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Jacobsen, o Cosmos Concebido Como Um Estado
Jacobsen, o Cosmos Concebido Como Um Estado
Nosso universo está constituído, em sua maior parte, por coisas, por matéria
inanimada, que não possui vida e vontade. Isso nos leva a perguntar por que o
mesopotâmio via nos fenômenos em sua volta, um mundo semelhante à sociedade
em que vivia.
Deste modo o mesopotâmio interpretava todos os fenômenos de seu mundo
sempre que os considerava sob um aspecto diferente de seu cotidiano, prático e
monótono; isto é quando os incluía em seu pensamento mágico, religioso ou
especulativo. Em nosso mundo não tem sentido, mas no do homem mesopotâmio,
sim, ao tratar das relações entre os fenômenos naturais como se trata de relações
sociais, de uma ordem em que operam vontades conjugadas de um Estado.
Não é correto dizer que cada fenômeno era uma pessoa; devemos dizer que
havia uma vontade e uma personalidade em cada fenômeno – nele e, contudo, em
certo modo, atrás dele – porque um fenômeno concreto não limita a vontade e a
personalidade que se associam a ele. Assim, por exemplo, uma pedra de sílex em
particular teria uma personalidade e uma vontade fáceis de reconhecer. Negra,
pesada e dura, mostrava curiosa complacência por deixar-se laminar sob a ação da
ferramenta do artesão, ainda que essa ferramenta fosse de chifre, muito mais suave
que a pedra a que se aplicava. Entretanto essa personalidade característica que
encontramos aqui, nesta pedra de sílex em particular, podemos encontrá-la também
em qualquer outro pedaço de sílex, que parecerá dizer-nos “aqui estou de novo” –
negro, pesado, duro, disposto a deixar-me laminar – “eu o sílex!”. Onde quer que se
encontre teria o nome de “sílex” e se deixaria laminar com facilidade. Isso se deve a
que, em certa ocasião desagradou ao deus Ninurta e este havia lhe imposto como
castigo se deixar laminar.
Podemos tomar outro exemplo: os juncos que crescem nos pântanos da
Mesopotâmia. Era Nidaba quem fazia que os juncos prosperassem na lama; sem ela
não existiria cerca, o pastor não poderia alegrar os corações com a música de sua
flauta de junco, o escriba a louvava quando encontrava algo difícil de escrever e seu
estilo e o fazia bem. Deste modo a deusa era o poder encerrado em todos os juncos;
ela fazia com que estes fossem o que eram atribuindo-lhes suas qualidades
misteriosas. Encontrava-se em cada junco o sentido que o penetrava como agente
inanimado e característico; mas não perdia sua identidade como fenômeno concreto,
nem se limitava a nenhum junco, nem a todos os juncos existentes. Os artistas da
Mesopotâmia apontavam esta relação de um modo tosco, porém gráfico, ao
representar a deusa dos juncos. Apresenta-se em forma humana, como uma
venerável matrona, mas, os juncos também aparecem, brotam de seus ombros;
unidos a ela e parecem surgir diretamente dela.
Em um grande número de fenômenos particulares, como as pedras de sílex e
os juncos, a Mesopotâmia acreditava estar diante a um só ser. Sentia, por assim
dizer, a presença de um centro comum de poder, possuidor de uma personalidade
particular e que, em si mesmo, era pessoal. Esse centro pessoal de poder penetrava
nos fenômenos individuais, transmitindo-lhes o caráter que neles se advertia: “sílex”
em todas as pedras de sílex, Nidaba em todos os juncos, etc.
A identidade buscada é somente parcial. As qualidades possuídas pelos
deuses e pelos símbolos sagrados se infundiam nos membros do homem e os
faziam invioláveis.
