preocupações por completo, regozijaram-se em
Seus corações.
De Marduk, seu defensor, decretaram o destino

O "destino" que é mencionado aqui é uma autoridade igual à dos deuses


supremos. Em primeiro lugar, a assembléia dá um lugar de honra a Marduk, em
seguida, o conferem os novos poderes:

O outorgou um magnífico dossel


E ele se sentou na frente de seus pais, como conselheiro;
Você é importante entre os deuses antigos.
Seu alcance é insuperável e seu mandato é [o de] Anu.
Marduk, você é importante entre os deuses mais velhos, seu alcance
é insuperável e seu mandato é [o de] Anu.
A partir de agora, suas ordens não serão alteradas;
Elevar e abater, isto se encontra dentro de seu poder.
O que você disser será verdade, sua palavra não será em vão.
Nenhum dos deuses usurpará os seus direitos.

Na verdade, a assembléia dos deuses proclama Marduk rei, e nele combina a


autoridade e o poder de coerção; dirige o conselho de paz e o exército em época de
guerra; tem o poder de punir os maus .

O fizemos rei, dando-lhe poder sobre todas as coisas.


Tome o seu lugar nesse conselho, a sua palavra vai prevalecer.
Suas armas não se renderão, vão ferir seus inimigos.
Que tenham vida longa [os] Senhores [que] colocaram [a] confiança em ti.
Mas se um deus fizer o mal, retire sua vida.
Os deuses querem por a prova a autoridade que conferiram a Marduk,
querem saber se seu mandado possui agora a qualidade mágica de converter-se em
algo verdadeiro. O coloca a seguinte prova:

Colocaram um vestido no centro


E eles disseram a Marduk, seu primogênito:
Oh Senhor, de fato, o seu destino é supremo entre os deuses. Ordena a
aniquilação e existência, e faz verdadeira ambos.
A palavra que você fala pode destruir o vestido,
E se, em seguida, proferir outra, permanecerá intacto.
Ele falou, e, com a sua palavra, o vestido foi destruído
Ele falou de novo, e reapareceu o vestido
Os deuses, seus pais, vendo [o poder de] sua palavra,
Alegraram-se e prestaram homenagem: "Marduk é rei.".

Em seguida, lhe deram as insígnias reais – o cetro, o trono, e a túnica e o


armaram para a batalha. As armas de Marduk correspondem às de um deus das
tempestades e trovões; circunstância que resulta compreensível se nos lembrarmos
que a história que o relato se referia originalmente ao deus da tempestade, Enlil.
Então, ele carrega o arco íris, as flechas do raio e uma rede sustentada pelos quatro
ventos.
Ele fez um arco destinado a ser sua arma,
Mantendo firmemente a flecha na corda.
Empunhando seu cetro com a mão direita levantada,
Ele assegurou o arco e ele tremia ao seu redor
Feito o relâmpago a precedê-lo,
E ele fez arder o corpo em chamas.
Teceu uma teia para apanhar Tiamat, de modo que não escapou,
Ordenando aos quatro ventos que estavam alerta.
O vento sul, o vento norte, vento leste, o vento oeste,
Presentes de seu pai Anu, que se instalaram nas bordas da rede.

