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Estudos em sexualidade

Volume 3

O.M. Rodrigues Jr.


C. Zeglio
V.L. Vaccari
G.E. Levatti
(Orgs.)

Instituto Paulista de Sexualidade – InPaSex


São Paulo, 2021
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Capa: Oswaldo M. Rodrigues Jr.


Fotos e ilustrações fora dos capítulos: Oswaldo M. Rodrigues Jr.
Fotos e ilustrações dentro dos capítulos são de responsabilidades dos autores de cada
capítulo.

Rodrigues Jr., Oswaldo M., 1959- ; Zeglio, C., 1970-; Vaccari, V.L., 1952-; Levatti, G.E.,
1991-
/ Oswaldo M. Rodrigues Jr., Carla Zeglio, Vera Lucia Vaccari, Giovanna Eleutério Levatti
(Orgs.) Estudos em Sexualidade – volume 2; São Paulo: Instituto Paulista de Sexualidade,
2021.

ISBN-13: 9798599744184

1. Sexologia. 2. Terapia sexual. 3. Sexualidade. I. Título.

Copyright © 2021 Instituto Paulista de Sexualidade


All rights reserved.

Instituto Paulista de Sexualidade


rua São Bartolomeu, 59 – Perdizes
05014-030 – São Paulo – SP
Brasil
www.inpasex.com.br
Estudos de Sexualidade 3

Índice

Pág.
Apresentação 5
Introdução 1 7
Introdução 2 09
Autores 13
Impulsividade sexual em mulheres com transtorno de personalidade borderline - Ana 23
Karolina Félix da Silva
Relações não monogâmicas e gênero - Ana Luiza Borges 35
A Saúde Sexual das Mulheres Lésbicas: riscos de contágio no sexo entre vaginas - 51
Andrea Do Carmo Souza
Disforia de gênero e afeto - As condições de afeto e suas consequências na formação da 59
Disforia de Gênero - Arthur Martins Maimone
Diferenças entre o ciúme romântico em homens e mulheres - Beatriz Roedel Linhares 89
Faria
A sexualidade da mulher idosa: uma construção social, cultural, biológica e subjetiva - 101
Bruna Santos Vargas
Mulheres adultas vítimas de abuso sexual na infância: possíveis consequências - 111
Camille Correia Borges Soares
Saúde mental em indivíduos transgêneros com disforia de gênero: uma revisão 119
narrativa - Erlon Coelho Mendonça
Interferências do cinema na construção do “ser mulher” - Gabriela Dalle Cort 131
Combate ao assédio: a chave para o desenvolvimento da carreira feminina - Gláucia 139
Camila De Marco
O advento da pílula anticoncepcional e seus desdobramentos: uma leitura sob a 149
perspectiva da teoria feminista - Izabel Hart Giraldi
Antidepressivos e disfunção sexual: uma revisão narrativa - Janaína Bandeira 161
Abordagem interdisciplinar no atendimento de mulheres jovens com dispareunia - 173
Janaína Neves Sousa
Abuso sexual infantil em meninos – o que o machismo tem a ver com isso? - Joice 183
Kelly da Silveira Lamas
Porque as mães não falam sobre sexualidade com as suas crianças - Juliana Costa De 197
Souza
Clitóris: um órgão orgástico humano - Juliana da Silva de Almeida 211
Transexuais e o acesso ao atendimento de saúde pública em Curitiba-PR: uma revisão 225
bibliográfica - Kelma Joana Petillo de Castro Stedile
Influência dos valores do terapeuta na abordagem de questões de sexualidade na clínica 235
analítico comportamental - Kendra Maira Tsubota Ferri
Impactos da crença no amor romântico na sexualidade feminina - Lara Andrade 245
Coutinho
Sexualidade na Conjugalidade - Conflitos entre o tradicional e o novo no fluir do ciclo 255
de vida a dois - Lara Cunha Sales Rizerio
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
Homofobia no ambiente de trabalho formal - Lucas Matheus Da Silva Barba 263
Objetificação feminina: extensões e impactos - Luiza Pontes Vieira Carneiro 271
A influência do consumo de pornografia na formação dos comportamentos sexuais - 285
Marcella Ormastroni Maretti
Uso desregulado de pornografia - Conceitos, definições, modelos teóricos e 299
características dos usuários - Pedro Henrique De Souza Herrera
Um estudo sobre anorgasmia feminina e sua relação com a masturbação e o 317
conhecimento do próprio corpo - Priscylla Antonelli Borges
4 Influência das diferenças de gênero na estruturação da identidade e na vivência da 327
sexualidade e da conjugalidade - Sandra Rosemara Pereira da Silva
“Consome, só come e some”: os corpos abjetos e as sexualidades das travestis e 343
mulheres trans - Tayná Nunes Garcia
Um panorama sobre a relação entre o consumo de pornografia e os seus possíveis 359
impactos causados à sexualidade do indivíduo - Thais Desiderá Raposo
Mulher gorda e sexualidade - Thaís Salomão Yacote 365
Cinema e patriarcado - a influência do arquétipo da fada maníaca sonhadora na 379
sociedade patriarcal - Tomás Pereira Monteiro Machado
Estudos de Sexualidade 3

Apresentação

A sexualidade exige um estudo sério e assim precisa ser percebido.


A compreensão do que denominamos sexualidade extrapola as disciplinas básicas e
exige compreensões múltiplas e que estão sempre em mudanças, e a cada década o que se
estudou parece quase descabido, mesmo que continue sendo o cotidiano das pessoas que andam
nas ruas.
Nomenclatura muda, mudam as visões que são exigidas para a compreensão das
pessoas e dos relacionamentos.
Estamos, no InPaSex – Instituto Paulista de Sexualidade, buscando acompanhar o
movimento, incluindo fazer parte dele, para que tenhamos melhoria de condições de vida às
pessoas que precisam de novas formas de envolvimento no quesito sexualidade.
Desde o início das atividades do InPaSex, em 1996, estivemos envolvidos na formação
em sexualidade de outros profissionais.
A atual fase com o Curso de Especialização em Sexologia Aplicada, além de
organizarmos o curso com mais de 60 professores (e com 60% sendo do gênero feminino),
iniciamos a organização de livros onde estes alunos, formados profissionais com a perspectiva
da sexologia, apresentem suas compreensões críticas sobre assuntos que lhes interessaram.
Este é o terceiro volume dos “Estudos em Sexualidade”.
Estamos orgulhosos de manter este caminho e estas atividades!

Psic. Oswaldo M. Rodrigues Jr. – Diretor Clínico

Psic. Carla Zeglio – Diretora Pedagógica

InPaSex – Instituto Paulista de Sexualidade


Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Primeiro mês de aulas em 2020, ainda presenciais, como prof. José Carlos Riechelman.
Estudos de Sexualidade 3

INTRODUÇÃO 1

Sai à luz mais um volume de artigos sobre sexualidade, apresentados como trabalhos
de conclusão pelos alunos(as) do 3o Curso de Especialização em Sexologia Aplicada do
Instituto Paulista de Sexualidade.
Como os volumes anteriores, os artigos abordam os mais variados aspectos desse
continente que se chama sexualidade. O que os une é a concepção da sexualidade em uma
perspectiva social, histórica e cultural e os meandros da vivência no contexto de uma sociedade
com inegáveis aspectos conservadores fortemente estabelecidos, geradores de preconceitos e
sofrimentos.
Esses preconceitos e sofrimentos decorrentes de concepções sobre sexo e sexualidade
manifestam-se em todos os campos em que seres humanos, em si mesmos únicos e irrepetíveis,
têm negados seus direitos a uma vida plena.
Escritos por psicólogos(as), médicos(as), advogados(as), educadores(as) e outros
profissionais, em conjunto os textos têm um alcance que nos permite afirmar que o livro
representa uma possibilidade de estudo, aprofundamento e atualização para profissionais de
todas as áreas que trabalham com pessoas, pois a sexualidade é um aspecto inerente a todos
nós.
Kendra Maira Tsubota Ferri traz o tema dos valores do terapeuta na abordagem de
questões relacionadas à sexualidade, mostrando como esses valores interferem na condução
das atividades clínicas e apontando como o tema da sexualidade não é suficientemente
abordado na graduação em Psicologia, quando é.
O machismo, desenvolvido à luz do patriarcado, e suas perversas influências sobre a
sexualidade são trazidas por vários textos. Ana Karolina Félix da Silva aborda a impulsividade
sexual em mulheres com transtorno borderline, tema importante para a clínica.
Ana Luiza Borges traça um panorama apontando o risco de perpetuação do patriarcado
em algumas das modalidades de relacionamento sexual e/ou amoroso heterossexuais não
monogâmicos consensuais, hoje tidos predominantemente na literatura como libertadores.
A satisfação sexual da mulher é estudada por Pryscylla Antonelli Borges, que faz a relação
entre anorgasmia feminina com a masturbação e o conhecimento do próprio corpo.
Lara Andrade Coutinho discorre sobre como a crença no amor romântico tem influência
sobre a sexualidade feminina, em especial no desejo sexual.
Tomás Pereira M. Machado escreve sobre a influência do arquétipo da fada maníaca
sonhadora, presente em filmes, na manutenção da estrutura patriarcal da sociedade ocidental.
A sexualidade da mulher idosa é trazida por Bruna Santos Vargas, que aponta a
sexualidade da mulher na velhice é ainda mais cercada por inseguranças, possivelmente
alimentadas por desinformação e mitos.
O tema do abuso sexual infantil de meninos é trazido por Joice Kelly da Silveira Lamas, que
faz a distinção entre abusadores ocasionais e pedófilos e mostra o papel do machismo na
violência sexual, ao impor a ideia de uma superioridade masculina no que se refere à
sexualidade.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

O aumento do uso de antidepressivos no mundo e seus efeitos colaterais, inclusive a


disfunção sexual, é o tema de Janaína Bandeira. A autora aponta como o risco de disfunção
sexual é uma das principais causas da não adesão aos medicamentos.
ois artigos tratam da conjugalidade. Lara Cunha Sales Rizerio aborda o conflito entre o
tradicional e o novo na vida amorosa, com potencial destrutivo na vida a dois: a tradicional,
por limitar a criatividade, a moderna por priorizar o prazer. Sandra Rosemara Pereira da Silva
aponta para as consequências diretas das diferenças de gênero na conjugalidade e nos novos
arranjo,como escolher não ter filhos ou ter apenas um filho valorizando o exercício da
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parentalidade.
O uso desregulado de pornografia é revisado por Pedro Henrique de Souza Herrera, que
faz um estudo histórico da pornografia até os dias de hoje, em que é consumida gratuitamente,
online, e apresenta mecanismos de funcionamento envolvidos no desenvolvimento e
manutenção de um possível uso desregulado de pornografia.
O tema da transexualidade é trazido por três autores(as). Artur Maimone trata do
sofrimento das pessoas transexuais, que vai desde autolesões a ideações suicidas em
decorrência de violência física e verbal, estigmatização e vulnerabilidade social a que estão
submetidas. Erlon Coelho Mendonça discorre sobre saúde mental em indivíduos transgêneros
com disforia de gênero, verificando os principais transtornos mentais presentes em
transgêneros com DG antes e após intervenções como hormonioterapia e cirurgia de
redesignação de gênero. Kelma Joana Petillo de Castro Stedile faz um estudo sobre o acesso
ao atendimento de saúde pública por pessoas transexuais em Curitiba, apontando para a
necessidade de envolvimento dos movimentos sociais e de controle social para efetivar o
respeito à diversidade no atendimento às pessoas trans.
Dois artigos dedicaram-se ao tema da sexualidade no ambiente profissional, trazendo
temas amplamente discutidos no momento atual. Gláucia Camila De Marco discorre sobre o
assédio sexual, que impede o desenvolvimento da carreira feminina. Lucas Matheus da Silva
Barba trata da homofobia, que também deve ser combatida, à luz das mudanças legais, que
devem ser ampliadas, para que esse problema seja superado.
Boa leitura!

Vera Lucia Vaccari


(CRP 06/8915-6), psicol8ga, escritora e tradutora; psicoterapeuta de adultos e casais;
especializada em psicoterapia psicodinamica, educação sexual, terapia sexual; mestre em
saúde pública; professora universitária e de curso de pós-
graduação.
Estudos de Sexualidade 3

INTRODUÇÃO 2

É com muita satisfação que comunicamos o lançamento do livro “Estudos em


Sexualidade 3”, que reúne trabalhos elaborados ao longo do curso 3º Curso de Especialização
em Sexologia Aplicada, oferecido pelo Instituto Paulista de Sexualidade (InPaSex).
Considerando o ano de produção desses trabalhos de conclusão de curso, que aqui são
apresentados sob a forma de capítulos, é necessário ressaltar o desafio que foi posto a partir do
início da pandemia pelo covid-19, uma vez que nos colocou frente à necessidade de alterar
comportamentos, hábitos, rotina, influenciando de forma direta a saúde (em seus diversos
âmbitos) da população, incluindo os autores (as) e organizadores (as) do presente livro.
Os formados pelo InPaSex na 3ª turma de Especialização em Sexologia Aplicada são
graduados em diferentes áreas do conhecimento, como direito, geografia, fisioterapia,
geografia, psicologia, medicina, entre outras. Assim, a tarefa de orientar o desenvolvimento
desses trabalhos, se mostrou um duplo desafio: unir diversas áreas para o resultado final, bem
como desenvolver o trabalho em meio a pandemia. Contudo, os capítulos irão mostrar que a
tarefa foi concluída de forma satisfatória, dada a qualidade dos textos escritos, tanto em termos
metodológicos quanto na abordagem do assunto sexualidade dentro de diferentes áreas de
atuação profissional.
A importância do livro que o leitor irá contemplar se dá inclusive pelo fato da
sexualidade fazer parte da vivência de ser humano; embora inseridos (as) em uma sociedade
que ainda trate o tema enquanto “tabu”, sob formas de gracejos ou por meio do silenciamento,
é conhecido que essas situações fatalmente irão impactar o desenvolvimento de cada cidadã,
cada cidadão. Nesta linha, Juliana Costa traz a discussão sobre a importância da figura materna
agir como primeira agente educadora no âmbito sexualidade uma vez que na primeira infância,
geralmente são o principal contato da criança com o mundo, destacando, assim como as autoras
Marcella O. Maretti e Thaís Raposo, a importância da educação sexual; tema que tem se
apresentado de forma distorcida e/ou equivocada à população brasileira, haja vista que a função
é levar informação aos estudantes a fim de prevenir possíveis abusos, gravidez precoce, além
de tratar temas reconhecidos pela ciência de acordo com cada faixa etária.
Com dados técnicos e empatia, Camille Correia Soares Borges estabelece um paralelo
entre a literatura produzida por Hilda Hilst e o abuso sexual, de forma que o capítulo poderá
servir como base para que o(a) leitor (a) do capítulo prossiga com seus questionamentos e
reflexões sobre o assunto. Importante retomar a informação que a educação sexual atua como
fator preventivo na luta contra os abusos. Porém, a partir dos resultados encontrados por
Maretti e por Raposo, é possível identificar que os primeiros contatos com o tema sexualidade
ocorre por meio de conteúdo pornográfico, o exato oposto dos objetivos da educação sexual.
Além disso, os dois trabalhos discutem acerva do impacto causado pela pornografia no
desenvolvimento da vida sexual dos consumidores desse conteúdo, traçando uma discussão
entre as primeiras informações sobre sexualidade no âmbito pornográfico e seus
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

desdobramentos sobre o comportamento sexual. A ausência de informações e o silenciamento


acerca da sexualidade pode ser apontado como um dos fatores que influenciam o
desenvolvimento de quadros como a dispareunia, tema do capítulo escrito por Janaina Neves,
que nos mostra a importância do olhar clínico multidisciplinar no tratamento de mulheres
jovens que sofrem com dispareunia. A partir do texto, é possível identificar tanto fatores
culturais quanto biológicos que influenciam o quadro de dispareunia, daí a eficácia do
tratamento com profissionais de diversas áreas.
Conforme exposto no início desse texto, enfrentávamos o aumento de casos de pessoas
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que contraíram o Covid-19, bem como desfechos trágicos, como a morte pelas consequências
do vírus. Ainda no contexto pandêmico, a partir da orientação para que as pessoas
permanecessem em suas residências e evitassem aglomerações, houve o aumento nos índices
de violência doméstica também no Brasil, nos expondo a uma difícil realidade, a violência
como forma de manifestação da estrutura patriarcal/ machista a qual embasa padrões de
comportamento da população. A autora Gabriela Dalle Corte faz uso de elementos artísticos
ao propor um trabalho que apresenta o impacto do cinema sobre o desenvolvimento de
estereótipos físicos e comportamentais da figura feminina na sociedade. A partir dessas
informações podem surgir ponderações sobre a objetificação do corpo feminino, tema
escolhido e descrito por Luiza Pontes Vieira Carneiro, que proporciona a apresentação de
dados encontrados na literatura científica. Assim como no trabalho de Dalle Corte, é necessário
considerar a influência do patriarcado sobre a cultura, por meio das mídias, das músicas, filmes,
por exemplo, exibindo o corpo feminino enquanto objeto, o que pode anteceder casos em que
mulheres sofreram e sofrem violência de diferentes formas (agressão física, emocional,
sexual...) a partir da objetificação de seus corpos.
No âmbito cultural, Beatriz Roedel Linhares Faria, trata do tema ciúme patológico,
tema que se apresenta de diversas formas, em diferentes meios, seja em novelas, filmes,
músicas, exemplos no ambiente familiar, entre outros; no capítulo, são apresentados dados que
apontam inclusive as diferenças entre os gêneros na manifestação dos ciúmes e, novamente, a
influência do meio sobre o comportamento. A questão cultural também é tratada por Tayná
Nunes Garcia, que nos apresenta o dilema dos corpos e sexualidade de travestis e mulheres
trans no Brasil, país onde mais ocorrem assassinatos da população trans, ao mesmo tempo que
comporta elevada frequência de consumo pornográfico com protagonismo trans. Ao longo da
apresentação dos dados e discussão proposta, é possível identificar o papel exercido pela
cultura, que pode ser usada para manter a coerção sobre as pessoas fora da norma padrão, como
a população trans, vítimas do preconceito social.
Na intersecção entre espaços territoriais e sexualidade, a geógrafa Juliana Silva
Almeida une o conhecimento de sua área base, com o aprendizado adquirido ao longo do curso
de especialização, proporcionando uma importante discussão sobre o tabu do prazer feminino
e a apropriação das mulheres acerca do conhecimento sobre o próprio corpo, em meio às
estruturas patriarcais. Ao tratar do tema sexualidade da mulher, é possível identificar diferentes
âmbitos, como a reprodução humana, ou, a concepção, tema abordado por Izabel Hart Girald,
que expõe a exigência a qual a mulher é submetida por ser apontada como única responsável
por evitar a gravidez. Girald traz autores como Simone de Beauvoir para discussão acerca das
imposições sobre o corpo feminino, que conforme o capítulo mostra, leva períodos para se
estabelecer, e a partir de um breve resgate histórico é possível chegar a reflexões sobre as
normas sociais estabelecidas. Ainda sobre a coerção exercida sobre os corpos, Thaís Salomão
Yacote nos leva a uma discussão sobre o tema gordofobia, e expõe, a partir dos dados e relatos
encontrados na literatura científica, o sofrimento causado pelo comportamento preconceituoso.
Interessante ressaltar que o tema, infelizmente, ainda é pouco abordado nos cursos de
Estudos de Sexualidade 3

graduação, ou, abordado de forma equivocada inclusive em cursos voltados para a área da
saúde, resultando em profissionais que passam a exercer a violência no âmbito laboral.
Que os trabalhos apresentados sob a forma de capítulos, possam auxiliar as discussões
sobre comportamento e sexualidade com base científica e empática. Boa leitura.

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Giovanna Eleutério Levatti

psicóloga graduada pela Unesp/Bauru, Mestre em Psicologia do


Desenvolvimento e Aprendizagem pela Unesp/Bauru, Sexóloga e
Psicoterapeuta Sexual pelo Instituto Paulista de Sexualidade
(InPaSex). Trabalha como docente no Instituto Municipal de
Ensino Superior (IMES – Catanduva/SP) e orienta parte dos
trabalhos de conclusão de curso na Especialização em Sexologia
Aplicada do InPaSex. Atua como psicóloga clínica e supervisora
de atendimentos de adolescentes e adultos com base na teoria
analítico comportamental.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

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Aulas on line com grupo de alunos


Estudos de Sexualidade 3

Autores 13

Ana Karolina Félix da Silva


Psicóloga formada pela Universidade Cruzeiro do Sul.
Especialista em Disfunção Sexual Feminina pela Universidade Federal
de São Paulo - UNIFESP. Psicofarmacologia pela Universidade de São
Paulo- USP
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade - InPaSex.
Experiência clínica desde 2017, com ênfase na Psicanálise.
Email: bekapsic@gmail.com

Ana Luiza Santos Borges


Bacharela em psicologia pelo Centro Universitário IESB em 2013. Cientista
Social licenciada pela Universidade se Brasília no ano de 2017. Especialista
em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de Sexualidade em 2020. Co-
Criadora do Instituto Personna de estudos e pesquisa sobre violência.
Já trabalhou como professora de sociologia do ensino médio e atualmente
trabalha no atendimento psicoterápico clínico de adultos e adolescente por
meio da Abordagem Centrada na Pessoa, da qual tem formação ainda
incompleta pelo Centro Humanista de Brasília.
E-mail: alsborges3@gmail.com
Instagram: @terapiadadesconstrucao

Andrea Souza
Psicóloga formada pela Universidade Paulista- UNIP. Especialista
em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de Sexualidade.
Atua como psicóloga clínica em Jundiaí (SP) desde 2018 atendendo
adolescentes e adultas (os).
E-mail: andreasouzapsicologia@gmail.com
Instagram: @psicologa.andreasouza
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
Arthur Martins Maimone
Psicólogo formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP)
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade (InPaSex)
Psicólogo clínico com abordagem Psicanalítica desde 2019
Experiência com atendimento de população LGBTQ+ em situação de
vulnerabilidade
Email: arthurmaimone@gmail.com
14 Instagram: @arthur.maimone.psi

Beatriz Roedel
Linhares Faria
Psicóloga formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Especialista em Sexologia Aplicada pelo InPaSex – Instituto
Paulista de Sexualidade
E-mail: brlfpsi@outlook.com

Bruna Vargas
Psicóloga formada pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP, 2016)
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade (InPaSex, 2020)
Psicóloga clínica desde 2016, atende adultos e casais com ênfase em
Gestalt Terapia
E-mail: bruna.svargas@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127503013171154
Instagram: @psibruvargas

Camille Correia Borges Soares


Psicóloga Clínica CRP 11/08973
Graduada em Psicologia pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR.
Especialista em Terapia Analítico-Comportamental pela Universidade de
Fortaleza (UNIFOR).
Curso em Terapia Comportamental Integrativa de Casais (IBCT) -
Atitude Cursos (Brasília- DF).
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade (InPaSex).
E-mail: camillecborges7@gmail.com
Instagram: @psicologa_camilleborges
Estudos de Sexualidade 3
Erlon Coelho
Medico formado pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Psiquiatra formado pela Residência Médica em Psiquiatria do Hospital de Saude
Mental Professor Frota Pinto.
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Iinstituto Paulista de Sexualidade
(InPaSex).
email: erloncoelho1987@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8550007555784603

15

Gabriela Dalle Cort


Atriz
Formada em Teatro - licenciatura e bacharelado, pela Universidade do estado de
Santa Catarina (UDESC)
Especialista em Sexologia Aplicada pelo instituto paulista de sexualidade
(InPaSex)
E-mail: gabidallecort@gmail.com
Instagram: @gabidallecort

Gláucia Camila De Marco


Gestora de Recursos Humanos pela Faculdade
Anhanguera de São Bernardo
Pós graduada em Yoga pelo Instituto Naradeva Shala
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de Sexualidade -
InPaSex
E-mail: glauciademarco@gmail.com

Izabel Hart
Atriz formada pela Escola Superior de Artes Celia Helena (ESACH)
(2010)
mestre em Direção Teatral pela East 15 Acting School (University of
Essex) (2014), Reino Unido.
Intensivo de estudos da Biomecânica de Vsevolod Meyerhold pela
Universidade Russa de Artes (GITIS) (2013), Moscou.
Psicóloga formada pela Universidade Paulista (UNIP) (2019) e
especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade (InPaSex) (2020).
e-mail: izabel.hart@gmail.com
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Janaína Bandeira
Médica formada pela Universidade Federal do Ceará - UFC
Residência médica em Psiquiatria pelo Hospital Universitário Walter
Cantídio - UFC
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade - InPaSex
16 Email: janabandeira@outlook.com

Joice Kelly da Silveira Lamas


Psicóloga formada pelo centro universitário Anhanguera de Santo André -
UniA
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de Sexualidade -
InPaSex
Psicóloga Voluntária do Mapa do Acolhimento.
Experiência clínica desde 2014 com ênfase em Psicanálise.
E-mail: joicelamas@live.com

Juliana Costa de Souza


Especialista em Sexologia Aplicada pelo InPaSex e em Processo
Penal pela EPM. Graduada em Direito pelo UNISAL e em Turismo
pela FAM. Doula pela Escola de Doulas de Campinas. Capacitação
Jurídica em Violência Obstétrica pela Associação Artemis. Gestora
do CEJUSC de Nova Odessa pelo TJSP. Coordenadora do Projeto
Afin: Afeto na infância. Escritora e Palestrante há 11 anos.
E-mail: julianacostapalestrante@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8835397745026766
Instagram: @assuntosqueimportamdeverdade
Estudos de Sexualidade 3

Juliana da Silva de Almeida


Formada em Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul - São Paulo
Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de Sexualidade.
http://lattes.cnpq.br/8678374505791017
E-mail: julianasalmeidagf@gmail.com

17

Kelma Joana Petillo de Castro Stedile


Teóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
com
Especialização em Saúde e Educação Sexual pelo Instituto
Interferência
Certificada em atendimento à população LGBTI pelo Grupo
Dignidade
e em Clínica & Sofrimento Psíquico de LGBT'S pelo Espaço Diverso
Especialização em Sexologia Aplicada pelo InPaSex
Palestrante e Orientadora na área de Educação Sexual e Sexualidade
Humana
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8193429217109286
E-mail: Kelmajoana@gmail.com

Kendra Maira Tsubota Ferri


Psicóloga formada pela Universidade Positivo (UP);
Especialista em Clínica Analítico Comportamental pela
Universidade Positivo (UP);
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade (InPaSex);
Supervisora clínica no Centro Universitário Campos de
Andrade (UNIANDRADE);
E-mail: kendraferri@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9642140520566891
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
Lara Andrade Coutinho
Psicóloga formada pela Universidade Federal do Espírito Santo.
Especialista em Teoria Junguiana pela Capacitar. Especialista em
Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de Sexualidade.
psicóloga clínica em Vitória/Es desde 2016, atendendo
adolescentes, adultos e casais.
E-mail: laraandradecoutinho@gmail.com
Instagram: @psi.laraandradecoutinho

18

Lara Cunha Sales Rizerio


Psicóloga graduada pela Universidade de Brasília. Formação em
Gestalt-Terapia pelo Instituto de Gestalt-Terapia de Brasília (IGTB).
Especialista em Sexologia aplicada pelo InPaSex.
Experiência em orientação profissional, intervenção em crise, prevenção
do suicídio e violência doméstica. Atendimento clínico de adolescentes
e adultos.
Email: laracsrizerio@gmail.com

Lucas Matheus da Silva Barba


Psicólogo formado pela Universidade Anhanguera- Unian
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade- InPaSex
Atuando como Psicólogo social e clínico há 3 anos.
E-mail: Lucas.1.8@hotmail.com
Estudos de Sexualidade 3
Luiza Pontes Vieira Carneiro
Psicóloga formada pela UFRJ (2021).
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade (2020)
Capacitada em Psicologia e diversidade Sexual e Psicologia Social e
Violencia Doméstica pela Ellocursos
Estagiou no programa de Psicanálise, Infância e Violência doméstica
(VIDPSI) do IPUB/UFRJ
http://lattes.cnpq.br/8189367464823845
E-mail: luizapvpsi@gmail.com 19

Marcella Ormastroni Maretti


Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Analista do
Comportamento pelo Núcleo Paradigma e Sexóloga pelo Instituto
Paulista de Sexualidade (InPaSex).
marcella.maretti@gmail.com
instagram: @psi.marcellamaretti
lattes: http://lattes.cnpq.br/1251293644778889

Pedro Henrique de Souza Herrera


Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
Formação em Análise Transacional pelo Instituto Pharos.
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade (Inpasex).
Experiência em psicologia clínica, atendendo adultos, desde 2019.
E-mail: pedrohdsh@gmail.com
Instagram: @pedroherrera.psi
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Priscylla Antonelli Borges


Psicóloga pelo Centro Universitário de Brasília UniCEUB.
Formação em Gestalt-Terapia pelo Instituto de Gestalt-Terapia de
Brasília (IGTB).
Especialista em Sexologia Aplicada pelo InPaSex.
Consteladora familiar em formação (Instituto Aleph).
Atendimento clínico em psicoterapia 2014.
Sócia-proprietária Instituto de Psicologia Acontecer.
20 Email: antonelli.priscylla@gmail.com
Instagram: @psi.priantonelli

Sandra Rosemara Pereira da Silva


Psicóloga (CRP 07/08535) (PUC/RS, 1997/1)).
Especialista em Psicologia Hospitalar (UFRGS, 2005).
Especialista em Psicologia Clínica pelo Instituto Cyro Martins
(ICM, 2010).
Sexóloga especializada pelo Instituto Paulista de Sexualidade
(InPasex, 2020).
Psicóloga Clínica desde 1997, atende adolescentes e adultos com
ênfase em Psicanálise e casais e família desde 2011 com ênfase em
Psicanálise dos Vínculos.
E-mail: Sandra_rps@terra.com.br
Instagram: @sandrarps.psico

Tayná Nunes Garcia


Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul
Sexóloga especializada pelo Instituto Paulista de Sexualidade
Experiência, foco e estudo da população LGBTTQIA+
Realiza workshops na área de sexualidade e gênero
taynagpsicologa@gmail.com
Insta: @taynapsicologa
Estudos de Sexualidade 3

Thais Desiderá Raposo


Psicóloga formada pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie
Qualificação em Análise do Comportamento pelo Centro
de Tecnologia do Comportamento - Paradígma
Especialista em Sexologia Aplicada pelo Instituto
Paulista de Sexualidade- InPaSex
Terapeuta DBT formada pelo Instituto de Psicologia
Baseada em Evidência 21
E-mail: thaisraposopsi@gmail.com
Lattes http://lattes.cnpq.br/6808275346007860

Thaís Salomão Yacote


Psicóloga formada pela Universidade Anhembi Morumbi em
2014, no modo graduação sanduíche juntamente com a
Universidad Europea de Madrid em 2012.
Especialista em Terapia Comportamental pela Universidade de
São Paulo (2015)
Especialista em Sexologia Aplicado pelo Instituto Paulista de
Sexologia (InPaSex).
Mestre em Psicologia Forense pela Universidade Tuiuti do
Paraná (UTP).
lattes: http://lattes.cnpq.br/3061629490419950
email: thais.yacote@gmail.com

Tomás Pereira Monteiro Machado


Formado em Administração de Empresas com foco em Recurso
Humanos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Formado em Psicologia pelas Faculdades Metropolitanas Unidas.
Pós-graduado em Sexologia Aplicada pelo Instituto Paulista de
Sexualidade - InPaSex.
E-mail para contato: tomas.machado.psi@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6416781544644361
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

22
Estudos de Sexualidade 3

IMPULSIVIDADE SEXUAL EM MULHERES


COM TRANSTORNO DE PERSONSALIDADE BORDERLINE

Ana Karolina Félix da Silva

23

RESUMO
O transtorno de personalidade borderline (TPB), se caracteriza pela imprevisibilidade, observa-
se a auto negligencia com as ações bem como para com as conseqüências. Este estudo será
baseando em material literário, destacando em especifico as implicações que incidem na
sexualidade feminina, o contexto da vulnerabilidade emocional, os riscos aliados a
impulsividade sexual. Conclui-se que a mulher diagnosticada com transtorno de personalidade
borderline apresenta instabilidade emocional e falta de controle dos impulsos, com tendência
a comportamentos auto destrutivos.

Palavras-chave: utilizadas na busca foram: transtorno de personalidade borderline,


sexualidade, feminina, comportamento destrutivo, impulsividade.

ABSTRACT
Borderline personality disorder (TPB) is characterized by unpredictability, self-neglect is
observed with actions as well as with consequences. This study will be based on literary
material, highlighting specifically the implications that affect female sexuality, the context of
emotional vulnerability, the risks associated with sexual impulsivity. It is concluded that the
woman diagnosed with borderline personality disorder has emotional instability and lack of
impulse control, with a tendency to self-destructive behavior.

Keywords: Bordeline personality disorder, female sexuality, destructive behavior,


impulsivity.

1 INTRODUÇÃO
Transtorno de Personalidade Borderline
A partir da minha experiência em atendimentos de mulheres com Transtorno de
Personalidade Borderline, observei que as características de sexualidade aflorada e
impulsividade sexual muito exacerbada contribuem para os problemas que elas enfrentam na
convivência familiar e social.
São poucos os artigos, recentes ou antigos, que abordem o tema da mulher com
transtorno de personalidade borderline, em especial no que se refere a aspectos relativos à
sexualidade
O TPB é mais prevalente em mulheres, sendo que 75% dos diagnósticos desse TP são
aplicados a pacientes do gênero feminino (APA, 2014). Pesquisadores relatam a sua
prevalência em cerca de 1,6 a 5,9% da população geral, também apresentando-se em
praticamente 10% dos indivíduos avaliados em clínicas de saúde mental e 20% dos pacientes
psiquiátricos internados. Os sintomas, na grande maioria, podem ocorrer entre os 18-25 anos
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

de idade: 90% têm início antes dos 30 anos de idade (Faria & Sauaia, 2011). Um ponto a ser
destacado nesses pacientes é o comportamento suicida, em torno de 75% dos pacientes com
TPB tentaram o suicídio pelo menos uma vez, e desses 10% conseguiram concluir o ato, sendo
que a maior parte aconteceu antes dos 40 anos (Black, Blum, Pfohl, & Hale, 2004). Uma prática
comum dos pacientes com TPB é a automutilação que se caracteriza por lesões no seu próprio
corpo, sem intenção de morrer.
Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID 10, p. 200), o TPB é “Um de
personalidade no qual há uma tendência marcante a agir impulsivamente sem consideração das
24
consequências, junto com a instabilidade afetiva”.
Para O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V, 2014), é
necessária a presença de cinco ou mais critérios para fechar o diagnóstico para TPB: 1) a
utilização de esforços frenéticos, no sentido de evitar um abandono real ou imaginário; 2) a
presença de um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos, caracterizado
pela alternância entre extremos de idealização e desvalorização; 3) a presença de perturbações
da identidade, como instabilidade acentuada e resistente de autoimagem ou do sentimento do
self, 4) comportamentos impulsivos em pelo menos duas áreas potencialmente prejudiciais à
própria pessoa (por exemplo, gastos financeiros, sexo, abuso de substâncias, direção
imprudente, comer compulsivo); 5) recorrência de comportamentos, gestos ou ameaças
suicidas ou de automutilação; 6) instabilidade afetiva devido a uma acentuada reatividade do
humor (isto é, episódios de intensa disforia, irritabilidade ou ansiedade geralmente durante
algumas horas e apenas raramente mais de alguns dias); 7) sentimentos crônicos de vazio; 8)
raiva inadequada e intensa ou dificuldade em controlar a raiva (com demonstrações frequentes
de irritação, raiva constante, lutas corporais recorrentes); 9) ideação paranóide transitória e
relacionada ao estresse ou graves sintomas dissociativos (APA, 2014 p. 142).
O TPB é mais prevalente em mulheres, sendo que 75% dos diagnósticos desse TP são
aplicados a pacientes do gênero feminino (APA, 2014). Pesquisadores relatam a sua
prevalência em cerca de 1,6 a 5,9% da população geral, também apresentando-se em
praticamente 10% dos indivíduos avaliados em clínicas de saúde mental e 20% dos pacientes
psiquiátricos internados. Os sintomas, na grande maioria, podem ocorrer entre os 18-25 anos
de idade: 90% têm início antes dos 30 anos de idade (Faria & Sauaia, 2011). Um ponto a ser
destacado nesses pacientes é o comportamento suicida, em torno de 75% dos pacientes com
TPB tentaram o suicídio pelo menos uma vez; e, desses, 10% conseguiram concluir o ato,
sendo que a maior parte aconteceu antes dos 40 anos (BLACK, BLUM, PFOH, & HALE,
2004). Uma prática comum dos pacientes com TPB é a automutilação, que se caracteriza por
lesões no seu próprio corpo, sem intenção de morrer. O sujeito faz uso desse comportamento
porque não tem estratégias mais adequadas para lidar com sentimentos os quais descrevem
como muito dolorosos e insuportáveis. Por meio da dor física, ou seja, do ato de se machucar,
sentem um alívio da dor psíquica (Sousa & Vandenbergue, 2005; Covelli, 2010). Um estudo
avaliou a relação entre os sintomas, os problemas interpessoais e os tipos de comportamentos
agressivos apresentados por pacientes com TPB durante dois anos. Constataram que pacientes
com TPB que apresentavam dificuldades interpessoais envolviam-se, com mais frequência, em
experiências de violência no seu cotidiano (Stepp, Smith, Morse, Hallquist, & Pilkonis, 2012)
Dentre as alterações de comportamentos potencialmente prejudiciais à própria pessoa
estão as drogas, a comida, o dinheiro, a impulsividade sexual e a relação com a ausência do
cuidado preventivo e a exposição a Infecções Sexualmente Transmissíveis. A necessidade
submeter-se a situações reais que causam sofrimento e humilhação no intuito de obter prazer
sexual refere-se ao transtorno do masoquismo sexual, a qual tem prazer em ser queimada
durante o ato sexual. Essa característica de comportamento, em alguns casos, pode ser
Estudos de Sexualidade 3

compreendida como um reflexo do TPB e uma tentativa de adaptação para situações de abuso
verbal, físico e/ou sexual ocorridas com a paciente durante a sua vida (APA, 2014).
Sabemos que o abuso sexual se configura como uma das formas mais graves de
violência praticada contra um indivíduo. Trata-se de uma forma de contato, interação ou
estimulação sexual não consentida, ou induzida, que pode acontecer através de carícias, toques,
sexo oral e/ou penetração, bem como outras maneiras que não envolvam o contato físico
(pornografia, exibicionismo e exploração sexual) (SANSONE, CHU, & WIEDERMAN,
2011).
Em uma revisão de estudos publicados em língua inglesa e espanhola, aponta-se que o 25

transtorno limítrofe, juntamente com o antissocial, histriônico e narcisista, são os principais TP


manifestados por pacientes vítimas de abuso sexual mulheres com o diagnóstico de TPB
sofreram episódios de violência de características mais graves e frequentes do que mulheres
violentadas, sem o diagnóstico (GALLARDO-PUJOL, PADILHA, & PEREDA, 2011).
LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO: Scielo 152 Resultados, UNESP/ARARAQUARA:
15 Resultados

Impulsividade
A impulsividade sexual é entendida como um traço de temperamento que compõe a
personalidade do indivíduo. Apresenta-se como uma característica hereditária e estável, que
pode ser observada na dinâmica comportamental, podendo também ser adquirida numa lesão
do sistema nervoso central (ABREU, 2008).
A característica principal da impulsividade se refere às ações imediatas, não planejadas,
que ocorrem em resposta a estímulos internos e esternos, e despeito das consequências
negativas dessas reações, tanto para o indivíduo quanto para terceiros (CHANBERLAIN 2007,
pp. 255-261).
A impulsividade ocorre geralmente em pessoas emocionalmente estáveis, como
aquelas com transtorno de personalidade borderline ou transtorno afetivo bipolar (SWAN,
2009, pp. 280-288). Pode se manifestar com comportamentos autoagressivas e com
comportamentos de risco de cunho sexual (BLACK, 2009 pp. 325-328).
A impulsividade contribui para estágios iniciais, como por exemplo, para
experimentação de drogas e impulso sexual excessivo (CUNHA 2009, p. 127). A definição do
comportamento sexual fora de controle como impulso sexual excessivo indica uma
proximidade com os transtornos cujas alterações predominantes são do impulso, independente
das consequências, podendo haver uma maior sensação de tensão ou excitação antes do ato,
seguido por sensação de prazer, gratificação ou alívio posterior à realização (APA, 2000).
Para compreendermos melhor a impulsividade sexual como característica do transtorno
de personalidade borderline, na 10ª Edição do Cadastro Internacional de Doenças (CID 10,)
encontra-se o comportamento sexual fora do controle, descrito como: F52. 7 Impulso Sexual
Escessivo, ambos homens e mulheres podem ocasionalmente queixarem-se de impulso sexual
excessivo como um problema por si, ocasionalmente durante a adolescência ou início da vida
adulta (OMS,1993, p. 190). São as sensações de prazer extremo, aliado a velocidade frenética
da auto satisfação, com características de personalidade de “correr riscos”, altamente
prevalentes em mulheres diagnosticadas com personalidade borderline.
Outro ponto relevante é que impulsividade se aponta características de dependência que
se manifestam definindo-se como dependências comportamentais (GRANT, 2010 pp. 233-
241)
Compartilham características clinicas comuns, tais como: padrão de comportamento repetitivo, a
perpetuação deste pesar das consequências negativas, ausência ou dificuldade em controlar o
comportamento problemático; urgência, desejo ou fissura, são experimentados antes do
engajamento no comportamento disfuncional; repetidas tentativas frustradas de interromper ou
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
parar com o comportamento disfuncional; desenvolvimento de tolerância sobre o comportamento,
o que implica na necessidade de aumentar a freqüência; abstinência e impacto direto nas
principais áreas de vida (GRANT, 2010, 924-30).

A literatura alguns autores apontam que o comportamento impulsivo reflete


experiências traumáticas da infância (NOLL, 2003 p. 575) a tentativa de construir cenários
fantasiosos é derivada de degradações emocionais como abuso físico, sexual ou psicológico,
transparecendo como sentimentos de inelegibilidade, inferioridade e vergonha.
26 A possibilidade de apresentar intensa necessidade inconsciente de recuperação, pessoal,
emocional e afetiva as quais motivariam o surgimento de fantasias e comportamentos sexuais
(CALEMAN, 1987 pp. 189 e 204). A busca constate por prazer baseada em recompensa,
tornando-se um hábito constante, de prejuízos emocionais diários e que interferem no bem
estar e segurança física/emocional da mulher com transtorno borderline.

Sexualidade
São muitos os conceitos de sexualidade. Sexualidade caracteriza-se por uma capacidade
de se ligar a pessoas, objetos, ideias, à vida como um todo, é a busca do amor, do desejo, do
prazer sexual, além de diversos sentimentos tais como admiração, companheirismo e amizade
(RODRIGUES, 2008).
O termo sexualidade “é uma energia que nos motiva a procurar Amor, contacto,
ternura, intimidade, que se integra no modo como nos sentimos, movemos tocamos e somos
tocados; É ser-se sensual e ao mesmo tempo sexual; ela influencia pensamentos, sentimentos,
ações e interações, e por isso influência também a nossa Saúde física e mental. (OMS, 1992, p.
52).
Já para Foucault (1997), a sexualidade é um “dispositivo histórico”, uma invenção
social, que se constitui historicamente a partir de múltiplos discursos sobre sexo, discursos que
regulam, normatizam, instauram saberes, que produzem “verdades”. Sua definição de
“dispositivo” sugere a direção e abrangência de nosso olhar.
A sexualidade não se constituiria em domínio de significação isolada, estando sexo e prazer
englobados por uma moralidade mais abrangente. A definição da sexualidade seria crucial para a
definição do sujeito na sociedade moderna. Quanto a isso, Loyola (1999) afirma que a sexualidade
pode ser abordada em relação à família, ao parentesco, ao casamento assim como de maneira
“perturbadora” da ordem social, nessa abordagem mais específica para a sociologia e
antropologia. A sexualidade constitui ainda um campo a ser delimitado, um objeto em pleno
processo de construção. À expressão da sexualidade na mulher borderline, ocorre de forma
impulsiva, ou seja, essa mulher pode apresentar comportamentos sexuais em que não se protege
tanto devido à escolha indiscriminada de parceiros (as) sexuais quanto no que se refere ao uso de
preservativos como fator de risco HEILBORN, 1999, p. 41.

De acordo com LAPLANCHE (1995, p. 619) “[...] sexualidade não designa apenas as
atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas de toda uma
série de excitações e de atividades presentes desde a infância, que proporcionam um prazer
irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica fundamental e que se encontram a título
de componentes na chamada forma normal do amor sexual”.
Beauvoir (1967) fala “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Tornar-se mulher é a
escolha forçada de uma particularidade que tem a ver como o gozo afeta o corpo feminino, sem
que um órgão específico venha responder a isso. Tudo o que se pode dizer sobre as mulheres
deixa escapar a posição de causa ocupada por uma mulher, no que concerne ao desejo de quem
a ama, seja Homem, seja Mulher
Segundo Rangé (2001) o exercício da sexualidade é algo complexo e que não envolve
a prática dos genitais, experiências de aproximação, transmissão de sensações, entre outros.
Estudos de Sexualidade 3

Implica ainda hábitos adquiridos, atitudes e, sobretudo, significados socialmente aprendidos,


relacionados com a história de vida de cada indivíduo e sua maneira de internalizar as normas
sociais.
Rangé (2001) aponta que as causas psicológicas mais comuns constituem-se de acordo
com três fatores: 1) os predisposicionais: que incluem as relações familiares conflitantes, as
relações sexuais traumáticas, uma educação restritiva, baseada em preceitos morais e/ou
religiosos, 2) causas precipitadoras: como conflitos na relação conjugal, infidelidade,
envelhecimento, disfunção do parceiro, depressão e ansiedade e reações psicológicas a fator
orgânico e 3) os fatores mantenedores: como a ansiedade em corresponder ao desempenho 27

esperado, exigências do parceiro, falta de comunicação, culpa, desinformação sobre o próprio


corpo (fazem com que a disfunção persista ou piore).
Dois fatores importantes, atualmente, a mulher no exercício da sua sexualidade, sofre
por dois motivos (aqui também se aplica o mesmo conceito a uma mulher com transtorno de
personalidade borderline): se de um lado há um grande incentivo, que traz consigo a idéia
angustiante de prazer sexual como obrigação; por outro ainda há toda uma conjuntura histórica
muito presente da repressão, onde o passado deixou marcas impressas na vivência da
sexualidade, que não podem ser apagadas de uma hora para outra.
Outros fatores de risco apontados na literatura são: personalidade vulnerável (mulheres
pouco responsáveis ou organizadas), esperar um bebê do sexo oposto ao desejado, apresentar
poucas relações afetivas satisfatórias e suporte emocional deficiente (BOYCE E HICKEY,
2005). Abortamentos espontâneos ou de repetição também foram indicados como fatores de
risco (Botega, 2006).
A possibilidade da gravidez não planejada, aliada a vulnerabilidade emocional dadas
as circunstâncias em que essa mulher se encontra, torna ainda mais passível, estudos recentes
revelaram que transtornos psiquiátricos subdiagnosticados e não tratados em gestantes podem
levar a graves conseqüências materno fetais, até mesmo durante o trabalho de parto
(JABLENSKY et al., 2005; SENG et al., 2001). Apesar de a gestação ser tipicamente
considerada um período de bem-estar emocional e de se esperar que a chegada da maternidade
seja um momento jubiloso na vida da mulher, o período perinatal não a protege dos transtornos
já existente.
Mulheres mais suscetíveis aos transtornos do humor no puerpério também teriam
diagnóstico de transtorno disfórico pré-menstrual ou apresentaram sintomas depressivos no
segundo ou quarto dia do pós-parto (BLOCH et al., 2005). Neste sentido o apoio da família é
imprescindível, no acompanhamento em convivência, clinico A família pode ser entendida de
uma forma mais tradicional do que é considerada na atualidade, dessa maneira as
transformações ocorreram devido à maior intimidade entre seus membros, assim nas relações
entres as gerações e nas variáveis externas incorporadas à família (Petzold, 1996).

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Compreender a realidade da mulher diagnosticada com transtorno de personalidade
borderline (limítrofe) e os sintomas, como a impulsividade sexual.
Objetivos específicos
-- Esplanar a importância do tema da sexualidade em mulheres portadoras de
diagnóstico borderline, bem como risco de abuso sexual.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

-- Compreender que a sexualidade não se constitui numa relação isolada o que nos
permite dentro da literatura apontar os conflitos vividos no dia a dia desta mulher.

3. METODOLOGIA
A metodologia utilizada para esta pesquisa propõe esclarecer através da literatura
científica, livros e artigos, a identificação de questões emergentes da vivência da sexualidade
feminina no tocante a impulsividade como sintoma do Transtorno de Personalidade Borderline
(TPB), no contexto social e a exposição à ISTS, articulando entre si a possibilidade para novos
28
olhares dentro da temática escolhida. Trata-se de uma revisão de literatura
As palavras-chave utilizadas na busca foram: Transtorno de Personalidade Borderline,
Sexualidade, Feminina, Comportamento Destrutivo, Impulsividade.
A partir de então iniciou-se a busca por materiais científicos que comprovassem a
veracidade deste transtorno, como livros e artigos neste foram encontrados 152 (SCIELO)
artigos no site do SCIELO, desta quantidade selecionei 16 artigos.
O critério de para aceitação dos artigos foram títulos que coincidem com a temática
TPB, interpretação, instituições de educação calcadas em pesquisas cientificas.

4. DISCUSSÃO
O TPB ainda é um campo muito vasto a ser estudado, muitas vezes usado para definir
pessoas que não se encaixam em diagnósticos existentes. Especialistas definem borderline
como pessoas mais doentes do que os neuróticos (que expressam severos conflitos emocionais
ligados à ansiedade), mas menos doentes que psicóticas cujo afastamento da realidade torna as
funções normais impossíveis (ADES e SANTOS, 2012 p. 24).
O tratamento para TPB é realizado com psicoterapia e psicofármacos, Gabbard (2009)
afirma que os agentes farmacológicos usados atualmente para tratar os transtornos de
impulsividade devem ser empregados para diminuir os sintomas-alvo como parte de um
processo de tratamento mais amplo. Quanto aos estabilizadores de humor, estes podem reduzir
de forma significativa as flutuações súbitas ou extremas de humor.
As medicações mais indicadas e utilizadas para pacientes com TPB são compostas por
antipsicóticos (ajudam a controlar a raiva, a hostilidade e episódios psicóticos breves),
antidepressivos (auxiliam na regulagem do humor deprimido, comum entre esses sujeitos),
inibidores da MAO (IMAOs) (controlam o comportamento impulsivo), benzodiazepínicos
(controlam a ansiedade) e os estabilizadores de humor (regulam o humor, auxiliam na
impulsividade). Alguns desses fármacos podem ter efeitos colaterais, como o aumento de peso
e a diminuição da libido, o que também pode interferir na vida sexual do sujeito (SADOCK &
SADOCK, 2007; LIEB et al., 2010).
Ainda, pode ocorrer a disfunção sexual devido ao uso de alguma substância ou medicamento
(LUCENA, 2013).
No que se refere à psicoterapia, independentemente da abordagem, o profissional
precisa estabelecer um bom vínculo com o paciente, normalmente, os sujeitos iniciam a terapia
muito fragilizados, logo, empatia é essencial ao longo do tratamento (MINTO 2012;
BOURKE, 2013; LIEBMAN & BURNETTE, 2013).
Este aspecto de empatia é fundamental no cenário terapêutico, uma vez que um dos sintomas mais
permanentes na TPB é o sentimento de abandono, fazendo esforços frenéticos para evitar esse abandono
seja ele real ou imaginário. A falta de entendimento de si mesma (quem é o que gosta o que quer fazer)
provoca no border uma necessidade patológica de estar preso a outrem de forma simbiótica e dependente
(ADES e SANTOS, 2012 p. 25).
Estudos de Sexualidade 3

A pessoa diagnosticada borderline está totalmente absorvida no estabelecimento de


relações individuais exclusivas, sem qualquer risco de abandono. Eles podem exigir dessas
relações como se tivessem o direito de fazê-lo, o que sobrecarrega e aliena os demais.
Neste sentido os impulsos sexuais atuam sem o menor controle. Conforme Abdo (2011,
pp. 229-240), “Indivíduos com TPB manifestam limitações significativas na esfera sexual, as
quais podem interferir ativamente no curso e na manutenção de determinados sintomas da
psicopatologia”. Importante destacar que o anseio pela relação sexual leva o border vivenciar
situações vulneráveis com relação a sua própria segurança.
O abuso sexual configura- se como uma das formas mais graves de violência praticada 29

contra um indivíduo. Trata-se de uma forma de contato, interação ou estimulação sexual não
consentida, ou induzida, que pode acontecer através de carícias, toques, sexo oral e/ou
penetração, bem como outras maneiras que não envolvam o contato físico (pornografia,
exibicionismo e exploração sexual).
Outro ponto a ser destacado são as parafilias, que antigamente eram chamadas de
perversões sexuais. Elas se caracterizam por qualquer interesse sexual intenso e persistente que
não é voltado para a estimulação da genitália, ou seja, o indivíduo tem prazer com objetos não
humanos, por atos que envolvem objetos inanimados, por atos (Aletheia 46, jan/abr, 2015, p.
107) que envolvem sofrimento ou humilhação, próprios ou do parceiro, ou por crianças ou
outras pessoas sem o seu consentimento. Os principais transtornos parafílicos são: transtorno
voyerista (excitação ao ver uma pessoa nua, se despindo ou mantendo uma relação sexual, sem
ela saber que está sendo observada); transtorno exibicionista (quando o sujeito passa a mostrar
seus órgãos genitais a outras pessoas em lugares públicos, sendo que o prazer do mesmo ocorre
quando ele vê o espanto da outra pessoa em ver seu órgão); transtorno frotteurista (excitação
sexual resultante em tocar ou se esfregar em outra pessoa que não lhe deu o consentimento);
transtorno do masoquismo sexual (quando o sujeito necessita e se submete ao sofrimento e
humilhação para obter prazer sexual); transtorno do sadismo sexual (quando o sujeito necessita
fazer o outro sofrer para obter prazer sexual); transtorno pedofílico (fantasias e atos sexuais
com crianças e pré-púberes); transtorno fetichista (quando o foco é específi co em um objeto
ou em uma parte do corpo); transtorno transvéstico (excitação sexual em se vestir como o sexo
oposto) (APA, 2014).
A tentativa ou a consumação do abuso pode influênciar significativamente no
desenvolvimento emocional, cognitivo e comportamental de um sujeito, causando reações
negativas graves em determinadas situações. Em alguns casos, inclusive, o histórico de abuso
sexual pode estar relacionado à presença do TPB (SANSONE, CHU, & WIEDERMAN, 2011;
SCHAEFER, ROSSETO, & KRISTENSEN, 2012).
Mulheres com TPB apresentam prejuízos graves no funcionamento, tais como relações
interpessoais tempestuosas, estresse familiar alto, dependência de outras pessoas, dificuldade
em manter empregos e comportamento auto agressivo, incluindo taxas elevadas de suicídio
(PARIS J, BLACK D W), 2015, 3-7. É freqüente a comorbidade com transtornos do humor,
transtornos de ansiedade e transtornos relacionados ao uso de substâncias. 6 no cuidado
primário, apresentam elevada taxa de ideação suicida (21%) e ansiedade (57%), e alta
comorbidade com depressão maior e transtorno bipolar (GROS R, 2002).
Percebem-se possíveis configurações culturais de gênero expostas, que impedem a
satisfação sexual e configuram violações dos direitos humanos dessas populações ampliadas
pela condição de viver com o diagnóstico de transtornos mentais (BARBOSA, GIAMI et al.,
2015).
O uso da mulher como objeto para obtenção de prazer sexual e sua exposição ao risco
de infecção por ISTs estabelecendo a diferenciação entre roteiros sexuais de homens e
mulheres, afirma que há a necessidade social constante de os primeiros buscarem o sexo como
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

fonte de prazer e forma de confirmar sua masculinidade, já para as mulheres a relação sexual
não é vista como prazerosa, mas como obrigação em relação a seus parceiros. Em vista da
exposição ao sexo, as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) são causadas por mais de
30 vírus e bactérias. Elas são transmitidas, principalmente, por meio do contato sexual sem
o uso de camisinha, com uma pessoa que esteja infectada (OMS, 2019).
A discriminação das mulheres é recorrente, elas têm sempre um esforço enorme para
superá-la em relação aos papéis de gênero impostos pela sociedade, inclusos aí o acesso aos
serviços de saúde e a garantia de um espaço que as possibilite vivenciar suas sexualidades
30
(ROEDER, 2014).
Estudo etnográfico, com enfoque nos profissionais dos serviços de referência em saúde
mental, acerca da sexualidade de pessoas com transtornos mentais e do HIV/Aids, realizado
em duas instituições de referência em saúde mental do Estado do Rio de Janeiro (PINTO et al.,
2007), mostrou que os profissionais de saúde consideram a sexualidade dos pacientes como
sendo exacerbada, apresentando uma “hipersexualidade” pertencente ao quadro da doença, e
afirmam ser “um problema (...) dentro das instituições”.
Também, há profissionais dentro das instituições que entendem a sexualidade dos
usuários como algo normal, inerente ao ser humano. Para os pacientes, as relações sexuais
mantidas nas enfermarias é algo primitivo e vazio de afeto.
Soma-se a ela o transtorno mental e o rótulo social imposto sobre a pessoa que faz
tratamento para "doenças da cabeça". Portanto, este estigma, a repressão, a passividade e a
subordinação tendem a se agravar quando unimos os termos "mulheres que fazem tratamento
para transtornos mentais graves" (ROEDER, 2014; SANTOS, 2009; ZANELLO et al., 2015).
Em relação à concepção que a família tem sobre a doença mental pode-se perceber que
algumas dificuldades de entendimento do transtorno, bem como da instabilidade afetiva,
fatores estes que entendem que o sofrimento mental possui como característica a cronicidade
e incurabilidade desta doença, tais situações mostram que o familiar tem pouca compreensão
sobre a sintomatologia e as mudanças de comportamento do sujeito em sofrimento mental, o
que se deve, talvez pela falta de esclarecimento acerca da doença. Embora alguns estudos
mostrem que a convivência da família altera os costumes e hábitos do ser humano, entende-se
também que a existência de um transtorno mental pode desestruturar a rotina da família,
exigindo da mesma uma demanda de atenção para com o individuo doente. Nesse sentido cada
integrante que constitui a família passa a adquirir um papel e significado próprio para conseguir
administrar o novo cotidiano da vida familiar (ALMEIDA 2011).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da construção deste trabalho, ficou nítido que este transtorno necessita ser cada
dia mais estudado e compreendido, é possível observar que para realizar tal estudo é necessário
adentrar por algumas áreas como vulnerabilidade emocional, abandono, contracepção,
exposição a risco de vida, suicídio, psicofármacos e a psicoterapia. A condição de risco sexual
que esta mulher se expõe, tendo em vista as alterações emocionais que não permitem vivenciar
a sexualidade com a segurança devida, nesta busca por literatura que compreendessem o
contexto da mulher com TPB torna-se nítido a descoberta do sofrimento psíquico bem como
os riscos sexuais devido á ausência do auto cuidado.
Entender a história de vida da pessoa no âmbito físico, emocional e a sexualidade, no
intuito estudar também possíveis patologias que interferem na realidade e no tratamento do
TPB.
É importante destacar que o estudo do TPB ainda é limitado, faltam alguns recursos
que orientem ao manejo clinico desta personalidade limitrofe, contudo se faz necessário
continuar as investigações, explorando deste cenário novas possibilidades de tratamento.
Estudos de Sexualidade 3

Ainda hoje persistem em formas de tabus, mitos, esteriótipos e preconceitos em relação


às pessoas com transtornos mentais e podem impedir que os profissionais de saúde acolham
diferenças de forma solidária e apresentem cuidados integrais, que incluam o direito desses
sujeitos a relações afetivas e sexuais plenas e saudáveis.
Reafirmo a importância do prazer que tenho em acolher essas mulheres com demanda
tão significativa, que vai além do transtorno em si. Fazer uma escuta que possibilite intervir
com orientações de humana para humana, compreender a história de vida e sofrimento, ter a
possibilidade de alcançar a família desta mulher é de fato transformador.
31

6. REFERÊNCIAS
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Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

34

Ana Luiz apresentando o Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Sexologia


Aplicada
Estudos de Sexualidade 3

RELAÇÕES NÃO MONOGÂMICAS E GÊNERO

ANA LUIZA BORGES

35

RESUMO
O presente trabalho traz à luz algumas das modalidades de relacionamento sexual e/ou amoroso
heterossexuais não monogâmicos consensuais e os analisa em uma perspectiva de gênero. O
objetivo é traçar um panorama das maneiras atualizadas da perpetuação do patriarcado, do
machismo e da misoginia nas relações não monogâmicas da atualidade. As mulheres seguem
sendo colocada numa posição de dominação dentro dessas relações que vestem roupagens mais
modernas e que, teoricamente, buscam equidade entre os gêneros. A análise parte da ideia da
interseccionalidade entre gênero, padrão de corpo, raça, orientação sexual e discriminação. A
revisão literária narrativa trouxe dados das maneiras menos e mais sutis e das formas
atualizadas da violência de gênero envolto nesse discurso libertário não monogâmico. Para
isso, foi utilizado o conceito de micromachismos. Os dados também demonstram que mulheres
de corpos negros e gordos, ou seja, fora do padrão social aceito na sociedade ocidental
contemporânea seguem sendo discriminadas nesses tipos de relações. Assim, ficou evidente
que em alguns contextos, o discurso da não monogâmica é utilizado como um braço do
patriarcado.

Palavras-chave: não monogamia; gênero; relacionamento aberto; poliamor; amor livre;


swing.

ABSTRACT

The present work brings to light some of the consensual non-monogamous heterosexual sexual
and / or amorous relationship modalities and analyzes them from a gender perspective. The
objective is to provide an overview of the updated ways of perpetuating patriarchy, machismo
and misogyny in today's non-monogamous relationships. Women continue to be placed in a
position of domination within those relationships that fit more modern standards and that,
theoretically, seek equity between genders. The analysis starts from the idea of the
intersectionality between gender, body pattern, race, sexual orientation and discrimination. The
narrative literary reviews provided data on the less and more subtle ways and updated forms
of gender violence involved in this non-monogamous libertarian discourse. In those reviews
the concept of micromachisms was used. The data also shows that women with black and fat
bodies, meaning outside the social standard accepted in contemporary Western society,
continue to be discriminated against in these types of relationships. Thus, it was evident that
in some contexts, the non-monogamous discourse is used as a tool of the patriarchy.

Keywords: non-monogamy; gender; open relationship; free love; swing; polyamory.


Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

1. INTRODUÇÃO
O ideal de monogamia apresenta-se para a sociedade moderna por meio de homem e
mulher que se apaixonam e vivem uma relação conjugal de maneira exclusivista, abrindo mão
de estabelecer relações sexuais e amorosas com outras pessoas. Esse conceito toma força no
século XIX por meio do ideal do amor romântico. É importante ressaltar que no período
anterior, os matrimônios eram feitos, em sua maioria, por meio de acordos familiares e estatais,
ou seja, as possibilidades de escolher parceiro ou parceira eram extremamente limitadas. A
ideia do amor romântico surge então da ascensão da burguesia e da expansão da vida urbana.
36
É o amor romântico que garante a possibilidade de escolha do parceiro, ou seja, a sociedade
moderna e capitalista traz essa sensação de libertação, inclusive na esfera amorosa (CARLOS,
LAGO E GROSSI, 2010). Segundo Daniels e Mirella (2007), o capitalismo reafirma a relação
monogâmica para controlar o trabalho e a economia, principalmente por meio da religião cristã,
atribuindo como pecador o que foge desse estereótipo. O conceito sedimenta-se
estruturalmente na sociedade e cria barreiras específicas de controle: se por um lado ele é a
libertação dos amantes, por outro, ele estabelece o dever da monogamia, da
heteronormatividade e do patriarcado como a estrutura social. O amor se torna doméstico,
puritano, controlado, que distribui e cobra papéis de gêneros específicos. Dessa forma, a
monogamia compulsória é apresentada como a única possibilidade socialmente aceita (PEREZ
E PALMA, 2018).
De maneira resumida, a história da família ocidental europeia pode ser contada da
seguinte forma: na pré história, homens e mulheres viviam separados por gênero e se
encontravam de tempos em tempos para se acasalar. Não havia o conceito de monogamia entres
eles, e, portanto, o sexo era livre. Os filhos eram criados pelas mulheres e, quando atingiam a
puberdade, eram separados por gênero. A linhagem dos filhos era matrilinear, pois os homens
não tinham controle para saber quem era filho de quem. Para aumentar as chances de
sobrevivência dessas mulheres grávidas e desses recém-nascidos, os grupos se juntaram e
pôde-se perceber que alguns papéis já foram colocados. Mulheres cuidavam dos filhos e
colhiam vegetais, enquanto os homens caçavam e protegiam a comunidade. Com o passar do
tempo, os grupos fixaram-se em determinados territórios, domesticando animais e utilizando a
agricultura. É nesse momento que os homens passam a entender e então dominam a
reprodução, mudando assim, a lógica para uma linhagem patrilinear. Nesse contexto, na idade
média, a Igreja e o Estado – formados por homens – validaram e reforçaram o sistema patriarcal
de dominação sobre as mulheres (CALAZANS, 2020).
Dentro dessa sociedade patriarcal, capitalista, religiosa, heteronormativa e
monogâmica, os papéis de gênero passam a ser bem definidos e esperados de cada um. Para
Castro (2014), a mulher esposa era diferenciada da mulher prostituta, de modo que a primeira
garantia a perpetuação da família e dos costumes enquanto a segunda garantia ao homem sexo
e prazer. Enquanto para o homem, os desdobramentos principais que garantem a manutenção
da sua masculinidade viril e dominadora, estão atreladas, principalmente ao sexo e ao trabalho.
De acordo com Zanello (2018), o homem garante a vida e os espaços públicos, enquanto a
mulher fica restrita aos espaços privados e tudo que destoa disso será malvisto. É importante
que a mulher seja destituída da sua sexualidade e desejo sexual para manter o status quo,
enquanto o homem deve ser incentivado e até exacerbado em relação a sua sexualidade. Outro
ponto relevante é que o modelo monogâmico trazido pela religião e pelos hábitos tradicionais
foi imposto sobretudo às mulheres. Homens tinham e tem até hoje um alargamento social
permissivo para com as relações extraconjugais (FREIRE E GOUVEIA, 2017). Isso quer dizer
que há uma naturalização dessa hipersexualização, que consequentemente valida a traição de
um homem como um impulso natural. Essa não é uma realidade para as mulheres. No advento
Estudos de Sexualidade 3

de uma traição, ela trai não só o esposo, mas sua família e sociedade inteira e todas suas
qualidades serão colocadas em xeque.
Castro (2014) afirma que eventos como a primeira e a segunda guerra mundial foram
decisivos para uma nova reflexão acerca dos papéis das mulheres e dos homens no contexto
social e marital. Mulheres tiveram de assumir locais antes dominados exclusivamente por
homens, porque estes estavam nos campos de batalha. Além disso, muitas famílias precisavam
se reorganizar quando os maridos morriam em guerra e as mulheres ficavam viúvas. Era
comum que um homem pedisse a outro de sua confiança que cuidasse de sua família no evento
de sua morte. Cuidar, nesse caso, significava assumir o papel do provedor, pai e também 37

esposo. Posteriormente, Castro afirma, ainda, que os anos 60 e o movimento hippie trouxeram
o ideal da amplitude sexual, do amor livre e, mais uma vez, do questionamento da norma geral.
É por meio desses momentos históricos que a não monogamia é resgatada de outras épocas e
passa a se repensar como possibilidade na sociedade contemporânea.
No decorrer da história é possível perceber como várias sociedades em locais e em
tempos diferentes comungaram de valores diversos para estabelecer relações amorosas; dentre
elas, muitas praticavam a não monogamia; eram sociedades ou povos poligâmicos ou, até
mesmo, poliamoristas. Há uma observação imprescindível quanto aos arranjos na maioria
dessas sociedades patriarcais: a possibilidade de relações não monogâmicas recaía
majoritariamente sobre os homens. Como afirmam Freire e Gouveia (2017), a consensualidade
entre o casal e a abertura para a possibilidade da mulher de experienciar e escolher tais relações
aparecem como algo bem atual. Essa é, sem dúvida, uma das maiores diferenças entre as
diversas configurações não monogâmicas consensuais: a inclusão das mulheres.
De acordo com a pesquisa de Calazans (2020), a poliginia e poliandria, que
respectivamente significam homem que se casa com várias mulheres e mulher que se casa com
vários homens têm distinções importantes entres si. Ela afirma que as relações poliândricas
geralmente ocorrem em sociedades ou é praticada por indivíduos que estejam em
circunstâncias socioeconômicas e demográficas que limitem sua sobrevivência. Dessa forma,
a organização familiar ocorre em volta da mãe e os homens parceiros dividem as
responsabilidades de provimento à família. Já na poliginia é o oposto: o nível socioeconômico
tende a ser alto. Esse é um princípio relevante para se entender que a pobreza e a luta por
sobrevivência acabam tornando algumas sociedades poliândricas, na qual se imagina que com
mais homens protegendo e trazendo o provimento, aquela família terá mais chances de
sobreviver, enquanto no ideal da poliginia,o marcador é a abundância. Para algumas
sociedades, o homem só pode ter mais de uma esposa se conseguir comprovar financeiramente
que não haverá distinções de provimento entre elas. A autora diz ainda que em suas pesquisas
foi possível perceber que nessas relações poliândricas, as mulheres não tinham poder de
decisão e sim, em sua maioria, eram obrigadas a estar nesses relacionamentos com múltiplos
parceiros. Essa é a principal forma de mudança que ela traz para o contexto urbano e atual no
que tange mulheres que se relacionam com vários homens: independência financeira e
possibilidade de escolha.
Atualmente podemos pensar em alguns tipos distintos de relações não monogâmicas
nas sociedades ocidentais. Há o poliamor, que tem como conceito básico a possibilidade de se
relacionar sexual e emocionalmente, de forma simultânea, consensual e sincera, em longo
prazo com várias pessoas. Pode ser realizado no contexto de relacionamentos primários (duas
pessoas que são casadas legalmente, por exemplo), de casamentos grupais ou até de maneira
independente. É comum a existência de comunidades on-line poliamoristas que formam grupos
ativos de debates e encontros (FREIRE E GOUVEIA, 2017). Eles defendem que o poliamor
nasce do entendimento de que o sentimento do amor não pode ser impedido. Afirmam que
sentem ciúmes, porém, trazem o diálogo e a formulação de contratos como o mote principal
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

dessa prática, e então um posicionamento diferente sobre a posse. Para Perez e Palma (2018),
o ideal do poliamor está atrelado à busca por simetria entre os gêneros. Se essa é uma forma
de se relacionar mais honestamente consigo mesmo e com o outro, a busca por equidade deve
ser uma das pautas. Além disso, no poliamor, há uma maior fluidez no que diz respeito à
orientação sexual. Para Freire e Gouveia (2017), o poliamor vence aspectos da dimensão
heteronormativa do amor romântico, traz questões de gênero e acolhe a diversidade sexual.
Se no poliamor a principal questão é a possibilidade de envolvimento afetivo com
várias pessoas, no relacionamento ou casamento aberto e no swing (troca de casais) o
38
envolvimento com múltiplos parceiros é estritamente sexual. Aqui também se destaca a
questão contratual como importante para estabelecer os limites e possibilidades de
envolvimento com outros. Para França (2016), tais relações, assim como as ditas relações
livres, se diferenciam do poliamor no que tange à efemeridade e à ausência do amor por
terceiros para a estabilidade das relações. A consensualidade dos envolvidos ainda é
importante, porém, não o desenvolvimento de uma identidade, como no poliamor (PILÃO,
2015). Para o autor, o casamento aberto, por exemplo, diferencia sexo de afetividade e prioriza
a liberdade sexual. É comum, na fala de alguns poliamoristas, um certo preconceito nessas
relações estritamente sexuais pois, para eles, essas não são profundas, podem ser irresponsáveis
ou libertinas e se difere do poliamor, nesse sentido (FRANÇA, 2016).
Na modalidade do swing, de acordo com Kengerski e Guimarães (2011), deve existir
apenas a atração sexual, sem maiores envolvimentos, pois esses seriam considerados traição.
Aqui também é comum a criação de comunidades que participem dos encontros sexuais. Esses
grupos se formam por meio de eventos que tem têm essa temática, sempre de maneira discreta
e resguardando a identidade dos participantes. Essa prática tem regras mais claras e gerais que
as outras apresentadas até aqui, e é possível perceber pouco envolvimento com as questões de
gênero; pelo contrário, parece manter mais aspectos de dominação masculina.
É importante esclarecer que todas as relações não monogâmicas consensuais citadas
anteriormente, sejam elas de cunho exclusivamente sexuais, ou também afetivos, teorizam na
formulação de regras entre os envolvidos, ou seja, não se trata de uma cartilha societária pré-
estabelecida, mas sim, por meio do diálogo uma formulação honesta, consensual, que funcione
para aquele casal ou grupo de pessoas. Freire e Gouveia (2017) afirmam que tais modelos de
relacionamento devem ser pautados no diálogo aberto, pois buscam um entendimento e uma
aceitação de todas as partes envolvidas no processo, portanto, cada indivíduo deve estabelecer
com o outro um contrato, que teoricamente funcione para todos. Transparência e sinceridade
aparecem, pelo menos de maneira teórica, como valores comuns nas práticas não
monogâmicas.
A busca por equidade de gênero está presente em muitos desses acordos também. De
acordo com Perez e Palma (2018), o poliamor preserva o respeito à individualidade em
detrimento da posse e tenta desconstruir privilégios dos homens no que diz respeito aos seus
desejos e sexualidade. Para essas autoras, as relações não monogâmicas são construídas com
base no diálogo e, portanto, têm maiores chances de evitar relações assimétricas e de abuso de
gênero, e acabariam por ser mais desconstruídas e inclusivas como um todo. Destaca, porém,
que é possível perceber que esse discurso muitas vezes é diferente da realidade apontada. Da
mesma forma que se encontram trabalhos acadêmicos que verificam uma busca da não
monogamia como mais equânime e igualitária entre gêneros, outros afirmam que tais práticas
seguem trazendo marcos importantes e reafirmando, de maneira não tão óbvia, práticas
machistas. Alguns relatos vêm além das pesquisas acadêmicas: grupos e páginas na Internet
destinadas ao testemunho de mulheres explicitando violências de gênero vividas por pessoas
do próprio meio. Essa forma de manifestar tomou muita notoriedade tanto pela possibilidade
do anonimato quanto pela criação de vínculos com demais pessoas que vivenciaram situações
Estudos de Sexualidade 3

semelhantes. Será que as relações não monogâmicas atuais atendem de maneira justa a
demanda das mulheres?

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Analisar as relações de gênero dentro dos relacionamentos amorosos e sexuais não
monogâmicos consensuais. Dessa forma, pretende-se apresentar as maneiras de perpetuação
do patriarcado e do machismo em relações não monogâmicas da atualidade, no que tange raça,
sexualidade e padrão de beleza. 39

3. METODOLOGIA
A metodologia utilizada foi a revisão literária narrativa. De acordo com Farenhof e
Fernandes (2016), a revisão de literatura nada mais é que um dos procedimentos para qualquer
trabalho científico em qualquer área. É importante que a pesquisadora esteja familiarizada com
conceitos e autores que já escreveram ou escrevem sobre o tema, assim como, sobre os
segmentos e perspectivas que o tema possa ter no universo acadêmico. Além disso, a revisão
pode auxiliar também na criação de problemas de pesquisa, ou hipóteses, assim como, na
manutenção da coerência argumentativa. A revisão narrativa é de caráter exploratório, portanto
não há critérios específicos de seleção e análise de material disponível.
A pesquisa literária para a fundamentação desse artigo se deu em sites de pesquisa de
textos acadêmicos como Google Acadêmico e Scielo. As palavras-chaves utilizadas foram
“relacionamento aberto” “não monogamia”, “poliamor”, “swing”, “relações e gênero”.
Importante ressaltar que o tema pesquisado tem limitações importantes para uma análise
literária tendo em vista uma quantidade limitada de artigos científicos encontrados. Os artigos
pesquisados são, em sua maioria, dos últimos quinze anos e têm restrições de pesquisa, tais
como, estudos feitos com baixos números de sujeitos, de idades e contextos sociais específicos,
assim como, a maior parte foi feita em grupos ou por meio de relatos online.
Em um segundo momento, foi necessário explorar também, artigos e textos acadêmicos
que fundamentassem teoricamente temas que perpassavam as questões de gênero debatidas
nesse texto. Portanto, foram utilizados termos que envolvessem “gordofobia e amor”,
“mulheres gordas e sexo”, assim como, “mulheres negras, amor e sexo”. Para conectar tais
pensamentos, alguns conceitos como a interseccionalidade e micromachismo também foram
pesquisados.
Por meio da leitura de títulos, foram encontrados 30 artigos que permeavam a temática
requerida. Na leitura dos resumos, foram selecionados cerca de 15 desses para serem utilizados
como fundamentação teórica, tendo em vista a relevância dos assuntos aqui interessados. A
seleção ocorreu por meio dos critérios que traziam a historicidade dos relacionamentos não
monogâmicos, pesquisas de campo desse assunto e também, sobre possíveis questões de
gênero atreladas a não monogamia. No segundo momento, foram utilizados demais textos
acadêmicos que não falavam explicitamente sobre o tema, mas que tiveram relevância para a
pesquisa. Ainda importante destacar que também foram utilizados textos não acadêmicos,
como artigos de blogueiras postados na Internet.
Para embasar a discussão, dois artigos se destacaram, foram eles o de Antônio Pilão e
o de Daniel Kengerski e Guimarães. Ambos têm em comum uma visão menos romantizada e
trazem discussões mais complexas de gênero nas relações não monogâmicas. Desse modo,
estas ideias embasarão de modo geral a discussão do presente artigo.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

As pesquisas aqui estudadas trazem, em sua maioria, um recorte específico de idade,


raça e orientação sexual. Os textos encontrados que falam sobre poliamor têm o recorte de
sujeitos jovens, universitários, classe média, não negros; a maioria dos homens são
heterossexuais e as mulheres, algumas são bissexuais. Portanto, é importante pensar que o
presente artigo dialoga prioritariamente com tais nichos, sendo difícil ampliá-lo para outras
realidades, sem os devidos estudos. Ainda assim, buscou-se trazer a discussão de gênero e,
portanto, da interseccionalidade com raça, orientação sexual e padrões de corpo. O que quer
dizer que o presente trabalho traz como limitação um recorte específico de público, porém tenta
40
criar elos para desenvolver, através da revisão literária e de relatos experienciais, narrativas
que possam analisar outras vivências interseccionadas com o gênero.

4. DISCUSSÃO
Os resultados encontrados na revisão literária foram decisivos para traçar referência a
não monogamia e ao patriarcado e, assim, do machismo e da misoginia. Foram encontrados
muitos artigos que traziam uma ideia romantizada de alguns tipos de relações não
monogâmicas, como o poliamor; assim como outros que já traziam o lado mais negativo, como
o swing. Todavia, não foi difícil encontrar material que trouxesse falas de mulheres que
sofreram algum tipo de discriminação ou violência baseada no gênero dentro desses contextos.
O feminismo, ou melhor, feminismos, de maneira simplória, surge no século XIX por
meio dos movimentos de mulheres que buscavam o direito ao voto e ao trabalho. Essas
mulheres questionavam a ordem patriarcal vigente de dominação masculina sobre a feminina.
Questionavam os privilégios e formação social que determinavam autoridade masculina em
detrimento da feminina. Essa é considerada a primeira onda do feminismo. Importante citar
que, nesse momento, o movimento contemplava uma fração específica de mulheres, e apesar
de reivindicar emancipação e poder de escolha (pauta comum às mulheres), ainda não discutia
a multiplicidade de fatores possíveis, como o espectro de raça ou classe. Nesse mesmo período,
as mulheres negras e as mulheres pobres já trabalhavam, por exemplo (FRANÇA, 2016).
A segunda onda do feminismo trouxe para a pauta das mulheres nos anos 60 a
possibilidade da reivindicação de seus corpos. Claro que ainda havia um recorte: brancas,
intelectuais e elitizadas. Nesse momento, questionava-se o determinismo biológico e traz para
o centro da discussão as construções sociais e de identidade. Nasce o anticoncepcional e,
portanto, a possibilidade de exercer maior controle sobre corpos e, consequentemente, controle
da sexualidade. A liberdade sexual que antes era algo apenas masculino passa a ser reivindicada
também pelas mulheres, que nesse momento tem mais controle sobre concepção. Esse é um
dos momentos contemporâneos da contestação da monogamia compulsória, principalmente
pelas mulheres. Advindas ainda mais dos movimentos hippies do amor livre, esse momento
permitiu um alargamento nos arranjos das relações amorosas. Muitas pessoas romperam com
o conservadorismo da religião e se permitiram refletir sobre novas formas de funcionamento
sexual, inclusive sobre sua orientação (FRANÇA, 2016). É desse período histórico que surgem
alguns dos movimentos pró direitos das mulheres e pró LGBTQIA+ mais importantes e até
hoje referenciados.
No que pode se pensar, atualmente, o feminismo precisa ser refletido de forma plural,
observando as diferentes variáveis e marcadores sociais possíveis a serem expressos na causa.
De acordo com França (2016), não se pode mais imaginar um tipo de mulher, mas sim trazer
para discussão aspectos como raça, classe, orientação sexual, identidade, enfim, interseccionar
as lutas para torná-las mais efetivas àqueles grupos. A luta por ampliação de direitos é o
comum, porém existe a necessidade do olhar para as especificidades de pautas políticas
diferentes (FRANÇA, 2016). O conceito de interseccionalidade de gênero será utilizado pois
ele ressalta a mutabilidade de aspectos durante as fases históricas, assim como, a presença de
Estudos de Sexualidade 3

aspectos raciais, sociais, etários, étnicos, sexuais, entre outros, para melhor entender tal
complexidade. Isso quer dizer que as vivências sexuais e amorosas de homens e mulheres,
heterossexuais ou não, negros, brancos, idosos ou jovens, ricos e pobres, terão particularidades
distintas entre si (BARRA E PRATES, 2017).
Nesse contexto, os fundamentos do machismo e da misoginia presentes na sociedade
por meio do patriarcado explica boa parte das violências de gênero. Porém, é importante trazer
ainda o conceito de micromachismos de Luis Bonino Méndez (1991) que elucida que nem
sempre a violência e a dominação de gênero estarão colocadas de uma maneira escancarada e
comum. Principalmente em espaços que buscam novas formas de pensar gênero, a manutenção 41

social do machismo se dará de maneiras mais sutis e atualizadas.


O trabalho de Pilão (2019), nesse sentido, abriga essa intersecção no que tange relações
não monogâmicas e discussões sobre equidade de gênero. Seu artigo faz uma análise de textos
não acadêmicos, escritos por blogueiras que discutem e trazem à tona experiências pessoais,
comunitárias e valores da militância de minorias históricas dentro do ideal de relações não
monogâmicas. Esses textos trazem os marcadores sociais identitários das vivências de
mulheres gordas, negras, bissexuais, entre outros. Enquanto isso, Kengerski e Guimarães
(2011) apresentam as regras presentes nas práticas de swing (troca de casais), que imprimem
os papéis de gêneros muito bem estabelecidos e que perpetuam ideais patriarcais, machistas e
homofóbicos.
Em seu artigo, Pilão (2019) traz a análise de três textos autorais intitulados: “Poliamor
é para pessoas ricas e bonitas”, escrito por Vivienne Chen (2014), “Por que o poliamor e as
relações livres podem ser privilégios para os homens?”, de Gabriella Beira (2014) e “Sobre
poliamor” de Laura Elisa (2015). Os três textos foram escritos por mulheres poliamoristas e
feministas que passaram a questionar as relações de gênero interseccionadas com as de raça,
padrão de beleza, classe e sexualidade.
Nenhuma das blogueiras se posiciona favoravelmente à monogamia compulsória, pois
entendem que essa é uma forma histórica de dominação às das mulheres. O questionamento
aqui se refere a como essas relações não monogâmicas estão sendo “vendidas” e o que ocorre
na prática, principalmente no que diz respeito a mulheres fora dos padrões sociais. De forma,
Pilão (2019) afirma por meio dos relatos das blogueiras que muitas mulheres feministas
abraçam o discurso poliamorista, pois este está atrelado à liberdade sexual. Ora, se as mulheres
reivindicaram a apropriação de seus corpos, nada mais justo que elas possam exercer essa
sexualidade e afetividade com múltiplas parcerias. Até ai, tudo bem. Porém, os relatos afirmam
que ser não monogâmica virou quase uma obrigação, uma imposição em certos espaços. Essa
opressão velada acaba por generalizar corpos, mentalidades e tirar, novamente, o poder de
escolha das mulheres, pois se elas decidem que querem uma relação monogâmica, não está
evoluída o suficiente, é careta ou está aceitando a dominação masculina por meio da
monogâmia. O que ninguém conta, é o fato de que, muitas dessas mulheres se quer
experienciaram relações tradicionais monogâmicas e que para elas, muitas vezes, a não
monogamia já estava na mesa, porém do lado dos homens.
A exemplo disso, a jornalista e produtora cultural, Jessica Balbino, escreveu um texto
intitulado “Corpos grandes e invisíveis: a solidão da mulher gorda” (2020), no qual afirma com
base em sua experiência pessoal, que mulheres gordas não são assumidas socialmente por suas
parcerias amorosas; geralmente essas relações são escondidas ou permanecem em segredo.
Ainda afirma que há uma maior possibilidade de engajarem em relações abusivas, devido ao
fato do parceiro acreditar que já faz muito se relacionando com ela por ser gorda; e também
por ela mesma pela mesma pensar que é só aquilo que merece. Menezes, Ferreira e Mélo
(2020), em sua pesquisa com mulheres gordas, afirmam que a maioria já teve relacionamentos
exclusivamente sexuais que eram mantidos em segredo e foram amantes de homens casados.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Afirmam ainda que, quando questionavam o rumo da relação, muitos homens justificavam que
não queriam nada sério ou que queriam apenas uma relação não monogâmica. Dessa forma, é
possível perceber como a não monogamia trabalha nesses casos, em favor dos homens na
manutenção da exclusão desse corpo objetificado sexualmente na esfera privada, porém
excluído na esfera pública. Mulheres gordas afirmam que são sim procuradas para fins sexuais,
mas geralmente, o engajamento vai só até aí.
Virgie Tovar (2018), acadêmica e militante gorda, afirma que a heteronormatividade
misógina tem um papel fundamental na manutenção da gordofobia. É por meio da criação de
42
um pensamento de dominação dos corpos frágeis e pequenos de mulheres, que muitos homens
conseguem se sentir no topo da pirâmide. Além disso, mulheres são ensinadas a acreditar que
o amor romântico é uma parte fundamental de sua existência e, portanto, se ela não o tem, é
porque está fazendo algo de errado. Nesses casos, uma mulher gorda que é preterida em suas
relações amorosas deve carregar tal responsabilidade na marca de seu corpo, pois este não está
de acordo com a norma exigida. Essas mulheres, muitas vezes, não podem optar efetivamente
por ter ou não uma relação de amor livre, por exemplo, pois a elas cabe apenas o que for feito
de “bom grado” por esses homens.
A autora afirma ainda que assim como em qualquer ideal construído socialmente, a
pessoa gorda é transformada em gorda por meio de um marcador social que difere de cultura
para cultura. Fato é que, no ocidente, o marcador da gordura é extensivamente reafirmado por
tudo que a sociedade produz, a exemplo da mídia, de produtos, dietas, da fetichização na
pornografia. Esse é considerado um corpo doente, descuidado, preguiçoso e que precisa
emagrecer. Trovar afirma que é sempre delicado falar com mulheres gordas sobre relações
amorosas, pois a maioria tem grandes feridas psicológicas nesse âmbito. A maior dificuldade
no combate à gordofobia, diferentemente de outros preconceitos, é que ela é validada pela
ciência, afirmando que corpos gordos são doentes e portanto as pessoas devem passar a vida
tentando se adequar e emagrecer (MENEZES, FERREIRA E MÉLO, 2020). Hoje, o body
positive, movimento pró aceitação do corpo, já desmistifica essa ideia e traz o questionamento
desse modelo médico, do exercício físico e de dietas exclusivamente para a perda de peso.
Pilão (2019) amplia o debate da falta de democratização nas relações não
monogâmicas, também no que tange a raça, por meio do texto de Laura Elisa. Tal texto
explicita que a não monogamia é excludente em relação a mulheres negras, transexuais e com
deficiência. Assim como os corpos gordos, esses outros corpos também sofrem estigmas cruéis
e violentos e são marcados como não amáveis.
No caso das mulheres negras, a autora afirma que, historicamente, esses corpos foram
marcados como hipersexualizados, como no caso de “a mulata faceira que seduz e encanta”.
Porém, a historicidade da sexualidade da mulher negra está pautada sobretudo pela violência
sexual, exercida principalmente pelo homem branco. No período da escravização, os povos
negros africanos eram submetidos a todas as formas de violência, e claro que para as mulheres
desses povos não foi diferente. Os estupros eram recorrentes e, como essas não eram pessoas
consideradas de direitos, nada podia ser feito. Filhos, frutos dessas violências, eram comuns e
essas mulheres, então, permaneciam sozinhas e estigmatizadas por todos, inclusive seus pares.
No estudo feito por Fernandes (2018), ela afirma que o marcador de raça pode ser
definidor nas relações amorosas e sexuais das mulheres negras. Ela exemplifica que a mulher
de pele negra mais clara, magra e curvilínea, é colocada no estereótipo da “mulata”,
empurrando-a para um lugar de desejo sexual e fetichização de seu corpo. Essa mulher é vista
como sensual e disponível para satisfazer os desejos masculinos, porém, não para ser amada,
assumida ou mãe dos filhos desses homens. Em contrapartida, a mulher negra gorda é colocada
num âmbito destituído e indigno de sexualidade. Para essas mulheres, o risco da solidão
permanente é ameaça real.
Estudos de Sexualidade 3

Em sua pesquisa, Fernandes (2018) demonstra que a maioria das mulheres


entrevistadas já tiveram relações nas quais foram amantes ou que eram exclusivamente de sexo,
sendo que esse não era o interesse delas. Algumas relataram relacionamentos abusivos e
disseram ainda que sofreram nos términos, porque, apesar de se sentirem objetificadas e,
muitas vezes, maltratadas, as relações proporcionavam alguns ganhos, como a atenção. A
autora afirma ainda que se a mulher negra é fetichizada ou destituída de sua sexualidade pelos
homens brancos, os negros, principalmente com ascensão financeira, por sua vez, têm uma
tendência maior a engajar relações amorosas com mulheres brancas, na esperança de galgar o
embranquecimento por meio dessas relações e, portanto, obter maiores privilégios sociais. Daí 43

fica o questionamento: quem então se casa com as mulheres negras?


