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EMBRANQUECIMENTO DA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

E RACISMO NO BRASIL RECENTE


Eduardo Cardoso Daflon

Olá, leitor do Sacralidades! Queria te convidar a um exercício de imaginação. Topa participar?


Sim? Maravilha... Pense que está numa aula de História e a(o) professor(a) faz a seguinte afirmação:
“na primeira metade do século IV houve a conversão de um soberano ao cristianismo que transformou
a realidade religiosa de um dos maiores impérios do mundo antigo”. Nessa frase nada há de
extraordinário e, dado que vivemos em um país majoritariamente cristão, é bastante provável que ao
ouvi-la em sala – mesmo sem uma formação de historiador(o) – começasse a refletir sobre a quem a(o)
professor estaria se referindo. Vamos lá... Pense aí... Foi? Então, vamos adiante!
Provavelmente o que muitas(os) pensaram foi: “Constantino e o Império Romano!” Esse não
é necessariamente o caso. Porém, ter sido esse o palpite inicial de muita gente é igualmente revelador.
De fato, eu coloquei na boca dessa(e) docente hipotética(o) uma frase que realmente pode ser linkada
ao imperador romano. Mas, ela igualmente poderia se referir à conversão de outro personagem. No
caso, ao rei Ezana que governou o chamado Reino de Axum, uma importante unidade política no
continente africano ao sul do Saara que era contemporânea dos romanos. Não é qualquer exagero de
minha parte referir-me a tal reino com termos de comparação a Roma, dada a sua relevância nas trocas
que aconteciam entre o mar Mediterrâneo e o oceano Índico via mar Vermelho. Trata-se de um paralelo
que mesmo alguns contemporâneos aventavam, como num texto de autoria do profeta Mani datado no
século III.
Ezana por volta de 330 se converte ao cristianismo e poderíamos dizer que, de uma maneira ou
de outra, deu o pontapé inicial a uma tradição cristã africana que se desenvolveu de maneira
relativamente autônoma à experiência mediterrânica (e especialmente europeia). Tradição essa ainda
viva, expressa no cristianismo etíope com suas famosas igrejas esculpidas em rocha. Pouco sabemos
sobre esse evento através de documentação local (à exceção de limitadas informações de textos escritos
em rochas e de moedas).
Contudo, temos algumas referências presentes nas fontes greco-latinas. A mais antiga delas é a
continuação da História Eclesiástica – originalmente escrita por Eusébio de Cesareia – realizada por
Rufino de Aquileia. Nessa narrativa a conversão de Ezena começa ainda na sua infância com a chegada
de dois jovens cristãos que teriam tido seu navio atacado no mar Vermelho e foram tomados como
cativos e postos a serviço da realeza axumita.
Uma vez lá seu conhecimento do grego foi notado pelo monarca reinante que fez de um deles
seu copeiro e do outro mestre de correspondência. Ambos se tornaram, segundo Rufino, valorosos
serventes da administração e conseguiram pela sua influência na corte garantir uma série de liberdades
aos mercadores cristãos que passassem pelo reino. Após a morte do rei foram libertados e a rainha
viúva, por sua vez, pediu que permanecessem no reino durante a menoridade de seu filho, o já referido
Ezana, para seguirem administrando.
Quando o novo rei atingiu sua maioridade os libertos voltaram para o mundo romano. O
prelado de Alexandria quando soube do favorecimento dos cristãos em Axum acaba por enviar uma
missão formal tendo como bispo um desses cativos libertados. Até o presente esse primeiro bispo do
Reino de Axum é reverenciado como um dos fundadores da fé cristã etíope. Um cristianismo negro
que se desenvolveu por séculos numa configuração bastante original e particular que chamou bastante

DAFLON, E. C. Embranquecimento da História do Cristianismo e racismo no Brasil recente. História


e Historiografia. In: Sacralidades Medievais (site). Disponível em:
https://sacralidadesmedievais.com/texto s-semanais.

https://sacralidadesmedievais.com/
a atenção dos portugueses quando, muito tempo depois, tomaram contato com ela durante o período
da expansão colonial da modernidade.
Mas... Voltando à questão original, por que na frase que abriu este texto a referência mais óbvia
para tanta gente foi Constantino e o Império Romano? Para explicar talvez seja ilustrativo pensar nos
currículos escolares. De acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) precisam ser
abordados no 6° ano do Ensino Fundamental o “papel da religião cristã, dos mosteiros e da cultura na
Idade Média” de forma a analisar a “religião cristã na cultura e nos modos de organização social no
período medieval”.
Numa tentativa, ainda que limitada, de ver como esse currículo prescrito é efetivamente
aplicado na sala de aula convém olharmos para um dos principais elementos da cultura escolar: os
livros didáticos. Naqueles mais amplamente utilizados no país – os selecionados pelo PNLD – os
capítulos que tratam do cristianismo e monastérios medievais fazem referências apenas ao contexto
Europeu. De tal maneira que estamos diante do que me parece ser um apagamento histórico marcante
de uma experiência religiosa africana que, ao fim e ao cabo, embranquece a História do cristianismo.
Cristianismo esse que em boa parte das consciências históricas passa a ser associado como
parte dessa narrativa tradicional da dita “civilização ocidental” cristã e branca. No ano que
completamos duas décadas de vigência da lei 10.639/03 é imperativo pensar outras temáticas da
História africana, que rompam com essa visão pálida e menos diversa do passado. O que é
indispensável para nos afastarmos da ignorância, por exemplo, simbolicamente expressa nos ataques
recheados de racismos ao padre Júlio Lancelotti que no último Natal postou em suas redes sociais uma
foto com o menino Jesus negro. Representação bastante comum na Etiópia que, ao longo do que se
costuma chamar Idade Média, deu ao cristianismo tons e sabores africanos. Precisamos entender e
explicar o cristianismo durante o medievo como um fenômeno global.

Para saber mais

HAAS, Christopher. Mountain Constantines: The Christianization of Aksum and Iberia. Journal of
Late Antiquity, vol. 1, n° 1, 2008.

MOKHTAR, Gamal. História geral da África, II: África antiga. Brasília: UNESCO, 2010.

MUNRO-HAY, Stuart. Aksum – An African Civilization of Late Antiquity. Edimburgo: Edinburgh


University Press, 1991.

DAFLON, E. C. Embranquecimento da História do Cristianismo e racismo no Brasil recente. História


e Historiografia. In: Sacralidades Medievais (site). Disponível em:
https://sacralidadesmedievais.com/texto s-semanais.

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