Do mesmo modo que era possível pensar que um homem conseguisse uma
identificação parcial com vários deuses, assim também um deus podia adquirir uma
identidade parcial com outros deuses participando em sua natureza e em suas
faculdades. Assim, por exemplo, se dizia que o deus Marduk era o deus Enlil quando
se tratava de tomar conselho de uma questão de governo; em contrapartida, era Sin,
o deus-lua quando atuava como iluminador da noite, e assim sucessivamente. Isso
significa, ao parecer, que quando o deus Marduk exercia o governo e adotava
decisões, participava na personalidade, nas qualidades e nas faculdades do deus
Enlil, o executor divino por excelência. Por outro lado, quando Marduk brilhava no
céu noturno, na forma do planeta Júpiter, compartilhava as faculdades especificas
que caracterizavam aodeus-lua e tinham seu centro nele.
Para compreender a natureza, aos múltiplos e variados fenômenos que
rodeiam o homem, era necessário compreender as personalidades que se
manifestavam em ditos fenômenos, conhecer suas características, o sentido de suas
vontades e, também, a magnitude de seu poderio. Tratava-se de uma tarefa que não
se diferenciava em nada a que devia realizar-se para compreender os homens,
conhecendo suas características, suas vontades e a magnitude de seu poder e de
sua influência. De modo intuitivo o mesopotâmio aplicava à natureza a experiência
que havia adquirido no seio de sua própria sociedade e a interpretava conforme
suas categorias sociais. Isso pode ser ilustrado com um exemplo particularmente
sugestivo. Por assim dizer, a realidade objetiva assume a forma de uma organização
social diante de nossos próprios olhos.
De acordo com as crenças do mesopotâmio, o homem que fora vítima de um
feitiço podia destruir os inimigos que o enfeitiçara ateando fogo a suas imagens. O
eu característico do inimigo estaria tambémem sua imagem.
É claro que o homem recorria ao fogo porque conhecia seu poder destrutivo.
Entretanto o fogo possuía vontade própria; podia destruir as efígies – e nelas os
seus inimigos – somente quando assim o quisera. De tal modo que, para decidir se
destrói ou não as imagens, o fogo se converte em juiz entre o homem e seus
inimigos, a situação se transforma em um litígio, no qual o homem advoga em sua
causa e pede ao fogo que atenda sua queixa. O poder do fogo tem sua forma
definida, e é interpretado conforme as categorias sociais: é um juiz.
Se nos propuséssemos representar o mesopotâmio por uma de suas
características, destacaríamos talvez o grau em que esse povo descobriu e
acentuou as conexões de organização entre as forças que fizeram a advertir. É certo
que todos os povos têm mostradotendência a humanizar as forças não humanas e
que, com freqüência as tem considerado como uma espécie de organização social;
mas o pensamento especulativo dos mesopotâmios parece haver descoberto e
sistematizado as implicações e as funções sociais e políticas compreendidas em dita
interpretação em um grau incomum, chegando a formulá-las em forma de
instituições perfeitamente definidas. Esta acentuação particularparece conectar-se,
de um modo muito estreito, com a natureza da sociedade em que viviam e da qual
extraíram as categorias de que se valiam para a sua interpretação.
Quando o universo começou a adquirir forma para o mesopotâmio, este vivia
como temos dito, em uma democracia primitiva. Todas as empresas grandiosas e
todas as decisões de importância eram tomadas na assembléia geral constituída por
todos os cidadãos; sem que fosse a incumbência de um só indivíduo. De acordo
com isso, era natural que, ao tratar compreender a maneira como se produziam os
grandes acontecimentos cósmicos, dera grande importância à indagação da forma
em que as forças individuais do cosmos cooperavam ao curso do universo. Em sua
concepção do universo as instituições cósmicas chegaram a adquirir enorme
importância e a estrutura do universo veio a ser eternamente igual à organização do
Estado.
Temos dito que os deuses que constituíam a assembléia divina eram aquelas
forças da que os mesopotâmios reconheciam em, e, por trás dos diversos
fenômenos da natureza. Mas quais dessas forças eram as que desempenhavam as
funções mais destacadas na assembléia e, em conseqüência, teriam maior
influência sobre o curso do universo?
Anu, o deus supremo era o deus do céu e seu nome era a palavra usual para
designar o “céu”. A função dominante que o céu desempenha na composição do
universo visível e a posição eminente que ocupa, colocado acima e por cima de
todas as coisas, explica perfeitamente porque considerava Anu como a força mais
importante do cosmos.