A terminologia utilizada é “a solidão da mulher negra”, que, assim como as mulheres
gordas, acabam preteridas na prateleira do amor. Se por um lado elas se sentem sozinhas porque
efetivamente são menos escolhidas ou têm menor poder de escolha e, portanto, estão mais
sozinhas, por outro lado, as que se casam ou têm relações de curto período, muitas vezes
relatam o sentimento de solidão pautado em atitudes racistas ou que reafirmam pejorativamente
suas características. Dessa forma, Pilão (2019) afirma por meio do texto de Laura Elisa que a
mulher negra tem que primeiro ter o direito à monogamia para que possa, assim, de fato, ter o
poder de escolha sobre a não monogamia. Porque, de forma semelhante ao que ocorre com as
mulheres gordas, a relação existente entre essas parcerias é sobretudo mantida em segredo,
como “a outra”, ou nas múltiplas parcerias daquele homem. A não monogamia parece imposta
a essas mulheres, mas não como escolha pessoal e sim em uma situação que o homem tem
direito de manter relações com muitas mulheres, mas não assume amorosa e socialmente as
negras e gordas. O texto afirma que essas formas de discriminação estão presentes em outras
interseccionalidades, como na transexualidade e na deficiência, o que deixa claro que os corpos
que fogem do padrão branco, hetero, cis, das camadas econômicas mais privilegiadas da
sociedade, em alguma medida já sofreriam uma espécie de não monogamia cruel e velada que
só favorece aos homens e que perpetua a dominação masculina e destrói ainda mais a
autoestima de mulheres com corpos fora do padrão.
Tanto a autora Tovar (2018) quanto Fernandes (2018) afirmam que, quando essas
mulheres adentram os espaços feministas de empoderamento e apropriação de seus corpos,
existe há uma tendência a permanecerem ainda mais sozinhas no que tange às relações
amorosas e sexuais. Esse fenômeno seria explicado porque, quando essas mulheres saem da
lógica abusiva, não mais aceitam relações nas quais não têm poder de escolha, ou que são
mantidas em segredo.
É importante ressaltar que o poliamor, por exemplo, prega um ideal envolto em relações
mais igualitárias e equânimes, em que homens e mulheres teriam mais liberdade para se
expressarem. Porém, o que não é dito, é que esses corpos estigmatizados sócio-historicamente
continuam sendo rejeitados, ou seja, há uma atualização no que tange à solidão dessas
mulheres. Agora, elas são colocadas à margem não só por terem pouca possibilidade de escolha
de parceria, mas também no que diz respeito às parcerias múltiplas. Portanto, as possíveis
pressões vindas do desprendimento sexual não dialogam com a realidade de todas as mulheres,
tendo em vista que alguns corpos são excluídos e classificados no mote fetichista e não
relacional.
Para além dessa discussão, existem críticas contundentes com relação a como as
relações livres ou poliamorosas, por exemplo, são utilizadas por homens. A crítica é como os
sistemas não monogâmicos têm sido apropriados pelos homens e utilizados como um braço do
patriarcado, assim como na monogamia. A ideia de que mulheres feministas devem se
apropriar de sua sexualidade e assim não aceitar mais monogamia compulsória, pois esse é um
sistema que oprime mulheres e que, supostamente, a resposta estaria na não monogamia,
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

muitas vezes pode ser tão nociva quanto a monogamia em si. Pilão (2019) afirma, por meio do
texto de Gabriella Beira, que em um mundo ainda machista será inevitável que haja assimetrias
por conta do gênero em todas as relações, inclusive nas não monogâmicas. Dessa forma, a
autora afirma que só haverá liberdade de verdade com a queda por completo do patriarcado e
do machismo. Para ela, é muito fácil a reivindicação da não monogamia por partes dos homens,
por entender que esses já tinham a possibilidade de vivência dessa liberdade sexual e afetiva.
Para tanto, esse espaço pode, de muitas formas, retirar ainda mais o comprometimento de
responsabilidade afetiva desses homens e acabar por distorcer a teoria da busca por relações
44
mais equilibradas e justas, oferecendo algo ainda mais irresponsável e autocentrado, pautado
apenas na quantidade de mulheres com qual um homem esse indivíduo se relaciona. Se esses
homens não tiverem de fato comprometidos com uma mudança mais efetiva de postura e
entendimento das questões de gênero, continuarão perpetuando a irresponsabilidade com suas
parceiras, porém, dessa vez legitimados pelo belo discurso do “amor livre”. Nessa medida,
Beira afirma ainda que as mulheres que frequentam esses meios, podem acabar pressionadas a
se adequarem aos relacionamentos não monogâmicos para se encaixarem e não serem tachadas
de possessivas e não evoluídas. Uma decisão como essa feita na base da pressão social e
principalmente feita pelo parceiro homem, pode ser tão opressora quanto o ideal da monogamia
compulsória.
A autora Beira (citada por Pilão 2018) afirma não ser contrária aos movimentos não
monogâmicos, porém, questiona se as mulheres estão de fato escolhendo tais posturas, ou se
estão sendo mais uma vez coagidas a estarem nesses espaços mesmo sem querer. Ainda assim,
ela afirma que uma mulher que escolhe exercer sua sexualidade e afetividade de forma
múltipla, ainda enfrenta diversas outras questões, apenas pelo fato de serem mulheres. A
própria questão da bissexualidade é questionada e colocada à prova da satisfação masculina.
No universo machista, a bissexualidade é pensada em favor dos fetiches e desejos masculinos
de transar com duas mulheres ao mesmo tempo. Dessa forma, a bissexualidade feminina é
questionada e deslegitimada como verdadeira. De acordo com a pesquisa de Perez e Palma
(2018), mulheres que afirmam serem bissexuais e poliamoristas, num primeiro momento
atraem homens fora desses espaços exatamente pela fetichização das relações homoafetivas
femininas. Porém, é comum esses homens recuarem no momento em que a parceira quer se
relacionar com outros homens.
Pilão (2019) traz que muitos dos ideais não monogâmicos construídos entre casais
heterossexuais são, na verdade, pressão do homem para experienciar situações sexuais com
mais de uma mulher ao mesmo tempo. Em várias dessas relações, o acordo que se tem é que a
mulher pode engajar relações com outras mulheres, atraindo essa terceira para a experiência
sexual com o casal. Algumas vezes, também é visto que o homem pode se relacionar com
outras mulheres, porém a regra máxima é que as mulheres jamais terão relações com outros
homens. Nessas configurações, fica explícito que os ideais não monogâmicos estão sendo
utilizados para além do prazer sexual masculino, para a preservação do poder e do controle do
homem em relação à mulher. Dessa forma, tais configurações de relacionamento aberto são
apropriados pelo patriarcado e continuam perpetuando valores machistas, da violência de
gênero e da liberdade sexual masculina em detrimento da sexualidade feminina.
Esse ponto acaba por desvirtuar o que a maioria das teorias feministas pregam que é
exatamente o poder de escolha consciente das mulheres. Quando há uma imposição de papéis,
esses acabam trabalhando para cumprir o desejo do patriarcado, que é o de controle dos corpos
femininos. Se uma mulher não se sente à vontade em uma relação não monogâmica, mas se
sente incumbida socialmente de estar em uma, ela está privilegiando sua parceria em
detrimento de sua escolha e felicidade. Dessa forma, esta mulher está, de uma maneira
atualizada, sofrendo violência de gênero.
Estudos de Sexualidade 3

Kengerski e Guimarães (2011), tratam da etiqueta presente em relações de troca de


casais, mais conhecidas como swing. Basicamente, as regras são: é considerado indelicado o
homem abordar diretamente outra mulher, quem deve fazer a abordagem são as próprias
mulheres; deve-se evitar envolvimentos amorosos, a prática é estritamente sexual; não é
permitida a utilização de câmeras e aparelhos fotográficos ou de filmagem, afinal a maioria
dos casais mantêm tal prática em segredo; deve-se ser honesto sobre as preferências sexuais
com os outros casais; não se deve desejar a mulher ou o homem de outro casal quando a
parceria não estiver por perto; experiências homossexuais masculinas são rechaçadas – coloca-
se em xeque a masculinidade do homem - enquanto as práticas bissexuais das mulheres são 45

altamente incentivadas; o homem deve manter um papel de másculo, de que consegue manter
relações com várias mulheres ao mesmo tempo. Essa última não é uma regra dita, mas sim
percebida pelos praticantes.
De acordo com a dissertação de Teixeira (2015), verifica-se ainda que muitas casas de
swing proporcionam valores diferenciados para a entrada de homens e mulheres sem
acompanhantes. Enquanto as mulheres não precisam pagar, os homens têm de pagar o dobro
do valor do casal, ou seja, é incentivado que o local tenha mais opções de mulheres do que de
homens. Outro ponto importante é que muitas dessas mulheres desacompanhadas ou até as que
vêm acompanhadas com homens, são, na verdade, mulheres contratadas ou que trocam sexo
por dinheiro, e não suas esposas. Ainda é possível perceber que muitas dessas práticas colocam
as mulheres como moedas de troca e tudo acaba ocorrendo por decisão dos homens, enquanto
o consentimento e a vontade femininas aparecem em segundo plano.
As regras continuam trazendo a ideia de que o swing é uma prática moderna e não
monogâmica, mas, na prática, ele reforça os valores patriarcais e condena, por exemplo, a
bissexualidade masculina, mas incentiva a bissexualidade feminina para a satisfação dos
homens. Para Teixeira (2015), o swing tem sido usado pelo patriarcado contemporâneo em um
contexto que as relações de gênero estão mais complexas, tanto no que diz respeito à
sexualidade feminina, quanto no que diz respeito à prostituição, por exemplo. No presente
artigo, somente o primeiro ponto será analisado. A autora afirma que o swing poderia ter o
nome de troca de mulheres em vez de troca de casais, pois o que foi analisado em sua pesquisa
é que na maioria das vezes essas trocas acontecem de forma negocial entre homens e também
mulheres, na qual o corpo feminino passa a ser de fato uma moeda e quem geralmente tem o
poder de autorizar são os homens. A depender da companhia, o homem pode ou não se dar
bem, ou seja, transar com uma mulher de sua preferência. Novamente, é importante ressaltar
que a teoria por trás de tal prática não monogâmica também tem viés na busca por relações
mais simétricas de gênero em que os casais buscam juntos por aventuras sexuais. Na teoria, de
fato, parece contemplar o universo feminino e seus desejos, porém, o que essas pesquisas
demonstram é que não é bem assim.
Para essas mulheres que se apropriam do discurso não monogâmico e vivenciam essas
relações, existe ainda a luta por respeito fora e dentro das comunidades. Cria-se um ideal
imaginário de que essas mulheres, por terem optado por múltiplas relações concomitantes,
estariam sempre dispostas e aceitariam qualquer homem. França (2016) afirma em sua
pesquisa em uma comunidade poliamorista, que muitas mulheres diziam que o assédio era
maior quando sabiam que elas eram praticantes ou simpatizantes com a prática. Ficou claro no
relato dessas mulheres, que muitas sofreram assédio por homens fora da comunidade e que
quando foram rechaçados, culparam e xingaram as mulheres, como se elas tivessem obrigação
de aceitar tais investidas. Mais um sintoma típico de uma sociedade misógina que questiona
qual roupa a mulher estava usando para justificar assédio ou, pior ainda, estupro. Da mesma
forma, relataram ainda que o assédio não foi só manifestado por pessoas fora do grupo, mas
por membros também. Porém, a diferença é que disseram ter mais voz e conseguir apoio das
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

demais mulheres da comunidade para banirem esses perfis. De qualquer modo, assim como na
bissexualidade feminina, que dentro da lógica patriarcal é pensada exclusivamente para o
prazer masculino nesses grupos, uma mulher que abertamente se diz praticante de alguma
forma de relação não monogâmica corre o risco de sofrer mais violências, mantida essa mesma
lógica.
De acordo com Barra e Prates (2017), é comum que nos espaços familiares e
profissionais, homens e mulheres mantenham segredo sobre estarem em relações não
monogâmicas. Isso acontece tanto por uma questão de tais práticas serem malvistas pela
46
sociedade, quanto para manter um status quo familiar. Não obstante, quando revelados, as
autoras inferem que para as mulheres as críticas são muito mais contundentes do que para os
homens. A tendência é a desqualificação de várias esferas da vida dessa mulher, sobretudo a
maternidade. Dessa maneira, as autoras citam o conceito de micropoder de Foucault para
trazerem possíveis respostas a esse sistema complexo de gênero da atualidade. Se por um lado,
existem avanços indiscutíveis nos direitos das mulheres, por outro, quem está no topo da
pirâmide de privilégios segue buscando novas formas mais sutis de controle. Controle esse que
vem de uma manifestação de poder mais circular e fluido e menos hierárquico. Desse modo,
muitas vezes, é difícil identificar ou nomear como sexistas algumas das questões e assim, o
sistema opera de maneira menos óbvia na manutenção do patriarcado contemporâneo.
O conceito de micromachismo vem nessa mesma linha para demonstrar maneiras
menos habituais e agressivas na demonstração do machismo. Se a sociedade, em sua maioria,
já compreendeu as formas mais grotescas e arcaicas da dominação feminina, a lógica aqui é
compreender os pormenores mais difíceis de serem vistos como sexistas. Os micromachismos
são violências mais discretas e paulatinas exercidas por homens e mulheres na manutenção da
lógica patriarcal que muitas vezes aparecem com roupagens de cuidado, amor, ou preservação.
Luis Bonino subdivide em quatro tipos: utilitaristas, encobertos, coercitivos e de crise. Bons
exemplos são as divisões domésticas com a casa e filhos, chantagem emocional e atitudes
passivas agressivas (BENACÁLZAR-LUNA E VENEGAS, 2015).
De acordo com Branco et. al. (2018), o micromachismo pode servir para identificar
uma violência que pode ser sentida, mas nem sempre vista reconhecida, assim como, exprimir
as formas de como, simbolicamente, alguém pode ser violento com outra pessoa. Dessa forma,
nem sempre encontraremos, de maneira explícita, situações machistas nas relações não
monogâmicas heterossexuais, principalmente nas que dizem buscar equidade de gênero. Se,
em algumas circunstâncias, a manifestação machista é mais clara, em outras, fica mais difícil
encontrá-la. De qualquer forma, inclusive no que diz respeito ao machismo ou
micromachismos presentes nesse estudo, a interseccionalidade de raça, orientação sexual,
padrão de corpo aparece para frisar que, ainda assim, é diferente o tratamento. Mulheres são
oprimidas por homens e mulheres em nome do patriarcado, porém, existem outros marcadores
a depender da cor, do peso, da profissão, do status marital e assim por diante.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
É fundamental ressaltar dois fatores importantes. O primeiro é que a ideia aqui não é
colocar a mulher em um espaço de vítima incapaz de mudar sua própria história ou de optar de
maneira consciente a relações monogâmicas ou não monogâmicas por estas estarem sempre a
favor do patriarcado. Entende-se que estar inserida dentro de uma estrutura social patriarcal
contemporânea pode ainda significar desajustes e desequilíbrios de gênero em todas as
camadas e corpos. Dessa forma, é fundamental compreender como está ocorrendo a atualização
da opressão nas relações não monogâmicas para que se possa atuar sobre elas. O que de velho
permanece no novo?
Estudos de Sexualidade 3

O segundo ponto relevante é que esse artigo não é um manifesto contrário ou favorável
aos diferentes estilos de relações amorosas e sexuais, monogâmicas ou não monogâmicas. Esse
artigo se manifesta na discussão da escolha e consensualidade, das questões opressoras contra
corpos específicos e das dificuldades que mulheres tem de ainda exercer sua sexualidade em
conjunto com os demais âmbitos da sua vida pessoal. Um tema feminista fundamental é o do
direito da mulher de escolher. Esse é um debate importante no desenvolvimento de uma
sociedade com mais equidade de gênero. No que diz respeito ao amor e ao sexo, a escolha deve
estar relacionada na consensualidade ativa e na forma mais saudável da sociedade de lidar com
todos os corpos. Uma educação sexual libertadora que possa discutir sobre masculinidades e 47

questões de gênero, nesse sentido, auxilia na busca por relações mais saudáveis. Assim como,
a naturalização de mulheres negras e gordas em ambientes de escolha e poder, por exemplo,
por meio da mídia. Além, claro, das demais ações afirmativas que garantem pessoas diversas
estejam em espaços diversos garantindo uma mudança de estrutura social.
O conceito de micromachismo foi utilizado, apesar de suas críticas, pois ele é o que
melhor se relaciona com a ideia de que existem formas mais sutis da dominação masculina. Se
as críticas estão a respeito da qualificação do machismo como “micro”, Luis Bonino afirma
que tanto o machismo quanto o micromachismo tem a mesma gênese. A diferença estaria que
o primeiro é direto, contundente, explícito e evidente, enquanto que o segundo, é mais
imperceptível. A diferenciação aqui não é em qual é mais daninho que o outro e sim, em qual
é mais evidente que o outro (BENACÁLZAR-LUNA E VENEGAS, 2015). No presente
trabalho, esse conceito se apresenta nos marcadores sociais e nas estruturas conjugais das atuais
relações não monogâmicas. Foi fundamental trabalhar os micromachimos pois, em alguns dos
casos descritos, não é possível identificar opressão de gênero de maneira tão óbvia.
Os recortes utilizados são fundamentais para análises sociais fidedignas. É necessário
recortar o tempo, o local, referência história daquela população, afinal, mulheres sofrem com
o patriarcado de maneiras semelhantes mas também diferentes, pois existem diversos
marcadores sociais que podem vulnerabilizá-las ainda mais.
É imprescindível que se produza mais nessa área, pois o que se percebe é um aumento
pela busca das relações sexuais e/ou afetivas não monogâmicas, sobretudo por jovens. É
necessário buscar maiores entendimentos e ampliação de pesquisas com pessoas e grupos que
já utilizaram ou utilizam das práticas para compreender novos arranjos amorosos, sexuais e
familiares e como isso tudo impacta a sociedade e é impactada por ela. Importante sempre
trazer os recortes interseccionais de raça, classe, educação formal, idade, região, corpo,
orientação sexual, identidade de gênero, entre muitos outros, para melhor entender como esses
marcadores são afetados e/ou afetam. Esse tema se torna importante para o entendimento de
como os sistemas de dominação social podem evoluir e se atualizar, quem são os principais
atores e de como a pesquisa acadêmica pode auxiliar na produção de agendas de luta e
militância nas demais searas. Como diria a feminista Audre Lorde “Não serei livre enquanto
alguma mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”.

6. REFERÊNCIAS
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49
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

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Estudos de Sexualidade 3

A Saúde Sexual das Mulheres Lésbicas: riscos de contágio no sexo entre


vaginas

Andrea Do Carmo Souza

RESUMO
A sexualidade da mulher lésbica por muitas décadas e ainda hoje é tida como um tabu, um desvio sendo
reprimida e marginalizada ao longo dos tempos. Esta pesquisa de revisão bibliográfica objetivou 51
investigar a temática da saúde sexual das mulheres lésbicas e como o sistema de discriminação atinge
este segmento social quando buscam por atendimento médico no Sistema Único de Saúde (SUS). Foi
realizada a coleta de dados sobre o contágio por Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) no sexo
entre mulheres, a frequência com que procuram pelo SUS e, por fim, foram investigados os métodos e
materiais preventivos disponíveis. Os resultados do estudo apontaram que a mulher lésbica não tem
acesso a uma saúde pensada em suas demandas e que o medo do preconceito as afasta do sistema de
saúde. O despreparo teórico e técnico e falta de conhecimento das equipes de saúde acerca do sistema
discriminatório que atinge às lésbicas são empecilhos para que mudanças significativas aconteçam.
Embora, possam ser observados tímidos avanços, há um longo caminho até uma saúde inclusiva.
Fazem-se necessários mais estudos e pesquisas sobre a saúde sexual da mulher lésbica e maior acesso
das equipes de saúde a treinamentos e informações atualizadas sobre demandas de atendimento dessa
população para a conquista de uma saúde de fato inclusiva para essa parcela da população.

1. INTRODUÇÃO
A sociedade é guiada por padrões e normas de comportamento estabelecidas ao longo do tempo
responsáveis por determinar como cada pessoa deve agir no contexto social e cultural. Essas regras de
conduta determinam como devemos nos relacionar afetivamente e sexualmente. A
Heteronormatividade é o padrão de sexualidade imposto socialmente; isso significa que diversas
mensagens verbais e não verbais são responsáveis por transmitir a ideia de que ser heterossexual é
correto, natural e saudável e que todas as outras formas de experimentar a sexualidade são erradas,
imorais e desviantes. Essas compreensões do que é certo ou errado para o contexto social é à base das
discriminações e preconceitos sofridos pelos corpos que transgridem a norma (GUIMARÃES et.al.,
2017, Apud LIONÇO, 2008, CARRARA, 2012).
Embora a Constituição Federal defina a saúde como um direito social fundamental, as mulheres
lésbicas enfrentam dificuldades em acessar serviços de saúde voltados para as demandas da sua saúde
sexual. A inexistência de conhecimento teórico e técnico para o atendimento dessas mulheres por parte
dos profissionais da saúde, a omissão em relação a suas necessidades e crenças resultantes das más
experiências no atendimento em saúde por parte dessas mulheres gera um ambiente não acolhedor e
insuficiente para o atendimento de suas demandas. Tais dificuldades estão relacionadas a atitudes e
processos discriminatórios pontuais e estruturais responsáveis pela invisibilização da existência lésbica,
fazendo com que experimentem privações e exclusões, inclusive sendo privadas de seu direito
constitucional à saúde (LIMA, 2019; ARAUJO et al., 2019).
Santos (2015) aponta que grupos historicamente discriminados exigem atenção especial no que
se refere à saúde, pois, se tratam de pessoas que atingidas por mais de uma forma de violência. No caso
das Mulheres Lésbicas, elas sofrem violência de gênero e a lésbofobia, não deixando de mencionar as
lésbicas pretas que além das violências mencionadas anteriormente também sofrem com a violência
estrutural do racismo. Motivadas pela falta de acesso aos serviços de saúde e pela invisibilidade de suas
demandas, ativistas Lésbicas passaram a se organizar pressionando o poder público para a promoção
de Políticas Públicas efetivas, assegurando, assim, seus direitos de acesso à saúde (LIMA, 2019).
Ao analisarmos a história das Políticas Públicas em saúde voltadas para as mulheres no Brasil,
identificamos o apagamento sofrido pelas lésbicas no contexto da atenção básica. Em 2004 foi
publicado o documento com os princípios e diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
da Mulher. A publicação contou com a participação de movimentos sociais de mulheres e teve como
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
objetivo norteador a redução de morbimortalidade por fatores preveníeis e evitáveis, incluindo o câncer
de colo do útero e o HIV/AIDS e a inclusão de grupos de mulheres excluídas historicamente em suas
necessidades de saúde. Apesar de todos os objetivos apontados não houve nenhuma menção às
mulheres pertencentes às minorias sexuais no documento (BRASIL, 2004).
No ano de 2007 o Plano de Enfrentamento da Feminização da Epidemia de Aids e outras DSTs
do Ministério da Saúde teve como objetivo fornecer diretrizes para a promoção de políticas públicas,
para a prevenção e promoção de assistência integral das mulheres pelo sistema de saúde básico
combatendo as vulnerabilidades sociais e culturais responsáveis por criar barreiras ao acesso desse
grupo social aos serviços essenciais. Em suas diretrizes o Plano menciona a “promoção da equidade
52
racial, étnica, de gênero e de orientação sexual das mulheres no acesso a informação, diagnóstico e
tratamento” das ISTs e DSTs; no entanto, não inclui em suas metas estratégicas ou nas atividades de
ações nenhuma orientação ou plano de ação pensado para a prevenção e informação voltadas para
mulheres lésbicas (BRASIL, 2007).
Embora a saúde sexual das lésbicas seja um tema cada vez mais abordado ao longo dos últimos
anos, ainda existe um longo caminho a se percorrer para que essas pessoas vivenciem os princípios do
SUS de universalidade, integralidade e equidade. A invisibilização das demandas em saúde do sexo
entre vaginas é resultado de anos de tabus e exclusões pautados no machismo e na heteronormatividade
que colocam à margem a homossexualidade feminina, fazendo com que o sistema de saúde por muito
tempo tenha percebido as experiências sexuais das mulheres apenas em torno da temática do processo
gravídico (SILVA, 2015).
Neste contexto, é cada vez mais importante a produção e publicação de estudos e
pesquisas voltados para a identificação de lacunas no acesso aos cuidados em saúde sexual
pelas mulheres lésbicas. Evidenciando os avanços alcançados, porém, apontando para as ações
ainda necessárias para que essa parcela da população tenha acesso a uma saúde inclusiva.
Compreender as práticas sexuais das lésbicas e as demandas de prevenção e cuidados que tais
práticas exigem é ferramenta importante para o avanço das pautas de cuidados e prevenção da
saúde sexual das mulheres com vagina que transam com mulheres com vagina (RUFINO et.
al., 2018).

1.1 Objetivos
1.2 Objetivos Gerais
Investigar a temática da saúde sexual das mulheres lésbicas e como sistema discriminatório atinge este
segmento social quando buscam por atendimento médico no Sistema Único de Saúde (SUS).

1.3 Objetivos Específicos


Analisar os dados disponíveis sobre os riscos de contágio por Infecções Sexualmente Transmissível
(ISTs) por meio do sexo lésbico. Identificar as barreiras encontradas para o acesso a cuidados
preventivos e curativos de ISTs e DSTs para o público em questão. Verificar na literatura as metas
propostas e ações já existentes para garantia de acesso a saúde sexual das mulheres lésbicas. Por fim,
apontar possíveis caminhos para que as mulheres lésbicas tenham acesso à saúde sexual de qualidade.

2. METODOLOGIA
A pesquisa teve como base a revisão bibliográfica, método de pesquisa realizado através da
investigação de artigos científicos, teses, dissertações e livros. A revisão bibliográfica envolve o
processo de procura, análise e descrição de um objeto de estudo, buscando responder a uma pergunta
especifica através da literatura disponível sobre o tema, por meio da coleta de artigos, jornais,
periódicos, relatórios governamentais, teses, dissertações entre outros (MENDES et al., 2008). Para a
realização desta pesquisa foram selecionados artigos, teses e dissertações científicas publicadas entre o
período de 2009 e 2020. Também contribuíram para a elaboração deste estudo publicações oficiais do
Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde e livros, embora, os materiais mencionados
estejam fora do período de cinco anos estipulado como critérios de inclusão dos artigos, foram mantidos
pela relevância para o tema pesquisado trazendo importantes informações acerca da temática de gênero,
sexualidade e das metas e diretrizes de atuação no campo da saúde. No primeiro momento foi realizada
Estudos de Sexualidade 3
a busca por publicações científicas em sites de como Google Acadêmico, Scielo, Medline e Biblioteca
Virtual em saúde, foram utilizadas as palavras-chave: saúde sexual, SUS, saúde sexual da mulher
lésbica e saúde sexual e reprodutiva. Através da busca foram encontrados 50 artigos dos quais 14 foram
selecionados para a pesquisa, foram utilizados como critérios de inclusão artigos que abordavam a
temática saúde sexual das mulheres lésbicas, saúde sexual e reprodutiva e atenção básica em saúde.
Para as publicações oficiais do Ministério da saúde e da Organização Mundial da saúde foram
priorizadas as publicações referentes a metas, ações e diretrizes para a saúde sexual e reprodutiva,
gênero e sexualidade totalizando cinco publicações. O critério de seleção para os livros foram
publicações que abordassem às temáticas de sexualidade, gênero e saúde sexual das mulheres lésbicas
53
tendo sido utilizados na pesquisa o total de dois livros.

3. DISCUSSÃO
Ao afirmar em sua obra “O segundo sexo” no ano de 1949 que “ninguém nasce mulher, torna-
se mulher”, Simone de Beauvoir evidencia um fato muitas vezes ignorado ou desconhecido ainda nos
tempos atuais a performance do feminino e do masculino não se trata apenas de uma criação autônoma
de cada ser humano, mas sim, de uma construção que passa pelo processo de socialização. Isso significa
que meninas e meninos ao nascer encontram um mundo que lhes instrui em como ser mulher e homem.
A partir de discursos, ações, representações simbólicas e culturais baseadas em características pré-
estabelecidas temos nossos pensamentos, ações, personalidades e desejos moldados (DARC, 2019
citando BEAUVOIR, 1949).
Antes mesmo do nascimento a criança tem seu papel social traçado pelos marcadores sociais
de gênero. A menina vestirá rosa, será incentivada a gostar de laços, bonecas, panelinhas e a ser doce,
gentil, carinhosa, quando crescer deverá se atrair por homens e desejar ter filhos. O menino deverá
vestir azul, gostar de carros, motos, bloquinhos de montar, ser corajoso, não chorar, será agitado, será
incentivado a gostar de brincadeiras de ação e lutas e quando crescer a se atrair por mulheres
(MOSCHETA; et. al., 2016). Tais marcadores sobre como ser homem e mulher moldam nossa
existência incluindo a maneira como nos relacionamos afetivamente e sexualmente.
Adrienne Rich no ano de 1979 cunhou o termo Heterossexualidade Compulsória para denunciar
o apagamento da identidade lésbica expondo que na sociedade patriarcal todas as pessoas são levadas
a acreditar na heterossexualidade como um padrão inato de comportamento sexual. A autora chama a
atenção para o fato de que a existência da mulher é submetida a mecanismos de controle sociais dos
quais se inclui a Heterossexualidade Compulsória, a escritora fala sobre a realidade da existência lésbica
neste contexto:
A menos que se disfarce a lésbica enfrenta discriminação nas contratações de
emprego, e intimidação e violência nas ruas. Mesmo no interior de instituições
de inspiração feministas, como abrigos para mulheres agredidas e programas
de Estudos de Mulheres, lésbicas assumidas são demitidas, e outras
aconselhadas a continuarem no armário (ADRIENNE RICH; 1979).

Em 1979 a autora expôs em sua obra a realidade social vivida pelas mulheres lésbicas de sua
época, um contexto de violência estrutural que as obrigavam a se manter escondidas para sobreviver.
Quando não podiam se esconder, acabavam sendo excluídas dos espaços sociais, inclusive por mulheres
do movimento feminista cujas pautas e análise das opressões vividas pelas mulheres giravam em torno
de uma realidade branca, de classe média e heterossexual e acabavam por reproduzir em suas produções
escritas e simbólicas de luta o padrão heteronormativo, classista e racista. Ao entrar em contato com a
obra de Rich e comparar seus apontamentos com os tempos atuais podemos observar que pouquíssimas
mudanças aconteceram na realidade das mulheres lésbicas que continuam tendo sua existência
invisibilizadas e suas necessidades e direitos enquanto cidadãs continuam sendo negligenciados ou
negados pelas estruturas sociais.
Peres et al. (2018) pontuou que a compreensão acerca da identidade lésbica no contexto
sociocultural no qual essas mulheres estão inseridas se dá por meio de percepções que podem ser
positivas ou carregadas de preconceito. Para as autoras, ser lésbica no Brasil significa ter a existência
passando por todos os significantes simbólicos, sociais e estruturais que atravessam o olhar dos
membros dessa sociedade sendo eles positivos ou negativos e tais representações das Mulheres Lésbicas
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
são responsáveis por determinar se serão aceitas e acolhidas ou se serão vítimas de preconceitos,
exclusões e discriminações.
O processo discriminatório ainda vivenciado pelas Lésbicas é responsável pela privação do
pleno exercício de sua cidadania e dos direitos constitucionais garantidos por lei, dentre os quais se
inclui o acesso à saúde, segundo a autora, uma pesquisa realizada em 2009 apontou que 40% das
mulheres que transam com mulheres ao buscarem pelo Sistema Único de Saúde não informam sua
orientação sexual para os profissionais da saúde e tardam em buscar pelos cuidados básicos de saúde
quando comparadas com as mulheres heterossexuais, o medo do preconceito está entre as causas deste
fenômeno (SILVA 2015 citando BARBOSA, FACCHINNI 2009).
54
Reforçadores dos estereótipos de gênero e da heteronormatividade são responsáveis pela
manutenção da discriminação e do preconceito experimentados pela comunidade LGBTIA+. Pessoas
Transsexuais, Travestis, Lésbicas, Gays, Pansexuais, Intersexo e os demais membros da comunidade
sofrem violências como ataques físicos, verbais e psicológicos cotidianamente apenas por serem quem
são. Essas pessoas têm sua existência invalidada e diversos direitos negados (MOSCHETA et. al.,
2016).
No ano de 2015, em sua folha informativa sobre Gênero, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) discorreu sobre a importância de se identificar e reconhecer as diversas manifestações sexuais
e de gênero para que seja possível realizar um levantamento dos riscos à saúde das pessoas pertencentes
a cada grupo, assim como para desenvolvimento de programas adequados para o cuidado da saúde,
incluindo a saúde sexual. O documento ainda aponta que os papéis de gênero e as normas impostas são
capazes de afetar negativamente a saúde mental, física e social de pessoas pertencentes a minorias
étnicas, raciais de gênero e sexuais.
O Sistema Único de Saúde (SUS) em documento publicado no ano de 2013 explicou que ainda
existe um grande tabu em torno das práticas sexuais que fogem do padrão heterossexual. Admitiu na
mesma publicação que o tabu em torno da sexualidade lésbica leva os profissionais a optarem por não
abordar esse tema nas consultas e que para muitos deles falta preparo e informação sobre como lidar
com esse público quando procuram pelo Sistema de Saúde Pública (BRASIL, 2013).
A falta de conhecimento também é apontada como responsável pela maior exposição de
Lésbicas ao contágio através das relações sexuais, pois, existe o senso comum de que o sexo entre
vulvas não transmite ISTs. Essa crença também pode exemplificar a invisibilidade sofrida pelas
relações que fogem da Heteronormatividade, se não existe o pênis, não existe o sexo e se não existe o
sexo não existe motivos para um trabalho de prevenção e cuidados específicos em saúde sexual (MELO
et al., 2001; DARC, 2019).
Mesmo as mulheres que buscam pelo acompanhamento profissional o fazem quando já estão
com algum problema de saúde visível ou avançado e muitas vezes não se sentem confortáveis para
revelar sua sexualidade. Um padrão de atendimento baseado na ideia de que todas as pessoas são
heterossexuais, que enfatiza o controle da natalidade e o processo gravídico, leva as lésbicas a não se
sentirem acolhidas pelo Sistema de Saúde, gerando a percepção de que os profissionais não serão
capazes de ouvir e orientar adequadamente em relação a tratamentos e cuidados para suas demandas.
O problema se agrava quando as pacientes apresentam traços interpretados socialmente como
“masculinos” por não corresponderem ao ideal heteronormativo do que é ser uma mulher (BARBOSA;
KOYAMA, 2009).
Um estudo publicado no ano de 2005 com 145 voluntárias da cidade de São Paulo- Brasil
submeteram as entrevistadas a exames ginecológicos. Os resultados dos exames apontaram que 33,8%
das mulheres apresentavam vaginose bacteriana, 7,0% hepatite B, 6,2% HPV, 3,8% tricomoníase, 2,1%
hepatite C, 2,9% HIV, 1,5% clamídia e 25,6% apresentaram candidíase, mesmo com os dados obtidos
na pesquisa apontando para o risco de contágio por ISTs através do sexo entre vaginas, apenas 2,1%
das entrevistadas declararam usar algum método preventivo. Esse grupo também apresenta uma menor
regularidade de consultas ginecológicas e de exames preventivos básicos como o Papanicolau,
responsável pela prevenção e diagnóstico do câncer de colo do útero. (DARC, 2019).
Batista e Zambenedeti (2017) entrevistaram lésbicas do estado do Paraná a fim de discutir
estratégias de prevenção de ISTs/HIV. A pesquisa identificou através dos relatos das entrevistadas uma
não proximidade com a temática da prevenção, pelo foco heteronormativo das campanhas com as quais
tiveram acesso essas mulheres não reconheceram as informações como úteis para sua realidade. As
Estudos de Sexualidade 3
participantes também apontaram que tiveram contato com campanhas de prevenção voltadas para
homens gays, com foco no uso de preservativos, no entanto, não tiveram contato com campanhas
voltadas para suas demandas, além da pesquisa evidenciar a inexistência de materiais preventivos
pensados de fato para as necessidades do sexo entre vaginas.
Outro fator importante é o despreparo, a ausência de conhecimento da equipe médica para
atender e informar adequadamente esse público, a falta informações e pesquisas sobre o assunto
consequentemente torna escasso o número de profissionais da saúde aptos a conduzir os atendimentos.
Médicos participantes de um estudo realizado no ano de 2019 relataram que nunca participaram de
treinamentos, palestras, simpósios ou capacitações sobre cuidados em saúde voltados para o público
55
LGBTIA+ (BARBOSA; FACHINNI, 2009; NEGREIROS, 2019).
Guimarães et al. (2017) em pesquisa realizada com agentes comunitários de saúde identificou
que, embora, entre os profissionais entrevistados havia pessoas de fato preocupadas com a promoção
da inclusão e abertos para formações que possibilitem aprender maneiras de oferecer atendimento
adequado à população LGBTIA+. Outros profissionais demonstraram não entender o conceito de
equidade, negaram a existência do sexismo e das barreiras simbólicas como o preconceito enraizado
nos profissionais da saúde, mesmo tais questões já terem sido identificadas em pesquisas semelhantes
envolvendo equipes de saúde.
Certos avanços foram conquistados ao longo dos anos no caminho do reconhecimento da
existência de sexualidades diversas e na importância de olharmos para suas necessidades especificas.
Impulsionados pela luta de movimentos políticos populares organizados foi criado o programa do
Governo Federal “Brasil sem Homofobia” do ano de 2004, cujo objetivo foi desenvolver políticas
públicas e programas de ação para o acesso com equidade ao atendimento de saúde por membros das
minorias sexuais (BRASIL, 2013).
No mesmo ano houve a criação do Comitê Técnico de Saúde da população LGBTIA+ com o
objetivo de elaboração do plano de trabalho baseado nas deliberações da II Conferência Estadual LGBT
de 2011, incorporadas no II Plano Estadual de Combate a Homofobia e Promoção da Cidadania LGBT
de 2014 - 2015 na área da saúde (BRASIL, 2013). No âmbito da saúde sexual da mulher lésbica, a
temática ganhou espaço na agenda da saúde nacional com a criação da Política Nacional de Saúde
Integral da População LGBTIA+, na qual as especificidades da saúde das mulheres lésbicas passaram
a ter visibilidade (SILVA, 2015).
A participação de forças populares no processo de elaboração dos documentos oficiais foi capaz
de garantir textos com conteúdo de qualidade e realmente alinhados com as demandas das minorias
sexuais do país, no entanto, os avanços em direção à equidade para a população LGBTIA+ na prática
ainda está longe de serem alcançados, pois, acabam esbarrando em barreiras politicas motivadas pelo
viés religioso e moral presentes em poderes públicos locais, inviabilizando a implantação dos projetos
elaborados (GUIMARÃES et. al., 2017 citando SILVA, 2009; CAVALCANTE, 2009; FERRAZ 2010
e CARDOSO, 2012).
Os avanços teóricos alcançados ao longo dos anos representam importantes conquistas, no
entanto, ao aproximarmos nosso olhar para as políticas públicas em saúde e saúde sexual é possível
constatar que essa população sofre com a ineficácia dos atendimentos médicos, nos quais se repetem a
marginalização de seus corpos, identidades e necessidades dentro da saúde sexual e reprodutiva
(LÚCIO et al., 2019 citando LÙCIO, 2016). Mesmo com conquistas presentes, existe um longo
caminho a ser percorrido para romper com a barreira do preconceito e da invisibilidade seguimos longe
do ideal para que as mulheres lésbicas alcancem a visibilidade necessária a fim de garantir pleno acesso
a um serviço capaz de atender e acolher suas demandas e especificidades.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio deste estudo foi possível analisar as lacunas existentes no Sistema Único de Saúde no
atendimento de Mulheres Lésbicas, identificando como a discriminação e o preconceito estruturais
sustentados também pelo machismo, pela heteronormatividade e pela Heterossexualidade Compulsória
afastam essas mulheres dos cuidados acerca de sua saúde sexual as tornando vulneráveis ao contágio
por ISTs.
Com a análise dos dados oriundos em sua maioria de artigos acadêmicos seguidos de
publicações oficiais do SUS, da OMS e de livros foi possível identificar que embora avanços
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
importantes tenham ocorridos ao longo da história do SUS, mobilizados pela pressão exercida por
movimentos sociais, minorias sexuais, raciais, étnicas e de gênero tais avanços não foram suficientes
para mitigar décadas de apagamento, discriminação e violências sofridas pelas mulheres lésbicas.
Foi possível notar que a junção entre discriminação, preconceito e falta de informação faz com
que muitas Lésbicas não procurem por atendimento na saúde básica, por medo, vergonha ou por
acreditarem que não é necessário que tenham um cuidado específico para suas demandas. Ficou
evidente o quanto ainda é necessário avançarmos em relação à educação sexual voltada para essas
mulheres. É necessário que existam políticas públicas específicas e eficazes voltadas para essa minoria
sexual e que sejam capazes de gerar a inclusão dessa parcela da população de forma efetiva no sistema
56
de saúde.
Outro fator identificado através da pesquisa foi à falta de preparo técnico e teórico por parte
das equipes de saúde relacionado às demandas de saúde sexual das lésbicas como determinante para
que essas mulheres não se sintam acolhidas quando buscam por atendimento médico. Os ideais
heteronormativos que pautam os atendimentos em saúde sexual e reprodutiva focados no processo
gravídico e na prevenção de ISTs/HIV são pensados para a realidade heterossexual. A falta de
identificação com o protocolo de atendimento gera uma sensação de desconforto e de ineficácia no
sistema de saúde, fazendo com que não voltem a buscar por atendimento ou o faça quando já apresentam
problemas visíveis de saúde.
A ausência de literatura sobre os riscos de contágio no sexo entre vaginas e de conhecimento
dos profissionais de saúde em como examinar, orientar e tratar a essas mulheres vai à contramão dos
princípios orientadores do SUS de universalidade, integralidade e equidade e foi identificado como uma
das causas para que as demandas Lésbicas não sejam levadas em consideração. Os profissionais
despreparados para esses atendimentos muitas vezes preferem ignorar a orientação sexual dessas
mulheres e seguir com suas investigações heterocentradas ou não as examinar, usando para sustentar
sua decisão a ideia preconceituosa de que essas mulheres não gostam de ser tocadas ou que todas se
sentem desconfortáveis com a penetração e por isso muitas delas passam anos sem sequer fazer o exame
de Papa Nicolau essencial para a prevenção e detecção do câncer de colo do útero.
São necessárias ações afirmativas que possibilitem romper com o ciclo de exclusão e
preconceito vividos por essas mulheres contando com a participação popular para a elaboração de metas
e diretrizes que venham de encontro com a realidade dessa população. A criação de protocolos de
atendimento que fuja da dinâmica heteronormativa que parte da premissa de que toda relação sexual
acontece entre pênis e vagina sendo capazes de acolher as demandas do sexo entre vulvas e que encoraje
essas mulheres a buscar por acompanhamento médico e a falar sobre suas demandas em consulta sem
medo de serem discriminadas.
Existe também a necessidade de criação de programas capazes de informar e educar
sexualmente as lésbicas sobre métodos preventivos para ISTs/HIV, além da necessidade de se
desenvolver materiais preventivos adequados para Lésbicas, os materiais disponíveis atualmente se
tratam de adaptações feitas a partir de certos materiais como o plástico filme, Dental Dam, luvas
cirúrgicas, dedeiras ou camisinhas masculinas e femininas que são cortadas ou adaptadas para a relação
sexual entre vaginas. A falta de materiais pensados para as demandas do sexo entre vulvas torna a
adesão aos métodos preventivos menos efetivos, pois, as mulheres não se identificam e tem baixa
adesão ou se sentem desconfortáveis em sugerir o uso de tais matérias no momento da relação sexual.
Existe a necessidade do contato das equipes de saúde com palestras, seminários, treinamentos,
cursos e outras formas de especialização voltada para o atendimento das demandas de minorias sexuais,
na qual se incluem as lésbicas. Se tornando importantes ferramentas para a conscientização das equipes
médicas, que segundo dados da pesquisa apresentam muitas vezes dificuldades em identificar as
demandas dessa parte da população.
Outra questão identificada é a dificuldade que os profissionais da saúde encontram em reconhecer as
violências estruturais e cotidianas vividas pelas lésbicas, impedindo que criem estratégias de
atendimentos que sejam capazes de capazes de aproximá-las dos atendimentos e que se sintam acolhidas
e seguras no espaço clínico.
Estudos de Sexualidade 3

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2020.
Estudos de Sexualidade 3

DISFORIA DE GÊNERO E AFETO


As condições de afeto e suas consequências na formação da Disforia de Gênero

Arthur Martins Maimone

59

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar a partir da Psicologia do Desenvolvimento como a
Disforia de Gênero pode comprometer a saúde de Sujeitos fora do espectro da Identidade de
Gênero Cisgênero ao lhes trazer sofrimento físico e mental. Pensando nas diferentes
abordagens sobre a Transexualidade e sua mudança de entendimento ao longo dos anos, foi
comentado da distinção entre a Transexualidade e a Disforia de Gênero, transtorno presente e
apresentado no CID-10, CID-11 e DSM-V. Nesta pesquisa, foi usada uma leitura de psicólogos
e psiquiatras, tendo como abertura o trabalho atual de Alexandre Saadeh, que comenta a forma
de sofrimento na Disforia de Gênero ao decorrer da infância, adolescência e vida adulta, sendo
complementado por pesquisas contemporâneas que agregaram tópicos de relevância, como os
artigos de Maria Fernández, André Real, Borba Soll e Anuais de Psiquiatria. Tendo a
diferenciação da Transexualidade e da Disforia de Gênero com suas manifestações
estabelecidas, foi também necessário, a partir de uma leitura aprofundada sobre o assunto,
elaborar formas de enfrentamento junto dos Sujeitos que sofrem com a Disforia de Gênero e
suas mazelas no decorrer de sua existência, da infância até a vida adulta. Um sofrimento que
vai desde autolesões a ideações suicidas em decorrência de violência física e verbal,
estigmatização e vulnerabilidade social, este trabalho ajuda ao dar voz para tal sofrimento
assim como pensar formas de reduzi-las ou saná-las.
Palavras-chave: Transexualidade, disforia, desenvolvimento, identidade, manejo.

ABSTRACT
This work aims to analyze from Developmental Psychology how Gender Dysphoria can
compromise the health of Subjects outside the spectrum of Gender Identity by bringing
physical and mental suffering. Thinking about the different approaches to Transsexuality and
its change of understanding over the years, it was commented on the distinction between
Transsexuality and Gender Dysphoria, a disorder present and presented at ICD-10, ICD-11 and
DSM-V. In this research, a reading by psychologists and psychiatrists was used, having as
opening the current work of Alexandre Saadeh, who comments on the form of suffering in
Gender Dysphoria during childhood, adolescence and adult life, being complemented by
contemporary research that added topics of relevance, such as the articles by Maria Fernández,
André Real, Borba Soll and Psychiatric Annuals. Having the differentiation of Transsexuality
and Gender Dysphoria with its established manifestations, it was also necessary, from an in-
depth reading on the subject, to elaborate ways of coping with the Subjects who suffer from
Gender Dysphoria and their problems during their life. existence, from childhood to adulthood.
A suffering that ranges from self-harm to suicidal ideations due to physical and verbal violence,
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

stigmatization and social vulnerability, this work helps to give voice to such suffering as well
as to think about ways to reduce or cure them.
Keywords: Transsexuality, dysphoria, development, identity, management.

1. INTRODUÇÃO
O que me introduziu a tal curiosidade sobre este assunto da identidade e sexualidade
contemporânea foi, além da contribuição com trabalho clínico a população LGBT+ em
situação de vulnerabilidade e sofrimento psíquico, um entendimento da necessidade da
60
discussão sobre uma questão da sexualidade humana que envolve para além das práticas e
papéis sociais. Com isso, voltar com um olhar de não só o conhecimento do próprio corpo, mas
da Identidade que o Sujeito se atribui e apresenta.
Tal oportunidade de compreender situação de sofrimento psíquico com relação a sua
identidade e expressão ficou transparente a mim quando tive a oportunidade de participar em
oficinas, salas de espera e atendimento em serviço social para a população LGBT+ em situação
de vulnerabilidade, onde por muitas vezes eram trazidas pautas dos coordenadores das
atividades por um reforço à própria Identidade do Sujeito. Ademais, também proporcionar um
espaço de acolhimento e amparo emocional às questões de sofrimento da população trans,
sejam emocionais ou sociais.
O fenômeno conhecido como “Identidade de Gênero” tem despertado enorme interesse
e discussão no cenário contemporâneo, seja a partir de um entendimento científico ou de
perspectiva sociocultural. Casos que podemos citar na representatividade da Identidade Trans
em filmes como Garota Dinamarquesa, filme de 2015 que relata a história de Lili Elbe, a
primeira mulher transexual na história contemporânea que realizou a cirurgia de redesignação
sexual, assim como Meninos Não Choram, filme de 1999 contando a história do jovem
transexual Brandon Teena e interpretada por Hillary Swank. Há também a participação de
celebridades transexuais que trazem representatividade em suas obras ou em suas atuações,
como a quadrinista Laerte, a modelo Roberta Close e o ator Thammy Gretchen.
Outro exemplo sociocultural a ser reforçado é a luta transexual de em direitos civis,
como validar o Nome social1 do Sujeito Trans. Ademais, tais movimentos apresentam o
sofrimento e marginalização da população transsexual, buscando uma forma de garantir os
direitos à saúde, educação e segurança para tal população, como por exemplo a lei sancionada
que equipara a LGBTfobia ao crime de racismo no Brasil estabelecida em 2020, ano em que
este artigo foi escrito.
Entretanto, não são raros os debates acalorados erroneamente pautados na chamada
“Ideologia de Gênero”, ou muitas vezes o fenômeno é tratado com falta de informações
atualizadas pela perspectiva acadêmica, fugindo a uma perspectiva normativa e que poderiam
causar mal-estar se trazidas à tona.
Tal “Ideologia de Gênero” citada não apresenta uma definição fixa sobre o termo, seja
ele científico, seja diagnóstico da área médica. Essa expressão muitas vezes é usada como uma
suposta imposição da igualdade de gênero e políticas afirmativas sobre a diversidade sexual
humana, considerada apenas comportamentos que não devem ser falados ou ensinados.
Usando preceitos de que a base de uma sociedade é a família heterossexual
hierarquizada e com papéis pré-estabelecidos, a Ideologia de Gênero deve ser questionada
quando há o entendimento de que um núcleo simples de sociedade se pauta em si no próprio
indivíduo e nas relações constituídas por este. Limitar-se a uma ordem familiar considerada

1
Nome Social é a forma como o Sujeito Trans usa para representar sua vivência transsexual a partir de um nome
diferente de seu nome de registro, incluindo também os artigos que lhe designam
Estudos de Sexualidade 3

natural diminui as possibilidades psicossociais de considerar outras configurações de uma


construção de laços afetivos, sejam de famílias adotivas ou sejam casais homoafetivos.
O próprio conceito de Identidade de Gênero tem sua evolução e atualização sempre
contínua. Uma amostra de tal evolução é que, por muitos anos, a Identidade de Gênero estava
catalogada como um Diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero, sendo retirada pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) da categoria de doenças em 2019.
O que me introduziu a tal curiosidade sobre este assunto da identidade e sexualidade
contemporânea foi, além da contribuição com trabalho clínico a população LGBT+ em
situação de vulnerabilidade e sofrimento psíquico, um entendimento da necessidade da 61

discussão sobre uma questão da sexualidade humana que envolve para além das práticas e
papéis sociais. Com isso, voltar com um olhar de não só o conhecimento do próprio corpo, mas
da Identidade que o Sujeito se atribui e apresenta.
Tal oportunidade de compreender situação de sofrimento psíquico com relação a sua
identidade e expressão ficou transparente a mim quando tive a oportunidade de participar em
oficinas, salas de espera e atendimento em serviço social para a população LGBT+ em situação
de vulnerabilidade, onde por muitas vezes eram trazidas pautas dos coordenadores das
atividades por um reforço à própria Identidade do Sujeito. Ademais, também proporcionar um
espaço de acolhimento e amparo emocional às questões de sofrimento da população trans,
sejam emocionais ou sociais.
Para Saulo Vito Ciasca, um dos coordenadores no Ambulatório Transdisciplinar de
Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS), juntamente com o outro coordenador,
Alexandre Saadeh em 2019:
A Identidade de Gênero é determinada pela maneira que pessoa se sente e se percebe em relação ao seu
gênero, assim como a forma que deseja ser reconhecida pelas outras pessoas, independentemente do sexo
biológico de nascimento (masculino, feminino ou intersexo) (CIASCA, 2019, IN SAADEH, 2019, pp.
31-32).
A partir da compreensão da Identidade de Gênero, entende-se que há também uma
variação nas formas de identificação de seu Eu que o Sujeito usa a partir de seu gênero,
podendo expressá-las, como por exemplo Cisgêneros, Transgêneros, Travestis, Não-Binários,
Cross-dresser, Intersexo, Gender Fluid e outras variáveis. Saadeh lembra que:
Portanto, existem várias identidades de gênero possíveis: homem, mulher, homem transexual, mulher
transexual, travesti, agênero, não binário, andrógino e outras. A identidade de gênero é autodenominada,
pois cabe a cada um a reflexão, investigação e maturação dela. A pessoa que não se identifica com o
sexo biológico pode se denominar transgênera (termo guarda-chuva que contém as identidades
transexual, travesti e outras não binárias). São Cisgêneras que se identificam com seu sexo biológico
(SAADEH, 2019, p. 32).

Assim, o Cisgênero denomina o sujeito, seja homem ou mulher, cuja características de


seu gênero psicossocial se assemelham ao seu sexo biológico, apresentando um
comportamento considerado esperado pela sociedade em que está inserido. O Transgênero, por
sua vez, é um sujeito em que sua identidade de gênero e papel de gênero se diferenciam do
gênero dado quando nasceu, muitas vezes em função da genitália ou outros atributos do sexo
biológico
Considerando que a Identidade de Gênero se posta entre dois polos binários, sendo estes
os Cisgêneros e Transgêneros, deve ser colocado que há uma enorme gama de identidades
entre estes dois polos. Podemos citar como exemplos pessoas que se identificam como não
binárias, que não se colocam nas binaridades de gênero masculino ou feminino, pessoas
agênero em que consideram sua identidade de gênero neutra ou pessoas de gênero fluido, que
transita entre os polos da Identidade de Gênero.
Um fenômeno que ocorre em certas situações de transgeneridade é a chamada de
Disforia de Gênero. Outrora ela foi considerada sinônimo com outros aspectos da
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

transexualidade e possibilidades de diagnóstico de transtorno psiquiátrico, assim como


transtorno de identidade de gênero, transtorno de identidade sexual, incongruência de gênero
e até mesmo transexual.
Para entender a evolução da terminologia, a Disforia de Gênero deixa de ser um
transtorno de desvio sexual categorizada no transtorno psiquiátrico chamado “travestismo”
para uma compreensão de que o transtorno não se encontra na Identidade de Gênero em si, mas
sim a partir do sofrimento que sua existência como transexual na sociedade lhe traz. Uma
explicação se encontra a partir da evolução de diagnósticos a partir do Manual de Diagnóstico
62
e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), onde em ambos os casos houve uma
ressignificação de certos aspectos da transgeneridade no decorrer dos anos.
Uma parte dos primórdios sobre a Transexualidade no DSM e CID é encontrada em
sua terceira e nona versão, respectivamente. Mária Fernandéz Rodríguez, médica e psicóloga
clínica espanhola, traz uma breve descrição de tais obras em sua origem:
Os transtornos de Identidade de Gênero aparecem pela primeira vez na nomenclatura oficial da
Associação Americana de Psiquiatria em 1980 (Manual de Diagnóstico Estatístico de Doenças Mentais
em sua terceira edição - DSM-III) e na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
Relacionados à Saúde em 1978 (CID-9). Em ambas as classificações, ademais ao diagnóstico de
‘transexualismo, introduzem uma seção específica para quando este distúrbio ocorre na infância. No
DSM-III é chamado de “Transtorno de Gênero na Infância”, correspondente com a seção de “Transtorno
de Identidade Psicossexual” do CID-9 (FERNANDÉZ, 2015, p. 25).
No entanto, considerando a data em que tais diagnósticos foram feitos, tanto em 1978
quanto 1980 são considerados obsoletos para grande parte da comunidade científica. Exemplos
de alterações com decorrência as questões da sexualidade e orientação sexual são a
despatologização da homossexualidade ou a proibição feita pelo Conselho Federal de
Psicologia das Terapias de Reorientação Sexual2.
Conhecidas como “Cura Gay”, tais terapias de reorientação sexual tinham como
objetivo erradicar o comportamento sexual homoafetivo ou que não se encaixam em um
espectro de uma heteronormatividade, muitas vezes usando de técnicas aversivas para o
paciente, usando de repressão e moralidade para inibir sua expressão sexual. Tais métodos e
“cura” usam como base a religião e a visão de que qualquer sexualidade fora do espectro
normativo e heterosexual as encaixando como “doença”, definição que a própria OMS já
retirou e não conta com apoio científico
Não à toa, o Conselho Federal de Psicologia no Brasil desde a década de 90 reconhece
a legitimidade da homosexualidade e não reconhece como válidas terapias de reorientação
sexual, sendo passível de sanções para com o profissional que a aplica. Essa legitimidade para
outras expressões da sexualidade no CFP fora reforçada em 2018 quando foi feita uma
resolução que despatologizou a transexualidade a partir de entendimentos contemporâneos do
fenômeno, sendo considerado um marco para a população LGBTQ+
Com o fenômeno da transexualidade, o avanço científico não foi diferente. Nas
atualizações apresentadas no DSM-V, o CID-10 e o CID-11, este que trouxe inclusive um
capítulo dedicado a saúde sexual, mostrou diferenças significativas com relação ao significado
da Transexualidade e da Disforia de Gênero. No texto publicado pela Pós-Graduada em
Psiquiatria Bianca Machado Borba Soll, Incongruência de Gênero: um estudo comparativo
entre os critérios diagnósticos CID-10, CID-11 e DSM-5 (2016), traz um relato sobre um olhar
descritivo e não etiológico sobre a transexualidade, considerando a adolescência e a vida adulta
para o CID-10. Soll afirma que:

2
Terapias de Reorientação tem como o objetivo realizar uma erradicação do comportamento e da orientação
homossexual do sujeito, que em sua maioria são métodos que consistem em técnicas punitivas.
Estudos de Sexualidade 3
Na CID-10 a categoria Transtorno de Identidade Sexual é dividida em Transtorno de Identidade de
gênero na Infância e Transexualismo (adultos), sendo descrita por: A) O indivíduo deseja viver e ser
aceito como membro do sexo oposto. Isto usualmente é acompanhado pelo desejo de tornar seu corpo
tão congruente quanto possível com seu sexo preferido, por meio de cirurgia e tratamento hormonal. B)
A identidade transexual tem estado persistentemente presente por pelo menos dois anos. C) O transtorno
não é um sintoma de outro transtorno mental, tal como esquizofrenia, nem está associado a uma
anormalidade cromossômica. O critério de exclusão da CID-10 é ter uma condição intersexual física
concomitante (por ex., síndrome de insensibilidade aos andrógenos ou hiperplasia adrenal congênita). E
para que este diagnóstico de Transexualismo seja feito, deve haver evidências de sofrimento
clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social ou ocupacional ou em outras áreas 63
importantes da vida do indivíduo (SOLL, 2016, pp. 16-17).

No entanto, Soll reforça que a CID-11 busca trazer alterações para com que foi dito no CID-
10, manual antecessor e buscando uma alteração do viés patologizante do diagnóstico, além do
reconhecimento de ser necessário um olhar biopsicossocial e um trabalho multidisciplinar para
atendimentos à saúde e abertura para diagnóstico de crianças pré-púberes:
Assim, propõe o diagnóstico de incongruência de gênero, sugerindo: a) retirar o critério diagnóstico do
capítulo Transtorno Mentais e Comportamentais e transferi-lo para novo capítulo que será inserido e
intitulado de Transtornos Sexuais e de Saúde Sexual partindo da premissa que desta forma reduzirá o
estigma; b) mudar a denominação de Transtorno de Identidade de Gênero na Infância para Incongruência
de Gênero na Infância (pré-púberes) e de Transexualismo para Incongruência de Gênero na Adolescência
e Idade Adulta (Púberes). A nova nomenclatura enfoca no fenômeno da existência da incongruência
entre o sexo designado ao nascimento e o gênero expressado e não na disforia, que aponta para um
sofrimento emocional devido a esta incongruência. A definição passa a ser “uma marcante e persistente
incongruência entre o gênero expressado e o sexo atribuído”; c) excluir o sofrimento ou prejuízo social
como critério diagnóstico essencial pois esse é compreendido como um sintoma que pode estar
acompanhado ou não da incongruência;d) exigir no critério de tempo para adolescentes e adultos
(púberes) um período requerido de alguns meses com o intuito de facilitar o acesso aos serviços de saúde;
e) possibilitar sobreposição com outro transtorno do desenvolvimento sexual (por ex., síndrome de
insensibilidade aos andrógenos ou hiperplasia adrenal congênita) (SOLL, 2016, pp. 17-18).

No DSM-V por sua vez, o diagnóstico é descrito como “Disforia de Gênero em adolescentes e
adultos”, onde o considera estar associado a um forte sofrimento de caráter biopsicossocial,
trazendo um forte prejuízo em áreas de relevância na vida do sujeito:
A Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e o gênero designado de uma pessoa,
por duração de pelo menos seis meses, manifesta por no mínimo dois das seguintes condições: 1.
Incongruência acentuada entre o gênero experimentado/expresso e as características sexuais primárias
e/ou secundárias (ou, em jovens adolescentes, as características sexuais secundárias previstas). 2. Forte
desejo de livrar-se das próprias características sexuais primárias e/ ou secundárias em razão de
incongruência acentuada com o gênero experimentado/expresso (ou, em jovens adolescentes, desejo de
impedir o desenvolvimento das características sexuais secundárias previstas). 3. Forte desejo pelas
características sexuais primárias e/ou secundárias do outro gênero. 4. Forte desejo de pertencer ao outro
gênero (ou a algum gênero alternativo diferente do designado). 5. Forte desejo de ser tratado como o
outro gênero (ou como algum gênero alternativo diferente do designado). 6. Forte convicção de ter os
sentimentos e reações típicos do outro gênero (ou a algum gênero alternativo diferente do designado)
(SOLL, 2016, p. 19).

Olhando em retrospecto, embora tenha ocorrido uma evolução gradual com relação a
disforia de gênero, ainda é realizado uma grande gama de estudos voltados a tal expressão de
sofrimento para com a Identidade do Sujeito, sendo que estas formas de sofrimento podem ser
desencadeadas pelos mais diversos fatores, sejam estes psicológicos ou sociais.
Não à toa, com a desestigmatização trouxe por parte do meio científico para com a
Disforia de Gênero, assim como a representatividade em meios culturais da Identidade
Transexual trouxe um aumento significativo de demandas sobre a incongruência de gênero.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Isso é presente em um estudo realizado pela International Review of Psychiatry em 2016, que
traz em seu editorial:
O aumento da prevalência da disforia de gênero e a incongruência de gênero na última década
provavelmente se deve a um número de fatores interativamente interativos: O aumento de pessoas
transexuais na televisão e cinema, tal como Caitlyn Jenner, Transparente e Garota Dinamarquesa. Suas
aparições fazem com que pessoas trans entrem em uma consciência social como um fenômeno em que
contribui parcialmente para a desestigmatização do ‘ser trans’, a vasta disponibilidade de informações
na Internet e outros canais de informação sobre a disforia de gênero e a incongruência de gênero, o que
contribuiu para a desestigmatização; a crescente conscientização da disponibilidade de tratamento
64 biomédico (Coleman et al., 2012; Wylie et al., 2014) e o desenvolvimento da tolerância social para
indivíduos trans (FRA, 2014; Keuzenkamp & Kuyper, 2013). Além disso, com a inclusão do ‘ser trans’
em uma sociedade consciente, maior será o número de pessoas que irão refletir sobre seu gênero atribuído
e suas experiências de gênero, podendo assim sentir uma incongruência e, portanto, questionar seu estado
cisgênero atribuído, que sempre fora considerado anteriormente concedido (BOUMAN, 2016, p. 1).

Vale ressaltar que com essa mudança de critérios e de diagnóstico, houve também uma
mudança significativa de como são enxergados os espectros da Identidade. Expresso no estudo
realizado por André Gonçalves Real em 2019:
Tais movimentos (de mudança de critérios diagnósticos e classificação nosológica) demonstram a
tentativa de reduzir o preconceito sofrido por essa população, sem deixar de poder proporcionar acesso
à saúde adequado. Além disso, ambas as classificações deixam de considerar apenas identidades de
gênero binárias – masculino ou feminino -, e passam a considerar também outras variáveis de gênero
(7). Nesse sentido, o gênero tem sido entendido como um espectro, considerando a condição DG - uma
variante dentro da normalidade (REAL, 2019, pp. 15-16).

Todavia, considerando a importância da realização de pesquisas sobre a Disforia de


Gênero, deve ser lembrado que o fator sócio cultural também tem sua forte influência no
sofrimento psíquico da população transexual. Para se ter um bom exemplo, basta retomar que
o Brasil é o país onde é cometido o maior número de crimes de ódio e assassinatos com a
população Transexual e Travesti3.
Não são raras as manifestações de estigma social e preconceito que se passa a
população transexual é submetida, esse sofrimento causado pela sociedade vão desde a
marginalização desses grupos ou desvalidação de sua Identidade, muitas vezes os colocando
com menos valia por não se encaixarem em um determinado padrão. Ademais, com relação ao
acesso aos direitos civis e constitucionais, a população transexual e travesti acaba ficando em
vulnerabilidade por causa da falta de manejo e preparação dos funcionários para trabalhar com
tal população, o que faz o acesso à saúde ser dificultado, por exemplo.
Tal dificuldade está associada por uma construção de um padrão de normatividade e a
consideração da existência de apenas dois gêneros - masculino e feminino - alinhados a uma
perspectiva da naturalidade da sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero. Assim,
os indivíduos que realizam o questionamento de gênero de formas diversas, acabam assim
passando por um sofrimento físico e psicológico desencadeados durante situações de
discriminação e estigmas:
Podemos descrever três tipos de estigma: estrutural, interpessoal e individual. O estigma estrutural inclui
as normas e políticas sociais e institucionais que pode dificultar o acesso a diversas formas de assistência,
oportunidades ou bem-estar. O estigma interpessoal se refere a situações de abuso verbal ou sexual e
violência física devido a uma determinada identidade ou expressão de gênero de alguém. E, por fim, o
estigma individual abrange sentimentos em que o próprio indivíduo tem em relação a si ou crenças que
percebem que os outros podem ter sobre eles, levando a antecipação da discriminação. Indivíduos com
DG estão expostos a todos estes tipos de estigma. Além das agressões verbais e físicas constantemente

3
Dado divulgado pela ONG Transgender Europe (TGEu) em novembro de 2016, transcrito em seu repórter anual
(Link: .https://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-PS-Vol14-2016. pdf)
Estudos de Sexualidade 3
sofridas (estigmas interpessoais), os indivíduos com DG lidam com diversas formas de estigma
estrutural, como por exemplo dificuldade de acesso a saúde, pouco preparo das equipes de saúde para
lidar com esta população, dificuldade de acesso a empregos mais bem remunerados e outras limitações
institucionais de acesso a qualquer tipo de serviço. Sabe-se, ainda, que estes indivíduos frequentemente
sofrem agressão e rejeição por parte da família e, muitas vezes, isso acontece ainda na infância. Além
disso, a falta de suporte social também gera piores desfechos em saúde, como isolamento, baixa
autoestima e depressão. Estas situações marginalizam este grupo da sociedade, o que por si só também
aumenta o estigma. Por fim, a internalização e expectativa da discriminação (estigma individual) pode
levar a evitação de situações sociais e consultas médicas, por exemplo. Inclusive, alguns indivíduos
podem até evitar de expor sua identidade de gênero como forma de lidar com o medo de sofrer alguma 65
retaliação (REAL, 2019, p. 16).

André Real para melhor exemplificar seu conceito retoma um conceito elaborado pelo
psiquiatra Ilan Meyer em 1995 chamado de Estresse de minoria, onde relata em seu estudo o
sofrimento crônico em que está submetido uma população minoritária, tal como indivíduos
LGBTQ+:
Trata-se de um estresse de característica crônica, que se soma a outros estressores usuais que também
são vividos pela população geral e, portanto, necessita de um empenho maior para se adaptar a estas
condições do que um grupo não-minoritário. Grupos socialmente minoritários, incluindo minorias
sexuais como LGBT, têm maior chance de estarem expostos a tais situações por conta da cultura
dominante e estrutura social que muitas vezes não reflete a de uma minoria. Meyer retratou três fatores
que minorias estão expostas: (a) a vivência direta do preconceito, seja, por exemplo, por políticas
públicas que dificultem acesso a serviços ou a violência sofrida; (b) a expectativa de sofrer preconceito,
através da ideia de que sua identidade de gênero ou orientação sexual não serão aceitos; (c) a
internalização do preconceito, no qual o indivíduo tem crenças negativas em relação a si por conta de
sua orientação sexual e identidade de gênero. Vários autores evidenciaram que indivíduos com DG
apresentam maior prevalência de transtornos psiquiátricos em comparação com não DG e relacionam o
Estresse de Minoria como possível fator desencadeante para estes transtornos (REAL, 2019, pp. 16-17).

Em um estudo que ajuda a complementar os conceitos anteriormente citados, é usado


o texto publicado no Journal of Adolescence Health coordenado pela médica americana
Johanna Olson em 2016, usando um método de análise de amostra a partir de entrevista
dirigidas com jovens transexuais entre 12 a 24 anos. O estudo apresentou dados indicativos de
uma tendência de os jovens transexuais apresentarem comportamentos de riscos, como o uso
de substâncias ilícitas, assim como transtornos de saúde mental acentuados, se comparado a
juventude cisgênera americana:
20% dos participantes apresentaram no inventário de sinais de Depressão uma pontuação entre moderado
e de extremo alcance. Considerado maior que o estimado 6,7% da população jovem em geral entre 12 e
17 anos [19] e de 10,9% de jovens adultos entre 18 e 24 anos [20]. Ideações e tentativas de suicídio
reportados nesta amostra são entre 3 a 4 vezes maiores que, respectivamente, que a juventude geral,
relatado nos dados da Youth Risk Behavior Survey em 2013 (54% vs.17% pensaram sobre; 33% vs. 8%
tentaram) (OLSON, 2015, p. 379).

Olson (2015) reforça em sua pesquisa que os próprios dados poderiam ser mais bem
explorados, ao considerar a presença de uma análise de comportamentos da não conformidade
de gênero durante a infância. Embora reconheça as dificuldades de obter tais reconhecimentos
a partir da vulnerabilidade social que a população trans passa, assim como as formas de
enfrentamento diante desse sofrimento psicossocial:
Considerando que os jovens transexuais nesta amostra não revelaram seu sexo autêntico a suas famílias
até os 10 anos após a sua descoberta em média, pode não ser surpreendente que muitos estejam usando
de mecanismos de adaptação inadequados para gerenciar um elemento tão profundo quanto seu ‘eu
central’ (OLSON, 2015, p. 379).

Para complementar o artigo escrito por Johanna Olson em 2015, pode ser lembrado em
pesquisa realizada pela médica Tatiana da Silva Oliveira Mariano em parceira de Rodrigo
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Otávio Moretti-Pires com o título Disforia de Gênero em crianças: revisão integrativa da


literatura e recomendações para o manejo na Atenção Primária à Saúde de 2018. Aqui,
Tatiana reforça como as formas de aceitação da Identidade de Gênero podem acarretar ou não
no sofrimento da Disforia de Gênero a partir de uma vulnerabilidade emocional:
Outro interesse dos pesquisadores foi a vulnerabilidade emocional destas crianças. Dados do TransYouth
Project mostraram que crianças que viveram de acordo com a sua identidade de gênero (transição social)
tinham sua autopercepção em acordo com sua expressão de gênero e apresentaram sua autoestima global
elevada. As crianças que realizaram a transição social com apoio familiar evidenciaram taxas típicas de
depressão para a idade e pouco elevadas de ansiedade. Já os pais destas crianças apresentaram altas taxas
66
de ansiedade. Em outro estudo, não foi especificado se houve transição social ou apoio familiar, mas na
primeira avaliação crianças entre 3 e 12 anos de idade apresentaram distúrbios de comportamento em
45% da amostra, depressão ou ansiedade em 46% e abuso ou dependência de substâncias em 42%; no
seguimento após no mínimo 3 anos da primeira avaliação, 33% apresentaram distúrbios de
comportamento, e 33% relataram duas ou mais tentativas de suicídio antes dos 13 anos de idade
(OLIVEIRA MARIANO, 2018, p. 7).

Oliveira Mariano reforça assim em sua pesquisa que a aceitação da sociedade para com
a criança e sua não conformidade de gênero pode refletir em uma Disforia de Gênero ou não.
São relatados em um levantamento por crianças de até 12 anos que apresentaram Disforia de
Gênero episódios da prática de bullying, ansiedade, automutilação e ideação suicida. Muitos
desses episódios estão associados a preocupações biopsicossociais, como bloqueadores
hormonais, o uso de vestiários, banheiros e a segurança na escola.
No entanto, Tatiana Oliveira Mariano reforça que embora haja uma importância da
discussão de gênero durante a infância, a criança apresenta uma maior maleabilidade de sua
identidade, muitas vezes considerando a exploração da sexualidade e da fantasia. Assim,
considerando que nem toda criança que apresenta Disforia de gênero possa apresentar o mesmo
diagnóstico no decorrer dos anos, se faz necessário o uso de um maior número de avaliações:
O diagnóstico de Disforia de Gênero requer sucessivas avaliações, pois pode ser confundido com
comportamentos próprios da exploração da identidade de gênero da criança. (Hughes et al). Destacaram
que 5% das crianças menores de 12 anos de idade referenciadas apresentaram Fetichismo Transvestita
(todas do sexo masculino), e no corte de (Spack et al. 11) 45% dos participantes relataram não
conformidade de gênero antes dos 5 anos de idade. No estudo de Wallien & Cohen-Kettenis foi
observado que todos os participantes com Disforia de Gênero permaneceram com não conformidade de
gênero, Disforia de Gênero e insatisfação corporal (especificamente para caracteres sexuais secundários)
no seguimento (OLIVEIRA MARIANO, 2018, p. 6).

Para explicar melhor a pesquisa, será usada uma leitura a partir de uma perspectiva
biopsicossocial do fenômeno da Disforia de Gênero a partir de uma leitura que envolvem
médicos, psiquiatras e psicólogos sobre o fenômeno em si e suas implicações.
2. OBJETIVOS
Apresentado os pontos sobre a discussão da Disforia de Gênero com a evolução de seu
diagnóstico e a forma como é enxergado o fenômeno da transexualidade, fica nítido a
relevância desta pesquisa em um espectro psicossocial ao pensar como se dá a evolução do
quadro diagnóstico, assim como entender as mazelas causadoras de um sofrimento à população
fora do espectro da cisgeneridade, seja pela violência ou a desvalidação de sua Identidade.
Ademais, pode-se considerar a importância acadêmica ao trazer uma atualização de textos
escritos nos últimos cinco anos de acadêmicos que se debruçaram sobre o assunto, buscando
formas de compreender o sofrimento psicossocial da população e o melhor manejo clínico em
uma esfera de trabalho multidisciplinar
O objetivo geral.
Compreender o fenômeno diagnóstico conhecido como Disforia de Gênero, além de quais são
suas implicações que ocorrem para sua formação, seja durante a infância, adolescência e idade
Estudos de Sexualidade 3

adulta. Ademais, este estudo busca trazer a conscientização de um sofrimento psíquico que
transexuais podem sofrer e quais os melhores manejos e intervenções, sejam elas dentro do
setting analítico como também em convivência social, sanando ou reduzindo os sintomas de
um Sujeito em Disforia de Gênero.

3. METODOLOGIA
Nesta pesquisa, foi usado o método de uma revisão narrativa. A leitura nesta pesquisa
foi de psicólogos e psiquiatras dos últimos cinco anos que se aprofundaram sobre o fenômeno
da disforia de gênero. Iniciado com a explicação do contexto histórico da formação do 67

diagnóstico de disforia de gênero e a transsexualidade, foi discutido a compreensão


contemporânea do diagnóstico a partir das leituras do DSM - 5, CID-10 e CID-11,
anteriormente citadas suas definições.
Assim, estabelecido a leitura e interpretação da Disforia de Gênero nos materiais de
diagnósticos citados, este estudo procurou artigos acadêmicos publicados em anuais
psiquiátricos, revistas médicas, teses de mestrados publicadas em universidades do Brasil e
Portugal e livros que explicam o manejo clínico com pacientes e familiares LGBTQ+. Assim,
foi possível estruturar um texto explicando o desenvolvimento da Disforia de Gênero em três
etapas da vida: a infância, a adolescência e a vida adulta.

4. DISCUSSÃO
A. I - Disforia de Gênero em Crianças
Em sua maioria, quando é debatido pautas sobre a Identidade de Gênero, não é raro
enxergar a discussão a partir de uma população transexual adulta e de Identidade de Gênero já
estabelecida. No entanto, os transexuais também tiveram infância e podem ter experimentado
ou demonstrado sua incongruência de gênero neste período, mas que não necessariamente pode
ter tido uma prevalência presente na vida adulta.
Em estudo publicado no Annual Review of Psychiatry em 2016 pela psicóloga Jiska
Ristori e também psicólogo e médico Thomas D. Steensma chamado Gender dysphoria in
childhood, é descrito observações a partir do DSM-V que caracterizam um comportamento de
Incongruência de Gênero na infância e diferente da Disforia de Gênero apresentada por adultos:
De acordo com o DSM-5, um diagnóstico de Disforia de Gênero da infância pode ser feito se uma criança
experimenta uma incongruência marcante entre o gênero experimentado e expresso com o gênero
atribuído, de pelo menos 6 meses de duração, conforme manifestado por seis dos oito critérios. Um
critério sine qua non deve ser a experiência de um forte desejo de ser de outro gênero ou a insistência
em ser de outro gênero. Além disso, existem dois critérios que enfocam a disforia anatômica; uma
antipatia pela anatomia sexual e o desejo por características sexuais primárias/secundárias do gênero
experiente. Além disso, existem cinco critérios comportamentais. Os critérios comportamentais dizem
respeito à preferência pelo travestismo; adotar papéis de gênero cruzado em jogos de fantasia; forte
preferência por brinquedos, jogos e atividades do outro gênero; uma preferência por companheiros de
outro gênero; e uma forte aversão ou rejeição de papéis, interesses, preferências e comportamentos
tipicamente congruentes com o gênero (RISTORI, 2016, p. 1).

A análise retirada do DSM-V, todavia, não é refletida para a compreensão de haver ou


não uma incidência e prevalência do sofrimento e das experimentações de gênero durante a
infância, muito em decorrência de estudos ainda rudimentares e pequenos para uma
generalização (RISTORI E STEENSMA, 2016). Ademais, os questionamentos também se
desdobram sobre o próprio desenvolvimento de Sujeitos que apresentaram a Disforia de
Gênero na infância e podem ter se desdobrado em alguma outra manifestação e identidade
psicossexual, tal como um homem gay, uma mulher lésbica, uma mulher bissexual e as mais
diversas variáveis.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Ristori assim configurou uma análise estatística a partir da amostra de 317 sujeitos que
apresentaram uma experimentação de gêneros durante a infância e 45 adultos transexuais,
sendo 40 mulheres transexuais e 5 homens transexuais extraídas de estudos distintos. Os
resultados aparentes da análise de Ristori foram que a Disforia de Gênero era presente não só
para adultos transexuais, mas também correlacionado a sujeitos gays, lésbicas e bissexuais,
sendo presente em 85,2% dos 317 sujeitos entrevistados e apresentando uma desistência da
experimentação de gênero variante entre 2-39% dos entrevistados:
Além disso, Steensma et al., (2013) constataram que uma transição social na infância, principalmente
68 em meninos nascidos, e a identificação verbal com o gênero desejado/vivenciado foram preditivos para
a persistência de DG. Curiosamente, a descoberta de identificação foi relatada em um estudo qualitativo
anterior por Steensma, Biemond, de Boer & Cohen-Kettenis (2011), que observaram diferenças nas
experiências relatadas de GD entre persistentes e desistentes entrevistados. Por exemplo, os persistentes
indicaram explicitamente que sentiam que eram o "outro" sexo e os desistentes indicaram que apenas
desejavam que fossem do "outro" sexo. O objetivo principal do Steensma et al., (2011) estudo foi para
obter um melhor entendimento dos processos que contribuem para a persistência e desistência do DG
infantil (RISTORI, 2016, p. 4).

Logo, é indispensável associar a forma da construção de Identidade a partir de


experimentações ou influências psicossociais apresentadas. Frases como “Não se nasce
mulher, torna-se mulher” de Simone de Beauvoir, por exemplo, representa tal hipótese de
estruturação e condicionamento dos papéis e expressões de gênero a partir de referências
colocadas pela sociedade, sejam elas aversivas ou positivas:
Ao considerar o desenvolvimento de crianças com Disforia de Gênero, estudos mostram que sentimentos
disfóricos de gênero eventualmente dispersam da maioria das crianças com Disforia de Gênero, e que
seu resultado psicossexual está fortemente associado a uma sexualidade lésbica, gay ou bissexual que
não requer qualquer intervenção médica, em vez de um resultado onde a intervenção médica é necessária
(por exemplo, Drummond et al., 2008; Wallien & Cohen-Kettenis, 2008; Singh, 2012). Fatores
preditivos para a persistência da Disforia de Gênero foram identificados em um nível de grupo, com
maior intensidade de Disforia na infância identificada como o mais forte preditor para um futuro
resultado disfórico de gênero (Steensma et al., 2013). O valor preditivo dos fatores identificados para
persistência são, no entanto, em um nível individual menos claro, e a utilidade clínica dos fatores
atualmente identificados é baixa. Em conjunto, isso mostra que pode haver uma grande variabilidade no
que diz respeito à apresentação de crianças com Disforia de Gênero e seu desfecho psicossexual. O
aconselhamento de crianças com Disforia podem, portanto, ser complexo e clinicamente desafiador
(RISTORI, 2016, p. 6).

É necessário retomar a obra de Saadeh “Como Lidar com a Disforia de Gênero” para
compreender melhor como uma criança pode construir sua identificação. Embora haja muitas
teorias que buscam explicar a compreensão do Eu na psicologia, seja ela a Análise de
Comportamento ou a Psicanálise, o trabalho usado na obra a perspectiva da Psicologia do
Desenvolvimento Cognitivo Social:
Os pesquisadores postulam que deve se perceber e valorizar as demonstrações pessoais das crianças
desde a primeira infância. Pascotto (2006) aponta que as percepções e a atenção se iniciam quando a
criança tem apenas meses de idade e são demonstradas por meio de suas escolhas e gostos. Essas
manifestações podem coincidir ou não com as expectativas sociais de expressões de um ou de outro
gênero (SAADEH, 2019, p. 49).

Um fator que pode auxiliar na pesquisa da compreensão de gênero para a criança foi de
trazer a importância do papel da própria criança na sociedade contemporânea, perdendo a
passividade de seu papel coletivo em tempos passados. Assim, considera-se o papel social da
criança em suas atribuições como um ser social e consciente de si, podendo produzir
conhecimento quando estimulada e a manifestando para outros ao seu redor. Feita tal
consideração de seu novo papel social, a criança pode ser ouvida quando manifesta uma
Estudos de Sexualidade 3

incongruência de gênero em relação ao seu sexo, mesmo que seu relato sobre tal incongruência
não seja um fator determinante, mas sim uma valorização do que ela diz.
Entretanto, mesmo com a voz ativa da criança sobre seu Eu, deve haver a compreensão
também de sua imaturidade com essa questão, sendo esta noção de gênero flexível para
crianças entre 3 a 6 anos:
Com 3 ou 4 anos, quando a criança começa a falar e a se expressar, ela já demonstra o gênero que a
descreve de diversas maneiras. Com essa idade é capaz de nomear seu gênero e é por volta dos 6 anos
que o gênero não muda de acordo com a roupa que usa. Nesse momento, podemos nos questionar: como
uma criança tão pequena pode ter propriedade para de falar de sua possível transgeneridade? Então lhe 69
colocamos a seguinte pergunta: por que não fazemos esse questionamento e não sentimos tamanho
estranhamento quando a criança se diz cisgênero? (SAADEH, 2019, p. 44).

Além disso, deve-se reforçar que tal vivência de gêneros pela criança se dará de uma
forma mais saudável e sem consequências de sofrimento se feita com liberdade e sem
imposição de uma moralidade punitiva:
Para as crianças bem pequenas, os conceitos iniciais sobre gênero são bastante flexíveis e elas
experimentam todas as possibilidades com tranquilidade e liberdade. Um aluno da educação infantil pode
acreditar nessa transitoriedade e perguntar para um adulto se ela era menino ou menina quando era
criança, ou um garoto pode dizer que gostaria de ser mulher quando crescer, sem nenhuma estranheza.
(...) Depois que as crianças passam a considerar o gênero como uma característica consolidada, elas
também introduzem o gênero em sua própria identidade (SAADEH, 2019, p. 45).

Outro fator determinante que deve se considerar sobre tais vivências de gênero é os
familiares validarem e respeitarem as experiências dos filhos no seu questionamento de gênero,
mas não a considerarem definitiva para uma infância toda:
Considerando as faixas etárias, entendemos que há variações. Por exemplo, quando pensamos na criança
de 3 a 5 anos, todos esses aspectos podem se referir a fantasias ou brincadeiras criativas. A partir dos 5
anos e com a persistência da criança, ficará mais claro e evidente sua identidade de gênero. Quando a
fase permanecer no discurso da criança até a adolescência, precisamos ouvi-las com mais atenção e
começar a supor que talvez não seja apenas uma fase, mas sim algo intrínseco a subjetividade daquele
pré-adolescente (SAADEH, 2019, p. 48).

Explicado como a criança testa as experimentações de gênero e a formação do gênero


de seu Eu, deve ser conceituado como ocorre a manifestação da Disforia de Gênero em uma
criança e pontuar quais são os sofrimentos adjacentes. Em casos gerais, as crianças têm sua
identidade de gênero congruente ao sexo biológico apesar de não se identificarem com suas
características sexuais, o que não ocorre em uma criança que relata a incompatibilidade com a
genitália, assim como na Disforia de Gênero:
A disforia de gênero afeta crianças que se identificam como transgênero, não se identificam com as
características sexuais com as quais nasceram, e que sofrem com essa contradição. É importante ressaltar
que ser transgênero não é categorizado como um transtorno psiquiátrico, mas a disforia de gênero sim.
A disforia de gênero só é diagnosticada se a criança vivenciar um sofrimento profundo por causa de sua
transgeneridade e essa investigação é feita pelo profissional de saúde (SAADEH, 2019, p.46).

Desta forma, a vivência da não validação de sua identidade transgênera afeta


negativamente a criança, lhe causando um profundo sofrimento e angústia:
Uma criança que sofre de angústia como resultado de sua identidade de gênero, especialmente se é
intimidada ou marginalizada, tem maior risco para desenvolver quadros psiquiátricos, como transtornos
de ansiedade, depressão e abuso de substâncias, entre outros. Lodi e Kotlinski (2017), afirmam que suas
pesquisas revelaram um dado preocupante para a saúde pública; eles perceberam um aumento três vezes
maior de tentativas de suicídio em crianças com disforia de gênero em relação à população que não
apresenta incongruência de gênero (SAADEH, 2019, p. 47).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Considerado pela OMS um mal-estar e um problema para a saúde pública, o Mal-trato


Infantil apresenta consequências que afetam não apenas o Sujeito em diversas fases de sua
vida, assim como o faz cometer as mesmas violências que um dia sofrera e gerando repercussão
na sociedade em que encontra. No mestrado de André Real (2019) anteriormente citado, avalia
as s do Mal-trato Infantil, representados desde abuso e negligência emocional até o abuso
sexual como exemplos:
Diversos estudos têm avaliado o impacto deletério de MTI na saúde mental tanto da criança quanto do
adulto. A criança que sofre MTI apresenta com mais frequência quadros de Transtorno Opositor
70 Desafiador, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtorno de Estresse Pós-Traumático
(TEPT), Transtornos Ansiosos, Depressão, ideação suicida, e Transtorno de Ajustamento. No adulto,
tem se evidenciado associações de MTI com Esquizofrenia, Transtorno Bipolar, Depressão, Transtornos
ansiosos, Transtorno por uso de substâncias e Transtornos de Personalidade. Inclusive, MTI também está
relacionado com pior gravidade e cronicidade de quadros de depressão (REAL, 2019, p. 18).