Além disso, faz sete terríveis tempestades, levanta seu cetro, que é a
inundação, monta seu carro de guerra, "a tempestade avassaladora" e é dirigido
contra Tiamat rodeada por seu exército, composto pelos deuses. Vendo a
abordagem de Marduk, tanto o exército inimigo como Kingu perdem valor e são
presas a uma confusão, só Tiamat permanece firme e em desafia o jovem deus.
Marduk aceita o desafio e se trava a batalha. Usando sua forte rede, Marduk envolve
Tiamat. Ele abre a boca para o engolir, mas Marduk envia os ventos de modo que,
eles a mantém aberta e Marduk joga uma flecha que transpassa seu coração,
ferindo-a fatalmente. Quando seus seguidores percebem Marduk pisoteando o
cadáver de Tiamat, voltam e tentar escapar, mas ficam presos nas malhas de sua
rede e suas armas são destruídas, e Marduk os aprisiona. Kingu também é
capturado, a quem Marduk arrebata as “Tabelas do destino”.
Uma vez obteve a vitória, Marduk retorna ao local onde estava o corpo de
Tiamat, quebra seu crânio com seu cetro e corta suas artérias, os ventos dispersam
seu sangue. Em seguida, corta o corpo em duas porções e levantou uma delas
formando o céu. Para ter certeza de que a água não escape coloca parafusos e
guardiões para monitorá-la. Mede cuidadosamente o céu que se formou e, da
mesma forma que Ea pós sua vitória sobre Apsu tinha erguido a sua morada no
corpo de seu inimigo, a morada de Marduk agora está sobre o corpo de Tiamat, que
se tornou o céu. Ao medi-lo se assegura de que o colocou em oposição direta com a
morada de Ea, formando sua contrapartida.
Aqui podemos novamente fazer uma pequena pausa para perguntar o que
significa tudo isso. Possivelmente esta batalha entre Marduk, ou Enlil, e Tiamat,
entre o vento e a água, é a interpretação arcaica das enchentes da primavera. A
cada primavera, as águas inundam cada planície Mesopotâmia e o mundo do
homem mesopotâmio se torna um caos aquoso, ou melhor, no "caos primordial", até
que os ventos varram as águas e a terra seca novamente. É possível dizer que os
ventos espalham o sangue de Tiamat é uma referência a esse fenômeno. Essas
concepções arcaicas tornaram-se meios de especulação cosmológica. Já nos
referimos à concepção que faz do céu e da terra dois grandes discos depositados
pelo lodo no caos aquoso, estes discos foram separados à força pelo vento, de
modo que o universo atual é uma espécie de garrafa cercado por água em todos os
lugares. Esta concepção deixou marcas muito claras nos mitos sumérios e na
relação de An-Anum; Enuma elis é tão somente uma variante: o mar primordial,
Tiamat, está cheio e é morto pelos ventos. Metade desse mar – o mar atual –
permanece aqui; a outra metade é convertida em céu em que se colocam travas
para que a água não escape, salvo quando cai em forma de chuva.
Deste modo, seguindo o uso do material mitológico em outro sentindo, há em
Enuma Elis dois relatos diferentes da criação do céu. Primeiro o céu cobra
existência na pessoa do deus Anu, cujo nome significa céu, o deus céu; depois, o
céu é formado de novo pelo deus vento, aproveitando parte do corpo do mar.
Sem embargo, em certa época, esta contradição implícita deveria ter sido
menos aguda, pois a dedicar atenção aos poderes ativos e através dos principais
componentes de universo em vez de atender aos aspectos visíveis do mesmo, Anu
chega a diferenciar-se suficientemente do céu.
Porém, tão importante quanto a identificação dos atores cosmológicos desses
eventos, é o sentido que os próprios eventos têm em estabelecer a ordem cósmica.
A sociedade organizada em forma mais ou menos primitiva torna-se um Estado
durante uma crise, sob a ameaça de uma guerra.

Em nossa concepção moderna, e admitindo que é subjetiva, podemos dizer


que as forças do movimento e atividade, os deuses, conseguiram uma vitória final e
decisiva sobre as forças da Inércia. Para alcançá-la tiveram que trabalhar ao
máximo, encontrando um método, uma forma de organização, permitindo-os
aproveitar inteiramente suas forças. Do mesmo modo que as forças ativas da
sociedade integradas em um Estado para poder superar as posturas sempre
ameaçadoras do caos e a inércia, também no universo Mesopotâmio, as forças
ativas agrupadas da mesma forma, em um Estado superaram os poderes do caos.
Mas, de qualquer forma, o fato é que a crise impôs aos deuses um Estado do tipo da
democracia primitiva.
Todos os principais assuntos são tratados em uma assembléia geral, que
confirma os projetos se formulam os decretos e os ensaios são ouvidos. Cada um
dos deuses tem uma função determinada, o mais importante corresponde
naturalmente, aos cinqüenta maiores deuses, entre os quais estão os sete que
pronunciam a palavra decisiva. Mas agora há além desta Assembléia, o poder
executivo, legislativo e judiciário, o jovem rei, cuja autoridade é igual à dos membros
influentes da assembléia. O rei é o chefe do exército em caso de guerra, pune o
ímpio, em tempos de paz é o executor das questões de organização interna, sempre
com o consentimento da assembléia.
Após a vitória, Marduk se dedica precisamente às tarefas organizacionais
internas. A primeira é o calendário de organização, uma atividade reservada para o
governante da Mesopotâmia. O céu que se formou as constelações determina sua
saída e sua chegada, o ano, os meses e os dias. O "local" de planeta Júpiter, por
exemplo, foi criado para conhecer as "obrigações" do dia, isto é, o momento em que
cada um deles deve aparecer:

Para que eles saibam suas obrigações, de modo a não causar danos
ou negligência.

Ele também colocou duas faixas no céu, conhecidas como os "caminhos" de


Enlil e Ea. Em ambas as extremidades do céu, onde o sol nasce de manhã e indo
para baixo na parte da tarde, Marduk construiu portas seguras com fechaduras
fortes. Fixou o zênite ao meio do céu e fez a lua brilhar e obedecê-lo.