Enlil, o segundo em importância, era o deus da tempestade. A tempestade
que domina todo o espaço que se estende sob o firmamento, ocupava o segundo
lugar entre os grandes componentes do cosmos.
A terra era o terceiro elemento fundamental do universo visível. Como fonte
das águas, a terra era masculina, era En-ki, “o senhor da terra” ou mais literalmente,
“Senhor Terra”. Entre os deuses da mesopotâmia o terceiro e quarto lugar
correspondiam a estes dois aspectos da terra, Nihursaga e Enki.
a) O poder do céu: a autoridade
Ki, a “Terra” se manifesta antes de tudo como “Mãe Terra”, como a grande
fonte inesgotável e misteriosa da nova vida e da fecundidade em todas as suas
formas. Cada ano dá nascimento a pastos e plantas novas. Em uma só noite o árido
deserto se transforma em campo verde. Os pastores levam seus rebanhos para
pastar. As ovelhas e as cabras parem cordeiros e cabritos. Todas as coisas crescem
e prosperam. Nas boas terras da Suméria “o grão, a donzela verde, olha para cima
nos canais” em breve uma rica colheita preencherá os celeiros e os armazéns, até
que se transbordem. A humanidade bem alimentada farta de cerveja, de pão e de
leite sentirá como a vida move em seus corpos em ondas de um tranqüilo e profundo
bem estar.
É representada como uma mulher que amamenta seu filho. Sob suas vestes
se refugiam outros filhos que se acotovelam e está rodeada de embriões. Como
encarnação de todas as forças reprodutoras do universo, a terra é a “mãe dos
deuses” e também, a mãe do criador da humanidade; é na verdade – como afirma
uma inscrição – “a mãe de todos os filhos”. Se assim quisesse, podia negar que o
perverso tivesse filhos e até mesmo que cessasse todo nascimento.
Sendo o princípio ativo de todo nascimento e na fecundidade que se
manifestava na contínua renovação da vegetação, no crescimento dos cultivos, no
aumento dos rebanhos e na perpetuação da raça humana, a terra ocupava
legitimamente seu posto como potencia dominante, sentando-se ao lado de Anu e
Enlil na assembléia dos deuses, a instituição que dirige o universo. É Ninmah, “a
rainha exaltada”; é a rainha dos reis e dos senhores, a senhora que determina o
destino, a senhora que decide sobre tudo que ocorre no céu e na terra.
Ninshebargunu previne sua jovem filha, dizendo que não se banhe sozinha no
canal; pode haver olhos que lhe espiem, ou um jovem que a viole.
Naqueles dias, a mãe que deu-lhe à luz deu suas instruções a jovem virgem,
dizia Ninshebargunu a Ninlil:
Deste modo, quando Ninlil chega, encontra Enlil disfarçado. Não o reconhece,
acreditando que se trata do guardião. Ele diz o que seu rei, Enlil o recomendou, e
ela por sua vez, o contesta, posto que Enlil é seu rei, ela é uma rainha e que leva o
filho de Enlil, Sin, o deus lua sob seu coração. Enlil, em seu papel de guardião – isto
parece algo pressuposto – simula comover-se profundamente ante a idéia de que
ela possa levar consigo ao domínio Hades o brilhante filho de seu senhor e propõe
unir-se em matrimônio para gerar um filho que pertença ao Hades e tomo o lugar do
filho de seu rei, a brilhante lua.
Nos dias de outrora, dias em que o céu havia sido separado da terra,
Nas noites de outrora, noites em que o céu havia sido separado da
terra.