Soma-se o fator de maus tratos Infantil ao sofrimento do estresse de minoria que


crianças transgêneros podem sofrer em sua infância, se desencadeia o sofrimento que a Disforia
de Gênero traz à criança. Mesmo que André Real reconheça ser necessário um maior
aprofundamento no assunto, é pontuado uma falta de vínculo concreta do Mal-trato infantil à
Disforia de Gênero diretamente:
Crianças com comportamento variante de gênero têm risco aumentado de sofrer MTI. Igualmente,
quando se analisa minorias sexuais, como indivíduos da comunidade LGBT, estes estão em maior risco
de terem sofrido algum tipo de MTI. Até o momento, poucos estudos avaliaram MTI na população com
DG. Elevadas taxas de abuso sexual em mulheres transexuais já foram relatadas, ainda que sem maiores
implicações na saúde mental e vida profissional destes indivíduos. Também avaliando abuso sexual,
Carballo-Diéguez encontrou prevalência semelhante (51%) em mulheres transexuais brasileiras, porém
um terço destas pessoas não haviam considerado ter tido relação sexual antes dos 13 anos com indivíduos
mais velhos como abuso sexual. Já Kersting e colegas observaram que indivíduos com DG tiveram mais
vivências de MTI do que indivíduos internados em uma unidade psiquiátrica e MTI não estava
relacionado a sintomas dissociativos nessa população. Nosso grupo, no entanto, observou que um quarto
dos indivíduos com DG haviam sofrido alguma forma de MTI e isto estava relacionado a maior
frequência de comorbidades psiquiátricas e envolvimento com trabalho sexual na vida adulta. Neste
sentido, Bandini e colegas encontraram uma prevalência de 27,5% de MTI, que na maioria das vezes
eram recorrentes. Neste mesmo estudo também foram encontradas não só associações de MTI com maior
frequência de sintomas psiquiátricos, mas também com pior satisfação corporal (REAL, 2019, p. 18).

Outro fator determinante na Disforia de Gênero a partir do sofrimento causado em Mal-


trato infantil também está em um relacionamento interpessoal punitivo. No estudo escrito por
Madison Aitken “Self-harm and suicidality in Children Referred for Gender Dysphoria” e
publicado no International Review of Psychiatry em 2016, traz um análise de estudo que
colabora com tal hipótese, ainda que ressaltando não ser a única correlação para tal:
Vários estudos de crianças com DG examinaram correlações ou "preditores" desses problemas. Por
exemplo, um estudo descobriu que a idade foi positivamente correlacionada com problemas
comportamentais e emocionais na Lista de verificação do Comportamento Infantil (CBCL). Uma métrica
derivada de CBCL de relações interpessoais ruins (por exemplo, ser provocado) provou ser o mais forte
para correlacionar esses problemas em análises de regressão múltipla. Como os problemas de
relacionamento interpessoais também aumentam com a idade, é provável que a relação entre idade e
problemas comportamentais e emocionais são mediados pelo aumento nas relações deficientes entre
pares (AITKEN, 2016, p. 513).

Exemplificando a partir da automutilação, uma característica que pode estar presente


em alguns quadros de Disforia de Gênero analisados a partir de dados estatísticos analisados
na juventude do Canadá e Países Baixos:
No CBCL, os jovens de Toronto com GD tiveram a maior taxa de automutilação/suicídio (35,7%;
30,2%), enquanto os jovens holandeses com GD (24,8%; 13,2%) têm uma taxa que foi mais comparável
ao dos jovens analisados da amostra (18,5%; 13,5%) na amostra de padronização CBCL. Todos os 3
Estudos de Sexualidade 3
desses grupos tiveram taxas muito mais altas do que os jovens cisgêneros (3,0%; 0,5%) (AITKEN, 2016,
p. 514).

Na conclusão discutida no artigo, Aitken reforça que há sim uma discrepância com os
índices de automutilação e pensamentos suicidas ao comparar crianças que apresentam
incongruência de gênero com crianças cisgêneras na faixa etária de 5 a 11 anos, numa escala
onde 17% crianças transgêneras apresentarem tal comportamento para 6,2% das crianças
cisgêneras analisadas. Todavia, uma análise dos resultados obtidos na amostra chama a atenção
por apresentar um escalonamento dos índices de automutilação e ideação suicida a partir do 71
decorrer da vida:
No grupo referido por gênero, a ideação suicida mostrou uma relação relativamente linear com a idade:
conforme mostrado na Tabela 2, havia relativamente pouca ideação nas crianças muito pequenas, mas
nas idades de 10 a 12 anos, ela estava presente em cerca de 30% da amostra. Esse padrão relacionado à
idade também esteve presente entre as crianças encaminhadas na amostra de padronização do CBCL. As
tentativas de automutilação/suicídio foram menos comuns do que falar em suicídio no grupo referido por
gênero: em nenhuma idade a prevalência das primeiras foi maior do que as últimas. No entanto, o padrão
relacionado à idade entre as crianças encaminhadas era mais complexo: por exemplo, nas idades de 6 a
8 anos, a porcentagem de crianças que mostraram autolesões/tentativas de suicídio era bastante
semelhante para falar sobre suicídio; foi apenas a partir dos 9 anos que este ultrapassou o anterior
(AITKEN, 2016, p. 518).

Considerando tais observações relatadas nas obras citadas, há sim uma correlação entre
o sofrimento causado pela disforia de gênero e as demais relações interpessoais ruins, o
convertendo em sintomas que levam ao sofrimento físico e emocional. No entanto, a partir de
uma maturação biopsicossocial advinda da idade e a construção de uma nova rede interpessoal,
trazem outros enfrentamentos tal como novas demandas e desejos de jovens transgêneros,
sendo manifestado de outras formas na fase da adolescência.
A. II - Disforia de Gênero em Adolescentes
A Adolescência, tanto na perspectiva de vivência do Sujeito quanto para definições
acadêmicas, gera por si só um levantamento de diversos questionamentos. A OMS por
exemplo, aponta que a adolescência abrange um período biopsicossocial da vida do sujeito
entre 10 e 20 anos, enquanto o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) coloca um período
que abrange dos 12 aos 18.
No entanto, é inegável que esse período na vida de um jovem é marcado por mudanças
intensas hormonais e físicas causadas pela puberdade, além de uma transição entre uma vida
infantil para as exigências e responsabilidades da vida adulta. Tais situações e mudanças
biossociais acarretam nos mais diversos comportamentos como a experimentação de novas
vivências, a busca de pertencimento a um determinado grupo interpessoal, a construção de
relacionamentos amorosos, vida escolar e e uma validação de sua própria voz nessas
comunidades.
A Adolescência de um sujeito Transexual não foge à algumas passagens aqui descritas,
no entanto ela possui diferenças que podem acarretar em um sofrimento devido à falta de
amparo e validação de sua Identidade de Gênero. Os conflitos e mudanças físicas gerados
durante a adolescência podem acarretar em formas da Disforia de Gênero para um adolescente
em conflito e apresentando um comportamento autodestrutivo:
Por exemplo, imagine Maria, que nasceu menina (seu sexo biológico designado ao nascimento), mas
desde que se “entende por gente” sente-se um menino e identifica-se como tal. Na puberdade, no início
da adolescência, Maria começa a se desenvolver sexualmente como menina. Isso significa o surgimento
de seios, início da menstruação, mudanças da distribuição da gordura corporal (concentrando-se em seios
e nádegas), em alguém (menino) que não se sente assim. Alguém (menino) que queria ter um
desenvolvimento sexual masculino, pelos, pênis e testículos crescendo, voz ficando mais grave
(SAADEH, 2019, p. 51).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

A própria transexualidade e Identidade de Gênero podem ser consideradas uma


mudança e um momento marcante na adolescência. Segundo o psiquiatra Scott F. Leibowitz
no seu artigo de 2016 Gender Dysphoria in Adolescence, há uma afirmação de que pacientes
que sofrem a Disforia de Gênero determinaram se iriam continuar ou desistir de assumir sua
identidade durante a faixa etária pré púbere dos 10 aos 13 anos.
Ademais, para aqueles que apresentaram uma não congruência de gênero na
adolescência, mostraram prosseguir com sua identidade de gênero definida até sua respectiva
vida adulta. Entretanto, a ocorrência da Disforia de Gênero também é relatada pós
72
adolescência, entretanto Leibowitz reforça que há ainda pouco estudos com relação a este
quadro de Disforia de Gênero, considerando os poucos estudos realizados com adolescentes.
Leibowitz reforça que a sexualidade durante a adolescência também tem um papel
fundamental para o adolescente transexual, mostrando resultados variáveis. Os resultados
obtidos a partir de três estudos analisados, os adolescentes transexuais apresentam uma maior
incidência de atração para pessoas do sexo oposto, porém há uma variação entre 40-45% da
amostra que apontam terem atração por pessoas que também diferem de seu sexo de
nascimento ou fora do espectro binário. Segundo Leibowitz (2016):
A relevância da razão sexual, idade de início transicional e orientação sexual reside no fato de que
estudos com adultos revelaram que masculinidade natal, DG de início tardio e uma atração sexual por
indivíduos de um gênero diferente do sexo natal do adolescente podem prever um desafio mais difícil
curso e resultado do tratamento (Lawrence, 2010; Smith et al., 2005a; Smith, van Goozen, Kuiper, &
CohenKettenis, 2005b). Além disso, as tendências no início da DG em relação à atração sexual nessas
populações podem ser de interesse na compreensão dos fundamentos etiológicos e fenomenológicos da
DG (LEIBOWITZ, 2016, p. 23).

A transexualidade em adolescentes também apresenta um dado alarmante quando


tratado a situação de sua vulnerabilidade mental e social, apresentando dados de prevalência
de outras psicopatologias correlacionadas ao sofrimento causado na Disforia de Gênero,
apresentando assim altos índices de comorbidades. Embora aponte a dificuldade de um
consenso devido às limitações, poucos estudos sobre o assunto e tais análises serem
divergentes, Lebowitz reforça que apesar dos métodos e resultados serem dispersos, há uma
incidência alta com relação às comorbidades:
Por exemplo, Spack et al. descreveram que em sua amostra de 97 adolescentes encaminhados, 44,3%
tinham história prévia de diagnósticos psiquiátricos, 37,1% faziam uso de medicamentos psicotrópicos
e 21,6% tinham história de comportamento autolesivo (Spack et al., 2012). Outro estudo com 84
adolescentes canadenses relatou transtornos de humor e ansiedade em 44% e 33% em suas referências
femininas e masculinas atribuídas ao nascimento, respectivamente (Khatchadourian et al., 2014); e
infelizmente, 10 adolescentes nesta amostra clínica haviam tentado suicídio. Todos os 21 adolescentes
avaliados para elegibilidade de intervenção médica em uma clínica australiana foram relatados como
tendo sintomas de ansiedade ou depressão (Hewitt et al., 2012). De 218 casos encaminhados (crianças e
adolescentes) para um serviço de identidade de gênero de Londres, as informações disponíveis antes da
avaliação revelaram que o baixo humor / depressão ocorreu em 42% e a automutilação em 39% (Holt et
al., 2014). Em uma amostra clínica de encaminhamentos finlandeses para intervenção médica, taxas
excepcionalmente altas de transtornos psiquiátricos ocorrentes foram relatadas, com 64% sendo tratados
para depressão e 53% para comportamentos suicidas e de automutilação. Além disso, sintomas
psicóticos, uso de substâncias, autismo e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)
também foram relatados (Kaltiala-Heino et al., 2015) (LEBOWITZ, 2016, pp. 24-25).

Estas percepções de sofrimentos aliados à alterações na vida de um Sujeito Trans,


também podem ser apresentadas para além de conflitos geracionais entre familiares e muito
presentes em adolescentes cisgêneros. No entanto, para os pais de um adolescente trans eles
também sofrem de um aspecto punitivo com decorrência a falta de amparo, o que faz ter uma
desorientação, medo e culpa junto de enxergar o próprio sofrimento do filho:
Estudos de Sexualidade 3
Na maior parte das vezes os pais se sentem perdidos, sem saber como agir. Os que aceitam e respeitam
a condição de seus filhos, tanto nas crianças quanto nos adolescentes, recebem acusações de membros
da própria família ou de pessoas próximas de serem incentivadores desse comportamento; os que não
aceitam, tentam coibir a manifestação de seus filhos com impedimentos, agressões ou castigos. Ter um
filho com questões de gênero faz com que seus pais tenham sentimentos ambivalentes, ora apoiam e
compreendem, ora coíbem e punem. Alguns pais, quando percebem a expressão desses anseios e a
incongruência de gênero, concluem que provavelmente terão um filho com orientação sexual
homoafetiva (SAADEH, 2019, p. 62).

Entretanto, apesar das dificuldades que tanto pais quanto seus filhos transexuais devem 73
enfrentar e dificultado pelos conflitos geracionais que podem ser desencadeados, é inegável a
importância de uma boa convivência familiar para a redução de danos do sofrimento da
Disforia de Gênero e o autoconhecimento de um adolescente trans:
A família é facilitadora na trajetória de amadurecimento e fortalecimento do adolescente. Nesse processo
de autoconhecimento, é preciso ter firmeza e equilíbrio, o que se adquire com muito conhecimento, para
que haja compreensão, sem desvalorizar o sofrimento. O esforço e o envolvimento familiar têm um peso
significativo e faz muita diferença nesse caminho, como em qualquer etapa da vida. O trajeto não é linear
e previsível, mas com a família ao seu lado e a equipe transdisciplinar de saúde, pode-se tornar menos
penoso de ser percorrido (SAADEH, 2019, p. 68).

A aceitação em um ambiente de convivência para o adolescente tem uma forte


importância, e não são raros uma forte segregação nesses ambientes que desvalorizam a
vivência o lugar nesses ambientes do jovem trans:
Onde esse menino ou menina vai se “encaixar”, qual será o grupo que servirá de espelho para que ele se
reconheça? A priori não existe, ele está sozinho, tanto na escola como em casa e na vida! Nossas
características sexuais seguem a influência do sexo biológico e não do gênero. E muitas das atividades
escolares são divididas por sexo. Em que grupo um adolescente transexual se “encaixa”? Onde ele pode
se sentir fazendo parte? Onde ele se reconhece? Qual banheiro ele pode/deve frequentar? E aí se instaura
um grande conflito. Tão grande que esses adolescentes se sentem vulneráveis, e muitas vezes chegam a
se colocar em risco de morte, por não suportarem tantas questões e tantos conflitos que parecem não ter
solução (SAADEH, 2019, pp. 51-52).

O ambiente escolar possui suma relevância tanto para tentar sanar quanto agravar o
sofrimento da Disforia de Gênero, onde se faz necessário uma reflexão sobre a transgeneridade
e levar para alunos e funcionários. Sabendo sua relevância no desenvolvimento
biopsicossocial, a escola pode trabalhar para ser um amparo trazendo informações e promoção
para o espaço de acolhimento a jovens trans:
As escolas precisam se atualizar e ter conhecimento das dificuldades da experiência da criança ou do
adolescente que apresente essa questão, para que sejam facilitadores, evitando assim o abandono escolar,
muito frequente nessa população. Tem o papel primordial de zelar pela integridade física da criança e do
adolescente no ambiente escolar, além de treinar o grupo técnico que assiste a essa população e de
trabalhar com os demais alunos, a fim de construir cidadãos que respeitem a diferença. A escola é um
importante agente de mudanças sociais e no que se refere a esse tema é essencial que se posicione de
maneira clara, mesmo que alguns pais exerçam resistência e preconceito. Perceber o aluno no contexto
escolar, compreendê-lo e facilitar sua convivência com os demais é o objetivo de qualquer instituição
perante os temas LGBT (SAADEH, 2019, p. 70).

Este trabalho que pode ser realizado pelas escolas não apenas para disseminação de
conteúdo, mas sim um lugar para se fortalecer vínculos e ajudar em situações críticas sociais e
afetivas:
A escola é o no qual o aluno leva suas preocupações, não só as relacionadas aos conteúdos discutidos,
mas também suas dificuldades sociais e afetivas, todos esses temas são abordados entre estudantes e
professores. Nas discussões de aulas, surgem debates de vários problemas ligados ao desenvolvimento
da sexualidade - namoro, doenças sexualmente transmissíveis (DST) e aids, autoestima baixa, desleixo
nos cuidados pessoais, gravidez indesejada, violência sexual, feminismo e machismo, questões de
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
orientação sexual e identidade de gênero, entre outros -, que afetam não só o rendimento escolar, mas
também os relacionamentos e a qualidade e aptidão de vida (SAADEH, 2019, pp. 70-71).

Um exemplo que pode ser citado para o auxílio de afirmação da Identidade de Gênero
e respeito da vivência de um Sujeito Trans está no uso da comunidade por seu Nome Social.
O Nome social, por sua vez, seria a forma que o Sujeito Transexual usa um nome congruente
a Identidade de Gênero que ele se encaixa, estando em função de sua transexualidade e
podendo ser diferente do nome de registro:
74
A idéia é ser respeitado nessa escolha pelas pessoas com quem convive, incluindo os artigos e
terminações das palavras que derivam no feminino e/ou no masculino e/ou neutro. Por Exemplo: ele,
dele, o, ela, dela, a, ile, dile e ou terminar com x no lugar da vogal. Essas são formas de tratamento das
quais as pessoas transexuais precisam. Não podemos afirmar o gênero de determinada pessoa só pelo
que vemos. Na maioria das vezes, perguntar como deve agir em determinados casos, é muito mais
tranquilo do que inferir o gênero de alguém (SAADEH, 2019, p. 56).

Apesar de uma forma simples de respeito, não são raros os casos em que Sujeitos trans
não tem seu nome social respeitado, seja por motivos que vão desde o preconceito social, junto
da não-validação de sua Identidade em seu convívio sócio afetivo e a resistência da rede afetiva
do Sujeito Trans com sua transição. A hipótese de não haver a confirmação de sua própria
identidade e existência é um forte agravante quando é pensado um sofrimento psíquico causado
por uma Identidade de Gênero não validada:
[...] Essa resistência pode aparecer ora por conta da expectativa dos pais em relação ao filho(a) e sobre
o que gostaria que ele fosse, ora pelo adolescente não aparentar fisicamente do gênero masculino ou
feminino. Isso, de certa forma, deixa as pessoas confusas em suas expectativas do que é feminino ou
masculino, por não aceitarem a transexualidade do adolescente. Chamar o adolescente pelo nome que
ele escolheu ser chamado gera uma sensação de respeito e pertencimento, como ele se sente realmente,
que é validado no olhar do outro frente à questão transexual. O nome é uma das condições mais vexatória
se for não adequado, pois expõe a identidade dessas pessoas nas situações mais corriqueiras do cotidiano
(SAADEH, 2019, pp. 56-57).

Para um melhor entendimento de quem são os adolescentes transexuais, foi realizado


um estudo coordenado por María Fernández Rodríguez em 2017 chamado “características de
los menores de edad con Disforia de Género que acuden a la unidad de tratamiento de
identidad de género”. Neste estudo, Fernández coletou uma amostra de 20 jovens transexuais
na Espanha onde foi feito uma pesquisa qualitativa sobre as características sociais que esses
jovens apresentavam.
Fernández analisou aspectos biopsicossociais que esses jovens relataram, que incluía
idade, convivência e contexto familiar, qual foi o encaminhamento e a demanda do jovem até
a instituição onde se realizou a pesquisa, antecedentes de disforia de gênero, orientação sexual,
se estava em tratamento psicofarmacológico e se já realizou auto tratamento hormonal. Embora
reconheça que a amostra seja pequena para poder ser feita uma generalização, ela apresentou
dados interessantes para apontarem alguns pontos sobre a Disforia de Gênero na faixa etária
entre 15 a 20 anos.
Um dos pontos que foi chamado a atenção é a presença de casos de sofrimento
emocional onde foi necessária intervenção médica. Ademais, é compreendido que apesar de
grande maioria, alguns jovens não passavam sofrimento associado com a Identidade de
Gênero:
10% da amostra (2) não apresentou antecedentes assistenciais, correspondente esta porcentagem
exclusivamente para o grupo de MtF4. 6 (30%) tinham história exclusivamente relacionadas a

4
MtF é a abreviação do termo Male to Female, em que se caracteriza sujeitos em transição da Identidade
Masculina para Feminina.
Estudos de Sexualidade 3
reclamações de Disforia de Gênero, sendo o mesmo número de pessoas para o grupo de MtF (3) e FtM5
(3). 35% (7), 5 pessoas do FtM e 2 do MtF, apresentaram histórico médica relacionado a Disforia de
Gênero e outro emocional ou de comportamento. Deste grupo, 1 (14,3%) apresentou três diagnósticos
associados a Disforia de Gênero, depressão, tentativa de suicídio e uso prejudicial de substâncias. 14,3%
apresentou dois diagnósticos associados, que correspondiam com depressão e ansiedade. O 71,4%
restantes tinham diagnóstico associado a Disforia de Gênero, referidos como transtorno alimentares,
medos, problemas de relacionamento na escola, ansiedade e outros sintomas não especificado. Por fim,
5 (25%) apresentaram histórico médico exclusivamente relacionado a distúrbios emocionais ou
comportamentais, 2 pertenciam para o grupo FtM e 3 para o grupo MtF (FERNÁNDEZ, 2017, pp. 5-6).
75
Fernández apontou em sua mostra que apesar da automedicação hormonal não ter sido
uma ocorrência frequente, a entrada dos adolescentes trans no ambulatório onde foi feita a
pesquisa ocorreu teve por justificativa a busca pelo tratamento hormonal:
Em função da demanda que eles fizeram na chegada na unidade, 5 (25%) solicitaram intervenções
exclusivamente psicológicas relacionado à avaliação e 15 (75%) diretamente exigiu tratamento médico
masculinizante ou feminilizante. os 10 sujeitos do grupo MtF solicitaram tratamentos médicos, enquanto
o grupo de MtF 50% solicitou avaliação psicológica e 50% Tratamentos hormonais. Esta diferença entre
ambos os grupos foi estatisticamente significativa (p = 0,03) (FERNÁNDEZ, 2017, p. 6).

É perceptível que apesar de não ser uma regra, a busca pelo tratamento hormonal nos
apresenta um fator biológico e social que interfere para o sofrimento da Disforia de Gênero,
considerando os aspectos estéticos do Sujeito. Chamado de passabilidade pela comunidade
Transexual, esses aspectos estéticos levam em consideração o quanto o corpo do Sujeito
consegue assimilar aspectos do gênero que se define e passa despercebido pela sociedade:
O fator passabilidade é outro grande estressor na vida das pessoas transexuais. Isso porque alguém que
passa como pertencente ao gênero que se identifica sofre menos estigma e preconceito. Já a pessoa que
não tem boa passabilidade acaba enfrentando muitas situações discriminatórias, preconceitos,
xingamentos, brigas, tanto no convívio social quanto no familiar. Entre outros fatores, as intervenções
que postergam o início da adolescência, como o uso de bloqueadores hormonais, apresentam importante
impacto na passabilidade, além de vários elementos, como uso de roupas e acessórios - incluindo faixas
para esconder os seios ou roupas com preenchimento para seios e bundas -, uso de maquiagem e
depilação (ou não) (SAADEH, 2019, pp. 57-58).

O uso de tratamentos hormonais gera um enorme debate entre profissionais da área da


saúde se ele deve ou não ser utilizado. O Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu
em lei que o tratamento hormonal é permitido para jovens transexuais a partir dos 16 anos e
em início da puberdade, desde que com acompanhamento psicológico, ambulatorial e
endocrinológico.
Os bloqueadores hormonais, por sua vez, são apenas usados no Brasil de forma
experimental e em pesquisa acadêmica ministrada por uma equipe transdisciplinar no
AMTIGOS. Para um melhor entendimento dos prós e contras do tratamento hormonal, citamos
novamente a médica espanhola María Fernandéz Rodríguez escreveu em 2015 seu estudo
Nuevas perspectivas en el tratamiento hormonal de la disforia de género en la adolescencia.
Fernandéz fez pontuações sobre as vantagens e desvantagens que o tratamento e bloqueio
hormonal podem trazer.
Fernandéz (2015) explica que os pontos positivos de um início de tratamento hormonal
na adolescência são em essência formas que ajudam na prevenção da Disforia de Gênero e seus
sintomas associados ao desenvolvimento de características físicas durante a puberdade.
Ademais, é reforçado que com o desenvolvimento púbere tardio, algumas cirurgias se tornam
menos invasivas ou desnecessárias se comparada aos adultos.

5
FtM, igual sua contraparte, é a abreviação Female to Male, em que caracteriza sujeitos em transição da
identidade Feminina para Masculina.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Por fim, o último argumento favorável é o auxílio durante o próprio processo de


diagnóstico devido ao tempo que o profissional pode ter de explorar junto do Sujeito sua
própria Identidade de Gênero e se possui a necessidade da cirurgia de redesignação sexual.
Assim, podendo o próprio adolescente decidir o futuro das decisões tomadas de seu tratamento,
Entretanto, ainda que pareça uma solução viável, Fernandéz (2015) elabora argumentos
que devem ser reforçados de certos cuidados da aplicação do tratamento hormonal, junto de
desvantagens que podem agravar o sofrimento. Embora faltem estudos epidemiológicos que
comprovem a eficácia do tratamento hormonal, há também uma discussão sobre a precocidade
76
do diagnóstico da Disforia de Gênero:
O primeiro argumento refere-se ao diagnóstico. Estabelecer um diagnóstico definitivo de disforia de
gênero na adolescência, apresenta dificuldades. Embora sejam escassos e dispersos os estudos
epidemiológicos que podem dar estimativas da incidência e prevalência de disforia de gênero em cada
faixa etária. Em pesquisas existentes mostram que a proporção de disforia de gênero que persiste na
idade adulta é diferente para crianças e adolescentes. As figuras mostram que apenas uma minoria dessas
crianças se manifestará um transexual na idade adulta. Enquanto algumas investigações estabelecem que
entre um 80-95% dos casos, sintomas de disforia gênero pré-púbere desaparece antes da puberdade ou
nos estágios iniciais, outros que serão entre 20-25% das crianças que manterão disforia gênero após os
primeiros episódios da puberdade. Em algumas crianças, esses sentimentos se intensificam e a aversão
ao próprio corpo se desenvolve durante a adolescência e junto com suas características sexuais
secundárias. Enquanto a disforia de gênero remete na maioria das crianças pré-púberes não desaparece
na maioria dos adolescentes com disforia de gênero. Vários autores argumentam que a prevalência de
disforia sexo em adultos é maior quando o transtorno começou na sua adolescência (FERNÁNDEZ,
2015, p. 29).

Os outros argumentos colocados no estudo são as interferências biológicas que os


bloqueadores hormonais podem causar, sejam eles em escala do desenvolvimento ósseo e no
crescimento, sejam do próprio caráter no desenvolvimento hormonal por ter sido adiantado ou
atrasado. Ademais, considerando as características psicossexuais para o desenvolvimento da
sexualidade, papel de gênero, identidade de gênero e orientação sexual, o tratamento precoce
pode gerar um impacto em sua formação, inibindo impulsos eróticos e experimentação de
objetos sexuais, dificultando as experiências sexuais.
Com os argumentos estabelecidos, Fernández conclui e reforça a importância da análise
e avaliações para auxiliar o acompanhamento do tratamento hormonal, ainda que os considere
insuficientes. Entretanto, um dos pontos mais importantes e reforçados é levar em consideração
a individualidade do sujeito e do seu processo de transição:
Crianças e adolescentes estão em processo de desenvolvimento físico, psicológico e social.
Considerando que é um organismo em desenvolvimento e em evolução, é necessário realizar uma
avaliação da relação risco/benefício destas intervenções. Essas faixas etárias são cruciais para a
aprendizagem, o estabelecimento de vínculos afetivos e, em geral, tudo relacionado ao seu
desenvolvimento integral (FERNÁNDEZ, 2015, p. 30).

Um outro estudo que complementa dados sobre a satisfação corporal e aparência física
da população transexual foi também realizado em 2015 coordenado pelo holandês Tim C. van
de Grift em parceria com outros profissionais chamado Body Satisfaction and Physical
Appearance in Gender Dysphoria. A partir de uma análise estatística da amostra relatada em
seu trabalho, van de Grift trouxe outras pontuações como categorizar aspectos que compõem
a imagem corporal a partir de características sexuais primárias, como pelos corporais e
genitálias, características secundárias como aparência em geral e características neutras, que
são citadas pomo de adão, rosto, queixo e ombros.
Com o objetivo de reportar a satisfação ou insatisfação corporal na aparência física, van
de Grift pontua uma grande insatisfação corporal tanto em homens e mulheres transexuais:
Nossos dados mostraram mais altas pontuações gerais, tanto da Pontuação de Imagem Corporal (Bis)
quanto da pontuação de Aparência Física (PhAS) em MtFs, em comparação com FtMs, indicando menos
Estudos de Sexualidade 3
satisfação corporal e uma aparência física que era menos congruente com o gênero experiente. Conforme
descrito anteriormente, a imagem corporal é muitas vezes conceituada como o autoconceito de alguém
do físico em relação ao contexto social (Cash & Pruzinsky, 2002). A fonte das diferenças observadas na
satisfação corporal entre os grupos, portanto, podem ser encontrados em ambos características físicas e
características psicossociais (VAN DE GRIFT, 2015, p. 578).

Uma das hipóteses citada por Van de Grift que podem aumentar ou diminuir o
sofrimento da insatisfação corporal está na aceitação social que facilita a transição de
Identidade de Gênero e idade, onde jovens transexuais possui uma maior frequência de
insatisfação. Embora a pesquisa aponta que o tratamento hormonal não seja um fator 77

determinante que diminua a insatisfação corporal, Van de Grift aponta aspectos sociais que
dão atribuições em expressão e papéis de gênero:
A atribuição de gênero depende principalmente da existência ou ausência de traços masculinos (por
exemplo, masculinização física). Características corporais masculinas (por exemplo, crescimento de
cabelo, características faciais) são frequentemente mais difíceis de mascarar e, portanto, pode ser mais
difícil para os MTFs se apresentarem de uma forma feminina do que vice-versa. Um argumento similar
para a transição social e imagem corporal pode ser seguido aqui para transição social e aparência física.
A transição social pode ser mais fácil para FtMs, porque sua aparência é mais facilmente alinhada ao seu
gênero experiente. Além do que, pessoas que já fizeram a transição podem ser mais facilmente
percebidas como seu gênero experiente do que aqueles que não o fizeram (VAN DE GRIFT, 2015, pp.
582-583).

Ademais, é considerado a importância das subculturas LGBTQ+ para a aceitação dos


jovens transexuais, onde podem possuir padrões de belezas distintos. Não à toa, a sexualidade
e o comportamento sexual também é considerado para uma melhor aceitação corporal:
Indivíduos que são capacitados a viver o papel social de seu gênero vivido em seus relacionamentos
podem se sentir mais capacitados para expressar esse papel socialmente por meio de roupas, penteados,
maquiagem e comportamento físico. Uma explicação para a aparência física mais congruente da
Transição precoce versus Transição tardia, os candidatos podem ser encontrados mais jovens. Como
mencionado anteriormente, a idade mais jovem foi associada a uma aparência física mais congruente
com o gênero experiente. Além disso, pode ser mais fácil "passar" fisicamente como o gênero experiente
durante a transição mais cedo na vida, resultando em maior chance de encontrar um parceiro do papel
de gênero preferido e desenvolvendo uma autoimagem mais satisfatória (VAN DE GRIFT, 2015, p.
583).

Posto isto, é retomado o texto de Lebowitz (2016) em que o próprio conclui sobre os
enfrentamentos de lidar com a Disforia de Gênero expressa de forma tão intensa na
adolescência. Embora haja dificuldades geradas por conflitos geracionais, os profissionais de
saúde têm conseguido pensar novas estratégias e compreensões da transexualidade a partir do
trabalho com pacientes adolescentes:
Tratar adolescentes que apresentam questões relacionadas ao gênero é um campo em rápida evolução.
Com o aumento da visibilidade na mídia e na Internet, os profissionais de saúde mental podem se
encontrar em uma encruzilhada de compreensão das melhores práticas éticas, dada a evolução da
compreensão dos conceitos etiológicos, fenomenológicos e filosóficos que continuam a se desenvolver
para orientar as melhores práticas. Enquanto a pesquisa está crescendo nessas áreas, ajudar famílias e
jovens geralmente requer uma compreensão detalhada e matizada de evidências empíricas e dos déficits
de conhecimento científico, ao enquadrar os prós e os contras de várias intervenções - algumas das quais
são irreversíveis. Abordar essas questões em perspectivas multidisciplinares em clínicas que estão sendo
recentemente formadas em todo o mundo ajudará a preencher as lacunas de tratamento que
historicamente têm sido enfrentadas por esta população carente (LEBOWITZ, 2016, p. 31).

A. III - Disforia de Gênero em Adultos


Explicado a manifestação da Disforia de Gênero na infância e na adolescência, deve
ser retomado estudos sobre a Disforia de Gênero na vida adulta. Tendo em vista que muito dos
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

artigos realizados sobre o assunto teve como amostragem transexuais na vida adulta, as
pesquisas trazem avaliações e causas de sofrimento mais detalhada.
Um exemplo que podemos citar é a própria diferença de entendimento da Disforia de
Gênero e transexualidade nos manuais de diagnósticos anteriormente citados, o DSM-V e o
CID10. Na dissertação de mestrado “Tratamento da Disforia de Género” em 2017 escrito por
Juliana Patricia Marques Sá na Universidade Porto, é relatado a diferenciação e separação entre
o diagnóstico da Disforia de Gênero em Adultos e a Disforia de Gênero em crianças no DSM-
V:
78 Ao longo das reedições do DSM, estes diagnósticos foram várias vezes revistos, tendo-se verificado um
esforço no sentido da despatologização da variabilidade de género, como é evidente no DSM-V,
publicado em 2013 e na declaração emitida pela WPATH em 2010 [5, 25]. Deste modo, no DSM-V, o
Distúrbio da Identidade de Género em Adultos e Adolescentes, passou a designar-se Disforia de Género
em Adultos e Adolescentes e o Distúrbio da Identidade de Género na Infância alterou-se para Disforia
de Género na Infância. Estas entidades foram colocadas numa nova secção - Disforia de Género - menos
estigmatizante e separada das parafilias e das disfunções sexuais (SÁ, 2017, p. 4).

Ao analisar as diferenças presentes no DSM-V, a Disforia em criança está associada a


uma experimentação de papéis do gênero oposto ao seu nascimento e o uso da fantasia para a
vivência deste papel, usando de travestismo e preferência a brinquedos e atividades
estereotipados do gênero oposto. Enquanto a Disforia de Gênero para a adolescência e a vida
adulta, por sua vez, é marcado por um forte desejo das vivências de seu sexo oposto e uma
aversão a suas características físicas do sexo biológico e de gênero, sendo que tanto em crianças
quanto adultos, ela pode ser caracterizada com um forte sofrimento clinicamente significativo
ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do
indivíduo.
O CID10, por sua vez, usa de uma análise onde em que o considera uma doença mental,
diagnóstico este retirado do CID-11:
Transexualismo (F64.0). Desejo de viver e ser aceite enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo
acompanha-se em geral de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação por referência ao seu próprio
sexo anatómico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal
com a finalidade de tornar o seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado. Para que o
diagnóstico possa ser efetuado é necessário: 1) Persistência da identidade transexual por mais de 2 anos.
2) O transtorno não ser sintoma de nenhuma doença mental ou genética, intersexo ou anormalidade
cromossómica. Transtorno de identidade sexual na infância (F64.2). Transtorno que usualmente se
manifesta no início da infância (e sempre bem antes da puberdade), caracterizado por um persistente e
intenso sofrimento em relação a pertencer a um determinado sexo, juntamente com o desejo de ser (ou a
insistência de que se é) do outro sexo. Há uma preocupação persistente com a roupa e as atividades do
sexo oposto e repúdio do próprio sexo. O diagnóstico requer uma profunda perturbação da identidade
sexual normal; não é suficiente que uma menina seja traquinas ou que o menino tenha uma atitude
afeminada. Exclui: - Orientação sexual egodistônica (F66.1). Transtorno da maturação sexual
(F66.0) (SÁ, 2017, p. 6).

Essa gama de informações e análise de outros artigos sobre o fenômeno se encontra no


estudo publicado no Annual Review of Clinical Psychology em 2016 escrito por Kenneth J.
Zucker e Baudewijntje P C Kreukels chamado Gender Dysphoria in Adults. Usando critérios
de avaliação do DSM-V, Zucker também elenca avaliações psicológicas quanto biológicas para
explicar o diagnóstico, usando sintomas já citados como insatisfação e sua imagem corporal
ou concluir que a transexualidade não possui uma causa genética a partir de suas amostras.
Entretanto, vale ressaltar que o fato da associação da Disforia de Gênero ter uma maior
prevalência junto de outros diagnósticos psicopatológicos aponta para dados inconsistentes e
pouco precisos. Muito da atribuição se dá por amostras pequenas para uma generalização, por
não fazerem a distinção da transexualidade masculina e feminina ou por pacientes que
constroem um autodiagnóstico (Zucker et al., 2016):
Estudos de Sexualidade 3
Vários estudos investigaram a relação entre variáveis psicossociais e psicopatologia associada ou
sintomas relacionados (suicídio ou automutilação) em pessoas com Disforia de Gênero. Descobriu-se
que o preconceito e a discriminação percebidos estão positivamente associados a sintomas gerais de
saúde mental (Bockting et al., 2013), depressão (Nuttbrock et al., 2013), suicídio (Clements-Nolle et al.,
2006) e autolesão (Claes et al., 2015). Um estudo com implicações para a direção do efeito (Nuttbrock
et al., 2013) descobriu que o abuso relacionado ao gênero que havia sido experimentado um ano antes
estava associado à depressão atual em MtFs com 30 anos ou menos, mas não em MtFs com mais de 30
anos. et al., (2015) descobriram que maior suporte social foi associado a menos suicídio (ZUCKER,
2016, p. 230).
79
Ademais, um fator de discussão é a correlação sobre a causa do sofrimento da Disforia
de Gênero estar associado com o Estresse de Minoria anteriormente citado e a dificuldade de
pesquisas conseguirem chegar a um consenso entre esses dois fatores:
Os investigadores também relataram nos estudos em que não são fáceis de conciliar com as hipóteses de
que a incongruência de gênero e o estresse das minorias estão causalmente relacionados a uma maior
prevalência de psicopatologia em adultos com Disforia de Gênero. Por exemplo, Bockting et al., (2013)
não encontraram associação significativa entre Disforia de Gênero autorreferido (como um sintoma, não
um diagnóstico formal) e sintomas de psicopatologia em adultos transexuais. Além disso, Heylens et al.
(2014a) e Terada et al., (2012) não encontraram relação significativa entre a idade de início do Disforia
de Gênero e a prevalência de psicopatologia comórbida, o que parece contrário à expectativa de que um
início mais precoce de Disforia de Gênero e uma consequente exposição mais prolongada a experiências
de preconceito e discriminação devam estar associados a psicopatologia mais prevalente. Curiosamente,
Terada et al., (2012) descobriram que a orientação não homossexual em MtFs e analoerotismo (falta de
atração por homens ou mulheres) em FtMs foi positivamente associada com psicopatologia comórbida
(ZUCKER, 2016, p. 320).

As hipóteses mais aceitas para a explicação da Disforia de Gênero em adultos têm em


suas causas fatores Biopsicossociais, apresentando em aspectos genéticos, hormonais e o
funcionamento neural. Além de processos psicossociais no decorrer da vida em Sujeitos
transexuais:
A compreensão da gênese da Disforia de Gênero (DG) baseou-se em alguns princípios gerais sobre o
desenvolvimento psicossexual "normativo" ou sextípico. Um modelo simples é que os mecanismos
envolvidos na diferenciação psicossexual dimórfica sexual normativa (incluindo a própria identidade de
gênero) são invertidos no desenvolvimento do DG. Assim, um modelo normativo de diferenciação
sexual, não apenas usado em estudos com humanos, mas também em dezenas de estudos com animais
(Wallen 2009), tem guiado grande parte da pesquisa do mecanismo causal no desenvolvimento de DG,
seja essa pesquisa biológica ou psicossocial. É, entretanto, importante observar que modelos dentro do
mesmo sexo também foram utilizados; tais modelos envolvem a identificação de mecanismos que podem
explicar uma diferença dentro do sexo em um traço sexodimórfico. Um exemplo disso seria o efeito da
ordem de nascimento fraternal, ou seja, a descoberta de que homens gays têm mais irmãos mais velhos
do que homens heterossexuais. Embora haja uma enorme diferença de sexo na orientação sexual, o
mecanismo hipotético sobre o efeito da ordem de nascimento fraternal aplica-se apenas a homens
(BLANTRARD, 2004).

Em complemento às discussões sobre aspectos biológicos que explicam o diagnóstico


da Disforia de Gênero, P.C Kreukels escreveu também em 2016 Neuroimaging studies in
people with gender incongruence. Neste artigo, há uma revisão bibliográfica sobre estudos
anatômicos do cérebro onde são considerados os aspectos de uma análise da massa cinzenta, a
substância branca, aspectos cognitivos, estímulos de reflexos e mudanças a partir do tratamento
hormonal. Assim, podendo relatar mudanças enxergadas no cérebro de homens e mulheres
cisgêneros com homens e mulheres transexuais.
Com relação à Massa Cinzenta, é apontado nos estudos que há uma correlação entre
sua produção e tamanho em comparação a mulheres cisgêneras e transgêneras, sendo muito
semelhantes. Ademais, com relação a produção de substância branca, há uma diferença de
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

produção de homens transexuais em comparação com o grupo de mulheres cisgêneras do grupo


controle.
Entretanto, uma semelhança de relevância citada é com relação às ligações cognitivas
e o fluxo sanguíneo no cérebro de sujeitos transexuais, sejam homens ou mulheres:
As diferenças entre MtF e FtM na natureza e direção da conectividade do cérebro sugerem que os
sentimentos de incongruência de gênero são "acompanhados por assinaturas estruturais pronunciadas,
mas distintas para FtM e MtF" (Hahn et al., 2015). Eles argumentam que é importante identificar
características únicas em estudos futuros com pessoas trans. Eles não relatam orientação sexual neste
estudo, mas presumivelmente são os mesmos sujeitos que o outro estudo do mesmo grupo (Kranz et al.,
80
2014b), que foram mistos no que diz respeito à orientação sexual. O mesmo grupo abordou a assimetria
no sistema transportador de serotonina (Kranz et al., 2014a) porque diferenças de sexo foram relatadas
em sistemas de neurotransmissores (Cosgrove et al., 2007) (KREUKELS, 2016, pp. 122-123).

Logo, Kreukels consegue enxergar que apesar dos poucos relatos escritos sobre
aspectos neurológicos em sujeitos transexuais, há uma importância de se pesquisar mais sobre
o assunto para considerar também mudanças no funcionamento a partir de tratamentos
hormonais e um fechamento de diagnóstico prematuro:
Embora o número de estudos examinando o cérebro de pessoas com Incongruência de Gênero (IG) ainda
seja baixo, eles nos ensinaram que os fenótipos cerebrais para FtM e MtF parecem existir, e forneceram
evidências para o papel da organização pré-natal do cérebro no desenvolvimento da incongruência de
gênero. Estudos futuros devem se concentrar em diferentes trajetórias de desenvolvimento (persistentes
versus desistentes; início precoce versus tardio dos sentimentos gastrointestinais e também devem
examinar o papel da orientação sexual. Nem todas as crianças com IG tornam-se adolescentes ou adultos
com IG, consulte Ristori & Steensma em outro lugar deste especial problema, e nem todos os adultos
com IG foram crianças com tal diagnóstico. Alguns têm um início de sentimentos GI na primeira
infância, enquanto outros podem ter um início desses sentimentos durante ou após a puberdade (Nieder
et al., 2011) (KREUKELS, 2016, p. 125).

Ao trazer aspectos sobre o fenômeno da Transexualidade e da Disforia de Gênero, além


de buscar compreendê-lo, há também formas de pensar como tratar o sofrimento de tal
população ou formas de estabelecer um bem-estar psicossocial. O trabalho escrito em 2016
pela espanhola María Rabito-Alcón Satisfacción con la vida y bienestar psicológico en
personas con Disforia de Género não é exceção à regra, buscando explorar as condições de
bem-estar de vida e saúde mental.
Em sua pesquisa, Rabito-Alcón coletou dados de uma amostra de 101 sujeitos, sendo
61 adultos transexuais e 40 adultos cisgêneros. Os resultados extraídos da amostra apontaram
que a média de satisfação e bem-estar psicológico da população transexual indicam uma
pontuação neutra ou negativa e ligeiramente menor que a população cisgênera, diferença
presente também na satisfação da vida.
Entretanto, Rabito-Alcón (2016) reforça que embora a pontuação aponte uma satisfação
com a vida e saúde mental menor que a população cisgênera, a amostra aponta que os sujeitos
transexuais têm um resultado acima do corte da infelicidade. Logo, na amostra não é visto uma
forte infelicidade, mas sim uma felicidade menos excessiva ao comparar com o grupo controle:
O bem-estar psicológico das pessoas transexuais parece depender em grande medida de certos fatores
sociodemográficos, psicológicos e de personalidade, bem como de fatores médicos (a fase do tratamento
hormonal). Vários estudos indicam que os fatores mais importantes parecem ser: consciência -
responsabilidade e idade no primeiro passo, ter um parceiro, a fase de tratamento hormonal e o
neuroticismo (correlação inversa) e traços de extroversão no segundo e traços narcisistas, Histriônico e
compulsivo (correlação inversa) no terceiro (RABITO-ALCÓN, 2016, p. 53).

Outro fator para compreender melhor a Disforia de Gênero na sociedade é retomar


dados sobre o cenário da transexualidade no Brasil. No Brasil é adotado o documento escrito
em 2001 pela WPATH (Associação Mundial Profissional de Saúde Transgênera, em
Estudos de Sexualidade 3

português) onde promove o tratamento médico e psicológico com elementos de


acompanhamento de hormonioterapia, intervenção cirúrgica, psicoterapia com foco na
identidade e papel de gênero do paciente, os impactos da Disforia em aspectos da vida e
enfrentamentos e resiliência contra a transfobia:
Em relação à saúde da população transexual, identificam-se algumas necessidades específicas: processo
de afirmação de gênero (hormonioterapia, cirurgias, treinamento fonoaudiológico, psicoterapias),
mudança de nome e do gênero nos documentos de registro civil (atualmente sem necessidade de laudos
médicos), questões concernentes ao serviço militar obrigatório, a instituições de ensino (inclusão do
nome social na lista de chamada, uso de banheiros), à educação sexual, com prevenção de HIV e outras
81
infecções sexualmente transmissíveis, à saúde mental e à medicina geral (riscos associados ao uso
contínuo de hormônios sexuais e necessidades de acompanhamento específico, dificuldades e receios de
se submeter ao exame físico médico) (CIASCA, 2019, IN SAADEH, 2019 pp. 78-79).

Retomando a obra coordenada por Saadeh para um melhor esclarecimento do cenário


do Brasil, Saadeh (2019) citando Saulo Vito Ciasca (2019) reforça que a vivência da
sexualidade dos transexuais é recebida ou por uma população transexual mais experiente ou
obtidas na internet, tendo pouquíssimos programas de prevenção e promoção de saúde a essa
população. As barreiras para transexuais terem acesso à saúde podem ser a marginalização e
vulnerabilidade da população transexual, como auto hormonização ou injeção de silicone em
clínicas clandestinas, assim como o descaso de alguns profissionais de saúde, que por vezes
não respeitam o nome social ou até discutir assuntos relacionados a gênero. Acarretando um
sofrimento psíquico:
A respeito da saúde mental das pessoas transexuais com disforia de gênero, encontra-se com maior
frequência de quadros depressivos (26% dos transexuais), ansiosos (45%), estresse devido a situações
traumáticas (13%), transtornos relacionados a substâncias psicoativas (como álcool, cocaína, maconha e
outras drogas), ideação suicida (60%) e tentativas de suicídio (30%). Muitos estudos afirmam que a
disforia de gênero é em si um fator de risco para a auto mutilação genital. É importante frisar que a
transexualidade não é doença e não causa transtornos mentais por si; são vários os fatores de risco que
aumentam sua vulnerabilidade para agravos, dentre eles estigma social, violência física, psicológica e
sexual, rejeição e abandono familiar, recusa escolar, dificuldades para conseguir trabalho, até dificuldade
no uso de banheiros públicos, evidenciando um não lugar na sociedade (CIASCA, 2019, IN SAADEH,
2019, p. 79).

Em conclusão, Saadeh (2019) retoma o que é escrito por Saulo Vito Ciasca (2019) de
pensar formas de reduzir os danos e barreiras entre a transexuais e profissionais de saúde.
Colocando a necessidade da Ética do cuidado e disponibilizando ferramentas para proteger à
população transexual de preconceitos e garantir uma autonomia pessoal, é também reforçado
ensinar os profissionais de saúde o melhor manejo para diminuir tais barreiras, tal como tratar
o paciente pelo pronome que prefere, respeitar a identidade auto atribuída, inclusão de
diferentes possibilidades de sexo biológico e expressão de gênero em formulários e sem receio
de pedir desculpas ao paciente transexual.

B. Manejo clínico
Uma vez explicado as manifestações da Disforia de Gênero em três etapas da vida que
o Sujeito Trans percorre, esta pesquisa propõe também discutir as formas de intervenção que
o Profissional de Saúde deve ter nestas situações, para assim auxiliar na diminuição da Disforia
de Gênero em qualquer etapa de sua vida, da infância a vida adulta. O trabalho de atenção à
saúde deve ser realizado a partir de um trabalho transdisciplinar, contendo o trabalho médico,
psicoterapêutico, psiquiátrico, endocrinológico e também a partir do serviço social.
No estudo realizado por Tatiana da Silveira Oliveira Mariano (2018) anteriormente
citado nesta pesquisa, ela relata que o medo da estigmatização e vergonha dificultam a busca
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

de transexuais e familiares a ajuda de saúde primária. Com isso, é reforçado um trabalho guiado
de forma respeitosa e livre de julgamentos:
A principal preocupação deve ser identificar riscos para a segurança da criança no seu ambiente familiar
e social, de forma a protegê-la, para que ela possa explorar sua identidade de gênero. Como evidenciado
nas pesquisas, quando há apoio familiar estas crianças apresentam alta autoestima global e sentimentos
favoráveis sobre seu desenvolvimento. A confidencialidade das informações compartilhadas pela família
deve ter especial consideração. As considerações éticas e a necessidade de acompanhamento a longo
prazo sinalizam que o médico de Família e Comunidade deve sempre buscar equipe multidisciplinar para
o manejo destas famílias e crianças. O acolhimento deve ser individualizado e o acompanhamento de
82 forma integral. É responsabilidade do médico identificar se a criança preenche os critérios diagnósticos,
avaliar suporte social, saúde mental e se há interesse da criança e da família em realizar intervenções
clínicas (OLIVEIRA-MARIANO, 2018, p. 9).

A importância de se guiar o manejo para com pacientes transexuais, têm uma grande
aceitação por parte de profissionais de saúde, a pensando de forma multiprofissional.
Considerando a demanda inicial de pacientes trans na busca pelo tratamento da Disforia de
Gênero, o doutor em Psicologia e Sexologia Felipe Hurtado-Murillo propôs uma intervenção
de atendimento em 2015 na obra Disforia de género en infancia y adolescencia: Guía de
práctica clínica.
Pautado em três pilares centrais, Hurtado-Murillo (2015) considera a importância do
trabalho multidisciplinar, sobretudo com o manejo da psicoterapia para nortear as intervenções
médicas posteriores no processo de transexualização do paciente:
O protocolo do processo de transexualização contempla três fases importantes (triagem:
acompanhamento psicológico, hormonal e cirúrgica), sendo a fase inicial de diagnóstico e psicoterapia,
se necessário, que estabelece critérios de elegibilidade específicos e outros critérios de disposição
adicionais que devem ser cumpridos antes de iniciado os hormônios e cirurgias (HURTADO-
MURILLO, 2015, p. 46).

Para complementar a visão de Hurtado-Murillo, usa-se trabalho já citado nesta pesquisa


da médica Juliana Marquês Sá (2017), onde a atuação médica é para além da atenção à saúde
primária do paciente, mas também o acompanhamento do diagnóstico de Disforia de Gênero e
realizar um trabalho de tratamento hormonal, se assim desejado pelo paciente.
A avaliação para a mestragem de hormonioterapia é extremamente complexa ao
considerar que a Disforia de Gênero não é um diagnóstico fixo, assim sendo necessária uma
avaliação intensiva e prolongada feita durante o processo de psicoterapia para a
conscientização dos prós e contras do hormonioterapia. Com o auxílio de psicoterapia e o
tratamento hormonal que dura entre 6 meses a 2 anos, segundo Sá (2017), pode haver uma
redução em escores de ansiedade e depressão, além de uma melhora na qualidade de vida:
O TH deve ser individualizado, tendo em conta a autonomia da pessoa, as suas preferências e
necessidades, bem como a relação risco/benefício dos medicamentos, a presença de outras condições
médicas ou questões sociais e económicas. Este tratamento pode acarretar mudanças físicas irreversíveis
e, portanto, só deverá ser disponibilizado a pessoas que sejam legalmente capazes de dar consentimento
informado para cada uma das etapas do tratamento. Durante todo o processo, o indivíduo deve ser
acompanhado continuamente pelo profissional de saúde mental, em colaboração com o endocrinologista,
para garantir que o desejo de alterar o sexo é persistente e apropriado e que as consequências, riscos e
benefícios do tratamento foram bem compreendidos (SÁ, 2017, p. 8).

Tais hormônios usados estão a prolactina e estradiol durante o processo transicional do


paciente MtF, enquanto é ministrado o uso de testosterona para a transição FtM. Entretanto,
como discutido anteriormente, o tratamento hormonal para adolescente ainda toma um debate
que gera preocupações, sendo um manejo diferente com relação ao tratamento hormonal em
adultos e pela intensidade do sofrimento nas mudanças hormonais da puberdade.
Estudos de Sexualidade 3

Sá (2017), cita a diferença hormonal tratada em adolescentes pelo o objetivo de


diminuir os efeitos da puberdade, realizando a terapia de supressão da puberdade com
aplicações de hormônios de gonadotrofinas, suprimindo assim o desenvolvimento pubertário
e a funcionalidade das gônadas. Vale ressaltar que esse tratamento, além de totalmente
reversível, só é feito em casos de um agravamento da Disforia de Gênero no início da
puberdade Problemas psicológicos, médicos ou sociais que interferem no acompanhamento do
paciente:
O Tratamento Hormonal para o desenvolvimento pubertário do sexo oposto pode ser iniciado utilizando
doses gradualmente crescentes de hormonas quando os adolescentes completam 16 anos, idade em que 83
são legalmente autónomos na tomada de decisões médicas. A aprovação e apoio dos pais, apoio
psicológico e social são fundamentais para o sucesso desta complexa intervenção. Para a indução da
puberdade nesses adolescentes transgénero são utilizados esquemas semelhantes aos usados em jovens
com hipogonadismo (SÁ, 2017, p. 18).

Embora a terapia hormonal apresenta um considerado resultado biológico positivo, Sá


também cita que outra forma de intervenção médica para a redução de danos da Disforia de
Gênero são as cirurgias de Redesignação Sexual. Realizadas por urologistas, ginecologistas ou
cirurgiões plásticos especializados neste procedimento, a cirurgia só é recomendada em último
caso e iniciado o procedimento após uma avaliação contínua psicológica e psiquiátrica.
A avaliação do psicólogo e psiquiatra é necessária não só para garantir que o paciente
se enquadre nos critérios para realizar a intervenção como também ao lado do médico para
explicar ao paciente os prós e contras da cirurgia, a conscientização de sua irreversibilidade,
riscos, complicações, limitações estéticas e o pós-operatório, realizando-a a partir do
consentimento do paciente.
Os critérios de pré-requisito para a operação utilizados pelo psicólogo durante o
acompanhamento são caracterizadas pela maioridade penal, controle de possíveis transtornos
físicos ou mentais, Disforia de Gênero persistente e documentada, capacidade para tomada de
decisões, lucidez e orientação ao consentir sobre o tratamento, uso por 12 meses de tratamento
hormonal de redesignação do sexo e vivência e também da vivência no papel e expressão de
gênero de acordo com a Identidade de Gênero do paciente:6
A Cirurgia de Redesignação Sexual é frequentemente necessária para o tratamento da DG, permitindo
aos indivíduos viver mais satisfeitos com o sexo desejado Apesar de estarem disponíveis cirurgias em
várias estruturas do corpo, as mais importantes são a gonadectomia e a cirurgia estética de reconstrução
genital. A cirurgia, além de estabelecer uma maior congruência entre as características sexuais e a
identidade de género, também ajuda a que os transexuais se sintam mais confortáveis na presença de
parceiros sexuais, no ginásio e consultórios médicos (SÁ, 2017, p. 18).

Embora tenha relevância para sanar a Disforia de Gênero, tanto a hormonioterapia


quanto os procedimentos cirúrgicos não são via de regra para tratamento e tampouco necessária
para certos casos e pacientes que apresentam tal sofrimento. No entanto, o acompanhamento
psicológico e atenção psicoterapêutica pode muito bem ser uma ferramenta de enfrentamento,
além de trazer bom amparo emocional e ter uma função ativa na redução de danos da Disforia
de Gênero.
Leibowitz (2016) reforça a ideia do acompanhamento psicológico ao considerar o
trabalho realizado com transexuais adolescentes a importância de fortalecimento de ego em
situações de enfrentamento a partir da comunicação. Ademais, o acompanhamento psicológico

6
O objeto do exercício de hormonoterapia antes da operação de Redesignação Sexual e experimentação de
seu Papel de Gênero é introduzir um período reversível de supressão de estrogênios e testosterona antes que a
pessoa se submeta a uma intervenção cirúrgica irreversível, além de experimentações com sua sexualidade e
Identidade de Gênero.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

é de auxílio durante o tratamento hormonal e as mudanças corporais próprias da adolescência.


Leibowitz (2016) complementa dizendo:
O suporte da terapia pode servir como um mecanismo de ajuda ao construir forças adaptativas do ego
para adolescentes transgêneros, incluindo aqueles que declaram identidades de gênero não binárias.
Conforme recomendado nas diretrizes da APA (American Psychiatric Association, 2015) e no AACAP
Practice Parameter (Adelson, 2012), isso inclui (1) aumentar a capacidade de um adolescente para
detectar com precisão quaisquer situações inseguras no ambiente social, (2) compreender os benefícios
e riscos da auto-revelação em diversos contextos, (3) exploração de reações hipotéticas de entes queridos
a quaisquer mudanças físicas que possam ocorrer com intervenções físicas procuradas, (4) compreensão
84 de como a identidade de gênero de uma pessoa se cruza com sua identidade étnica/cultural, e (5) o
desenvolvimento de estratégias de enfrentamento saudáveis na presença de potencial adversidade e
estigma. Adolescentes que afirmam uma identidade de gênero não binária podem ter dificuldades
específicas para explicar seu pronome preferido, desejo de não ser percebido como exclusivamente
masculino ou feminino e conceito de um gênero alternativo para outros (LEIBOWITZ, 2016, p. 29).

Este argumento foi elaborado pela Psicóloga e Mestra em ciências médicas Heloisa
Junqueira Fleury em parceria da Psiquiatra Carmita Helena Najjar Abdo no artigo publicado
na Revista Diagnóstico & Tratamento em 2018, “Atualidades em disforia de gênero, saúde
mental e psicoterapia”. Fleury (2018) relata que tal abordagem e tratamento de saúde mental
deve ocorrer de forma individualizada levando em consideração o relato do próprio paciente,
e não um protocolo estabelecido.
Ademais, cabe ao psicólogo durante o acompanhamento orientar sobre a diversidade
das expressões e identidades de gênero, esclarecendo de forma psicoeducativa e oferecendo
amparo para aliviar a Disforia de Gênero. O processo de terapia pode ser realizado de forma
individual, familiar ou em grupo:
O atendimento psicológico pode ser individual, com o casal, família ou em grupo. Como em qualquer
processo psicoterapêutico, é necessário abordar os problemas psicológicos apresentados, com a clareza
de que bons resultados incluem desde mudanças no papel e expressão de gênero (como a vivência parcial
ou integral em outro papel de gênero, em conformidade com a identidade de gênero), a experiência
completa hormonal e cirúrgica do processo de transição, até mesmo a integração de sentimentos
transgêneros ao papel de gênero atribuído ao nascer. Essa intervenção pode reforçar, diminuir ou tornar
desnecessário o processo de feminilização ou masculinização do corpo, garantindo ao indivíduo a
tomada de decisões bem informada (FLEURY, 2018, p. 149).

A terapia em grupo não só ocorre com os próprios pacientes, mas também pode ser
feito uma terapia em grupo com os pais ou familiares. Esta intervenção em grupo favorece ao
ajudar os pacientes transexuais e sua rede de apoio na reflexão adaptação das mudanças que
estão passando, oferecendo relações interpessoais edificantes aliados a aceitação, empatia e
afeto. Assim, com tal postura afirmativa, o terapeuta auxilia em oferecer ferramentas de
enfrentamento e resiliência diante das dificuldades, desigualdades e preconceitos:
A psicoterapia de grupo permite reflexões e questionamentos, pavimentando o caminho para adaptações
emocionais, incluindo aquelas relacionadas às mudanças corporais provocadas pelo tratamento
hormonal.14 Dessa forma, o processo psicoterápico deve integrar uma dimensão psicopedagógica
(preocupações e desafios interpessoais comuns aos indivíduos transgêneros), adaptação cognitiva
(superação de maneiras disfuncionais de pensar, resultantes da vivência numa sociedade transfóbica),
desenvolvimento de habilidades para resolver problemas (identificação, levantamento de possíveis
soluções, avaliação de prós e contras e implementação de ações) e regulação de afetos (ajudar a expressar
fortes emoções associadas a experiências pessoais ou traumáticas) (FLEURY, 2018, p. 149).

Ainda que em relato Fleury (2018) use como técnica e teoria do psicodrama durante a
terapia individual e em grupo, não há para manejo uma técnica definitiva no decurso da
psicoterapia. Entretanto, ao considerar certos aspectos de sofrimento em decorrência da
Identidade de Gênero ou Orientação sexual correlacionadas por um sofrimento semelhante e
estresse de minoria, é importante que indiferente da teoria psicológica o terapeuta pense em
Estudos de Sexualidade 3

um manejo de abordagem Afirmativa, reconhecendo o sofrimento do paciente pela sexualidade


causado por influências de uma sociedade heteronormativa.
Na obra escrita pelo psicólogo brasileiro Klecius Borges em 2009 “Terapia Afirmativa:
Uma introdução à psicologia e à psicoterapia dirigida a gays, lésbicas e bisexuais”, o autor
guiado pelo seu trabalho contínuo à população LGBTQ+ e por escritos de psicólogo (Alan
Maylon, Donald Clark, Betty Berson et. al.) que questiona a visão desenvolvimentista da
inferioridade homossexual. Chamada de Psicologia Homossexual ou Pink Therapy, tal
abordagem têm como objetivo a reforçamento de uma identidade LGBTQ+ positiva e a
consideração de que o sofrimento do Sujeito não se deve a sua Orientação Sexual e Identidade 85

de Gênero em si, mas em decorrência do preconceito e estigma sofrido, esteja no âmbito social,
cultural, estrutural, institucionalizado e introjetado no próprio Sujeito LGBTQ+, chamada
“Homofobia Internalizada”:
Do ponto de vista teórico, a terapia afirmativa não vê o sujeito homossexual como psicologicamente
diferente do sujeito heterossexual. Porém, ao segmentar as orientações sexuais e definir um foco, ela
busca uma compreensão mais profunda das questões particulares dessa população, assim como o
desenvolvimento de modelos teóricos e clínicos mais adequados. Não se trata de uma psicologia da
sexualidade, pois não se restringe às práticas sexuais, abrangendo inúmeras questões psicossociais. É
importante ressaltar que, apesar do nome “psicologia homossexual”, essa abordagem historicamente
inclui os bissexuais e transgêneros, relacionando-se intimamente com a psicologia de gênero (BORGES,
2009, p. 20).

Posto isto, Borges reforça a importância do trabalho feito pelo terapeuta ter uma postura
de acolhimento e afirmativa da identidade, reconhecendo o sofrimento negativo nas mais
diversas esferas de vida do sujeito e trabalhando ferramentas de enfrentamento. Uma das
ferramentas é a construção da auto aceitação do paciente e a construção de uma identidade
positiva considerando as singularidades do sujeito:
O objetivo da terapia afirmativa é basicamente ajudar o paciente a tornar-se mais autêntico, por meio da
integração dos sentimentos, pensamentos e desejos homossexuais às diferentes áreas de sua vida,
desenvolvendo assim uma identidade gay positiva. Para que o vínculo de confiança entre o paciente gay
e o terapeuta se dê de forma adequada, algumas condições que extrapolam a clínica tradicional são
essenciais (BORGES, 2009, p. 43).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de a conscientização pública sobre o amplo espectro de indivíduos transgêneros estar se
desenvolvendo, a compreensão científica sobre o fenômeno do desenvolvimento da identidade de gênero
ainda é limitada (SPIZZIRRI, 2017, p. 47).

A frase dita por Giancarlo Spizzirri no texto escrito em 2017 Disforia de gênero em
indivíduos transexuais adultos: aspectos clínicos e epidemiológicos, resume e define em
essência a conclusão extraída nesta pesquisa. Pois embora conseguimos elaborar o
entendimento do sofrimento causado na Disforia de Gênero, ainda há muito a ser pesquisado
para ter uma melhor compreensão sobre o fenômeno.
Isso fica evidente ao mostrar que as pesquisas citadas mostram que suas amostras são
pequenas e insuficientes para uma generalização. Entretanto, elas nos apresentam formas de
manifestação de sofrimento ocorrido na Disforia de Gênero em seus mais variados aspectos.
Tais manifestações aparecem em sua grande maioria em decorrência de uma não
validação da Identidade de Gênero e suas experimentações, desrespeito e estigma social,
situações de vulnerabilidade, padrões estéticos e outros fatores biopsicossociais. A partir de
tais atos, a Disforia de Gênero se manifesta como um sofrimento psíquico trazendo riscos à
saúde, como a injeção de silicone industrial visando uma “passabilidade”, ou associado por
outros sintomas com correlação a variados diagnósticos, como depressão, ansiedade, estresse
pós-traumático, uso desenfreados de drogas, ideação e tentativa de suicídio.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Entretanto, tais análises e outros fatores sociais contribuíram para trazer uma
conscientização sobre a Disforia e elaborar formas de enfrentamento, seja reforçando a
autonomia de transexuais para o preconceito, seja a partir da conscientização pública e de
profissionais da saúde a partir da realização de pesquisas acadêmicas sobre o assunto, sendo
necessário sempre uma atualização e novas pesquisas sobre o fenômeno.
Em conclusão, tal forma para reduzir o dano causado pela Disforia de Gênero se baseia
em uma Transculturalidade e pode ser usada por profissionais de saúde ou a sociedade como
um todo, apresentando assim diversas formas de amparo e conscientização, seja a validação de
86
seu sofrimento com o uso da terapia afirmativa, seja respeitar e usar o pronome solicitado pelo
Sujeito.

6. REFERÊNCIAS
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Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

88
Estudos de Sexualidade 3

Diferenças entre o ciúme romântico em homens e mulheres

Beatriz Roedel Linhares Faria

89

RESUMO
O objetivo geral deste artigo é compreender, a partir do que já está presente na literatura, quais
as diferenças entre as origens e manifestações do ciúme romântico em homens e em mulheres.
Esta questão apresenta valoração ao considerarmos que há um abismo de diferenças
socioculturais entre os gêneros. O ciúme é um excelente exemplo disto, tendo em vista,
primariamente, a diferença no trato social entre os comportamentos sexuais femininos e
masculinos. Os principais resultados dizem respeito ao ciúme como grande fator de motivação
para agressões e comportamentos violentos em relacionamentos românticos; as mulheres
costumam ter mais ciúmes românticos, enquanto os homens apresentam mais ciúmes sexuais
e mais comportamentos agressivos frente ao ciúme.
Palavras-chave: ciúme; ciúme de homens; ciúme de mulheres; consequências do ciúme

ABSTRACT
The main objective of this article is to understand, from what is already present in literature,
the differences between the origins and manifestations of romantic jealousy in men and
women. This question presents value when we consider that there is a great cultural difference
between genders. Jealousy is an excellent example of this, primarily in view of the difference
in social treatment between female and male sexual behaviors. The main results relate jealousy
to a major motivating factor for aggression and violent behavior in romantic relationships;
women tend to be present more romantic jealousy, while men exhibit more sexual jealousy and
more aggressive behaviors in the face of jealousy.
Keywords: Jealousy, jealousy female, jealousy men, violence.

1. INTRODUÇÃO
O ciúme é uma emoção humana bastante comum e amplamente trabalhada na cultura
popular, desde clássicos textos teatrais e literários até filmes e séries atuais. Todos já sentiram
ou sentirão ciúmes em algum momento da vida; tal sentimento pode ser voltado à relações
românticas, mas também à amizades, familiares e até objetos (COSTA, 2010).
Existem duas caracterizações sumárias sobre esta emoção, que dizem respeito à
intensidade do ciúme. Apesar de ser uma emoção humana tão válida quanto as outras, alguns
fatores contribuem para que este pode tornar dimensões desproporcionais e acarretar em
prejuízo às relações do indivíduo (COSTA, 2010).
O denominado ciúme normal traz elementos de dependência e abandono, e pode ser
considerado como o equivalente adulto do medo do abandono parental que experienciamos
quando éramos bebês (MALLMAN, 2015). Young (2003) pontua que o comportamento
ciumento é típico em pessoas que enxergam sua vida através do esquema disfuncional do
abandono: “(...) um esquema é um padrão imposto à realidade ou à experiência para ajudar os
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

indivíduos a explicá-la, para mediar a percepção e para guiar suas respostas” (YOUNG, 2003,
p. 22).
Pessoas com tal esquema de abandono são indivíduos que “possuem uma expectativa
constante de que podem perder as pessoas mais próximas a eles. (...) Assim, vivem sob medo
constante, sempre alerta em busca de qualquer sinal de que alguém sairá de suas vidas”
(YOUNG, 2003, p. 181).
Já o ciúme denominado patológico é altamente associado às relações
interpessoais românticas-sexuais. Ele ocorre quando ameaças vagas ao relacionamento ou
90
situações pequenas são interpretadas como ameaças sérias à esta relação. E também:
Caracteriza-se por ser crônico, pela existência de altos níveis de ansiedade, dúvida, suspeita, insegurança
em si e no relacionamento. Geralmente é anterior à ocorrência de eventos provocadores de ciúme. Existe
uma grande desconfiança sobre o comportamento do parceiro, o que faz com que o sujeito ciumento
verifique constantemente o comportamento do parceiro e tente controlá-lo. A resposta emocional é
exacerbada diante da situação real (COSTA, 2010).

Portanto, os “ciúmes patológicos” são os que causam prejuízo às relações, têm


correlação com agressões, são um forte (senão principal) causador de feminicídios e podem,
inclusive, se apresentarem como sintomas de alguma patologia ou transtorno maior (COSTA,
2010). Também podem ser definidos como uma condição caracterizada por pensamentos,
emoções e comportamentos extremos, podendo ocasionar sofrimento para o indivíduo e para
o seu parceiro. Pode se apresentar de formas distintas, como por ideias obsessivas, prevalentes
ou delirantes (VAL et al., 2009).
De forma mais aprofundada, o ciúme também é descrito em quatro graus. No primeiro,
o ciúme é expresso de forma saudável, manifestando o desejo do indivíduo de manter próximas
dele pessoas queridas. Já no segundo grau de ciúmes, o indivíduo busca direcionar todo o amor
para si próprio; a psiquiatria o relaciona com personalidades narcisistas. Gradativamente, o
terceiro é o chamado ciúme obsessivo, que acarreta sentimentos controladores em quem o
sente, como a necessidade de investigar e manipular a vida do parceiro. Normalmente está
associado à antecipação da infidelidade ou por receio de perder a pessoa amada. Por fim, o
quarto grau seria o ciúme delirante. Neste, “é comum a tendência ao imaginário irracional, uma
vez que esses sujeitos tendem a encarar como verdade absoluta apenas os seus delírios”
(CAVALCANTE, 1997).
Outro aspecto importante do presente trabalho é a diferença sociocultural entre os
gêneros. Devemos estar atentos para a grande influência do contexto sociocultural na
manifestação de comportamentos violentos, já que tal contexto é um fator comumente
responsável por respostas agressivas entre casais (COSTA et al., 2015).
Em suma, este artigo considera o ciúme como uma emoção humana que aparece,
majoritariamente, quando o sujeito sente sua relação ameaçada. Esta emoção pode ser sentida
por qualquer pessoa em diferentes graus. O foco será no ciúme romântico, que é o ciúme
sentido em uma relação amorosa, causado muitas vezes pela ideia da perda do objeto amoroso.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
O objetivo geral deste artigo é compreender, a partir do que já está presente na
literatura, quais as diferenças entre as origens e manifestações do ciúme romântico em homens
e em mulheres. A pergunta central deste estudo apresenta valoração ao considerarmos que há
um abismo de diferenças socioculturais entre homens e mulheres na maioria dos países. O
ciúme é um excelente exemplo disto, tendo em vista, primariamente, a diferença no trato social
entre os comportamentos sexuais femininos e masculinos. Los principales resultados muestran
Estudos de Sexualidade 3

los celos como un importante factor de motivación para la agresión y el comportamiento


violento en las relaciones románticas; las mujeres tienden a ser más románticamente celosas,
mientras que los hombres exhiben más celos sexuales y un comportamiento más agresivo
frente a los celos.

3. METODOLOGIA
A busca por levantamento bibliográfico ocorreu em setembro de 2020. Tal pesquisa foi
feita usando as palavras “ciúme” e “gênero” nas bases de dados da Revista Psicologia em Foco,
Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e ScieLo. Ao todo, foram encontrados trinta resultados na 91
BVS, seis na ScieLo e um na Revista Psicologia em Foco (t = 37).
Os critérios de inclusão a partir dos resultados foram: artigos escritos em Português e
publicados a partir dos anos 2000. Os critérios de exclusão utilizados foram: artigos em
Português de outros países que não o Brasil; textos que não tivessem o ciúme como assunto
principal; e textos Psicanalíticos, por apresentarem linguagem e conceitualização própria e
exclusiva. Um artigo (proveniente da BVS) foi excluído por não se encontrar disponível online.
Elaborações e validações de escalas e inventários também foram excluídos. Já
pesquisas qualitativas, quantitativas, revisões sistemáticas e revisões bibliográficas foram
mantidas.

4. RESULTADOS
A partir dos critérios de inclusão e exclusão, três artigos foram selecionados a partir da
busca na Biblioteca Virtual em Saúde; cinco da ScieLo; e um da Revista Psicologia em Foco
(t=9).
Os artigos da amostra apresentaram um consenso geral sobre a concepção do ciúme; a
maioria dos artigos também pontuou atravessamentos relevantes da questão de gênero nos
ciúmes, que foi apontado como uma das motivações principais para violência intrafamiliar,
crimes contra a mulher - incluindo feminicídio - e para violência (física ou psicológica)
também em relacionamentos de adolescentes.

AUTORIA TÍTULO VEÍCULO ANO RESUMO

Lauane Amor e ciúme na Psicologia & 2011 O presente artigo deriva-se da dissertação
Baroncelli contemporaneidade: reflexões Sociedade de Mestrado da autora que trata do ciúme
psicossociológicas nas relações amorosas contemporâneas.
Partindo da perspectiva de que o ciúme na
experiência amorosa é uma condição
historicamente constituída, procuramos,
neste estudo, investigar teoricamente as
consequências que as práticas e princípios
culturalmente estabelecidos na
contemporaneidade têm sobre a
experiência de ciúme dos indivíduos
contemporâneos. Na busca desse objetivo,
nosso estudo, a seguir, busca refletir sobre
alguns impactos que o momento histórico
atual tem produzido no domínio do amor,
para, finalmente, discutir algumas
maneiras de compreender o ciúme que se
revela numa experiência amorosa que, nos
dias de hoje, se vê marcada por intensa
transitoriedade, flexibilidade e abertura.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Valéria Ciúme romântico e a sua Psicologia 2007 Dentre as mais diferenciadas emoções
Centeville & relação com a violência Revista humanas, o ciúme é uma emoção
Thiago de extremamente comum, e dentre todos os
Almeida tipos de ciúme citados na literatura
científica, o ciúme romântico, isto é,
aquele que ocorre em relacionamentos
amorosos, é um dos que tem despertado
maior atenção de psicólogos e leigos. O
ciúme romântico se configura como um
conjunto de emoções desencadeadas por
sentimentos de alguma ameaça à
92 estabilidade ou qualidade de um
relacionamento íntimo valorizado.
Contudo, de uma manifestação normal,
algumas pessoas ciumentas permanecem
ambivalentes entre o amor e a desconfiança
das parcerias afetivo-sexuais que
constituem, tomando-se perturbadas, com
labilidade afetiva e obcecadas por
triangulações, muitas vezes imaginárias.
Nesse momento instala-se o fenômeno do
ciúme patológico, foco deste artigo, que
freqüentemente está relacionado aos casos
de violência contra os parceiros.

Queiti Batista Violência Física Perpetrada Psicologia: 2016 A violência entre namorados adolescentes
Moreira por Ciúmes no Namoro de Teoria e vem ganhando visibilidade no âmbito
Oliveira; Simone Adolescentes Pesquisa científico, configurando-se como
Gonçalves de problema de saúde pública. Este estudo
Assis; Kathie quanti-qualitativo investiga como questões
Njaine; Thiago de gênero permeiam a violência física
de Oliveira Pires perpetrada no namoro entre adolescentes.
Realizou-se inquérito epidemiológico com
3.205 adolescentes (idades de 15 a 19
anos), estudantes do 2º ano do Ensino
Médio de escolas públicas e privadas de 10
capitais brasileiras. Entrevistas grupais e
individuais foram também realizadas com
519 participantes. Humilhações e
agressões entre namorados foram
consideradas graves, entretanto,
infidelidade e ciúme destacaram-se como
disruptores de conflitos e brigas, refletindo
normas de gênero tradicionais
legitimadoras da violência. Destaca-se a
necessidade de ações voltadas à
desconstrução de estereótipos de gênero e
à problematização da banalização da
violência entre adolescentes.

Deimersom Frequentadoras de academias Psicologia e 2018 Esta pesquisa, de natureza qualitativa,


Pereira Frazão, de ginástica para mulheres e Sociedade objetiva desvelar algumas das complexas
Neil Franco e tradição familiar: estruturas de tensão presentes na trajetória
Carlos Alberto subordinação ou de mulheres nos espaços sociais em que
de Andrade emancipação? processos de subordinação e de
Coelho Filho emancipação podem emergir. Vinte e três
frequentadoras de três academias de
ginástica exclusivas para mulheres foram
entrevistadas. Para tratamento dos dados
coletados foi utilizada a análise de
conteúdo. Concluímos que: (a) na
correlação de forças que levaram algumas
das entrevistadas a optarem pela academia
destinada à mulher, os ciúmes de maridos
e namorados tornaram-se representativos;
(b) as mulheres que compõem nossa
amostra demonstram investir na vida
profissional e na construção de uma
identidade social associada ao trabalho.
Decerto, as identidades profissional,
domiciliar e materna reivindicam espaço
no corpo das mulheres entrevistadas e nos
Estudos de Sexualidade 3

levam a perguntar: lidamos com um


movimento que mostra uma mulher não
assujeitada à moral patriarcal que flerta,
em certo sentido, com valores da tradição
familiar?

Ana Beatriz A violência na relação de Revista da 2019 Objetivo: Analisar as percepções de


Campeiz; Diene intimidade sob a ótica de Escola de adolescentes sobre a violência nas relações
Monique Carlos; adolescentes: perspectivas do Enfermagem da de intimidade pela perspectiva do
Ana Flávia Paradigma da Complexidade USP Paradigma da Complexidade. Método:
Campeiz; Jorge Abordagem qualitativa, configurando-se
Luiz da Silva; como pesquisa social estratégica. Os 93
Luiza Araújo participantes do estudo foram adolescentes
Freitas; Maria entre 15 e 18 anos, frequentadores do
das Graças ensino médio de duas escolas públicas de
Carvalho um município do interior do estado de São
Ferriani Paulo, Brasil. A coleta de dados foi
realizada por meio do grupo focal e, como
complementação, a entrevista
semiestruturada. A análise dos dados foi
fundamentada nos princípios dialógico,
recurso organizacional e hologramático do
Paradigma Complexo. Resultados:
Participaram do estudo 39 adolescentes (14
do sexo masculino e 25 do sexo feminino).
Por meio das categorias emergentes,
percebeu-se que a violência na intimidade
está atravessada pela dialógica afeto-
ciúmes/controle, pela naturalização de atos
violentos que permeia questões de gênero,
culturais e sociais e pela tecnologia como
preponderante para a violência de
intimidade entre adolescentes, denotando
novas formas de controle e coerção.
Conclusão: O estudo traz aspectos
presentes na violência na intimidade entre
adolescentes, mostrando-os de forma
articulada e interdependente. Tais aspectos
se configuram em relevante contribuição
para as ações de profissionais de saúde.

Monica Caicedo- Femicídios na cidade de Cadernos de 2019 O femicídio é a morte intencional de uma
Roa; Ricardo Campinas, São Paulo, Brasil Saúde Pública mulher pelo fato de ser mulher. O termo
Carlos Cordeiro; permite diferenciar os crimes por violência
Ana Cláudia de gênero dos homicídios de mulheres em
Alves Martins; outras circunstâncias. O objetivo deste
Pedro Henrique trabalho é caracterizar os femicídios,
de Faria também chamados feminicídios, que
ocorreram em 2015 em Campinas, São
Paulo, Brasil. Foram tomadas como fonte
de informação as declarações de óbitos de
residentes da cidade cuja causa básica do
óbito foi classificada como causa externa.
Entrevistas semiestruturadas foram
realizadas aplicando-se o método de
autópsia verbal, e, classificados os casos de
femicídio como: íntimo, não íntimo e por
conexão. No ano de 2015, foram recebidas
582 declarações de óbitos por causas
externas, 185 corresponderam a
homicídios, sendo 26 (14,1%) femininos.
Dentre esses, 19 foram classificados como
femicídio. A média de idade das vítimas foi
de 31,5 anos (desvio padrão 7,18 anos). A
maioria correspondeu a mulheres brancas
(47,4%), com Ensino Fundamental
(52,6%), solteiras (63,2%), com filhos
(84,2%). As mortes, em geral, ocorreram
por mecanismos altamente violentos, na
forma de agressão física e sexual. Os
assassinatos foram perpetrados no
domicílio da vítima, com arma branca ou
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

de fogo, com expressiva violência,


motivados, principalmente, pelo desejo de
separação da vítima, ciúmes e
desentendimento com o agressor. Em
Campinas, o coeficiente de mortalidade
por femicídio foi de 3,2 por 100 mil
mulheres em 2015, o que correspondeu à
morte de uma em cada 31.250 mulheres no
ano. Os resultados da pesquisa permitem
ver que o femicídio na cidade é a principal
categoria entre os homicídios femininos.
94 As consequências desse tipo de violência
são consideráveis em termos de violação
de direitos humanos. Este estudo auxilia a
compreensão das motivações e
consequências da violência contra a
mulher e contribui para uma melhor
visibilidade sobre o tema.

Zélia Maria de Violência intrafamiliar: crimes Psicologia em 2009 Esta pesquisa pretende analisar a relação
Melo; contra a mulher na área Estudo entre a organização familiar e a
Diogivânia metropolitana do Recife criminalidade contra a mulher, perpetrada
Maria da Silva; por companheiro ou membro de sua
Marcus Túlio família. Utilizamos a análise quantitativa
Caldas descritiva para o exame dos documentos e
a qualitativa (análise do discurso) para as
entrevistas semidirigidas realizadas com as
vítimas e seus familiares. Os documentos
foram provenientes dos processos judiciais
disponíveis nos Fóruns de Jaboatão dos
Guararapes, Olinda e Recife no biênio
2004/2006. Os resultados revelaram
aspectos relevantes à prática da violência,
tais como: ingestão de bebidas alcoólicas,
ciúmes, rompimento da relação
matrimonial por iniciativa da esposa /
companheira e rivalidade de gênero.

Gilvânia Patrícia Situações que precipitam Texto & 2014 A pesquisa objetivou analisar as situações
do Nascimento conflitos na relação conjugal: o Contexto que precipitam e/ou intensificam conflitos
Paixão; discurso de mulheres Enfermagem na relação conjugal. Foram entrevistadas
Nadirlene 19 mulheres em vivência de violência
Pereira Gomes; conjugal. Utilizou-se o Discurso do Sujeito
Normélia Maria Coletivo como método de organização,
Freire Diniz; que possibilitou encontrar as ideias
Telmara centrais e gênero como referencial
Menezes Couto; analítico. Síntese: relação de controle e
Lucila Amaral dominação do homem para com a mulher,
Carneiro Vianna; os ciúmes, a infidelidade do companheiro,
Sheila Milena a paternidade e maternidade sem
Pessoa dos planejamento e o uso de álcool e drogas.
Santos Tais situações guardam relação com a
construção da violência conjugal e/ou
permanência da mulher na relação, sendo
essenciais as ações de prevenção, a fim de
evitar tal fenômeno, bem como suas
repercussões para a saúde da mulher e da
família. A atuação do profissional
enfermeiro é indispensável nos programas
de prevenção de agravos, promoção e
assistência à saúde das mulheres e famílias,
por meio dos equipamentos de saúde e
sociais existentes na comunidade.

Bruno Ricardo Revista 2015 O objetivo deste estudo foi analisar o


Trindade O ciúme romântico entre Psicologia em ciúme romântico experienciado entre
Conceição; gêneros: uma visão Foco gêneros, masculino e feminino. Foram
Cintia Ribeiro sociopsicológica utilizados como sujeitos do estudo 300
Martins; Renata estudantes universitários, sendo 100
Bastos Freitas estudantes da área de exatas, 100
estudantes da área de humanas e 100 da
área de saúde. Foi realizada uma pesquisa
Estudos de Sexualidade 3

de campo, utilizando como instrumentos


um questionário sociodemográfico e o
Inventário de Ciúme Romântico. Para
análise dos dados, utilizou-se o SPSS
(programa de análises estatísticas). Ainda
que as mulheres tenham apresentado
maiores índices de ciúme romântico, as
análises dos resultados apontam que o
sentimento de posse que o homem tem em
relação à mulher, colaborado por uma
sociedade ainda patriarcal em que é dado
ao homem e vedado à mulher o direito de 95
ser infiel, o coloca como indivíduo com
características correlacionadas a
comportamentos violentos comparados às
mulheres. Com isso, esta pesquisa vem
contribuir com uma lacuna existente no
que se refere aos estudos voltados para o
ciúme romântico, enfatizando a
importância de novas pesquisas e atenção
aos indivíduos com tal demanda, sobretudo
em sua distinção entre gêneros.

5. DISCUSSÃO
Por mais que o ciúme seja um sentimento que precede a modernidade, tendo sido tema
central de obras históricas como Otelo e Dom Casmurro, Baroncelli (2011) faz pontuações
relevantes sobre o modo em que as relações contemporâneas acontecem e o ciúme. Na
contemporaneidade, as relações amorosas refletem valores de uma lógica consumista de
mercado, onde descartar uma relação “em busca de outra que prometa mais satisfação, prazer
e menos esforço é uma possibilidade cada vez mais presente na experiência dos casais”
(BARONCELLI, 2011, p. 167).
A autora pontua que, atualmente, o ciúme aparece em um cenário onde a eternidade do
amor já está contestada, e a continuidade da relação é apenas um desfecho dentre diversos
outros possíveis. Compreende que o ciúme pode se manifestar como forma de controle em
resposta a tais incertezas postas pelo cenário contemporâneo atual.
Outros elementos do ciúme que convergem com a lógica de consumo contemporânea
também se fazem presentes. Por exemplo, a possessividade, que nada mais é do que reduzir o
parceiro a um objeto para posse, controle e uso exclusivo (BARONCELLI, 2011). O culto à
imagem, de forma a sobrevalorizar a estética, também é outro aspecto que muitas vezes
acompanha o ciúme. Baroncelli explicita esta relação abaixo:
Tais virtudes da beleza em padrões massivos podem ser passivamente captadas e reproduzidas pelo
ciumento que, na busca insaciável, e provavelmente inatingível, para atingir tais padrões, acaba
mitigando a sua já frágil autoestima. Nesse caso, a competição - valor mercadológico que dá contorno
às experiências sociais em nossa época - passa, não raro, a ser um princípio reproduzido no
comportamento de ciúme, quando o indivíduo, numa busca minuciosa e comparativa de beleza, tenta
superar nesse aspecto a si mesmo e aos outros (BENDASSOLLI, 2011, p. 169).

Em suma, existem diversos traços de personalidades que podem ser associados aos
ciúmes, como medo do abandono, dependência emocional e insegurança. Tais características
ocorrem em ambos os gêneros e não obrigatoriamente fazem com que o ciúme escalone ou se
torne prejudicial.
Portanto, atribuir os ciúmes apenas a traços individuais não explicita outros aspectos
importantes da aparição e do escalonamento deste sentimento. Outro aspecto relevante do
ciúme romântico é que a infidelidade, ou até a mera possibilidade de que haja uma traição, é
uma das causas mais comuns de seu aparecimento. Sobre isso, Baroncelli (2010) aponta:
Em vários períodos da história a infidelidade do homem deveria ser aceita ou ao menos tolerada pela
mulher, ao passo que uma traição feminina podia levar, em alguns contextos, à perseguição, abandono
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
ou até à morte. Com isso, a manifestação de ciúme, sua aceitação social e a própria experiência de ciúmes
no interior das relações amorosas entre o homem e a mulher foi, ao longo do tempo, necessariamente
marcada pelas especificidades de cada contorno sociocultural no que diz respeito à fidelidade. (...)
Tradicionalmente, a individualidade feminina era tomada como valor determinado, devendo manifestar
sua essência como mãe e esposa. Somente a partir da ruptura da dicotomia entre público e privado,
materializada na participação das mulheres no mundo do trabalho, é que tais normas tradicionais sobre
os papéis sexuais no casamento e na família são, finalmente, questionadas. (BARONCELLI, 2011. pp.
163 e 164)

96 No que diz respeito à análise de gênero sobre o ciúmes, Trindade Conceição (2015),
em pesquisa qualitativa com 300 universitários, obteve resultados que apontaram que as
mulheres apresentaram índices maiores de ciúme romântico e de insegurança. Este, para o
autor, “descreve a ocorrência de reações negativas frente ao contato do parceiro ou parceira
com possíveis rivais ou a impossibilidade de manter algum tipo de contato ou comunicação
com o parceiro ou parceira” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 62). Em contrapartida,
“(...) as características e emoções mais comumente associadas ao ciúme no sexo masculino são: poder
de posse e desejo de domínio sobre o ser amado que estão intimamente atrelados a comportamentos
investigativos e de violência ao tentar ter o controle da parceira” (CONCEIÇÃO, 2015, p. 65).