Ele enviou a lua, confiando à noite;


Ele fez dela uma criatura das trevas, para medir o tempo,
E a cada mês, sem falta, adornada com uma coroa.
"No início de cada mês, quando você se levanta sobre a terra,
Seus chifres luminosos medidos ao longo de seis dias;
No sétimo dia aparecerá a metade da sua coroa.
Cheia, você se torna o sol.
Mas quando o sol começa a se mover no fundo do céu,
Diminui o seu brilho, invertendo seu crescimento.

O texto continua dando ordens pormenorizadas.


Muitas das inovações introduzidas durante a tarde pelo jovem e energético
governante foram perdidas, uma vez que neste momento há uma grande lacuna: o
texto. Ao tornar-se legível novamente, encontramos Marduk ocupado,
aparentemente em resposta a uma súplica que o fizeram, para planejar a forma
como aliviar as penosas tarefas domésticas dos deuses, organizando-as em dois
grupos:

Artérias e ossos se reúnem em um ser.


Vou criar Lullu, cujo nome será "homem",
Formarei Lullu, o homem
Ele se encarregará das tarefas dos deuses,
Para que possam livremente viver
Então eu vou nomear os destinos dos deuses:
Na verdade, eles são agrupados como uma bola, eu os farei distintos.

Ele diz que os fará distintos, isto é, que dividirá em dois grupos. Depois de
aceitar a sugestão de seu pai Ea, Marduk convoca os deuses para assembléia; uma
vez reunidos, os pergunta – quem fora o responsável pela agressão, quem incitou
Tiamat. A assembléia aponta Kingu como responsável, ele é amarrado e executado,
e de seu sangue é criada a humanidade seguindo as indicações de Ea.

Eles amarraram-no e levaram-no ante Ea.


Após a condenação, Ea abriu suas artérias.
E seu sangue formou a humanidade.
Ea então impôs o trabalho ao homem e libertou os deuses.

A habilidade extraordinária com que o homem fora constituído, desperta a


admiração do narrador:

Este trabalho não é compreensível para o entendimento [humano]


Trabalhando de acordo com as sugestões engenhosas de Marduk,
Ea o criou.

Em seguida, Marduk agrupou os deuses e os colocou à disposição de Anu.


Eles deveriam seguir as suas instruções. Destinou trezentos para guardar o céu, e a
outros tantos atribuiu tarefas na terra. Então, as forças divinas foram organizadas,
atribuindo tarefas adequadas em todo o universo.
Os deuses ficaram muito gratos a Marduk por tudo que ele fez. Para
expressar sua gratidão, tomam pela última vez que as picaretas e constroem uma
cidade e um templo, com trono e cetro para cada um dos deuses, para usá-los nas
reuniões das assembléias. A primeira ocorre por ocasião da dedicação ao templo.
Como de costume, começando com um banquete. Então, discutem e tomam
decisões sobre questões de Estado e, depois de concordar com um negócio de
interesse comum, Anu se levanta par confirmar a majestade de Marduk. Determina
a situação eterna, que corresponde a arma de Marduk, isto é, seu arco, em seguida,
faz a mesma coisa quanto ao trono, e, finalmente, chama a assembléia dos deuses
para confirmar o seu acordo e determinar a própria situação de Marduk e as suas
funções no universo, para ele faz menção de seus cinqüenta nomes, expressando
em detalhe os vários aspectos de seu ser e definir os seus poderes. O poema
termina com essa enumeração. Estes nomes expressam em poucas palavras o que
Marduk é e o que significa: a vitória final sobre o caos e o estabelecer da ordem
dentro do universo, ou seja, a formação de cósmica do Estado mesopotâmio.
Assim chegamos a um estágio de civilização na Mesopotâmia, que a antiga
concepção do mundo que constituía o fundo subconsciente, aceito de uma maneira
intuitiva em todas as especulações individuais, torna-se o objeto de um inquérito
consciente. Em mitos antigos ao tentar resolver os problemas relacionados com a
origem, a ordem e a valorização estimativa de detalhes, Enuma elis resolve o
problema dos fundamentos. Trata-se da origem e toda a ordem do universo em seu
conjunto. Mas apenas interessados na origem e na ordem, não trata de estabelecer
uma relação. O problema fundamental com esta justificação da ordem no mundo.
Este problema foi abordado, mas não em um sentido mitológico, as soluções são
encontradas constituem justamente o Capítulo VI, que trata da “Boa vida". Mas antes
de chegarmos a isso, vamos considerar a influência da concepção da Ordem
universal na vida social e política. Assim, vamos discutir no próximo capítulo a
função do Estado.
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