Naqueles remotos dias ainda os próprios deuses tinham que trabalhar para
viver. Todos os deuses tinham que usar a foice, a picareta e outros instrumentos
agrícolas, tinham que escavar canais e, em geral se ganhava o pão com o suor de
seus rostos. Coisa que os aborrecia. O mais sábio, e de amplo entendimento, Enki,
jazia em sono profundo, sem despertar nunca. Os deuses se voltaram a ele
querendo penalizá-lo, e sua mãe Nammu, a deusa das águas profundas, levou suas
queixas ante seu filho adormecido. Não advogou em vão. Enki ordenou a Nammu
que se dispusera a dar nascimento “ao barro que se encontra por cima do Apsu”
(significa debaixo da terra, sobre as profundas águas que correm sob a terra, quase
idênticas a deusa Nammu). Este barro seria separado de Nammu da mesma
maneira que um filho se separa das entranhas de sua mãe. A deusa Ninmah, a terra
estaria em cima dela – a terra se encontra, desde logo, acima das águas
subterrâneas – e a ajudaria a dar a luz, assistida por outras oito deusas.
Devemos supor que o barro que se encontra acima do Apsu nasceu assim e
que ele formou o homem. Sem embargo, o texto está deteriorado nesta passagem e
esta interpretação do relato nos impede saber com certeza como se formou a
humanidade. Quando o texto volta a ser legível, Enki prepara uma festa em honra de
Ninmah e de sua mãe, provavelmente para celebrar a distribuição. Todos os
grandes deuses são convidados, que louvavam Enki por seu talento, pois, quando a
festa estava a terminar Ninmah faz uma estranha afirmação:
Como Enki e Ninmah beberam muita cerveja, seus corações se regozijaram,
e Ninmah perguntou a Enki:
Enki aceita desde logo o desafio, dizendo-lhe: “De fato, o destino que tens
pensado, seja bom ou ruim, serei capaz de equilibrá-lo?”
Então, Ninmah pega o barro acima do Apsu e modela a seu capricho vários
seres humanos com algum defeito corporal: um homem que não pode conter a
urina, uma mulher estéril, um ser que não tem órgãos sexuais masculinos nem
femininos. No total, seis desses seres, porém Enki encontra, para cada um deles um
destino específico. A todos encontra um lugar na sociedade, de maneira que
possam ganhar a vida. Enki destina ao ser que não possui órgãos masculinos ou
femininos, provavelmente um eunuco, o serviço ao rei; coloca a mulher estéril entre
as damas de companhia da rainha, etc. Dificilmente se pode duvidar de que esses
seis caprichos formados por Ninmah correspondiam grupos definidos dentro da
sociedade suméria que, por uma ou outra razão diferiam corporalmente dos demais
seres humanos e que, portanto, representavam um problema.
Porém, então, a discussão se inflama. Enki tem demonstrado que é um
adversário cuidadoso, o que a derrotada Ninmah é forçada a reconhecer. Agora o
propõe que troquem os papéis. Ele formará novas criaturas e ela terá que gerir o
que será feito com elas, assim, Enki põe mãos à obra. Não sabemos qual foi sua
primeira criação, pois o texto está avariado neste local, porém temos notícias do
segundo, um ser chamado U-um-ul, “meu dia é remoto”, ou seja, um homem tão
velho que o dia de seu nascimento se perde no passado. Os olhos desse infeliz
estão enfermos, sua vida é uma ruína, o acometem dores no fígado, no coração,
suas mãos tremem, para não mencionar mais algumas das calamidades que o
aflige. Enki apresenta essa criatura a Ninmah, dizendo-lhe:
Minha cidade está destruída, minha casa arruinada, meus filhos foram
feitos prisioneiros
Se for obrigada a deixar Eku, sou fugitiva? Porém, ainda não escapo
ao alcance de sua mão.
Então, cega pelo desespero, o amaldiçoou: “Em diante não habitarás o céu,
nem morarás na terra”, assim, confina o deus das águas tranqüilas às escuras
regiões subterrâneas. Esta maldição nos recorda aquela que o mito de Tilmun
lançou a Enki e, ao que parece ,tenta explicar a mesma característica misteriosa do
universo. Por que se desterram as benéficas águas e as obriga a viver nas sobras
eternas sob a Terra? E ali para encontrá-las é necessário fazer uma escavação
suficientemente profunda. Enki já não pode fazer nada uma vez que foi
amaldiçoado, pois, a maldição tem o apoio absoluto da força decisiva que é inerente
ao mandado de um dos grandes deuses. Assim, desse Ninmah: “Um mandado
pronunciado pela sua boca, quem pode mudá-lo?