Este estudo relaciona à vulnerabilidade social das mulheres a níveis mais altos de
insegurança e medo do abandono do parceiro. Entretanto, elas também apresentaram mais
comportamentos não-agressivos em relação ao ciúme do que os homens entrevistados
(CONCEIÇÃO, 2015, p. 63).
O autor também completa que, por vezes, ao não obter o controle sob a parceira, os
homens justificam suas reações violentas pelo sentimento de desconfiança atrelado ao ciúme.
Em outra pesquisa, esta sobre mulheres adultas e financeiramente independentes que
são frequentadoras de academias de ginástica exclusiva para mulheres, uma das conclusões
tiradas foi que: “na correlação de forças que levaram algumas das entrevistadas a optarem pela
academia destinada à mulher, os ciúmes de maridos e namorados tornaram-se representativos”
(FRAZÃO et al., 2018, p. 1). As participantes desta pesquisa descreveram que seus parceiros
amorosos tinham ciúmes da frequência delas em academias mistas, para homens e mulheres.
O pretexto para o ciúme era que outros homens iriam “olhar e mexer” com suas
companheiras. Assim surge a contradição: uma academia exclusiva para mulheres deveria ser
um lugar que proporciona certa emancipação, mas se suas frequentadoras estão comparecendo
devido ao ciúme do parceiro, tal emancipação parece prejudicada, se não inexistente.
Algumas das entrevistadas desta pesquisa descreveram a academia feminina como uma
“salvação” para o relacionamento; outra mulher apontou que seu namorado não demonstrava
comportamentos ciumentos, mas se mostrou feliz e aliviado quando ela passou a frequentar
uma academia só para mulheres. Participantes da pesquisa também admitiram que, de fato, os
homens atrapalhavam seus treinos: ou por serem tidos como menos higiênicos, ou por
realmente olharem e assediarem as frequentadoras de academia. Sobre isso, o autor sumariza:

“A partir da análise e interpretação dos dados coletados, é possível constatar, de um lado, processos de
subordinação das mulheres à voz (a autoridade) de maridos e namorados; de outro, indícios de
emancipação das mulheres, ou, dito em outras palavras, certo vetor de autonomia no exercício dos seus
papéis sociais” (FRAZÃO et al., 2018, pp. 8-9).

Dois estudos com adolescentes foram selecionados nos resultados. Estes trabalham
também com as especificidades desta faixa etária, que estão em um momento de aprendizado
das relações interpessoais, principalmente as românticas.
Oliveira, Assis, Njaine e Pires (2016), em estudo quanti-qualitativo com adolescentes,
atestaram que o ciúme é valorizado e tido como um comportamento de cuidado e amor nas
Estudos de Sexualidade 3

relações destes jovens. Esta associação é preocupante por ser naturalizada na cultura ocidental
e, portanto, permear os relacionamentos adolescentes. Além do mais, neste estudo, o ciúme
também foi considerado um fator de legitimação para agressão física e outras violências.
Outra pontuação importante dos autores diz respeito à violência entre namorados por
si só como uma manifestação da desigualdade de gênero:
“Entende-se que a violência entre namorados é expressão da violência de gênero, pois se caracteriza por
atos que geram danos físicos ou emocionais, perpetrados com abuso de poder de uma pessoa contra a
outra, que acontecem em relações desiguais e assimétricas, produzidas por normas de gênero que são
mecanismos por meio do qual são naturalizadas as noções de masculino e de feminino” (BUTLER, 2010 97
apud OLIVEIRA et al., p. 2, 2016).
Os resultados desta pesquisa com adolescentes apontaram para um destaque do “(...)
ciúme e a infidelidade como fatores que legitimam e justificam as agressões físicas entre
namorados, tanto por parte dos meninos, quanto por parte das meninas” (OLIVEIRA et al., p.
4, 2016).
Em concomitância a esses resultados, outro estudo com adolescentes também
identificou a relação do ciúme-controle com o afeto-cuidado nas relações de intimidade destes.
Os resultados apontaram a dialógica afeto-ciúmes/controle presentes na relação; a recursão
organizacional autor-vítima da violência7; a naturalização de atos violentos que atravessa questões de
gênero, culturais e sociais; e a tecnologia como preponderante para a VRI (Violência nas Relações de
Intimidade) entre adolescentes, denotando novas formas de controle e coerção (CAMPEIZ et al., p. 7,
2020).
Este estudo também trouxe dados importantes sobre a violência velada nas relações
adolescentes: a violência psicológica, como o controle do parceiro, vem disfarçada de cuidado
ou amor; a coerção sexual (forçar beijos da namorada) foi naturalizada e o beijo, uma obrigação
do casal. A pesquisa também aponta para a bidirecionalidade da violência, onde
“manifestaram-se agressões físicas, verbais e psicológicas” (CAMPEIZ et al, p.. 5, 2020). De
acordo com os autores, o tempo da relação também foi um fator preponderante para tal
bidirecionalidade.
Em muitos relatos, somente após algum tempo de relacionamento um dos sujeitos do relacionamento
utilizou-se da agressão física e psicológica como forma de revidar a violência sofrida, como autodefesa
ou como uma alternativa para finalizar a violência por ele(a) vivida (CAMPEIZ et al., p. 5, 2020).

Centeville e Almeida (2007), em revisão bibliográfica que visava explorar a já referida


relação entre ciúme e violência, faz apontamentos relevantes que contextualizam a violência
contra mulher desencadeada por ciúmes no cenário brasileiro.
Em casos de infidelidade feminina ou simplesmente de ciúme masculino, a violência é justificada pelo
fato de a mulher ter ofendido a reputação masculina, seja na realidade ou na fantasia (do homem). A
agressão é considerada uma maneira de restaurar parte da reputação masculina e existe uma expectativa
de que as mulheres sejam leais quando a violência está relacionada ao ciúme, aceitando-a
(CENTEVILLE e ALMEIDA, p. 79, 2007).

Os autores também pontuam a relação que os próprios homens fazem entre fidelidade
sexual da parceira e virilidade, chamando atenção para que, caso esta associação fosse
desconstruída, provavelmente teríamos homens mais livres e menos ciumentos, já que neste
caso, suas parceiras poderiam até ser infiéis, mas sem arruinar a honra ou reputação do seu
parceiro traído.
Esta revisão também aponta que as relações marcadas por ciúme são, por si só,
violentas, e que tal violência se maximiza quando o ciúme é patológico, já que neste “várias

7
“O princípio recurso organizacional viabiliza a interconexão que dá características ao fenômeno, nega a
relação linear de causa/ efeito e revela o indivíduo como produto e produtor dos seus processos interacionais”
(MORIN apud CAMPEIZ et al., 2020, p. 2).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

emoções são experimentadas, tais como a ansiedade, depressão, raiva, vergonha, insegurança,
humilhação, perplexidade, culpa, aumento do desejo sexual e desejo de vingança”
(CENTEVILLE e ALMEIDA, p. 80, 2007).
De fato, a relação do ciúme com a violência intrafamiliar e conjugal já foi explorada
em outras pesquisas. Um estudo de 2014, feito com mulheres em situação de violência
conjugal, “revelou que a relação de controle e dominação do homem para com a mulher, o
ciúmes, a infidelidade do companheiro, a paternidade e maternidade sem planejamento e o uso
de álcool e drogas, consistem em situações que precipitam e/ou intensificam conflitos na
98
relação conjugal, a partir do discurso das mulheres” (PAIXÃO et al., 2014, p. 1047). A partir
do discurso do sujeito coletivo, as autoras localizaram o ciúme com um dos fatores que
precipita ou intensifica atritos entre o casal, e desencadeia violência (PAIXÃO et al., 2014, p.
1044).
Seguindo adiante, uma pesquisa sobre femicídios na cidade de Campinas também
rastreou o ciúme como uma das principais motivações dos femicídio (também denominado
feminicídio). O feminicídio é definido como a “morte intencional de uma mulher pelo fato de
ser mulher” (CAICEDO-ROA et al., p. 1, 2015). Os achados desta pesquisa reportaram que as
principais motivações dos femicídios foram o desejo de separação das mulheres de seus
companheiros, os ciúmes e os desentendimentos com o companheiro. Em corroboração do que
já foi apontado pela literatura inclusa neste capítulo, os autores também citaram, além do ciúme
extremado, a violência, as brigas, o uso de álcool ou outras drogas, a infidelidade e a
possessividade como as principais causas das tentativas de assassinato de mulheres
(CAICEDO-ROA et al., p. 7, 2015).
É interessante perceber como os ciúmes, na verdade, se articulam com alguns dos
outros fatores apontados como causas para a tentativa ou femicídio, como a possessividade e
a infidelidade: a infidelidade é uma das maiores causas de ciúme romântico, mesmo que não
seja uma infidelidade real; e a possessividade é um dos aspectos do ciúme, que faz com que o
parceiro amoroso seja visto como um objeto para uso e controle exclusivo, conforme já
mencionado anteriormente.
Por fim, um último estudo qualiquantitativo sobre violência intrafamiliar pesquisou
crimes contra a mulher na área metropolitana do município de Recife. Neste, também, o ciúme
foi apontado como uma das principais motivações para a prática do delito contra a mulher.
Os autores pontuam que a violência se dá após muitos episódios conflituosos,
normalmente motivados pelos mesmos temas, como ciúmes e manutenção do ambiente
doméstico. Outro aspecto relevante da pesquisa inclui os papéis de gênero tradicionais, que
designam aos homens poder e força, enquanto às mulheres, fragilidade e submissão. “(...) Os
papéis sociais impostos a homens e mulheres reforçados pela cultura patriarcal, certamente
estão na raiz desses comportamentos violentos” (MELO et al., p. 119, 2009).

6. CONCLUSSÃO
O ciúme é um sentimento natural aos seres humanos, e pode ser sentido em qualquer
faixa etária. O ciúme romântico, entretanto, parece ter seu início na adolescência, juntamente
aos aprendizados sobre relações interpessoais amorosas e ao início da vida romântica.
Tal sentimento possui profunda conexão com a violência, que foi retratada na maioria
dos artigos selecionados. O ciúme é costumeiramente relatado como motivação para violência
doméstica, crimes contra a mulher e outras formas de violências relacionais. O que pode ser
observado sobre as principais diferenças entre homens e mulheres no que diz respeito ao ciúme
é que as mulheres possuem níveis maiores de ciúme romântico, enquanto o ciúme masculino
tende a ser mais sexual. Também as mulheres apresentam menos comportamentos agressivos
relacionados ao ciúme do que os homens. Isso se deve, certamente, à diferença cultural entre
Estudos de Sexualidade 3

gêneros, que dita papéis e comportamentos específicos para, primariamente, homens e


mulheres.
Foi observado que algumas pesquisas trazem como principal motivo de agressão ou
violência o rompimento da relação por parte da mulher. Esta razão apresenta uma estreita
conexão com os ciúmes, que se relacionam com os sentimentos de posse: a impossibilidade de
enxergar o parceiro solteiro, ou até seguindo a vida separadamente, caracteriza um
comportamento possessivo.
É de suma importância compreender que o sentimento ciúme, por si, não é
necessariamente negativo nem causador de comportamentos violentos, mas sim a atitude 99

individual frente aos ciúmes sentido, que pode acabar sendo violenta ou agressiva conforme
corroborado pelo patriarcado social.
O ciúme, como corroborado por Centeville e Almeida (2007), ao ser sentido, pode abrir
portas para uma auto-reflexão ou auto-análise que busque explorar as origens deste sentimento,
que normalmente estão ligadas à inseguranças, como medo de ser abandonado pelo parceiro,
ou ideias controladoras sobre o outro, que passa a ser visto como um objeto que não deve ser
partilhado.

7. REFERÊNCIAS
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Estudos de Sexualidade 3

A SEXUALIDADE DA MULHER IDOSA: UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL,


CULTURAL, BIOLÓGICA E SUBJETIVA

Bruna Santos Vargas

101

RESUMO
A sociedade tem anulado a velhice em relação a sua sexualidade. Entendemos a velhice como
uma fase praticamente assexuada e, reduzida apenas as mudanças físicas e incapacitantes. A
sexualidade na velhice é uma construção biopsicossocial muito importante e, ao voltarmos os
nossos olhares especialmente para a mulher, notamos que a sexualidade nesta fase é ainda mais
cercada por inseguranças, possivelmente alimentadas por desinformação e mitos. Portanto, o
objetivo deste estudo é discutir, entender e investigar as diversas influências na construção da
sexualidade da mulher na velhice através de uma revisão narrativa de literatura. Notou-se que
a falta de informação, até mesmo por profissionais de saúde, a visão reducionista sobre a
menopausa e o climatério, a vivencia da sexualidade durante a vida da mulher, seu cuidado
com a saúde e, talvez principalmente, a vida direcionada através do patriarcado, no qual a
mulher é limitada à procriação e a servidão como esposa e mãe, foram os principais pontos
citados como influenciadores diretos na construção da sexualidade da mulher na velhice. Logo,
o acolhimento por sua rede de apoio, um melhor acompanhamento médico, o repasse de
informações corretas e completas e a abertura para que a mulher possa expressar e entender
sua sexualidade, podem ser a chave para que a sexualidade na velhice seja saudável e plena.
Palavras-chave: sexualidade da mulher idosa, sexualidade e menopausa, sexualidade e
climatério.
ABSTRACT
Society has nullified old age in relation to its sexuality. We understand old age as a practically
asexual phase and reduced to only physical and disabling changes. Sexuality in old age is a
very important biopsychosocial construction and, when we turn our eyes, especially to women,
we notice that sexuality in this phase is even more surrounded by insecurities, possibly fueled
by misinformation and myths. Therefore, the aim of this study is to discuss, understand and
investigate the various influences on the construction of women's sexuality in old age through
a narrative literature review. It was noted that the lack of information, even by health
professionals, the reductionist view on menopause and climacteric, the experience of sexuality
during the woman's life, her health care and, perhaps mainly, the life directed through
patriarchy, in which women are limited to procreation and servitude as wife and mother, were
the main points cited as direct influencers in the construction of women's sexuality in old age.
Therefore, the reception by its support network, better medical monitoring, the transmission of
correct and complete information and the openness for women to express and understand their
sexuality, may be the key for sexuality in old age to be healthy and full.
Keywords: sexuality of elderly women, sexuality and menopause, sexuality and climacteric.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho teve início em uma conversa com minha avó sobre o seu segundo
casamento. Ela foi casada durante anos com o primeiro marido, com o qual teve quatro filhos
homens e com quem viveu até a morte dele. Sua vida sexual, até então, foi resumida em procriar
e proporcionar prazer ao marido. Apaixonou-se alguns anos depois da viuvez por “um negão
cheio de fogo”, como ela dizia. Em uma conversa, meses depois do casamento, perguntei como
era sua vida sexual com o atual marido. Ela confessou sentir muito desconforto, incômodo e
até dor, mesmo querendo muito ter uma vida sexual ativa. Apresentei-lhe um lubrificante e
102
orientei-a sobre como deveria usá-lo. Resultado: ela me encomendou mais um, porque o
primeiro havia acabado muito rapidamente. Um simples lubrificante, item destacado como um
dos mais importantes na vida da mulher na velhice por Santos et al., (2019), mudou a vida
sexual da minha avó.
A velhice ainda é cercada de tabus, mitos e preconceitos. É muito comum associarmos
a uma fase praticamente assexuada. Como se o corpo da mulher idosa fosse um lugar sagrado
a ponto de ser proibido, intocado, passivo e dormente (OLIVEIRA, BARBOSA E ALMEIDA,
2016). Convivemos com a imagem da idosa como uma vovó, pura, inocente, fofa e letárgica e
ignoramos a sexualidade existente e gritante desta fase (CAROLINO, 2011).
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma pessoa é considerada idosa
quando tem 60 anos de idade ou mais. A população idosa no Brasil representava, em 2019,
18% do total de habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), ou seja, mais de 28 milhões de pessoas. Segundo o índice de envelhecimento
apresentado pelo IBGE, a relação entre a porcentagem de idosos e jovens deve aumentar de
43,19% em 2018 para 173,47% em 2060. A estimativa de vida no Brasil em 2018 era de 76,3
anos, sendo 72,8 anos para homens e 79,9 para mulheres (PERRISÉ & MARLI, 2019). Portanto,
podemos concluir que somos uma população envelhescente.
Contudo, é mais importante viver muito ou viver melhor? A falta de informação, ligada
a uma vida sexualmente reprimida, pode ainda estar levando inúmeras mulheres a vivenciar
sua sexualidade na velhice de forma, no mínimo, limitada. Para viver melhor é importante
olhar para os diversos aspectos que constituem uma vida saudável e satisfatória. Uma dessas
partes é a sexualidade. Faz-se necessária, então, uma atenção à sexualidade na vida da mulher
idosa e todos os fatores que a influenciam.
As pesquisas, em sua grande maioria, são feitas sob perspectivas exclusivamente
biológicas, apenas abrangendo aspectos físicos, hormonais, incapacitantes e limitantes das
idosas que retratam a mulher na velhice como um corpo que não mais produz, infértil e que
não agrega valor e benefícios para a sociedade em que vive (SOUSA, 2015).
Diversos fatores devem ser observados para que possamos ter uma visão completa
sobre a velhice, em especial no que se refere à sexualidade. Ao contemplar somente os aspectos
biológicos, como a menopausa, por exemplo, podemos correr o risco de limitar nossa visão e
generalizar uma vivência que é singular e diferente para cada mulher. É preciso entender que
tipo de informações a mulher teve durante a sua vida, qual é a sua rede de apoio e que
concepções a respeito de sua sexualidade ela desenvolveu até então.
A sexualidade não se resume ao ato sexual, mas envolve também como nos
expressamos, nos relacionamos, é o processo de nos tornar quem somos, como lidamos com o
nosso corpo, ou seja, nossa maneira de ser e estar no mundo. Portanto, a sexualidade está
diretamente ligada ao bem-estar e saúde de qualquer sujeito, inclusive para a mulher na velhice
(SOUZA, 2015).
Até mesmo nas consultas médicas, rotineiras, mais comuns nessa fase, não temos
atenção à vida sexual das idosas. Não há uma preocupação sequer médica de investigação a
Estudos de Sexualidade 3

respeito da vida sexual da mulher na velhice (UCHÔA, 2016). Se até nesse cenário de cuidado
físico as idosas não encontram espaço para tratar sua sexualidade, onde então elas encontrarão?
O corpo da mulher por muito tempo foi simbolizado como reprodutor, utilizado para
exercer o papel de mãe e objeto de prazer e servidão para o homem (SANTOS et al., 2019).
Com a chegada da menopausa e, então, o climatério, ela precisa lidar com todas as mudanças
em seu corpo e mente, todos os simbolismos antes colocados sobre o seu corpo abruptamente
alterados. Agora ela se vê perante um cenário onde seu corpo apresenta diferentes necessidades
físicas e psicológicas. Englobar a sexualidade nesta fase é de extrema importância, uma vez
que essa mulher precisará resignificar grande parte do que e como seu corpo se expressa e do 103

que ele demanda. Entender e trabalhar a sexualidade nesta fase é entender e trabalhar o próprio
sujeito. Oliveira, Neves e Silva (2018) citam a importância dessa ressignificação da
sexualidade na vida da mulher idosa, uma vez que ela é regida por tão múltiplas influências.
A falta de informação, a visão da sociedade que limita e restringe os corpos femininos
na velhice, as mudanças físicas, hormonais e sociais, são alguns dos exemplos de mitos e tabus
que cercam as mulheres na velhice. Tais fatores colaboram para que as idosas criem certa
resistência em abraçar seus desejos, suas vontades, seu próprio corpo que fala.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Investigar a construção da sexualidade da mulher na velhice a partir das influências
biopsicossociais por ela vivenciados.
Objetivos específicos
- Entender de que modo a os mitos e tabus construídos socialmente contribuem na
vivência da velhice para a mulher
- Elencar possíveis mudanças necessárias para que a construção da sexualidade para a
mulher na velhice possa ser mais saudável e satisfatória.

3. METODOLOGIA
O trabalho foi desenvolvido seguindo a metodologia de revisão narrativa de literatura.
A revisão de literatura tem como objetivo fundamentar teoricamente questões levantadas por
uma ou mais questões através de outros trabalhos realizados no similar campo de estudo.
(ROTHER, 2007). A revisão narrativa fundamenta a pesquisa por meio de literatura encontrada
em livros, artigos e demais publicações pertinentes e teóricas para interpretação e análise crítica
do tema. Esse tipo de revisão permite uma análise qualitativa para uma questão ampla
(ROTHER, 2007).
Os artigos científicos foram pesquisados no Google Acadêmico, com as palavras-chave
sexologia do idoso, sexologia na terceira idade, sexologia na velhice, sexologia e menopausa
e sexologia e climatério, sexualidade do idoso, sexualidade na terceira idade, sexualidade na
velhice, sexualidade e menopausa e sexualidade e climatério.
Foram utilizados os seguintes critérios de aceitação dos artigos científicos: publicados
entre 2013 e 2018, em língua portuguesa, sem repetição de ideias. Foram encontrados no total
53 artigos. Após a leitura dos resumos e introduções foram selecionados, dentre este total, 31
artigos focados nos objetivos estipulados para este estudo.

4. DESENVOLVIMENTO
Para Souza (2015), a velhice é um processo natural biológico, social, cultural e
subjetivo. É um período cercado de tabus e mitos, mesmo sendo algo natural e previsível.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Moraes, Moraes & Lima (2010) consideram que a velhice é o auge do sentido ético, sendo o
estágio de vida em que as pessoas estão mais propensas a superar preconceitos e auxiliar na
evolução das demais, à sua volta, bem como no grupo no qual está inserida. Logo, parte da
vivência da velhice é dada tão logo a interação do indivíduo idoso com o meio em que vive.
Carolino (2011) também entende a velhice como etapa normal, um destino biológico. A autora
concorda com Souza (2015) e observa a velhice como categoria social anulada e rejeitada pela
sociedade que vê a idosa como um ser que não produz nem reproduz, não oferecendo
benefícios para a comunidade.
104
Quando o meio vê a mulher idosa como alguém que se aposentou da vida, num período
de menos valia, essa visão influencia diretamente em como ela vivenciará a sua velhice.
Mesmo havendo o desejo de partir em direção a um amor, ao outro, as idosas podem decidir
reprimir tais sentimentos, pois temem ser estigmatizadas, repreendidas e malvistas (ALMEIDA
& LOURENÇO, 2007).
A sociedade tende a omitir a fala sobre a sexualidade na terceira idade, fazendo com
que os corpos na velhice se silenciem. As idosas passam a aceitar essa realidade e
gradativamente começam a acreditar que não são capazes e dignas de amar, desejar e sentir
como quando eram jovens. Quando limitamos a sexualidade à juventude, tendemos a mortificar
essa vivência na velhice (CAROLINO, 2011; OLIVEIRA, BARBOSA E ALMEIDA, 2016).
Além destas influências que a idosa sofre provenientes da sociedade em que vive,
Almeida e Lourenço (2007) também lembram que é necessária uma atenção à educação severa
a que as idosas tiveram acesso, em que a sexualidade era reduzida ao sexo e este reduzido ao
casal para a procriação e, quando muito, para o prazer do homem, do marido. O exercício da
sexualidade era sujo e pecaminoso se fosse relacionado exclusivamente às mulheres. A
educação à qual elas tiveram acesso restringia o diálogo a respeito de seus corpos, era rígida e
tradicional, carregada de preconceito de gênero (CREMA, TILIO E CAMPOS, 2017).
Pinto Neto, Valadares e Costa-Paiva (2013) destacam dois principais aspectos
percebidos nas mulheres que tiveram essa vivência repressiva, sendo um deles o fato de
perceberem o sexo como obrigação e o sentimento de esgotamento da sexualidade. Crema,
Tilio e Campos (2017) também concordam com os autores quando evidenciam a importância
de entendermos a construção do gênero feminino durante a história da nossa sociedade, sendo
essa construção talvez a principal influência sobre o modo como as mulheres vivenciam sua
sexualidade, principalmente na velhice. Os autores destacam a importância de que as idosas de
hoje, em sua maioria, viveram em um contexto tradicional onde homens e mulheres sempre
tiveram papéis definidos e, um deles no caso da mulher, era o da procriação, da maternidade e
de dar prazer ao seu marido (SANTOS et al., 2014).
Oliveira, Neves e Silva (2018) concordam com os autores acima. Por meio das falas
das mulheres entrevistadas em sua pesquisa, os autores apontaram como o patriarcado
outorgou ao homem o direito sobre o corpo da mulher, sendo que ela era vista como inferior,
frágil, dependente, logo submissa e subordinada ao homem. Este cenário patriarcal é
vivenciado por mulheres e homens ainda hoje, mesmo que em menor escala. Mulheres que
cresceram ainda dentro desse sistema limitante tiveram suas vidas cerceadas por disciplinas de
repressão sexual e social, controle sobre sua vida pessoal, profissional e educacional e
principalmente sobre os seus corpos (DEBERT & BRIGEIRO, 2012). “Educava-se, nesse
sentido, para não permitir que a sexualidade feminina viesse à tona” (OLIVEIRA, NEVES E
SILVA, 2018, p. 6).
Oliveira, Neves e Silva (2018) lembram que, mulheres que tenham tido uma vida sexual
infeliz, além de um silenciamento de sua sexualidade, encontram ainda mais barreiras para
resignificar e expressar esta sexualidade. Quando as entrevistadas em sua pesquisa
descreveram como obrigação a vivência de sua vida sexual com os cônjuges, podemos dizer
Estudos de Sexualidade 3

que possivelmente essa concepção tenha vindo de uma realidade onde a mulher priorizava o
prazer do homem através da servidão e a obrigação pela manutenção do casamento (SANTOS
et al., 2014).
Onde a visão sobre essa fase da vida é positiva, há uma mudança significativa sobre
todos os aspectos envolvidos no processo de envelhecimento pela mulher. Ferreira et al.,
(2013) lembram que, em sociedades em que as mulheres, quando chegam à velhice, são
exaltadas e ganham notoriedade, menos problemas essas mulheres enfrentam durante a
menopausa e o climatério (FERREIRA et al., 2013).
O significado de sexualidade na velhice é comumente, inclusive por profissionais de 105

saúde, percebido sob o aspecto biológico, reduzindo esta fase aos dados médicos e
reducionistas. A idosa passa a ser relacionada à doença e hormônios ao ponto de classificá-la
como um corpo assexuado (SOUZA, 2015). Uchôa et al., (2016) notaram em seu estudo que a
fonte de informação sobre sexualidade buscada na velhice não advém primeiramente de
profissionais de saúde, mesmo sendo sabido pelos idosos que eles estariam preparados para
lidar com essa demanda, ou seja, podemos notar que a sexualidade não é frequentemente
investigada nem mesmo num ambiente médico. “Pode-se inferir que há uma negligência nesse
âmbito da saúde, porque a atenção à saúde é realizada com enfoque na queixa ou na doença e
não, na integralidade” (UCHÔA, 2016, p. 946). Para Oliveira, Barbosa e Almeida (2016), o
profissional tem papel fundamental na construção dos significados que a velhice traz:
Neste sentido o profissional de saúde tem o papel de estimular o idoso a encarar esse processo de
envelhecimento como um período dinâmico, refletindo o passado de forma esperançosa para uma visão
do futuro, proporcionando um tratamento digno, ouvindo atentamente, focando sua atenção no presente
e debatendo com ele seus planos para o futuro, desta forma garantir sua individualidade e respeito.
(OLIVEIRA, BARBOSA E ALMEIDA, 2016, p. 971).

Num estudo feito por Oliveira, Neves e Silva (2018) com mulheres idosas, constatou-
se que esta visão da sexualidade diretamente ligada ao biológico levou as idosas a associar a
sexualidade somente ao corpo saudável; logo, uma vez que o corpo idoso apresente as
intercorrências da velhice, a sexualidade é anulada. “Chega-se a dizer, jocosamente, que
existem três sexos: o feminino, o masculino e o sexagenário” (OLIVEIRA, NEVES E SILVA,
2018, p. 2). Ferreira et al., (2013) lembram que é impossível não falar de envelhecimento para
mulheres, sem refletir sobre o corpo como um todo, de forma holística.
Quando não reduzido ao biológico, temos a sexualidade reduzida ao desejo físico e ao
coito, porém sabemos que esta definição é equivocada, uma vez que a sexualidade precisa ser
entendida numa visão mais ampla, presente nas relações entre os sujeitos, uma energia vital
(CAROLINO, 2011). A sexualidade está presente em nossa vida desde o nascimento e tem
sido como o processo natural que envolve tudo que somos e como lidamos com o mundo.
Portanto, é parte integral e subjetiva de cada indivíduo durante a vida, ou seja, é comum a
todos, porém é vivenciada de forma única, pessoal e de formas diferentes. A partir do momento
que reduzimos a sexualidade somente ao sexo e, ainda mais, à procriação, praticamente a
anulamos quando relacionada a terceira idade, pois encontramos na velhice impeditivos para
estes fins como, por exemplo, a menopausa e as disfunções sexuais presentes nesta fase
(SOUZA, 2015).
Tanto Carolino (2011), quanto Almeida e Lourenço (2007) destacam a menopausa
como marco na vida da mulher idosa quando perde a função da procriação, da reprodução,
passando a ser percebida como vítima de uma condição irreversível e desgastante cada vez
mais incapacitante. Em sua pesquisa, Uchôa et al (2016) relatam que as mulheres em sua
maioria se queixaram da menopausa relacionando-a com a diminuição da libido e a falta de
lubrificação, grandes impeditivos de uma relação sexual satisfatória. A menopausa, nesse
sentido, sinaliza o fim da sexualidade e o conceito de mulher como detentora de um corpo que
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

pulsa e vive a sexualidade é anulado. Apesar de não ser um evento patológico, mas sim
individual e singular ainda é muito estereotipado não só pela sociedade, mas pelas próprias
idosas. (VIEIRA et al., 2016; SANTOS et al., 2014).
Pinto Neto, Valadares e Costa-Paiva (2013) salientam a importância de observar os
fenômenos hormonais pelos quais a mulher passa nesta fase da menopausa:
Os estrogênios são particularmente importantes na manutenção do tecido genital saudável, e a atrofia
vulvovaginal, causada pela deficiência de estrogênio na pós-menopausa, leva ao afinamento do epitélio
vaginal, perda de elasticidade, aumento do pH vaginal, redução da lubrificação e alterações na sensação
106
genital, ressecamento vaginal e dispareunia, sintomas muito comuns nessa fase (PINTO NETO,
VALADARES E COSTA-PAIVA, 2013, p. 94).

Machado (2014) salienta que, como em qualquer outra idade, o corpo idoso tem
desejos, pensamentos e vontades de ter uma vida sexual, mesmo com as possíveis limitações
físicas, porém é importante sempre atentar para a saúde. O autor não ignora as mudanças e
declínios possivelmente sofridos nessa fase da vida, porém defende a ideia de que são
problemas contornáveis com uma mudança no modo como a idosa cuida de sua saúde. A
adoção de uma melhor dieta, exercícios físicos, participação em grupos, cuidado com a
aparência e evitar vícios, podem ser grandes aliados em se tratando da vida sexual na terceira
idade. Não podemos deixar de destacar que, como lembram Vieira et al., (2016), uma pessoa
idosa que viveu sua vida de forma saudável sempre observando e cuidando dos desgastes
físicos e psicológicos, consequentemente, viverá sua velhice de forma mais plena e proveitosa,
incluindo a sua vida sexual. “A velhice bem-sucedida é consequência de uma vida bem-
sucedida” (MORAES, MORAES & LIMA, 2010, p. 72)
Da mesma forma, deixar de exercitar a vida sexual na terceira idade ou viver
sexualmente insatisfeita impactará negativamente em sua saúde, como destacam Uchôa et al.,
(2016) e Crema, Tilio e Campos (2017). “É preciso ter em mente que na velhice é importante
manter-se ativo sexualmente, pois fazer sexo com regularidade ajuda a manter os órgãos
sexuais saudáveis” (ALMEIDA & LOURENÇO, 2008, p. 137).
Percepções equivocadas e reducionistas são alimentadas pela falta de educação sexual
e pela má interpretação em relação às mudanças que ocorrem nesta fase. Consequentemente,
essa desinformação impede que a idosa se manifeste, levando a uma abstinência de sua
sexualidade (CAROLINO, 2011). Essa desinformação leva à manutenção dos preconceitos e
tabus na velhice e, consequentemente contribui para a estagnação da sexualidade na vida da
mulher idosa (ALMEIDA & LOURENÇO, 2008).
Envelhecer não significa tornar-se assexuado, porém mitos e tabus socioculturais acerca da sexualidade
na terceira idade inibem os idosos de exercer a sua vida de forma integral, uma vez que as alterações
fisiológicas do envelhecimento, preceitos religiosos, opressões familiares e aspectos individuais
fortalecem esse estigma social (UCHÔA et al., 2016, p. 939).

Uchôa et al., (2016), lembram que as mudanças físicas que marcam o período da
envelhescência na mulher, como o embranquecimento dos pelos, pele menos elástica e
enrugada, problemas dentários e doenças crônicas são outros motivos pelos quais a sociedade
tende a marcar negativamente esse período. Essa preocupação com a aparência também é
citada nos estudos de Debert & Brigeiro (2012), que trazem falas de mulheres e percebem que
a preocupação com a beleza é outro fator muito significativo na velhice.
Tanto Souza (2015) quanto Machado (2014) destacam a educação como chave para a
mudança dessa percepção reducionista da sexualidade na terceira idade, pois somente por meio
da educação conseguiremos desmistificar este olhar limitante e transformar o modo como
percebemos, lidamos e conduzimos a sexualidade na velhice. Crema, Tilio e Campos (2017)
inclusive noticiaram em sua pesquisa que o grau de instrução interfere diretamente em como
as idosas vivenciam sua menopausa e climatério.
Estudos de Sexualidade 3

Ao falarmos de sexualidade, por ter seu significado tão associado exclusivamente ao


sexo, como ato sexual, com finalidades de reprodução e resumido à penetração, o tema tende
a causar grande desconforto e surpresa, como constatou Carolino (2011). Em sua pesquisa,
Carolino (2011), quando recorria às perguntas e indagações às idosas, causava estranheza e até
a falta de resposta de algumas das participantes. Sentimento também descrito por Debert &
Brigeiro (2012) quando notam a dificuldade e o desconforto das mulheres quando abordados
assuntos da sexualidade. Porém, como lembram os autores Crema, Tilio e Campos (2017), a
vida sexual não é limitada à procriação e sim deve ser voltada para a satisfação do desejo, entre
outras coisas, as quais não se esgotam durante a vida. 107

Para Oliveira, Neves e Silva (2018), a sexualidade da mulher idosa precisa ser
entendida como manifestada de formas diferentes, múltiplas. Assumindo caminhos diferentes
para manifestar-se, porém, sem ser anulada, mas sim, compreendida. Em concordância com os
autores, Crema, Tilio e Campos (2017) também citam os fatores biopsicossociais como co-
fundadores da expressão da sexualidade na velhice.
Ao contrário do pensamento reducionista, pelo qual a menopausa marca o fim da
sexualidade, a mulher pode encontrar, a partir desse marco, um novo vigor em relação à sua
vida sexual, uma vez que não mais se vê presa ao medo da gravidez e ao cuidado dos filhos.
As habilidades sexuais da mulher nessa fase não são desaprendidas ou ignoradas, mas sim
apresentam outro modo de serem expressas, por mais que sua frequência possa ser diminuída,
isso não anula sua vida sexual (VIEIRA et al., 2016; Debert e Brigeiro, 2012).
Num estudo feito por Vieira et al., (2016), que concorda com a pesquisa feita pelos
autores Bazza e Navarro (2019), as mulheres destacaram a afetividade, o prazer e o
complemento como sendo os principais componentes do significado das relações sexuais. Para
essas mulheres o prazer foi citado como necessário para ambos os corpos e não somente aos
homens, a afetividade caracterizou-se pela expressão dos sentimentos e o complemento foi
utilizado para resumir o sentimento de querer dividir a vida com alguém e complementar-se
não somente fisicamente, mas também emocionalmente. Uchôa et al., (2016) obtiveram
resultados semelhantes em sua pesquisa, em que as maneiras de expressão da sexualidade
foram “relacionadas com o amor, ternura e afetos. Não se trata apenas do ato sexual em si
como concebido erroneamente pela sociedade” (UCHÔA et al., 2016, p. 945).
Para Machado (2014), a vida sexual na velhice é uma troca, um compartilhamento de
toques, afeto e cuidado. A sociedade tende a quantificar o sexo, valorizar o vigor do corpo e a
ereção. Porém, a vida sexual na velhice vai além da penetração e expressa admiração e
intimidade, complementando e confirmando o corpo como funcional, trazendo satisfação
(BAZZA & NAVARRO, 2019).
Pinto Neto, Valadares e Costa-Paiva (2013) evidenciam, baseados em um estudo com
casais idosos, que, por mais que as atividades sexuais na terceira idade tenham menor
frequência, a satisfação sexual não sofre alterações. Essas atividades sexuais são baseadas em
outras trocas, como beijos, abraços e toques. “A presença de atividade sexual [...], apesar de
menos frequente, pode tornar-se cada vez mais importante, não somente como ato sexual físico,
mas como preservação de relacionamento íntimo que ajuda diminuir os sentimentos de solidão
e isolamento” (PINTO NETO, VALADARES & COSTA-PAIVA, 2013, p. 94). A partir dessa
visão, a velhice, então, oferece novas e diferentes formas de viver a vida sexual (DEBERT &
BRIGEIRO, 2012). Nascimento et al., (2017) concordam com os autores acima quando
destacam em seu trabalho o fato de que para as mulheres estudadas, a expressão da sua
sexualidade vai além do coito, sendo as relações de sedução mais praticadas e reconhecidas.
“As mulheres valorizam a troca de carícias, atenção e diálogo, mesmo quando o ato sexual não
se completa”. (NASCIMENTO et al., 2017, p. 4). Santos et al., (2019) ressaltam que o desejo
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

permanece assim como em outras fases da vida, sendo apenas sua vivência adaptada, sendo
melhorado, inclusive.
No trabalho realizado por Oliveira, Neves e Silva (2018) foi observado por meio das
falas de algumas mulheres que, apesar desta construção limitante acerca da sua sexualidade,
elas resignificaram a sua vivência, modificando as relações de opressão e subordinação. Tais
mulheres foram capazes de contemplar a sexualidade de forma positiva e fortalecida, dando
um novo sentido sobre sua vida sexual. Para os autores, uma vez que as mulheres tiveram
consciência a respeito de si mesmas e, consequentemente, sobre o meio em que vivem, elas
108
puderam tornar-se protagonistas de suas vidas e de seus corpos, verdadeiramente autônomas.
“Ao subverterem o paradigma social de que na velhice a sexualidade se esgota, elas rompem
com o silenciamento de sua sexualidade” (OLIVEIRA, NEVES E SILVA 2018, p. 7). A
velhice é entendida então não mais como limite, mas como renovação (OLIVEIRA,
BARBOSA E ALMEIDA, 2016).
Com a relativização das práticas que levam ao orgasmo, pode-se investir mais em outros aspectos do
relacionamento amoroso, como a troca de carinho, que, ao que parece, incrementa-se à medida que
diminui a preocupação com a exigência de um grande desempenho sexual. Dessa forma, quanto menor
for a expectativa de qualidade da ereção, ou de quantidade de relações ao longo do tempo, maior será a
liberdade para aproveitar o prazer sem ansiedade (ALMEIDA & LOURENÇO, 2018, p. 134).

Crema, Tilio e Campos (2017) citam a importância do apoio da rede de contato no qual
a mulher idosa está inserida. O acolhimento, aceitação e incentivo para com essa mulher são
fundamentais para que ela consiga viver plenamente a sua velhice e, além disso, sua vida sexual
de forma saudável e satisfatória. Assim sendo, a mulher pode passar a ver neste período da
vida uma chance de redescobrir seu corpo, reaprender sobre si mesma, entender seus desejos,
praticar o autocuidado e reconhecer a liberdade do medo da gravidez e dos ciclos menstruais
(CREMA, TILIO E CAMPOS 2017). “[...] celebração da terceira idade e do processo de
envelhecimento como momento privilegiado na vida, em que a realização pessoal, a satisfação
e o prazer encontram o seu auge e são vividos de maneira mais madura e profícua” (DEBERT
& BRIGEIRO, 2012, p.46). “Essa fase pode ser repleta de oportunidades” (NASCIMENTO,
et al., 2017, p. 3).
Para Machado (2014) uma vida sexual ativa e de qualidade na terceira idade vai além
das questões físicas quando afirma “Manter uma vida sexual ativa é componente inerente para
assegurar que torne efetiva plenamente sua dignidade” (MACHADO, 2014, p. 12).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A velhice por si só é carregada de significantes que a limitam, por medos e por mitos,
sendo talvez o principal mito, o fato de que na velhice a sexualidade é anulada. A sociedade
tende a anular a sexualidade no corpo velho. É importante que tenhamos um olhar diferenciado
para esta fase entendendo que a construção dela se dá através de fatores biopsicossociais.
Ao falarmos de sexualidade para a mulher idosa, é preciso entender o processo de
construção desse conceito. É imprescindível que entendamos como essa mulher entende a sua
sexualidade. Através dessa revisão foi possível notar que a constante redução da sexualidade
ao ato sexual sendo o coito o principal fim foi uma das bases para a construção social deste
conceito. Grande parte das mulheres que hoje estão em sua velhice experienciou uma vida
baseada no patriarcado onde seus corpos tinham funções definidas e limitadas à maternidade,
a procriação e a satisfação sexual do seu marido. Quando essas mulheres chegam a fase da
menopausa e climatério encontram outra barreira para a vivência plena de sua sexualidade.
Nesta fase a sociedade tende a anular de vez a sexualidade da mulher, uma vez que ela não
mais reproduz, reduzindo seus corpos ao biológico, aos sintomas físicos e limitantes desta fase.
Estudos de Sexualidade 3

Outro agravante para o impedimento da vivência saudável e plena da sexualidade para


a mulher na velhice é a falta de informação sobre este conceito e a dificuldade encontrada por
elas para encontrarem acolhimento profissional e pessoal. Além da dificuldade social descrita
acima, as mulheres encontram profissionais despreparados para lidarem com as questões de
sexualidade.
Porém, temos vivenciado uma mudança em relação a esse olhar para com a sexualidade
da mulher na velhice. Essa fase tem sido cada vez mais apontada como uma fase de
possibilidades, de descobertas e de aprendizado. A mulher tem se percebido mais livre – seja
pela viuvez, seja pela segurança de não mais engravidar – e tem se permitido resignificar a sua 109

sexualidade. Segundo os estudos utilizados aqui, a mulher tem descoberto que sua sexualidade
não, necessariamente, precisa estar resumida ao ato sexual e a penetração. A troca de afetos, o
companheirismo, o carinho, o beijo são alguns exemplos dos quais as mulheres têm cada vez
mais utilizado para falar sobre sua sexualidade e satisfação sexual.
A educação é a chave para essa mudança no olhar para com a velhice. Uma vez que as
mulheres tenham informações completas e corretas sobre seus corpos durante toda a vida, sua
sexualidade na velhice será tão saudável e plena quanto possível. As mulheres precisam
resignificar sua velhice para que possam ver oportunidades de vivencias e expressões
diferentes de sua sexualidade. Há a necessidade de um trabalho em conjunto para que haja o
acolhimento, entendimento e orientação dessa população por profissionais, pela família e pela
sociedade como um todo. Possivelmente assim as mulheres terão um caminho facilitado para
entender seus corpos e viver singularmente sua sexualidade da melhor forma.

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noticias/noticias/24036-idosos-indicam-caminhos-para-uma-melhor-idade. Acesso em 25 out 2020.
UCHÔA, Y et al. A sexualidade sob o olhar da pessoa idosa. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia,
Rio de Janeiro, V. 19, N. 6, pp. 939-949, 2016. Disponível em
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1809-98232016000600939&script=sci_abstract&tlng=pt.
Acesso em 30 out 2020.
VIEIRA, K et al. Representação Social das Relações Sexuais: um estudo Transgeracional entre Mulheres.
Psicologia: Ciência e Profissão, V. 36, N. 2, pp. 329-340. Abr/Jun, 2016. Disponível em
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932016000200329&script=sci_abstract&tlng=pt.
Acesso em 30 out 2020.
Estudos de Sexualidade 3

MULHERES ADULTAS VÍTIMAS DE ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA:


possíveis consequências.

Camille Correia Borges Soares

111

RESUMO
Objetivou-se realizar uma revisão da literatura a respeito de abuso sexual na infância (ASI) e
suas repercussões na vida adulta de vítimas do sexo feminino. O ASI pode afetar diferentes
áreas de habilidades pessoais e prejudicar a vivência de uma sexualidade livre. Neste artigo
são apresentadas as emoções prevalentes na maior parte dos casos e ao final da pesquisa foi
feita uma relação com a personagem Lori Lamby, do livro “O caderno rosa de Lori Lamby”,
da escritora brasileira Hilda Hilst.
Palavras – chave: abuso sexual na infância, satisfação sexual, mulheres vítimas

ABSTRACT
The objective of this article was to carry out a review of the literature regarding child sexual
abuse and its repercussions on the adult life of female victims. “ASI” can affect different areas
of personal skills and harm the experience of free sexuality. In this article the emotions
prevailing in most cases are presented and, at the end of the research, a comparison was made
with the character Lori Lamby, from the book “O caderno rosa de Lori Lamby” (The pink
notebook of Lori Lamby in free translation), by the Brazilian writer Hilda Hilst.
Keywords: sexual abuse in childhood, sexual satisfaction, women victims

1. INTRODUÇÃO
A lei N 12.845, de 1 de agosto, de 2013, considera violência sexual, qualquer forma de
atividade sexual não consentida e torna obrigatório o atendimento imediato em todos os
hospitais integrantes da rede do SUS para diagnóstico e tratamento de lesões físicas em todo
aparelho genital e outras áreas afetadas, amparo médico, psicológico e social, profilaxia da
gravidez, profilaxia de Doenças Sexualmente Transmissíveis, facilitação do registro da
ocorrência e encaminhamento às delegacias especializadas com informações que favoreçam a
identificação do agressor, coleta de material para realização do exame de HIV para posterior
acompanhamento e fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e sobre
todos os serviços sanitários disponíveis.
Segundo Soldera et al., (2016) a violência sexual sofrida na infância pode repercutir
negativamente nas relações afetivas de mulheres adultas, aumentando a probabilidade do
aparecimento de desordens afetivas, comportamentais e sociais. Para as autoras, a área da
sexualidade parece ser uma das mais atingidas e as vítimas podem vivenciar o que é chamado
de “medo da intimidade”, caracterizado pela impossibilidade de estabelecer relacionamentos
de confiança, atenção e afeto.
O perfil de agressores foi traçado em um estudo feito por Soares, et al., (2016).
Mediante a análise de 3.353 prontuários de crianças, adolescentes e mulheres adultas, foram
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

selecionados 700 casos onde o abuso sexual foi cometido por agressores do sexo masculino,
entre o período de setembro de 2004 a agosto de 2014, na cidade de Teresina – PI. Os dados
apontam que a idade média dos agressores é de 36 anos e faixa etária do maior número de
vítimas é entre 12 e 14 anos. Na maioria das vezes, o local da agressão é no ambiente familiar
e 86,1% dos agressores são conhecidos da família. 27,3% dos agressores são pais ou padrastos
das vítimas. Isso torna a proteção dessas crianças um caso ainda mais delicado.
Contextos de vulnerabilidade podem comprometer o desenvolvimento de habilidades
de enfrentamento, já que a vítima terá maior dificuldade de acesso à informação e outros
112
privilégios. Honorato et. al. (2018), traçou o perfil de violência infantil na região oeste do Pará
e verificou que 72% das agressões ocorriam com vítimas do sexo feminino e grande parte das
famílias das vítimas possuíam renda mensal referente à um salário-mínimo. Rossato, Santeiro,
Barroso e Scorsolini-Comin (2018), descrevem estudos realizados pela OMS em diferentes
partes do mundo indicando que aproximadamente 20% das mulheres foram abusadas
sexualmente quando crianças.

Hilda Hilst
Hilda Hilst foi uma poeta, ficcionista, cronista e dramaturga brasileira. Foi considerada
uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século XX. No início da década de 90,
aos 60 anos, Hilda parou de escrever o que era chamado de literatura séria e dedicou-se a criar
histórias de cunho erótico / pornográfico. A escritora estava cansada de não ser lida da maneira
que gostaria. Ao publicar a sua trilogia obscena ela atraiu olhares da crítica, chocando os
amigos mais próximos.
A Trilogia obscena de Hilst, composta pelas obras: “O caderno rosa de Lori Lamby”
(1990), “Contos D’escárnio / Textos grotescos” (1990) e “Cartas de um sedutor” (1991), conta
com diversas temáticas acerca de parafilias (zoofilia, pedofilia, dentre outros) e faz uma crítica
social sobre as condições de gênero e dificuldades enfrentadas pelas minorias.
Em “O caderno rosa de Lori Lamby” (1990), a escritora traz a narrativa de uma menina
de 8 anos, que vive em situação de vulnerabilidade social. A garota resolve escrever um diário
contendo as situações de exploração sexual que vive.
Em 2013 Cristiano Diniz lançou uma obra contendo uma série de entrevistas que a
escritora cedeu ao longo da sua vida. O livro aponta fatos que nos faz refletir. Em se prefácio
Diniz (2013) cita: “Foi somente nos anos 1990 que Hilda se deparou com um grande volume
de assédio da imprensa. Essa atenção veio do alvoroço gerado por suas declarações de que não
escreveria mais literatura séria”.
Chama atenção a literatura erótica, ou a Trilogia Obscena, como foi batizada a obra de
Hilst, não ser considerada uma literatura séria e que a escritora precise desse posicionamento
para ser ouvida. Historicamente mulheres são julgadas e oprimidas, com ela não seria diferente.
Em 1952 Hilda cede entrevista ao Jornal de letras, do Rio de Janeiro e o mediador da
reportagem faz uma diferenciação entre textos femininos e textos masculinos, é como se uma
escrita mais delicada fosse atribuída ao sexo feminino e Hilst menciona a poetisa Cecília
Meireles afirmando: “A poesia de Cecília Meireles, por exemplo, não pode ser chamada de
feminina, porque ela é forte e potente. Cecília nunca poderá ser chamada poetisa, mas sim
poeta”. O contexto cultural e a época que uma mulher forte e talentosa está inserida podem
influenciar diretamente as suas opiniões e colocações. Mulheres não são necessariamente
delicadas ou de escrita melosa, mas os papéis de gênero, ao longo de décadas, podem ter
reservado esse espaço para o público feminino. Uma mulher que escrevia diferente, era vista
com estranhamento.
Em 2015, aproximadamente 80% dos escritores convidados para a Festa Literária de
Paraty (Flip) eram homens. De 40 membros da Academia Brasileira de Letras (ABL), apenas
Estudos de Sexualidade 3

cinco são mulheres. Esses números mostram que ainda não estamos em condição de igualdade
e muito precisa ser mudado (Jornal Opção, 2020).
Durante a década de 1980, Hilda Hilst aponta os limites do alcance da literatura no
Brasil e faz uma relação entre o número de analfabetos, que em 1987 era de trinta milhões de
pessoas, e o fato de não ser lida como gostaria: “São trinta milhões de analfabetos, mais ou
menos setenta milhões de pessoas com uma vida miserável – isso é o nosso país. [...] Não há
por que a minha literatura ter prioridade, existem coisas mais imediatas”.
Observando que a clínica apresenta grande demanda de pacientes do sexo feminino que
sofreram abuso sexual na infância e considerando os impactos dessa vivência na vida adulta, o 113

objetivo desse trabalho é buscar os artigos produzidos nos últimos dez anos sobre mulheres
vítimas de violência sexual na infância e as consequências da violência vivida para as vítimas.
Ao final será feita uma análise sobre a personagem Lori Lamby, de Hilda Hilst. A menina vive
em condições de vulnerabilidade social e escreve um caderno de memórias com os abusos que
sofreu.

2. METODOLOGIA
Foi realizada uma pesquisa bibliográfica, em maio de 2020, de cunho qualitativo, com
a base de dados Google Acadêmico, cuja data de publicação estivesse compreendida no
período de 2010 a 2020, selecionando somente obras em português do Brasil. Na busca foram
utilizadas as palavras-chave “abuso sexual na infância”, “mulheres vítimas” e
“vulnerabilidade”.
Os anos descritos foram escolhidos pois abarcam os últimos dez anos de produção
científica sobre essa temática. Selecionamos somente referências em português pois o objetivo
era relacionar o que está sendo produzido cientificamente sobre o impacto na vida sexual de
vítimas de abuso sexual na infância e as consequências na vida adulta.
Foram encontrados 226 resultados no Google Acadêmico e 1 resultado no Periódicos
Capes. Adotamos os seguintes critérios de inclusão: artigos ou citações com alguma relação
com psicologia / psiquiatria, referências em português (Brasil), artigos que abordassem dados
acerca do abuso sexual em crianças, pesquisas que relacionavam as demandas sexuais de
mulheres adultas que foram violentadas durante a infância. Incluímos nessa pesquisa apenas
materiais do tipo artigo científico. Os critérios de exclusão foram: achados que utilizam
abordagens psicológicas que não possuem relação com a compreensão comportamental, teses
e dissertações, artigos que abordassem diversos tipos de violência além da violência sexual e
pesquisas que falam sobre a violência sexual em mulheres adultas, sem relação com a prática
durante a infância.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

A violência sexual na infância e suas consequências na vida adulta


As repercussões do abuso sexual para a vida de mulheres abusadas durante a infância
serão apresentadas nessa categoria. Segundo Siebra et al., (2019), alguns dados são importantes
na verificação da probabilidade da menor ter sido vítima de abuso, que são eles: a quantidade
de pessoas que residem no domicílio do menos, a mãe ser ou não fumante, o menor realizar ou
não atividade física extraescolar e se o menor já sentiu fome. Com os dados coletados, esse
estudo revelou que são maiores as chances dos alunos de escolas públicas e de capitais serem
abusados. Esses números apontam para uma maior probabilidade de violência sexual em
crianças que vivem em contextos de vulnerabilidade e reforça a necessidade da criação de
políticas públicas que forneçam suporte para essas pessoas.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Ter acesso ao tratamento adequado e uma rede de apoio fortalecida são algumas das
variáveis que influenciam no melhor enfrentamento de uma vivência como essa, fatores que
muitas vezes não são possíveis de serem alcançados pois parte desses abusos ocorre dentro do
contexto familiar.
Silva, Gava e Dell’Aglio (2013), discorrem sobre episódios abusivos e pontuam que
episódios abusivos são experiências negativas e prejudiciais, mas não são determinantes e nem
garantem que haverá prejuízo para a vítima. Essa pesquisa apresenta dados diferentes da
maioria dos apontamentos encontrados na busca e analisou prontuários de jovens entre sete e
114
dezenove anos. As pesquisadoras apontam que jovens podem desenvolver repertório de
resiliência quando recebem apoio emocional, suporte de cuidadores e apoio de amigos. A
forma como as vítimas percebem o impacto do abuso, as crenças associadas com a experiência
e a quem é atribuída a culpa do ocorrido também são fatores que afetam a percepção sobre o
evento. Outros fatores também devem ser levados em consideração e influenciam na mudança
de resultados, que são: a duração do abuso, a idade da criança no início do abuso, a intensidade
da violência, o grau das ameaças e o apoio social.

As principais consequências
A Tabela 1 apresenta os estudos encontrados e utilizados para o desenvolvimento desse
projeto:

Tabela 1: Referências encontradas


REVISTA / EDITORA TÍTULO AUTOR ANO DE
PUBLICAÇÃO
Revista Aletheia Sintomas e quadros psicopatológicos Doralúcia Gil da 2013
em supostas vítimas de abuso sexual: Silva, Lara
uma visão a partir da psicologia Lages Gava,
positiva. Débora
Dalbosco
Dell’Aglio.
Revista Contextos Abuso sexual na infância e suas Cris Aline 2016
Clínicos repercussões na satisfação sexual na Krindges, Davi
idade adulta de mulheres vítimas. Manzini
Macedo, Luísa
Fernanda
Habigzang.
Texto Contexto Abuso sexual na infância e suas Margaret 2017
Enfermagem repercussões na vida adulta. Carvalho e Lira,
Vanda
Rodrigues,
Telmara Couto,
Nadirlene
Gomes e
Normélia Diniz.
Revista Estudos de Regulação emocional, satisfação Cris Aline 2018
Psicologia (Campinas) sexual e comportamento sexual de Krindges e Luísa
risco em mulheres vítimas de abuso Fernanda
sexual na infância. Habigzang.
Revista Multidisciplinar Os prejuízos causados à saúde mental Danielle Siebra, 2019
e de Psicologia e à vida sexual adulta das mulheres Marianna
vítimas de abuso sexual na infância. Barroso,
Antônio de
Melo, José
Landim e
Gislene de
Oliveira.
Estudos de Sexualidade 3
Revista Disciplinarum Como são as relações afetuosas de Carolina 2016
Scientia mulheres violentadas na infância. Soldera,
Gabriella Vieira,
Michele Pereira,
Fernanda Real
Dotto e Janaína
Carlesso.
Arquivos brasileiros de Violência na infância e adolescência: Lorena 2018
Psicologia perfil notificado na mesorregião do Honorato,
Baixo Amazonas. Anselmo de 115
Souza, Telma
dos Santos,
Odlina Lopes e
Cristina
Zukowsky-
Tavares.
Revista Interdisciplinar Perfil da violência sexual contra Elaine Soares, 2016
crianças e adolescentes. Nhataly da
Silva, Maria de
Matos, Ellen
Araújo, Luana
da Silva e Eliana
Lago.
Revista Baiana Saúde Perfil da vitimização sexual de Maria 2011
Pública Miolo crianças e adolescentes, segundo Conceição
descrição de casos por alunos e Costa, Marcos
professores de escolas públicas. Santana, Rosely
de Carvalho,
Karine de Souza,
Nilma Cruz,
Mariana Silva e
Mona Lisa da
Silva.
Revistas Contextos Perfil de atendimentos psicológicos Lucas Rossato, 2018
Clínicos em contextos de violência sexual Tales Santeiro,
infanto-juvenil: revisão integrativa da Sabrina Barroso
literatura. e Fábio
Scorsolini-
Comin

Os estudos encontrados apontaram que os impactos sofridos na vida de mulheres


adultas que sofreram abuso sexual durante a infância afetam os níveis de satisfação sexual, a
vivência de uma sexualidade livre e plena e, em alguns casos, ocorre o aumento da
probabilidade da mulher desenvolver algum transtorno de personalidade.
Krindges e Habigzang (2018), realizaram um estudo exploratório com oito mulheres
que sofreram abuso sexual durante a infância. Os resultados encontrados identificaram
consequências negativas relacionadas à experiência de abuso. As consequências elencadas que
apareceram com maior frequência foram: vergonha, tristeza, confusão e medo, seguidos por
nojo e pensamentos repetitivos sobre o evento. Por isso, cabe investigar a possibilidade desses
pacientes apresentarem traços de comportamento obsessivo-compulsivo. A pesquisa também
apontou que as participantes apresentam baixo desempenho para realizar tarefas, interesse
sexual precoce e pouco interesse sexual na idade adulta, raiva, pesadelos, evitação de contatos
físicos com outras pessoas e, por último, vingança. Esse estudo confirma a hipótese de Silva,
Gava e Dell’Aglio (2013) quando descreve que o vínculo que a vítima possui com o autor do
abuso, a frequência em que o abuso aconteceu, a idade da vítima e a presença de figuras
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

protetoras são fatores que contribuem para minimizar ou maximizar as consequências do ASI
na vida adulta.
O ASI pode afetar outras esferas da vida, a comunicação intrafamiliar é uma delas. Lira
et al., (2017) descrevem que a convivência familiar após a revelação do abuso sexual pode
sofrer mudanças. Dentro dessa pesquisa, as participantes descrevem uma mudança no
relacionamento com os pais quando estes são os abusadores e muitas vezes com a mãe, quando
estas não compreendem que as filhas são vítimas e não culpadas. Esse estudo descreve
possíveis problemas sexuais, durante a infância meninas podem apresentar comportamento
116
sexual inadequado para a idade. Em contextos de vulnerabilidade, ocorre o aumento da chance
de vivenciarem episódios de prostituição. Algumas participantes relataram confusão quanto à
identidade sexual. A dificuldade para se relacionar com pessoas do mesmo sexo do abusador
também está presente no relato das vítimas. Por fim, a dificuldade de atingir o orgasmo também
é uma das queixas presentes.

Avaliação do caso Lori Lamby


Em O caderno rosa de Lori Lamby (1990), Hilda Hilst apresenta um personagem-
narrador pouco comum, uma menina de oito anos relatando suas experiências sexuais. O
desfecho do livro é curioso pois o leitor percebe que nada do que estava descrito é real.
A menina se comove ao perceber que o pai, um homem inteligente, escritor de revistas
e contos pornográficos, não consegue espaço no mercado literário. Por conta disso, Lori
começa a ouvir o diálogo dos pais, buscar o material que o pai consome e escreve suas histórias,
para promover melhores condições para a família. O livro passa a impressão de Lori pertencer
à uma família que vive em contexto de vulnerabilidade, pois o relato é de uma casa pequena,
onde é possível ouvir as discussões por dinheiro e alimento nos outros cômodos da casa.
O meu objetivo com essa análise é o de trazer a reflexão acerca da situação de Lori, que
não sofreu violência física nem sexual, mas foi exposta à conteúdo inapropriado para sua idade.
Por meio do contexto criado pela escritora e da história de Lori, é possível perceber que
a violência sexual de crianças e adolescentes que convivem em contexto de vulnerabilidade
social inicia-se muito antes do episódio de abuso sexual acontecer. A violência de estar exposta
a situações de pobreza e desigualdade já traz riscos e distancia esses jovens de alcançar
privilégios.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Krindges, Macedo e Habigzang (2016), apontam que o engajamento da família ou de
cuidadores na compreensão dos danos causados fazem com que as vítimas se sintam mais
seguras e com que o impacto dos sintomas, principalmente psicológico, sejam atenuados.
Os outros fatores que podem diminuir o impacto dos sintomas e que foram citados ao
longo dessa pesquisa, são privilégios que geralmente estão disponíveis para uma pequena parte
da nossa população. Uma estrutura familiar que acolhe também é privilégio de um contexto
estável e favorável para o acolhimento e suporte.

5. REFERÊNCIAS
HILST, Hilda. Pornô Chic. Brasil, Biblioteca Azul, 2014.
HONORATO, Lorena Guimarães Ferreira et al. Violência na Infância e Adolescência: Perfil notificado na
mesorregião do Baixo Amazonas. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro, v. 70, n. 2, pp. 266-284, 2018.
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KRINDGES, Cris Aline; MACEDO, Davi Manzini; HABIGZANG, Luísa Fernanda. Abuso sexual na infância e
suas repercussões na satisfação sexual na idade adulta de mulheres vítimas. Contextos Clínic, São
Leopoldo, v. 9, n. 1, pp. 60-71, jun 2016. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
Estudos de Sexualidade 3
34822016000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 31 out 2020.
http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2016.91.05.
KRINDGES, Cris Aline; HABIGZANG, Luísa Fernanda. Regulação emocional, satisfação sexual e
comportamento sexual de risco em mulheres vítimas de abuso sexual na infância. Estud. psicol.
(Campinas), Campinas, v. 35, n. 3, pp. 321-332, Sept. 2018. Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
166X2018000300321&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 31 out 2020. https://doi.org/10.1590/1982-
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LIRA, Margaret Olinda de Souza Carvalho e et al. ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA E SUAS
REPERCUSSÕES NA VIDA ADULTA. Texto contexto - enferm., Florianópolis, v. 26, n. 3, e0080016, 117
2017. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
07072017000300320&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 31 out 2020. Epub Sep 21, 2017.
https://doi.org/10.1590/0104-07072017000080016.
ROSSATO, Lucas et al. Perfil de atendimentos psicológicos em contextos de violência sexual infantojuvenil:
revisão integrativa da literatura. Contextos Clínic, São Leopoldo, v. 11, n. 3, pp. 297-309, dez. 2018.
Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
34822018000300003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 31 out 2020.
http://dx.doi.org/10.4013/ctc.2018.113.02.
SILVA, Doralúcia Gil da; GAVA, Lara Lages; DELL'AGLIO, Débora Dalbosco. Sintomas e quadros
psicopatológicos em supostas vítimas de abuso sexual: uma visão a partir da psicologia positiva.
Aletheia, Canoas, n. 40, pp. 58-73, abr 2013. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
03942013000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 30 out 2020.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

118

Camile apresentando o Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Sexologia Aplicada


Estudos de Sexualidade 3

SAÚDE MENTAL EM INDÍVIDUOS TRANSGÊNEROS COM DISFORIA DE


GÊNERO: UMA REVISÃO NARRATIVA

Erlon Coelho Mendonça

119

RESUMO
A literatura aponta uma alta prevalência de transtornos mentais em indivíduos transgêneros,
que é comum apresentarem disforia de gênero (DG), condição considerada uma incongruência
afetiva e cognitiva de um indivíduo com o sexo que lhe foi atribuído ao nascimento. Essa
situação compromete o funcionamento social e profissional do indivíduo. Esse estudo buscou
fazer uma revisão de literatura sobre DG e saúde mental na população transgênero, verificando
os principais transtornos mentais presentes em transgêneros com DG antes e após intervenções
como hormonioterapia e cirurgia de redesignação de gênero. Inicialmente, procedeu-se a busca
por meio de dos principais bancos de dados da literatura utilizando as palavras-chave
“transexualidade”, “disforia de gênero” e “transtorno mental”, bem como suas respectivas
traduções na língua inglesa. Considerou-se artigos de pesquisa e revisões sistemáticas.
Procurou-se limitar os artigos publicados nos últimos cinco anos (2015-2020) em língua
portuguesa ou inglesa. Os estudos apontam que a imagem corporal é uma construção complexa
que pertence ao físico e a características psicológicas relacionadas à aparência e às normas
impostas por uma sociedade heteronormativa. Nesse contexto, indivíduos com DG estão
fortemente vulneráveis com uma morbidade psiquiátrica maior quando comparada à população
em geral. Os poucos estudos apontam aspectos positivos, relacionados ao bem-estar,
sexualidade e qualidade de vida, após a intervenção médica, com satisfação corporal sendo
encontrada por todos. Conclui-se que é essencial o desenvolvimento de novas ferramentas de
avaliação específicas para avaliar os efeitos das intervenções em indivíduos com DG.
Estratégias para auxiliar esses indivíduos durante a transição são essenciais para o impacto
positivo na qualidade de vida e saúde mental.

Palavras-chave: Disforia de gênero, transexualidade, transtorno mental.

ABSTRACT
The literature points to a high prevalence of mental disorders in transient individuals. It is
common for these individuals to present gender dysphoria (DG), a condition considered to be
an affective and cognitive incongruity of an individual with the sex that was attributed to him
at birth. This situation compromises the individual's social and professional functioning. This
study sought to review the literature on DG and mental health in the transgender population,
verifying the main mental disorders present in transgender people with DG before and after
interventions such as hormone therapy and gender reassignment surgery. Initially, the search
was carried out through the main literature databases using the keywords "transsexuality",
"gender dysphoria" and "mental disorder", as well as their respective English translations.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Research articles and systematic reviews were considered. We tried to limit the articles
published in the last five years (2015-2020) in Portuguese or English. Studies show that body
image is a complex construction that belongs to the physical and psychological characteristics
related to the appearance and norms imposed by a heteronormative society. In this context,
individuals with DG are highly vulnerable with a higher psychiatric morbidity in individuals
with DG when compared to the general population. The few studies point to positive aspects
related to well-being, sexuality and quality of life, after medical intervention, with body
satisfaction being found by all. It is concluded that the development of new specific assessment
120
tools is essential to assess the effects of interventions on individuals with DG. Strategies to
assist these individuals during the transition are essential for a positive impact on quality of
life and mental health.

Keywords: Gender dysphoria, transsexuality, mental disorder.

1. INTRODUÇÃO
A saúde mental é um assunto bastante discutido na atualidade visto a alta prevalência
de transtornos mentais na população geral. Estima-se que a taxa média de prevalência de
pessoas que tiveram depressão ao longo da vida seja aproximadamente 12%, enquanto a
prevalência de algum transtorno ansioso pode chegar a 17% ao ano. Essas taxas podem variar
conforme idade, sexo, estado civil, fatores socioeconômicos e culturais, por exemplo.
Entre os indivíduos mais acometidos por transtornos mentais estão os transgêneros. O
termo 'transgênero' descreve diversas identidades de gênero e expressões que envolvem a
concepção de uma pessoa sobre seu sexo biológico e gênero. Este termo não médico surgiu
nos anos 1990 para retratar os estilos de vida e posicionamento não conformes ao sexo
biológico (GÜLDENRING, 2015).
A prevalência mundial dessa condição é de 0,001 a 0,003%, chegando a taxas bem
maiores, como na Holanda, onde a literatura aponta 0,6% para mulheres trans e 0,2% para
homens trans (VALASHANY; MOHSEN; JANGHORBANI, 2018). O conhecimento sobre a
etiologia da transexualidade ainda é escasso. No entanto, pode-se afirmar que sua
heterogeneidade é multifatorial com natureza constitucional específica e com influência dos
fatores ambientais (LINGIARDI et al., 2017).
Em um passado recente essa condição era considerada um transtorno mental, sendo
essa ideia fortemente questionada, levando a mudanças nos sistemas de classificação
internacional, como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, que, 2013,
substituiu o termo transtorno de identidade de gênero por disforia de gênero (DG).
A disforia de gênero (DG) é uma condição que remonta à idade antiga. Porém somente
nas últimas décadas passou a ser mais estudada. A DG é definida pelo Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) como um problema clínico que se caracteriza por
uma incongruência afetiva e cognitiva de um indivíduo com o sexo que lhe foi atribuído ao
nascimento. Essa situação ocorre com uma grande intensidade, produzindo um sofrimento e
sinais clínicos, comprometendo o funcionamento social e profissional (FLEURY; ABDO,
2018).
Indivíduos com DG sentem uma condição de desconforto persistente com seu próprio
sexo e função atribuídos no nascimento. Estudos apontam que a identidade de gênero ocorre
entre o segundo e terceiro ano de vida e está relacionada com o gênero biológico
(VALASHANY; MOHSEN; JANGHORBANI, 2018).
A população transgênera é altamente vulnerável de apresentar transtorno mental de
algum tipo. Além de fazer parte de uma minoria da população, são sujeitos que vão de encontro
à sociedade heteronormativa em que vivemos, na qual homens e mulheres devem se portar
Estudos de Sexualidade 3

estereotipadamente como tais. Dessa forma, são vítimas de discriminação, violência, rejeição
social e laboral. O conjunto de estressores psíquicos, emocionais e sociais, aliado ao não
conformismo com o próprio corpo, aumentam os riscos de transtornos mentais (LINGIARDI
et al., 2017).
Estudos sobre a prevalência de transtornos mentais nessa população são escassos e
controversos, sendo os transtornos afetivos e de ansiedade os mais citados nos estudos
disponíveis (BERGERO-MIGUEL et al., 2016).
Quando comparados à população em geral, muitos indivíduos transgêneros
experimentam uma maior angústia devido à discrepância entre seu gênero e o sexo biológico, 121

causando uma condição de não conformidade e insatisfação com a aparência física e corporal,
especialmente nas mulheres trans (VALASHANY; MOHSEN; JANGHORBANI, 2018).
Almejando readequar a imagem corporal à identidade de gênero vivenciada, os
transexuais buscam serviços que propõem tratamentos hormonioterápicos e cirurgias de
redesignação de gênero. Porém apenas as mudanças físicas são suficientes para que essa
população deixe de estar vulnerável a transtornos mentais? Como promover saúde mental para
populações transexuais antes e após propostas de modificações corporais?

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Verificar os principais transtornos mentais presentes em indivíduos transgêneros com DG antes
e após intervenções como hormonioterapia e cirurgia de redesignação de gênero.
Objetivos específicos
-- Verificar se há diferença entre os transtornos mentais citados antes e após
intervenções como hormonioterapia e cirurgia de redesignação de sexo.
-- Discutir formas de diminuir a incidência de transtornos mentais nessa população
durante o processo transexualizador.

3. METODOLOGIA
Ese estudo trata-se de uma revisão narrativa da literatura, realizado entre os meses de
abril e setembro de 2020, acerca do tema transtornos mentais em transgêneros com DG ao
longo do processo transexualizador.
A revisão da literatura narrativa ou tradicional é uma revisão com uma temática mais
aberta, não exigindo um protocolo rígido para sua confecção. A seleção dos artigos é arbitrária,
provendo o autor de informações sujeitas a viés de seleção com grande interferência da
percepção subjetiva (CORDEIRO et al., 2007).
Foi realizada uma busca em bancos de dados e livros-texto a fim de reunir informações
acerca do tema em questão buscando atingir os objetivos estabelecidos previamente.
Inicialmente, procedeu-se a busca por meio de dos bancos de dados Scientific
Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências
em Saúde (LILACS) e Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE)
utilizando as palavras-chave “transexualidade”, “disforia de gênero” e “transtorno mental”,
bem como suas respectivas traduções na língua inglesa. Procurou-se limitar a pesquisa a artigos
publicados nos últimos cinco anos (2015-2020) em língua portuguesa ou inglesa, porém alguns
artigos mais antigos foram incluídos de acordo com a sua relevância para o assunto.
Procedeu-se à leitura dos títulos e resumos dos artigos encontrados e foram incluídos
artigos que dissertavam sobre o tema proposto e satisfaziam aos objetivos. Foram excluídos os
artigos que apenas citavam o tema ou que não traziam informações relevantes para a proposta
do estudo. Aqueles pertinentes à revisão foram então lidos na íntegra. Em alguns casos, optou-
se por recorrer às fontes primárias citadas nos artigos, que foram lidas e analisadas na íntegra.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Utilizou-se também como referência livros, como os manuais médicos CID-10 e DSM-
5, e os livros-texto Clínica Psiquiátrica do Instituto de Psiquiatria do HCFMUSP, Tratado de
Psiquiatria Clínica, além de publicações do Ministério da Saúde, por trazerem informações
importantes sobre o assunto, permitindo uma exposição mais clara e aprofundada do mesmo.

4. DISCUSSÃO
Disforia de gênero
A imagem corporal pode ser definida como uma experiência psicológica multifacetada,
122
que engloba pensamentos, crenças, sentimentos e aspectos físicos (GRIFT et al., 2016a). A
compreensão atual da natureza multidimensional da imagem corporal inclui o lado emocional,
cognitivo e comportamental da insatisfação com a aparência física (BECKER et al., 2018).
Normalmente os sentimentos em indivíduos com DG são acompanhados de outros,
como angústia, desconforto e insatisfação corporal, de forma persistente, especialmente em
adolescentes no início da puberdade. A preocupação e insatisfação corporal são as situações
com maior impacto nesses casos, sendo a situação mais relacionada com o sentimento de
angústia nesses indivíduos (GRIFT et al., 2016a; BECKER et al., 2018; TURAN et al., 2018).
A angústia frequente está relacionada ao fato de que as características físicas não são
compatíveis com o sexo biológico que o indivíduo deseja, situação que se exacerba na
puberdade. Essa insatisfação possui um papel decisivo no surgimento de problemas
psiquiátricos, como depressão e transtornos alimentares nesses indivíduos (GRIFT et al.,
2016a; BECKER et al., 2018; TURAN et al., 2018).
A angústia e insatisfação relacionadas ao corpo faz com que esses indivíduos busquem
por intervenções médicas, como tratamento hormonal ou cirurgia, para trazer ao corpo a
identificação que têm com o gênero. Poucos são os estudos que avaliam os efeitos de
intervenções de transição nessa população; entretanto, nos estudos encontrados, destacam-se o
tratamento hormonal e cirúrgico na melhoria do bem-estar psicossocial do indivíduo.
Especialmente nos adolescentes, são frequentes sentimentos prejudicados de autoconfiança,
situação que pode continuar após as intervenções, independentemente da idade e dependendo
das diferentes experiências de cada um (BECKER et al., 2018).
Intervenções hormonais no período da transição são frequentes, e também vêm sendo
indicadas nos casos em que é possível a cirurgia. Ao comparar a imagem corporal
multidimensional de 202 adolescentes e adultos submetidos a diferentes intervenções médicas
relacionadas à transição, por meio do questionário de avaliação de imagem corporal, constatou-
se mais insatisfação nos adolescentes que nos adultos. Indivíduos que foram submetidos a
intervenções médicas com hormônios e/ou cirurgias relacionadas à transição apresentaram
melhores escores nas escalas, indicando que essas intervenções são benéficas para a imagem
corporal nessa população (BECKER et al., 2018).
Turan et al., (2018) compararam, por meio de um teste de desconforto corporal, 37
participantes com DG do feminino para o masculino, com um grupo controle (sexo e gênero
feminino). Nesses estudos, o primeiro grupo apresentou maior inquietação corporal e sintomas
psicopatológicos, incluindo os relacionados aos comportamentos alimentares.
Grift et al., (2016a) realizaram um estudo sobre a satisfação corporal em 485 homens e
mulheres trans, por meio da Escala de Imagem Corporal para Transexuais que reflete diferentes
áreas corporais. Nesse estudo, a insatisfação genital mostrou-se inferior a outros fatores que
influenciam mais no reconhecimento social de gênero, como voz, cabelo, muscularidade e
postura, questões que quase não são abordadas nas pesquisas. Estudos como esse indicam que
a complexidade da situação não se encontra apenas no físico, mas também na identidade, e que
outras características corporais socialmente influentes podem ser indicadores para estudar a
insatisfação de indivíduos com DG.
Estudos de Sexualidade 3

É importante ressaltar que, concomitantemente à intervenção hormonal e/ou cirúrgica,


as intervenções adicionais de saúde mental são essenciais para auxiliar na promoção da
aceitação do corpo e na redução no desconforto relacionado à sexualidade. Todas essas
estratégias podem auxiliar o indivíduo a lidar com problemas de imagem corporal durante a
transição, aumentando a autoestima e diminuindo o sofrimento psicossocial (BECKER et al.,
2018).

Saúde mental em indivíduos com DG


Os indivíduos com DG encontram discriminação e preconceitos nos diferentes níveis, 123

tanto organizacional quanto sistêmico. O resultado disso é uma alta taxa de suicídio e
isolamento social nesses grupos. As dificuldades na vida social são responsáveis diretas pelo
desenvolvimento de desordens mentais, principalmente a depressão. Isso inclui diversos
exemplos, como rejeição da família, rejeição em relacionamentos amorosos, perseguição,
assédio, traumas, abusos, vulnerabilidade social, educação precária, entre outros
(VALASHANY; MOHSEN; JANGHORBANI, 2018).
Poucos estudos também avaliam a qualidade de vida em indivíduos com DG. Entre os
poucos encontrados na literatura, a maioria indica claramente uma pior qualidade de vida
comparada à população em geral. Esses resultados são influenciados por fatores
sóciodemográficos, sendo mais negativos em países com forte cultura machista
(VALASHANY; MOHSEN; JANGHORBANI, 2018).
O transtorno de ansiedade também é outra síndrome bastante frequente nesses
indivíduos. Bergero-Miguel et al., (2016) estudaram a prevalência e fatores associados à
ansiedade social em 210 indivíduos com DG (48% mulheres trans e 52% homens trans) por
meio de entrevista. Esse estudo encontrou uma prevalência de 31,4% de transtorno de
ansiedade social. Este foi fortemente correlacionado com idade e depressão. O consumo de
cannabis e pensamentos suicidas foram frequentes nessa amostra, além de relatos de violência
recebida na vida escolar. Este último reflete a necessidade de intervenções nos ambientes
escolares, para assim garantir um ambiente seguro para indivíduos que não se enquadram nos
padrões heteronormativos estabelecidos pela sociedade (BERGERO-MIGUEL et al., 2016).
Os indivíduos dessas minorias sexuais acabam tendo mais sintomas internalizantes do
que indivíduos heterossexuais, sendo isso claramente evidenciado em diversos estudos
incluindo meta-análises. Isso é observado em estudos realizados tanto em ambiente escolar
quanto em estabelecimentos de saúde. Essa situação ocorre em todos os países do mundo, o
que diferencia é a frequência e intensidade com que acontece (BERGERO-MIGUEL et al.,
2016; VALASHANY; MOHSEN; JANGHORBANI, 2018).
Assim, é fato que a minoria sexual, especialmente em indivíduos com DG, está mais
vulnerável a transtornos mentais. Claro que existem as exceções, mas a correlação entre essa
condição e os transtornos mentais é elevada (BERGERO-MIGUEL et al., 2016;
VALASHANY; MOHSEN; JANGHORBANI, 2018).
Lingiardi et al., (2017) analisaram as associações entre características de personalidade
e padrões de apego em 48 adultos com DG. Nesse estudo foram exploradas representações
mentais de apego, traços de personalidade e transtornos de personalidade por meio do SWAP-
200. Os transtornos de personalidade foram encontrados em 16% da amostra. Sinais de
depressão foram encontrados em 32% dos pacientes (LINGIARDI et al., 2017).
Um estudo que relatou a prevalência de saúde mental, dependência de substâncias e
comorbidades de transtornos psiquiátricos, por meio de entrevista de diagnóstico clínico em
uma amostra de 298 indivíduos com DG do gênero feminino em situações de vulnerabilidade,
encontrou resultados desanimadores. Nessa amostra, 41,5% das participantes tinham pelo
menos uma doença mental ou dependência química. Um total de 20,1% apresentava alguma
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

comorbidade. Os autores defendem que melhorar o acesso na atenção primária pode ser uma
ferramenta importante no combate a essa realidade (REISNER et al., 2016).
Por exemplo, nos Estados Unidos a prevalência de depressão em indivíduos com DG
tem uma média de 54,3%, número quase 3 vezes maior do que a prevalência encontrada na
população em geral. Nesses indivíduos, são frequentes planos e tentativas de suicídio ao longo
da vida, além de dependência de substância (REISNER et al., 2016).
Outro ponto que deveria ser maior objeto de estudo é como indivíduos com DG que
não possuem transtornos mentais conseguem manter um bem-estar psíquico, mesmo
124
convivendo com discriminação e rejeição. Bry et al., (2017) avaliaram indivíduos com DG,
sem sinais de depressão ou ansiedade, por meio de entrevistas semiestruturadas. Todos eram
indivíduos que constantemente experimentam discriminação aberta no âmbito familiar, assim
como resiliência constante por meio de níveis não clínicos de sintomas de ansiedade e
depressão. Esse estudo qualitativo revelou que esses jovens tinham apoio externo ao âmbito
familiar, sendo o acompanhamento psicológico essencial para minimizar as situações
discriminatórias, do ponto de vista interno e alcançar metas viáveis, sempre praticando o
autocuidado. Esses achados são animadores; entretanto, ressalta-se que a amostra constituiu de
indivíduos entre 18 e 22 anos de idade. Sabemos que no início da adolescência esse processo
é mais problemático.

Prevalência de transtornos em indivíduos com DG antes e após intervenção


Alguns estudos vêm investigando a saúde mental de indivíduos com DG. A qualidade
de vida é um desfecho buscado nesses estudos. Bry et al. (2017) concluíram que indivíduos
com DG têm menor qualidade de vida física e mental, especialmente os do gênero feminino.
Emprego, educação, local de residência, situação econômica e intervenção terapêutica
influenciam bastantes na qualidade de vida desses indivíduos (VALASHANY; MOHSEN;
JANGHORBANI, 2018).
Um estudo que avaliou a qualidade de vida e também a imagem corporal em 90
indivíduos com DG comparou um grupo sem intervenção de terapia hormonal ou cirurgia, com
outro submetido à terapia hormonal e outro à cirurgia de mudança de sexo. Nesse estudo, os
escores de qualidade de vida e imagem corporal foram significativamente maiores no grupo de
cirurgia. Foi encontrada correlação significativa entre a qualidade de vida e a imagem corporal
nesses indivíduos, sendo a cirurgia de mudança de sexo a mais eficaz na melhoria da imagem
corporal e qualidade de vida de indivíduos com DG (SIMBAR et al., 2018).
Costa et al., (2015) avaliaram problemas de saúde mental em intervalos de seis meses
em 201 adolescentes com DG após acompanhamento psicológico e supressão da puberdade.
Quando comparados os resultados obtidos depois da intervenção com os anteriores, percebeu-
se uma melhoria no estado psicossocial global dos adolescentes com DG. As intervenções se
mostraram eficazes no manejo clínico de dificuldades de funcionamento psicossocial em
adolescentes com DG (COSTA et al., 2015).
Uma pesquisa na Dinamarca comparou a morbidade psiquiátrica antes e depois da
cirurgia de mudança de sexo, por meio dos registros do sistema de saúde mental do país. Foi
encontrada uma diferença de 27,9% antes e 22,1% após a cirurgia. Apesar da diminuição, não
houve diferença estatística antes e após a intervenção; entretanto, verificou-se que apenas uma
parcela reduzida tinha dados sobre a saúde mental registrados antes e depois (SIMONSEN et
al., 2015).
Grift et al., (2016b) avaliaram por dez meses, em um estudo prospectivo, os efeitos da
mastectomia sobre a imagem corporal em indivíduos do sexo feminino com DG. Foram
avaliados aspectos cognitivos, emocionais e comportamentais em 33 indivíduos que se
candidataram à mastectomia. Os achados apontaram que, antes da cirurgia, os participantes
Estudos de Sexualidade 3

relataram atitudes corporais e satisfação menos positivas, uma baixa autoestima e baixa
qualidade de vida relacionada à imagem corporal em comparação com homens e mulheres
cisgêneros. Nesse estudo a mastectomia melhorou principalmente a satisfação corporal. Em
estudos com indivíduos do gênero feminino, também se encontra a insatisfação com as mamas,
apontando que após a cirurgia essa situação melhora. Outro estudo que avaliou a satisfação
corporal antes e depois das mastectomias em 101 homens com DG, mostrou significância
estatística positiva quando comparado o pré-operatório com o pós-operatório (GRIFT et al.,
2018).
125

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A imagem corporal é uma construção complexa que pertence ao físico e características
psicológicas relacionadas à aparência e às normas impostas por uma sociedade
heteronormativa. Nesse contexto, indivíduos com DG estão fortemente vulneráveis. Os poucos
estudos apontam aspectos positivos relacionados a bem-estar, sexualidade e qualidade de vida,
após a intervenção médica, com satisfação corporal sendo encontrada por todos.
Apesar do efeito positivo observado com a intervenção hormonal, a literatura vem
apontando que a cirurgia é a que mais traz benefícios à saúde mental e qualidade de vida.
Entretanto é essencial o desenvolvimento de novas ferramentas de avaliação específicas para
avaliar os efeitos em indivíduos com DG.
A literatura estudada apontou que a morbidade psiquiátrica é maior em indivíduos com
DG quando comparada à população em geral. A pior qualidade de vida e alta prevalência de
transtornos mentais está fortemente relacionado à insatisfação corporal.
Especialmente indivíduos mais jovens, apontam uma maior insatisfação e insegurança
com seus corpos. Situação que melhora com as intervenções hormonais e cirúrgicas.
Estratégias para auxiliar esses indivíduos durante a transição são essenciais para o impacto
positivo na qualidade de vida e saúde mental.
Conclui-se, portanto, a necessidade de acompanhamentos multidisciplinares desses
indivíduos, visto a alta prevalência de sofrimento mental associado a condição. É importante
que cada vez mais centros especializados no processo transexualizador sejam criados e
expandidos. A qualidade de vida e o grau de satisfação dessas pessoas pós intervenções de
redesignação de gênero dependem desse tratamento holístico oferecido pelos múltiplos
profissionais da equipe.
Além disso investir na educação essencial é uma ferramenta importante na diminuição
dos preconceitos e desigualdade, que são os principais fatores de agravo da saúde mental dos
indivíduos trans. Em um país com taxas tão elevadas de transfobia é urgente a criação de
estratégias que coíbam essas atitudes, como educação sexual nas escolas e criminalização de
atitudes discriminatórias, por exemplo.

6. REFERÊNCIAS

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Estudos de Sexualidade 3

Interferências do cinema na construção do “ser mulher”

Gabriela Dalle Cort

127

RESUMO
Partindo da compreensão de que tudo que é dito ou representado como feminino é construído
socialmente, este artigo aborda o papel das mídias, discursos e, principalmente, do cinema
neste constructo. Ao longo do texto é discutido o papel de controle desempenhado pelos
discursos sobre a mulher. Também é abordada a questão de reprodução de estereótipos pelos
filmes e na subjetivação realizada pelos seus espectadores.
Palavras-chave: cinema, mulher, pós-feminismo, subjetivação, estereótipos, reprodução.

ABSTRACT
Assuming that the understanding of everything that is said or represented as feminine is
socially built, this article debates the role of the media, speeches and mainly the cinema in this
construction. Throughout the text, the control role played by discourses about women is
discussed. It is also evaluated the issue of duplication of stereotypes on the cinema, and the
subjectivation carried out by their viewers.
Keywords: cinema, woman, post feminism, subjectivation, stereotypes, reproduction.

1 INTRODUÇÃO
1.1 Construção de um discurso cinematográfico
Quando colocamos o cinema como um construtor de discursos precisamos refletir sobre
a potência das imagens por ele reproduzidas. Imagens constroem empatia através de seu
universo simbólico. Os espectadores então identificam-se com um personagem e encontram
conforto no fato “(...) de que este, o protagonista, na maioria dos casos não morrerá.” (PITTA,
p. 37, 2017).
A ideia dessa identificação afetiva e conforto a partir de uma ‘não morte’, pode ser
ampliada para a criação de um ‘felizes para sempre’. O espectador sentindo então conforto em
acreditar na possibilidade de um final perfeito e não apenas na sobrevivência do personagem.
O que acaba por ser convertido na idealização de encontramos esse final desejado e de
comportamentos semelhantes ou iguais ao do personagem nos levarão a ele.
A linguagem cinematográfica pretende construir um significado (GUBERNIKOFF,
2009). Esse significado produzido a partir da união de som, luz, câmera, imagem, forma de
apresentação (etc.) faz com que o público seja capaz de adentrar na realidade cinematográfica,
tendo a impressão de estar assistindo a realidade e não narrativa criada, uma imagem
manipulada, produzida e dirigida.
O cinema é particularmente propenso a dar essa aparência de “naturalidade” devido às suas qualidades
significantes especificas, em especial pelo fato de que a imagem fílmica, ao fundamentar-se no registro
potencial da fotografia unido a projeção de uma imagem aparentemente móvel, apresenta toda a
aparência de ser “uma mensagem sem código” uma duplicação não mediatizada do mundo real (KUHN,
1991, p. 99 Apud GUBERNIKOFF, 2009, p. 69).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Toda a produção cinematográfica ajuda com que o indivíduo se coloque como parte da
narrativa, identifique-se com ela e dê significado aos símbolos e signos apresentados. A partir
da identificação, o sujeito subjetiva aquela representação conforme sua própria realidade,
aceitando como verdade e realidade discursos proclamados pelos filmes. Dessa forma essas
realidades criadas criam modelos a serem seguidos que acabam afetando a vida real dos
indivíduos, que buscam encaixar-se nelas.
Ou seja, a imagem cinematográfica acaba sendo relevante para a formação ideológica
128 do sujeito e construção social, uma vez que ela produz e reproduz significados semióticos.
(GUBERNIKOFF, 2009). Filmes “[...] inscrevem de maneira nem sempre sutil as marcas
ideológicas da construção de identidade dos indivíduos” (KAMITA, 2017, p. 2).
Ou seja, os filmes certamente também são reprodutores de discursos de gênero e tem
potência para atuarem como mecanismo de controle e opressão dos corpos femininos.
[...] filmes têm ideologias, a forma como constroem gênero e produzem modelos tem por consequência
como jovens mulheres negociam seu lugar na sociedade e vivem a feminilidade, influenciando
diretamente em como elas se vestem, falam, comportam-se e até mesmo na cor com que tingem seus
cabelos – até por que não é em vão que vestidos de bolinha e cabelo azul se tornaram populares na mesma
época do lançamentos desses filmes. Apesar que filmes, como um sistema de representacional de retratar
um “modo de ver” a realidade social que pode parecer natural, eles de fato são um produto da estrutura
de poder patriarcal, que o motivo pelo qual sempre devemos adotar uma suspeita quando decodificamos
o (sempre já com gênero) significado que eles carregam (Thornham, 1999, p. 10) (RODRIGUEZ, 2007,
p. 172). Tradução pela autora.

A mulher contemporânea procura se encaixar nas representações projetadas pelos


filmes sobre ela. As representações sendo modelos para transformações de comportamentos e
atitudes (GUBERNIKOFF, 2009).
Mais um ponto muito relevante quando o contexto é a questão da produção de imagens
da mulher, a produção cinematográfica sempre foi e ainda é, um universo predominantemente
dominado por homens. Ou seja, no cinema, temos mais uma vez discursos sobre a mulher
produzidos por homens.
“Estudos desenvolvidos nas últimas décadas, como os de Kaplan (1995) e Geada (1895)
evidenciam as relações mantidas entre transformações sociais e as representações feitas da
mulher pelo cinema, sem deixar de evidenciar a prevalência de uma visão patriarcal nessas
produções” (SIQUEIRA, p. 132, 2006).
Ainda se percebe um momento em que filmes produzidos com intuito de irem contra o
modelo feminino já bastante popularizado, recebem menos divulgação do que aqueles
produzidos seguindo o modelo de submissão feminina: “Quando o filme representa a mulher
de acordo com discurso sobre seu papel recebe maior divulgação, enquanto quando apresenta
algo diferente não tem a mesma visibilidade” (KAMITA, 2017, p. 2)
Na disputa pelo espaço, conforme Wilson (1991) e Saegert (1980), as mulheres cabe o espaço periférico
enquanto aos homens tocam os espaços mais centrais, as zonas industriais e as áreas comerciais. A figura
feminina é vista como um espaço vazio. Nas práticas comerciais, as mulheres devem ser preenchidas
pelo consumo, posicionando-se no discurso apenas como compradoras. Como espaços de reprodução
biológica, os corpos femininos são represados como vazios, necessitando de cuidados enquanto
aguardam o preenchimento pela maternidade. Nas relações afetivas, a mulher deve ser guardada no
interior da casa e o seu papel é o do bem estar masculino (VIEIRA, 2005, pp. 5-6).

Outro ponto fundamental para se compreender o domínio do cinema sobre a construção


de um ideal do feminino é a utilização de recursos como a fotografia, que pode escolher captar
os melhores ângulos das atrizes: “(...) eliminar rugas e toda a transgressão a beleza. A
iluminação deve distribuir sombras e luz sobre o rosto de acordo com as exigências de uma
beleza ideal” (GUBERNIKOFF, 2009, p. 71) Beleza ideal e inalcançável, diga-se de passagem.
Estudos de Sexualidade 3
O cinema dominante envolve a espectadora feminina, que é orientada em seu desejo em direção a uma
ordem social e a uma posição do significado dentro da imagem. Representada como o próprio local da
sexualidade, objeto fetichizado, o cinema especifica a mulher nessa ordem a partir do qual se cria a
identificação (GUBERNIKOFF, 2009, p. 72).

Não podemos ignorar que não só as idealizações que aparecem na tela que estão sendo
disseminadas pelos filmes, mas também um ‘por trás das telas’, como por exemplo os atores e
atrizes.
A partir da década de 20, já se identifica no star system a intenção de capitalização
129
presente na indústria cinematográfica. No Star System atrela-se a potencial mercantil nos
atores. “A estrela não só representava uma personagem, no sentido de interpretar, mas também
personificava a melhor maneira que um indivíduo pode tomar diante dos problemas da vida”
(GUBERNIKOFF, 2009, p. 73).
E com isso o estilo de vida das estrelas passa a ser o desejo e venerado por grande parte
das pessoas. Vidas e pessoas que na verdade muitas vezes são montados, são colocados como
naturais e passam a ser invejados pelo público.

1.2 O discurso e a mídia


Em A história da sexualidade: vontade de saber, Foucault, 2019 discorre sobre como
ao longo da história o discurso sobre sexualidade é permeado com relações de poder. O autor
sugere um dominador e um dominado, sendo próprio discurso e conhecimento como forma de
controle, além de defender uma multiplicidade de discursos.
Levando em conta a realidade contemporânea, é necessário que seja pensado nas
possibilidades de um discurso que vai além daquele falado ou lido e em toda a cadeia de
produção envolvida. Um discurso produzido/reproduzido pelas novas tecnologias.
Essa mudança nos meios de comunicação, logicamente, promoveu alterações também na forma de
inserção do indivíduo na sociedade. A cultura de massa pôs em contato distintos extratos sociais através
da circulação de artefatos jornalísticos, cinematográficos, radiofônicos, etc. antes materialmente
atravancada por exemplo (MARTÍN-BARBEIRO, 2015, p. 67) de circulação mais restrita (BEZERRA,
COSTA, BARRETO, 2019, p. 155).

“[...] discursos constituem práticas sociais determinadas pelo contexto sócio-histórico


e que influem, de forma complexa, na constituição da identidade do sujeito” (SIQUEIRA,
2006, p. 128).
Junto ao advento das novas tecnologias de comunicação (iniciando com o surgimento
da imprensa com Gutenberg e indo além da internet) também temos como pontos relevantes a
globalização e a expansão do capitalismo como principal meio de consumo e produção. Com
a premissa desse sistema como lema, ou seja, tendo o lucro como objetivo, tanto as
manifestações midiáticas como artísticas passam a ser reféns do meio, que quando ligado a
elas passamos a chamar de indústria cultural.
Industria cultural é o termo que se refere a cultura/ arte, produzida de maneira massiva
e seguindo um modo de produção capitalista, onde vira um bem de consumo. Esses meios de
comunicação massivos acabam vindo a ser formas de controlar as grandes massas, seja
vendendo um produto ou uma ideia (BEZERRA, COSTA, BARRETO, 2019).
E com sua capacidade controle altera a subjetividade do indivíduo “Aspectos da vida
pessoal dos indivíduos são influenciados pelos discursos da mídia, que integram os sistemas
de poder da sociedade” (SIQUEIRA, 2006, p. 129).
Propagandas são exemplos desse tipo de produção, que tem como objetivo vender algo.
Mas filmes, livros, séries e tudo aquilo que pode ser considerado como cultura, representação
dela, ou forma de manifestação artística também estão inseridos nessa cadeia de produção. A
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

indústria cultural, além de vender produtos vende ideias, objetivos, sonhos e até mesmo um
estilo de vida – como no caso do American whey of life.
Para Canclini (1983, p. 89), com o desenvolvimento e sistematização do estranhamento frente ao que
represente o novo, inclusive no campo sensorial, “a padronização mercantil nos treina para viver em
regimes totalitários, no seu sentido mais literal de oposição aos regimes mais democráticos, ao suprimir
o plural e obrigar que tudo fique submerso numa totalidade uniformizada”. Assim, como a promoção
estereotipia, perde-se a ideia identificada por Martín- Barbeiro (2015, p. 79) de que “o estranhamento da
arte é a condição básica de sua autonomia” (BEZERRA, COSTA, BARRETO, 2019. p. 151).

130
Tarkovski fala um pouco sobre o local ambíguo do cinema nessa cadeia de produção:
A posição cinematográfica ambígua do cinema, situado entre a arte e a indústria, explica muitas das
anomalias nas relações entre autor e público. [...] o seu valor estético é determinado pelas leias de oferta
e procura – por leis de mercado. É preciso lembrar que nenhuma outra arte esteve tão sujeita a critérios
desse tipo (TARKOVSKI, 2010, p. 197).

1.3 Subjetivação do cinema.


Desde o início da Idade Moderna, com a invenção da imprensa, a mídia passa a ter influência sobre a
configuração social dos indivíduos; mas, é na sociedade contemporânea, com as novas tecnologias de
comunicação, que essa influência se faz mais marcante. O cinema se estabelece no século XX como
influente veículo de intercambio simbólico, gerando significados aos quais tem acesso uma pluralidade
de destinatários (SIQUEIRA, p. 132, 2006).
É importante considerar que existem manifestações artísticas que se opõem a indústria
e outras que ainda se manifestam contra seus preceitos. Também é preciso considerar na leitura
do espectador do produto:
[...] o leitor irá “ler” e “ver” somente aquilo para que foi preparado pela sua – e só sua – experiência,
pela conformidade do seu caráter, já que estas formaram as predileções idiossincrasias de gosto que se
tornaram parte dele. Nem mesmo as passagens em prosa mais naturalistas e detalhadas permanecem sob
o controle do artista: aconteça o que acontecer, o leitor irá percebê-las de maneira subjetiva
(TARKOVISKI, p. 211, 2010).

Ou seja, os discursos reproduzidos previamente interferem na concepção, compreensão


e subjetivação do discurso cinematográfico/artístico.
“[...] o que somos e quem somos é o resultado do relacionamento entre o “self e o
outro”; consequentemente, subjetividade implica intersubjetividade” (VIEIRA, 2005, p. 4 de
15).
O papel do espectador: “De um lado se situa a obra – instituidora de sentido – e do
outro o indivíduo, historicamente situado, que é ao mesmo tempo sujeito e objeto do discurso”
(SIQUEIRA, 2006, p. 131). Ou seja, o sujeito subjetiva a obra e seu contexto e história influem
nesse processo. “[...] os sujeitos, mediados por sua atividade afetiva, perceptiva e intelectual,
dão sentido às suas experiencias e à forma como se concebem (SIQUEIRA, 2006, p. 132).

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Analisar a interferência do cinema na construção subjetiva do que é considerado “ser mulher”.
Objetivos específicos
Abordar diferentes discursos sobre a mulher e seus impactos.
Refletir sobre a construção histórica da mulher.
Obter uma melhor compreensão do papel da mídia nos discursos sobre a mulher.
Discutir os diferentes estereótipos de mulher representados pelo cinema.
Discorrer sobre os principais impactos das representações cinematográficas na vida da
mulher moderna.
Estudos de Sexualidade 3

3. METODOLOGIA
Artigo construindo a partir de revisão bibliográfica narrativa.
A pesquisa para coleta de materiais científicos foi realizada no período de março a abril de
2020 usando a plataforma scholar google. As palavras chaves utilizadas estão apresentadas na
tabela abaixo, junto com os seus resultados numéricos. Foram analisados os artigos contidos
nas primeiras 5 páginas de resultados de cada uma das pesquisas.
Tabela de resultados da pesquisa por palavra/palavras-chave:
Palavra-chave buscada Quantidade de Quantidade de Selecionados Selecionados
resultados* resultados* pelo título para leitura 131
busca geral busca a partir
de 2016
Mulher como construção 283.000 41.600 10 4
social
Construção social 37.800 14.300 5 3
masculino e feminino
Women social 4.080.000 231.000 5 1
construction
Female social 3.500.000 199.00 6 2
construction
Gender roles 3.890.000 475.000 4 1
Indústria cultura 668.000 53.600 6 3
Industria cultura e 54.700 19.800 7 2
cinema
Cinema e gênero 16.200 - 8 3
Mulher no cinema 89.200 23.100 8 4
Audiovisual sexualidade 16.100 9.610 3 1
e gênero
Sexualidade e gênero no 17.100 - 4 2
cinema
(*Resultados aproximados)
Para seleção dos artigos a serem lidos foi utilizado os seguintes critérios, organizados
aqui por ordem de prioridade:
1. Título – que contivesse as palavras-chave usadas na pesquisa (apontadas na tabela acima)
com associação aos conteúdos a serem estudados e parecessem relevantes para a construção
do artigo.
2. Leitura dos resumos, seguindo o mesmo critério dos títulos.
3. Autoria – foi dada prioridade para artigos de autores que tivessem formação, ou realizassem
pesquisas nas áreas de cinema, antropologia ou psicologia – foi visualizado o mini currículo
disponível nas publicações.
4. Leitura das introduções – voltou a ser usado o critério do item 1.
5. Relevância do conteúdo e possível comunicação de um conteúdo com o de outro(s) artigo(s).
No total foram elencados 63 artigos usando o critério de escolha por interesse no título
– primeiro critério. Destes 63, 26 artigos foram escolhidos para leitura completa ou parcial
usando os seguintes critérios. Dentre os 26, diversos artigos acabaram descartados por falta de
fontes, ou fontes incompletas.
Durante o processo de confecção do artigo, remanesceram 7 artigos advindos desta
primeira pesquisa. Os demais textos – livros e artigos – que fazem efetivamente parte das
referências bibliográficas do artigo, são de autores clássicos, ou fruto de indicações.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Discurso do feminino, história e construção identitária.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2016, p. 11).


Os discursos sobre a mulher e o feminino foram construídos por diversas fontes ao
longo da história. No texto, A construção histórica do corpo feminino, de Ana Marie Colling
(2015) propõem exatamente essa questão, da concepção do feminino como um “efeito
histórico” e propõe a invenção da feminilidade – assim como da masculinidade – partindo
acima de tudo de um contexto de imposição masculina e estabelecendo relações de poder e
com caráter pedagógico.
A autora usa os conceitos de Foucault e Derrida de genealogia e desconstrução, para
132
explicar essa maleabilidade do discurso. Sendo que a genealogia de Foucault aponta a
constância de transformação de conceitos. A possibilidade do ser e de deixar de ser. E a
desconstrução de Derrida percebe as possibilidades de conflitos e contradições que permitem
que o discurso seja modificado e a decomposto.
No discurso de grandes filósofos gregos o útero é colocado como centro identitário
feminino, sendo ele “um animal raivoso” e dando a mulher uma ideia de controlada por
instintos uterinos, que precisam ser saciados pelos parceiros ou pela gravidez. Também nesse
contexto já aparece a ideia de inferioridade da mulher, que precisaria ser completa por um
homem e seria fisicamente inferior a eles. A menstruação vista como uma catarse necessária
por conta da impureza feminina (COLLING, 2015).
Na religião a mulher aparece como responsável pelo pecado original, Eva que tenta
Adão e faz com que todos sejam expulsos do paraíso, sendo então condenada por Deus a sentir
a dor do parto e ser dominada pelo marido. Outra representação religiosa da mulher é Maria, a
virgem grávida, reafirmando a importância da maternidade e santidade da virgindade
(COLLING, 2015).
Já o discurso médico também inferioriza a mulher, cujos órgãos sexuais seriam opostos
aos masculinos, porém não tiveram calor necessário para descer. Nessa concepção voltamos a
ver a ideia de um útero que errante que domina as reações femininas “um animal faminto que
só descansa quando a mulher está grávida”. Visão que a psiquiatria também usa ao estudar a
histeria, configurada como “doença mental feminina” (COLLING, 2015).
“Esta sujeição da mulher ao seu sexo transforma-se em submissão necessária ao homem. É um discurso
simbólico que desempenha a função de justificar a supremacia do homem aos olhos de todos os membros
da sociedade, das mulheres e dos homens, transformando o homem na medida de todas as coisas. O
pensamento médico, em nome de um determinismo natural confina a feminilidade em uma esfera que a
ordem social lhe destina: a mulher sã e feliz é a mãe de família guardiã das virtudes e dos valores”
(COLLING, 2015, p. 193).

Ou seja, a ideia disseminada sobre a mulher foi construída por homens, com caráter de
inferiorização do feminino, seja biológica ou psicologicamente. Ao longo dos discursos
apontados percebemos como a mulher aparece controlada, ou tendo necessidade de ser
controlada, pois o útero teria um poder sobre as ações femininas que tornariam a mulher um
ser “amoral” e a sexualidade feminina precisaria ser reprimida. Fomenta-se a ideia de que o
homem precisa reprimir a mulher e ela sujeitar-se ao seu domínio.
Beauvoir aponta também que toda a história das mulheres é construída por homens e
como sempre esteve na mão deles resolver o papel feminino em pró de suas próprias
necessidades (BEAUVOIR, 2016).
A autora ainda discorre sobre o lugar dubio e incerto em que a mulher vai se
estabelecendo com a modernidade, onde elas acabam precisando conciliar o ofício com a vida
doméstica.
O fato que determina a condição atual da mulher é a sobrevivência obstinada, na civilização nova que se
vai esboçando, das tradições mais antigas. É o que não percebem os observadores apressados que
estimam ser a mulher inferior às possibilidades que lhes são oferecidas., ou que só veem nessas
possibilidades tentações perigosas (BEAUVOIR, 2016, p. 194).
Estudos de Sexualidade 3

No pós-feminismo se defende que a mulher seja livre para ela mesma reconhecer sua
feminilidade e poder, tenha o poder de escolha para ser quem quiser, como quiser. Porém
acabam sendo criadas maneiras de se controlar os corpos femininos, maneiras mais sutis, que
fazem com que as mulheres pensem estar tomando uma escolha, quando são na verdade
orientadas a essa escolha.
No discurso popular são as mulheres que são levadas de uma autoadministração para uma autodisciplina;
em uma extensão muito maior do que a dos homens, mulheres tornam-se vítimas de «uma nova e sem
precedente disciplina do corpo» desenvolvida para a produzir «corpos dóceis» – e que é apresentada 133
como sua escolha pessoal – ao mesmo tempo, a pressão social moldando essa particular construção do
corpo feminino é virtualmente esquecida (Bartky, 1990, p. 63; RODRIGUEZ, 2007, p. 1840). Tradução
da autora.

Na contemporaneidade dialogamos com uma quantidade imensa de culturas, e


informações de diversos lugares do mundo. Isso acaba por interferir na construção do self e
causa uma fragmentação do sujeito, principalmente ao diminuirmos a interação social e a
substituindo por meios de comunicações tecnológicos (VIERA, 2005).
Essa alteração global não é apenas um fenômeno externo ao contrário, influência aspectos de intimidade
dos sujeitos, modificando vidas e o modo de ser de cada um deles. Em consequência, as relações transformam-se
em sua essência, trazendo dificuldades para a definição em geral e, em particular, para o gênero feminino [...]
(VIEIRA, 2005, p. 2 de 15).
O nosso fácil acesso à tecnologia que abre espaço para uma multiplicidade de discursos,
não só sobre o feminino, ou sobre a mulher, mas, de uma forma geral, sobre basicamente
qualquer coisa. Temos um acesso gigante a informação e isso muda não só a forma como
construímos nossa identidade, mas também incluímos novas maneiras de diálogo e de
construções de discursos. A relação com aquilo que nos afeta é transformada.
Encontramos em diferentes formas de discursos, modelos a serem seguidos pelo sexo
feminino, ditando aquilo que se considera o padrão e aquilo que está fora da curva e, por
consequência não é desejado. Padrões que ainda são ditados por uma sociedade patriarcal
dominadora.
Uma vez que as mulheres estão sujeitas aos estreitos limites da feminilidade, para além dos quais se
encontra o domínio da masculinidade, as suas estratégias identitárias revelam uma cuidadosa “gestão”
do comportamento e da imagem que transmitem de si próprias, configurando uma identidade que é mais
um modelo de estar do que modelo de ser da identidade masculina (AMÂNCIO, 1993, p. 136).

Estereótipos e arquétipos. Como a mulher é representada pelo cinema.


[...] a noção de arquétipo por serem matrizes das imagens. Os arquétipos nessa perspectiva teórica, são
as imagens primeiras (fundamentais) de caráter coletivo e inato. O estado preliminar, a zona matriarcal
da ideia. (JUNG, 2003). Constituem o ponto de junção entre o imaginário e os processos racionais.
Exemplos: Imagens universais do chefe, do alto; da mãe do colo, do alimento (PITTA, p. 30, 2017).

No cinema percebemos o uso de arquétipos, nesta perspectiva colocados como


personagens com mesmas características que acabam repetindo-se em diferentes filmes e estão
presentes:
“[...] em nível simbólico das imagens, contextualmente contextualizadas. Através da obra de Gilbert
Durant, pode-se observar a lógica simbólica em ação tanto nos filmes como nos seriados. Series e
novelas, percebe-se, devem seu sucesso à força da redundância das imagens à familiaridade, à sensação
de segurança (imaginário transcendental), à distração do próprio cotidiano” (PITTA, 2017, p. 28).
Filmes refletem e deturpam a estrutura social da realidade, na maioria das vezes acordando com as
fantasia e medos predominantemente dos escritores e diretores homens, criando estereótipos que excitam
a imaginação do espectador masculino enquanto limitam as aspirações das mulheres e sancionam
determinadas formas de comportamento, não necessariamente encorajando a independência, inteligência
ou ambição. Crucialmente, como Simone de Beauvoir (1949) aponta a mais de 50 anos atrás, mulheres
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
são sempre determinadas e diferenciadas em relação a um homem e não pelo que ela é por ela mesma
(p. 29) (RODRIGUEZ, p. 172, 2007). Tradução da autora.

A construções dos arquétipos/personagens femininos costumam estereotipar as


mulheres, assim como todo o universo feminino, geralmente colocando a mulher em uma
posição onde sua felicidade depende de uma figura masculina, seja precisando do amor ou
aprovação deste homem ou dele para cumprir um sonho de ser mãe. Esta representação de
como a mulher no filme encontra a felicidade, acaba se tornando familiar e virando um lugar
134 seguro, um sonho seguro que acaba sendo sonhado e desejado pela população.
Diversos estereótipos nos são apresentados e internalizados por meio dos filmes.
Alguns bem conhecidos são: “[...] a jovem inocente, a vamp, a prostituta e a divina”
(GUBERNIKOFF, 2009, p. 73). A mãe, e a preceptora, também facilmente entrando na lista,
assim como a patricinha.
Os filmes hollywoodianos foram particularmente eficientes na construção de mocinhas ingênuas e
mulheres fatais, de heróis corajosos e vilões corruptos e devassos. A escolha de atores e atrizes, roteiros
cenário, música, guarda-roupa, recursos e iluminação, som, cortes e tomadas, enfim toda a parafernália
da linguagem cinematográfica era mobilizada para representar tais posições, para dirigir o olhar,
construir simpatias e repúdios (LOURO, 2008, p. 83).

Ou seja, toda a linguagem cinematográfica, propicia com que nos identifiquemos com
esse ou aquele personagem/estereótipo, nos vendendo a ideia estereotipada de com o que
devemos ter criar uma relação empática, nos identificar e simpatizar – já que são esses os
personagens que terão seu felizes para sempre. Assim como também nos apresentam versões
estereotipadas daquilo que queremos evitar, comportamentos ou padrões que supostamente não
nos levarão a felicidade.
Afirma-se que o cultural é uma de intervenção ideológica, e se a imagem representada da mulher é uma
imagem estereotipada, pode-se dizer que a construção social da mulher, aquela trabalha em diferentes
mídias (seja por revistas anúncios, seja por cinema televisão) é baseada em critérios preestabelecidos
socialmente e impõe uma imagem idealizada da mulher (LAURETIS, 1978, p. 28). Esses estereótipos
impostos à imagem da mulher funcionam como uma forma de opressão, pois transformam a mulher em
objeto, nulificando-a como sujeito e recalcando o seu papel social (GUBERNIKOFF, 2009, p. 66).

Nessa visão de estereótipos, também percebemos que ocorre o movimento de que caso
a mulher saia do seu papel social (dependente de um personagem masculino) ela irá; ou voltar
para seu parceiro, ou ser castigada (GUBERNIKOFF, 2009). A representação da mulher fora
dos padrões acaba não só não encontrando o seu final feliz como também sendo punida por
estar tendo atitudes não culturalmente já definidas como femininas e aceitáveis.
O cinema de matiz comercial enfatiza o papel normativo da mulher na sociedade e, consequentemente,
manipula um sistema de punição aquelas que negligenciam essa postura a ser adotada. Nesse sentido, o
cinema tem contribuído diretamente com um modelo de sociedade tradicionalista institucionalizando um
modo de representação da mulher (KAMITA, 2017, p. 3).

Um estereótipo contemporâneo
Um arquétipo muito interessante, pertencente ao mundo contemporâneo, e defendido
por Rodríguez, 2007, como a encarnação do emaranhado dual do lugar da mulher na era pós-
feminista é o da Manic Pixie Dream Girl (MPDG).
A MPDG é a quase a perfeita encarnação das contradições da ideologia pós-feminista, sendo capaz de
torna-se os dois extremos: ela empreende a máscara pós-feminista com sua hiper feminilidade e meiga
vulnerabilidade, enquanto suas relações com homens caem no reino da garota que venera o pênis,
particularmente no modo como ela concebe sexo como atividade recreativa e não necessariamente busca
uma relação romântica (RODRIGUEZ, p. 188, 2007). Tradução da autora.
Estudos de Sexualidade 3

O termo Manic Pixie Dream Girl, surge com o crítico de cinema Nathan Rabin “para
descrever um novo tipo de personagem feminina como «aquela borbulhante e rasa criatura que
existe solenemente na imaginação de escritores e diretores sensíveis para ensinar jovem
homens melancólicos a abraçar a vida e sua infinitude de mistérios e aventuras»”
(RODRIGUEZ, p. 169, 2007 – tradução pela autora). Sendo que segundo Rodriguez, 2007, a
presença do estereótipo da MPDG está mais difundido e identificável em filmes do estilo indie.
Decompondo o termo MPDG teríamos algo no sentido: Manic – tradução: maníaca –
referindo-se a uma mulher um tanto problemática, desequilibrada, ou até mesmo com doenças
mentais de algum tipo; um ser misterioso e fantasioso (pixie, um tipo de fada) irreal (dream – 135

tradução: sonho), feminino e ingênuo (girl – tradução: menina) (RODRIGUES, 2007).


[...] caracterizada como um espírito livre, espontânea e cheia de vida, tem seu único propósito dentro da
narrativa dramática do filme inspirar a criatividade e paixão do frágil e inseguro protagonista masculino,
assim perpetuando o mito das mulheres como musas e cuidadoras em vez de entidades independentes
com uma vida e sonhos próprios. Para que o protagonista masculino reconquiste um senso de
masculinidade e reafirme seu ego, devem ser também imperfeitas e «bagunçadas o suficiente para
precisarem ser salvas, assim o impotente cara pode fazer algo heroico no terceiro ato» (Matteson, 2013;
RODRIGUES, p. 169, 2007). Tradução da autora.

A personagem da MPDG acaba sendo uma versão contemporânea da nutridora e musa.


Esse estereótipo servindo a propósitos patriarcais já que percebemos ele como uma ferramenta
para que o personagem protagonista masculino alcance aquilo que almeja. (RODRIGUES,
2007)
[...] o estereótipo que coloca as mulheres como meras ferramentas cujo objetivo era fazer a vida dos
homens melhor tem diferentes variações ao longo da história, como as herdeiras malucas das comedias
dos anos trinta, ou a garota da porta ao lado que interpreta a contraparte de femme fatale nos filmes noir
(RODRIGUES, p. 171, 2007). Tradução pela autora.

O que deixa a reflexão de que mesmo na era pós-feminista e com toda a luta das
mulheres por igualdade, existe uma dificuldade em se criar e fazer a manutenção de arquétipos
de uma mulher que seja de fato livre da influência masculina e feliz. A representação feminina
ainda aparece muito sujeita ao masculino e o mercado por trás das produções é resistente em
quebrar esse padrão e apresentar a mulher fora daquilo que continua a ser ensinado como o
esperado de uma mulher.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletindo sobre os diferentes discursos sobre a mulher ao longo da história, podemos
perceber uma grande interferência do contexto nesses discursos – principalmente levando em
conta seu caráter de domínio e de uma sociedade predominantemente patriarcal.
Com seu advento as tecnologias de comunicação e entretenimento passam a ser reprodutoras
desses discursos já estabelecidos pela sociedade, atuando como um mecanismo de controle
social.
Os filmes nos apresentam realidades fabricadas, como se fossem verdades.
Reproduzindo os discursos socialmente aceitos, eles passam a desempenhar um papel
pedagógico através dessas imagens manipuladas da realidade. Acabam ensinando aquilo que é
certo ou errado, o que irá nos levar a um “felizes para sempre” ou a algum tipo de punição
indesejada, interferindo na subjetividade do indivíduo.
Aliado à nossa capacidade imagética, o cinema colabora com a perpetuação de
estereótipos da mulher. A sétima arte interfere na forma como as próprias mulheres enxergam
sua feminilidade, e é criado um ideal do que seria esperado de uma mulher – um ideal que vai
desde um tipo de corpo, até comportamentos, forma de falar, sonhos, expectativas, roupas, tudo
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

que é dito feminino. Esses ideais colocam uma expectativa social de um ser mulher irreal –
fabricado – e causa diversas angústias nas mulheres reais ao não atingir essas expectativas.
A partir das imagens manipuladas do corpo feminino muitas mulheres passam a fazer
dietas restritivas, ou se submetendo a intervenções cirúrgicas e estéticas buscando corpos
semelhantes aos expostos na tela. Algumas mudam comportamentos para se aproximarem do
ideal e serem aceitas por um “par perfeito”, entre outros sacrifícios realizados por elas, tudo
em busca da ideia vendida a elas pelos filmes do que é a felicidade da mulher. A frustação é
quase certa, uma vez que a imagem reproduzida não compete com a realidade.
136
Podemos ter consciência dessa reprodução estereotipada e que existem filmes que
buscam mostrar outras realidades, porém as produções mais difundidas ao grande público – e
aceitas pelo mesmo – ainda são aquelas em que a mulher se encontra em um papel dependente
de uma figura masculina, onde seus sonhos e aspirações continuam muito ligadas ao papel de
mãe e esposa ou encontrar seu par romântico. A mulher ainda é colocada em um papel de
subserviência, servindo a propósitos reprodutivos ou aparecendo como objeto de desejo
masculino, tendo sua felicidade dependente deles de alguma forma.
Considerando o cinema como histórico e reprodutor de discursos sociais, concluímos
que existe a necessidade de uma “atualização” dos personagens femininos mais pertinente à
realidade contextual contemporânea. Ao assistimos os blockbusters mais atuais percebemos
um movimento – pequeno, mas existente – de inclusão. Temos algumas produções com
“mulheres fortes” e encontramos mais representatividade da população LGBTQI+, porém
ainda é um movimento sutil e que precisaria ser ampliado.
A representação cinematográfica nos faz sonhar e viajar em diferentes contextos e
realidades, porém ainda é bastante falha em representar a mulher real e essa representação é de
fato muito importante para a construção do “ser mulher”, da vivência da feminilidade pela
mulher e da aceitação da mulher não estereotipada pela sociedade.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMÂNCIO, L. Género – Representações e Identidades. Sociologia – problemas e práticas. N.14, pp.127-140,
1993. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/909/1/8.pdf . Acesso em 21 mai
2020.
BEZERRA, B.H.N; COSTA, J.H; BARRETO, M.C.R. Quando o Mercado encontra a Arte: o conceito de
indústria cultural. Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v. 3, n. 9, pp. 147-
158, 2019. Disponível em:
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/SocUrbs%20V3N9%202019%20C11%20Artigo%20B
ERG%20COSTA%20BARRETO.pdf . Acesso em 21 fev 2020.
BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. 3ª edição. Rio de janeiro. Nova Fronteira, 2016.
BEAUVOIR, S. O segundo sexo: a experiência vivida. 3ª edição. Rio de janeiro. Nova Fronteira, 2016.
COLLING, A.M. A construção histórica do corpo feminino. Caderno espaço feminino. V. 28, n. 2, pp.180-200,
2015. Disponível em: http://200.19.146.79/index.php/neguem/article/view/34170 . Acesso em 21 mai
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Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

138
Estudos de Sexualidade 3

COMBATE AO ASSÉDIO: A CHAVE PARA O DESENVOLVIMENTO DA


CARREIRA FEMININA

Gláucia Camila De Marco

139

RESUMO
O assédio moral e sexual dentro das organizações têm sido um obstáculo para o
desenvolvimento de carreira feminina, principalmente por serem confundidos com
competência que culturalmente atribuímos aos gêneros. Diante disso, as organizações que
pretendem estar atualizadas, nos âmbitos tecnológicos e sociais, precisam desenvolver
práticas preventivas, aprendizado coletivo e – muito importante, porém pouco desenvolvido
– suporte às vítimas.
Palavras-chave: liderança feminina, assédio moral, assédio sexual.
ABSTRACT
Moral and sexual harassment within organizations has been an obstacle to the development
of women's careers, mainly because they are confused with competence that we culturally
attribute to genders. Therefore, organizations that intend to be up-to-date, in the technological
and social spheres, need to develop preventive practices, collective learning and - very
important, but little developed - support for victims.
Keywords: female leadership, moral harassment, sexual harassment.
1. INTRODUÇÃO
Nos dias de hoje, as empresas tentam se enquadrar nas novas necessidades de mercado,
sendo elas tecnológicas ou sociais. Procuram estar dentro das novas práticas de inclusão e
diversidade, mas sem perderem a visão de se ampliarem, conquistarem novos clientes e terem
funcionários competentes. Para obterem sucesso dentro de todas essas novas necessidades
“liderança” é o tema de maior importância nos tempos atuais.
O líder tem uma função primordial nas empresas, o seu desempenho nos processos
representa a eficácia do grupo, pois uma empresa que tem carência de liderança, tem poucas
oportunidades de sobrevivência no mercado (NASCIMENTO, 2018).
E é neste ambiente organizacional competitivo e exigente que a mulher busca inserir-
se ao longo dos anos. Embora seja inegável, a evolução da mulher no mercado de trabalho,
desde o início, ela tem enfrentado os desafios inerentes dos cargos que assume, mas também
tem enfrentado os desafios de ser aceita e reconhecida como líder e gestora com as mesmas
prerrogativas de líderes e gestores masculinos (SOUZA, 2016).
Hoje as mulheres possuem um perfil muito diferente das mulheres de décadas passadas, apresentando
um perfil atual forte no que diz respeito a conduzir suas ações, lutar pela sua liberdade e melhores
condições de vida e trabalho, não perdendo a sua criatividade e feminilidade por se tornar
multifuncional. Apesar das muitas conquistas ainda existem desafios que a mulher necessita enfrentar,
para estabelecer uma igualdade no ambiente organizacional (MORANDI, 2017, p. 41).
Durante toda minha vivência no departamento de recursos humanos de algumas
organizações, sempre identifiquei a existência de políticas de oportunidades para o
crescimento profissional de mulheres, mas pouco se tinha e fazia para que o ambiente fosse
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

saudável para este crescimento. Sendo inevitável observar junto ao crescimento de


oportunidades, o crescimento da violência de gênero, assédio moral e sexual. Espero que este
estudo desperte o interesse daqueles que buscam transformar os ambientes organizacionais
em ambientes mais saudáveis, mais humanos e que evitem a degradação feminina frente às
suas potencialidades.
2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Estudar e compreender a reprodução da violência de gênero pelas vias de assédio moral e
140
sexual nas empresas por meio de uma discussão de oportunidades ao desenvolvimento de
carreira feminina.
Objetivos específicos
a. Caracterizar a ocorrência de assédio moral e sexual contra mulheres no ambiente de
trabalho.
b. Analisar a cultura de gênero no ambiente organizacional como fator agravante do
assédio moral e sexual contra mulheres.
c. Descrever os planos e práticas organizacionais para combater a o assédio moral e
sexual.

3. METODOLOGIA
Este artigo foi desenvolvido como revisão de literatura narrativa1, tendo como base os
artigos pesquisados no Google Acadêmico e Scielo.
Inicialmente, a pesquisa foi feita dentro da temática de assédio moral e sexual nas
organizações, juntamente a diversidade de gênero. Foram escolhidos, no total, 35 artigos entre
2010 a 2020 e, 1 (um) artigo de 2001. Porém, ao longo do desenvolvimento do artigo, decidi
focar na temática feminina, usando assim, como base 16 artigos8.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados obtidos com este estudo nos alertam sobre a importância de pensarmos
em políticas de suporte para as mulheres vítimas de assédio moral e sexual, já que muitas
empresas se mostram preocupadas apenas com políticas de prevenção.
Por toda nossa história, vemos mulheres que de alguma forma já trabalhavam para
ajudar no sustento de suas famílias. Desde a ajuda na agricultura familiar, bordados e costura,
mas nunca foram reconhecidas além dos afazeres domésticos e maternais, e por muito tempo
em nossa história, serem vistas como objeto de prazer e satisfação sexual de seus maridos e
dos homens em geral. Por exemplo, segundo ANDRADE (2013, p. 6).
Ainda na Primeira República, as mulheres, principalmente as de classes mais baixas, já exerciam
atividades produtivas. A maioria delas residia em área rural e trabalhava em suas próprias casas,
exercendo um importante papel no modelo de produção familiar. Apesar de sua inegável importância
no processo produtivo, as mulheres eram reconhecidas apenas como as responsáveis pela manutenção
do equilíbrio doméstico familiar.

8
Revisão da literatura é o processo de busca, análise e descrição de um corpo do conhecimento em busca de
resposta a uma pergunta específica. “Literatura” cobre todo o material relevante que é escrito sobre um tema:
livros, artigos de periódicos, artigos de jornais, registros históricos, relatórios governamentais, teses e
dissertações e outros tipos. A “revisão narrativa” não utiliza critérios explícitos e sistemáticos para a busca e
análise crítica da literatura. A busca pelos estudos não precisa esgotar as fontes de informações. Não aplica
estratégias de busca sofisticadas e exaustivas. A seleção dos estudos e a interpretação das informações podem
estar sujeitas subjetividade dos autores. É adequada para a fundamentação teórica de artigos, dissertações, teses,
trabalhos de conclusão de cursos. Fonte: https://www.fca.unesp.br/Home/Biblioteca/tipos-de-evisao-de-
literatura. Acesso em 13 nov 2020.
Estudos de Sexualidade 3

Mas foi a partir da década de 60 que, no Brasil, o movimento feminista tomou mais
força e desde então, as mulheres passaram a ocupar cargos que antes nunca se esperava serem
ocupados por mulheres (FAHS, 2.016).
Com a inserção das mulheres no ambiente empresarial, estabeleceu-se uma disputa acirrada entre
homens e mulheres que buscam igualar-se diante das oportunidades de cargos existentes,
reconhecimento e destaque na profissão. Em meio a este processo, as mulheres procuram desconstruir
estereótipos sociais e culturais que estão construídos há tempos para que seja possível a transposição de
barreiras, principalmente de natureza psicológica, que permanecem e são as mais difíceis de serem
enfrentadas (MORANDI, 2017, p. 16).
Desde que a mulher foi introduzida no ambiente industrial e corporativo, ela tem 141

enfrentado os desafios inerentes dos cargos que assume, mas também tem enfrentado os
desafios de ser aceita e reconhecida como líder e gestora (ANDRADE, 2013).
Com muito trabalho, dedicação e paciência, as mulheres conseguiram ampliar a sua participação
no mercado, e, hoje, uma visão distorcida sobre o “papel da mulher” tem perdido espaço, ainda
que não tenha desaparecido completamente; afinal, continuamos vivendo em uma sociedade
machista, e o machismo não é uma mentalidade exclusivamente masculina. A necessidade de
complementação do orçamento doméstico presente na vida de boa parte dos casais e maior
reivindicação de direitos iguais entre os gêneros conduziram à aceitação maior ou mesmo à
“naturalização” da presença da mulher nos ambientes de trabalho, porém isso não significa,
necessariamente, que essa presença seja confortável e que tudo se passe sem conflito e mal-estar
implícitos. Em boa medida, persiste ainda uma aura de “mal necessário” ou de “a gente tem de
engolir” (FREITAS, 2001, p. 13).
Analisando tudo até aqui, podemos observar que o maior obstáculo para a inserção de
mulheres nas nos cargos de gestão e liderança ainda é o machismo. Segundo ARAUJO, et al.,
(2019, p. 6).
As diferenças nas características, comportamentos, valores e princípios morais cultuados ao longo do
tempo por homens e mulheres conduzem, supostamente, o sexo feminino a tendência a um tipo de
gestão considerada mais flexível, diferente da tradicional burocrática, permitindo, com isso, maior
valorização dos indivíduos como seres humanos, considerando suas habilidades e valores individuais.
No entanto, o acesso a cargos que demandam poder de decisão e liderança, como, por exemplo, de
diretorias e gerências, trazem para a mulher o dilema da construção de uma nova identidade, que fica
dividida entre a feminilidade absorvida pela educação e o padrão masculino presente e majoritário nas
empresas em geral. Essa construção de identidade se dá baseada nas características culturais do
ambiente organizacional. Com o ambiente organizacional arraigado de valores e pressupostos
masculinos capazes de influenciar os seus membros, é possível ocorrer a chamada masculinização do
estilo feminino de gerenciar.
Ou seja, o que mais se atribui às mulheres na conquista de cargos de gestão e liderança
não é seu nível de estudo ou competência, mas sim a “tratativa” com os demais no ambiente
empresarial. Considera-se que a mulher com seu “jeitinho” feminino, seu instinto maternal, e
sua capacidade de ser detalhista consegue uma liderança mais flexível (ANDRADE, 2013),
mas quando alguma mulher não é tão “doce” como se esperava, quando a mulher é mais dura
e direta ou até mesmo quando precisa cobrar resultados, ao lidar com elas, esbarramos em
reforços de comportamentos machistas, como o costume de dizer “ela é igual a homem”.
Mas, sendo, liderança, uma tarefa/função que pode ser aprendida, não podemos
considerar que essa seria uma característica genuinamente masculina ou feminina, não pode
ser uma questão de gênero. É uma questão subjetiva, baseada em conhecimento e na
capacidade de aprendizagem. O que podemos considerar são diferenças na maneira como a
liderança é exercida por cada gestor e a liberdade que esse gestor possa ter na organização em
que atua. (ARAUJO et al., 2019). Ainda explicando sobre liderança ser algo distinto a gênero,
ANDRADE (2013, p. 18) diz:
As diferenças entre homens e mulheres na liderança estão ficando cada vez menores e quase
imperceptíveis devido à geração, uma vez que ambos estão focados nas competências, não se
preocupam com a hierarquia e tendem a criar um estilo próprio de liderar, uma vez que, atualmente, não
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
basta ter somente domínio técnico, é necessário saber lidar com pessoas, isso não difere o sexo, é
preciso ser competente no que faz para se destacar no concorrente mercado de trabalho.
O dia-a-dia das organizações está sempre sendo instigado por disputa e poder e
aproveitamento máximo de oportunidades e crescimento profissional e, muitas empresas
consideram benéficas essas posturas, como descreve FREITAS (2001, p. 18).
Apesar de todo discurso de humanização e democratização do mundo do trabalho, de empowerment9 e 2

de participação de todos os níveis no processo decisório, muitas empresas continuam a desenvolver


práticas que favorecem a centralização de poder e o autoritarismo. É verdade que o modelo piramidal
se sustenta na autoridade, porém a autoridade pode ser exercida sem abusos e excessos. A administração
142 stress permite a naturalização de caminhos reprováveis, que servem de via de acesso para dar vazão à
falta de escrúpulos de profissionais perversos que retiram prazer de atos aviltantes e tirânicos.
E quando falamos em disputa e poder nas organizações, automaticamente surge a
problemática advinda deste comportamento: O assédio.
Quando falamos em “assédio”, nos remetemos quase que imediatamente a um
conteúdo sexual, porém, falaremos também de um conteúdo mais extenso e sútil, o assédio
moral. Ligado a um esforço para desqualificar uma pessoa que pode ou não conduzir ao
assédio sexual (FREITAS, 2001).
Assédio:
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa ,“assédio”10 significa:
1. militar - conjunto de operações que visam a conquista de uma posição inimiga;
cerco, sítio;
2. ataque cerrado ou incessante;
3. importunação insistente e/ou agressiva, geralmente com vista à obtenção de algo;
4. acossamento; perseguição.
Neste artigo, aprofundaremos as duas principais vertentes do assédio:
O “assédio moral”: geralmente por alguém em posição de poder ou superioridade.
O “assédio sexual”:
1. comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou
física, feito com o objetivo de perturbar ou constranger outrem;
2. abuso de posição de autoridade ou poder para obtenção de favor sexual de alguém
em posição de dependência ou inferioridade.
Apesar de que o assédio moral ser algo que sempre existiu em qualquer ambiente de
trabalho – muito visto na nossa vergonhosa história de escravidão – nas últimas décadas
diretores de recursos humanos, médicos do trabalho, técnicos de segurança do trabalho e até
sindicatos, começaram a se interessar mais pelo assunto (FREITAS, 2001). E hoje, com um
cenário onde temos um número significativo de mulheres em cargos de gestão e liderança,
sendo este público, o que mais sofre assédio nas organizações mais ainda, as que ocupam
cargos administrativos – recebendo insultos machistas e sexistas. (MORANDI, 2017), o
número de denúncias de assédio moral e também sexual teve um grande aumento (EGÉA,
2019).

9
Empowerment vem do verbo inglês “empower” que significa dar poder ou autoridade para que alguém faça
algo. Nas organizações é uma ação da gestão estratégica que visa o melhor aproveitamento do capital humano.
Para uma empresa, por exemplo, essa condição consiste em delegar poder aos colaboradores da organização.
Fonte: https://www.ibccoaching.com.br/portal/o-que-e-e-como-funciona-o-empowerment. Acesso em 18 nov
2020.
10
assédio in Dicionário da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. Disponível em:
https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/assédio . Acesso em 12 out 2020.
Estudos de Sexualidade 3

Segundo a CARTILHA ASSÉDIO MORAL E SEXUAL (2017-2019) os maiores


exemplos específicos de assédio moral contra as mulheres são:
→ desconsiderar sumariamente a opinião técnica da mulher em sua área de
conhecimento.
→ interferir no planejamento familiar das mulheres, exigindo que não engravidem;
→ dificultar ou impedir que as gestantes compareçam a consultas médicas fora da
empresa;
→ desconsiderar recomendações médicas às gestantes na distribuição de tarefas.

Mas há também, o assédio moral, camuflado na forma de humor. E o humor é sempre 143

utilizado como defesa do assediador. “Foi só uma brincadeira”, “estávamos só brincando com
ela”, “não se pode mais nem brincar”, “você não tem senso de humor?”.
Entender como as chacotas, piadas pretensamente inócuas e comentários bem humorados burlam os
discursos organizacionais, estigmatizam, corroboram o preconceito, e funcionam como controle social,
é fundamental no aprofundamento das discussões sobre ética organizacional, bem-estar dos
trabalhadores e gestão da diversidade no ambiente de trabalho (IRIGARAY, et al., 2010, p. 3).
Na explicação dada na CARTILHA MPF (2016), vemos que o assédio moral é uma
experiência subjetiva, mas no geral, sempre irá desencadear diversos problemas na vida
pessoal, social e profissional do indivíduo. Vemos, também, a influência significativa do
assédio moral, como desencadeador na Síndrome de Burnout11 (STEFANELI, 2014).
Em meio a tantos problemas enfrentados, o assédio sexual ainda é uma questão que afeta as vítimas
interiormente, abalando-a profundamente, desestruturando-a, trazendo reflexos, não só na vida pessoal,
emocional, como também, no caso em estudo, no ambiente de trabalho, causando efeitos devastadores
(SILVA E MARCONI, 2018, p. 3).
Não diferente do assédio moral, o assédio sexual destaca-se no ambiente
organizacional por ser mais uma violência em que a maioria das vítimas são mulheres
(CARTILHA ASSÉDIO MORAL E SEXUAL NO TRABALHO, 2017-2019).
Cumpre ressaltar, primeiramente, a distinção entre assédio moral e assédio sexual. Neste o assediador
pretende obter vantagem sexual do assediado, mediante sua posição hierárquica, enquanto aquele visa
retirar a vítima do ambiente do trabalho, por meio do terrorismo psicológico. Observe-se que o assédio
sexual pode ocasionar uma ação do assédio moral, uma vez que a rejeição da vítima transforma-se em
ato de vingança pelo assediador. Assim, o assédio moral é caracterizado pela presença de dois quesitos:
a duração no tempo e o objetivo de humilhar a vítima, extinguindo-a do trabalho. Por sua vez, o assédio
sexual, como explanado acima, configura-se pela violação à liberdade sexual da vítima, sendo esta uma
subalterna do assediador. Conclui-se, portanto, que o assédio sexual atenta contra a liberdade sexual do
indivíduo, enquanto o assédio moral fere a dignidade psíquica do ser humano (BRITO e PAVELSKI,
2015, p. 4).
Mas diferente do assédio moral que não é considerado crime, o assédio sexual é.
“Quando o termo “assédio sexual” é usado, normalmente está se referindo à conduta ocorrida
no ambiente de trabalho, por ter sido o nome dado ao crime do Artigo 216-A do Código
Penal”. (GHERINI, 2020), ainda na explicação do autor, (p. 8):
Diferente do que ocorre com o assédio sexual, o assédio moral não é um crime em si, apesar do agressor
poder cometer crimes enquanto pratica assédio moral. Com base nisso, existe um projeto de lei em
tramitação no Congresso Nacional visando a criminalização do assédio moral, nas mesmas propostas
do assédio sexual.
Diferente do assédio moral que muitas vezes se disfarça e é defendido como humor, e
muitas vezes, resulta em não-assédio, o assédio sexual se disfarça na forma de cantada e
sedução (FREITAS, 2001) e se destaca pela dificuldade de comprovação da vítima. Já que é

11
Síndrome de Burnout é um distúrbio psíquico causado pela exaustão extrema, sempre relacionada ao trabalho
de um indivíduo. Essa condição também é chamada de “síndrome do esgotamento profissional” e afeta quase
todas as facetas da vida de um indivíduo. Fonte: https://www.rededorsaoluiz.com.br/doencas/sindrome-de-
burnout Acesso em: 18/11/2020
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

um crime, que normalmente, não deixa vestígios. Na maioria das vezes, restam apenas a
palavra do assediador x a palavra da assediada, o que acaba desestimulando a denúncia e
fazendo com que muitas mulheres prefiram omitir o acontecido a enfrentar a quantidade de
burocracia e julgamento para se comprovar o abuso sofrido (BRITO E PAVELSKI, 2015).
O assédio sexual no ambiente de trabalho consiste em constranger colegas por meio de cantadas e
insinuações constantes, com o objetivo de obter vantagens ou favorecimento sexual. Pode ser
conceituado como toda conduta de natureza sexual não solicitada, que tem um efeito desfavorável no
ambiente de trabalho ou consequências prejudiciais no plano do emprego para as vítimas. Essa atitude
pode ser clara ou sutil, falada ou apenas insinuada, escrita ou explicitada em gestos, vir em forma de
144
coação ou, ainda, em forma de chantagem (Cartilha MPF, 2016, p. 17).
Nas palavras da Professora e Pesquisadora Maria Ester de Freitas (2001, p. 6):
Confunde-se assédio sexual com modismo. A prática não é nova, a novidade é a busca de discussão, de
punição, de criminalização. À medida que as sociedades se democratizam, os indivíduos, aliados ao
maior acesso à informação, ficam mais conscientes de seu papel enquanto cidadãos, tornando mais
difícil a convivência com práticas repressivas e autoritárias. O direito de recorrer de uma decisão ou
prática injusta, ou considerada injusta, é garantido em quase todas as sociedades modernas.
Segundo EGÉA (2019, p. 2), a incidência do assédio nos ambientes organizacionais
se dá diretamente às relações de poder, onde as organizações definem níveis hierárquicos
sem priorizarem a comunicação e acabam gerando uma significativa falta de confiança dos
funcionários para relatarem o que ocorre dentro do ambiente laboral. Ainda segundo o autor,
as organizações que não priorizam a comunicação interna e não preparam seus líderes e
departamentos para lidarem com tais situações, falham em sua competência em atender o
público interno. GHERINI (2020, p. 3) ainda complementa:
Importante destacar que este tema, assim como o de assédio moral, não deve ser visto unicamente como
um risco jurídico, financeiro e/ou reputacional às organizações, trata-se de garantir direitos
fundamentais como de personalidade, dignidade, integridade física, psíquica, sexual e moral, além de
tantos outros.
As alternativas escolhidas pelas empresas para combaterem os casos de assédio moral
e sexual se apresentam por meio de implementação de práticas preventivas, ambiente de
aprendizado coletivo, procedimentos de investigação e suporte às vítimas (GHERINI, 2020).
As organizações são intrinsecamente espaços de comportamento controlado e é do seu absoluto
interesse coibir atitudes que possam prejudicar o seu melhor rendimento e a sua imagem. Os
departamentos de recursos humanos deveriam considerar esse tipo de situação como um problema de
sua jurisdição, buscando desenvolver políticas alternativas, encaminhando-as para discussão em todos
os níveis organizacionais; a própria discussão já é uma forma de prevenir. Sem cair no descrédito que
os excessos provocam, uma cultura organizacional pode incorporar – sem maiores traumas – as
preocupações mais recentes da sociedade. Se a questão é de momento, ela é também de futuro, pois o
contingente feminino tende a aumentar em todos os setores e em todos os níveis hierárquicos, além do
reflexo direto de uma sociedade mais aberta, que tende a comportar diferentes arranjos amorosos; tudo
isso eleva a possibilidade de que as organizações sejam, cada vez mais, um palco para esse tipo de
ocorrência infeliz (FREITAS, 2001, p. 17).
Abaixo, veremos algumas ideias de prevenção ao assédio moral e sexual que são
papéis das organizações:
Quadro 1: Medidas de prevenção ao assédio moral e sexual para as organizações
ASSÉDIO MORAL ASSÉDIO SEXUAL

Formar e informar servidores, empregados Oferecer informação sobre o assédio sexual;


e estagiários sobre o assédio moral e sobre as formas
de responsabilização de agentes e pessoas jurídicas,
nas esferas pública ou privada;
Estudos de Sexualidade 3

Definir claramente as atribuições e as condições de Fazer constar do código de ética do servidor


trabalho de servidores, empregados e estagiários; ou das convenções coletivas de trabalho
medidas de prevenção do assédio sexual;

Introduzir no código de ética do servidor ou Incentivar a prática de relações


nas convenções coletivas de trabalho medidas respeitosas no ambiente de trabalho;
de prevenção do assédio moral;

Incentivar as boas relações de trabalho e o Avaliar constantemente as relações


cooperativismo; interpessoais no ambiente de trabalho, 145
atentando para as mudanças de
comportamento;

Avaliar constantemente as relações sociais do órgão Dispor de instância administrativa para


ou empresa; acolher denúncias de maneira objetiva;

Atentar para as mudanças de comportamento de Apurar e punir as violações denunciadas.


servidores/as, empregados e estagiários.
Fonte: Cartilha Assédio Moral e Sexual no Trabalho (2017-2019).

A educação e informação, como um todo, nos abre possibilidades, dentre elas, o


reconhecimento de estarmos ou não sofrendo uma violência. GHERINI (2020, p. 2) nos mostra
que o acesso à educação e o conhecimento pode influenciar e muito, pois “a capacidade de
uma executiva endereçar internamente um caso de assédio contra si é maior do que uma mulher
vinda da periferia e que exerce a função de faxineira no escritório, apesar de ambas estarem
sujeitas a esse tipo de violência”. Compreender isso, nos mostra que estratégias e
planejamentos de gestão de pessoas é o que pode igualar, nas organizações, o acesso à defesa
e prevenção de assédio de forma igualitária, onde todos tenham, além de informação, suporte
adequado.
Um dos maiores desafios de departamentos e gestores ativos na prevenção e combate
de assédio moral e sexual é romper com o silêncio das vítimas, pois apesar de importante, não
é fácil garantir aos funcionários canal eficiente e eficaz para as queixas e denúncias.
Como se observa, a vítima, além de suportar a pressão diária da jornada de trabalho, também suporta o
constrangimento, a humilhação e o medo de delatar o ato criminoso, por receio de que isso possa
influenciar em sua vida profissional, com a perda do emprego (SILVA E MARCONI, 2019, p. 2).
Dentro da política organizacional deve constar uma seção explicativa sobre quais são
as opções para aquele que percebe ser alvo de assédio, ou seja, algumas recomendações de
ação para a suposta vítima (NUNES E TOLFO, 2020).
Veremos agora algumas orientações para denúncia e proteção das vítimas, frente a
situação de assédio moral e sexual.
Quadro 2: Medidas de ações ao assédio moral e sexual para as vítimas
ASSÉDIO MORAL ASSÉDIO SEXUAL

Anotar detalhadamente todas as situações de Conte o ocorrido para os colegas, amigos


assédio moral, com referência a data, horário, e familiares, forme uma rede de apoio;
local, nome do agressor, nome de testemunhas,
descrição dos fatos etc, como forma de coleta
de provas

Denunciar situações de assédio moral Busque apoio da equipe do Serviço de


próprio ou de colegas aos setores Saúde Ocupacional e Qualidade de Vida no
competentes da organização Trabalho;
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Dividir o problema com colegas de Reúna todas as provas possíveis, tais como
trabalho ou superiores hierárquicos de sua bilhetes, presentes e testemunhas;
confiança, buscando ajuda, se possível;

Afastar sentimentos de culpa e de Registre o caso na Delegacia de Atendimento


inferiorização, buscando apoio psicológico, a Especial à Mulher (DEAM) ou em qualquer
fim de lidar com o problema de forma mais delegacia comum;
forte e sem comprometimento da saúde;

146 Se necessário, solicitar a alteração de sua Ligue 180 para fazer a denúncia do caso ou
lotação ou posto de trabalho, bem como a comunique o fato a seu sindicato, à Delegacia
alteração de sua jornada. Regional do Trabalho, ao Ministério Público do
Trabalho ou a qualquer outra entidade de defesa e
direitos humanos.

Fonte: Adaptado de Cartilha Assédio Moral e Sexual No Trabalho (2017-2019).


Diante de todo o apresentado, vemos que para impedir a prática de assédio moral e
sexual faz-se necessário criar medidas preventivas no ambiente do trabalho, estabelecendo
política de conduta e código de ética, atribuindo a isto, portanto, a abordagem de dois
requisitos básicos para o sucesso nesta prevenção, a educação e a fiscalização (BRITO E
PAVELSKI, 2015).
5. CONCLUSÃO
As mulheres estão se sobressaindo cada vez mais em suas vidas profissionais, se
especializando e assumindo cargos estratégicos nas organizações, mas ainda
sofrem preconceitos de uma cultura machista e patriarcal. Foram muitos os obstáculos
vencidos ao longo dos anos, mas ainda enfrentam muitos!
A liderança está sendo conquistada aos poucos, as características femininas estão se
destacando em meio as organizações e se tornando um diferencial, mesmo que ambas as
lideranças (femininas e masculinas) deveriam estar focadas na evolução de suas equipes e
respectivamente de suas organizações.
Com o aumento das mulheres em diversos cargos nas organizações, essas, vêm
mostrando interesse no desenvolvimento de práticas e políticas de prevenção de assédio moral
e sexual para com seus colaboradores, porém não querem abrir mão de “atingirem as metas”,
que faz que com muitas vezes alguns comportamentos sejam justificados. Além de, também,
terem interesse em se destacarem em seus meios, usando o interesse nessas políticas de
prevenção, que mais se parecem com falsas promessas de valores e princípios éticos como
um meio de colaborar neste destaque.
A “solução” encontrada pela maioria das empresas para combater assédio moral e
sexual, quando não com regras estabelecidas em “cartilhas de boas-vindas” onde se estabelece
regras de comportamento e vestuário para evitar tais situações. Mas também vimos as ideias
de investir na educação e na informação. Palestras sobre os temas para que todos os cargos
tenham acesso e conhecimentos igualitários, dando destaque para o combate de
comportamentos machistas e sexistas estruturados nessas empresas.
Apesar desse grande interesse de se tratar sobre a temática de assédio, o que não vemos
com tanta clareza e dedicação, são ações e práticas de suporte às vítimas. As empresas, em
grande maioria, têm como resolução do problema, a demissão do assediador, mas pouco se
faz para a situação psicoemocional das assediadas. Dessa forma, vemos o cenário de culpa
gerada às vítimas, algumas vezes a auto culpa de se ver como responsável pela demissão do
assediador e, muitas vezes, de ser assim, responsabilizada, perante os demais colegas. Sem
falar, que esses resultados gerados dessas denúncias ocorrem quando falamos de funcionário
para funcionário. Quando falamos de empresários para funcionários, a demissão se vira para
Estudos de Sexualidade 3

a vítima, não instantaneamente, mas com o decorrer do tempo este é o resultado. Estas
situações nos levam a entender o grande dilema das vítimas: denunciar ou não? Vimos no
decorrer do artigo, que o medo e a insegurança, derivado de não existir um programa de
suporte, faz com que o risco da omissão se sobressaia às denúncias.
6. REFERÊNCIAS
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2013.
ARAUJO, Ione Maria Santos et al. Mulheres no Comando: Características e Singularidades da Gestão Executiva
Feminina. Vitória, 2020. 147
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Comitê Permanente pela Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Senado Federal. Assédio Moral e Sexual no
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https://www.politize.com.br/movimento-
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de Burnout no Âmbito das Relações do Trabalho, 2014. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/26496/consideracoes-sobre-assedio-moral-como fator-desencadeador-para-a-
sindrome-de-burnout-no-ambito-das-relacoes-de-trabalho. Acesso em 18 nov 2020.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

148
Estudos de Sexualidade 3

O ADVENTO DA PÍLULA ANTICONCEPCIONAL E SEUS DESDOBRAMENTOS:


UMA LEITURA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA FEMINISTA

Izabel Hart Giraldi

149

RESUMO
O presente trabalho de conclusão de curso é uma revisão literária acerca do advento da pílula
anticoncepcional e seus desdobramentos a partir de uma perspectiva feminista. O advento da
pílula anticoncepcional foi responsável por inúmeros desdobramentos nas relações de gênero,
inserção da mulher no mercado de trabalho e a concomitante medicalização do corpo feminino,
fazendo, assim, a manutenção de controle do corpo feminino; fenômeno que se dá de forma
mais expressiva a partir do fim do período medieval com a influência da Igreja Católica.
Observa-se os interesses econômicos como o mecanismo propulsor para o controle de
natalidade, gerando disparidades entre os direitos das mulheres e dos homens, sendo estes
últimos responsáveis pela manutenção do patriarcado e dos privilégios que tal sistema
sociopolítico proporciona a eles. Questiona-se, assim, a real intenção do surgimento da pílula
anticoncepcional como método contraceptivo que gerou a famosa liberação sexual da década
de 60. Constata-se a urgência de educação sexual de qualidade nas escolas, universidades e
casas, a fim de promover reflexões acerca da real situação das mulheres e de sua liberdade
através da autonomia de seu próprio corpo. Para isso, se faz necessária a instauração de
políticas públicas que visem informar, acolher e resguardar os direitos da mulher sobre o
próprio corpo, além de garantir o direito ao aborto seguro. Por fim, a mulher deve ter o direito
de escolher como gere o próprio corpo sem o deixar nas mãos de sistemas socioeconômicos,
da religião ou dos médicos.

Palavras-chave: pílula anticoncepcional, relações de gênero, medicalização e mulher no


mercado de trabalho.

ABSTRACT
The present final paper is a literary review regarding the advent of the contraceptive pill and
its consequences from a feminist perspective. The advent of the contraceptive pill was
responsible for numerous developments in gender relations, insertion of women in the labor
market and the concomitant medicalization of the female body, thus maintaining the control of
the female body; phenomenon that occurs more expressively from the end of the medieval
period with the influence of the Catholic Church. Economic interests are seen as the driving
mechanism for birth control, generating disparities between the rights of women and men, the
latter being responsible for maintaining patriarchy and the privileges that such a socio-political
system provides them. Thus, the contraceptive pill as a method that generated the famous
sexual liberation of the 60s is questioned. There is an urgent need for quality sexual education
in schools, universities and homes in order to promote reflections regarding the real situation
of women and their freedom through the autonomy of their own body. It is necessary to
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

establish public policies aimed at informing, welcoming and safeguarding the rights of women
over their own bodies, in addition to guaranteeing the right to safe abortion. Finally, women
must have the right to choose how they manage their own bodies without leaving them in the
hands of socio-economic systems, religion or doctors.

Keywords: birth control pill, gender relations, medicalization and women in the labor
market.1. INTRODUÇÃO
150
Breve levantamento histórico do patriarcado à luz do livro O Segundo Sexo de Simone
de Beauvoir.
Simone de Beauvoir começa seu canônico livro, O Segundo Sexo (1947) com a citação
diametral do matemático e filósofo, Pitágoras “Há um princípio bom que criou a ordem, a luz
e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher.”. Na época em que
Pitágoras ainda era vivo, seus escritos não foram considerados importantes, porém, a partir da
Idade Média, a coisa muda de figura e tanto suas descobertas matemáticas quanto sua visão
filosófica foram levadas a ferro e fogo pela Igreja Católica, a instituição mais poderosa da
Idade Média, período que levou cerca de 1000 anos para acabar, começando com a queda do
Império Romano no ocidente e terminando na chamada Idade Moderna. Pensando através da
abordagem metodológica do Materialismo Histórico, percebemos que 1000 anos convergem
numa sociedade Teocêntrica, supersticiosa, onde o bronze, seja como arma ou moeda de troca,
manteve, por mil anos a mulher nos afazeres do lar, improdutiva financeiramente e oprimida
socialmente. Basta lembrar das tantas inquisições e caça às bruxas, as mulheres eram
oprimidas, ou seja, marginalizadas por todo esse período e até antes dele, justamente com a
descoberta do bronze e a saída do homem aventureiro e viril em busca de mais terras (Beauvoir,
1947, pg. 80). A balança pendeu, o gênero masculino ficou retratado como a luz, a ordem, já o
feminino como as trevas e o caos.
Voltando no tempo, mais precisamente na Pré-História, a força física feminina, menor
que a do homem, não promoveu desigualdades ou ainda a lógica de mulher vassala. As técnicas
para lidar com o solo eram poucas, o homem usava a pá e a enxada primitivas que demandavam
mais força física, já as mulheres ficaram encarregadas das hortas. Existiu, assim, a constituição
dos dois sexos em duas classes diferentes por conta da divisão de trabalho, mas não havia
desigualdade (BEAUVOIR, 1947, p. 80). A autora afirma que o surgimento da propriedade
privada, que exigia um trabalho intensivo no desbravamento de florestas e escravidão de outros
homens para obter mais terras, fez do homem o senhor dos escravos, da terra e, por
consequência, proprietário da mulher. Esse evento tirou da mulher sua autoridade anterior
dentro da casa e diminuiu a importância da sua força de trabalho. Desta forma, o trabalho
doméstico teve sua importância diminuída e domada pelo trabalho produtivo do homem. O
homem se tornou tudo e a mulher um anexo insignificante. Surge, assim, a transmissão de
propriedade de pai para filho, deixando de lado o direito materno da mulher e seu clã. Surge,
finalmente, a família patriarcal baseada na propriedade privada. (BEAUVOIR, 1947, p. 81).
“A humanidade não é uma espécie animal: é uma realidade histórica.” (BEAUVOIR,
1947, p. 79. Simone de Beauvoir lança o argumento biológico da diferença entre gêneros por
terra. Em seu livro, cria um capítulo inteiro voltado para esta questão. Para se ter ideia,
médicos, em 1699 acreditavam ver um homúnculo dentro do espermatozoide, dando ao homem
todo o crédito da geração da vida, ao passo que o papel da mulher era apenas carregar este
homúnculo por um determinado tempo (BEAUVOIR, 1947, p. 36).
Deixo aqui a conclusão do Beauvoir (1947, p. 63) acerca dessa temática:
(...) os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza: obedecem a essa segunda natureza que é o costume e
na qual se refletem os desejos e os temores que traduzem sua atitude ontológica: Não é enquanto corpo, é enquanto
corpo submetido a tabus, leis, que o sujeito toma consciência de si mesmo e se realiza: é em nome de certos
Estudos de Sexualidade 3
valores que ele se valoriza. E, diga-se mais uma vez, não é fisiologia que pode criar valores. (...) É, portanto, à
luz de um contexto ontológico, econômico, social e psicológico que teremos que esclarecer os dados da biologia.
(...) A biologia não basta para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa: por que a mulher é o Outro?
Trata-se de saber como a natureza foi nela revista através da história; trata-se de saber o que a humanidade fez da
fêmea humana.

A inserção da mulher no mercado de trabalho


A entrada da mulher no mercado de trabalho, ou melhor, a reinserção, ocorreu com a
Revolução Industrial, um período que se iniciou em 1760 e terminou em 1840. Na Europa, a
pobreza nessa fase era absurda e o contingente de trabalhadores aumentava vertiginosamente 151

em prol de lucros. As condições de trabalho eram insalubres, mas a mulher, requisitada pelo
seu poder de produção, voltou às ruas, em direção às fábricas. Ali, apesar de toda a diferença
de pagamento e tratamento entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, significava já
uma coisa, a força bruta masculina já não era tão requisitada. Vale ressaltar a existência de
querelas entre os grupos masculinos e femininos nas fábricas, o primeiro ainda diminuindo o
segundo (BEAUVOIR, 1947).
Segundo Beauvoir (1947), os homens passaram a temer a concorrência feminina no
mercado de trabalho. A questão que abriu ainda mais portas para a mulher no mercado de
trabalho foi a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e, quase concomitantemente,
da Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Com os homens indo à guerra, os meios de produção
ficaram ainda mais na mão das mulheres, que esperavam seus maridos, pais e irmãos,
trabalhando arduamente em condições também, muitas vezes, insalubres. Porém, houve a
união de mulheres com um motivo em comum; primeiro, melhores condições de trabalho,
segundo: o direito de votar. Temos, então, as sufragistas, Beauvoir (1947, p. 169) diz em seu
livro que essas mulheres eram mais contestadoras e combativas do que as mulheres de sua
época. Na realidade, o início do movimento das sufragistas se dá no século XIX, mas sua
expressividade cresceu no começo do século XX. Essas mulheres, a grandes custas,
conseguiram o direito ao voto e lugares no parlamento inglês e em outros países. Segundo a
autora (1947), é impossível separar a luta da mulher por seus direitos do comunismo e os meios
de produção, pois um retroalimenta o outro na medida em que a mulher com poder econômico
equivalente ao do homem pode quebrar as amarras da relação suserano e vassala.
O advento da pílula anticoncepcional
Pulamos cerca de uma década após o lançamento do livro em dois volumes, O Segundo
Sexo, e nos deparamos com um dos eventos mais esperados e importantes para as mulheres; a
criação das pílulas anticoncepcionais. De acordo com Cavalieri (2017), o resgate histórico do
advento da pílula anticoncepcional na década de 60 é de extrema importância para
compreendermos como foi dada a consolidação de seu uso e de efeitos secundários ocorridos
nas esferas de interesses econômicos, controle de corpos e desigualdade de gênero.
O controle do padrão reprodutivo se torna uma preocupação em políticas públicas. A
“teoria malthusiana”, concebida pelo pastor anglicano Thomas Malthus, propulsiona a ideia de
esgotamento dos recursos naturais do planeta devido ao crescimento populacional
descontrolado. Isso ocorreu no século XVII, muito tempo antes da criação da pílula
anticoncepcional, mas foi, sem dúvida, um dos seus motes propulsores. Malthus, então, propôs
o retardamento do casamento e a abstinência sexual como formas de controle de natalidade
(CAVALIERI, 2017).
O desenvolvimento de estudos em 1920 em medicina e biologia promoveram
descobertas sobre o ciclo menstrual, alterações hormonais e a relação destes com a gestação.
Tais pesquisas geraram o desenvolvimento de métodos hormonais de controle de fecundidade,
desembocando na criação da pílula anticoncepcional nos Estados Unidos, em 1950. A
regulamentação da pílula só foi efetuada 7 anos depois, pelo Food and Drug Administration
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

(FDA). A instituição visava o tratamento e prevenção de doenças e alterações ginecológicas


(CAVALIERI, 2017).
Em 1962 a pílula começa a ser utilizada no Brasil. A aderência ao consumo da pílula
foi enorme, tornando-se o método anticoncepcional mais utilizado pelas brasileiras, o que é
apontado pela Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNDS) feita
em 2006 (CAVALIERI, 2017 apud BRASIL, MS, 2008). Uma pesquisa feita em 2018, no
município de São Paulo, aponta que o método contraceptivo mais utilizado é o preservativo
masculino (28,2%) e a pílula anticoncepcional (23%), além disso, tais contraceptivos foram
152
comprados, na maioria das vezes, por mulheres e em farmácias (OLSEN et al.,2018).
De acordo com Cavalieri (2017), o uso da pílula anticoncepcional tem o propósito
primário de controle da reprodução por meio do bloqueio da ovulação, assim, não ocorrendo a
fecundação e gestação. Porém, secundariamente, observa-se que a pílula passou a ser usada
para outros fins, como tratamentos de infertilidade por meio da ingestão regular de hormônios,
e, também, para fins dermatológicos voltados para o controle de acnes e diminuição de
desconfortos físicos decorrentes do período menstrual. Contudo, a pílula anticoncepcional não
trouxe apenas benefícios às mulheres que aderiram ao tratamento, pois o controle médico,
científico, e os interesses econômicos passaram a interferir diretamente em suas vidas,
causando, assim, a ingerência sobre a autonomia e controle de seus próprios corpos.
Coloca-se, então, em debate a relação de gêneros, uma vez que as tecnologias
contraceptivas disponíveis focam quase exclusivamente no corpo feminino. Sobre o corpo
masculino, primeiramente há poucos investimentos para pesquisas de métodos contraceptivos
para este gênero, o que ocorreu, de fato, foi a melhora das tecnologias já existentes; o
preservativo e a esterilização masculina (CAVALIERI, 2017 apud OUDSHOORN, 1994,
WATKINS, 1998.) De qualquer forma, a pílula anticoncepcional foi extremamente requisitada
nos Estados Unidos. No século XX, movimentos hippies, feministas, entre outros grupos, num
movimento social, pediam a liberdade e o direito ao controle da vida reprodutiva, culminando
na liberação e nos costumes sexuais.
Surge, então, a figura de Margaret Sanger, defendendo a autonomia feminina ao direito
de poder escolher o número de filhos desejados. Ela queria uma proposta de contracepção que
pudesse ser exercida de forma prática; através de uma pílula, como uma aspirina, e que
efetivasse a restrição da mulher acerca da responsabilidade do controle da contracepção. A
amiga de Sanger, Katherine Dexter McCormick financiou quase que totalmente as pesquisas
para a criação da pílula anticoncepcional. As pesquisas e testes ficaram nas mãos do biólogo
Gregory Pincus e do médico, obstetra e ginecologista, John Rock, somando-se à aliança de
duas indústrias farmacêuticas, a G. D. Searle e Syntex S.A. É curioso apontar que os primeiros
testes feitos com a pílula anticoncepcional ocorreram em Porto Rico, pois as leis de
Massachusetts sobre controle de natalidade impediam experimentos no estado. Porto Rico
tinha mulheres com baixo nível de escolaridade e de informação, além de ser um país quase de
extensão dos Estados Unidos, ou seja, lugar perfeito para testar. (CAVALIERI, 2017).
A eficácia das pílulas anticoncepcionais testadas foi de 100%, porém os efeitos
colaterais se apresentaram de forma expressiva: dores de cabeça, enjoo, tontura e desconforto
intestinal. Apesar de pouco tempo de testes e dos efeitos colaterais observados, a partir de 1957
a FDA liberou a pílula anticoncepcional constituída por estrogênio e testosterona sintéticos
para tratamento e prevenção de doenças e alterações ginecológicas. Em 1960 a pílula
anticoncepcional foi autorizada no EUA com o nome Enovid. A propaganda da farmácia para
a pílula anticoncepcional tinha a figura de Andromeda, figura mitológica que se livra de
correntes. Percebe-se a mensagem de que a mulher finalmente obteve controle sobre a sua
fisiologia (CAVALIERI, 2017).
Estudos de Sexualidade 3

Cabe ressaltar a importância de várias instituições e profissionais para propulsionar a


adesão às pílulas anticoncepcionais pelas mulheres. A Planned Parenthood Federation of
America (PPFA), permitiu que muitas mulheres de baixa renda tivessem acesso à pílula
anticoncepcional. (Cavalieri, 2017 apud Watkins, 1998). Os jornais e revistas populares
também tiveram papel importante na divulgação massiva na adesão ao contraceptivo, tanto
para mulheres quanto para médicos. Além disso, o médico recebia propagandas por correio ou
por agentes de vendas, de modo a se inteirar das atualidades do mercado farmacêutico
(CAVALIERI, 2017).
Cavalieri (2017) ressalta a importância do momento histórico que as mulheres estavam 153

passando quando houve o advento da pílula anticoncepcional. Elas estavam em constante


transformação, frequentando novos locais e empenhando novos papéis, o aumento da
escolaridade feminina é um deles, dando-as chances maiores no mercado de trabalho. As
mulheres estavam conquistando a esfera pública. Por outro lado, temos o aumento e influência
da indústria farmacêutica, a urbanização e industrialização que clamavam por mudanças no
padrão reprodutivo. Desta forma, a pílula anticoncepcional representou uma grande mudança
no controle de natalidade, causando mudanças na formação da família e nos significados
atribuídos à atividade sexual e reprodução que apontam para algo passa a ser controlável e
planejado. Porém, é muito importante ressaltar que a possibilidade de controlar nascimentos
não significa que as mulheres passaram a ser livres do constrangimento da reprodução
(CAVALIERI, 2017).
Já no Brasil, como escrito anteriormente, a pílula anticoncepcional foi liberada para uso
e comércio em 1962, tal advento foi propulsionado pelo país ser considerado um país de
terceiro mundo, fazendo parte, assim, de políticas internacionais interessadas no controle de
natalidade e, portanto, redução da população, diferentemente dos países de primeiro mundo,
em que as políticas de natalidade eram natalistas devido ao pós-guerra. Em países como a
França, a liberação da pílula anticoncepcional ocorreu apenas em 1967 (PEDRO, 2003).
O advento veio acompanhado, no Brasil, de informações alarmantes sobre o
crescimento populacional. Um artigo intitulado “Gente Demais! O que fazer?”, divulgado pela
revista Seleções, apontava que no ano 2000 o mundo teria 8 bilhões de habitante, desses, 70%
seriam afro-asiáticos. A razão para tal fenômeno seria a redução de mortalidade infantil e
longevidade dessas populações. Depois dos testes em Porto Rico, chamados comumente de
“campos de prova”, os inventores da pílula anticoncepcional afirmavam que – apesar do pouco
tempo de testes e dos efeitos secundários da pílula – era de extrema importância levar em
consideração o crescimento demográfico, mesmo que a pílula não fosse infalível (PEDRO,
2003).
O Brasil foi colocado na lista de países de crescimento demográfico desenfreado, que
promoviam perigo de esgotar os recursos naturais do planeta. Aqui, o controle de natalidade
teve correlação com a Revolução Cubana, pois os norte-americanos passaram a ver a América
Latina como uma bomba relógio de propagação da política comunista. Organizações
estrangeiras começaram a surgir no país, com o interesse em programas e estratégias de
controle populacional, temendo que o crescimento demográfico e a pobreza culminassem em
um regime comunista. O Brasil, porém, estava em plena ditatura, com grupos “antinatalistas”
e grupos “anticontrolistas”. O primeiro grupo alegava que o controle demográfico significava
melhor economia para o país, o segundo grupo adotava a geopolítica de “ocupação dos espaços
vazios” do Brasil. Aos “anticontrolistas” se juntava a instituição da Igreja Católica e até mesmo
grupos feministas (PEDRO, 2003).
No Brasil o Estado ficava de mãos atadas sobre o assunto, porém sociedades civis
internacionais, como a IPPF – International Planning Parenthood Federation, agiam com o
modelo antinatalista em população de baixa renda do país. Aqui deve ser levado em
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

consideração que a adoção da pílula anticoncepcional estava nas mãos de profissionais há


pouco formados, pois até a década de 60 não havia escolas de medicina que obtivessem
conhecimentos sobre contracepção, os médicos pioneiros no assunto tinham de estudar fora
por um período, caso quisessem entender do assunto. Quando mulheres de camadas média
passaram a consumir a pílula anticoncepcional, o mercado da pílula cresceu rapidamente. Em
1970, 1,8 milhões de cartelas de pílulas foram vendidas, já em 1980 este número cresceu para
40,9 milhões de cartelas (PEDRO, 2003). É importante ressaltar que na década de 70 as
mulheres passaram a se posicionar contra a ditadura, clamando por democracia, embasadas em
154
movimentos sanitaristas que viam a pílula não mais associada ao controle de natalidade, mas
como um direito (CAVALIERI, 2017).
Mulheres de primeiro mundo, como na França, experimentaram uma verdadeira
revolução sexual e viveram uma real mudança nas relações de gênero, nesse contexto, a pílula
anticoncepcional teve o importante papel de separar sexo de reprodução. No Brasil, porém, o
contexto foi outro. Aqui, fomos outro “campo de prova”, assim como Porto Rico havia sido,
pois a pobreza e o crescimento demográfico eram sinônimos do comunismo (PEDRO, 2003).
Contudo, não podemos deixar de lado a importância do movimento feminista no Brasil na
década de 70. Aqui, as mulheres acompanharam a modernização do país e um movimento de
mulheres que demandava políticas de saúde acerca do câncer de mama e do colo uterino, além
de atenção especial ao ciclo gravídico puerperal de qualidade (CAVALIERI, 2017).
Este movimento feminista fez tanta pressão que acabou por conseguir uma aliança entre
o Ministério da Saúde e a comunidade acadêmica. Assim, criou-se o PAISM – Programa de
Assistência Integral à Mulher (1983). O primeiro programa implementado foi o planejamento
familiar, através do acesso à pílula anticoncepcional como método de contracepção e direito
básico da mulher. Em 1988, com a nova Constituição do país, foi oficializada a universalidade
do direito à saúde, criou-se, então, o SUS (Sistema Único de Saúde), traduzindo avanços nas
políticas públicas (CAVALIERI, 2017).
A saúde passou a ser feita através da interdisciplinaridade, compreendendo um sujeito
multifacetado, devendo ser cuidado em sua integralidade. Vários fatores trouxeram a saúde da
mulher no Brasil a este patamar, sendo que a própria pílula pode ser considerada um desses
fatores, pois reduziu a fecundidade no Brasil, ressaltando, aqui, que não houve nenhuma
política oficial de controle de natalidade (CAVALIERI, 2017).
De acordo com o site Ministério da Saúde, existem algumas medidas tomadas pelo
Estado em relação à prevenção de gravidez:
Para reduzir os casos de gravidez não planejada, o Ministério da Saúde investe em políticas
de educação em saúde e em ações para o planejamento reprodutivo. Uma das iniciativas é o
trabalho com a Caderneta de Saúde do Adolescente, com as versões masculina e feminina.
A Caderneta contém os subsídios que orientam o atendimento integral dos adolescentes,
com linguagem acessível, possibilitando um maior diálogo entre os profissionais de saúde e
os adolescentes. Desde 2009 foram entregues cerca de 32 milhões de Cadernetas de Saúde
do/a Adolescente em 4.111 municípios. A Caderneta é distribuída durante a consulta na
Unidade Básica de Saúde.
O Ministério da Saúde também elabora publicações e dissemina tecnologias, que buscam apoiar as gestões
estaduais e municipais na ampliação do acesso aos serviços de Atenção Básica e qualificar a atenção à saúde de
adolescentes, visando a integralidade do atendimento e a garantia de seus direitos. A pasta também tem ampliado
o acesso aos programas Saúde da Família, que aproxima os adolescentes dos profissionais de saúde, e o Programa
Saúde na Escola (PSE), que oferece informação em saúde no ambiente escolar. A pasta tem ainda em sua rotina
abordar o tema nas redes sociais, canal muito utilizado por esse público (BRASIL, 2020 ).

As relações de gênero e o advento da pílula anticoncepcional


Cabral (2017), aponta que a partir dos anos 60, com o evento da pílula anticoncepcional,
o papel masculino na contracepção cai vertiginosamente, isso ocorre porque antes da criação
Estudos de Sexualidade 3

das pílulas os métodos contraceptivos eram masculinos, como o uso de preservativos e o coito
interrompido. Após o evento das pílulas, a responsabilidade da contracepção se torna quase
que exclusivamente feminina, como se homens não fizessem parte do processo de gravidez ou
da participação na contracepção.
Quando essa responsabilidade recai apenas às mulheres, os homens assumem um papel
passivo, deixando para a mulher a escolha do método contraceptivo e sua manutenção. Desta
forma, engravidar ou fazer o controle da fecundidade se torna algo restrito às mulheres.
Roteiros sexuais aprendidos em relação à contracepção apontam para ideias de que, por
exemplo, os homens possuem mais necessidades sexuais, ou de que são as mulheres que 155

engravidam estão mais propensas a se responsabilizar pela contracepção, ou até mesmo a


separação do coito em relação ao método contraceptivo, ressaltam o papel da mulher na
responsabilidade da contracepção. Propõe-se, então, considerar a prática contraceptiva como
resultado de relações de gênero, composição dos pares, dimensão religiosa, interações
familiares, de classe e geracionais, denotando uma leitura socioantropológica à contracepção.
O advento tecnológico da pílula hormonal trouxe inúmeras transformações para a
gestão da vida contraceptiva. Essa inovação permitiu às mulheres maior controle sobre a
reprodução e foi interpretada, por um lado, como importante conquista delas no processo de
busca pela igualdade entre homens e mulheres, pois as libertaria da maternidade compulsória.
Por outro lado, algumas autoras contestam a ideia de que os procedimentos hormonais de
controle da fecundidade tenham diminuído as diferenças de gênero (CABRAL, 2017, apud
BAJOS; Ferrand, 2004).

A medicalização do corpo feminino


De acordo com Cavalieri (2017), a pílula anticoncepcional pode ser considerada um
artifício de medicalização do corpo feminino uma vez que o discurso usado acerca do
medicamento é justamente controlar o corpo feminino através do controle da reprodução. É
importante ressaltar a importância do discurso que vem imbuído na ministração da pílula
anticoncepcional, pois é esse discurso que propaga determinado saber médico, estando este
acima do entendimento da mulher acerca de seu próprio corpo. Quando a ginecologia passa a
ter supremacia sobre o discurso daquilo que é melhor para o corpo feminino, temos o uso da
pílula anticoncepcional como uma intervenção neste corpo através da apropriação do discurso
da mulher pelo médico, sendo este quem prescreve o uso da pílula anticoncepcional e seus
motivos de uso.
O desenvolvimento da ciência no ocidente assim como a chegada da modernidade –
eventos ocorridos a partir do século XVII até o século XIX – desembocaram em uma ciência
de cunho racional e mecanicista. A medicina passa a ser compartimentalizada para depois ser
reagrupada; isola-se os componentes do corpo para reinseri-los em seus mecanismos originais.
Esta forma de pensar o modelo biomédico dá vasão à objetificação dos corpos (CAVALIERI,
2017 apud LEBRETON, 2007).
Vale ressaltar o significado do termo “medicalização” de acordo com Cavalieri (2017):
(...) um processo pelo qual os problemas não médicos passam a ser considerados e tratados
como problemas médicos, por meio de diagnósticos, tecnologias e uso de medicamentos.
Este processo está presente em fatos comuns da vida, como no controle da ansiedade e do
humor, da sexualidade, de transtornos psicológicos, de atenção ou de doenças até então não
classificadas como tal. (...) Assim, o processo de medicalização transforma aspectos
cotidianos da vida em patologias, estreitando a gama do que é aceitável como “normal” e
torna passível de intervenção e tratamento (p. 36).