Sem embargo, parece possível que essa sentença terrível havia sido mitigada
e que, como o mito de Tilmun, se havia produzido uma reconciliação. Esse ponto do
texto está muito fragmentado e é difícil de ler, de maneira que não podemos saber
com certeza. Não obstante, o fato de que o mito, todavia, prossiga em certa
extensão demonstra que a maldição lançada por Ninmah não foi o resultado final e
decisivo do conflito.
O mito que retratamos trata de explicar algumas características misteriosas
que existem na ordem do mundo: os curiosos grupos anormais – eunucos,
hieródulos, etc. – que formavam parte da sociedade mesopotâmia; os desagradáveis
males, aparentemente desnecessários, que acompanhavam a velhice; etc. Ao
interpretar as características do mito, não só as explica, as julga. Em realidade, não
pertencem à ordem do mundo, não formam parte do plano ordenado. Foram
produzidos em um momento de irresponsabilidade, os deuses estavam ébrios e
sucumbiram momentaneamente à inveja e ao desejo de ostentação. Igualmente, o
mito examina e atribui valores às distintas características de um modo diferente.
Enquanto que a caprichosa conduta de Ninmah resulta inocente e seus engendros
puderam ser incorporados à ordem social pelo engenhoso Enki, se perde toda a
esperança no momento em que Enki dedica seu cérebro lúcido à produção de males
irreparáveis.
Com esta estimação das características cuja origem descreve, o mito
estabelece uma espécie de link que o conecta, ou seja, com o terceiro grupo de
mitos, aqueles cujo tema principal é a avaliação das características da ordem no
mundo.
Alguns dos mitos pertencentes a este grupo adotam quase a mesma forma
dos hinos de louvor. Ocupam-se de um único elemento do universo –, uma deidade,
um objeto, ou qualquer coisa existente – e enaltece suas qualidades, fazendo uma
minuciosa análise de todas as suas características. Entre eles, temos. Por exemplo,
o “Mito da picareta” no qual relata como Enlil criou este implemento tão
indispensável e se explica suas qualidades e utilidades. Em contrapartida, outros
mitos desse mesmo grupo apresentam a dois dos entes do universo e tratam de
equilibrá-los entre si, fazendo um esforço racional por compreender e justificar as
posições que ocupam dentro da ordem existente. Geralmente, esses mitos adotam a
forma de uma disputa entre os dois elementos a que se reporta, na qual cada um
deles exalta suas próprias virtudes até que a discussão é resolvida por algum deus.
Valendo-se de uma única passagem podemos ilustrar o provérbio. Utilizaremos um
mito no qual o cobre, considerado útil, porém, não muito valioso, disputa com a prata
o direito que tem para formar parte da corte do rei. O cobre argumenta a inutilidade
da prata:
Quando o tempo está frio, não podes formar um machado para partir
lenha;
Quando chega a época da colheita, não podes formar uma foice que
possa cortar o grão.
Portanto, o homem não se interessará por ti...
Porém, Inanna não escuta as palavras do irmão, e toma uma decisão. Ela
escolhe o lavrador.
Nunca me casarei com o pastor;
Nunca me vestirei com suas franjas;
Nunca me tocariam suas mais finas lãs.
Eu, a virgem, quero o lavrador,
E somente com ele me casarei;
O lavrador é quem faz crescer as favas
O lavrador é quem faz crescer o grão.
Ainda que tenha escolhido o lavrador como marido, não sente reprovação pelo
pastor:
Embora você, um pastor – não pode [para ser meu marido]
Converter-se em pastor, a classe de homem que prefiro,
Não pode converter-se em meu amigo
O lavrador Enkimdu, em meu amigo o lavrador,
Levarei-te trigo, levarei-te favas...
Além disso, faz sete terríveis tempestades, levanta seu cetro, que é a
inundação, monta seu carro de guerra, "a tempestade avassaladora" e é dirigido
contra Tiamat rodeada por seu exército, composto pelos deuses. Vendo a
abordagem de Marduk, tanto o exército inimigo como Kingu perdem valor e são
presas a uma confusão, só Tiamat permanece firme e em desafia o jovem deus.