Uma vez que a medicina se torna uma forma de controle a partir da concepção de como
se enxerga a vida, a tendência é a manutenção desse controle como forma de poder sobre as
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

outras formas de se perceber a mesma situação. O modelo médico, assim, se transforma em


um discurso de manutenção do poder (FOCAULT, 1976).
De acordo com Focault (1976), as práticas sexuais, até o final do século XVII, eram
regidas por três códigos. O primeiro era lei civil, o segundo o direito canônico e o terceiro a
pastoral cristã. Esses três códigos denotavam sexualidade considerada corretas daquelas
consideradas danosas e condenáveis. Observava-se as questões acerca da sexualidade serem
tratadas nos confessionários, num prisma religioso. No entanto, a partir Contrarreforma (Por
volta de 1545), o modelo médico começou a tomar espaço e a confissão mudou de lugar; saiu
156
do confessionário e rumou para o consultório médico. Cavalieri (2017) citando Lefrève (1991),
compara o momento de consagração do médico, o preenchimento do receituário, com o ritual
de consagração das hóstias na Igreja Católica.
O médico se torna educador, passando concepções da moral de cada época a partir dos
interesses de manutenção do poder vigente. Leva-se em consideração o controle populacional,
a tecnologia como a grande solução, o interesse político acerca do corpo da mulher. Leva-se
muita coisa em consideração, menos o controle da mulher sobre o seu próprio corpo e como o
gerir (CAVALIERI, 2017).

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
O objetivo geral deste trabalho de conclusão de curso é compreender, historicamente,
o surgimento do patriarcado e o controle do corpo feminino, culminando no advento da pílula
anticoncepcional e a concomitante medicalização do corpo feminino.
Objetivos específicos
• Investigar, por meio da Teoria Feminista, o surgimento do patriarcado.
• Recapitular, historicamente, o advento da pílula anticoncepcional.
• Analisar criticamente a reinserção da mulher no mercado de trabalho após o advento da
pílula anticoncepcional.
• Verificar a relação entre o advento da pílula anticoncepcional e o controle e medicalização
do corpo da mulher.
• Analisar as relações de gênero após o advento da pílula anticoncepcional.

3. METODOLOGIA
Levantamento bibliográfico de artigos procurados através dos portais Google Scholar,
Pepsic e Scielo. A busca foi feita por palavras-chave, como “pílula anticoncepcional”,
“medicalização”, “relações de gênero” e “mulher no mercado de trabalho” no idioma
português. Foram encontrados 6 artigos com temáticas relevantes para a pesquisa. Além da
pesquisa virtual em busca de artigos, foram utilizados 5 livros para levantamento bibliográfico
sobre feminismo, relações de gênero, surgimento do patriarcado e controle do corpo feminino.

4. DISCUSSÃO
Antes de mais nada, é necessário registrar a escassez de artigos científicos acerca da
pílula anticoncepcional, seu efeito sócio-histórico para as mulheres e a discussão de relação de
gênero e medicalização do corpo feminino. A tarefa de compreender a situação da mulher em
relação ao controle de seu próprio corpo é extremamente importante. Desta forma, é relevante
questionar o motivo de tamanha dificuldade para encontrar material científico sobre o tema.

O advento da pílula anticoncepcional e a inserção da mulher no mercado de trabalho


Como já exposto no presente trabalho, a mulher perdeu o controle sobre o próprio corpo
há muito tempo. De acordo com Beauvoir (1947), isso ocorreu com a descoberta do bronze,
Estudos de Sexualidade 3

culminando na propriedade privada e delegação da mulher a trabalhos domésticos


considerados de menor valor. Para a filósofa francesa, a luta pela emancipação da mulher está
intrinsicamente ligada ao seu poder de trabalho, pois assim se torna autônoma da figura
masculina. Para ela, a luta de classes é extremamente importante, uma vez que vê a mulher
como tolhida de seu reconhecimento e dos meios de produção.
O homem se torna dono da mulher, de seu corpo e de sua escolha reprodutiva. Até hoje
podemos observar este fenômeno em maior ou menor escala, dependendo da classe social,
etnia e cor da mulher. De acordo com Oliveira e Oliveira (2017), atualmente a mulher ainda se
vê com desafios para se inserir no mercado de trabalho de forma igualitária ao homem, sendo 157

esses a busca pela igualdade salarial, o respeito e a falta de oportunidades em cargos superiores
dentro das empresas. De acordo com uma pesquisa feita pelo IBGE (2017), em 2015: “cerca
de 23,1 milhões de pessoas no comando de seus negócios. Com o total de 7,2 milhões (31%)
eram mulheres e 15,9 milhões (69%) eram homens”. Essa diferença ainda é gritante, apesar de
toda a evolução da mulher brasileira no mercado de trabalho.
Claro, não se pode ignorar a importância de tal advento, afinal, como Barbosa (2016)
mostra em seu artigo através da publicação do jornal Correio da Manhã, de 1972, a entrada da
mulher no mercado de trabalho demandou uma mudança na estrutura familiar para que assim
ela ficasse em plano de igualdade com o homem. De acordo com o jornal, isso dá porque,
através do advento da pílula anticoncepcional, a mulher descobriu sua sexualidade e descobriu
que podia dirigi-la. Porém, uma análise mais detalhada dos fatos nos faz questionar algumas
afirmações do jornal da época. Primeiramente, por que a tarefa de cuidar da contracepção e de
se medicar, a fim de finalmente ficar a par com o homem no mercado de trabalho, recai
totalmente como responsabilidade da mulher? Isso é igualdade? A mulher precisa passar,
solitária, por todas essas etapas antes de ser aceita em algum cargo?
Indo contra ideia vigente de que a liberação sexual promovida pelo advento da pílula
anticoncepcional fez, enfim, com que as mulheres pudessem galgar seu espaço no mercado de
trabalho, Barbosa (2016), citando Hobsbawm (2008), expõe que entrada da mulher no mercado
de trabalho se deu de forma menos pomposa, pois eram mão-de-obra barata. Os empregadores
não as escolhiam por uma questão social e pautada nos direitos das mulheres. Era por conta da
pobreza, por patrões que escolhiam mulheres por serem mais “dóceis”, também pelo crescente
número delas no mercado e por terem de chefiar, sozinhas, famílias inteiras.
Hooks (2000) nos traz uma visão feminista radical acerca da mulher no mercado de
trabalho. Enquanto a mulher branca percebia a luta classe a balizando de acordo com o poder
social e econômico do homem de sua classe social, algumas outras poucas mulheres, em sua
maioria pretas, de classe social baixa, clamavam por uma mudança fundamental na estrutura
de classes vigente, a fim de substituir velhos paradigmas patriarcais, buscando modelos de
igualdade e reciprocidade. Mulheres brancas com alta educação, que obtinham o foco midiático
da luta feministas e, por tanto, escolhiam suas pautas, se lamuriavam por serem resignadas à
subordinação do lar como donas de casa. Por outro lado, a esmagadora parcela de mulheres no
Estados Unidos era da classe trabalhadora e tinha de fazer duas jornadas de trabalho; dentro e
fora do lar. Para estas mulheres, o confinamento ao lar podia parecer uma benção e não uma
maldição. Essa realidade é ainda mais expressiva em países de terceiro mundo, como o Brasil.
Observa-se, então, a importância da leitura de Beauvoir (1947) acerca da mulher e da
luta de classe como saída de autonomia e combate ao patriarcado. Porém, segundo Hooks
(2000), antes de se resumir à luta de classes, o feminismo visa antes o bem-estar e igualdade
entre todas as mulheres, independentemente de sua etnia, cor ou classe social, pois tal
padronização calcada em desigualdades é uma característica própria de um pensamento
patriarcal capitalista.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

O advento da pílula anticoncepcional e o controle e medicalização do corpo feminino


Seguindo o raciocínio de Hooks, agora citando Davis (1983), o movimento pelo
controle de natalidade obteve êxito pouquíssimas vezes quando se trata de reunir mulheres de
diferentes origens sociais. Margaret Sanger, a idealizadora da pílula anticoncepcional, buscou,
de forma pouco refletida, a defesa da autonomia feminina ao direito de poder escolher o
número de filhos desejados. Pouco refletida, pois não levou em consideração o momento sócio-
histórico no qual estava inserida e para quem realmente a pílula anticoncepcional serviria e
para quais propósitos seria usada. Pensou apenas na praticidade da manutenção e ministração
158
da pílula e seu resultado de alta eficácia. Deixou, ainda, que as pesquisas e testes ficassem nas
mãos de homens que não eram antissexistas (HOOKS, 2000).
Hooks (2000) também aponta para o fato de que o modelo médico vigente é patriarcal
capitalista, retendo cargos e conhecimento em torno da figura do homem como forma de
manutenção de privilégios. O homem ainda controla o corpo da mulher e faz com ele o que lhe
convém. Nesse contexto, pode-se observar que a liberação sexual da mulher ocorrida na década
de 60 – seu estopim e seus desdobramentos – é uma meia verdade. O controle do corpo
feminino ainda é uma realidade pungente e se dá de muitas formas, sendo uma delas a da
medicalização através da pílula anticoncepcional.
Como exposto anteriormente, o discurso vigente sobre controle reprodutivo da mulher
é perigoso e distorcido, pois retira a autonomia de saber, experimentar e entender quais
métodos contraceptivos são melhores para cada uma. O modelo médico mecanicista delega ao
profissional o saber maior sobre o corpo feminino, usando da generalização, estatísticas,
especialização e medicalização como forma de compartimentar o corpo humano, para depois
olhar o todo (CAVALIERI, 2017).
Assim, pode-se inferir que tal discurso acerca do controle reprodutivo fica carente da
idiossincrasia própria da natureza de qualquer ser vivo. Nesse modelo médico os aspectos
biopsicossociais e espirituais que formam a experiência de vida das mulheres são pouco
levados em consideração, lembrando de que ser mulher está longe de ser sinônimo de doença.
Então qual o motivo do pouco investimento em medicamentos e outros métodos contraceptivos
para os homens?

As relações de gênero após o advento da pílula anticoncepcional


Davis (1983) menciona que “O que o desejo das mulheres de controlar seu sistema
reprodutivo é provavelmente tão antigo quanto a própria humanidade.”. Percebe-se nesta frase
que a agenda feminina a respeito do controle reprodutivo é uma preocupação central ao longo
da história. Cabral (2017) atribui ao advento da pílula anticoncepcional a responsabilidade,
quase que exclusiva, por parte da mulher em tomar medidas contraceptivas. O homem ficou
em uma posição de mero coadjuvante ou até de espectador nestas medidas, como se não fosse
tão responsável no processo de fecundação quanto a mulher o é.
Observa-se através da frase de Davis (1983) que a atribuição somente ao advento da
pílula anticoncepcional como responsável pela desigualdade nas relações de gênero na prática
contraceptiva não é completamente acurada, pois o desejo da mulher de controlar seu sistema
reprodutivo provavelmente sempre existiu. Mas aqui se fala da prática contraceptiva em si, e,
neste sentido, a pílula fez a balança pender novamente a favor dos homens.
Federeci (2017), aponta que, ao longo da história, a mulher nunca deixou de buscar
métodos contraceptivos. Segundo a autora – que foca sua pesquisa durante o período da Idade
Média até o descobrimento e colonização do continente americano – o controle de natalidade
e apropriação do corpo feminino se deu de forma marcante depois da Peste Negra (1347–1351).
Com cerca de 40% da população europeia morta durante a pandemia, a mão-de-obra se tornou
escassa e os trabalhadores do campo passaram a exigir melhores pagamentos, se recusavam a
Estudos de Sexualidade 3

pagar impostos aos senhores feudais e exigiam melhor qualidade de trabalho. Os senhores
feudais, por sua vez, não admitiam a perda de privilégios e de acúmulo de bens como
consequência da insubordinação do campesinato.
Através da Igreja Católica, principalmente durante a Contrarreforma, os senhores
feudais e burgueses abastados se uniram para acabar com o poder do campesinato através do
corpo da mulher. Esses três poderes precisavam assegurar que haveria gente o suficiente para
trabalhar nos campos, e, para tal intento, a Igreja Católica passou a considerar o aborto e a
contracepção como os piores e mais imperdoáveis pecados. O útero feminino virou um cofre
e as mulheres que pesquisavam e praticavam formas de contracepção e de aborto foram 159

consideradas bruxas e lançadas às fogueiras (FEDERECI, 2017).


Essa volta ao passado se faz pertinente para a compreensão do advento da pílula
anticoncepcional como controle do corpo feminino em prol do controle de natalidade. Dessa
vez, a Teoria Malthusiana antinatalista, com o discurso de que os recursos naturais do planeta
estavam se esgotando, permitiu a pesquisa e criação da pílula. Porém, Hooks (2000) e Davis
(1983) vão mais a fundo no tema e expõem as ideias de cunho eugenista da Teoria Malthusiana.
Para as autoras, mulheres pretas e pobres foram as que mais sofreram com a Teoria
Malthusiana, pois esta não buscava reduzir a taxa de natalidade de mulheres brancas e de
primeiro mundo. Basta elencar os inúmeros casos de esterilização feminina compulsória no
continente americano antes do advento da pílula anticoncepcional. A esterilização foi uma
forma comum de controle populacional de populações pretas, indígenas e hispânicas no
continente americano (DAVIS, 1983).
Assim, pode-se afirmar que enquanto os interesses econômicos e de manutenção do
capitalismo estiverem em poder do corpo feminino através do Estado, das leis e da religião as
relações de gênero sempre serão desiguais, com a mulher sofrendo simplesmente pela condição
de ser mulher. Nesse sentido, Federeci (2017), Hooks (2000) e Davis (1983) divergem da visão
de Beauvoir (1947) de que a emancipação feminina se dará através da conquista dos meios de
produção, mas antes através da autonomia do próprio corpo.
Tal emancipação será possível através do direito ao aborto seguro, à educação sexual
de qualidade nas casas, escolas, universidades e políticas públicas de cada país, em todas as
camadas socais (Hooks, 2000). Apenas assim o corpo feminino deixará de ser controlado e
medicalizado por interesse do patriarcado.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho visou gerar questionamentos acerca do controle do corpo feminino
sem presunção de fechar qualquer conclusão sobre o tema, afinal concluir algo significa o fim
da discussão e este tema necessita justamente de debates, abertura para o diálogo e,
principalmente, de escuta.
Observa-se que o interesse patriarcal capitalista esteve por trás da criação da pílula
anticoncepcional, visando inicialmente o controle populacional de etnias e classes sociais
consideradas menos merecedoras ao direito à vida do que a parcela branca e de primeiro mundo
da população. O controle do corpo feminino sempre se deu desta forma a partir da descoberta
do bronze, passando, ao longo da história, por momentos de controle reprodutivo natalista e
antinatalista.
Por outro lado, faz-se necessário lembrar que autonomia feminina – principalmente no
que tange a crescente a tomada dos meios de produção através da reinserção da mulher no
mercado de trabalho – é uma realidade conquistada por conta do advento da pílula
anticoncepcional. A restruturação familiar e o controle da maternidade compulsória só foram
possíveis a partir de tal advento, pois a mulher pôde finalmente ter uma escolha mais segura
no que diz respeito a planejar a maternidade ou de simplesmente não a desejar para si.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Neste sentido, nota-se que a crescente, porém, devagar reinserção da mulher no


mercado de trabalho não resolve a realidade do controle do corpo feminino nem as disparidades
de relação de gênero. Tal controle, inclusive, ainda influencia os direitos da mulher no
ambiente de trabalho, como a diferença salarial, a luta constante pela conquista de respeito e
pouca presença em cargos de chefia. Assim, pode-se inferir que, apesar do advento da pílula
anticoncepcional, a autonomia da mulher sobre o próprio corpo ainda não é uma realidade.
Fora do ambiente de trabalho, observa-se a responsabilidade quase que completa da mulher
pela prática do controle reprodutivo.
160
A medicalização do corpo feminino está intrinsicamente ligada ao advento da pílula
anticoncepcional. Indústrias farmacêuticas e o modelo médico mecanicista pouco levam em
consideração os aspectos biopsicossociais e espirituais de cada mulher, buscando a
generalização e retendo o conhecimento em pequenos círculos ainda embebidos em um
pensamento sexista. Assim, a manutenção do patriarcado fica garantida, pois a economia gira
em torno do controle do corpo feminino, assim como a produção de conhecimento acerca deste
corpo que é controlado.
Em relação a Teoria Feminista, observa-se a necessidade de união das diferentes
vertentes do movimento, principalmente em relação à igualdade de voz entre mulheres brancas
e pretas. A emancipação feminina dos grilhões do modelo social patriarcal apenas se dará
levando em consideração de que enquanto existir uma mulher oprimida não haverá tal
emancipação, pois vemos que o Estado e as leis são voláteis e geralmente pendem a favor da
manutenção de privilégios dos homens.
Desta forma, para que o controle do corpo feminino seja extinto é necessário que cada
mulher escolha como gerir o próprio corpo, tendo garantia de direito ao aborto seguro, à
educação sexual de qualidade e políticas públicas que visem fiscalizar e garantir tais direitos.

6. BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, K. R. O planejamento familiar no período de 1940 a 1990: considerações sobre os efeitos sociais
da pílula anticoncepcional. Universidade de Brasília, 2016.
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo – volume. 1. Círculo do Livro S.A., São Paulo. 1947.
BRASIL, Ministério da Saúde. Saúde de A à Z – gravidez. Brasília. 2020. Disponível em:
https://saude.gov.br/saude-de-a-z/gravidez. Acesso em 03 ago 2020.
CABRAL, C. S. Articulações entre contracepção, sexualidade e relações de gênero. Saúde Soc. São Paulo, v. 26,
n. 4, pp.1093-1104. 2017.
CAVALIERI, F. S. A prescrição da pílula anticoncepcional na década de 1960: a perspectiva de médicos e
ginecologistas. Universidade de São Paulo (USP), 2017.
DAVIS, A. Mulheres, Raça e Classe. Editora Boi Tempo, 1. Edição, São Paulo. 2016.
FEDERECI, S. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Editora Elefante, São Paulo, 2017.
FOCAULT. M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Editora Paz e Terra, 10. Edição. Rio de
Janeiro/São Paulo, 2020.
HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo – políticas arrebatadoras. Editora Rosa dos Tempos, 12. Edição,
Rio de Janeiro, 2020.
IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Estatisticas de Empreendedorismo
2015. Rio de Janeiro, 2017. Disponivel em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101312.pdf.
OLIVEIRA, L. A.; OLIVEIRA, E. L. A mulher no mercado de trabalho: algumas reflexões. Revista REFAV
Multidisciplinar v. 8, n. 1, pp. 17-27, jan./jun, 2019.
PEDRO, J. M. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de gênero. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 23, n. 45, pp. 239-260, 2003.
Estudos de Sexualidade 3

Antidepressivos e disfunção sexual: uma revisão narrativa

Janaína Bandeira

161

RESUMO
A depressão é um transtorno mental com prevalência crescente ao redor do mundo.
Consequentemente, eleva-se o consumo de antidepressivos. Estudos vêm sendo realizados para
avaliar os efeitos colaterais das diversas classes dessas substâncias, inclusive a disfunção
sexual, comum na maioria das pessoas que as usam regularmente e uma das principais causas
de não adesão medicamentosa. Cada molécula age de diferentes maneiras nos neuroreceptores,
provocando uma variedade particular de efeitos adversos na esfera sexual. Por isso, cabe aos
profissionais que acompanham esses pacientes desenvolver estratégias para minimizar o
impacto e prescrever sabiamente o tratamento, de forma a manter a qualidade da função sexual
desses indivíduos.

Palavras-chave: Disfunção sexual e depressão, disfunção sexual induzida por antidepressivos,


neurobiologia dos antidepressivos; tratamento da disfunção sexual.

ABSTRACT
Depression is a mental disorder with increasing prevalence around the world. Consequently,
the consumption of antidepressants increases. Studies have been carried out to evaluate the
side effects of the different classes of these substances, including sexual dysfunction, common
in most people who use them regularly and one of the main causes of non-adherence to
medication. Each molecule acts in different ways on the neuro-receptors, causing a particular
variety of adverse effects in the sexual scope. Therefore, it is up to the professionals who
follow-up these patients to develop strategies to minimize the impact and prescribe the
treatment wisely, in order to effectively resolve the depressive symptoms and maintain the
quality of the sexual function of these individuals.
Keywords: Sexual dysfunction and depression, sexual dysfunction induced by
antidepressants, neurobiology of antidepressants; treatment of sexual dysfuncion.

1. INTRODUÇÃO
Segundo o documento da Organização Mundial de Saúde (OMS), intitulado “Saúde
Sexual, Direitos Humanos e a Lei”, esta é a definição para saúde sexual:
A saúde sexual hoje é amplamente entendida como um estado de bem-estar físico, emocional, mental e
social em relação à sexualidade. Não abrange apenas certos aspectos da saúde reprodutiva - como ser
capaz de controlar a fertilidade através de acesso a contracepção e aborto, ou ser livre de infecções
sexualmente transmissíveis (DST’s), disfunção sexual e sequelas relacionadas ao sexo, violência ou
mutilação genital feminina - mas também, a possibilidade de ter experiências sexuais prazerosas e
seguras, livres de coerção, discriminação ou violência. Na verdade, ficou claro que a sexualidade humana
inclui muitas formas diferentes de comportamento e expressão, e que o reconhecimento da diversidade
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
de comportamento e expressão sexual contribui para a sensação geral de bem-estar das pessoas e saúde
(OMS, 2020, p. 10).

Sabe-se que vários aspectos psicológicos podem interferir significativamente na saúde


sexual. De acordo com a OMS, a depressão ocupa o 1º lugar em termos de tempo de
incapacitação ao longo da vida, sendo um dos principais sintomas a redução do interesse
sexual. Trata-se de um transtorno mental bastante recorrente na população mundial e nacional.
No Brasil, a prevalência ao longo da vida está estimada em 15,5%, sendo em torno de 20%
162 para as mulheres e 12% para os homens (OMS, 2002).
Todas as três fases da resposta sexual (desejo, excitação e orgasmo) podem ser
impactadas quando o indivíduo se encontra em um episódio depressivo. Ademais, literatura
reporta que pessoas que não respondem de forma satisfatória ao tratamento medicamentoso e
não medicamentoso desta doença apresentam maiores níveis de disfunção sexual (DS) em
todas as fases. Homens e mulheres têm diferentes efeitos adversos aos antidepressivos (AD’s)
dependendo de cada uma das fases, por exemplo: homens reportam mais problemas no desejo
e no orgasmo, enquanto mulheres, na excitação (CLAYTON et al., 2014; 2014).
Artigo de revisão australiano mostrou que os efeitos adversos mais evidenciados
por mulheres eram respectivamente: excitação (83%), comprometimento do desejo sexual
(72%) e orgasmo (42%) (ROTHMORE, 2020).
Em estudo quantitativo realizado (KENNEDY; RIZVI, 2009), aproximadamente
40% dos homens e 50% das mulheres que possuíam depressão e ainda não haviam iniciado o
tratamento reportaram falta de desejo sexual. Dessa forma, percebe-se que aspectos
relacionados a saúde mental e a saúde sexual estão interligados, pois a presença de uma dessas
condições pode desencadear ou exacerbar a outra, e o tratamento de uma dessas condições
pode levar à melhora da segunda.
Segundo Atlantis e Sullivan (2012), os indivíduos com depressão apresentam risco
maior de disfunção sexual, em torno de 50-70%, e vice-versa, ou seja, os sujeitos que possuem
disfunção sexual apresentam maiores chances de desenvolver depressão (130-210%).
Nesse contexto, a presença de DS, caracterizada por alteração persistente em
qualquer dos estágios do ciclo de resposta sexual, aparentemente está correlacionada à
gravidade dos sintomas depressivos e é apontada pelos pacientes como um importante motivo
para não adesão ao tratamento contra a depressão. Por isso, acredita-se que a desordem na
saúde sexual, decorrente do uso de AD’s, é uma significativa causa de falha terapêutica
(CLAYTON et al., 2014).
Estudo relatou que até 7% da população americana está em uso de antidepressivos,
especificamente os Inibidores Seletivos de Recaptação da Serotonina (ISRS), sendo a terceira
classe de medicação mais prescrita nos Estados Unidos. No mesmo estudo, após autorrelato da
correlação do uso de antidepressivo e a indução da DS, a prevalência estimada é de 70%
(REISMAN, 2017). Assim, acredita-se que o cômputo de pacientes com depressão ou sob uso
de AD’s que possuam disfunções sexuais seja ainda maior devido à subnotificação, uma vez
que poucos reportam essas queixas espontaneamente (CLAYTON et al., 2014).
Em outro estudo, a prevalência de disfunção sexual induzida por AD’s chegou a
80% em voluntários saudáveis que fizeram uso de ISRS por pelo menos oito semanas. Dentre
as queixas mais frequentes, podemos destacar redução do desejo sexual e demora para atingir
o orgasmo. Anorgasmia e ausência de ejaculação são os efeitos colaterais menos tolerados
pelos pacientes, principalmente por homens (MONTEJO et al., 2019).
Sabe-se que a ação neurobiológica dos AD’s ocorre principalmente nos receptores
de serotonina, noradrenalina e dopamina, os quais não são exclusivamente distribuídos no
Sistema Nervoso Central, estando passíveis de provocar diversos efeitos colaterais. Alterações
Estudos de Sexualidade 3

em substâncias como prolactina, hormônios sexuais e tireoideanos estão inclusas (WILLNER


et al., 2013).

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
O artigo realizou uma revisão sobre os efeitos dos diferentes antidepressivos na qualidade da
saúde sexual dos pacientes que fazem uso dessa classe de medicações.
Objetivos específicos
-- Conhecer os antidepressivos que podem ser preferíveis quanto à redução do impacto 163

neste importante aspecto de vida.


-- Discutir estratégias alternativas para aqueles pacientes que não podem suspender o
uso do AD causador da DS.

3. METODOLOGIA
Optou-se pela realização de uma revisão bibliográfica narrativa, a qual consiste em
uma análise da literatura publicada em diversas fontes, como artigos científicos (impressos ou
eletrônicos) e livros, combinada com a visão crítica e/ou pessoal do autor.
Assim, a pesquisa fora produzida em uma grande plataforma internacional, o sítio
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/, com as seguintes palavras-chave: “sexuality and
depression”; “sexuality and antidepressants”; “neurobiology of antidepressants”; “prevalence
of sexuality disorders”; “sexual dysfunctions and antidepressants”; e em uma plataforma
nacional, o sítio scielo.org, com os seguintes termos: “prevalência de disfunção sexual”;
“disfunção sexual e depressão”; “disfunção sexual e antidepressivos”.
Produções com mais de 10 anos de publicação foram excluídas do levantamento,
com exceção de alguns artigos devido a sua relevância e contribuição, assim como um
documento da Organização Mundial da Saúde de 2002, o qual descreve o conceito de saúde
mental. Artigos de relevância encontrados na citação do material bibliográfico também foram
citados.
Dados epidemiológicos foram pesquisados no site do Ministério da Saúde.

4. DESENVOLVIMENTO
Uma variedade de mecanismos aparenta estar envolvidos no desenvolvimento de
DS em pacientes com depressão, com ou sem tratamento medicamentoso. Isso inclui fatores
psicossociais, comorbidades médicas e o uso de medicamentos para tratá-las, os quais pode
causar alterações hormonais, neurológicas e vasculares, afetando a função sexual dos
indivíduos (CLAYTON et al., 2014). Por isso, muitos pesquisadores recomendam uma
abordagem biopsicossocial para abordar e tratar os transtornos de sexualidade (CHOKKA;
HANKEY, 2018).
Com o propósito de aumentar a adesão dos pacientes à terapêutica medicamentosa
com os antidepressivos, criou-se estratégias para combater a disfunção sexual consequente ao
seu uso. O Food and Drug Administration (FDA) estimula o uso de questionários específicos,
como a Escala de Experiência Sexual do Arizona (ASEX) e o Changes in Sexual Funcionting
Questionnaire (CSFQ) antes do início do uso de AD’s, assim como proposta de avaliação e
seguimento desses pacientes (FDA, 2016). No entanto, nenhum desses questionários foram
traduzidos e validados para o português brasileiro, com exceção do Female Sexual Funcion
Index (FSFI), o qual aborda apenas a função sexual feminina (HENTSCHEL et al., 2007). Em
2009, Carmita Abdo, uma pesquisadora brasileira, criou e sugeriu o uso do Quociente Sexual
– Versão Feminina (QSF) (ABDO, 2009).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Destarte, faz-se necessária a investigação de quadros clínicos associados que


podem, de maneira independente, provocar disfunções sexuais, independente da associação
com AD’s. Dessa forma, é recomendável a realização de exames laboratoriais, como
hemograma completo, glicemia em jejum e pós-prandial (para investigação de diabetes
mellitus, uma importante condição causadora de DS), dosagem de lipídios, testosterona e
hormônio luteinizante (CHOKKA; HANKEY, 2018).

Receptores e neurotransmissores relacionados aos antidepressivos


164
Além de fatores ambientais e psicossociais, a função sexual é regulada por
mecanismos neuroendócrinos, através dos neurotransmissores e neuropeptídios. Os
neurotransmissores que mais se destacam são: serotonina, dopamina e noradrenalina, assim
como os opióides são os mais importantes neuropetídeos. De uma maneira geral, a dopamina,
o glutamato, o óxido nítrico e a ocitocina facilitam a função sexual e, em contra partida, a
serotonina, o ácido gama-aminobutírico (GABA) e os opioides inibem essa função (Figura 1).
A dopamina, por exemplo, participa de todas as etapas do ciclo sexual masculino, e por essa
razão os agonistas dopaminérgicos estão relacionados à excitação, enquanto os seus agentes
antagonistas, como os antipsicóticos, causam importantes alterações na função sexual. Os
níveis de noradrenalina se elevam durante a excitação de ambos os sexos. No entanto,
diferenças podem ocorrer entre ambos quanto à ação de um neurotransmissor. A adrenalina,
por exemplo, facilita a vasocongestão e a lubrificação feminina, mas, no homem, inibe a
resposta erétil, e seus bloqueadores estimulam a ereção peniana (ABDO, 2012). Assim,
observa-se um amplo espectro de particularidades que podem ocorrer como resposta à função
sexual de homens e mulheres, dependendo da ação que cada medicamento ou substância exerça
sobre os diversos receptores citados.

Figura 1 – Antidepressivos, neurotransmissores e seus efeitos na função sexual

Fonte: Elaboração própria da autora, 2020 .

Já a serotonina pode
facilitar, inibir ou não causar
qualquer alteração na função sexual,
dependendo do subtipo de receptor
ao qual a substância aja diretamente.
Especificamente, a ação do receptor 5-HT2A de serotonina prejudica todas as fases de resposta
sexual em homens e mulheres. Os inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRS), em
geral, são os principais vilões à função sexual devido à sua ação inibitória de liberação de
serotonina e dopamina no hipotálamo e região mesolímbica (CHOKKA; HANKEY, 2018),
por causar down regulation, nessa mesma área, reduzindo, assim, os níveis de testosterona
(ROTHMORE,2020) e elevando os níveis de prolactina (SEGRAVES, 2007), além de agir no
corpo estriado ventral, bloqueando os receptores colinérgicos e α1-adrenérgicos, resultando
em comprometimento da vasocongestão e dos mecanismos de excitação nos órgãos sexuais.
Ainda, acredita-se que a ação do 5-hidroxitriptofano (substância precursora da
serotonina) reduza a ação do óxido nítrico (CLAYTON et al., 2014). Por outro lado, a
estimulação nos receptores 5-HT2C e 5-HT1A podem facilitar a ereção e a ejaculação
(STAHL, 2014), motivo pelo qual AD’s como a mirtazapina, que age nesses receptores, está
minimamente associada a disfunção sexual, podendo ser utilizada como “antídotos” para quem
utiliza ISRS e apresenta algum nível de DS. Por isso, AD’s com efeitos ausentes ou mínimos
Estudos de Sexualidade 3

sobre os receptores de serotonina, como a Bupropriona, não estão associadas a DS


(SEGRAVES, 2007).
O melhor entendimento sobre o mecanismo de ação da ISRS pode ser observado
na figura 2 abaixo:

Figura 2 – Ação dos ISRS sobre os diferentes receptores de serotonina


Fonte: STAHL, 2014.

Perfil dos antidepressivos 165


De modo geral, os AD’s
podem ser catalogados em cinco
classes: os inibidores seletivos de
recaptação da serotonina (ISRS); os
inibidores de recaptação de
serotonina-noradrenalina (IRSN); os
inibidores de recaptação de
noradrenalina e dopamina
(Bupropriona); os novos AD’s,
como agomelatina e mirtazapina,
com ações específicas em outros
receptores; e os clássicos tricíclicos e inibidores da MAO (IMAO) (STAHL, 2014). Estes
últimos não serão abordados nesse estudo devido à necessidade de importante restrição
alimentar, sob risco de hipertensão arterial grave e consequências cardiovasculares, estando,
portanto, em desuso.
Os inibidores tricíclicos estão associados a alta prevalência de anorgasmia e
ejaculação precoce. Em um estudo, mais de 90% dos pacientes sob uso de Clomipramina
apresentaram anorgasmia ou atraso em atingir o orgasmo (SEGRAVES, 2007; CHOKKA;
HANKEY, 2018).
Pesquisa prospectiva com subpopulação de pacientes com menos fatores
predisponentes para disfunção sexual, apresentou as maiores taxas de DS (30%) em pacientes
sob uso de Citalopram e Venlafaxina de liberação extendida, não havendo diferenças
significativas entre os AD’s da mesma classe (ISRS/IRNS). Isso sugere que a Venlafaxina
exerce efeitos predominantes nos receptores de serotonina em doses de até 225 mg/dia. A
menor prevalência de DS (7%) ocorreu entre os usuários de Bupropriona, um inibidor de
recaptação de noradrenalina/dopamina, e que, portanto, não exerce efeitos diretos sobre o
sistema serotoninérgico (CLAYTON et al., 2014).
Dessa maneira, os ISRS, assim como Clomipramina e Venlafaxina, são os AD’s
mais comumente associados a DS, enquanto outros AD’s com diferentes mecanismos de ação
(Mirtazapina, Bupropriona ou Agomelatina) parecem ter prevalência menor de DS
(MONTEJO et al., 2019). Apesar disso, nem todos os efeitos colaterais são completamente
negativos, pois alguns estudos comprovam sua eficácia no controle da ejaculação precoce
(ATLANTIS; SULLIVAN, 2012).
Também identificou nos estudos que a Fluvoxamina tem taxas menores de
disfunção sexual que os outros ISRS, e esse transtorno tende a remitir em dias após sua
descontinuação. Segundo Segraves (2007), cerca de 20% dos participantes apresentaram
redução da libido, e 10% disfunção erétil.
Venlafaxina, um inibidor dual de recaptação de serotonina e noradrenalina (IRSN),
tem uma taxa similar aos ISRS em relação à indução de DS. Duloxetina, também incluído na
classe dos IRSN, por outro lado, apresenta um melhor perfil de DS. Há base para sustentar a
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

troca de um ISRS por ela, principalmente, em pacientes portadores de depressão e ansiedade


como comorbidade (SEGRAVES, 2007).

Abordagens para a disfunção sexual induzida por antidepressivos


Com o aumento mundial da prescrição de AD’s e a publicação de estudos
evidenciando os efeitos negativos na esfera sexual dessas medicações, pesquisadores vêm
tentando desenvolver métodos para minimizá-los.
De uma maneira geral, recomenda-se avaliação periódica da função sexual dos
166
pacientes sob o uso regular de AD’s através de questionários ou pergunta ativa do entrevistador
acerca do assunto.

1. Remissão espontânea
A estratégia mais simples seria esperar a resolução da DS associada ao uso do AD,
no entanto isso só ocorre em cerca de 5-10% dos pacientes após quatro a seis meses
(CLAYTON et al., 2014). Essa abordagem é pouco prática e arriscada em termos de adesão
devido exigir muito tempo de espera, além de ser pouco provável que ocorra (ROTHMORE,
2020).
2. “Drug holidays”
O hábito de realizar “drug holidays” (“folga” da medicação, ou seja, não ingerir
em dias específicos) pode resultar em sintomas de descontinuação (para AD’s com meia vida
curta), retornando os sintomas depressivos ou reduzindo a adesão ao tratamento, uma vez que
“habitua” o paciente a pular as doses (CLAYTON et al., 2014).
Em um estudo com 30 pacientes ingerindo Sertralina, Paroxetina ou Fluoxetina,
foram orientados a descontinuar as medicações por quatro finais de semana seguidos.
Observou-se melhora de 50-60% nos participantes sob uso de Sertralina ou Paroxetina em
diferentes aspectos de suas funções sexuais, porém o mesmo só ocorreu em 10% dos que
fizeram uso de Fluoxetina (CLAYTON et al., 2014), provavelmente devido a longa meia vida
dessa substância e ao seu metabólito ativo (MONTEJO et al., 2019).

3. Redução da dose
A redução da dose pode ser uma alternativa nos casos em que os pacientes
respondedores estejam na fase de manutenção. Salienta-se que esta redução deve ser lenta e
pequena, respeitando a dosagem mínima terapêutica para uma determinada substância, de
forma a evitar o agravamento dos sintomas depressivos, surgimento de ansiedade ou de
sintomas de descontinuação, como tontura, náuseas, vertigem ou insônia (MONTEJO et al.,
2019). Em um estudo com 344 pacientes sob uso de ISRS, 30 deles se submeteram a redução
de dose de 50%, dos quis 73% relataram alguma melhora da DS (ROTHMORE, 2020).

4. Troca de antidepressivo
Outro caminho seria a troca de AD por um que tenha menos chances de causar DS.
É preferível iniciar um tratamento com uma medicação menos associada ao comprometimento
de suas funções sexuais, principalmente se for uma preocupação expressa do paciente. No
entanto, a troca de AD pode não induzir a mesma resposta benéfica ao transtorno que levou o
paciente a consumi-lo inicialmente, tornando-se uma estratégia arriscada em termos de
reaparecimento dos sintomas; ou, ainda, o paciente pode não preferir realizar a troca
(MONTEJO et al., 2019). Dessa maneira, essa abordagem torna-se válida nos casos em que os
pacientes obtiveram apenas respostas parciais ao primeiro AD (ROTHMORE, 2020).
Segundo Rothmore (2020), Escitalopram e Paroxetina provavelmente têm maiores
riscos de causar DS. Então, trocá-los por outro ISRS ou IRSN deve ser considerado. Caso seja
Estudos de Sexualidade 3

necessário o uso de um AD com importante efeito serotoninérgico e com baixo impacto na


função sexual, orgasmo e ejaculação, recomenda-se uso de Fluvoxamina quando não utilizada
acima de 100 mg/dia (MONTEJO et al., 2019).
Um estudo não demonstrou diferença estatística entre os pacientes que usaram
placebo e os que fizeram uso de até 100 mg/dia de Desvenlafaxina em relação a DS
(CLAYTON et al., 2015; CHOKKA; HANKEY, 2018), com sintomas de DS podendo surgir
em doses maiores. Assim, nesse contexto, a Desvelafaxina possui um perfil melhor (44,4%)
de prevalência de DS quando comparada a Venlafaxina (74%) e Duloxetina (75%)
(MONTEJO et al., 2019). 167

Em outra pesquisa, a Vortioxetina não foi estatisticamente diferente do que o


placebo para o risco de DS induzida por AD, de acordo com os questionários aplicados
(ASEX). Sendo, portanto, equivalente ao placebo no potencial de piora para uma DS já
existente (CLAYTON et al., 2014). Estudo controlado e randomizado mostrou melhora
significativa da função sexual nos pacientes que faziam uso de algum ISRS e trocaram-no por
Vortioxetina, quando comparados com os participantes que trocaram-no por Escitalopram
(ROTHMORE, 2020).
Em outra evidência científica realizada com homens, demonstrou-se diferença
significativa na libido e excitação, com mínimo comprometimento da Trazodona (12-18%)
quando comparada a Fluoxetina e a Sertralina (43-51%). Contudo, o estudo demonstrou
preocupação com a taxa de abandono do grupo sob o uso da Trazodona, possivelmente pelas
queixas de sonolência, pois 10 de 13 pacientes o fizeram por esse motivo (KHAZAIE et
al,.2015).

5. “Antídotos”
Segundo Segraves (2007), a estratégia mais utilizada para combater a DS induzida
pelos AD’s nos EUA é o uso de “antídotos”. Os fármacos: Bupropriona, Buspirona e os
inibidores da fosfodiesterase-5 (iPDE5) foram bem sucedidos em estudos duplo-cegos.
Trazodona, por outro lado, demonstrou melhora na ereção em homens e na lubrificação em
mulheres em um grupo de paciente com DS induzida por AD’s (CLAYTON et al., 2015).
Sabe-se que a Bupropriona tem sido usada para melhorar a libido em mulheres não
deprimidas e para tratar DS induzida por AD’s (CHOKKA; HANKEY, 2018). A sua
combinação com outros fármacos tem sido a estratégia mais eficaz, particularmente em
mulheres, com poucas evidências de benefício em homens (ROTHMORE, 2020). Seu uso tem
sido reforçado por robustas evidências científicas, porém, deve-se atentar para a possibilidade
de piora dos sintomas de ansiedade em alguns pacientes (MONTEJO et al., 2019). Seu uso
associado deve ser considerado quando a troca de AD não for possível.
Inúmeros estudos vêm demonstrando o potencial benéfico da Mirtazapina como
AD para aliviar a DS induzida por AD (CHOKKA; HANKEY, 2018). Um pequeno estudo
evidenciou que 48% dos pacientes tiveram resolução da DS induzida pelo AD quando
associados a Mirtazapina (RUTHMORE, 2020), e outro estudo observacional observou
melhora da DS em 70-90% dos pacientes após a troca do AD para a Mirtazapina (MONTEJO
et al., 2019).
Para a disfunção erétil, os iPDE5 (Sildenafila, Tadalafila, Vardenafila) são
considerados a primeira linha de farmacoterapia (CHOKKA; HANKEY, 2018), pois são bem
tolerados e especialmente úteis para reverter o efeito anticolinérgico causado pela Paroxetina.
Todavia, não são benéficos para tratar a redução da libido ou atraso ejaculatório (MONTEJO
et al., 2019). Em mulheres, essas drogas possuem benefícios em relação ao atraso para obter
orgasmo, mas não na libido (ROTHMORE, 2020), possivelmente por aumentar a ação do
óxido nítrico de maneira similar aos homens, resultando em vasodilatação clitoriana e dos
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

tecidos vaginais (BALDWIN et al., 2013). Ressalta-se que essa classe de medicamentos deve
ser usada com cautela em portadores de doença cardiovascular ou paciente sob uso de nitratos.
Estudo controlado e randomizado encontrou evidências de benefício do uso de
testosterona em gel comparado ao placebo em homens com DS induzida por AD, mas apenas
para aqueles com níveis relativamente baixos de testosterona matinal (até 350 ng/dL). Assim,
percebe-se que faltam estudos para suportar essa estratégia, especialmente em mulheres e
homens com níveis normais de testosterona (RUTHMORE, 2020).
O quadro 1 abaixo ilustra as principais medicações e seus efeitos diante da
168
disfunção sexual.
Quadro 1 – Sumário dos efeitos dos AD’s na DS e potenciais agentes
Sildenafila*
CATEGORIA A Tadalafila*
(melhora a função sexual) Mirtazapina
Bupropriona
Agomelatina
CATEGORIA B Desvenlafaxina
(sem efeito significativo na função
sexual) Trazodona
Vortioxetina
Citalopram
Clomipramina
Escitalopram
CATEGORIA C Fluoxetina
(importante efeito negativo na função
sexual) Imipramina
Paroxetina
Sertralina
Venlafaxina
*Não são antidepressivos. Fonte: Adaptado de CHOKKA; HANKEY, 2018.

Terapias não farmacológicas


Psicoterapia, especificamente a Terapia Sexual ou Terapia Cognitivo-
Comportamental (TCC), sozinhas ou em conjunto, podem trazer significativa melhora na
função sexual desses pacientes, assim como dieta, exercícios físicos, cessação do tabagismo e
do alcoolismo (CHOKKA; HANKEY, 2018).
Exercitar-se antes da atividade sexual pode ser uma medida eficaz para alguns
pacientes, baseado em um estudo com 52 mulheres com DS induzida por AD. Observou-se
que 30 minutos de exercício físico moderado a intenso, três vezes na semana, e realizado
imediatamente antes da atividade sexual, apresentou melhora do desejo e da função sexual,
porém não houve evidências de benefícios no prazer e no orgasmo (ROTHMORE, 2020).
Dording et al., (2008), realizou um estudo duplo-cego e randomizado para avaliar
o efeito da Maca Peruana na DS induzida por AD’s. Sua vantagem é o baixo custo, além de
poder ser utilizada em pessoas com contraindicações ao uso de iPDE5, como portadores de
doenças cardíacas ou usuários de nitratos e seus derivados. Os participantes que se submeteram
Estudos de Sexualidade 3

à aplicação da ASEX, antes e após 12 semanas, apresentaram melhora estatisticamente


significativa, principalmente dentre os que usaram dosagem de 3 g/dia quando comparados aos
1,5 g/dia. Destaca-se que a maioria dos pacientes eram mulheres (85%).
De uma forma, geral, apresenta-se abaixo uma sugestão para o seguimento de
pacientes sob uso de antidepressivos (Figura 3):
Figura 3 – Sugestão de seguimento para pacientes sob uso de antidepressivos

Fonte: Elaboração da autora,


2020 169

5. CONCLUSÃO
Ao longo do
levantamento
bibliográfico percebeu-se
escassez de dados
epidemiológicos
brasileiros no que
concerne ao seu perfil de
vida sexual, prevalência
de uso de AD’s e dados
sobre investimentos específicos em serviços de saúde mental para a população. Encontrou-se
matérias em revistas online ou sites a respeito de um estudo realizado pela Functional Health
Tech citando-a, porém não foi identificado o material completo para sua análise. Dessa
maneira, torna-se primordial mais estudos nessa área, e que eles sejam acessíveis para fins
acadêmicos.
Conhecer os mecanismos de ação dos vários AD’s e suas respectivas classes
auxiliam a entender a susceptibilidade deles em induzir algum tipo de DS. Porém, percebe-se
dificuldade de instrumentos que avaliem a qualidade da vida sexual de qualquer indivíduo,
independente de gênero, idade ou objeto sexual. Monitorá-los, inclusive aplicando
instrumentos psicométricos ou perguntas ativamente sobre a qualidade de sua vida sexual,
antes e após o início do uso da medicação, torna-se essencial para manter a adesão ao
tratamento desses pacientes.
A redução dos sintomas de DS aumenta a tolerabilidade e adesão à terapêutica
antidepressiva e, por consequência, melhora a qualidade de vida e o prognóstico para os
pacientes. Por isso, aconselha-se que sejam avaliados inicialmente para investigar uma possível
disfunção sexual pré-existente ou interesse em não comprometer suas funções sexuais, no
intuito de escolher medicamentos que tenham mínimo ou nenhum efeito colateral nesse
aspecto.
Assim, medicamentos com melhor perfil, como Mirtazapina, Bupropriona ou
Vortioxetina devem ser considerados. Caso não seja uma preocupação para os futuros usuários,
a escolha do AD deve ser realizada de acordo com os consensos vigentes e/ou enfatizando
outros sintomas associados, como redução do apetite, insônia ou ansiedade.
Ainda, alguns pacientes podem não desejar a associação de substâncias ou troca de
AD’s, bem como não responder a tais medidas. Dessa maneira, é primordial seu
acompanhamento com psicoterapia (sexual ou não), a fim de melhor conhecer suas vicissitudes
e desenvolver estratégias de autoconhecimento e aproveitamento de sua sexualidade.

6. REFERÊNCIAS
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Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
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171
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

172
Estudos de Sexualidade 3

Abordagem interdisciplinar no atendimento de mulheres jovens com


dispareunia

Janaína Neves Sousa

173

RESUMO
O presente estudo se trata de uma revisão narrativa de literatura sobre os benefícios de uma
abordagem multidisciplinar no tratamento da dispareunia em mulheres jovens (de 18 a 40
anos). Para isso, foram realizadas buscas em duas bases de dados: SciElo e PubMed. A
pesquisa foi conduzida no período entre fevereiro e março de 2020. Como resultado da busca
inicial nas plataformas, foi obtido um total de 210 trabalhos. Desses, apenas 15 atenderam a
todos os critérios estabelecidos. Foram apresentados os problemas advindos de uma abordagem
unidisciplinar da dispareunia, em contraposição às possibilidades e aos benefícios de uma
abordagem multidisciplinar para o tema. Notou-se uma escassez de ensaios clínicos que
possam reforçar a adoção desse tipo de conduta de maneira sistemática por parte dos serviços
de saúde. Finalmente, espera-se que estudos como este possam incentivar o aprofundamento
da pesquisa sobre o tema, com vistas a normalizar o acompanhamento multidisciplinar na
dispareunia.
Palavras-chave: Dispareunia, tratamento, abordagem multidisciplinar.

ABSTRACT
The present study is a narrative review of the literature on the benefits of a multidisciplinar
approach in the treatment of dyspareunia in Young women (aged 18 to 40 years). For this,
searches were carried out in two databases: SciELO and PubMed. The research was conducted
between February and March 2020. As a result of the initial search on the platforms, a total of
210 studies were obtained. The problems arising from a unidisciplinary approach to
dyspareunia were presented, as opposed to he possibilities and benfits of a multidisciplinary
approach to the theme. There was a shortage of clinical trials that can reinforce the adoption of
this type of conduct in a systematic way by health services. Finally, it is hoped that studies like
this can encourage further research on the topic, with a view to normalizing multidisciplinar
monitoring in dyspareunia.
Keywords: Dyspareunia; Treatment; Multidisciplinary approach.

1. INTRODUÇÃO

Durante a fase do ciclo de resposta sexual, quando ocorre alguma alteração que leve a
insatisfação, decorrente de problemas físicos ou psicológicos, considera-se uma disfunção
sexual. As disfunções sexuais femininas compreendem o desejo sexual hipoativo, a disfunção
de excitação, a anorgasmia e os transtornos sexuais dolorosos, como dispareunia e vaginismo.
Estes últimos são os mais comuns, afetando cerca de 12 a 21% das mulheres entre 30 e 50 anos
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

de idade (LANDRY; BERGERON, 2011), muitas das vezes, por dificuldade ou medo de se
comunicarem com seus parceiros, assim prejudicando na sua qualidade de vida. Tamanha a
importância e similaridade da dispareunia e do vaginismo que a 5aedição do Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) da Associação Americana de
Psiquiatria (2014) optou por abordá-los um único diagnóstico chamado Transtorno da Dor
Gênito-Pélvica/Penetração (DGPP), de forma a estruturar melhor quatro dimensões de
sintomas frequentemente correlacionados: a dificuldade para ter relações sexuais, a dor gênito-
pélvica, o medo de dor ou de penetração vaginal e a tensão dos músculos do assoalho pélvico.
174
Nesse sentido, a dispareunia propriamente dita é caracterizada pela presença de dor antes,
durante ou após a relação sexual sendo uma “dor persistente ou recorrente ou desconforto
associado à tentativa ou à completa penetração vaginal” (SPERANDIO et al., 2016). De acordo
com suas classificações, a dispareunia pode ser primária, quando há presença de dor desde o
início da relação sexual, ou secundária, quando a dor se manifesta após o coito. A dor pode ser
persistente ocorrendo em todas as relações sexuais ou pode ser condicional, relacionada a
posições sexuais, a estimulação não satisfatória ou a parceiro específico (HEIM, 2001). Pode
ser superficial ou profunda sendo que, a superficial é presente mais no terço distal da vagina,
sendo a mais comum, acometendo 67% das mulheres (LANDRY; BERGERON, 2011). E, a
profunda quando há mobilização do colo do útero.
As diversas formas de apresentação da dispareunia certamente envolvem circunstâncias
variadas. Segundo Alimi e colaboradores (2018), tal fato se dá por se tratar de um distúrbio
multifatorial, com causas biológicas, psicológicas e sociais. Conforme descrito por Lee e
colaboradores (2018), é possível destacar algumas das principais causas da dispareunia, ainda
que seja bastante comum a sobreposição desses fatores. Por exemplo, para a forma superficial,
em geral, as causas diferem com a faixa etária da paciente, levando em conta se ela está ou não
na idade reprodutiva. Para as mulheres jovens, alvo do presente trabalho, ganham destaque,
nesse contexto, infecções como candidíase recorrente e herpes, vaginismo, pós-parto,
abscessos e cistos na glândula de Bartholin e dermatite vulvar. Enquanto, para aquelas nas
fases peri ou pós menopausa, as alterações hormonais exercem maior influência sobre a
questão, sobretudo por meio da atrofia vulvovaginal (KUMAR; ROBERTSON, 2017). Por
outro lado, para a forma profunda, há ainda outra gama de causas físicas, como endometriose,
doença inflamatória pélvica, dor pélvica crônica, disfunções do assoalho pélvico, congestão
pélvica e iatrogenias, como as alterações pós-radioterapia.
Diante de tantos possíveis fatores, é comum que vários encontros com os profissionais
de saúde sejam necessários até que se possa conduzir toda a investigação e compreender o
problema por completo, um processo que, embora longo, também se mostra terapêutico (LEE
et al., 2018). Fato é que não há um único agente terapêutico efetivo para todas as pacientes e
uma abordagem individualizada e multidisciplinar é essencial ao manejo dessa condição
(KUMAR; ROBERTSON, 2017). Além disso, eventos psicossexuais como o trauma sexual
são capazes de tornar a questão ainda mais complexa, contribuindo para o aumento da
percepção dos sintomas (GRANOT et al., 2018). Explorar também esses fatores têm a sua
relevância acentuada principalmente quando nenhuma causa concreta é identificada e se
esgotam as possibilidades de terapia física, sem que a dor deixe de permanecer real e
angustiante (LEE et al., 2018).
O manejo da dispareunia busca se adequar à caracterização da disfunção sexual. Com o
acompanhamento e o diagnóstico clínico feitos pelo médico, haverá um direcionamento quanto
ao tratamento adequado para a paciente. Entre os tratamentos para dispareunia, a fisioterapia
está relacionada à melhora da mobilidade pélvica e ao alívio da dor, contando com técnicas de
cinesioterapia, eletroterapia para efeito analgésico e terapias manuais (AL-ABBADEY et al.,
2016). O tratamento tem uma importante atuação nos sintomas álgicos e na reestruturação
Estudos de Sexualidade 3

pélvica, permitindo, assim, que o estado de consciência muscular esteja adequado para a
relação sexual.
Quanto à abordagem psicoterapêutica, uma série de eventos emocionais e cognitivos
alimentam o estado da dor. Assim, a exacerbação é uma condição marcante na mulher, que
tende a entrar em um ciclo de medo e passa a evitar que ocorra a relação sexual, chegando à
piora da disfunção. Há influências da infância e adolescência, como educação sexual
inadequada, ou até mesmo, ansiedade e/ou falta de excitação sexual (BASSON, 2012).
Compreendendo a especificidade de cada paciente, entende-se que uma abordagem
multidisciplinar seja mais adequada para esse grupo. Quando envolve os fatores 175

fisiopatológicos, o médico vem com a sua autonomia para chegar ao diagnóstico clínico.
Quando se refere a fatores físicos, a fisioterapia tem a capacidade de trabalhar na melhora das
dores e na melhora do controle muscular, fazendo com o músculo, ao entrar em estresse, tenha
relaxamento e os pontos de dores sejam relaxados, no momento da penetração. Já quanto aos
fatores psicológicos, o acompanhamento com o profissional faria com que a paciente esteja
mais envolvida com o tratamento, permitindo que sua mente e corpo trabalhem em sintonia.
Atuando em todos esses eixos concomitantemente, seria possível alcançar um efeito sinérgico
na melhora do paciente. Efeito esse que o presente estudo busca analisar.

2. OBJETIVOS
O objetivo deste estudo é realizar uma revisão de literatura sobre os benefícios de uma
abordagem multidisciplinar no tratamento da dispareunia em mulheres jovens (de 18 a 40
anos).

3. METODOLOGIAS
Fonte de dados e pesquisa
Foram realizadas buscas em duas bases de dados: SciElo e PubMed. No
PubMed, utilizou-se o descritor “dyspareunia” na forma de tópico principal (MeSH Major
Topic) e o operador booleano AND para adicionar o termo livre “treatment”. Já na plataforma
SciElo, apenas o descritor “dispareunia” foi utilizado. Os resultados foram exportados para
uma planilha do Excel a partir das duas bases de dados. A pesquisa foi realizada no período
entre fevereiro e março de 2020.

Seleção dos estudos


Após as buscas, foram selecionados os estudos potencialmente relevantes com base em
títulos. Em seguida, os títulos selecionados passaram por uma segunda e uma terceira seleção
através da leitura do resumo e, posteriormente, do texto por completo, quando foram aplicados
os critérios de inclusão e exclusão.

Critérios de inclusão
Estudos que abordaram as técnicas fisioterapêuticas e/ou psicoterápicas no tratamento
para dispareunia em mulheres jovens; estudos cujos títulos e resumos estavam disponíveis em
inglês ou português; estudos publicados entre 2015 e 2020.

Critérios de exclusão
Estudos que abordam a dispareunia em outras populações; estudos cujo tema principal
não seja o tratamento da dispareunia; estudos em que a dispareunia é apenas brevemente
mencionada; estudos publicados, porém retratados pelos autores; estudos escritos em idiomas
que não o português e o inglês.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

4. RESULTADOS
Como resultado da busca inicial nas plataformas, foi obtido um total de 210 trabalhos,
dos quais 169 foram provenientes do PubMed, enquanto que outros 41 foram encontrados por
meio do SciElo. A seleção inicial dos títulos reduziu os valores retornados pelos bancos de
dados para 50 e 17, respectivamente, totalizando 67 estudos. A análise dos resumos dos
trabalhos permitiu um afunilamento ainda maior dos estudos, já que 20 trabalhos do PubMed
e 9 do SciElo não abordavam o tratamento multidisciplinar, quatro foram escritos em idiomas
que não o português e o inglês (no caso, francês), 16 eram focados em outras populações
176
(mulheres na menopausa), um artigo foi retratado pelos autores, um apareceu de forma
duplicada na busca do PubMed e um foi localizado por ambas plataformas. Por fim, a
metodologia permitiu que os 230 estudos iniciais forem filtrados de maneira que 15 trabalhos
avançaram para a fase de análise integral, de maneira a serem incluídos no trabalho. O
fluxograma abaixo esquematiza os resultados dessa metodologia.

Figura 1 – Fluxograma da seleção de trabalhos


Busca nos bancos de dados (n = 210):
- PubMed: 169
- SciElo: 41
Estudos não relevantes
rejeitados pela análise de
títulos (n = 143)
Estudos que avançaram
para a análise dos
resumos (n = 67)
Estudos rejeitados pela análise de resumos (n = 52):
Não abordavam o tratamento multidisciplinar: 29
Escritos em outros idiomas: 4
Outras populações: 16
Artigo retratado: 1
Duplicatas: 2
Trabalhos incluídos (n = 15) Fonte: Autoria própria.

5. DISCUSSÃO
Problemas advindos de uma abordagem unidisciplinar da dispareunia
Bergeron e colaboradores (2016) apontaram que apesar de 60% das mulheres com dor
vulvovaginal procurem tratamento, dessas, 40% nunca recebem um diagnóstico. Outro ponto
relevante foi o de que, em alguns casos, como os relacionados à vulvodínia provocada, a
paciente procura o médico primeiro e recebe tratamento tópico apenas, ainda que a terapia
cognitivo comportamental possa ter melhores resultados, como melhora da dor, da função
sexual e do ajustamento psicológico (BERGERON et al., 2016).
Nos casos de dispareunia relacionada a causas frequentemente compreendidas como
puramente somáticas, como a endometriose, um estudo indicou que, apesar de parte das
mulheres responderem bem ao tratamento convencional (hormonal e, em alguns casos,
cirúrgicos), uma porção delas não demonstra melhora clínica, o que reforça a ideia da
multifatorialidade da dispareunia mesmo para os casos de endometriose. Paradoxalmente, o
tratamento hormonal poderia apenas suprimir de maneira incompleta a lesão, ao passo que
causaria alterações hormonais ou agravaria distúrbios de humor que poderiam exacerbar a
dispareunia. Ainda, os pesquisadores relatam que ensaios clínicos não mostram melhora
significativa desses tratamentos em relação ao placebo e apontam a heterogeneidade do
Estudos de Sexualidade 3

mecanismo de dor como a possível responsável por isso (YONG, 2017). Sob tal óptica, a
dispareunia foi apontada como o principal fator responsável pela deterioração da qualidade de
vida (LUKIC et al., 2016). Nesse mesmo sentido, um estudo transversal indicou que o manejo
unidisciplinar não é efetivo em obter uma qualidade de vida excelente, já que essas mulheres
apresentam uma qualidade de vida insatisfatória e inferior à da população geral, por conta de
os aspectos psicológicos, social e sexual não serem tangenciados por essa abordagem (YELA;
QUAGLIATO; BENETTI-PINTO, 2020).
Ademais, ansiedade e depressão se mostram tanto antecedentes quanto consequentes
da dispareunia (BERGERON et al., 2016) e um outro estudo indica que ambas parecem atuar 177

como fatores de predisposição e de persistência, já que são essenciais à forma positiva de lidar
com o problema (DIAS-AMARAL; MARQUES PINTO, 2018). De maneira concomitante à
dor, apresentam-se também disfunções sexuais como a diminuição do desejo ou do interesse
por sexo, a redução da excitação e a dificuldade em atingir o orgasmo, bem como correlações
psicossociais, a exemplo da imagem negativa do corpo, da catastrofisação, da hipervigilância
à dor e da baixa autoestima (MITCHELL et al., 2017; SADOWNIK et al., 2017; TAM;
LEVINE, 2018). Uma coorte prospectiva mostrou que a dispareunia também se apresenta de
acompanhada de outras disfunções no período pós-parto, como a falta de lubrificação vaginal
e a perda de interesse na atividade sexual (O’MALLEY et al., 2018). Nesse mesmo sentido,
uma revisão sistemática apontou que a abordagem da endometriose não deveria se limitar
apenas à dor, mas se estender às dimensões psicológicas e relacionais, incluindo também a
função sexual do parceiro. Dimensões essas que requerem um acompanhamento próprio, o
qual difere daquele utilizado exclusivamente para a dor (BARBARA et al., 2017).
Entre os vários fatores que podem estar envolvidos na dispareunia, está o histórico de
abuso sexual. No entanto, um estudo apontou que a maioria dos cuidadores não questiona de
forma rotineira a possibilidade de um histórico de abuso sexual, mesmo que a literatura indique
que as mulheres são bem receptivas quanto a esse tipo de questionamento, desde que ele seja
feito de forma adequada, sem insistência e que a deixe confortável (BRAKSMAJER, 2018;
LOGIUDICE, 2017). Outro ponto diz respeito ao fato de a dispareunia poder afetar a vida das
mulheres a ponto de elas passarem a evitar completamente a atividade sexual, com redução da
autoestima e da qualidade de vida do casal (BARBARA et al., 2017; DIAS-AMARAL;
MARQUES-PINTO, 2018; SADOWNIK et al., 2017).
Mitchell e colaboradores (2017) apontam que, entre aqueles que procuram tratamento,
experiências negativas são frequentes, como invalidação das preocupações, não recebimento
de um diagnóstico e ser dado um tratamento percebido como inefetivo. Os autores
acrescentam, ainda, a necessidade de recursos que possam apoiar os profissionais que se
sentem desconfortáveis ao abordarem o tópico de saúde sexual e do prazer com seus pacientes,
incluindo conselhos quanto à linguagem e em quando encaminhar seus pacientes a especialistas
em saúde sexual. Um outro estudo indica que a demora para se conseguir um diagnóstico está
ligada ao fato de não ser dada a devida atenção aos sinais e sintomas relatados pela paciente, o
que provoca uma relutância por parte das mulheres em discutir os sintomas com o especialista
e pode transformar a consulta em uma disputa pela legitimação (BRAKSMAJER, 2018;
LUKIC et al., 2016).
A legitimação dos sintomas por médicos é um tópico bastante problemático e foi
relatado por um estudo qualitativo o qual aponta que, quando não há sinais visíveis de uma
patologia, com frequência, chega-se à conclusão de que os sintomas sem explicação são
distúrbios de somatização, nos quais problemas psicológicos e conflitos se manifestam como
sintomas físicos. Contudo, os pacientes podem sentir-se acusados de ter um distúrbio factício,
isto é, de estarem fingindo seus sintomas. Dessa forma, muitos deles desafiam os diagnósticos
psicossomáticos, iniciando uma luta para a legitimação de sua dor, a qual contribui para uma
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

desconfiança entre médico e paciente e pode levar ao abandono do cuidado com o profissional
em questão. Com isso, a jornada em busca de diagnóstico e tratamento se transforma em um
caminho caracterizado por confusão, incerteza e sensação de invalidação. Outro aspecto
marcante relatado pelo estudo diz respeito à forma deficiente de conhecimento técnico e
consideravelmente isenta de empatia com que os médicos lidaram com os pacientes
entrevistados, justificando o encaminhamento para outros profissionais ou a dor com frases do
tipo “isso está na sua cabeça e você precisa trabalhar isso” e “tome uma taça de vinho, relaxe,
você não está relaxada”, ou dispensando mais prontamente as mulheres que se apresentavam
178
mais emocionadas e chorando durante a consulta (BRAKSMAJER, 2018).

Possibilidades e benefícios de uma abordagem multidisciplinar da dispareunia


Dias-Amaral e Marques-Pinto (2018) relatam que a escolha do tratamento apropriado
deve levar em conta as várias dimensões da dor, sendo elas: física (tipo e duração), sensorial
(intensidade, local e qualidade), afetiva (resposta emocional à dor – medo, preocupação e
ansiedade), cognitiva (grau de concentração na dor, pensamentos correlatos, estratégias usadas
para lidar com ela, significado, atitudes e crenças), comportamental (indicadores de dor e como
a paciente comunica a sua presença), sociocultural (variáveis sociodemográficas, contexto
cultural – pouca educação, existência de mensagens negativas internalizadas em relação ao
sexo). Outro ponto relevante seria estabelecer objetivos para o tratamento, os quais não seriam
focados apenas na eliminação da dor, a exemplo da redução do grau de contração da
musculatura pélvica, da redução de cognições negativas relacionadas à dor, coping positivo
(habilidade de focar nos aspectos positivos) e melhoria da função sexual (com a exploração de
expressões de sexualidade que não incluem a penetração e com a melhoria da habilidade de
comunicar suas necessidades com o seu parceiro).
Outros pesquisadores também abordaram a multifatorialidade da dispareunia, mesmo
em casos classicamente compreendidos como puramente somáticos, como os desencadeados
pela endometriose. Dois estudos enfatizaram a necessidade de se realizar uma análise
multidisciplinar inicial, com vistas a classificar a sintomatologia do paciente, baseado na
presença de comorbidades, e assim elaborar as recomendações clínicas de maneira o mais
personalizado possível (LUKIC et al., 2016; YONG, 2017). Nessas circunstâncias, o manejo
multidisciplinar foi definido como: educação sobre a dor, fisioterapia, terapias cognitivas
(como a atenção plena) e a terapia cognitiva comportamental. Outro ponto marcante do estudo
e que fortalece a abordagem multidisciplinar foi a indicação do acompanhamento psicológico
continuado para todas as classificações da dispareunia profunda na endometriose,
independentemente de haver ou não distúrbios psicológicos associados (YONG, 2017).
De maneira análoga ao manejo multidisciplinar proposto, estudos sugerem que um time
multidisciplinar para a abordagem da dispareunia seja composto por: um psicólogo (quem
analisaria os motivadores morais, sociais e pessoais do sexo), um terapeuta (que avaliaria os
motivadores emocionais, provendo intimidade e satisfação no sexo), um médico (o qual focaria
nas fontes biológicas do motivador sexual, da excitação e do desejo) e um fisioterapeuta (que
propiciaria o melhor autoconhecimento e autocontrole sobre os aspectos musculoesqueléticos)
(BARBARA et al., 2017; SADOWNIK et al., 2017; TAM; LEVINE, 2018). Essa equipe
facilitaria um diálogo num ambiente relaxado, isento de julgamentos e capaz de oferecer apoio
e informações de forma acessível à mulher. Dessa forma, a paciente se sentiria mais aberta a
expressar suas opiniões e preocupações. É nesse ambiente menos intimidador que a discussão
seria potencializada, permitindo que a mulher busque ajuda e se sinta menos vulnerável
acolhida e tenha suas queixas e seu autoconhecimento validado (TAM; LEVINE, 2018). Em
tal ambiente, certamente o modelo integrativo, incluindo ambas perspectivasbiomédica e
psicológica para a compreensão da dispareunia, seria melhor aceito e entendido pelas pacientes
Estudos de Sexualidade 3

(BRAKSMAJER, 2018). Com efeito, uma coorte prospectiva indicou que a abordagem
multidisciplinar foi capaz de reduzir a severidade da dispareunia profunda, bem como de
melhorar a qualidade de vida sexual (YONG et al., 2018).
Ademais, tratamentos para a dispareunia que buscam abordar um grupo de sintomas
(ex.: depressão, ansiedade e disfunção sexual) são apontados como capazes de gerar melhores
resultados do que aqueles focados apenas em uma única queixa. Nesse contexto, mudanças no
estilo de vida, como a prática de exercícios e a dieta balanceada podem auxiliar na melhoria
da saúde como um todo, bem como da função sexual, além de aliviar sintomas como estresse,
depressão e reduzir as queixas de dores (TAM; LEVINE, 2018). Outros alvos de relevância 179

para uma abordagem ampla do problema são: o papel do humor, a evasão da dor, as habilidades
de comunicação e as dinâmicas de relacionamento (YONG et al., 2018). Quanto às estratégias
utilizadas pelo fisioterapeuta, o biofeedback eletromiográfico, a eletroestimulação, a terapias
manuais (como a liberação miofascial e as técnicas de massagem intravaginal) e a fisioterapia
do assoalho pélvico são algumas possibilidades para aliviar a contração nesses músculos,
aumentar a atenção direcionada ao controle deles, aumentar sua elasticidade e expor os
pacientes à penetração. Tais técnicas podem ser ainda mais relevante em mulheres com altos
níveis de medo e ansiedade diante da penetração, uma vez que a estratégia promove um
ambiente calmo e seguro para um contato mais confortável e gradual com a penetração,
ampliando o autoconhecimento feminino e o autocontrole sobre a musculatura (DIAS-
AMARAL; MARQUES-PINTO, 2018; YONG et al., 2018). De fato, um ensaio clínico
randomizado obteve bons resultados no tratamento da dispareunia, em que o braço do
tratamento fisioterápico alcançou melhora significativa da dor e da função sexual feminina
(GHADERI et al., 2019). Tam e Levine (2018) acrescentam que uma abordagem padronizada,
que inclua a fisioterapia desde o início do acompanhamento, contribui para uma avaliação
apropriada da condição e para o sucesso do tratamento.
Um ensaio clínico randomizado mostrou que a terapia cognitivo comportamental pode
obter melhores resultados para a paciente, como melhora da dor, da função sexual e do
ajustamento psicológico. Nesse estudo, a terapia utilizada procurou reduzir o medo da dor e
outras respostas cognitivas e afetivas, diminuir a evasão, aumentar o nível de atividade sexual,
ampliar o repertório sexual e reduzir a dor. Para isso, foram realizadas sessões em grupo com
7 a 8 mulheres por 2h. O melhor desempenho obtido foi creditado ao fato de a terapia ter
abordado mais dimensões da dor, incluindo pensamentos, comportamentos e emoções, além
da educação psicológica. Um outro mecanismo indicado teria sido o alívio das sensações de
isolamento e de invalidação alcançado por meio do apoio e da empatia dos outros membros do
grupo. Por outro lado, é importante ressaltar que a intervenção em grupo pode não ser a melhor
opção nos casos em que seja necessário um enfoque no relacionamento do paciente
(BERGERON et al., 2016).
De fato, a terapia cognitivo comportamental tem sido apontada como a psicoterapia
mais adotada e estudada para o tratamento da dispareunia, podendo ser realizada
individualmente ou em grupo. Os principais alvos dessa estratégia são: distorções cognitivas,
desregulações emocionais e comportamentos inadequados que perpetuam os sintomas e
prejudicam o relacionamento com o parceiro. Esse tipo de intervenção se mostrou ainda mais
valiosa nos casos em que questões psicológicas ou ligadas ao relacionamento são componentes
predominantes na etiologia da dor (DIAS AMARAL; MARQUES-PINTO, 2018; YONG et
al., 2018). Outrossim, Tam e Levine (2018) apontam ser importante que a psicoterapia inclua
intervenção educacional, aconselhamento e terapia de foco sensorial para o casal, além de
relatarem que o treinamento de habilidades sexuais e a terapia conjugal, somadas à terapia
cognitivo comportamental, são intervenções psicoterápicas capazes de melhorar os sintomas
das disfunções sexuais e a satisfação sexual.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Quanto ao momento adequado de se iniciar a intervenção multidisciplinar, o período


pré-natal parece ser uma oportunidade ideal para questionar as mulheres sobre sua saúde
sexual, haja vista que se trata de uma época em que a mulher tem mais contato com os
profissionais de saúde, bem como existe um risco maior do desenvolvimento da dispareunia
nos meses seguintes. Esse período também é apontado como potencialmente ideal para
referenciar as mulheres aos outros profissionais da equipe multidisciplinar (O’MALLEY et al.,
2018).
A abordagem terapêutica inicial deve ser a psicoeducação do casal, criando uma
180
oportunidade para que eles entendam o problema, aprendam sobre a anatomia feminina e
desafiem mitos. O casal deve, ainda, ser informado sobre a natureza biopsicossocial da
dispareunia e o papel que os elementos psicológicos e relacionais podem exercer como gatilhos
e fatores de persistência (DIAS-AMARAL; MARQUES-PINTO, 2018). É importante ressaltar
que um parceiro que compreenda a situação é tido como um dos pontos mais importantes na
habilidade das mulheres em lidar emocionalmente com a dispareunia (BRAKSMAJER, 2018;
SADOWNIK et al., 2017). A educação em dor envolve prover informações à paciente sobre
os geradores da dor, além das causas ginecológicas, incluindo fatores não ginecológicos, como
bexiga, intestino, musculatura pélvica e sistema nervoso central (YONG et al., 2018). Nesse
processo de educação, o fisioterapeuta também tem o importante papel de instruir a mulher
sobre a anatomia e a função dos músculos do assoalho pélvico e ensiná-la a controlar a
atividade desses músculos, de forma que ela consiga relaxá-los ou contrai-los quando quiser
(GHADERI et al., 2019).

5. CONCLUSÃO
Ainda que não tenham sido encontrados estudos contrários à implementação da
abordagem multidisciplinar para a dispareunia, notou-se uma escassez de ensaios clínicos que
possam reforçar a adoção desse tipo de conduta de maneira sistemática por parte dos serviços
de saúde (BERGERON et al., 2016; GHADERI et al., 2019; YONG et al., 2018). No entanto,
foi possível evidenciar o papel essencial da equipe multidisciplinar na superação de problemas
frequentes da dispareunia. Sendo assim, espera-se que estudos como este possam incentivar o
aprofundamento da pesquisa sobre o tema, com vistas a normalizar o acompanhamento
multidisciplinar na dispareunia.

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YONG, P. J. et al. Prospective Cohort of Deep Dyspareunia in an Interdisciplinary Setting. Journal of Sexual
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Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

182
Estudos de Sexualidade 3

ABUSO SEXUAL INFANTIL EM MENINOS


– O QUE O MACHISMO TEM A VER COM ISSO?

Joice Kelly da Silveira Lamas

183

RESUMO
Embora no Brasil estimem-se centenas de ocorrências diárias, os dados sobre a violência sexual
contra crianças são defasados devido à não notificação, muitas vezes em decorrência da
proximidade da vítima com o agressor, que pode ser até mesmo seu progenitor, ou seja, quem
deveria ser seu protetor agora é abusador, e esta confusão acaba gerando certa inabilidade
social, pois a criança não percebe que embora algumas pessoas não sejam confiáveis, pode
confiar em outras. No caso de meninos abusados, a dificuldade em notificar decorre do
machismo, que relaciona a violência sexual à homofobia e à vergonha, mas a notificação é
importante para a responsabilização do agressor e para a garantia dos direitos da criança,
conforme a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O abuso
pode ser cometido por pedófilos, que tem como preferido ou único meio de obtenção da
satisfação sexual, atividades sexuais com crianças ou por violentadores ocasionais, que
utilizam do abuso de poder e domínio sobre a vítima. A vítima se vê muitas vezes silenciada,
seja para manter a integridade da família, ou por ter sido coagida pelo abusador, que utiliza
desse silêncio para continuar impune e cometendo as violências. O machismo tem importante
papel na violência sexual, ao impor a ideia de que homens são superiores, abrindo então
caminho para a demonstração dessa superioridade pela subjugação do considerado inferior, ou
seja, mulheres, crianças e quaisquer outras pessoas que não se enquadrem no padrão
heteronormativo.
Palavras-chave: Abuso sexual infantil, machismo, proteção à criança ou adolescente vítima
de abuso sexual, abuso sexual infantil em meninos, mulher perpetradora de violência sexual

ABSTRACT
Even though there are hundreds of estimated cases in Brazil, the data about sexual violence
against children are outdated due to no notice, mostly because the victim and the aggressor
bonds that could even be the child's progenitor. In other words: the one that should be the
protector is now the abuser, and this confusion causes determined social inabilities since the
child is not able to distinguish between people he/she can trust. Regarding boys that suffered
molestation, the obstacle to give notice accrue male chauvinism that relates sexual violence to
homophobia and shame. But notifying the violent act is crucial for charging the aggressor for
the crime and securing the child rights, according to the Brazilian Federal Constitution and the
Statute of Child and Adolescent (ECA). The abuse can come from pedophiles, which have as
their favorite or only way of satisfying their sexual needs, sexual activities with children, or
occasional rapists, who abuse their power and dominance over their victims. Most of the time,
the victim feels silenced, either to protect their family's integrity or because they were coerced
by the abuser, who can benefit from this silence to remain unpunished and keep practicing
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

these violent acts. Male chauvinism has a big part in sexual violence since it imposes the idea
that men are superior beings, which leads to demonstrating this superiority by subduing those
who are considered inferior, like women, children, and any other group that won't fit in the
heteronormative pattern.
Keywords: Child sexual abuse; Machism; Protection of children or adolescents who are
victims of sexual abuse; Child sexual abuse in boys; Woman perpetrator of sexual violence

1. INTRODUÇÃO
184
O abuso sexual infantil é um fenômeno complexo e sem muitos dados concretos sobre
sua ocorrência, mas estima-se que, por dia, centenas de crianças e adolescentes sejam vítimas
deste tipo de violência.
A falta de notificação se dá principalmente porque, na maioria dos casos, o abusador é
alguém próximo da criança (em geral, do sexo masculino como o próprio pai, padrasto, avô,
tio, vizinho, amigo da família...) e muitas vezes com a conivência da mãe (MORILHA, Abner.
2016). Segundo dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS, 2017), quase uma em
cada cinco meninas e um em cada treze meninos, sofre violência sexual.
Citando Fabbri e Terensi (2007), Morilha (2016) nos explica ainda, que a violência
sexual infantil se configura como todo e qualquer ato ou atividades sexuais,
independentemente de homo ou heterossexuais entre um ou mais adultos e crianças ou
adolescentes, tendo como finalidade utilizar o infante para obter uma estimulação sexual
própria ou para um terceiro, ou até mesmo estimular sexualmente a vítima.
Esta violência pode ter ocorrência em duas configurações: extra ou intrafamiliar, sendo
que na extrafamiliar o perpetrador do abuso é um desconhecido ou alguém que não exerce um
papel significativo na vida da criança e o abuso intrafamiliar é perpetrado por alguém do
convívio próximo da criança, como familiares (MORILHA, Abner. 2016).
O autor diz ainda que, em ocorrências de abuso sexual, a criança ou adolescente deve
sempre ser tratada como vítima e não como ré, pois, o perpetrador do abuso muitas vezes se
utiliza de artifícios que invertem os papéis e questionam a integridade da vítima, colocando-a
como instigadora de seus olhares e desejo, mas o responsável pelo desejo é sempre o ser
desejante, e não o contrário. O objetivo da violência sexual infantil é a obtenção do prazer
sexual do adulto utilizando formas de coerção, seja direta ou indiretamente.
O machismo estrutural é parte preponderante da dificuldade em reconhecer e nomear o
abuso em meninos, visto que, quando perpetrado por agressores do sexo masculino o abuso
sexual é relacionado diretamente à homofobia e à vergonha, pois, dentro da estrutura patriarcal,
o “macho” deve ser o dominador e não dominado (NASCIMENTO, 2017 citando
MACHADO, 2013).
Segundo o mesmo autor, em contrapartida, por meninos serem hipersexualizados desde
cedo como uma forma de demonstrar uma posição de dominação e mostrar virilidade, quando
os abusos partem de uma mulher, estas violências nem sempre são significadas como tal, pois
o homem deve estar sempre disposto ao sexo com uma mulher, independentemente de esta ser
uma abusadora e este pensamento acaba até mesmo valorizando e reforçando a violência
(MACHADO, 2013 citado por NASCIMENTO, 2017).
Quando falamos de machismo estrutural, percebemos que a lógica das relações
estruturadas pelo patriarcado é o poder, como nos diz Saffioti (1987). Segundo a ideologia do
macho dominante, em qualquer esfera, o homem se relaciona desfrutando de uma posição de
poder, seja no ambiente de trabalho, seja como esposo, companheiro, namorado, etc. como se
estivesse caçando uma presa, caçando o objeto de seu desejo, e se importando apenas com esse
desejo: o dele próprio. Isto significa que o desejo da presa não importa. Não importa se o desejo
Estudos de Sexualidade 3

é em comum acordo e isto nos leva a pensar no caso extremo que este poder dominante pode
causar: o estupro.
O abuso sexual é prova de que o ser dominante é capaz de submeter a outra parte.
Aquela parte que não tem direito de desejo ou escolha, por ser inferior.
Mas o preço pela dominação é alto, pois que, ao homem é negado o direito de fracassar.
O êxito é parte fundamental da ideologia dominante, e engloba todos os aspectos, não apenas
o êxito financeiro, por exemplo. Alguns valores como coragem, força e razão são associados à
macheza, ou seja, homens que fogem desse padrão, como os mais magros, tímidos ou afetivos
acabam se vendo obrigados a se comportar de modo contrário às suas inclinações por serem 185

consideradas femininas e, portanto, negativas. Partindo deste pressuposto, o homem, “macho


de verdade” só é considerado assim na medida em que consegue sufocar ou inibir seus
sentimentos (SAFFIOTI, Heleieth. 1987). De acordo com a autora,
Assim, torna-se bem claro o processo de construção social da inferioridade. O processo correlato é o da construção
social da superioridade. Da mesma forma como não há ricos sem pobres, não há superiores sem inferiores. Logo,
a construção social da supremacia masculina exige a construção da subordinação feminina. Mulher dócil é a
contrapartida de homem macho. Mulher frágil é a contraparte de macho forte. Mulher emotiva é a outra metade
de homem racional. Mulher inferior é a outra face da moeda do macho superior (SAFFIOTI, Heleieth. 1987, p.
29).
Segundo a Cartilha Prevenir, identificar e combater: violência sexual contra crianças e
adolescentes (2015) do Ministério Público do Estado do Piauí, as conseqüências do abuso são
diversas e se estendem até a vida adulta.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral:
Apontar como o machismo estrutural dificulta que os abusos sexuais em infantes do
sexo masculino sejam notificados e até mesmo compreendidos como violência.
Objetivos específicos:
- Traçar um histórico da construção do sistema social patriarcal.
- Mostrar aspectos gerais do comportamento do abusador.

3. METODOLOGIA
Trata-se de uma revisão narrativa de literatura. A revisão de literatura possibilita que a
coleta de dados ocorra por meio de artigos científicos e não apenas na transcrição de ideias de
um só autor. Deste modo, a literatura é analisada de forma crítica e estratégica para que
fundamente os objetivos principais e secundários do estudo (FERENHOF, 2016).
O subtipo de revisão utilizado é a revisão narrativa de literatura, que considera a
exploração de artigos já escritos, sem muitos critérios definidos ou uma ordem sistemática,
sendo assim uma forma prática e tradicional de pesquisa, onde não existe uma preocupação em
esgotar as fontes de pesquisa e informação (FERENHOF, 2016).
A princípio foi realizada uma busca bibliográfica no site do Google Acadêmico,
utilizando os termos “abuso sexual”, “abuso sexual infantil”, “abuso sexual infantil em
meninos”, “machismo”, e “machismo e abuso sexual”. Os artigos foram pesquisados dentro de
um período de cinco anos (2015 a 2020) e apenas na língua portuguesa. Cerca de 60 artigos
foram selecionados e, após leitura do resumo e introdução, 18 artigos se mostraram adequados
para este estudo.

4. DISCUSSÃO
O que é o machismo?
De acordo com o dicionário Michaelis (2015), a palavra “machismo” significa:
“qualidade, comportamento ou modos de macho (homem); macheza, machidão; orgulho
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

masculino em excesso; virilidade agressiva e/ou ideologia da supremacia do macho que nega
a igualdade de direitos para homens e mulheres”.
Mas ao falarmos de machismo estrutural, precisamos analisar a construção social da
masculinidade, desde tempos remotos, na Grécia antiga, onde percebemos constituída a
superioridade masculina, visto que, o conceito de liberdade era “ser homem e não mulher, ser
ateniense e não estrangeiro, ser livre e não escravo” (ALVES, 1991 citado por NIGRO e
BARACAT, 2017).
Segundo Oliveira (2004, citado por NIGRO e BARACAT, 2017) no período medieval
186
podiam ser vistos estes comportamentos de superioridade masculina por meio da agressividade
demonstrada nos duelos em defesa da honra, em que a covardia era vista como o maior insulto.
Mas esta agressividade masculina não ficou restrita à Idade Média, e na atualidade isso
se mostra cada vez mais presente não apenas em comportamentos, mas também em falas,
músicas, cinema, etc.
O impacto desse comportamento medieval em defesa da honra pode ser verificado na
atualidade através do que podemos chamar de masculinidade tóxica, na qual são
incentivados (e até justificados) comportamentos violentos, repressão de sentimentos
afetivos (que são vistos como fraqueza, “coisa de mulherzinha”, de “bicha”) (NIGRO e
BARACAT, 2017, p. 7).

Silva (2000, citado por NIGRO e BARACAT, 2017) dizia que por muito tempo, a
perfeição anatômica foi criada em torno do falo, e acreditava-se que a mulher era uma espécie
de “homem invertido”, e que seu genital correspondia ao genital masculino, porém
interiorizado, ou seja, imperfeito e mais uma vez subjugado.
Podemos relembrar aqui, um dos conceitos freudianos mais conhecidos, o penisnaid,
que se traduz em português para “inveja do pênis”.
Quando Freud elabora os conceitos de Complexo de Édipo e Complexo de castração,
ele diz que, tanto a menina quanto o menino têm a mãe como o primeiro objeto de amor. A
constatação da diferença anatômica entre os sexos é o que marca a entrada no Édipo, pois,
quando o menino se vê ameaçado pela castração (ao notar que a mulher não possui o pênis e
então, ele corre o risco de perdê-lo também) é o que demarca sua entrada edípica, em que ele
mantém seu objeto de desejo na mãe e se identifica com o pai, redefinindo o ser homem, ser
masculino. No entanto, a menina passa por outro processo, visto que por não ter o pênis, ela
não tem por que temer a castração. Sua entrada no Édipo ocorre então a partir da inveja do que
ela acredita não ter sido lhe oferecido, o pênis. Esta constituição é mais complexa, pois a
menina não consegue manter a mãe como objeto de seu amor, já que esta negou algo que ela
gostaria tanto de ter e sente a necessidade de trocar de objeto, se voltando para o pai afim de
que este possa lhe oferecer o pênis que lhe foi negado. Freud destaca que nota em seus casos
clínicos que as mulheres se veem em desvantagem por serem não possuidoras do pênis
(FREUD, Sigmund. 1933/1976, p. 153).
O complexo de castração nas meninas também inicia ao verem elas os genitais do outro
sexo. De imediato percebem a diferença e, deve-se admiti-lo, também a sua importância.
Sentem-se injustiçadas, muitas vezes declaram que querem ‘ter uma coisa assim, também’.
E se tornam vítimas da ‘inveja do pênis’; esta deixará marcas indeléveis em seu
desenvolvimento e na formação de seu caráter (FREUD, 1933/1976, p. 154).
Sobre a teoria da inveja do pênis, Saffioti (1987) nos diz que esta incompletude
feminina, pode ser interpretada de duas formas:
1- Biologicamente, considerando que a mulher não possui o pedaço de corpo que a faz
urinar mais longe e com maior alcance e força.
2- Socialmente, tendo o pênis como representante do poder e supremacia masculina.
Em seu texto A Feminilidade, Freud diz que partes do aparelho reprodutor masculino
aparecem de forma atrofiada no corpo da mulher, e também acredita no contrário, dizendo até
Estudos de Sexualidade 3

mesmo que isto poderia ser um indício da bissexualidade, onde um indivíduo não é homem ou
mulher, mas ambos, apenas se diferenciando mais tarde com um pouco mais de um do que do
outro (FREUD, Sigmund. 1931/1974, p. 265).
Posteriormente, este título de “homem invertido” foi dado aos homens homossexuais,
que por vivenciarem sua sexualidade de forma diferente da heteronormativa, foram tidos como
“anormais”, pois driblavam e ameaçavam os preceitos da constituição de família e ideais de
matrimônio impostos também pela religião, como dizem Nigro e Baracat (2017) citando
Foucault (1984).
Segundo Moschkovich (2013, citada por SILVA e MENDES, 2015), associamos 187

comportamentos, escolhas, atitudes e modos de pensar com relação ao que é “ser homem” ou
“ser mulher”, pautados em questões sociais de crenças, valores e costumes. Uma destas
associações é entre a emotividade e as mulheres, como se os homens não pudessem ou não
devessem demonstrar seus sentimentos, porque é algo inerente ao feminino. “Essa
característica deixa de ser uma diferença entre os gêneros e passa a ser uma desigualdade a
partir do momento que a emotividade (característica tida como feminina) é entendida como um
sentimento negativo e frágil” (SILVA e MENDES, 2015, p. 93).
Emoção, fragilidade e resignação, são valores geralmente associados às mulheres até
mesmo de forma inerente, ou seja, desde o seu nascimento e por isto, tidos como negativos,
visto que, significam que a mulher é insegura, não consegue se posicionar e não sabe usar da
racionalidade. Mas na verdade, estes valores são adquiridos na construção social da mulher,
pois, a ideologia machista, que considera que as mulheres são inferiores aos homens entra não
só na cabeça dos homens, como também das mulheres, que acabam passando isso adiante na
criação dos filhos. Frases comumente ditas para meninas, como “sente como mocinha” ou a
inviabilização do choro dos meninos, com a prerrogativa de que “homem não chora”, faz com
que seja passado para frente um sistema de ideias que privilegia homens em detrimento de
mulheres (SAFFIOTI, Heleieth. 1987, p. 34).
A mesma autora ainda nos fala que, muitos pais transmitem para os filhos uma moral
dupla, pela qual o filho homem tem extrema liberdade e a filha mulher é criada com uma visão
rigorosamente moralista e precisa se manter casta.
A supremacia, de qualquer forma, é garantida ao macho adulto. Tanto assim é que à medida
que os filhos vão entrando na idade adulta, vai-se estabelecendo o domínio do irmão sobre
a irmã, numa repetição do modelo parental. Como poderia um grupo constituído desta
maneira cultivar a alegria de viver, o prazer? Parece claro que o gosto bom da vida advém,
sobretudo, da relação entre iguais (SAFFIOTI, Heleieth. 1987, p. 39).
Saffioti (1987) conclui sobre isto que, tanto a mãe quanto o pai, fazem o poder adulto
masculino perpetuar, pois este modelo indica o que é ser um homem ou ser uma mulher e acaba
gerando um medo de não estar dentro deste padrão. Mulheres bem sucedidas, empreendedoras
e dinâmicas receiam se tornar menos femininas e por isso, menos atrativas para seus
companheiros, bem como os homens temem demonstrar pacificidade, generosidade e
flexibilidade e serem considerados menos machos por isto.
A autora continua ainda nos dizendo que estereótipos funcionam como molde e, quem
não cabe dentro deste molde acaba sendo marginalizado, pois, é o costume que faz com que
algo se torne “normal”. Nunca se sabe onde darão ou o que se tornarão as inovações, então
estas são temidas e este medo assola os homens e as mulheres, porém, apenas as mulheres
podem demonstrar este medo, pois são as únicas rotuladas de “sexo frágil”. Os homens, no
entanto, por maior que seja o medo sentido, não devem manifestá-lo para continuarem cabendo
neste modelo imposto, pois, mesmo que tenha um caráter repressivo, é o jeito mais fácil de
viver. Basta obedecer ao padrão. É claro que cada pessoa sente e vivencia suas questões de
formas diferentes e modelar todas as pessoas segundo este padrão violenta drasticamente suas
particularidades e mantém o padrão de relações assimétricas.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
Em outros termos, o estereótipo funciona como uma máscara. Os homens devem vestir a
máscara do macho, da mesma forma que as mulheres devem vestir a máscara das submissas.
O uso das máscaras significa a repressão de todos os desejos que caminharem em outra
direção. Não obstante, a sociedade atinge alto grau de êxito neste processo repressivo, que
modela homens e mulheres para relações assimétricas, desiguais, de dominador e dominada
(SAFFIOTI, Heleieth. 1987, p. 40).
Ao mesmo passo em que os homossexuais foram igualados às mulheres e por isto,
diminuídos, abre-se a prerrogativa de que se um homem mantém relações de afeto com outro
homem, mesmo que ambos sejam heterossexuais, pode haver um comportamento
188
discriminatório por parte dos outros indivíduos, simplesmente porque demonstrar afetos é tido
como um comportamento feminino e não masculino. (LOURO, 2013 citado por NIGRO e
BARACAT, 2017).
Pensando neste conceito de superioridade masculinizada e esteriotipada dentro do
padrão heteronormativo, chegamos ao ponto da dominação, onde o homem sente o desejo de
posse, e enxerga tudo o que é diferente deste padrão como algo a ser diminuído, dilacerado,
dominado e possuído e desta forma, podemos reconhecer também como uma relação de poder,
atos como o estupro e o assédio sexual, como já dizia Saffioti (1987).
Hohendorff (2016 citando Kia-Keating et al., 2005) diz que, como homens são
socializados dentro desta perspectiva de controle e poder, ainda que sofram consequências com
a violência sexual, não conseguem reportar a violência ou buscar ajuda profissional, pois este
comportamento vitimizado foge do estoicismo do não compartilhamento de sentimentos
atrelado ao gênero masculino.
Saffiotti (1987) diz ainda que assim como na reprodução biológica, a construção e a
reprodução social entre homens e mulheres é complementar, isto é, se vemos uma mutilação
das práticas cotidianas femininas, vemos também homens mutilados por estes mesmos
preceitos. As condutas impostas aos homens dentro desta regra, também limitam e ferem seu
desenvolvimento.

O que é o abuso sexual infantil?


De acordo com a cartilha Família Protetora! Um guia para pais e responsáveis sobre
como identificar riscos de abuso sexual, exploração infantil e pedofilia (2020), existem dois
tipos de violência sexual contra crianças, classificadas como abuso sexual ou exploração
sexual, sendo que aqui, vamos falar deste primeiro item.
Abuso sexual - É a utilização da sexualidade de uma criança ou adolescente para a prática de qualquer ato de
natureza libidinal ou sexual. Essa violência pode se manifestar dentro ou fora de casa, ou seja, pode ser advinda
do meio intrafamiliar ou extrafamiliar, a saber:
-- Abuso Sexual Intrafamiliar - É aquele que ocorre no contexto doméstico, quando há
relação de parentesco entre a vítima e o seu agressor ou envolve ainda pessoas que residem
no mesmo local que a criança ou adolescente.
-- Abuso Sexual Extrafamiliar - Acontece quando não há uma relação de convivência
familiar entre o agressor e a vítima e, assim sendo, ocorre fora do contexto familiar, sendo
praticado por alguém que se conhece pouco como, por exemplo, vizinhos, médicos,
professores ou por uma pessoa totalmente desconhecida da vítima (BRASIL, 2020).

A violência pode ser cometida por pedófilos ou abusadores e aqui vamos salientar as
diferenças para que fiquem claras:
Pedofilia vem do grego pedo que na tradução seria criança, e filia que pode ser transcrita
como amor ou atração. Nascimento (2017), cita Magalhães et al., (2011) que dizem que os
pedófilos sofrem de uma desordem psicossexual e fantasiam ou tem atividades sexuais com
crianças pré-puberes como único ou preferido meio de excitação e satisfação sexual plena.
Estudos de Sexualidade 3

Em contrapartida, os abusadores são ocasionais. Valem-se da vulnerabilidade e fácil


acesso à vítima, e por estarem numa relação adulto-criança, se vêem em vantagem pelo poder
e domínio sobre a vítima (MACHADO, 2013 citado por NASCIMENTO, 2017).
O abuso sexual infantil não necessariamente tem a ver com toque físico, também são
consideradas tipografias de abuso sexual situações com finalidade de causar excitação sexual,
tais como expor a criança ou adolescente a imagens, fotos, filmes ou cenas de adultos nus em
contexto sexual, pornográfico ou erótico.
Finkelhor (2009, citado por PEREIRA, 2019) explica que na literatura em geral,
comumente são descritos como critérios para o abuso sexual infantil, a relação existente entre 189

o perpetrador da violência e a vítima, as ofensas desferidas mesmo que sem contato físico, a
exploração a que a criança é submetida e a satisfação obtida pelo ofensor, independentemente
da idade do perpetrador.
Ainda Pereira (2019) citando outros autores como Machado (2003) e Carmo (2000),
diz que juridicamente, o Código Penal Português considera o abuso sexual infantil um crime
contra a autodeterminação sexual, pois, um menor é considerado alguém incapaz de consentir
ou se autodeterminar responsável devido à sua imaturidade, e mesmo que não tenha nenhum
tipo de violência ou coação da vítima, o ato pode implicar em um prejuízo para o seu
desenvolvimento.
Como dito anteriormente e ainda segundo o mesmo artigo, quem importuna um menor,
por meio de conversa, objetos ou espetáculos pornográficos, alicia um menor a assistir a abusos
ou qualquer atividade sexual, mesmo sem o toque físico, também é passível de punição.
Morilha (2016) cita Sanderson (2008), que divide a violência sexual infantil em duas
categorias:
1- Com contato físico. Podendo ser classificadas ainda de acordo com três subgrupos, são
eles:
a) Gravíssima: quando há relação genital, sexo oral, sexo anal, ou quando existe exploração da
vítima, como, obrigar o menor a participar de situações sexuais em troca de dinheiro ou outro
tipo de pagamento.
b) Grave: quando existe um contato manual com os órgãos genitais descobertos, com
simulação de relação sexual, penetração dos dedos, colocar e retirar objetos da entrada da
vagina ou anus da criança ou adolescente, masturbar a vítima, obrigar que ela masturbe o
abusador ou que ambos se masturbem e ejacular na vítima.
c) Menos grave: quando existe contato manual sexualizado e beijos eróticos.
2- Sem contato físico. O abuso sexual infantil pode ser sutil, aliciando um menor
pessoalmente ou pela internet, usando palavras e termos com conotação sexual,
descrevendo práticas sexuais de forma verbalizada, deixar a criança exposta a matérias
de cunho sexual, revistas, filmes, fotos de sexo explícito ou nudez, despir-se na frente
da vítima, expor a genitália para a criança de forma deliberada, deixar a criança exposta
a relações sexuais, espionar a criança tomando banho ou se trocando, ou olhar partes
do corpo da criança que a cause constrangimento, estimular a nudez e pornografia
infantil (tirar fotos ou filmar poses pornográficas ou de sexo explícito com a criança).
Muitos países enxergam a violência sexual contra crianças e adolescentes como um
problema grave de saúde pública, pois, vem tomando uma proporção muito ampla. Aqui no
Brasil, por se tratar de uma violência que faz parte do dia a dia da sociedade, é por lei, dever
de todos assegurarmos que todos os direitos fundamentais serão aplicados para esse público
conforme consta nos autos da Constituição Federal (1988) e a lei 8.069/90 do ECA (Estatuto
da Criança e do Adolescente), que combate toda forma de discriminação, violência, crueldade,
exploração, negligência e opressão que sofram ou possam vir a sofrer.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

É importante salientar que embora crianças e adolescentes sejam o público mais


propenso às várias violências sexuais por ser mais vulneráveis, a legislação brasileira só
promulgou uma iniciativa de proteção em 1988, por meio do artigo 227 da Constituição Federal
e para que essas medidas pudessem ser efetivadas, foi necessária a elaboração de um
instrumento legal, devendo ser reconhecido universalmente, criado pelo ECA – Estatuto da
Criança e do Adolescente, que em complemento ao artigo 227, trouxe além de direitos
fundamentais, direitos específicos como direito à vida, à saúde, respeito, liberdade, dignidade,
educação, lazer, cultura, esporte, convivência familiar e comunitária, proteção do trabalho e
190
profissionalização.
Mesmo com estes direitos garantidos por lei, casos de violência sexual infanto-juvenil
são cada vez mais comuns e continuam acontecendo em crescente. A Organização Pan-
Americana de Saúde (OPAS, 2017) fornece dados estatísticos de que quase uma em cada cinco
meninas e um em cada treze meninos sofrem abuso sexual, mas os dados não são concretos
porque o crime costuma ser difícil de identificar por acontecer em sua maioria no ambiente
familiar e perpetrado por pessoas próximas à vítima e muitas vezes com a conivência da mãe.
Muitas vezes o abuso cometido não deixa marcas visíveis, fazendo com que fique ainda mais
difícil de ser comprovado.
Em geral, crianças e adolescentes que sofrem violência sexual não contam o ocorrido
ou por medo do abusador, que muitas vezes ameaça caso seja apontado, ou porque não
entendem que foram violadas. A criança muitas vezes é proibida de manter amizades, e por
estar envergonhada e estigmatizada em decorrência do abuso é muito capaz que ela se isole
(NASCIMENTO, 2017).
Muitos são os sinais que um infante pode apresentar após situações de abuso sexual,
dentre eles estão: Problemas escolares, agressividade, isolamento, pesadelos frequentes,
insônia, transtornos alimentares, curiosidade ou conhecimento sexual inadequado para a idade,
instabilidade emocional, choros frequentes e sem motivo aparente, ideação suicida, ansiedade,
estresse, depressão, autodepreciação do corpo, incomodo ao ser tocado ou abraçado, falta de
confiança em figuras em que antes confiava, além de sinais físicos como dor, inchaço ou
sangramento das partes genitais, infecção genital ou abdominal, hematomas no corpo e doenças
sexualmente transmissíveis (Cartilha Família Protetora! Um guia para pais e responsáveis
sobre como identificar riscos de abuso sexual, exploração infantil e pedofilia, 2020).
Ainda sobre as possíveis consequências psicológicas, Florentino (2015, citando DAY
et al., 2003) fala que a criança ou adolescente, a curto prazo, pode sentir medo não apenas do
agressor, mas também de pessoas do mesmo sexo que o agressor, se isolar socialmente, obter
quadros fóbico-ansiosos, depressivos ou obsessivo-compulsivos, depressão, distúrbios na
alimentação, sono ou aprendizagem, medo, vergonha, confusão, sentimento de rejeição e
humilhação. Mais tarde, os danos podem ser notados através de ocorrência ou incidência de
alguns transtornos psiquiátricos como pensamentos invasivos, dissociação afetiva, fobias mais
agudas e ideação suicida, bem como níveis mais intensos de medo, raiva, culpa, ansiedade,
depressão, hostilidade e isolamento, abuso de álcool e outros componentes psicoativos,
disfunções menstruais, disfunções sexuais e masturbação compulsiva. Podem também
desenvolver um sentimento crônico de confusão e perigo, ter imagens de mundo distorcidas
com muita dificuldade de perceber a realidade, cognição distorcida, pensamento ilógico e
dificuldade em resolver questões interpessoais.
De acordo com Florentino (2015), a ausência de grupos eficazes de controle dificulta a
avaliação e a compreensão das consequências do abuso sexual infanto-juvenil por não existir
um acompanhamento em longo prazo dos efeitos da violência. Podemos pensar que isto se dá
também, porque a vítima deseja esquecer o ocorrido, sem ter que ficar revivendo e servindo de
experimento para avaliação das reações tardias da experiência traumática do abuso.
Estudos de Sexualidade 3

Contudo, o pouco conhecimento que temos na literatura sobre isso, é parte do trabalho
de pesquisadores e relatos de pessoas que vivenciaram tal situação. Estes pesquisadores em
sua maioria concordam que além de se manifestarem de formas diversas, os efeitos do abuso
sexual na infância podem aparecer em qualquer idade da vida, podendo ser também fator
facilitador para o surgimento de psicopatologias graves (FLORENTINO, 2015 citando
CAPITÃO, 2007).
Florentino (2015) segue ainda sobre o tema citando Furniss (1993), que afirma que o
grau de severidade dos efeitos do abuso varia de acordo com algumas questões individuais da
vítima, como idade da vítima, quando se iniciou e quantas vezes aconteceu a violência, o grau 191

de agressividade utilizado no momento do abuso, diferença de idade entre violentador e vítima,


presença ou ausência de vínculo afetivo-social, existência ou não de violência psicológica
(como ameaças).
Para Silva (2000) citado por Florentino (2015), algumas pessoas podem ser capazes de
controlar o trauma até certo ponto, isso acontece quando o indivíduo exibe uma capacidade de
regular os efeitos gerados pela situação traumática. Para o autor, mesmo depois da situação em
que ocorreu o trauma, um indivíduo é capaz de continuar a vida sabendo regular os efeitos
traumáticos.
Quando a vítima é silenciada, ela tem a vida ainda mais comprometida, pois o abusador
continua sem ser punido e muitas vezes podendo manter os abusos por longos períodos e
continuar no convívio da criança ou adolescente, fazendo gerar ainda mais danos psicológicos
na vítima, que pode também se manter silenciada como forma de proteger a integridade da
família, como se fosse responsável por seu equilíbrio ou desequilíbrio.
Citando Prado (2004), Florentino (2015) vai dizer que manter o abuso em segredo causa
comprometimentos psicológicos diversos e duplos pensamentos angustiantes na vítima, como
o medo do agressor e o medo de ser desacreditada pela família. Porém, manter a violência em
segredo costuma causar ainda mais danos, pois impede que a vítima se proteja de novas
investidas do abusador, que pode usar de violência, deixando graves sequelas físicas e
psicológicas ou até mesmo levando a criança à morte.
É possível afirmar que a criança ou adolescente facilmente encontrará razões para se sentir
culpada diante de uma situação de abuso sexual. Por isso, é essencial ouvir a criança e
permitir que se expresse ao nível de sua culpa, pois o que ela pode dizer e sentir no plano
consciente, e também no inconsciente, talvez seja muito diferente de nossas projeções e de
nossa lógica enquanto adultos (FLORENTINO, 2015).

Ainda que muitos sintomas se mantenham, quando a criança ou adolescente vítimas de abuso
sexual conseguem revelar o abuso e são acolhidas, acreditadas e recebem a ajuda necessária
para combater o violador, as manifestações mais notórias tendem a desaparecer e elas podem
continuar tendo interesse nelas mesmas e em criar novos vínculos (GABEL, 1997 citado por
FLORENTINO, 2015).

Proteção à criança ou adolescente vítima de violência sexual


Três etapas são necessárias na proteção à criança ou adolescente vítima de abuso
sexual: revelação, que está ligada aos sintomas que surgem apontando que existe um problema,
o que nos traz a necessidade de que pessoas próximas à criança consigam reconhecer tais sinais;
notificação, que diz respeito ao tornar pública a violência sofrida e a denúncia, que é o passo
que responsabiliza o agressor junto aos órgãos públicos e de garantia dos direitos de crianças
e adolescentes, como Conselho Tutelar, Disque Denúncia, SOS Criança ou delegacias
especializadas (CONCEIÇÃO, 2020 et al., citando HOHENDORFF, SANTOS &
DELL’AGLIO, 2015).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
Notificar significa que a criança ou adolescente e sua família terão apoio de instituições e profissionais
competentes para interromper a violência e oferecer tratamento. Além disso, autores consideram que a notificação
pode ser considerada como parte do processo de favorecimento da resiliência da vítima, quando a lei determina
que tenha início o estágio do restabelecimento da segurança da criança e da interrupção da violência
(CONCEIÇÃO, 2020 et al., citando DOBKE, SANTOS & DELL’AGLIO, 2010; WEKERLE, 2013. p. 105).
Como dito anteriormente, o vínculo entre vítima e abusador é fator importantíssimo a
se levar em consideração dentro das variáveis de consequências do abuso sexual. O incesto, na
maioria dos casos acaba tendo características mais duradouras e severas porque exime o pai do
papel primevo de proteção, causando confusão na criança. Também acaba por debilitar o papel
192
materno por omissão ou não percepção dos fatos traumáticos (FLORENTINO, 2015 citando
GABEL, 1997).
Esta confusão causada pelo trauma, que inverte os papéis de protetor e abusador, ou da
família que antes era a representação de lugar seguro e passa a ser lugar de terror, medo,
insegurança e incertezas, acaba gerando uma parcial ou total inabilidade de socialização, pois
o infante não percebe que, embora não possa confiar em algumas pessoas, pode depositar
confiança em outras.
Conforme dito neste estudo, temos uma sociedade construída a partir de uma ideologia
patriarcal, constituída de homens criados para não demonstrar seus afetos ou fraquezas e
subjugar e agredir quem tem um funcionamento diferente do estereótipo de superioridade
masculina heteronormativa, ou seja, as mulheres e os homens homossexuais.
Segundo Davide (2019 citando DENOV, 2003; ELLIOTT, 1994; LANDOR, 2009;
NELSON, 1994) os homens são ensinados e até mesmo encorajados a terem comportamentos
hipersexualizados desde muito cedo como forma de demonstrar virilidade e dominação, este
comportamento além de incutir questões relacionadas a objetificação do corpo da mulher, faz
com que crianças e adolescentes do sexo masculino que sofrem abusos sexuais de violentadoras
do sexo feminino não se sintam invadidos e abusados, como se fosse dever deles estarem
sempre dispostos a ter relações sexuais com mulheres ou como se fosse benéfico para sua
iniciação à vida sexual. Mais uma vez, podemos perceber a interferência dos papéis de gênero
estigmatizados com a representação de que o homem é um sujeito ativo que deseja e inicia o
contato sexual, enquanto a mulher é tida como passiva e de forma alguma agressiva e, portanto,
não rejeitada pelo sexo masculino.
A mulher perpetradora de violência
“Uma mulher que manifesta um comportamento sexualmente agressivo contraria as
representações de gênero e os papéis tradicionais do homem e da mulher” (DAVIDE, 2019. p.
08, citando BYERS, 1996 e DENOV, 2003), isto acaba por diminuir a culpa das perpetradoras
de abuso sexual, patologizando-as e desresponsabilizando-as e assim, dificultando ainda mais
as denúncias a esse tipo de violência.
Alguns estudos relatam a relutância das vítimas em denunciar o abuso sexual cometido
por mulheres, muitas vezes por esses abusos não serem reconhecidos como tal e as vítimas
muitas vezes desconhecerem esta realidade de que mulheres também podem ser abusadoras ou
pelo receio de serem descredibilizadas perante a situação (DAVIDE, 2019 citando ELLIOTT,
1994 e DENOV, 2003).
As crianças e adolescentes do sexo masculino vítimas de abuso sexual de uma
abusadora do sexo feminino, são frequentemente chamadas de “amantes”, enquanto que
quando o abuso é perpetrado por alguém do sexo masculino, são descritas como “vítima”
(DAVIDE, 2019 citando HAYES e BAKER, 2014 e LANDOR, 2009).
A mesma autora cita Vala & Castro (2013) que falam que as representações sociais não
dependem apenas dos grupos onde ocorrem, mas são influenciadas também pelos contextos e
os sujeitos que compõe este grupo, mesmo que estes sejam mutáveis. As representações ao
mesmo passo que mudam em decorrência das mudanças que ocorrem ao seu redor são estáveis
Estudos de Sexualidade 3

no que diz respeito a estarem em conformidade com a cultura, os contextos e os sujeitos, ou


seja, continuam reagindo a respostas sociais.
Falar das representações sociais é importante para entendermos que, todo o complexo
estrutural patriarcal e machista serve de suporte para como nos relacionamos conosco e com
as outras pessoas. Se dentro desta estrutura, majoritariamente temos um padrão de mulheres
incapazes de manifestar uma reação agressiva e são passivas sexualmente, e homens que são
superiores, dominadores e que precisam estar sempre dispostos ao ato sexual, como podemos
pensar e compreender que uma mulher também pode ser abusiva? E mais, como uma mulher
pode ser abusiva com um corpo masculino? 193

Entender a mulher como um ser frágil e submisso nos leva a invisibilizar este
comportamento de abuso, mesmo quando a vítima é uma criança, apenas porque nos pautamos
dentro deste padrão sexista, deixando assim as vítimas mais desprotegidas.
Partindo desse pressuposto de representações sociais, sabemos que existe um viés de
gênero quanto aos abusos sexuais, onde maioritariamente homens são perpetradores de abuso
e mulheres vítimas. Embora exista pouca representação da mulher enquanto abusadora sexual
nas estatísticas oficiais, isto não significa que uma mulher não possa ter este tipo de
comportamento, mas sim que esta representação contribui para que a mulher não seja vista no
papel de ofensora sexual e que, portanto, as vítimas deste abuso estarão desprotegidas e
pouquíssimas chegarão a denunciar estas práticas (DAVIDE, 2019 citando DENOV, 2003 e
HETHERTON, 1999).
Davide (2019 citando NELSON, 1994) traz um estudo de casos de abuso sexual
cometido por mulheres onde se pode apurar que mesmo os policiais, tendem a desculpabilizar
os atos quando a abusadora se mostra arrependida ou tenha tido também um histórico de abuso
sexual cometido contra ela. Este comportamento negativo mesmo entre profissionais da polícia
só nos mostra mais uma vez o desconforto de aceitar que uma mulher possa ser perpetradora
do abuso sexual, minimizando ou desaparecendo com o abuso e suas consequências para as
vítimas ou até mesmo descredibilizando totalmente as alegações da vítima.
Além deste descrédito nas alegações, o abuso sexual cometido por mulheres tende a ser
visto como menos danoso e menos grave para a vítima do que quando cometido por homens.
E alguns investigadores ainda percebem que quando a criança abusada por uma mulher é do
sexo masculino, o abuso é visto pelo senso comum como algo benéfico, pautado naquela
questão de papéis de gênero que comentamos anteriormente, onde o menino é visto como um
ser sexual, ativo e desejante a todo o tempo e este abuso muitas vezes é descrito como uma
“iniciação” da vida sexual invés de violência (DAVIDE, 2019 citando outros autores como
CLEMENTS, DAWSON & NAIR, 2013; HETHERTON, 1999; LANDOR, 2009; NELSON,
1994; DENOV, 2003; ELLIOTT, 1994).
Os organismos e os profissionais que trabalham na área do ASC (abuso sexual de crianças)
são responsáveis pela identificação e acompanhamento das vítimas de AS (abuso sexual) e
têm um papel fundamental não só na promoção do bem-estar e proteção das vítimas, como
na sinalização dos casos e identificação dos/as alegados/as ofensores/as, sendo, portanto,
vital que não se deixem influenciar por este viés de gênero no que diz respeito ao ASC
(DAVIDE, 2019 citando DENOV, 2003. p. 13).

De um modo geral, o abuso sexual pode influenciar em comportamentos sexuais


agressivos na vida do infante, e tende a ser visto como um grande causador de sofrimentos e
uma implicação no desenvolvimento psicossexual posteriormente, no adolescente e adulto do
sexo masculino (CONCEIÇÃO et al., 2020 citando BLOM et al., 2014; HERSHKOWITZ,
2014; VALENTE, 2005).
Quando um menino é violentado sexualmente, seja por um perpetrador homem ou por
uma mulher, ele se sente confuso sobre sua sexualidade e tem medo de que possa se tornar
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

homossexual, esta confusão pode trazer uma necessidade de afirmar ou reafirmar sua
masculinidade com comportamentos agressivos, destrutivos, de desobediência e hostilidade,
que são os comportamentos tidos como masculinos, conforme vimos anteriormente
(CONCEIÇÃO et al., 2020 citando HOHENDORFF et al., 2013; SCRANDS & WATT, 2014).

Para finalizar
Diferentemente do abuso sexual infantil em crianças e adolescentes do sexo feminino,
os abusos em que são vítimas as crianças do sexo masculino, constituem-se de forma mais
194
oculta, pois, atravessa questões de cunho social.
O machismo em que nossa cultura se estrutura, atravessa muitos aspectos da
sexualidade humana e não apenas é violentamente agressivo com as mulheres, mas também
com os homens, regulamentando princípios e práticas comportamentais onde nem todos se
encaixam. Muitos meninos são incapacitados de demonstrarem afetos e sentimentos como
medo, frustração e tristeza, em prol de se encaixarem dentro de um molde social, no qual quem
está de fora, ou não corresponde ao padrão acaba sendo hostilizado.
Quando existe uma regra rígida a ser cumprida, onde existem comportamentos e
pensamentos pré-definidos para cada sexo, existe também a ilusão de que seguir este padrão é
o mais sensato ou mais confortável a se fazer, justamente para que não tenham consequências
a serem sofridas lá na frente.
Este padrão falocentrista e dominador chega até questões mais extremas como o abuso
sexual de várias formas, e uma delas é o objetivo deste artigo. Ao analisarmos o abuso sexual
sofrido por crianças e adolescentes do sexo masculino, conseguimos perceber claramente como
o machismo auxilia na defasagem de informações sobre o tema e dificulta nas notificações
sobre as violências sofridas, seja por meio de perpetradores do sexo masculino ou feminino,
pois, diz à vítima, por ela ser do sexo masculino, como ela deve se comportar diante destes
abusadores.
Analisando o que é ensinado para um menino, encontramos comportamentos de
superioridade e dominação em relação ao sexo feminino, como se o feminino fosse algo ruim,
algo a ser extinto, ou seja, para que ele não “perca” esta superioridade, ele não pode se
comportar como uma mulher. Quando então, um menino se percebe vítima de um perpetrador
do sexo masculino, ele se vê dominado, característica que condiz com a mulher e não com o
homem, o que traz confusão, sofrimento, angústia e vergonha. É esta vergonha e confusão que
dificultam o menino a expor o abuso sofrido. Quando a perpetradora da violência é uma
mulher, este código do “ser macho” também interfere na exposição do abuso, pois, além de o
menino ser ensinado que ele deve estar sempre pronto para o sexo com uma mulher, muitas
vezes nem ele se percebe abusado e quando percebe, corre o risco de mais uma vez ter sua
masculinidade posta à prova. Ou seja, o comportamento patriarcal de dominação não exime
nem mesmo as crianças de sua violência.
Por isto faz-se necessárias novas pesquisas sobre o tema, além da divulgação de dados
e educação sexual para crianças e adolescentes, para que as vítimas e seus responsáveis
entendam como se dão as violências e como podem se defender dos perpetradores e incutir
denúncias dos casos.

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https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf. Acesso em
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Estudos de Sexualidade 3
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nacional dos direitos da criança e do adolescente. Família protetora! Um guia para pais e responsáveis
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espaço feminino. Uberlândia/MG – v.28, n.1 – jan/jun 2015. ISSN online 1981-3082, p. 90. Disponível
em: < http://www.seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/31723> Acesso em 20 out 2020.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

196
Estudos de Sexualidade 3

PORQUE AS MÃES NÃO FALAM SOBRE SEXUALIDADE COM AS SUAS


CRIANÇAS

Juliana Costa De Souza

197

RESUMO
As mães ocupam um lugar indiscutivelmente privilegiado para dar os primeiros passos na
educação sexual da sua criança, pois reúnem condições naturalmente criadas e indispensáveis
para promover uma educação sexual emancipatória que se apresente como um antídoto à
exposição a riscos irremediáveis em razão da vulnerabilidade que a ignorância gera. Desde a
concepção, a mãe é a principal fonte de nutrição física e emocional da criança. É com ela que
se formam os vínculos mais fortes e duradouros. É ela que possui o nível de presença, confiança
e intimidade que o momento para conversas esclarecedoras sobre sexualidade com uma criança
requer. Mas o que se constata na prática e nas mais variadas literaturas e discursos científicos
ou empíricos é que as mães, em regra, não falam sobre sexualidade com as suas crianças. O
objetivo geral do presente estudo é buscar na literatura científica, através de revisão
bibliográfica, aspectos relacionados às possíveis barreiras que dificultam o diálogo sobre
sexualidade das mães com as suas filhas e filhos. Foram realizadas buscas nos meses de junho
e agosto de 2020, através da ferramenta Google Acadêmico, por palavras-chave como
“sexualidade infantil”, “diálogo materno sobre sexualidade infantil”, “educação sexual
infantil”, “patriarcado e educação sexual”, bem como nas referências dos próprios trabalhos
encontrados. As buscas resultaram na seleção de 11 (onze) artigos. Complementarmente, foram
selecionados 3 (três) livros e 1 (uma) notícia veiculada na grande mídia.

Palavras-chave: Educação sexual infantil, sexualidade infantil, diálogo materno sobre


sexualidade infantil.

ABSTRACT
Mothers have an unarguably privileged place to begin their children sexual education because
they gather condition that are naturally created and indispensable to promote an emancipatory
sexual education that can act as an antidote to irremediable risks caused by the vulnerability
that ignorance creates. Since conception, the mother is the main source for the child’s
emotional and physical nutrition. It is with her that the strongest and the most lasting bonds are
formed. It is her that possesses the level of presence, confidence, and intimacy that a child
requires to engage in a clarifying conversation about sexuality. However, what is found in the
daily practice and in the scientific and empiric literature is thar mothers, as a rule, do not talk
about sexuality with their children. This study aimed to search in scientific literature, through
the format of literature review, which factors could possibly create these barriers that make the
dialogue about sexuality between mothers and daughters or sons. The search took place
between the months of June and august from 2020, through the database of Google Scholar,
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

using the keywords “child sexuality”, “maternal dialogue about child’s sexuality”, “child
sexual education”, “patriarch and sexual education”, and also referenced from the studies that
resulted from this search. Eleven articles were selected. Additionally, three books and one news
aired in the media were also selected.

Keywords: Child sexual education, child sexuality, maternal dialogue about child’s sexuality.

198 1. INTRODUÇÃO
Os avanços tecnológicos possibilitaram o acesso ao conhecimento ao toque dos dedos,
mas ainda não foram capazes de romper limitações milenares no que diz respeito à educação
sexual das crianças.
Smartphones, tablets e congêneres permitem que pessoas de todas as idades tenham
acesso a conteúdos pornográficos - o que inclui crianças muito pequenas, em razão da falta de
supervisão.
O Pornhub é o 23° site mais popular do mundo e está na terceira posição em relação aos sites adultos,
segundo lista divulgada em setembro de 2017 pelo site Similar Web, que mensura o tráfego na Internet.
Segundo dados divulgados pelo próprio Pornhub em janeiro de 2017 sobre todo o ano de 2016, 23
bilhões de visitantes acessaram o site, o que corresponde a 64 milhões por dia, ou 729 visitantes por
segundo. Foram mais de 91 bilhões de vídeos assistidos, o que corresponde a 12,5 vídeos vistos por
cada pessoa no mundo (BISPO, 2017, p. 24).

O mesmo não acontece em relação a conteúdos instrutivos, esclarecedores e íntegros


sobre sexualidade humana. Enquanto a falta de supervisão facilita o acesso de crianças a
conteúdos pornográficos aleatórios, o acesso a conteúdos educativos depende da supervisão e
atuação de um adulto responsável para que a criança tenha acesso ao que está reservado para a
faixa etária na qual ela se encontra.
Conforme ressaltado por ECOS – Estudos e Comunicação em Sexualidade e Reprodução Humana
(ECOS, 2013), a educação sexual deve ser entendida como um direito que as crianças e/ou adolescentes
têm de conhecer seu corpo e ter uma visão positiva da sua sexualidade; de manter uma comunicação
clara em suas relações; de ter pensamento crítico; de compreender seu próprio comportamento e o do
outr. (GONÇALVES et al., 2013, p. 252).

Para além do direito inerente à condição humana, os esforços por promover uma
educação sexual emancipatória se apresentam como um antídoto à exposição a riscos
irremediáveis em razão da vulnerabilidade que a ignorância gera. No entanto, “em nossa
sociedade, a sexualidade não tem sido explorada e/ou dialogada de modo que as pessoas sejam
educadas a conhecê-la (...), culminando, nesse sentido, em uma deseducação sexual”
(GONÇALVES et al., 2013, p. 252).
O “não dialogar”, desse modo, facilita a exposição de adolescentes a situações de riscos relacionados ao
exercício da sexualidade, como gravidez indesejada, contágio de infecções sexualmente transmissíveis e
traumas psicológicos e emocionais resultantes da vivência de uma sexualidade frustrante (TRINDADE
& BRUNS, 1999 apud GONÇALVES et al., 2013, p. 252).

Muito se discute a respeito de quem é a responsabilidade sobre a educação sexual das


crianças. “A questão de quem seria o educador ideal e o lugar ideal para discorrer sobre
sexualidade também já é há muito discutida, debatendo os papéis desempenhados por pais,
professores, sacerdotes e médicos” (MONTARDO, 2008 apud BORGONOVO, 2017, p. 99).
Responsabilidades compartilhadas são sempre bem-vindas: a atuação de homens
conscientes de seus papéis de pais, escolas aparamentadas, educadores capacitados, sacerdotes
com discursos libertadores, profissionais da saúde acessíveis a todos. Num mundo ideal, as
crianças e os jovens encontrariam suporte em todas essas figuras. Mas a realidade se apresenta
Estudos de Sexualidade 3

um tanto diferente. O machismo ainda impera sobre muitos aspectos e, essencialmente, na


figura paterna; as escolas e os educadores vivem as consequências de um grande obscurantismo
político; os sacerdotes ainda doutrinam sustentados no pecado; e a saúde não chega a todos.
Resta a mãe.
Desde a concepção, a mãe é a principal fonte de nutrição física e emocional da criança.
É com ela que se formam os vínculos mais fortes e duradouros. Ela ancora a vida e a existência
do bebê enquanto cresce e amadurece o suficiente para se conduzir de forma mais autônoma.
GUTMAN (2015) sustenta que um parto não se resume ao que os olhos podem ver e
que, para além da separação física dos corpos da mãe e do bebê, “persiste uma união que 199

pertence a outra ordem” (p. 17). Para a autora, o bebê “pelo fato de ainda não ter começado a
desenvolver o intelecto, conserva suas capacidades intuitivas, telepáticas, sutis, que estão
absolutamente conectadas com a alma da mãe” (p. 17).
Naturalmente, é com ela que o bebê vive as primeiras manifestações da sua sexualidade
através do tato e do contato com as partes íntimas, especialmente se nasceu de um parto
vaginal, se foi nutrido pelas mamas e se lhe fora permitido inebriar-se com os cheiros maternos
da pele, do pescoço, do suor, do hálito.
As mães ocupam um lugar indiscutivelmente privilegiado para dar os primeiros passos
na educação sexual da sua criança, pois reúnem condições indispensáveis como o nível de
presença, confiança e intimidade que o momento requer.
“A sexualidade humana é desenvolvida espontaneamente desde as primeiras
experiências afetivas do bebê com a mãe” (Suplicy, 1999; Nunes e Silva, 2000; Yano e Ribeiro,
2011 apud GONÇALVES et al., 2015, p. 70), entretanto, pouco ou quase nada se fala da mãe
isoladamente, ainda que as estatísticas comprovem que “aproximadamente 5,5 milhões de
brasileiros não possuem registro paterno na certidão de nascimento e quase 12 milhões de
famílias são formadas por mães solo”12.
Considerando que, além das manifestações espontâneas, a demanda das crianças por
informações de ordem sexual pode ter início também na primeira infância – primeiríssimos
questionamentos -, momento em que muitas ainda não atingiram a idade escolar ou estejam no
ensino infantil com propostas pedagógicas que não abrangem o tema; considerando, ainda, que
muitos homens não assumem a paternidade dos filhos ou, assumindo, não exercem as
respectivas funções; considerando, finalmente, que, nessa fase, em regra, a mãe – ou a pessoa
que exerce as funções maternantes – é quem está emocional e afetivamente mais próxima da
criança, imperioso colocar em perspectiva a figura materna como a principal responsável por
transmitir as informações sobre sexualidade às suas respectivas crianças.
EDUCAÇÃO SEXUAL. Ela deve começar cedo. As crianças estão mais espertas e têm acesso a todo
tipo de informação sexual. A curiosidade é natural. [...] É natural, portanto, que as crianças demonstrem
curiosidade e procurem esclarecer as dúvidas com as pessoas em que mais confiam. [...] Logo, não dá
para escapar: mais dia menos dia o assunto entrará em pauta. Não existe idade certa para falar de sexo
com os filhos, e sim o momento adequado. A conversa deve acontecer sempre que surgir uma
oportunidade (TIBA, 2007, p. 248).

A afirmação de que não existe idade certa para falar de sexo com os filhos coloca a mãe
diante da real possibilidade de receber um questionamento totalmente imprevisível, para o
qual, na maioria das vezes, ela não se sente preparada.
Eis o início de um grande dilema para muitas mulheres, pois o que se sabe, pública e
notoriamente, e o que se constata na prática e nas mais variadas literaturas e discursos

12
O abandono afetivo paterno além das estatísticas. IP Comunica - Instituto de Psicologia da USP, São Paulo, 07
de agosto de 2019. Disponível em: <http://www.ip.usp.br/site/noticia/o-abandono-afetivo-paterno-alem-das-
estatisticas/#:~:text=Aproximadamente%205%2C5%20milh%C3%B5es%20de,s%C3%A3o%20formadas%20p
or%20m%C3%A3es%20solo.>
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

científicos ou empíricos é que as mães, em regra, não falam sobre sexualidade com as suas
crianças.
A razão pela qual esse diálogo não existe é o que se persegue no presente estudo,
acreditando-se que as respostas ampliam as possibilidades de enfrentamento e empoderamento
das mulheres, bem como aumentam exponencialmente as chances de elevação da qualidade de
vida de gerações.

2. OBJETIVO
200
Buscar na literatura científica, por meio da realização de uma revisão bibliográfica, aspectos
relacionados às possíveis barreiras que dificultam o diálogo sobre sexualidade das mães com
as suas crianças.

3. METODOLOGIA
Foram realizadas buscas nos meses de junho e agosto de 2020, por meio da
ferramenta Google Acadêmico, por palavras-chave como “sexualidade infantil”, “diálogo
materno sobre sexualidade infantil”, “educação sexual infantil”, “patriarcado e educação
sexual”. A partir da identificação de artigos relevantes e da sua leitura preliminar, em razão da
escassez de estudos que colocasse a mãe em perspectiva, as buscas se seguiram nas referências
dos próprios artigos encontrados. Complementarmente, foram realizadas buscas com os termos
“pornografia e educação sexual”. Priorizou-se as produções científicas dos últimos 5 anos,
porém, na ausência de conteúdos alinhados ao tema dentro do período proposto, passou-se para
os últimos 10 anos e, finalmente, ano a ano. As buscas se deram na base de dados de bibliotecas
eletrônicas de conteúdos acadêmicos, bem como na literatura publicada de origem brasileira
e/ou estrangeira. Consideraram-se, finalmente, notícias veiculadas na mídia sobre “estatísticas
sobre abandono parental”.

4. RESULTADOS
A partir da busca descrita e realizada foram selecionados 11 artigos, conforme
demonstra a Tabela 1 a seguir.
Também foram selecionados para compor o presente estudo 2 (dois) livros de autoria
do psiquiatra Içami Tiba – “Quem ama educa” e “Adolescência: o despertar do sexo” –, nos
quais ele retrata a imprescindibilidade do diálogo sexual emancipador, bem como 1 (um) livro
da psicoterapeuta argentina Laura Gutman – “A maternidade e o encontro com a própria
sombra” –, através do qual ela coloca em perspectiva aspectos profundos da conexão presente
na díade mãe-bebê.

Tabela 1. Título, autor, ano de publicação, assunto.

TÍTULO AUTOR ANO ASSUNTO


Estudos de Sexualidade 3

O estudo apresentou algumas considerações


dos pais de alunos de 7ª e 8ª série do município
de Toledo, Paraná, sobre o modo como
A família e a educação ALMEIDA, Ana Carla
orientam seus filhos sobre sexualidade, entre
sexual dos filhos: Campos Hidalgo de;
2009 elas, a importância do diálogo e da conversa
implicações para a CENTA, Maria de
franca entre pais de filhos; dificuldades
enfermagem. Lourdes.
relacionadas à educação recebida; ensino de
valores e a importância da educação 201
compartilhada com a escola.

Este estudo concluiu que “o cuidado parental


Comportamento MANFROI, Edi Cristina;
tem especificidades em relação ao
parental e o papel do pai MACARINI, Samira
2011 comportamento da mãe e do pai, que podem
no desenvolvimento Mafioletti; VIEIRA,
ser explicadas pelas perspectivas biológicas e
infantil. Mauro.
culturais”.

Os autores apontam que “resultados


evidenciados a partir de diferentes estudos
demonstram que muitas famílias privam seus
filhos da educação sexual emancipatória, pelo
Educação sexual no
GONÇALVES, RC e valor negativo atribuído a sexualidade, por
contexto familiar e
FALEIRO, JH e 2013 acreditarem que os filhos são ‘seres
escolar: impasses e
MALAFAIA, G. assexuados’, por considerarem que o diálogo
desafios.
antecipa a prática sexual e por se sentirem
despreparados e tímidos em tratar do assunto
oriundo da deseducação sexual na qual foram
vítimas”.

MARTINS, Cristina
Este artigo apresenta a polarização de papéis
Tornar-se pai e mãe: um Araújo; ABREU, Wilson
de género, à qual os pais e as mães são
papel socialmente Jorge Correia Pinto de; 2014
culturalmente levados, que define e constrói o
construído FIGUEIREDO, Maria do
significado de suas atuações.
Céu Aguiar Barbieri de.

Os autores pesquisaram, neste estudo, a


Educação sexual nas
atuação das professoras na educação sexual
séries iniciais do ensino
GONÇALVES, Randys das crianças e suas impressões acerca do papel
fundamental: o que
Caldeira; PAES, Daniela desempenhado pela família. Constatou-se que
educadoras da rede 2015
Cristina; FAVORITO, muitas professoras se sentem constrangidas e
municipal de ensino de
Ana Paula. incapazes de realizar a educação sexual, bem
Pires do Rio (Goiás) têm
como que as famílias não cumprem seu papel
a dizer?
em relação à educação sexual dos filhos.

'Bela, recatada e do lar': Os autores trazem, neste estudo, a exposição


os novos STRÜCKER, Bianca; dos muitos problemas herdados pela cultura de
2016 diferenciação entre homem e mulher e sua
desdobramentos da MAÇALAI, Gabriel.
família patriarcal. relação com os filhos, discutindo-se a
influência da família patriarcal nas famílias
brasileiras nos dias de hoje. A partir da frase
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
“bela, recatada e do lar”, colocou-se em
perspectiva o papel da mulher na sociedade
atual.

Este estudo aponta para regulações e controles


TOKUDA, André Masao sobre os corpos, sexos, sexualidade, gênero e
Família, Gênero e
Peres; PERES, Wiliam práticas relacionais dentro da própria família,
Emancipação 2016
Siqueira; ANDREO, na qual ainda se mantêm estilos de vida
Psicossocial.
202 Caio. restritos a padrões heteronormativos que
despotencializam as mulheres.

Os autores apresentam reflexões sobre as


relações patriarcais de gênero refletidas na
família através da mídia televisiva, tendo como
bases de sustentação o sistema patriarcal, que
As relações patriarcais organiza as relações de opressão-exploração
ALCANTARA, P. P. T.;
de gênero na família: das mulheres, instituindo papéis sociais e
PEIXOTO, C. L.; 2017
influência da mídia sexuais a serem cumpridos por ambos os
SILVA, A. M. S
televisiva. sexos, de forma que os mesmos são
reproduzidos em todos os segmentos sociais,
inclusive nos meios de comunicação, em
especial a televisão, fonte de acessibilidade em
massa.

Este estudo objetivou comparar a avaliação de


pais e professores de alunos do quinto ano de
Importância, escolas municipais de Foz do Iguaçu-PR, em
BORGONOVO, Ana
capacidade e conforto relação a 23 temas sobre sexualidade, através
Kamila; MOURA,
ao conversar com dos quais se observou que os pais relataram
Cynthia Borges de;
crianças sobre 2017 maior grau de importância, capacidade e
CABRAL, Priscila
sexualidade: conforto para discutir sobre temas da
Paiva; MENEGHETTI,
comparação entre pais e sexualidade com seus filhos do que os
Vanize.
professores. professores, e os temas relacionados ao ato
sexual foram pontuados com menor grau por
ambos.

Este artigo analisou em detalhes a obra A


OLIVEIRA, Amanda L.
dialética do sexo (1970), de Shulamith
Jacobsen de; ALÓS,
O poder patriarcal Firestone, com o objetivo de pensar a relação
Anselmo Peres; 2018
massacrante. de poder existente na sociedade, baseada no
OLIVEIRA, Juliana
patriarcalismo, e como ainda ocorre a
Prestes de.
segregação das mulheres e das classes baixas.

A autora pesquisou como a pornografia na


Pornô online: o espaço internet, através dos sites pornográficos, vem
na educação sexual e ocupando espaço cada vez maior na educação
BISPO, Larissa Pereira. 2017 sexual dos adolescentes e na constituição de
identidade de
adolescentes. suas identidades, bem como demonstrou que a
ausência do diálogo sobre assuntos como
gênero, sexualidade, orientação sexual e
prática sexual pela família e escola cria a
Estudos de Sexualidade 3
necessidade de busca por informações, espaço
ocupado pelos meios de comunicação com as
revistas, televisão e, hoje, a internet como
protagonista.

5. DISCUSSÃO
A educação sexual emancipatória é um direito inerente à condição humana a muitos
negado. Os seres humanos dependem da manifestação da sexualidade dos pares para chegar ao 203
mundo e, ao chegar, imediatamente são ceifados numa limitação abrupta de qualquer
possibilidade de manifestação dessa sexualidade, desde os partos industrializados com cesáreas
eletivas, passando pelos poucos estímulos à amamentação prolongada, alcançando uma
primeira infância moldada aos interesses patriarcais. Poucas experiências individuais fogem a
essa regra, ainda que os números estejam em escala ascendente.
Não obstante, nada freia a sexualidade humana, que, quer seja através de estímulos
positivos ou à margem de obscuridade, encontrará uma forma de se expressar, pois é parte
indissociável do ser humano.
De forma absolutamente natural, já na primeira infância, parte da expressão da
sexualidade emerge e as crianças apresentam seus primeiros questionamentos.
É preciso entender, que a educação sexual não se restringe a uma faixa etária específica, haja vista que a
sexualidade é um componente integrante da vida de qualquer ser humano e aflora sob diferentes formas,
contextos e práticas ao longo da vida. É importante ressaltar, ainda, que independente da faixa etária, as
crianças querem e necessitam receber informações sobre os vários aspectos ligados à sexualidade para
que possam ter uma vivência positiva e harmoniosa (GONÇALVES et al., 2015, p. 74).

MANFROI et al., (2011) afirma que, sobre os papéis desempenhados com a chegada
de um bebê, a mãe tende a acalmar a criança quando ela está agitada e aflita, ao passo que o
pai tende a colocar a criança em situações nas quais ela é obrigada a confrontar o ambiente
circundante, fornecendo, ao mesmo tempo, proteção e impondo limites.
No caso da mulher, a ligação entre mãe e filho pode ser facilmente explicada. Os processos básicos
envolvidos na maternidade como as fortes estimulações ligadas à gestação, ao parto e à amamentação
seriam desencadeantes de uma série de respostas comportamentais, contribuindo para a formação de um
vínculo positivo. Além disso, sabe-se que o recém-nascido possui características que facilitam esta
relação, principalmente pela amamentação, em que há um contato direto com a mãe por meio do olhar,
vocalização, toque e o calor do corpo na díade. Segundo os autores retro citados não existe nada que
explique as mesmas estimulações nos pais (MANFROI et al., 2011, p. 62).

São condições naturalmente criadas, às quais se associa a afirmação de BORGONOVO


et al. (2017, p. 100) de que “a transmissão de conhecimentos sobre sexualidade para crianças
e adolescentes é responsabilidade de quem convive com ela no dia a dia”, elevando o status de
quem reúne as principais condições para o de pessoa responsável pela transmissão dos
conhecimentos.
Não obstante tais constatações, estudos como o de ALMEIDA & CENTA (2009),
MANFROI et al., (2011), GONÇALVES et al., (2013), MARTINS et al., (2014),
GONÇALVES et al., (2015) e BORGONOVO et al., (2017) apontam para o fato de que, em
regra, o diálogo sexual emancipador não chega aos filhos e filhas por meio das famílias. E esse
não-diálogo evidencia que as mães, pessoas que reúnem condições naturalmente criadas para
instruir suas crianças sobre sexualidade – como constatado através dos estudos de MANFROI
et al., (2011), GONÇALVES et al., (2015) e BORGONOVO et al., (2017) – não o estão
fazendo.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Conhecer os prejuízos que um ser humano pode ter que enfrentar por ignorar
aspectos básicos sobre a sua sexualidade poderia servir de estímulo às mães à educação sexual
na primeira infância.
Acredita-se que a falta de educação sexual adequada desde a infância (que é a origem de todo o processo
de educação), é um fator de vulnerabilidade para situações de riscos relacionados ao exercício da
sexualidade (Rodrigues e Wechsler, 2014), em especial, práticas do sexo inseguro, gravidez indesejada,
contágio de infecções sexualmente transmissíveis como a AIDS (ou SIDA - Síndrome da
Imunodeficiência Adquirida), aborto, entre outros problemas, como crimes sexuais, prostituição,
pedofilia e traumas psicológicos e emocionais resultante da vivencia de uma sexualidade frustrante
204 (Brasil, 1997) (GONÇALVES et al., 2015, p. 70).

Ocorre que, nem mesmo todos os riscos elencados têm sido suficientes para promover
o diálogo materno sobre a sexualidade.
[...] em nossa sociedade, por uma questão de valores socioculturais, a sexualidade infantil é uma temática
extremamente revestida de preconceitos, mistificações e discriminações, pois se faz presente à concepção
que as crianças são seres “assexuados” (Furlani, 2007; Martins et al., 2012 apud GONÇALVES et al.,
2015, p. 70).

OLIVEIRA et al., (2018), numa análise aprofundada da obra “O poder patriarcal


massacrante” explica que:
Firestone contextualiza como as crianças eram tratadas e vistas nas diferentes épocas, desde a perspectiva
delas como pequenos adultos – sendo servas para que, assim, estivessem preparadas para a vida adulta,
sem dependência ou relação afetiva com os pais – até o conceito moderno de infância –, tratando as
crianças como seres diferentes que merecem proteção e amor, eternamente dependentes dos pais, não
podendo ser expostas aos assuntos e a muitas práticas adultas e tendo produtos especializados só para
elas (roupas e brinquedos), até sua iniciação ao mundo adulto, quando seriam então “livres” (OLIVEIRA
et al., 2018 p. 114).

Esperar que um ser humano atinja a idade adulta para ser livre e, somente então, entrar
em contato com os assuntos e práticas sexuais, parece ser a expectativa dos progenitores, na
esperança de não ter que desempenhar o papel de educadores sexuais. E aqui, a
responsabilidade compartilhada já se apresenta como uma máxima para a mãe. Nem se cogita,
dentre as famílias, o incentivo para que a mãe possa exercer esse papel com primazia o mais
cedo possível. A tendência naturalizada é adiar a abordagem ao máximo para, quando possível,
terceirizá-la.
Considerando que a sexualidade é um assunto de difícil discussão no meio familiar, seja por medo,
angústia ou falta de informação e insegurança dos pais; muitos preferem que a escola (espaço social
preponderante de formação de crianças e adolescentes para a vida coletiva) ajude a esclarecer as dúvidas
e distorções aprendidas pelas crianças acerca da sexualidade através da promoção da educação ou
orientação sexual (Gonçalves, Faleiro e Malafaia, 2013 apud GONÇALVES et al., 2015, p. 70).

No lugar do empoderamento da figura materna detentora das maiores condições,


conhecimentos e vivências reais sobre a sexualidade humana, carregadas de sentimentos e
emoções, consolidou-se uma estrutura que sequestrou esse poder feminino e convencionou que
atribuir à mulher a função de educar a sua criança sobre sexualidade era impor um fardo, uma
missão de tamanho peso que obrigatoriamente deve ser compartilhada. Uma convicção
sustentada, inclusive, por quem defende os direitos das mulheres.
A linha é tênue, mas acaba evidente que, no lugar de defender o poder feminino capaz
de uma verdadeira revolução nas formas de viver a sexualidade humana, impõem-se um
compartilhamento que enfraquece esse poder. Há uma luta legítima pelos direitos da mulher,
há um prejuízo real causado pela atuação patriarcal, assim como há uma força confiada ao
feminino pela natureza, tal qual a soberania de parir, que consiste no poder da mulher em
Estudos de Sexualidade 3

instruir a criança que ela trouxe ao mundo, especialmente no que diz respeito à educação
sexual.
Mesmo com um sistema estruturado para que a educação sexual emancipatória não
aconteça, a convivência com uma criança culminará em situações na qual a mãe se verá diante
de excelentes oportunidades de romper com as regras castradoras do sistema patriarcal. Uma
minoria de fato rompe. A expressiva maioria ainda não.
Alguns autores acreditam que a família não está preparada para abordar temas da sexualidade com as
crianças. Seus estudos evidenciaram dificuldades como vergonha, falta de preparo, medo de o diálogo
incentivar a prática sexual, além do valor negativo atribuído às questões da sexualidade e a crença nos 205
tabus com os quais eles foram educados em sua época (SILVA; MEGID NETO, 2006; GONÇALVES;
FALEIRO; MALAFAIA, 2013; NERY et al., 2015; QUEIRÓS et al., 2016 apud BORGONOVO et al.,
2017, p. 99).

Hoje, por maiores que sejam os atos de rebeldia de parte da população contra as regras
impostas, os tabus e preconceitos coexistem veementemente e ainda impõem barreiras
instransponíveis para muitas pessoas, o que naturalmente inclui mulheres que têm filhos.
Para TRINDADE & BRUNS (1999 apud GONÇALVES et al., 2013, p. 256), “uma das
grandes barreiras para a educação sexual na esfera familiar refere-se ao receio de despertar nos
jovens o início da sua vida sexual”.
Ao contrário do que se propaga, a educação sexual não estimula e nem antecipa a atividade sexual entre
os jovens. Já é reconhecido que a educação sexual contribui para atrasar a vida sexual dos adolescentes,
uma vez que, esclarecidos tendem a ser mais responsáveis e a adiar o início da vida sexual
(GUIMARÃES, 2003). Investigações, como a de Ramiro & Matos (2008), sugerem que a atitude parental
positiva em relação à sexualidade, bom relacionamento e a percepção de supervisão parental influenciam
no adiamento da primeira experiência sexual dos filhos e na redução de gravidez não planejada
(GONÇALVES et al., 2013, p. 256).

Outra barreira ao diálogo sobre questões relacionadas à sexualidade é, segundo


GONÇALVES et al., (2013), “o desconforto dos pais em abordar o tema”.
Os pais ainda se sentem tímidos e incomodados em tratar do assunto e consequentemente optam pela
omissão de informações e por atitudes repressoras para tentar conter as dúvidas e ansiedades dos filhos
acerca do assunto. Tal atitude pode estar relacionada ao fato dos pais não terem vivenciado uma educação
sexual emancipatória e acabam, portanto, reproduzindo os valores que lhes foram impostos ou
oportunizados por outra geração, perpetuando a deseducação sexual (GONÇALVES et al., 2013, p. 257).

ALMEIDA & CENTA (2009) desenvolveram um estudo no município de Toledo,


Paraná, visando identificar como a família vivencia a educação sexual dos filhos adolescentes.
O resultado aponta, invariavelmente, para a educação recebida.
Alguns pais revelaram o quanto sentem-se constrangidos em falar sobre sexualidade com seus filhos.
Relatam que ao sentirem dificuldade para abordar este assunto com os filhos, várias lembranças vieram
à tona e eles não conseguiram esconder que a maneira como tinham sido educados, principalmente em
relação à sexualidade, teria deixado marcas que estavam presentes até hoje, o que dificulta a comunicação
e a transmissão de conhecimentos e valores relacionados à sexualidade (ALMEIDA & CENTA, 2009,
p. 73).

A escassez de estudos que coloquem a figura maternante em perspectiva, sob o ponto


de vista da educação sexual infantil, aponta para a imperiosa necessidade de buscar referências
na história para se compreender as razões elencadas e as barreiras que impedem as mães de
falar sobre sexualidade com as suas crianças.
Em se tratando da realidade brasileira, STRÜCKER & MAÇALAI (2016, p. 4)
analisam a família patriarcal a partir do descobrimento do Brasil, e afirmam que “o modelo
patriarcal foi o ponto de partida da história da instituição familiar brasileira, o qual foi
importado pelos colonizadores europeus, e adaptado às condições socioculturais brasileiras da
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

época”, bem como afirmam que “com a instauração do patriarcado no Brasil, e a instituição da
família monogâmica, o controle masculino sobre o corpo e a sexualidade da mulher ficou ainda
mais evidente, através da divisão sexual e social do trabalho”.
No Brasil, o modelo familiar também teve como ponto de partida o modelo patriarcal, que ainda
prevalece na vida e na esfera política brasileira (CHAUÍ, 1989). Dessa forma, Jacques Donzelot (2001)
aponta que passou a existir um abismo, desde o século XVIII, quanto à educação de meninos e meninas
dentro das famílias. No primeiro caso, se estimulava e encorajava as experiências pré-conjugais, já no
segundo, prevalecia um discurso de preservação e controle dos corpos (TOKUDA et al., 2016, p. 924).

206
Tal controle sobre o corpo e a sexualidade da mulher fora exercido com tamanha
proficiência que acabou naturalizado. Para STRÜCKER & MAÇALAI (2016, p. 4) “o estilo
de vida das mulheres pertencentes a famílias mais abastadas era restrito ao lar, com poucas
oportunidades de convivência em público, a fim de manterem-se recatadas e puras, pois o
espaço público não lhes pertencia, era destinado aos homens”.
Se de um lado as mulheres eram mantidas em espaços privados, de outro as escravas e
mestiças não podiam contar com os privilégios das mulheres ricas e brancas. A necessidade de
contribuir com o sustento de suas famílias as fazia sair para trabalhar e, “por conta disso, muitas
vezes carregaram o estigma de mulheres ‘fáceis’, que não tomam os devidos cuidados à
manutenção de sua reputação, e por isso estariam suscetíveis a não ter o mesmo respeito”
(STRÜCKER & MAÇALAI, 2016, p. 5).
Uma realidade imposta por questões materiais que rotulou as mulheres da época e
classificou as que estavam aptas ao casamento, excluindo-se as demais. Naturalmente, todos
os esforços de uma família objetivavam o rótulo de recatada para as suas meninas, “pois, de
fato, a decência e os bons modos seriam virtudes necessárias às mulheres antes e após o
matrimônio” (STRÜCKER & MAÇALAI, 2016, p. 5). TOKUDA et al., (2016, p. 923) afirma
que criou-se “um modelo hegemônico de família: o da família conjugal burguesa, que passa a
ideia ilusória de maiores garantias de felicidade”. (grifo da autora)
Assim, as famílias se tornavam mais tradicionais (e bem-vistas) à medida que suas filhas eram mais
preservadas do que as de outras famílias. Neste viés, a figura da menina/mulher volta-se para o
estereótipo de dona do lar, cuidadora dos membros e guardiã da moral da família (COSTA, 2004).
Portanto, desse ponto de vista, as mulheres não tinham nenhum valor, legitimava-se o controle da
sexualidade reprodutiva e de seus corpos pelos homens, fazendo com que o masculino obtivesse
vantagens e controle dos papéis sexuais e sociais (SCOTT, 1995) ( TOKUDA et al., 2016, p. 924).
(grifo da autora)

O patriarcado limitou todas as informações honestas sobre sexualidade que uma mãe
poderia prestar à sua criança sob o pretexto da decência, distorceu os propósitos libertadores
da educação sexual emancipatória, condicionando as meninas a se tornarem mulheres guardiãs
da moral da família – incumbência que não deixava o menor espaço para a livre manifestação
de suas sexualidades – e impondo aos meninos a postura machista que perpetuaria o sistema
patriarcal.
Tudo o que permanece por muito tempo limitado, sufocado, ou reprimido tende a se
tornar reativo. Assim é que acontecem as grandes revoluções. TIBA (1994, p. 11) apresenta
importante reflexão sobre a juventude dos anos 60 e 70 que teve “a oportunidade histórica de
levantar bandeiras e até derrubar alguns mitos políticos, sociais e principalmente sexuais”,
numa grande revolução, lutando por uma liberdade que se contrapunha à educação autoritária
recebida como herança dos preceitos que por séculos dominaram as relações entre as pessoas.
O tabu da virgindade, a superioridade masculina, o casamento, o valor do dinheiro, a questão racial, tudo
foi colocado em xeque. Havia no ar a impressão de que esses valores podiam ser, de uma hora para outra,
jogados na lata de lixo da História, onde permaneceriam para sempre, como relíquias de um passado que
jamais voltaria. Hoje sabemos que as coisas não foram tão simples assim (TIBA, 1994, p. 11).
Estudos de Sexualidade 3

As constatações de TIBA (1994) são luz para uma compreensão do atual cenário de
“não-diálogo” sobre sexualidade, pois mostram que, muito embora homens e mulheres tenham
experimentado, na juventude, uma grande liberdade que se converteu na livre manifestação de
suas sexualidades, quando se tornam pais e mães e se deparam com a educação sexual dos
filhos se sentem perdidos, sem segurança sobre a maneira como devem conduzir, pois oscilam
entre a liberdade total pela qual lutaram e o autoritarismo no qual foram formados.
Por que agem assim? Por que não aplicam, pura e simplesmente, os lemas em que acreditavam? A
principal explicação para essa contradição é que esse discurso liberal e psicologizante instalou-se na
superfície de suas personalidades. É periférico. Já a educação que esses pais receberam – baseada em 207
regras rígidas e imutáveis – permanece gravada, quase intacta, numa região mais profunda de seus seres.
Essas duas “camadas”, a periférica e a profunda, alternam-se no decorrer da educação dos filhos, sem
que os pais tenham consciência do que está acontecendo (TIBA, 1994, p. 12).

MARTINS et al., (2014) também discorre sobre uma vertente dessa dualidade que
permeia pais e mães dos tempos atuais:
A revisão sistemática da literatura realizada demonstra que os casais tendem a tornar-se mais tradicionais
na sua divisão de trabalho depois do nascimento de um filho [...] (MARTINS, 2009). Isto significa que,
embora os novos pais descrevam uma ideologia de maior igualdade nos papéis familiares e na divisão
de tarefas do que a dos seus antecessores, permanece uma distância considerável entre o discurso e a
prática (MARTINS et al., 2014, pp. 122-123).

E STRÜCKER & MAÇALAI (2016), reforçam toda essa perspectiva quando afirmam:
[...] percebe-se que ainda que existam atualmente as mais diversas formas de núcleos familiares, há um
forte resquício da herança patriarcal colonizadora, onde se vende um ideal familiar – e de mulher, em
que o homem centraliza o poder, a função pública, e a supremacia sobre a mulher, e esta deve resguardar
o lar, os filhos, e a moral masculina (STRÜCKER & MAÇALAI, 2016, p. 2).

Neste mesmo sentido, MANFROI et al., (2011, p. 60), afirma que, ainda hoje, “a mãe,
podendo ser biológica ou não, é responsável pelo bom desenvolvimento da criança, pela sua
educação, alimentação, saúde; enquanto que o pai é visto como responsável por prover as
necessidades materiais da família, sendo seu condutor moral”. Nas palavras de
ALCANTARA et al., (2017, p. 274), “às mulheres são atribuídos papéis de mães e donas de
casa, aos homens ficam as obrigações do sustento e de chefiar a família. (grifos da autora)
Observa-se que mudanças expressivas no formato e na postura das famílias advieram
desde o descobrimento do Brasil, mas alguns aspectos permaneceram inalterados.
A herança patriarcal colonizadora é tão forte e alcança camadas tão profundas de um
ser humano que a naturalização das suas regras a invisibilizou ao ponto das próprias mulheres
não questionarem o que norteia suas posturas, ações ou reações.
Considerando o homem um ser superior à mulher, esta a assimila, de maneira que não precisa do homem
para mover a máquina do machismo. Sendo assim, as mesmas contribuem para sua disseminação, tendo
em vista que através da educação repassam aos seus filhos tais valores, quando proíbem os meninos
chorarem, pois “homem não chora” ou quando exigem das filhas que se comportem como mocinhas, ao
sentarem de pernas fechadas. Esses valores interferem sobremaneira na inculcação dos papeis sociais e
sexuais que homens e mulheres devem exercer na sociedade [...]. (SAFFIOTI, 2004 apud ALCANTARA
et al., 2017, p. 274).

ALCANTARA et al., (2017), afirma, neste mesmo estudo, que nem mesmo a presença
de um patriarca na família é necessária para que o patriarcado impere. Como visto, as próprias
mulheres dão manutenção às regras e perpetuam o sistema em razão da já referida naturalização
que se estabeleceu ao longo dos tempos.
Esta naturalização tem sentido com o que ALMEIDA (2010), esclarece que este processo torna o
fenômeno invisível, para que se possa continuar presente na sociedade sem ser contestado, “nem sequer
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
a presença do patriarca é imprescindível para mover a máquina do patriarcado” (ALCANTARA
et al., 2017, p. 272). (grifo da autora).

Associam-se a essas constatações, os recursos religiosos que a todo tempo validaram


as regras patriarcais. Ainda que todas as religiões exerçam influência sobre as manifestações
sexuais humanas, é certo que, no Brasil, o catolicismo exerceu expressiva influência religiosa
na forma como as famílias se conduziam. “Por muitos séculos a igreja católica, com base no
modelo de família patriarcal considerou (com seu moralismo) o prazer sexual como
208 pecaminoso, e, assim, proibido, imoral, sujo e repulsivo (VITIELLO, 1997 apud
GONÇALVES et al., 2015, p. 73).
Para a igreja católica a sexualidade era tida como um mal necessário, admissível apenas por ser
indispensável à função procreativa (VITIELLO, 1997). É explícito, mesmo nos dias de hoje, que a igreja
católica, por meio de normas de condutas e atitudes impostas (valores cristãos), interfere nas ações e
modos de agir das muitas famílias, sobretudo na maneira de perceber e vivenciar a sexualidade, fazendo
com que tabus e preconceitos do passado permaneçam até nossos dias (GONÇALVES et al., 2015, p.
73).

Quando, desde a colonização do Brasil, a moral da família cristã se sustentou na


decência como único caminho permitido para se alcançar a aprovação social e, como
consequência, a felicidade, camadas profundas se solidificaram nas pessoas e foram
transferidas por gerações ao ponto de alcançar os tempos atuais e interferir na autonomia
materna para esclarecer livremente as crianças sobre suas sexualidades.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo permitiu a constatação da escassez de pesquisas que coloquem as
mães em perspectiva no que diz respeito à educação sexual infantil, embora as citações que
versem sobre as famílias não as excluam. Não obstante, necessário se faz destacar a
necessidade de novas pesquisas que investiguem o papel materno no diálogo sexual
emancipatório desde os primeiríssimos questionamentos da criança, ainda na primeira infância.
Tais pesquisas poderão vir ao encontro dos estudos de GUTMAN (2015), MANFROI
et al., (2011) e BORGONOVO et al., (2017) que nos permitiram, neste artigo, reconhecer que
a mãe ocupa um lugar que a coloca em melhores condições para iniciar a educação sexual de
uma criança.
Importante pensar que a essência desse reconhecimento poderia ser entendida como
uma forma de empoderamento e não um fardo. A perspectiva de “peso” para a função materna
de educadora sexual da sua criança pode ser compreendida como mais uma evidência da
invisibilidade do poder patriarcal dominante. Afinal, será que dentro de um sistema patriarcal
haveria qualquer interesse em permitir que mulheres empoderadas transmitissem informações
sexualmente emancipatórias para as suas crianças, capazes de erradicar abusos e violências
sexuais, violência obstétrica, objetificação e domínio dos corpos femininos?
A história, desde a colonização do Brasil, nos apresenta elementos relevantes para a
compreensão dos caminhos percorridos pela sociedade que calou a mãe e subtraiu dela o poder
transformador de esclarecer, instruir e formar seres humanos íntegros e lúcidos no que diz
respeito às suas sexualidades.
Consubstancialmente, a influência religiosa, a todo tempo, validou todas as regras
castradoras até os dias de hoje. Todas as barreiras, dogmas, tabus e preconceitos herdados do
sistema patriarcal e validados pela influência religiosa moldaram o senso comum de forma que
a educação repressora recebida constitui, até hoje, a camada mais profunda do ser, ao qual, em
algum momento, todos acabam voltando para se guiar nas decisões que dizem respeito à
educação sexual dos filhos, o que inclui as mães.
Estudos de Sexualidade 3

As mulheres – as mães – não falam sobre sexualidade com as suas crianças porque não
estão autorizadas a fazê-lo. É algo socialmente convencionado, silencioso e invisível, porém
norteador. É algo herdado, guarda relação com o pudor que se espera ver numa jovem para que
ela esteja apta ao casamento e, assim, obter maiores garantias de felicidade e ascensão social.
E assim tem sido. Até que decidam, por si só, romper com a herança patriarcal secular e
simplesmente falar o que sentem e sabem com as filhas e os filhos que trouxeram ao mundo.

7. REFERÊNCIAS
ALCANTARA, P. P. T.; PEIXOTO, C. L.; SILVA, A. M. S. As relações patriarcais de gênero na família: 209
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3703001022014.

210
Estudos de Sexualidade 3

Clitóris: um órgão orgástico humano

Juliana da Silva de Almeida

211

RESUMO
Entender a importância do clitóris nas sexualidades da sociedade brasileira contemporânea é o
que se pretende responder na revisão bibliográfica narrativa a seguir. A partir de um olhar
geográfico crítico, analisou-se as interações dos “elementos sócio-espaciais” descritos em
artigos e publicações científicas multidisciplinares e os discursos culturalmente produzidos
sobre o clitóris na sociedade brasileira, como um recorte no espaço e tempo, que é
continuamente marcado por “eventos” que o moldam. Os argumentos e elementos analisados
foram articulados com o evento da descoberta realizada em 2005 pela urologista Dra. Hellen
O’Connell sobre o clitóris, também o “feminismo”, as discussões sobre sexualidades, saúde,
gêneros, relações de poder e direitos humanos. Nas entrelinhas e subjetividades da cultura
brasileira para resgatar o clitóris do tabu e revelar seu importante papel no exercício das
sexualidades humanas. A fim de estimular pesquisas em sua consideração, e assim desvendar
contradições e caminhos de transformações para a promoção da saúde pública e direitos sexuais
humanos de modo mais igualitário na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Clitóris, orgasmo, sociedade brasileira contemporânea.

SUMMARY
Understanding the importance of the clitoris in the sexualities of contemporary Brazilian
society is what I intend to answer in the following narrative bibliographic review. From a
critical geographical perspective, the interactions of the “socio-spatial elements” described in
multidisciplinary scientific articles and publications and the culturally produced discourses
about the clitoris in Brazilian society were analyzed, as a cut in space and time, which is
continuously marked by “events” that shape it. The arguments and elements analyzed were
articulated with the discovery event made in 2005 by urologist Dr. Hellen O'Connell about the
clitoris, also “feminism”, discussions about sexualities, health, genders, power relations and
human rights. Between the lines and subjectivities of Brazilian culture to rescue the clitoris of
the taboo and reveal its important role in the exercise of human sexualities. To stimulate
research in clitoris consideration, to unmask contradictions and ways of transformations for
promotion of public health and human sexual rights in a more equal way in Brazilian society.
Keywords: Clitoris, orgasm, contemporary Brazilian society.

1. INTRODUÇÃO
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Segundo publicação do IBGE13, 51,8 por cento da população brasileira é composta por
sujeitos que se identificam como mulheres no ano de 2019. Tal dado permite-nos a legitimidade
tanto para apontarmos disparidades de gênero manifestadas em nosso território relacionadas
aos direitos sexuais humanos, quanto para problematizar o clitóris no que diz respeito a cultura
da sociedade brasileira contemporânea.
Deve-se ponderar que o termo mulheres cisgêneras, não dá conta definir a
complexidade em torno da norma culturalmente aplicada a todas as pessoas com clitóris na
sociedade brasileira e que as questões de gênero, embora interfira na manifestação da
212
sexualidade, herdará o noção culturalmente aplicada ao órgão que poderá comprometer sua
saúde sexual em algum momento da sua vida. Então, propõe-se considerar neste diálogo
também as pessoas não binárias14 e intersexos15 com clitóris da sociedade brasileira
contemporânea.
Nos convida a refletir Foucault sobre o bio-poder, as forças normalizadoras da vida das
sociedades ocidentais, que regulam a vida humana sobre várias instâncias, obedecendo sempre
uma lógica de plenitude de poderes e direitos hierarquicamente, sob várias camadas, porém,
com um detalhe especial a sua descrição, a subordinação da mulher. No dispositivo de
sexualidade, fundamentado na natureza de reprodução da espécie, o prazer da mulher é
subtraído dos direitos e poderes sobre o sexo (FOUCAULT, 1998). Ele não pôde atribuir
tamanha importância ao clitóris constatada por O’Connell e sua equipe, que através de
ressonância magnética, pode descrever a anatomia e vascularização do clitóris, desmistificando
o que a seu respeito tivera sido anteriormente declarado nas literaturas de medicina, conforme
a mesma relata em seu estudo (O’CONNELL, SANJEEVAN, HUTSON 2005).
Daí a importância da descoberta do clitóris. De para além dos interesses já apontados
por Foucault, estamos falando de um espaço/tempo que não o pertenceu para a análise, embora
seu raciocínio se encaixe ao momento presente e nos ajude a elucidar a dominação e submissão
que tem sido o jogo do sexo humano, dos papéis sociais demarcados, inquestionados, culturais.
Sob a ótica do geógrafo Dr. Milton Santos16 em sua teoria dos eventos, diz:
“Os eventos históricos supõem a ação humana. De fato, evento e ação são sinónimos. Desse modo, sua
classificação é, também, uma classificação das ações. Os eventos também são ideias e não apenas fatos.
Uma inovação é um caso especial de evento, caracterizada pelo aporte a um dado ponto, no tempo e no
espaço, de um dado que nele renova um modo de fazer, de organizar ou de entender a realidade”
(SANTOS, 2006, p. 96).
Então, se no século XX, destacou-se Foucault com seu olhar preciso sobre as relações
entre o poder e a sexualidade humana ao longo da história, no século XXI inicia-se um tempo
em que o clitóris é cientificamente comprovado, em 2005 num estudo coordenado pela Dra.
Hellen O’Connell publicado pela revista científica The Journal of Urology, onde o clitóris é
pela primeira vez legitimado, conforme parâmetros aceitos pela medicina em forma e função
a urologista afirma “There is appeal in using a simple term, the clitoris, to describe the cluster
of erectile tissues responsible for female orgasm” (O’CONNELL, SANJEEVAN, HUTSON

13
Dado disponível no site do IBGE/PNAD Contínua 2019(Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio
Contínua): https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18320-quantidade-de-homens-e-
mulheres.html.
14
Sugere-se como referência de aprofundamento a filósofa e escritora Guacira Lopes Louro, que discute
contradições em torno das concepções binárias de gênero.
15
Sugere-se a leitura da dissertação de mestrado em Psicologia Social. Intersexo e identidade: História de um
corpo reconstruído, escrito por Shirley Acioly Monteiro de Lima em 2007. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/17233.
16
Crítica ao autor: Apesar do reconhecimento imensurável das contribuições ao pensamento geográfico brasileiro
realizado pelo professor, o termo repetidamente exaustivo da palavra homem, ao longo de seus discursos, como
sinônimo de ser humano, nos dias atuais já não fazem sentido.
Estudos de Sexualidade 3

2005). O prazer das pessoas que o possuem saudável é legítimo por natureza, esta é a função
do órgão humano clitóris.
Porém, se considerarmos que o hoje resulta de um movimento de acúmulos desiguais
de tempos, herdeiros de uma lógica ideológica patriarcal, como nos propõe a filósofa brasileira
Marcia Tiburi (TIBURI, 2018), já é conhecida e denunciada a repressão moral, que afeta
diretamente a expressão das sexualidades das pessoas com clitóris na nossa sociedade.
Políticas, ciências, religiões e as famílias, voltadas a uma lógica de reprodução humana e a
autonomia sobre o próprio clitóris censurado, justificado em preceitos dogmáticos, éticos,
morais. 213

No Brasil contemporâneo o clitóris descoberto por O’Connell ganha peso e força nas
vozes de representantes do que Tiburi chama de minoria política, vozes que reivindicam
direitos, lugares de fala, feminismo em comum. Que divulgam e comunicam o saber nos mais
diversos espaços onde a internet nos possibilita alcançar, em conjunto com outros tantos
profissionais, serviços e instituições envolvidos no conhecimento sobre Sexologia.
Como poderíamos ampliar a apropriação dos conhecimentos sexuais humanos, de
modo que, como sociedade brasileira possamos nos relacionar sexualmente de forma mais
saudável, respeitável, equilibrada e prazerosa? O que é necessário para que os resultados
estatísticos apontem índices satisfatórios sobre o conhecimento anatômico e funcional do
clitóris na população brasileira?
Diante de tal desafio, sugere-se primeiramente olharmos para a cultura brasileira
contemporânea. Num pensamento rápido, sem aprofundamento teórico e metodológico, somos
capazes de identificar diferentes formas de nos comportarmos entre nós mesmos em questões
relacionadas à sexualidade, influenciados por diferentes religiões, etnias, gêneros, ideologias,
profissões, papéis sociais, classes etc.
O que nos faz hoje, com tanta diversidade cultural uma sociedade caracteristicamente
diferente de outros países, tempos, povos e culturas quando o assunto é o clitóris?
O direito sobre o próprio corpo das pessoas brasileiras com clitóris é o mesmo direito
das 200 milhões mulheres e meninas afetadas pela Mutilação Genital Feminina (MGF 17),
conforme relatório Estado da População Mundial 2020 publicado em 30 de junho deste ano
pela agência da ONU, Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA), em que se estima
que a MGF afetará ainda mais 4,1 milhões de mulheres e meninas no mundo18 ainda este ano?
Se observarmos a fundo, refletindo sobre as relações de poder, violência e a sexualidade
humana sobretudo na sociedade ocidental contemporânea, advinda dos relatos narrados pelo
historiador francês Michel Foucault, veremos que o poder de discurso sobre a sexualidade
humana, compreendidos como verdades, baseados na ordem patriarcal e na fisiologia da
reprodução, ainda reproduzem certas verdades sobre o sexo, ignorando a sexualidade feminina
como um segredo, (FOUCAULT, 1988). A sexualidade feminina no contexto patriarcal é
objetificada, existe em função dos prazeres dos homens, que reforçam o tempo todo essa lógica
por meio dos comportamentos de assédio, e outras violências sexuais, ou está a serviço da
reprodução/maternidade compulsória ainda hoje característica da nossa sociedade.

17
Segundo a UNFPA (2019), MGF refere-se a todos os procedimentos que envolvem a remoção parcial ou total
da genitália feminina externa ou outra lesão dos órgãos genitais femininos por motivos não médicos. Disponível
em: https://www.unfpa.org/female-genital-mutilation
18
Os 27 principais países que praticam a MGF são: Benin, Burkina Faso, República Centro-Africana, Costa do
Marfim, Camarões, Chade, Jibuti, Egito, Eritréia, Etiópia, Gana, Guiné, Gambia, Guiné-Bissau, Iraque, Quênia,
Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Sudão, Senegal, Serra Leoa, Somália, Togo, Tanzânia e Iêmen. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quatro-milhoes-de-meninas-devem-ser-sexualmente-mutiladas-em-
2020/
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Somos semelhantes a essas outras pessoas no sentido de que o direito sobre o


conhecimento e exercício da própria saúde sexual de maneira autônoma nos é negado. Porém
a forma como isso se dá nos nossos processos de interações sociais, baseadas nas histórias
particulares dos povos, suas crenças e culturas, essa repressão ocorre numa dinâmica social
diferente, interagimos com ela em um rito silencioso, restringindo o pleno funcionamento deste
órgão aos primeiros sinais de sua descoberta, com uso de “cirurgias corretivas”, linguagens
não verbais, olhares repressivos e robustos, e uso dos imperativos: Não! Tira a mão daí! Coisa
feia! Não pode! Eca! Fedido! Para! E ameaças que representam perdas ou violência. Muito
214
antes de qualquer “pseudo” poder de decisão sobre o exercício sexual pessoal, individual
humano.
O coito é compulsório, naturalizado nos espaços educativos em que se desenvolvem a
sociedade brasileira, como o único exercício da sua sexualidade, uma sexualidade reprodutiva,
concebendo apenas a penetração vaginal o título, o significado de prática sexual como descreve
Jimena Furlani ao falar aos educadores sobre os efeitos retrógrados desta prática educativa
(FURLANI, 2003, pp. 73-74).
A MGF é diferente da repressão moral praticada ainda atualmente no Brasil. Isso
porque a MGF uma vez realizada, conforme essas práticas culturais, apontadas pela OMS
(2009), impedem que tal órgão exista por completo e cumpra sua função, que é exclusivamente
proporcionar prazer e beneficiar aspectos importantes e necessários para a saúde humana. No
entanto, a amputação moral pode ser transformada para que a reativação dos sentidos, seu
ressignificado simbólico e seus benefícios, possam se realizar para o exercício saudável das
sexualidades e o direito ao orgasmo.
A problemática aqui apresentada é perversa, e se fortalece em discursos e ações
abusivas de poder sobre um direito que deveria ser humano. À pessoa, principalmente as
mulheres cisgêneras brasileiras é interditado, censurado o exercício da estimulação,
desenvolvimento e/ou conhecimento do órgão clitóris. Isso por aqui ainda é tabu.
A BVS (Biblioteca Virtual de Saúde), que é uma divisão do Ministério da Saúde,
responsável por publicar informações gerais na área da saúde compatíveis com bases de dados
internacionais. Diz que clitóris é um “Pequeno órgão erétil do aparelho genital feminino,
situado na porção mais anterior da vulva, que se projeta entre os pequenos lábios, e é composto
de uma glande, um corpo e dois pedúnculos” apud Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua
Portuguesa (2020). Ignorando qualquer relação com o orgasmo ou com o feito de O’Connell.
No entanto, a busca de definição do orgasmo para o mesmo site, compreende-se
“Clímax da excitação sexual tanto em humanos como em animais”, e hierarquiza-o a como
parte estrutural de fenômenos e processos composto da seguinte sequência: “Fenômenos
Fisiológicos Reprodutivos e Urinários, Fenômenos Reprodutivos Fisiológicos, Reprodução,
Coito, Ejaculação, Desenvolvimento Embrionário e Fetal, Fertilização, Gametogênese,
Inseminação, orgasmo, oviposição, ovulação, Ereção Peniana, Polinização, reprodução
assexuada e comportamento reprodutivo, ou seja, não relaciona o órgão clitóris ao orgasmo e
baseia-se fundamentalmente no processo de reprodução humana com foco no coito (2020).
Tal significado apresenta-se em desconstrução em alguns ousados trabalhos aqui
selecionados para exemplificar de que forma a academia vem tentando confirmar o feito de
O’Connell e de alguma forma contribuir para que culturalmente as pessoas brasileiras possam
conhecer e usufruir dos benefícios proporcionados por este órgão relacionados a sua saúde
sexual.
Conscientes do contexto contemporâneo da sociedade brasileira, onde importantes
instituições dirigem os espaços dotando-os de infraestrutura a tecnologia, o que vem
propiciando a propagação das informações e com elas novos conhecimentos e
comportamentos. Analisar a sociedade brasileira contemporânea também sob o viés deste
Estudos de Sexualidade 3

contemporâneo mecanismo de comunicação em massa é uma premissa. Novos espaços surgem


a partir de temas e afinidades das mais diversas. E sendo o direito do próprio corpo feminino
já apontado como violado por muitos motivos, evidente que os estudos e conhecimentos de
O’Connell, encontraria interessados aqui no Brasil. É para este espaço que se pretende
observar, as práticas de divulgação desse conhecimento como teor de recuperar a experiência
da sexualidade, no órgão que é seu por direito, sem culpa, através da linguagem simples,
ilustrações objetivas, artes, ambientes acolhedores para o diálogo e as descobertas.
A partir do resultado apresentado pela urologista, certifica-se ao clitóris um formato até
então não apresentado pela comunidade médico-científica mundial. Segue abaixo ilustração 215

estruturada do clitóris elaborada pelo site “Meu clitóris minhas regras”, inspiradas na descrição
proposta por Dra. Helen O’Connell, (2005):

https://i1.wp.com/www.meuclitoris.com.br/wp-conten/t/uploads/2018/08/Captura-de-Tela-2018-08-
07-a%CC%80s-20.40.21.png?resize=768%2C367
“A sexualidade feminina foi confinada na vergonha e na ignorância... não é surpresa
que as pessoas não conheçam a anatomia do clitóris. É nossa herança cultural.” Trechos de
entrevista concedida por Helen O’Connell ao jornal eletrônico El País Brasil, em 29/02/2020.
O’Connel, em entrevista exibida no documentário de nome “Clitóris, prazer proibido”
(2003) alerta que é normal que algo que se diga sobre clitóris que antecede a sua descoberta
anatômica seria algo incompleto ou até mesmo errado, por referência advinda da anatomia e
da medicina. E tal evidência se configura justaposta aos questionamentos socioculturais
referentes ao orgasmo feminino discutidos cientificamente ao longo da história e transcritos,
como por exemplo, os publicados por Michael Foucault (FOUCAULT, 1988) ou dentre outros
tantos considerados nos artigos a serem analisados a seguir.

2. OBJETIVOS
Realizar uma busca na literatura sobre a importância do clitóris na sexualidade da
sociedade brasileira contemporânea, identificar elementos desse espaço que contribuem para o
desenvolvimento do conhecimento acerca deste órgão e garantia de sua funcionalidade para a
saúde sexual daqueles que o possuem. Analisar as interações desses elementos com os
discursos sobre clitóris culturalmente produzidos na sociedade brasileira e refletidos nos
discursos acadêmicos. Com isso, pretende-se especificamente, incentivar a produção de artigos
e pesquisas sobre o clitóris e assim contribuir para a saúde sexual da sociedade brasileira de
modo que a cultura brasileira possa refletir também os avanços e descobertas científicas do
mundo contemporâneo.