Marduk aceita o desafio e se trava a batalha. Usando sua forte rede, Marduk envolve
Tiamat. Ele abre a boca para o engolir, mas Marduk envia os ventos de modo que,
eles a mantém aberta e Marduk joga uma flecha que transpassa seu coração,
ferindo-a fatalmente. Quando seus seguidores percebem Marduk pisoteando o
cadáver de Tiamat, voltam e tentar escapar, mas ficam presos nas malhas de sua
rede e suas armas são destruídas, e Marduk os aprisiona. Kingu também é
capturado, a quem Marduk arrebata as “Tabelas do destino”.
Uma vez obteve a vitória, Marduk retorna ao local onde estava o corpo de
Tiamat, quebra seu crânio com seu cetro e corta suas artérias, os ventos dispersam
seu sangue. Em seguida, corta o corpo em duas porções e levantou uma delas
formando o céu. Para ter certeza de que a água não escape coloca parafusos e
guardiões para monitorá-la. Mede cuidadosamente o céu que se formou e, da
mesma forma que Ea pós sua vitória sobre Apsu tinha erguido a sua morada no
corpo de seu inimigo, a morada de Marduk agora está sobre o corpo de Tiamat, que
se tornou o céu. Ao medi-lo se assegura de que o colocou em oposição direta com a
morada de Ea, formando sua contrapartida.
Aqui podemos novamente fazer uma pequena pausa para perguntar o que
significa tudo isso. Possivelmente esta batalha entre Marduk, ou Enlil, e Tiamat,
entre o vento e a água, é a interpretação arcaica das enchentes da primavera. A
cada primavera, as águas inundam cada planície Mesopotâmia e o mundo do
homem mesopotâmio se torna um caos aquoso, ou melhor, no "caos primordial", até
que os ventos varram as águas e a terra seca novamente. É possível dizer que os
ventos espalham o sangue de Tiamat é uma referência a esse fenômeno. Essas
concepções arcaicas tornaram-se meios de especulação cosmológica. Já nos
referimos à concepção que faz do céu e da terra dois grandes discos depositados
pelo lodo no caos aquoso, estes discos foram separados à força pelo vento, de
modo que o universo atual é uma espécie de garrafa cercado por água em todos os
lugares. Esta concepção deixou marcas muito claras nos mitos sumérios e na
relação de An-Anum; Enuma elis é tão somente uma variante: o mar primordial,
Tiamat, está cheio e é morto pelos ventos. Metade desse mar – o mar atual –
permanece aqui; a outra metade é convertida em céu em que se colocam travas
para que a água não escape, salvo quando cai em forma de chuva.
Deste modo, seguindo o uso do material mitológico em outro sentindo, há em
Enuma Elis dois relatos diferentes da criação do céu. Primeiro o céu cobra
existência na pessoa do deus Anu, cujo nome significa céu, o deus céu; depois, o
céu é formado de novo pelo deus vento, aproveitando parte do corpo do mar.
Sem embargo, em certa época, esta contradição implícita deveria ter sido
menos aguda, pois a dedicar atenção aos poderes ativos e através dos principais
componentes de universo em vez de atender aos aspectos visíveis do mesmo, Anu
chega a diferenciar-se suficientemente do céu.
Porém, tão importante quanto a identificação dos atores cosmológicos desses
eventos, é o sentido que os próprios eventos têm em estabelecer a ordem cósmica.
A sociedade organizada em forma mais ou menos primitiva torna-se um Estado
durante uma crise, sob a ameaça de uma guerra.
Para que eles saibam suas obrigações, de modo a não causar danos
ou negligência.
Ele diz que os fará distintos, isto é, que dividirá em dois grupos. Depois de
aceitar a sugestão de seu pai Ea, Marduk convoca os deuses para assembléia; uma
vez reunidos, os pergunta – quem fora o responsável pela agressão, quem incitou
Tiamat. A assembléia aponta Kingu como responsável, ele é amarrado e executado,
e de seu sangue é criada a humanidade seguindo as indicações de Ea.