3. METODOLOGIA
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Clitóris é um órgão orgástico humano. O que isso quer dizer? A busca por artigos
científicos que considerassem a hipótese do fator cultural da sociedade brasileira
contemporânea interferindo diretamente no direito à saúde sexual das pessoas com clitóris foi
o fio condutor para este trabalho. Com o objetivo de inspirar transformações em benefício deste
direito humano. Para isso, pretende-se analisar a institucionalização de tabus relacionados a
sexualidade dessas pessoas na nossa sociedade, as abordagens que contribuem ou não para o
exercício pleno deste direito humano. O termo pessoa com clitóris aparecerá ao longo da
discussão, propondo uma reflexão ao que se compreende como “mulher” na nossa sociedade.
216
Realizou-se revisão bibliográfica narrativa para entender de que maneira o clitóris19 se
torna eixo do conflito em torno da sexualidade dessas pessoas. Embora estejamos num
relevante processo de diálogos e busca por conhecimentos relacionados às funcionalidades,
potencialidades dos nossos corpos e comportamentos para a saúde, o bem-estar, o bem-viver e
a saúde sexual, os saberes científicos fundamentam-se nesses discursos. Percepções de
desigualdades de gênero e contradições, emergem em estudos científicos publicados, nas artes,
nos espaços corporativos, públicos, privados, nas mídias sociais e na sociedade brasileira como
um todo. Ainda que se contrastem as opiniões, as informações percorrem os cotidianos e
sugerem reflexões.
Discussões sobre o corpo, a sexualidade e o orgasmo feminino, ganham espaços, e nos
convidam a observar a subjetividade em comum atribuída ao clitóris, as evidências dos
discursos pautados na constatação da moralidade, do tabu, dos males, das violências e ainda
carente de amostras qualitativas que confiram credibilidade ao clitóris como o único órgão
humano exclusivamente orgástico.
Sendo assim, a busca por artigos publicados posteriores a publicação de O’Connell e
que mencionasse o clitóris foi fundamental. Para que os estudos pudessem revelar o que se
discutia e considerava ao clitóris em cada contexto do atual. Considerou-se importante dialogar
estruturando o raciocínio sobre três importantes eixos teóricos: bio-poder (FOUCAULT,
1988), a teoria queer (LOURO, 2006) ancorados sob uma ótica geográfica crítica,
fundamentada no proposto por Milton Santos à geografia crítica, posicionar-se ao lado de
outros cientistas sociais na composição de espaços verdadeiramente humanos (SANTOS,
2004).
Considerou-se tal estrutura como metodologia para o exercício da especialização em
Sexologia Aplicada, onde se faz fundamental influências de diversas ciências humanas e
sociais, para que se possa dialogar com as complexidades que se estabelecem em torno das
sexualidades humanas, deste órgão, o clitóris, e as subjetividades atribuídas a ele ao longo da
história que influenciam diretamente a técnica, a prática, o uso, a cultura que empregamos ao
sexo, ao direito do prazer e ao poder.
Critério de seleção: Buscou-se por materiais do tipo artigos que apresentassem a
discussão apontando questões que contribuem para o combate à repressão do orgasmo
feminino e que contribuíssem no sentido de reagir a tabus pré-estabelecidos por uma sociedade
patriarcal que influenciam a experiência de orgasmos para a sociedade brasileira.
As publicações selecionadas destacaram-se por assumirem como critério de inclusão o
clitóris na discussão, que problematiza o prazer feminino, o direito sobre o corpo, a sociedade,
a cultura, os tabus, mantendo a multidisciplinaridade cabível para esta discussão. Trazendo a
luz elementos culturais que evidenciam este fenômeno contemporâneo. Como instituições
educacionais, redes sociais, artes, literaturas, meios de comunicação de massa dentre outros
que se façam significativos para a cultura contemporânea. Buscou-se pelos artigos mais

19
Referência a Dra. Hellen O’Connell em Anatomy of the clitoris, publicado em outubro de 2005 pela revista
científica The Journal of Urology. DOI: 10.1097/01.ju.0000173639.38898.cd.
Estudos de Sexualidade 3

recentes, dando ênfase a diversidade regional brasileira e multidisciplinaridade nos olhares


acerca da temática que envolve o clitóris.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A “mulher”, figura sacramentada no discurso de gênero hetero normativo,
compreendida como um ser reprodutivo quanto a sua sexualidade, ainda é representada na
nossa sociedade, porém já questionada atualmente como pode-se observar nos trabalhos
discutidos. Onde se percebe avançar a próxima etapa, contemporânea da pílula
anticoncepcional, e ressignificar sua sexualidade para a saúde20. A autonomia que a pílula 217
anticoncepcional e outros artifícios de controle de natalidade proporcionaram, combinada com
a segurança e liberdade que o conhecimento sobre as funções orgânicas e biológicas da pessoa
com clitóris podem ressignificar a sexualidade dessas e das próximas brasileiras. Então pode-
se dizer que é chegada a hora do clitóris mover-se do lugar de tabu, sair do lugar da
subjetividade? E o que é necessário para que ele possa fazer sentido para a sexualidade dessas
pessoas? Para o geógrafo Milton Santos, “... tudo está sujeito à lei do movimento e da
renovação, inclusive as ciências. O novo não se inventa, descobre-se” (SANTOS, 1996b, pp.
17-18).
Encontrar publicações que dessem ênfase em considerar o clitóris como centro do
debate, foi uma grande dificuldade no processo de pesquisa. O tabu em torno do órgão
“omitido”, cientificamente denunciado por O’Connell também se apresenta nos trabalhos de
intenções sociais a sociedade brasileira. Devido a tal dificuldade, considerou-se aqueles que
apresentassem alguma evidência sobre o sujeito clitóris dos seus discursos admitindo-o
positivamente na saúde sexual das pessoas que o possuem, bem como alguma proposta de
contribuição para o seu conhecimento horizontalmente na nossa sociedade.

Na Educação
A socióloga Iaci da Costa Jara em sua dissertação de mestrado denominada “Mutilação
cognitiva do clitóris”, a opção pelo não saber institucionalizado no Brasil, nos entrega sua
análise sobre a “...formação dos saberes sobre o clitóris frente aos regimes de verdade sobre o
corpo sexuado da fêmea humana…” (2019), a autora discursa sobre a pesquisa de O’Connell,
como capaz de comprovar a importância da contribuição feminina nas ciências e seus esforços
em produzir resultados, embora este ainda não estivesse sendo divulgado na aprendizagem
escolar.
Jara (2019) problematiza a questão sobre o saber do clitóris, questões de gênero e a
construção social do ser feminino na nossa sociedade, observando a manifestação da mutilação
cognitiva do clitóris em elementos artísticos e didáticos, denunciando que “...lacunas de
silêncio que lhes são intrínsecas porque dito e não dito são partes da mesma tecnologia” (pp.
104-105).
Em (FIGUEIRÓ, 2019), vemos que no âmbito educacional, falar sobre sexo e clitóris
é um desafio devido a não experiência com uma educação sexual positiva, atribuindo a
importância de um programa de reeducação sexual social, mas também aos docentes que
abordem a temática da sexualidade, especialmente em Biologia. Quando analisamos a frase
educação sexual positiva, somos instigados a nos perguntar o que o docente tem a transmitir
de conhecimento que a ele não foi ensinado sobre o corpo humano, o que tem sentido negativo
no sexo humano?

20
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define como saúde não apenas a ausência da doença, mas o completo
bem-estar físico, psíquico e social. Fonte: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
89101997000600016
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Apesar de cientificamente provado o clitóris como órgão exclusivamente responsável


por proporcionar prazer e orgasmo, ele ainda ocupa interesse marginalizado no ambiente
acadêmico. Sendo citado por entrelinhas cheias de subjetividades que camuflam a sua
importância no espetáculo do sexo, quando o cerne fundamental da discussão se dá em torno
dos dificultadores culturais que reprimem a sexualidade dessas pessoas, ou quando se querem
falar sobre o orgasmo feminino. A que se deve o receio da afirmação e providências para a sua
evidência quanto a saúde sexual humana?
Entende-se que para ambas as autoras “Jara e Figueiró” sem o devido conhecimento os
218
docentes não podem ser capazes de promover a competência necessária para o exercício da
educação, que o clitóris foi omitido pela educação deles próprios. As autoras e mesmo a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC)21 nos instiga a considerar que diversas ciências humanas
em período escolar regular possam abordar a temática do clitóris, nos aprendizados sobre as
sexualidades humanas e suas relações, quando falamos de países, direitos humanos, relações
de poder, corpo humano, diversidade de gênero, violências, dentre outros assuntos demandados
por conhecimento e debate nos ambientes escolares. E que o silêncio, a subjetividade e a
justificativa baseada no tabu e fundamentada na cultura contribuem com a manutenção de um
saber sobre a sexualidade humana ultrapassado.

Na comunicação22:
Segundo Beatriz Cesar, é importante destacar que a mídia, embora seu alcance seja
segregado por questões sócio-econômicas, é uma proposta de diálogo contemporâneo sobre a
sexualidade feminina, passíveis de críticas e considerações. Sendo assim, a autora nos orienta
por três capítulos estruturados em: Mulheres, sexualidades e gêneros: categorias de disputa;
consumo cultural (produto vs. significados) e a série Desnude, como foco da pesquisa para
análise dos dados coletados por contribuição de debates realizados com um grupo focal
consumidor telespectador da série e observação de plataformas digitais e redes sociais sobre a
temática discutida na dramaturgia proposta pela GNT23 (Globosat News Television; CESAR,
2018).
“[...] com o crescente engajamento de grupos feministas em plataformas digitais e redes sociais, a
sexualidade feminina vem se tornando pauta de discussões mais aprofundadas e com foco no prazer
feminino, na descoberta do próprio corpo, na aceitação de si, etc. Ficou muito mais fácil encontrar lugares
em que o sexo não é mais tabu entre mulheres, porém isto ainda não chega com tanta força às produções
midiáticas tradicionais” (CESAR, 2018, p. 12).

Quando a autora agrupa o foco das discussões estabelecidas nas mídias restritas,
“prazer feminino, descoberta do próprio corpo e aceitação de si”, podemos considerar que o
clitóris é o ponto focal das discussões, no desenrolar do estudo a palavra clitóris é mencionada
sete vezes e todas elas relacionadas ao perfil “Meu Clitóris minhas regras24”, que tem seu peso
de popularidade na comunidade feminista brasileira usuária da rede social “Instagram” e utiliza
também de fontes científicas para divulgar conteúdos de interesse público. Embora já haja

21
Conforme Competências Gerais da Educação Básica, proposto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
“Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional, compreendendo-se na diversidade humana e
reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas.” Documento oficial
brasileiro para a educação “Elaborada por especialistas de todas as áreas do conhecimento, a Base é um documento
completo e contemporâneo, que corresponde às demandas do estudante desta época, preparando-o para o futuro.”
Trecho extraídos da BNCC vigente disponibilizado pelo Ministério da Educação do Brasil em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf
22
Elementos demarcadores de segregação sócio-econômica, também problematizado no referente artigo.
23
Canal de televisão por assinatura brasileiro pertencente ao Grupo Globo.
24
Perfil do Instagram mencionado na pesquisa de Beatriz atualmente com 121 k seguidores e mais de mil
postagens sobre o clitóris.
Estudos de Sexualidade 3

evidências de que apesar da negação deste direito por parte de algumas instituições detentoras
de poder, outras instituições, detentoras de infraestrutura para comunicação em redes da
internet utilizam diversas ferramentas de comunicação para a divulgação e disseminação desse
conhecimento científico. Promovendo debates, trocas de conhecimentos, atribuindo o poder de
fala das pessoas com clitóris brasileiras e das questões que afetam as suas vidas, saúde sexual
e direitos humanos.
A autora também sinaliza a pesquisa realizada sob a ótica da comunicação social e
produção editorial “[...] permitiu pensar acerca da sexualidade feminina desde suas restrições
até seus dispositivos de exercício e autoafirmação” (CESAR, 2018, p. 71), problematizando as 219

questões de gênero e relações de poder sobre o exercício da sexualidade nas sociedades


ocidentais, e a possibilidade de debates sobre o assunto nas mídias sociais decorrentes de uma
produção dramatúrgica, descreve que atualmente a configuração social revela-se por diferentes
mulheres articulando para afirmar, dentre outras questões, o direito ao seu livre exercício
sexual, constatando uma ordem social construída por valores instituídos por órgãos de poder.
Não se pretende aqui afirmar que as pessoas com clitóris contemporâneas da nossa
sociedade não tenham experimentado as sensações de prazer proporcionadas pelo seu clitóris
no exercício da sua sexualidade, mas que tal sensação de prazer pelo clitóris proporcionada,
principalmente a sensorialmente percebida pela glande através de estímulos manuais é
precursora de culpa e autopunição, conforme culturalmente assimilado. Ambos os sentimentos
estão associados a distúrbios e disfunções na saúde mental e física humana, como poderemos
ver a seguir.

Na saúde pública:
Quanto a área da saúde, pode-se observar no estudo em Psicologia Clínica de Zamboni
“[...] como ocorre a transmissão de valores e padrões sexuais na vida das mulheres e como as
gerações anteriores influenciaram a construção de sua sexualidade” (2008, p. 11), uma
abertura à preocupação com o que ela chama de intergeracionalidade, onde julgou necessário
“... interface entre intergeracionalidade, a abordagem sistêmica e a sexualidade na ocorrência
da anorgasmia para que seja possível um tratamento mais efetivo dessa queixa.” (2008, p. 10)
ela nos atenta sobre fatores socioculturais, aprendidos e transmitidos, contribuem para uma
patologia chamada anorgasmia, que grosso modo pode-se entender por dificuldade ou ausência
de orgasmo. Atribuindo aos profissionais de saúde que lidam com mulheres e saúde sexual,
uma avaliação detalhada dos fatores identificados como “gatilho” para a manifestação da
patologia que acomete muitas mulheres na sociedade brasileira.
Neste trabalho, de Zamboni o termo clitóris é utilizado 14 vezes, em todas elas
associado a orgasmo, estímulo manuais e visuais, conhecimento, contextualizando
historicamente o que foi dito sobre ele e o que ele representou, e que ele pode ser a resposta
para o tratamento desta patologia, conforme observado pela psicóloga que conclui que não
olhar a complexidade existente em torno da sexualidade feminina seria colaborar com a
manutenção de comportamentos ultrapassados, desconsiderando inúmeras outras
possibilidades (2008).
No artigo publicado pela Revista Brasileira de Sexualidade Humana em 2019, as
doutoras em medicina e epistemologia, seguindo ordem Araújo e Scalco (2019), nos convidam
a observar outro problema relacionado a saúde sexual feminina, uma disfunção sexual feminina
compreendida pela OMS como caso de saúde pública chamado Transtorno de Dor Gênito-
Pélvica/Penetração (TDGPP).
As doutoras (ARAÚJO; SCALCO, 2019), sugerem que a abordagem do tratamento
siga algumas técnicas gerais. Extraiu-se para o debate do clitóris as seguintes justificativas: da
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Psicoeducação, “informações precisas e detalhadas sobre anatomia e função sexual”(apud


LARA et al., 2017); da Dessensibilização vulvo-vaginal, “...estimuladas a visualizar e
identificar em si mesma o clitóris, grandes lábios, pequenos lábios e introito vaginal através de
um espelho” (apud OLIVEIRA, 2001)”; em Técnicas específicas de terapia sexual,
“alternativas à penetração vaginal [...] importância das preliminares, do toque, da troca de
carícias...” (apud SCALCO et al., 2017); dentre outras manobras técnicas que vinculam
diretamente a possibilidade de desenvolvimento orgástico através do clitóris nas pacientes a
serem tratadas. As autoras concluem que o estudo aplicado em um serviço público na região
220
sul do país demonstra contribuição para outras possibilidades de atendimento no SUS, através
de estratégias técnicas de tratamento interdisciplinares e especialidade em Sexologia, que seja
acessível a mais lugares no Brasil (ARAÚJO; SCALCO, 2019).
Os autores de “Prazer sexual feminino: a experiência do orgasmo na literatura”
contribuem para o raciocínio aqui estigmatizado. De que a subjetividade atribuída ao orgasmo
feminino (subjetivamente o clitóris) vulnerabiliza os resultados que poderiam definir as
delimitações da experiência orgástica, por isso a necessidade de mais pesquisas sobre a
temática, já que os descritos não foram suficientes, embora, subjetivamente também
apontassem para esta direção, por exemplo, “No que tange os comportamentos e práticas
sexuais que influenciam na ocorrência do orgasmo, a estimulação clitoriana direta parece ser a
mais provável de proporcionar esta vivência [...]” (PEREIRA; SOUZA, 2019, p. 33).
Este texto fala única e exclusivamente de clitóris sem muito mencioná-lo, uma forma
de subjetividade a qual nele se critica e aponta como dificultador de credibilidade das
contribuições. Seria um artigo que poderia ter utilizado o termo clitóris nas suas palavras-
chave, dispõe de informações importantes sobre o órgão, divulga estudos relevantes de fato
para a temática, apontando que o tema é de conhecimento público e que pesquisas podem
promover a disseminação comunitária destes conhecimentos por meio de campanhas de
popularização de dados com impactos positivos sobre a saúde sexual feminina, considerando-
a “[...] um dos principais desafios da sexualidade contemporânea” (PEREIRA; SOUZA, 2019).
Considerou-se fundamental para amplitude do alcance ao termo proposto pessoas com
clitóris brasileiras, para se debater sobre não-binaridade e intersexo. Os artigos elencados a
seguir propõem abordagens interessantes ao saber sobre essas pessoas brasileiras.
As psicólogas Padilha e Palma (2017, p. 1), afirmam que “[...] as vivências que não se
enquadram nas normativas sociais estão presentes na sociedade contemporânea, coexistindo e
sendo atravessadas por discursos de exclusão”, a crítica apontada se dá a todo o sistema e
justificativas nele pautado, reproduzido ao invés de questionado. Estudos sobre sexualidades
humanas são também responsáveis por disseminar discursos exclusivos quando coletam dados
de maneira binária, apontam dados de forma binária e ignoram outras existências humanas na
produção e divulgação do conhecimento.
O artigo por elas apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th
Women’s Worlds Congress em 2017, embora não contemple o termo clitóris, problematiza o
reconhecimento social sobre a pessoa não-binária, que fica à mercê de adaptar-se a um gênero
ou outro quando aprendido sobre seu corpo, no uso de algum serviço ou aparelho público
regulado pela binaridade de gênero, não recebendo repertórios de possibilidades existenciais
conforme a maneira como se compreendem pessoais, mas que resistem e se manifestam cada
vez mais por outras formas de existir da nossa sociedade, como uma luz no fim do túnel para
nos ajudar a pensarmos outras possibilidades de existências, interações sociais e sexualidades
humanas.
Sobre intersexo, de acordo com a mestre em psicologia social Shirley Acioly Monteiro
de Lima (2007) utilizou como metodologia a narrativa histórica de uma pessoa diagnosticada
Estudos de Sexualidade 3

com ambiguidade genital. Sugere-se analisar dois trechos em que o clitóris é ignorado no
processo de identificação compulsória de gênero.
No primeiro deles temos:
“[...] Estigmatizadas, as pessoas com ambigüidade genital sofrem o peso da pressão social pela
normatização, perdem o poder de decisão sobre seu corpo, a possibilidade de se reconhecer pelo que são
e de decidir sobre quem querem ser. Ao contrário do que se pretende com a redesignação sexual, a
correção cirúrgica não é a solução para a questão da construção da identidade destas pessoas pois, por si
só, não responde às perguntas sobre qual papel ocupam e querem ocupar na sociedade, quem são e quem
querem ser” (LIMA, 2007, p. 3).
221
No segundo, “[...] Um menino que ao nascer foi registrado como menina, pois sua
genitália era ambígua e mais se parecia com uma vagina do que um pênis” (LIMA, 2007, p.
92).
Ambos os trechos nos convidam a refletir sobre uma suposta visão deturpada do que se
considera ser uma genitália feminina, ao decidir-se com fundamentos meramente estéticos o
que não seria um pênis (deveria ser uma vagina), e assim aplicar a determinação de gênero
para “feminino” nos casos de ambiguidades genitais assim sugestivas, baseadas em
normatizações e negligência a saúde sexual desses corpos estigmatizados.
Lembrando que no Brasil, segundo o Conselho Federal de Medicina na resolução no
1.664, de 12 de maio de 2003 (Diário Oficial da União Nº 90, 13/5/2003, SEÇÃO 1, pp. 101-
102)80, dispõe sobre as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores
de anomalias de diferenciação sexual. Orienta:
● Pacientes com anomalia de diferenciação sexual devem ter assegurada uma
conduta de investigação precoce com vistas a uma definição adequada do
gênero e tratamento em tempo hábil (Art. 2º).
● Para a definição final e adoção do sexo dos pacientes com anomalias de
diferenciação faz-se obrigatória a existência de uma equipe multidisciplinar que
assegure conhecimentos nas seguintes áreas: clínica geral e/ou pediátrica,
endocrinologia, endocrinologia-pediátrica, cirurgia, genética, psiquiatria,
psiquiatria infantil (Art. 4º).
Ignorando o conhecimento especializado em Sexologia para a elaboração e conduta do
tratamento inviabiliza um tratamento adequadamente especializado que respeite o direito a sua
saúde sexual.
Lembrando que outra instituição brasileira de poder público o Ministério da Saúde por
intermédio do BVS, apoiado pela OPAS, OMS, BIREME, importante manual de termos que
traduzem a saúde humana aos brasileiros disponível virtualmente em quatro diferentes línguas,
desconsidera que o orgasmo seja também das pessoas com clitóris. Tamanho o significado
cultural negativo imputado ao órgão, reafirmando a perversa relação de poder heteronormativa
patriarcal da nossa sociedade atuando nos mais altos escalões de poderes administrativos da
nossa sociedade.
Embora estejamos diante de uma resistência por certos dogmas que regem parte da
nossa sociedade, entendendo que vários símbolos precisam ser quebrados para que se possa
atribuir credibilidade à significativa contribuição disponibilizada por O’Connell, o advento da
internet e sua capacidade de comunicar possibilitou que esta descoberta não fosse
descredibilizada pelas artes, pelas vozes feministas contemporâneas, corajosas, que anunciam,
denunciam e resistem num espaço que muitas vezes as perseguem em censuras morais, mas
que não dão mais conta de controlar o que não faz o menor sentido não saber.
No geral, os trabalhos apresentados nos dizem que doenças, violências, e sofrimentos,
constatados em pesquisas, estão vinculados ao desconhecimento da própria sexualidade dessas
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

pessoas marcadas compulsoriamente como mulheres da nossa sociedade (apud JARA, 2019 et
al.).
Que apesar de existir esforços em sanar esta deficiência coletiva de conhecimento sobre
sexualidade, o termo clitóris é evitado, pouco ou nem citado. A não incorporação da
problemática pelo poder público em suas responsabilidades assistenciais à população, dificulta
o movimento de conscientização sobre o que a demarcação ser mulher significa para o direito
institucional a sua saúde sexual. Uma vez que a temática poderia estar sendo abordada pelo
SUS como atenção básica, em escolas e formações profissionais como disciplina obrigatória.
222
Veja, o que se reivindica não é aula de clitóris tão somente, mas essa parece ser uma grande
questão cultural e institucional, que prejudica o desenvolvimento da sua saúde sexual na
sociedade brasileira.
Apesar da constatação do desvio a menção do clitóris nas publicações acadêmicas, o
tabu sexual do clitóris está sendo desmistificado nas redes sociais. Reivindicado e representado
em diversos formatos nas mídias brasileiras (CESAR, 2018). Movimentos estão acontecendo
neste espaço e tempo e buscam a emancipação dos corpos femininos. Vejamos a seguir alguns
exemplos brasileiros protagonistas desta pauta, com hegemonia de postagens relacionadas
diretamente ao clitóris, uso do termo ou figuras ilustrativas, nas redes sociais Instagram (13.256
hashtags em publicações) os perfis Meu Clitóris Minhas Regras (117k seguidores),
Clitoriscious (11.4 k seguidores), Clitorinea 29k seguidores aparecem como os mais populares
e no Facebook são aproximadamente 4k hashtags publicadas com a palavra clitóris. Dentre
outros perfis, páginas, blogs, e sites com engajamento feminista ou que abordem a sexualidade
e aproveitam eventos sociais espontâneos, datas comemorativas dentre outros motivos para
levantarem a bandeira da pauta do clitóris e a sua importância para o orgasmo feminino.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existem elementos espaciais e alternativas capazes de contribuir para que esta
descoberta seja disseminada, observa-se um movimento neste sentido, nas pesquisas aqui
mencionadas, que ancoradas no saber Sexologia e aplicá-la, porque a sexualidade faz parte do
ser humano, do modo como ele se relaciona em sociedade em todos os momentos da sua vida,
desde o seu nascimento. Quando observamos a descoberta do clitóris, capaz de emancipar a
mulher do sexo como sinônimo de coito e/ou em resumo do prazer masculino, desvincula-se o
prazer da lógica reprodutiva da sua sexualidade e observa-se um evento capaz, de propor uma
nova história, contribuindo para a saúde da sua sexualidade.
É isso o que causa o evento, revisa o que foi dito antes, corrige, e adapta-se até que
tome o cotidiano comum, fazendo parte da cultura, possibilitando o exercício das sexualidades
humanas condizentes com a saúde, e tudo o que esta implica. A admissão da relação entre
clitóris e orgasmo deve ser implementada em todas as referências que se publica a seu respeito.
Assim como todos sabemos o formato e função do nosso órgão coração. Se o cirurgião plástico
não o conhecer, não o considerará ao realizar alguma intervenção quando necessária. A mãe
que gera uma pessoa que o possui precisa conhecê-lo, para tomar a melhor decisão quando
questionada sobre procedimentos cirúrgicos de correção de genitália, ou ainda quando orientar
e educar sua filha para o desenvolvimento saudável da sua sexualidade. O clitóris em si só
dispõe argumentos positivos.
O clitóris é parte importante da sexualidade humana, todos devemos saber disso, temos
argumentos para nos convencer disso. Podemos gerar mais e melhores resultados a partir do
reconhecimento deste órgão nas sexualidades que dele possam desfrutar com saúde. A
sexologia aqui aplicada o reconhece e divulga como órgão do prazer e orgasmo e digno de uma
cultura “sexual” brasileira mais humana.
Estudos de Sexualidade 3

6. REFERÊNCIAS
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http://repositorio.ufsm.edu.br/bitstream/handle1/17062/Cesar_Beatriz_Moreira_2018_TCC.pdf?sequen
cia=1. Acesso em 08 mai 2020. 223
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Dogs Films Sylicone; ARTE France. França. 2003. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Y5tjkB1pUjk. Exibido pela GNT em 24 out 2010.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

224

Em aula virtual do dia 13 de novembro de 2020.


Estudos de Sexualidade 3

TRANSEXUAIS E O ACESSO AO ATENDIMENTO


DE SAÚDE PÚBLICA EM CURITIBA-PR: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

Kelma Joana Petillo de Castro Stedile

225

RESUMO
Esse estudo tem como objetivo geral investigar o atendimento integral e acompanhamento do
processo transexualizador em Cidade-PR. Como objetivos específicos procura-se abordar a
Política Nacional de Atendimento aos Transexuais; discorrer sobre o atendimento de
transexuais; perceber a congruência quanto ao atendimento Básico a Saúde de Transexuais;
observar como é feito o atendimento no Centro de Pesquisa e Atendimento para Transexuais e
Travestis (CPATT), em Curitiba, Estado do Paraná, Brasil. Trata-se de um estudo de revisão
da literatura. Os estudos demonstraram um esforço do Ministério da Saúde em colocar em
prática os eixos da PNSILGBT, seja na garantia de acesso à saúde das pessoas trans, na
tentativa de estabelecer as portas de entrada, nas ações de vigilância integral em saúde, na
formação de profissionais para qualificação do atendimento, avaliação e monitoramento das
ações em saúde. Todavia, é apenas parte do desafio da efetivação da saúde das pessoas trans
que requer práticas não apenas voltadas para uma situação patológica, mas, sobretudo,
direcionadas ao encontro da concepção ampliada de saúde (saúde integral). Nesse sentido,
conclui-se que os esforços requerem o envolvimento dos movimentos sociais e de controle
social para efetivar o respeito à diversidade no atendimento às pessoas trans na cidade de
Curitiba, Estado do Paraná, Brasil.

Palavras-chave: Políticas públicas, atendimento básico à saúde de transexuais, Centro de


Pesquisa e Atendimento para Transexuais e Travestis (CPATT).

ABSTRACT
This study aims to investigate the comprehensive care and monitoring of the transsexualizing
process in Cidade-PR. As specific objectives, it seeks to address the National Policy for
Assistance to Transsexuals; talk about the care of transsexuals; perceive the congruence
regarding Basic Health Care for Transsexuals; observe how care is provided at the Research
and Care Center for Transsexuals and Transvestites (CPATT), in Curitiba, Paraná State, Brazil.
This is a literature review study. The studies demonstrated an effort by the Ministry of Health
to put the PNSILGBT axes into practice, be it in guaranteeing access to health for trans people,
in an attempt to establish the entrance doors, in integral health surveillance actions, in the
training of professionals for qualification of care, evaluation and monitoring of health actions.
However, it is only part of the challenge of realizing the health of trans people that requires
practices not only focused on a pathological situation, but, above all, aimed at meeting the
expanded concept of health (integral health). In this sense, it is concluded that efforts require
the involvement of social movements and social control to effect respect for diversity in the
care of trans people in the city of Curitiba, State of Paraná, Brazil.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Keywords: Public policies, basic health care for transsexuals, esearch and are Center for
Transsexuals and Transvestites (CPATT).

1. INTRODUÇÃO
Em fins de 2018 a autora foi procurada por uma família para orientação sobre quais
seriam os primeiros passos a tomar para ajudar seu filho (à época), pois ele havia comunicado
a eles que era transexual, que “ela” não pertencia àquele corpo e precisava de ajuda para
226
adequar-se.
Como educadora social, meu papel se restringiu a alguns encontros para pontuar os
conceitos sobre educação sexual. Fiz o devido encaminhamento para uma psicóloga com
experiência em transexuais e indiquei as especialidades médicas que comporiam uma rede
multidisciplinar para acompanhar essa jovem, juntamente com seus pais.
Já com ela, minha ação após conhecê-la mais profundamente e ouvi-la, foi tentar
ampliar sua rede de apoio conduzindo-a ao Grupo Dignidade, localizado em Curitiba, para
conversar com uma educadora social Trans, buscando assim possíveis identificações e apoios
futuros. Trago esse caso, não para detalhar o atendimento ou desdobramento do mesmo, mas
para falar como algo aparentemente “pequeno” nos motiva e move em direção a determinados
temas, sem que estes tenham sido sonhados antes.
Nesse sentido, gênero e estrutura biológica não definem quem se é. Cultural e
socialmente são esperados determinados comportamentos e estereótipos que não dão conta de
toda a diversidade humana e falar sobre os corpos transexuais e travestis significa permitir-se
compreender esse ser humano em todas as suas dimensões, inserindo-nos discussões sobre
identidade de gênero, “discutir gênero é transitar por um conjunto de teorias, concepções e
explicações sobre o que é ser masculino e feminino” (BENTO, 2018).
A população LGBTI luta durante anos por seus direitos mais básicos, a começar pelo
direito à vida, visto que se vive em um país que integra as primeiras colocações em violência
por gênero, o que leva a vários questionamentos sobre educação, segurança e políticas públicas
que auxiliem a diminuição da LGBTIfobia, discriminação e abusos, sejam de pessoas que
detêm o poder, sejam de pessoas comuns, que por sua construção cultural, entendem-se
diferentes aqueles que não se encaixam nos conhecidos padrões cisgêneros e heterossexuais, o
que na literatura acadêmica chama-se binarismo de gênero.
Esse caso trouxe alguns questionamentos que pretendo investigar e responder ao
longo desse artigo, como: Um jovem ou uma jovem, ao se identificar transexual, a quem
deveria procurar no sistema público de saúde? Quando chegar a qualquer unidade, haveria
nesse local pessoas preparadas para atendê-los(las), sem juízo de valor, com diretrizes claras e
bem definidas, para um atendimento específico para essa população? Será que teria uma equipe
multidisciplinar? Ou será que um transexual só teria atendimentos específicos para o processo
de redesignação de gênero? E como seria esse atendimento? Com profissionais treinados para
atender essa realidade tão delicada? Estariam eles aptos a minimizar os sofrimentos que já os
atormentam quando tomam a decisão de buscar ajuda?
Essas e tantas outras dúvidas ocupam a mente da autora e conduziram ao
desenvolvimento desse estudo para com a população trans, trazendo uma contribuição social
para que se possa relacionar com universalidade, equidade e integralidade, que são as bases do
Sistema Único de Saúde (SUS).
A Prefeitura Municipal de Curitiba, por meio das informações disponíveis no site da
Cidade, informa que a rede compõe o atendimento à saúde, com 58 Unidades de Saúde com
Estratégias da Saúde da Família, 53 Unidades de Saúde espalhadas pelos bairros, 2 Unidades
para Especialidades, 9 Unidades de Pronto Atendimento, 13 CAPS, 1 Centro de Orientação e
Estudos de Sexualidade 3

Atendimento aos portadores de HIV/AIDS – COA, 2 Hospitais Municipais e 68 Espaços Saúde


(anexos às US), porém, não visualizou-se nenhuma informação no site, sobre atendimento
específico à população transexual. Contudo, por telefone a autora foi instruída a buscar na
Secretaria de Direitos Humanos informações sobre o atendimento, pois não tinha nem mesmo
na Secretaria de Saúde.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Investigar o atendimento integral a saúde e acompanhamento do processo transexualizador em 227

Curitiba-PR, Brasil.
Objetivos específicos
✔ Abordar a Política Nacional de Atendimento aos Transexuais;
✔ Discorrer sobre o atendimento de transexuais;
✔ Perceber a congruência quanto ao atendimento Básico à Saúde de Transexuais;

3. METODOLOGIA
A metodologia utilizada para elaboração desse artigo é o estudo de revisão da
literatura, trata-se de um processo de busca, análise e descrição de um conjunto de
conhecimentos em busca de respostas a determinada pergunta (PRODANOV e FREITAS,
2013).
Desenvolve-se uma revisão narrativa, ou seja, utiliza critérios explícitos e sistemáticos
para a busca e análise crítica da literatura. Não obstante, a busca pelos estudos não esgota as
fontes de informações. Não aplica estratégias de busca sofisticadas e exaustivas. A seleção dos
estudos e a interpretação das informações podem estar sujeitas à subjetividade dos autores
(PRODANOV e FREITAS, 2013). Essa literatura está embasada em diversos artigos que
tratam sobre transexualidades.
Os artigos foram buscados em plataformas como Biblioteca Virtual em Saúde (BVS),
Lilacs e Medline. Em um primeiro momento foi usado apenas a palavra transexualidade e
restringido o intervalo em 5 anos foram encontrados um total de 69 artigos em português. Ao
pesquisar transexualidade associada ao SUS, mantendo o intervalo de 5 anos, reduziu para 17
artigos. Quando combinado a palavra transexualidade com Saúde Pública, encontramos 09
artigos. Do total dos 95 artigos encontrados, 12 foram selecionados para a pesquisa, sendo que
aqueles que abrangeram o estado do Paraná e a Cidade de Curitiba foram 02 artigos.

4. DISCUSSÃO
De acordo com Oliveira e Romanini (2002), as políticas públicas são definidas como
um conjunto de programas, ações e atividades desenvolvidas pelo Estado, no intuito de
assegurar a garantia dos direitos constitucionais inerentes a todos os cidadãos. Assim, a partir
da Constituição Federal da República Federativa do Brasil (1988), a saúde é estabelecida como
um direito inalienável de todo cidadão, devendo ser garantido o acesso universal e integral nos
atendimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Para tanto, é de extrema importância que as linhas de cuidado ofertadas pelo SUS
sejam construídas a partir das reivindicações e necessidades da sociedade civil como um todo,
devendo ser levadas em consideração as especificidades próprias de cada segmento
populacional. Desse modo, há importantes espaços de controle e participação social, onde é
fundamental a participação dos usuários e usuárias do SUS, a fim de garantir a efetivação de
uma cogestão das políticas públicas de saúde, pautadas pelas necessidades reais de seus
usuários (OLIVEIRA e ROMANINI, 2020). Nesse trabalho desenvolvido por Oliveira e
Romanini, uma pesquisa qualitativa com entrevistas as pessoas que se identificam como
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

transexuais, apontam como um dos resultados uma maior aproximação dessa população com
os serviços especializados, que realizam a cirurgia transgenitalizadora, em detrimento dos
serviços da atenção básica. Isso se justifica, em grande parte, pela dificuldade de encontrar
profissionais que estejam preparados para atender as demandas específicas da população trans.
Tal situação mostra que as questões referentes ao gênero ainda são pouco abordadas na
formação dos profissionais de saúde e, quando abordadas, são restritas ao diagnóstico de
disforia de gênero, havendo certa distância entre o conhecimento acadêmico e as necessidades
reais vivenciadas pelas pessoas trans (OLIVEIRA e ROMANINI, 2020).
228
A PNSI (Política Nacional de Saúde Integral) LGBT foi formulada em 2011, formada
por diretrizes, cuja instrumentalização requer planos, estratégias e metas sanitárias. A política
reconhece a existência de efeitos perversos dos processos de discriminação, violências e
exclusão sobre a saúde da população de LGBT e, visando sua superação, orienta-se para
promoção da equidade em saúde. Destaca ainda que a orientação sexual e identidade de gênero
são reconhecidas pelo Ministério da Saúde como determinantes e condicionantes da situação
de saúde, na medida em que a intolerância, estigma e exclusão social podem ser fatores
geradores de sofrimento, limitando o acesso da população LGBT aos cuidados de saúde
(SILVA et al., 2020).
No Brasil, a compreensão do impacto da discriminação por gênero na vida dessas
pessoas, inclusive no interior dos estabelecimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), tem
contribuído para que a identidade de gênero seja encarada como uma determinação social em
saúde, sendo objeto de estudos e de políticas públicas (Brasil, 2015). Na área da saúde, é
relativamente recente a proposição de políticas nacionais direcionadas a esta população, tais
como a Política Nacional de Saúde Integral LGBT (BRASIL, 2011) e o Processo
Transexualizador no SUS, criado em 2008 e ampliado em 2013 (Brasil, 2008; 2013). Além da
implementação de políticas de saúde, é preciso produzir conhecimento científico para
vislumbrar novas ações que auxiliem no enfrentamento dos desafios ainda existentes.
A procura assídua pelos serviços de saúde das pessoas trans teve uma maior potência
no início da epidemia da AIDS, em 1980 (BRASIL, 2015). Passados cerca de trinta anos do
início daquela epidemia, os/as transexuais ampliaram a sua conquista de acesso aos serviços
de saúde e, especialmente com o SUS, um procedimento pautado no modelo biomédico: o
Processo Transexualizador (PrTr). Instituído e regulamentado pelo MS, através das Portarias
457/2008 e 2.803/2013 que definem as diretrizes nacionais para o processo, assegura desde
2008 o direito da pessoa transexual à cirurgia de redesignação sexual. O PrTr compreende um
conjunto de estratégias de atenção à saúde implicadas no processo de transformação dos
caracteres sexuais pelos quais passam as pessoas transexuais em determinado momento de suas
vidas (BRASIL, 2008). Não se trata apenas do estabelecimento de diretrizes para a atenção
integral no sentido estrito, mas de um conjunto de ações necessárias à garantia do direito à
saúde circunscrita à passagem para a vivência social no gênero em desacordo com o sexo de
nascimento (BRASIL, 2015).
A regulamentação do PrTr no SUS (BRASIL, 2013) trata de uma normatização que
visa resgatar os princípios da universalidade do acesso e integralidade na atenção,
especificamente, em relação às dimensões físicas e psicossociais implicadas no processo de
transformação fenotípico e social característico à transexualidade, prioritariamente no contexto
da atenção especializada (BRASIL, 2015).
A ampliação do PrTr no SUS consta na Política Nacional de Saúde Integral de
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT), formulada em 2011
(BRASIL, 2011). A construção da política seguiu as diretrizes de governo expressas no
Programa Brasil sem Homofobia, coordenado pela SDH/PR, que atualmente compõe o
Programa Nacional de Direitos Humanos. A PNSILGBT é uma iniciativa para a construção de
Estudos de Sexualidade 3

mais equidade no SUS e um de seus objetivos é a garantia do acesso ao PrTr nessa rede
(BRASIL, 2011).
Os avanços conquistados pela população trans na área da saúde, principalmente, por
meio dos movimentos organizados LGBT, vêm ocorrendo por meio de suas demandas
apresentadas nos espaços de controle social, como nas Conferências de Políticas Públicas para
LGBT e Conselhos de Saúde (BRASIL, 2011). Entretanto, a insegurança encontrada pela
população trans está no fato de que Portarias podem ser revogadas a qualquer momento por
qualquer governo, sendo necessário leis que garantam todo esse processo (BRASIL, 2015). No
entanto, esse é um desafio para o Brasil, que possui uma cultura enraizada no conservadorismo 229

que se soma aos recentes avanços do fundamentalismo religioso em espaços democráticos, que
deslegitimam as pautas da população LGBT, colocando em risco o princípio da laicidade do
Estado (BRASIL, 2015).
O PrTr integra a PNSILGBT, cujo objetivo principal é promover a saúde integral de
LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional, bem como contribuir para a
consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo (BRASIL, 2008). Um de
seus objetivos específicos é garantir acesso ao PrTr na rede do SUS, nos moldes
regulamentados. A PNSILGBT prevê ações para as gestões federal, estadual e municipal por
meio de seu PO, o qual apresenta estratégias para o processo de enfrentamento das iniquidades
e desigualdades em saúde com foco na população LGBT (BRASIL, 2008).
A Psicologia brasileira se coloca deliberadamente a favor das diversidades, tendo dois
marcos no que concerne à orientação sexual e identidade de gênero: a Resolução nº 01/1999 e
a Resolução nº 01 (2018). Desde 2011 ações a favor da despatologização das identidades trans
fazem parte da agenda do Conselho Federal de Psicologia, através da Comissão de Direitos
Humanos (CANONE, 2019).
De acordo com Canone (2019), a Resolução nº 01/1999, se refere à atuação de
Psicólogas/os no que concerne à sexualidade, sobretudo, à orientação sexual, essa Resolução
também serviu como modelo internacional, inclusive, para a Associação Americana de
Psicologia (APA). A utilização do nome social nos serviços de saúde é efetivada pela Portaria
nº 1.820/2009 (SILVA et al., 2020).
A PNSI LGBT salienta que as ações de promoção e vigilância em saúde para a
população LGBT trata do aprimoramento dos métodos de vigilância em saúde, incluindo, os
campos de orientação sexual e identidade de gênero; o desenvolvimento de estratégias para
qualificar todo o processo de desenvolvimento das ações de promoção e vigilância para LGBT.
A possibilidade de obter esses dados tem como potência o fato de qualificar indicadores de
saúde e melhor planejar as ações de prevenção e promoção da saúde LGBT. A violência contra
LGBT deve necessariamente ser notificada por meio da Ficha de Notificação de Violências
Interpessoais e Autoprovocadas, sendo ou não motivada por LGBTfobia e seu registro no
Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) (SILVA et al., 2020).
A PNSI LGBT se refere a necessidade de indicadores de monitoramento e avaliação,
contemplando dados sobre morbimortalidade e acesso dessas populações à atenção integral à
saúde, considerando as prioridades e metas dos planos estaduais e municipais de saúde
(BRASIL, 2013).
O campo da transexualidade é atravessado por inúmeras controvérsias. A primeira
delas diz respeito às nomenclaturas utilizadas, afinal, como deve-se referir a essas pessoas e
sua condição? Esse é um ponto em que pesquisadores, transexuais e ativistas dos direitos
humanos divergem. Nos discursos circulantes em relação à condição destacam-se os termos
transexualismo, transexualidade e disforia de gênero (GALLI et al., 2013).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

O(a) transexual é um indivíduo que possui o sentimento irreversível de pertencer ao


sexo contrário ao que foi genética e morfologicamente estabelecido, ou seja, que não se
identifica com seus genitais biológicos e suas atribuições socioculturais (GALLI et al., 2013).
As reformas em busca da cobertura universal dos direitos devem assegurar que os:
sistemas de atenção à saúde contribuam para a equidade em saúde, para a justiça social e para
o fim da exclusão social, movendo-se, principalmente, na direção do acesso universal e da
proteção social em saúde. As reformas na prestação de saúde devem reorganizar os serviços
de saúde, especialmente, a Atenção Primária à Saúde (APS), a partir das necessidades e
230
preferências das pessoas, de modo a torná-los socialmente mais relevantes e responsivos a um
mundo cambiante, capazes de produzir melhores resultados sanitários (MENDES, 2012).
Deve haver no documento do usuário um campo para registrar o nome social,
independentemente do registro civil, assegurando o uso do nome adotado, sem identificar por
número, nome, CID ou formas desrespeitosas ou preconceituosas. Para Rocon et al., (2016), o
desprezo ao nome social figura como um entrave decisivo ao acesso universal, integral e
equitativo no SUS, junto com a trans/travestifobia nos sistemas de saúde e o diagnóstico
patologizante no PrTr.
Desde 1988, com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), percebe-se um
avanço na política de saúde direcionada à população LGBT. A linha do tempo evidencia o
esforço na conquista do acesso do PrTr (processo transexualizador) e na constituição da
PNSILGBT. Outrossim, a partir de 2008, a população trans passou a ter atendimento a partir
de suas especificidades através dos ambulatórios e hospitais habilitados para o PrTr
(POPADIUK et al., 2016).
Os dados demonstraram que existe constância na realização desse procedimento, visto
o número de cirurgias nos últimos anos, ainda que exista uma necessidade de ampliação em
todo o país (POPADIUK et al., 2016). No Brasil apenas 5 hospitais estão habilitados pelo SUS
para realizar o processo transexualizador, eles estão situados em São Paulo – SP, Goiania -GO,
Rio de Janeiro – RJ, Porto Alegre – RS e Recife-PE. Segundo uma reportagem do site G1 de
Gabriela Ceasar em 19/08/2018, dos cinco hospitais habilitados pelo SUS que fazem as
cirurgias em transgêneros, os dados do Ministério da Saúde mostram que, nos últimos 10 anos,
153 procedimentos foram realizados no Hospital das Clínicas de Porto Alegre; 118 no HC da
Faculdade de Medicina da USP; 88 no HC da UFG, em Goiás; 68 no Hospital Universitário
Pedro Ernesto, no Rio; e 47 no HC de UFPE, no Recife.
A análise das memórias das reuniões do Comitê Técnico de Saúde LGBT
(CTSLGBT) demonstra um esforço do Ministério da Saúde para colocar em prática os eixos
da Política Nacional de Saúde Integral Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais
(PNSILGBT), seja na garantia ao acesso à saúde das pessoas trans, na tentativa de estabelecer
portas de entrada, nas ações de vigilância em saúde, na formação de profissionais para
qualificação do atendimento, avaliação e monitoramento das ações em saúde (POPADIUK et
al., 2016).
Contudo, isso ainda é apenas parte do desafio da efetivação da saúde das pessoas trans
que requer práticas não apenas voltadas para uma situação patológica, mas, sobretudo,
direcionadas ao encontro da concepção ampliada de saúde. Nesse sentido, os esforços
requerem o envolvimento de movimentos sociais e controle social para efetivação do respeito
à diversidade junto ao SUS (POPADIUK et al., 2016).
A regulamentação do PrTr no SUS trata de uma normatização que visa resgatar os
princípios da universalidade do acesso e a integralidade na atenção, especificamente, em
relação às dimensões físicas e psicossociais implicadas no processo de transformação
fenotípico e social característico à transexualidade, prioritariamente no contexto da atenção
especializada (BRASIL, 2015).
Estudos de Sexualidade 3

A ampliação do PrTr no SUS consta na Política Nacional de Saúde Integral de


Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSILGBT), formulada em 2011
procurou elasticizar o atendimento a essa população (BRASIL, 2013). A construção da política
seguiu as diretrizes de governo, expressas no Programa Brasil sem Homofobia, coordenado
pela Secretaria de Desenvolvimento Humano do Paraná (SDH/PR), que atualmente compõe o
Programa Nacional de Direitos Humanos. A PNSILGBT é uma iniciativa que visa a construção
de mais equidade no SUS e um de seus objetivos é garantir o acesso ao PrTr nessa rede
(BRASIL, 2013).
Popadiuk et al., refletem até que ponto as equipes da Atenção Primária estariam aptas 231

para cuidar do público trans (SILVA et al., 2020).


Arán (2006) assinala que a transexualidade feminina pode causar profundo sofrimento
dessas pessoas, principalmente devido à desinformação, à inaptidão e à inabilidade dos
sistemas de saúde para cuidá-las. Bezerra et al. (2018) destacaram que o sofrimento dos
homens trans transita por contextos de vulnerabilidade familiar e social que revertem em
carências, traumas e adoecimento físico e mental, causados pela violência e desrespeito ao
nome social e ao direito à identidade de gênero. A família e os serviços de saúde e de ensino
devem garantir esses direitos, mas tem sido seus maiores transgressores. Essa exposição
exemplifica o que foi exposto: “a pessoa tem o acesso, busca o serviço, mas é discriminada e
violada. Isso as deixa vulneráveis psicologicamente” (SILVA et al., 2020).
De acordo com Silva et al., (2020), o Centro de Pesquisa e Atendimento para
Transexuais e Travestis (CPATT), foi criado em 2013, para subsidiar os atendimentos do
Sistema Único de Saúde (SUS) na atenção secundária para pessoas trans, encontra-se
localizado em Curitiba, Estado do Paraná, Brasil. É o único Centro do Estado habilitado a
oferecer hormonioterapia com acompanhamento multiprofissional especializado, mas não dá
conta da demanda, pois vem pessoas de todo o Brasil para serem atendidas.
O CPATT é o único ambulatório especializado do Estado e lá atendemos pessoas do estado todo e não
damos conta de toda demanda. Muitas pessoas viajam um, dois dias inteiros para vir para uma consulta
e só conseguem vir uma vez por mês, sem conseguir manter um acompanhamento mais próximo. Então
seria importante que existissem outros polos de atendimento (SILVA et al., 2020, p. 5).

Considerando os objetivos da equipe multiprofissional do CPATT, em atender


integralmente travestis e transexuais, deve-se ressaltar algumas falas dos Grupos Focais da
investigação: o CPATT é reconhecido como importante conquista para a saúde da população
trans no Estado do Paraná. Todavia, existem preocupações com a elevada demanda do
ambulatório e a grande fila de espera; algumas consultas no CPATT poderiam ter intervalo de
tempo menor, dependendo do caso; a criação de polos de atendimento CPATT no interior do
Estado poderia diminuir as filas de espera, facilitando os acessos; os encaminhamentos ao
CPATT são pouco conhecidos por parte da rede intersetorial; por fim, a falta de hospital que
realize cirurgias do PrTr no Estado, cujo acompanhamento pré e pós-operatório poderia ser
feito no CPATT (SILVA et al., 2020).
O Relatório do I Seminário Nacional de Saúde LGBT afirma que não existe
capacitação dos gestores e profissionais; que existe carência de organização dos cursos para
sensibilização e esclarecimentos sobre saúde LGBT; há necessidade de maior diálogo e
agregação entre os Ministérios da Saúde e da Educação para recomendar modificações nos
currículos dos cursos da saúde, visando à formação de profissionais habilitados a trabalhar com
o público LGBT (BRASIL, 2015).
Conforme o estudo de Silva et al., (2020), homossexuais masculinos, além de vítimas
da violência e homicídios homofóbicos, como mostram os dados do Ministério dos Direitos
Humanos, por passarem por experiências discriminatórias na sociedade e nos serviços de
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

saúde, podem sofrer baixa autoestima; sentimento de culpa; insegurança; isolamento social;
dificuldade de estabelecer e manter relações amorosas; depressão; e maior risco para suicídio.
A cartilha do Ministério da Saúde “Atenção Integral à Saúde de Homens Gays e
Bissexuais” revela que o suicídio faz parte de uma gama de agravos evitáveis, atrelados ao
adoecimento mental, que podem ser suscitados pela homofobia, refletindo carência de acesso
aos Programas de Saúde Mental específicos para gays, assim como a falta de interlocução com
outras políticas de saúde (BRASIL, 2016). Isso pode ser percebido no seguinte relato: “não se
fala em população LGBT na saúde mental, nem na Academia, nem nos cursos e atualizações”
232
(SILVA et al., 2020).
Em relação ao monitoramento e avaliação das ações de saúde, no caso específico das
mulheres, o Dossiê da Rede Feminista de Saúde mostra que 40% das mulheres lésbicas ou
bissexuais não revelam sua orientação sexual nas consultas; que 28% das mulheres que revelam
relatam ter um atendimento mais rápido; e que a cobertura do exame de papanicolau é menor
em mulheres que fazem sexo com mulheres, pois a proporção encontrada foi 66,9%, contra
89,7% nas heterossexuais (FACCHINI e BARBOSA, 2006).
Muitas lésbicas relatam discriminação ao acessarem os serviços de saúde e referem
ser desmotivadas a procurar os cuidados à saúde; e, quando procuram suas demandas não são
abordadas. Os motivos elencados nos Grupos Focais para menor busca aos serviços de saúde
foram: discriminação, despreparo dos profissionais na atenção às suas particularidades,
dificuldades em assumirem sua orientação sexual e negação de aceitar o risco de desenvolver
doenças (SILVA et al., 2020).
Por outro lado, estratégias positivas foram citadas, visam prevenir o HIV/Aids e outras
infecções sexualmente transmissíveis, bem como reduzir o diagnóstico tardio dessas doenças,
ampliando a testagem e incentivando o tratamento precoce. Dentre essas ações, destacam-se
testes rápidos para detecção do HIV/Aids e aconselhamento. Também existe apoio da
SESA/Paraná, em relação à PNSI LGBT, na dispensação de hormônios gratuitamente; e o
trabalho dos Departamentos de Divisão de Atenção às Comunidades Vulneráveis e do
Programa DST-Aids.
Além disso, existem dois Comitês LGBT na estrutura governamental do Estado do
Paraná, servindo para o controle social e multiplicadores de conhecimento entre profissionais
e movimentos sociais: o “Comitê de Acompanhamento da Política de Promoção e Defesa dos
Direitos da população LGBT do Estado do Paraná” (Secretaria de Justiça) e o “Comitê Técnico
de Saúde Integral das Pessoas LGBT” (Secretaria de Saúde).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde 1988, com a implantação do SUS, percebe-se um avanço na política de saúde
direcionada à população LGBT. A linha do tempo evidencia o esforço na conquista do acesso
do PrTr e na constituição da PNSILGBT. A partir de 2008, a população trans passou a ter
atendimento de suas especificidades através dos ambulatórios e hospitais habilitados para o
PrTr.
Os resultados demonstraram constância na realização desse procedimento, tendo em
vista o elevado número de cirurgias que ocorreram nos últimos anos, ainda que exista
necessidade de ampliação em todo o país.
Os estudos demonstraram um esforço dos movimentos sociais e associações de
classes para colocar em prática os eixos da PNSILGBT, seja na garantia do acesso à saúde das
pessoas trans, na tentativa de estabelecer as portas de entrada, nas ações de vigilância integral
em saúde, ficando claro que falta formação de profissionais para qualificação do atendimento,
há a necessidade de avaliação e monitoramento das ações em saúde. Todavia, isso ainda é
apenas parte do desafio da efetivação da saúde integral das pessoas trans que requer práticas
Estudos de Sexualidade 3

não apenas voltadas para o processo transexualizador, mas, sobretudo, direcionadas ao


encontro da concepção ampliada de saúde (saúde integral). Nesse sentido, conclui-se que os
esforços requerem o envolvimento dos movimentos sociais e de controle social para efetivar o
respeito à diversidade junto ao SUS, sobretudo uma atenção redobrada as políticas que visam
retroceder os direitos adquiridos.
No que se refere ao monitoramento e à avaliação das ações de saúde, destaca-se
positivamente o papel do CPATT, referência em atenção secundária para travestis e
transexuais, além da existência de dois comitês de saúde LGBT no Estado.
Nesse eixo verifica-se a necessidade de se estudar outros cenários que contribuam 233

para a monitoramento, implementação e avaliação da PNSI LGBT. Os achados desta pesquisa


estão em consonância com as afirmações de que a população LGBT não tem suas necessidades
de saúde plenamente amparadas por estar submetida à discriminação, junto com o receio de
que revelar sua orientação sexual em serviços de saúde traga repercussão negativa ao
atendimento. Assim, é imperiosa a efetivação dos princípios constitutivos do SUS de
universalidade, integralidade e equidade, expressos em Políticas Públicas que de fato
promovam o enfrentamento da homofobia e heteronormatividade nos serviços de saúde, assim
como dos eixos da PNSI LGBT.

6. REFERÊNCIAS
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Estudos de Sexualidade 3

INFLUÊNCIA DOS VALORES DO TERAPEUTA NA ABORDAGEM DE


QUESTÕES DE SEXUALIDADE NA CLÍNICA ANALÍTICO
COMPORTAMENTAL

Kendra Maira Tsubota Ferri

235

RESUMO
Esta revisão narrativa de literatura tem como objetivo compreender por que alguns
psicoterapeutas não abordam temas e queixas de sexualidade na psicoterapia e o quanto isso
está ligado aos seus valores. A discussão foi levantada à luz da Terapia Analítico Funcional
(FAP), uma terapia comportamental de terceira geração, que visa facilitar a subjetividade do
cliente e do terapeuta através de uma relação terapêutica reparadora e profunda. Para a Análise
do Comportamento, valores são compreendidos como comportamentos construídos e
influenciados pela história de vida dos indivíduos e pela cultura na qual estão inseridos. Esses
valores emergem no contexto psicoterapêutico e na condução que o terapeuta faz deste
processo. Dessa forma, esses fatores podem influenciar na abordagem ou não de determinados
temas, sendo a sexualidade um dos especialmente negligenciados. Também as Instituições de
Ensino Superior influenciam na condução do processo, por não dar a devida importância a
temas relacionados à sexualidade o que afeta a formação dos profissionais.

Palavras-chave: sexualidade, valores, valores de sexualidade, valores do terapeuta, clínica


analítico-comportamental, psicoterapia.
ABSTRACT
This narrative literature review aims to comprehend why some psychotherapists do not
approach themes and demands related to sexuality in psychotherapy and how this is connected
to their own values. This discussion is based on the Function Analytical Therapy (FAP), a third
wave behavioral therapy that focuses on facilitating the client and the therapist’s subjectivity
through a healing and deep therapeutic relationship. For Behavior Analysis, values are
understood as behaviors built and influenced by the individual's life history and the culture in
which they live in. These values emerge inside the psychotherapeutic context and in the
conduction that the therapist gives to the process, thus these factors can influence the approach
of specific themes, such as sexuality, which is one of the most neglected ones. Also, the Higher
Education Institutions influence the way the process is conducted, by not paying due attention
to themes related to sexuality which affects these professionals' training.

Keywords: sexuality, values, sexuality values, therapit’s values, analytical behavior clinic,
psychotherapy.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

1. INTRODUÇÃO
A Organização Mundial da Saúde (2006) define a sexualidade como um aspecto central
do ser humano ao longo da vida, abrangendo sexo, identidades, papéis de gênero, orientação
sexual, erotismo, prazer, intimidade e reprodução. A sexualidade é experimentada e expressada
em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, comportamentos, práticas,
papéis e relacionamentos. Embora a sexualidade possa incluir todas essas dimensões, nem
todas são sempre experimentadas ou expressadas. A sexualidade é influenciada pela interação
de fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, políticos, culturais, legais, históricos,
236
religiosos e espirituais.
O fator cultural tem uma forte influência na forma como a sexualidade será vivenciada
pelos indivíduos, sendo que o momento histórico e as condições sociais fomentam a construção
de tabus, mitos e valores que irão permear tudo o que envolve a sexualidade (BONATO, 2019).
LoPiccolo e Heiman (1977) ressaltaram que a nossa cultura encontrou muitas
dificuldades para reconhecer a sexualidade como uma necessidade humana, à vista disso,
criaram normas de adaptação cultural no que tange esse assunto. Ao longo dos séculos pessoas
foram confinadas a comportamentos e papéis que não permitiam a vivência completa de sua
sexualidade, por meio de normas de adaptação que geravam e ainda geram medo, vergonha,
culpa e diversos outros sentimentos negativos que são contrários ao prazer. No entanto, nas
últimas décadas vem sendo possível testemunhar importantes transformações sociais no âmbito
de gênero e sexualidade no Brasil e na América Latina, por meio de lutas e da busca pela
visibilidade de sujeitos de direitos. Transformação essa que se extende ao cenário político, num
movimento de desconstrução de uma ética moral pautada em valores conservadores e critãos,
destacando-se em especial a luta pelos direitos de pessoas LGBT e o movimento feminista
(FACCHINI e SÍVORI, 2017).
Bonato (2019) enfatiza que a sexualidade é construída ao longo da história de vida
individual, englobando expectativas familiares que vêm desde antes mesmo do nascimento, até
crenças, prazeres, encontros, rejeições, medos e alegrias. Conjectura-se que o terapeuta saiba
trabalhar esta temática no ambiente terapêutico, porém, na sua grande maioria, as instituições
de ensino que preparam este profissional negligenciam a sexualidade na sua formação. O
terapeuta precisa ir além da formação universitária para trabalhar o seu conforto em abordar
questões de sexualidade que possam emergir de acordo com a necessidade do cliente. Não
podemos deixar de olhar para a pessoa do terapeuta, principalmente para a consciência da sua
própria sexualidade e das barreiras construídas sobre este assunto, e o impacto disto no
processo psicoterapêutico dos clientes (MCARDLE, 2012).
Segundo descrito no código de ética do Conselho Federal de Psicologia (2005), os
psicoterapeutas deveriam embasar seu trabalho em princípios fundamentais, sendo os três
primeiros deles:
I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade
e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos
Humanos.
II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades
e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade
política, econômica, social e cultural.

Espera-se que terapeutas pautem sua atuação em limites éticos, governamentais e legais
construídos socialmente, mas vale ressaltar que antes de mais nada, estes mesmos terapeutas
são pessoas que tiveram seus valores construídos ao longo de uma história de vida; portanto,
Estudos de Sexualidade 3

parece difícil que a terapia seja uma prática neutra e livre de valores por parte do terapeuta.
(SILVA, 2016)
Valores são compreendidos como normas morais ou regras sociais passadas entre
indivíduos, grupos ou culturas, podendo ser classificados como “certo” ou “errado”,
“desejado” ou “indesejado”, “bom” ou “mau”. Essa definição comumente é adotada pelo senso
comum e pela psicologia em geral; porém a Análise do Comportamento estende essa
concepção de valor, porque compreende este como um fenômeno comportamental que ocorre
por meio de interações entre o organismo e seu ambiente (SKINNER, 1953).
Bonow e Follet (2009) definiram valor em três termos distintos dentro da Análise do 237

Comportamento. O primeiro chama-se Ação de Valor e refere-se a comportamentos recorrentes


do indivíduo, ou seja, atividades em que ele se engaja e que indicam o que ele valoriza,
independentemente do que ele relata sobre esses comportamentos. O segundo termo, intitulado
Valores Funcionais, refere-se às "consequências" que mantêm esses comportamentos e que
podem ser influenciadas pelas operações que os estabelecem, como por exemplo, uma pessoa
que faz horas extras no trabalho pode ter como valor funcional o dinheiro. Já o terceiro termo
são os Valores Declarados, ou seja, os comportamentos verbais sobre valores, subdividido em
dois tipos: Um que qualifica ações de valor e valores funcionais, (aqui se encaixa o juízo de
valor); e outro que se refere à formulação de regras que podem descrever a relação entre ações
de valor e valores funcionais ou que modificam a efetividade de uma consequência. Todos
esses componentes se relacionam diretamente, e a mudança em um pode acarretar a mudança
em outro (WATRIN e CANAAN, 2015).
Watrin e Canaan, (2015, p. 522), abordam os valores do psicoterapeuta a partir do momento em que
valores são tomados como comportamentos, explicar os valores do terapeuta é olhar para a sua história
comportamental. O que o terapeuta faz (ações de valor), quais as consequências que mantêm o seu
comportamento (valores funcionais) e o que ele relata sobre comportamentos e consequências (valores
declarados) são questões que podem ser respondidas pela história de contato do terapeuta com diversos
ambientes. É, portanto, a história do terapeuta que possibilita tanto a construção dos valores desse
profissional quanto a manifestação deles na terapia.

a) Terapia Comportamental e as Terapias Comportamentais de Terceira Geração


A Terapia Comportamental pode ser definida através de três “ondas”. Segundo
Hayes (2004) "onda" é um conjunto ou formulação de suposições, métodos e objetivos
dominantes, alguns implícitos, que ajudam a organizar a pesquisa, a teoria e a prática.
Antes da primeira “onda”, o que predominava na época eram concepções clínicas pouco
embasadas cientificamente, ou seja, o movimento psicanalítico não conseguia descrever
fidedignamente sobre o impacto positivo das intervenções, baseando sua atuação de forma
vaga e com pouca evidência científica (Lucena-Santos et al., 2015).
Hayes (2004) destacou que quando a primeira geração comportamental surgiu, ela
questionou o movimento da época se prontificando a basear sua atuação clínica em princípios
científicos e devidamente testados. Porém foi somente após os estudos de Hans Eysenck na
década de 1950, questionando sobre a falta de eficácia dos tratamentos psicoterapêuticos, que
os psicoterapeutas começaram a procurar alternativas para provar seus métodos de maneira
científica tornando-se o foco na Terapia Comportamental (BRAGA e VANDENBERGHE,
2006).
Na primeira geração, os terapeutas comportamentais ficaram conhecidos por
trabalharem com a modificação de comportamentos considerados “problemas”. Essa onda foi
marcada por nomes como Pavlov, Watson, Thorndike, Jacobson. (HAYES, 2004). Com o
surgimento da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), abordando tanto conceitos
comportamentais quanto tendo a cognição como alvo dos tratamentos e protocolos, surge a
segunda geração. Os terapeutas comportamentais compreenderam a necessidade de lidar com
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

pensamentos e sentimentos de forma mais direta, uma vez que os princípios comportamentais
foram enfraquecidos diante de conceitos cognitivos. Isso acabou incentivando a segunda onda,
que vinha com a tentativa de complementar o modelo da terapia comportamental clássica,
tentando preservar os ganhos da primeira geração, porém se distanciando da visão mecanicista
(BRAGA e VANDENBERGHE, 2006). Segundo Lucena-Santos et al., (2015), os protocolos
da Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) tinham como premissa que o sofrimento
emocional e os comportamentos “mal adaptativos” diminuiriam à medida que se trabalhasse
as modificações de cognições que ocorriam. Um dos resultados mais expressivos dessa época
238
foi o protocolo de Beck para depressão, que é utilizado até os dias atuais pelos psicoterapeutas
ao redor do mundo.
No início dos anos 90 diversas terapias surgiram, afastando-se do cognitivo e
retornando à origem do behaviorismo radical. Steven Hayes instituiu essa nova "onda" com o
termo de “terapias comportamentais de terceira geração”. De acordo com Pérez-Álvarez
(2012), essas novas terapias incluem: Terapia de Aceitação e Compromisso (Acceptance and
Commitment Therapy - ACT; Hayes,Strosahl e Wilson, 1999), Psicoterapia Analítica
Funcional (FAP; Kohlenberg e Tsai, 1991), Terapia Comportamental Dialética (DBT;
Linehan, 1993), Ativação Comportamental (BA; Jacobson, Martell e Dimidjian, 2001),
Terapia Integrativa de Casais Comportamentais (IBCT; Jacobson, Christensen, Prince,
Cordova e Eldridge, 2000) e Mindfulness- Terapia Baseada (MBT; Segal, Williams e Teasdale,
2002).
Para o autor, fundamentada em uma abordagem empírica e focada em princípios, a terceira onda de
terapia cognitiva e comportamental é particularmente sensível ao contexto e funções dos fenômenos
psicológicos, não somente nas suas formas, e também tende a enfatizar estratégias de mudança
contextuais e experienciais em adição às estratégias diretas e didáticas. Estes tratamentos tendem a buscar
a construção de repertórios amplos, flexíveis e efetivos, mais do que uma abordagem eliminativa para
problemas estreitamente definidos, e a enfatizar a relevância destes aspectos tanto para clínicos como
para os clientes. A terceira onda reformula e sintetiza as gerações prévias da terapia cognitiva e
comportamental e as levam de encontro a questões, problemas e domínios previamente endereçados
primariamente por outras tradições, na esperança de melhorar tanto a sua compreensão como os
resultados (HAYES, 2004, p. 658).

b) Terapia Analítico-Funcional
A terapia comportamental de terceira geração que tenta resgatar a subjetividade do
cliente e do terapeuta no contexto de relação interpessoal constituindo o processo
psicoterapêutico é intitulada Terapia Analítico Funcional (FAP), tendo como proponentes
Kohlenberg e Tsai (1987) (BRAGA e VANDENBERGHE, 2006).
A relação terapêutica ao longo da história foi banalizada e reconhecida como uma
“variável inespecífica”, porém nessa proposta psicoterapêutica, o envolvimento emocional, a
intimidade, o aqui e agora são fundamentais principalmente para o terapeuta se desafiar e se
reinventar na relação com o cliente, uma vez que a Terapia Analítico Funcional (FAP) funciona
não de forma entendida, mas sentida (DEL PRETTE, 2015).
Essa abordagem entende que a relação terapêutica facilitará o surgimento dos
comportamentos “problema” do cliente, e que essa é a massa que será moldada no setting
terapêutico. O terapeuta compreende os comportamentos do cliente como Comportamentos
Clinicamente Relevantes (CCRs), que vão de comportamentos problemáticos à
comportamentos de progresso.
Os comportamentos-alvo da psicoterapia são chamados de comportamentos clinicamente relevantes
(CCR) e classificados da seguinte forma: CCR1 - comportamentos problemáticos que devem ser
enfraquecidos ao longo da terapia uma vez que impossibilitam a ocorrência de repertórios efetivos; CCR2
- comportamentos que fazem parte do progresso do cliente ocorrido nas sessões de terapia, e que
apresentam uma baixa probabilidade de ocorrerem no início do tratamento; CCR3 - interpretações que o
próprio cliente faz de seu comportamento em relação ao terapeuta ou à situação terapêutica. Os CCR3
Estudos de Sexualidade 3
mais produtivos correspondem à aprendizagem da análise funcional pelo cliente (BRAGA e
VANDENBERGHE, 2006, p. 309).

Del Prette (2015) enfatiza que os Comportamentos Clinicamente Relevantes, mais


comumente conhecidos pelas siglas CRBs (Clinically Relevant Behaviors), provém da análise
funcional ou de contingências construídas no decorrer das sessões psicoterapêuticas.
Kohlenberg e Tsai (1991) compilaram cinco regras para nortear a intervenção
terapêutica com base na Análise do comportamento. Del Prette (2015) descreve de forma
sucinta essas regras, Regra 1 - Consciência: O terapeuta deve estar plenamente atento e 239
consciente ao que acontece no processo psicoterapêutico. Nessa regra, o terapeuta observa, e
descreve as contingências da sessão; observa seus próprios comportamentos; elabora uma
análise funcional a partir do que foi observado e verifica se o comportamento do cliente é um
Comportamentos Clinicamente Relevantes; Regra 2 - Coragem: Com coragem, o terapeuta
tenta evocar os Comportamentos Clinicamente Relevantes do cliente dentro do setting
terapêutico para poder trabalhar juntamente com o cliente esses comportamentos “problema”.
O terapeuta precisa utilizar de gentileza e empatia para evocar os Comportamentos
Clinicamente Relevantes; além disso formula o que será considerado um comportamento de
“melhora” CRB2; evocando os comportamentos que expressam melhora (CRB2), buscando
bloquear os que são problemáticos (CRB1); Regra 3 - Amor: Sendo considerada o coração da
Terapia Analítico Funcional (FAP), se refere às consequências dos comportamentos
clinicamente relevantes, de forma gentil, genuína e envolta de afeto. Além do terapeuta
responder de forma genuína, ele também busca formas terapêuticas de ficar vulnerável na
relação com o cliente; Regras 4 e 5 - Behaviorismo: Na regra 4, o terapeuta avalia os efeitos
potencialmente reforçadores das consequências dos comportamentos que expressam melhora
(CRB2) do cliente e na regra 5 o terapeuta deve promover a generalização desses
comportamentos para fora do contexto terapêutico.
Na Terapia Analítico Funcional (FAP) existe uma clara diferenciação entre os
comportamentos clinicamente relevantes que são problemáticos (CRB1) e os que expressam
melhora (CRB2), a definição destes comportamentos fica a critério do terapeuta. Se o terapeuta
que classifica o que é desejável ou indesejável, invariavelmente seus valores pessoais ou
culturais influenciam na análise do comportamento do cliente, além disto, a avaliação da
melhora terapêutica passa longe de uma visão neutra. Por exemplo, um cliente homem que está
sendo atendido e reproduz comportamentos de agressividade e de machismo, quando começar
a discriminar e expressar seus sentimentos levando em consideração questões de igualdade de
gênero será visto pelo terapeuta que compartilha de valores de igualdade como um progresso
clínico (WATRIN e CANAAN, 2015).
Esta terapia inicialmente foi conceitualizada como uma terapia livre de valores, porém,
com o aumento dos problemas globais enfrentados, os proponentes da teoria sugeriram a Green
FAP, que encoraja o terapeuta a declarar os seus valores (Valores declarados) de acordo com
o movimento Green (TSAI, KOHLEMBERG, BOLLING e TERRY, 2011). Este movimento
tem uma ideologia de responsabilidade e consciência social, dando ênfase a sustentabilidade,
justiça social e uma política de não violência.
A Green FAP destaca alguns valores comuns para se levar uma vida de realização
completa, servindo como ferramenta para nortear os terapeutas no processo terapêutico com
seus clientes. Dentre os valores propostos, pode-se destacar:
Saúde: Eu me sinto bem fisicamente. Eu cuido do meu corpo me alimentando com comida saudável,
me exercitando regularmente e me proporcionando descanso suficiente. Eu entendo a importância do
equilíbrio em tudo o que faço.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Amor e Intimidade: Eu sinto amor em minha vida. Eu valorizo e me sinto valorizado pelas pessoas
que eu amo. Eu sou vulnerável e me revelo àqueles que eu confio. Eu ajo com honestidade e integridade
e procuro só assumir compromissos que eu possa honrar. Eu entendo que os conflitos são inevitáveis em
relacionamentos íntimos, e trabalho para resolvê-los e aprendo com eles.

Flexibilidade Cognitiva: Outras pessoas e eventos não são responsáveis pelos meus sentimentos; a
maneira como eu interpreto os eventos podem influenciar meus próprios sentimentos e reações. Eu sou
capaz de reconhecer e desafiar distorções do meu pensamento que levam a sentimentos negativos. Eu
sou capaz de trazer soluções criativas para meus problemas diários.
240
Sexualidade: A energia erótica é uma fonte de energia da vida. Eu me sinto bem com meu corpo e sou
capaz de dar e receber prazer.

Consciência Social/ Ativismo/ Altruísmo: Uma vida puramente pessoal não tem senso de
conexão e de propósito. Eu tenho uma comunidade à qual eu pertenço. Eu vejo o que está errado com o
mundo e ajo em relação às minhas convicções trabalhando por mudança social.

A Green FAP tem um papel significativo neste trabalho no intuito de reforçar a


sexualidade como um valor global, todavia questões de sexualidade tendem a surgir dentro de
uma relação profunda e sensível de intimidade. Intimidade se refere a compartilhar sentimentos
dentro de uma relação aberta de carinho, de experiências e segredos, além de mostrar os medos
e a insegurança facilitando a vulnerabilidade do cliente e do terapeuta dentro desta relação
(BRAGA e VANDENBERGHE, 2006).
Watrin e Canaan (2015) reforçam que mesmo que o terapeuta analítico comportamental
não trabalhe por meio dessa vertente, ele deve reconhecer quais valores colocar em jogo na
relação terapêutica e qual o impacto desses valores sobre o cliente.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Compreender por que alguns psicoterapeutas não abordam temas e queixas que envolvem
sexualidade na psicoterapia.
Objetivos específicos
Entender a visão da Análise do Comportamento sobre o valor do psicoterapeuta, qual
a influência destes valores para abordar assuntos de sexualidade e como estes valores são
construídos para cada indivíduo.

3. METODOLOGIA
O presente artigo foi desenvolvido na forma de uma revisão narrativa. De acordo com
Rother (2007) “os artigos de revisão narrativa são publicações amplas, apropriadas para
descrever e discutir o desenvolvimento ou o "estado da arte" de um determinado assunto, sob
ponto de vista teórico ou contextual”. São textos selecionados pelo autor que passam pela sua
interpretação e análise crítica. Pela sua subjetividade, textos de revisão narrativa não permitem
a reprodução da sua metodologia, eles contribuem para o debate de temáticas específicas,
levantando questões de forma qualitativa.
Foi feita uma busca usando as palavras-chaves "sexuality", "sexual values",
"psychotherapy" e "therapists experience", para as referências em inglês e "sexualidade",
"valores de sexualidade", "psicoterapia e experiências do terapeuta" para as referências em
português. As bases de dados utilizadas foram Scielo, Scholar Google, Psycinfo, Pubmed e
Redalyc. Foram encontrados 17 artigos com estes descritores e selecionados 9 artigos que
atendiam os objetivos deste trabalho.
Estudos de Sexualidade 3

A fim de relacionar o tema de sexualidade com a análise do comportamento, recorreu-


se à literaturas específicas que abordam a temática de valores e também de terapias
comportamentais de terceira geração, Terapia Analítico Funcional (FAP) e Green FAP.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Da forma como a sociedade se desenvolveu, parece difícil levantar discussões sobre a
sexualidade nos tempos atuais, porque a sexualidade ainda é vista como um tabu, um tema
embaraçoso e inconveniente. Enfrentamos um embate conservador contra as conquistas e a
visibilidade de movimentos de minoria, olhando o impacto religioso no Brasil e a extensão 241

deste no âmbito governamental, encontramos um posicionamento dos legisladores


questionando a moral sexual e os direitos ligados à equidade de gênero e à diversidade sexual
(FACCHINI e SÍVORI, 2017).
McArdle (2012) enfatiza que é através da sociedade que compreendemos o que é
“normal” sexualmente falando, e que isso reflete diretamente nas questões levadas ao contexto
psicoterapêutico, além disso, psicoterapeutas e clientes convivem na mesma cultura, o que
afeta diretamente seus comportamentos. É esperado que os psicoterapeutas tenham repertório
para abordar questões de sexualidade, porém, algumas literaturas evidenciam que esses
profissionais apresentam dificuldades em trabalhar com questões sexuais que podem surgir no
setting terapêutico, dentre essas questões, estão as disfunções sexuais, saúde sexual,
intimidade, gravidez, aborto, orientação sexual, gênero, abusos, responsabilidades, desejos,
fetiches, insatisfação, entre outros.
Uma pesquisa realizada em 2007 constatou que os psicólogos hesitaram em iniciar uma
discussão relacionada à sexualidade porque eles sentiram que não sabiam como abordar de
forma apropriada os temas relacionados à sexualidade (NG citado por MILLER e BYERS,
2010).
Segundo Bonato (2019) as instituições de ensino superior seguem uma "política de
silenciamento" sobre a sexualidade, independente do tema, sejam facilidades ou dificuldades,
prazeres ou dores, satisfações ou insatisfações, relações saudáveis ou abusivas. Essa política
prejudica o acesso dos estudantes à possibilidade de construir conhecimento científico sobre a
temática na sua formação profissional. Nessa pesquisa a autora enfatiza que
predominantemente a abordagem psicanalítica é a que mais trabalha com a temática da
sexualidade em clínica, logo a que mais atualiza suas pesquisas, já na abordagem da Análise
do Comportamento ainda encontramos poucas publicações desbravando e abordando a
sexualidade.
Uma publicação que teve grande destaque por conversar com os objetivos propostos
por esta revisão narrativa foi o de Mcardle (2012). O objetivo da sua pesquisa foi compreender
como os terapeutas manejam questões de sexualidade na díade terapêutica. Por meio de uma
entrevista semiestruturada com psicoterapeutas, ele concluiu que gerenciar os sentimentos e o
nível de conforto destes terapeutas se torna parte inevitável para o bom resultado terapêutico.
Assim como Bonato (2019) e Ford e Hendrick (2003), o autor enfatizou a importância da
formação e supervisão abordando a sexualidade para que os terapeutas possam trabalhar de
forma mais segura e com embasamento científico, além disto, o conforto em manejar temáticas
de sexualidade aumentam de acordo com o avanço da experiência profissional.
Anderson (1986) apud Hays, K. W. (2002), identificou quatro estágios que sinalizam
o progresso de terapeutas em treinamento no manejo com o tema sexualidade. Esses estágios
são: (1) um exame de seus pontos de vista e preocupações sobre suas próprias relações sexuais;
(2) uma crescente conscientização e discriminação dos problemas e reações emocionais
experienciadas pelos clientes; (3) maior liberdade na discussão de assuntos sexuais com
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

conhecidos e amigos; e (4) por fim, o reconhecimento de um nível de conforto entre terapeutas
e clientes para abordarem assuntos referentes à sexualidade.
A sexualidade é uma das principais áreas em que os clientes e terapeutas discordam,
sendo os valores dos terapeutas mais “livres” do que o de seus clientes. Os valores dos
terapeutas não só podem influenciar a eficácia da terapia, como também acabam influenciando
os valores pessoais dos clientes. Porém, se esses valores entram em conflito, geralmente os
terapeutas são capazes de “anular” seus valores pessoais para ajudar os clientes no processo
psicoterapêutico (FORD e HENDRICK, 2003).
242
Dentre as literaturas que abordam as terapias comportamentais de terceira geração e
que trabalham com valores, a que ganhou destaque neste trabalho foi a Terapia Analítico
Funcional (FAP) e consequentemente a Green FAP. Nesta segunda, há um incentivo por parte
dos proponentes da Terapia Analítico Funcional (FAP) para que os terapeutas que seguirem tal
abordagem anunciem os seus valores no processo terapêutico. Entre valores propostos,
destacamos o da sexualidade, objeto deste trabalho, visto como uma energia vital e também
como a capacidade de uma pessoa de dar e receber prazer (TSAI, KOHLEMBERG, BOLLING
e TERRY, 2011). Contudo, não foi possível encontrar na literatura outros autores desbravando
mais profundamente a Green FAP, e nem a sexualidade como um valor declarado por
psicoterapeutas, independente da abordagem da psicologia.
Valores compreendidos como comportamentos obedecem a fluidez da evolução da
cultura (SILVA, 2016). Então, faz-se necessário compreender a evolução da sexualidade para
entender como a cultura influencia nosso desenvolvimento sexual e conforto em relação ao
trabalho com sexualidade em psicoterapia.
Em 1940 um pesquisador chamado Alfred Kinsey foi na contramão da cultura ocidental
da época que dificultava falar sobre sexo. Ele realizou um estudo nos Estados Unidos intitulado
Behavior of Human Male “Comportamento sexual do homem”. Nessa obra, Kinsey relatou os
comportamentos sexuais que aconteciam escondidos dos olhares críticos da época, ou seja, fez
uma distinção entre o que a sociedade considerava ser normal e o que as pessoas realmente
faziam sexualmente (MCARDLE, 2012).
Após o estudo de impacto de Kinsey, vieram pesquisadores como Masters e Johnson
em 1966 revolucionando o estudo de ciclos de resposta sexual humana de homens e mulheres,
sendo separadas em quatro fases: excitação, platô, orgasmo e resolução. Esse entendimento
abriu as portas para o trabalho com a sexualidade dentro do setting terapêutico. Posteriormente
Kaplan em 1974 enfatizou que as dificuldades sexuais principais eram advindas da fase do
desejo sexual (BONATO, 2019).
É importante reconhecermos o papel da ciência na apropriação dos estudos sobre
sexualidade ao redor do mundo, porém, não podemos negligenciar o impacto da política na
garantia de direitos que envolvem a sexualidade, sejam sobre os direitos à equidade de gênero,
os direito da população LGBTI, o direito ao aborto ou tantos outros direitos que ainda lutamos
para visibilizar os sujeitos, estes mesmos que chegarão ao consultório procurando por
psicoterapia e impactados pela opressão e conservadorismo (FACCHINI e SÍVORI, 2017).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estudar sexualidade não é fácil, uma vez que viemos de uma cultura engessada e arcaica
que por muito tempo ditou como deveríamos viver nossa própria sexualidade, classificando o
que é “certo”, “errado”, “pecaminoso”, “virtuoso” “nojento” ou “limpo”. Em pleno século XXI
os direitos envolvendo a sexualidade dos indivíduos não deveriam estar sendo definidos pelo
viés religioso e sim pelo viés político, social e de saúde. O que nos deparamos atualmente é o
contrário, ainda que estejamos conseguindo visibilizar sujeitos por meio de movimentos como
o feminista e com o advento da internet facilitando a coordenação de redes político-
Estudos de Sexualidade 3

comunicativas, temos muito à conquistar no que concerne nossos direitos para uma vivência
livre, digna e íntegra dos seus sujeitos.
Quando um psicoterapeuta se forma, ele se compromete a embasar seu trabalho de
forma ética, garantindo a promoção da liberdade, cabe primeiramente às instituições de ensino
facilitarem o conhecimento acerca de sexo e sexualidade, saindo de uma posição de
neutralidade, permitindo e até mesmo fomentando o acesso à educação e à pesquisa nessa área.
Por cliente e psicoterapeuta fazerem parte da mesma cultura, os profissionais que quiserem
trabalhar nessa área, precisam se debruçar em oportunidades da academia para moldarem seus
comportamentos, questionando crenças, atitudes e valores que podem prejudicar o atendimento 243

quando surgirem questões sexuais como demanda.


A Sexualidade surgirá para os terapeutas que souberem acolher e conduzir o processo
psicoterapêutico para a segurança de um contexto livre de punição. Por este motivo a autora
escolheu a Análise do Comportamento e consequentemente Terapia Analítico Funcional (FAP)
que é uma terapia comportamental de terceira geração que trabalha de forma sensível com a
relação terapêutica e ainda incentiva o anúncio de valores globais por meio da Green FAP.
Por meio da Terapia Analítico Funcional (FAP) de forma amorosa e corajosa, o
terapeuta facilita o surgimento de comportamentos “problemas” e molda dentro desta relação,
comportamentos mais saudáveis para esse cliente. Vale ressaltar que o que o terapeuta
considera como comportamento “problema” e comportamento de “melhora” muitas vezes é
influenciado pelo seu próprio julgamento de valor.
Se um terapeuta não questionou sua própria construção de sexualidade, e não sabe como
abordar este tema, será mesmo que ele anunciaria sexualidade como um valor, a ponto colocar
este tema em pauta no processo psicoterapêutico?
Alguns clientes passam por todo um processo psicoterapêutico sem ao menos tocar no
assunto sexualidade. Sexualidade é um aspecto central do ser humano ao longo da vida. Será
que negligenciamos esse aspecto porque ainda não a olhamos como um valor ou necessidade,
mesmo que já saibamos da real importância na vida do ser humano?
A maioria das publicações encontradas sobre sexualidade foi estrangeira, o que
denuncia que a nível nacional não estamos desenvolvendo pesquisas e estudos nesta área.
Dentro da psicologia seria importante que se questionasse como abordar a sexualidade
ao longo da formação do profissional, bem como na Análise do Comportamento, que por mais
que exista uma ampla produção de pesquisas, ainda carece de estudos e publicações acerca de
valores globais, pessoais e também sobre sexualidade.

6. REFERÊNCIAS
BONATO, Fernanda Rafaela Cabral. A formação científica sobre sexualidade nos cursos de graduação em
psicologia da região de Curitiba. 2019. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Setor de Ciências
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Estudos de Sexualidade 3

IMPACTOS DA CRENÇA NO AMOR ROMÂNTICO NA SEXUALIDADE


FEMININA

Lara Andrade Coutinho

245

RESUMO
A sexualidade humana, durante muito tempo, foi compreendida enquanto um dado
exclusivamente biológico. Contudo, nas últimas décadas, a partir da influência das teorias de
gênero, tem se aberto um espaço para discussão e a compreensão de outros aspectos
psicológicos e sociais atuantes na sexualidade. Este artigo tem por objetivo compreender de
que forma a crença no amor romântico pode interferir na sexualidade feminina, destacando o
alto engajamento das mulheres em relacionamentos e na forma em essa crença interfere no
desejo sexual feminino. Ainda são raras as produções acadêmicas que tem como pauta
principal essas discussões, por isso este artigo e estudos envolvendo a temática se fazem tão
importantes. Como metodologia, o artigo foi construído a partir de uma revisão de literatura, o
que forneceu os subsídios para as compreensões aqui debatidas acerca do amor romântico e a
perpetuação dos estereótipos e desigualdade entre os gêneros. Entre as considerações gerais,
destaca-se que ainda hoje o amor romântico é colocado como uma aptidão mais feminina do
que masculina, impactando diretamente o seu desejo sexual.
Palavras-chave: amor romântico; sexualidade; sexualidade da mulher.

ABSTRACT
Human sexuality, for a long time, was understood as an exclusively biological dimension.
However, in recent decades, based on the influence of gender theories, there has been an
opening for discussion and understanding of other psychological and social aspects related to
sexuality. This article aims to understand how the belief in romantic love can interfere in
female sexuality, highlighting the high engagement of women in relationships and the way in
which this belief interferes in female sexual desire. Academic productions that have these
discussions as their main focus are still rare, making articles and studies attempting to
contribute to bridging this gap very important. This article was built using literature review as
its methodology, which provided the support for the understandings discussed here about
romantic love and the perpetuation of stereotypes and inequality between genders. Among the
general considerations, it stands out that, even today, romantic love is seen as a more feminine
than masculine trait, directly impacting sexual desire.
Keyword: romantic love, sexuality, female sexuality.

1. INTRODUÇÃO
A sexualidade humana é um assunto que há tempos desperta fascínio, curiosidade e
imaginação das pessoas. Desde as concepções religiosas até as teorias médicas, as questões
relacionadas à sexualidade são frequentes em rodas de conversa, buscas na internet e nos
consultórios médicos e de psicologia. Atualmente, a sexualidade é entendida como um aspecto
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

central da existência humana, fazendo parte da dinâmica vital de todos nós. Segundo a
Organização Pan-Americana da Saúde (2000), a experiência sexual é expressa em
pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, valores, atividades, práticas e
relacionamentos; desta forma, fatores biológicos, psicológicos e socioculturais fazem parte da
expressão e vivência da sexualidade. Para a psicanalista Muriel Dimen (1997, p. 43), “a
sexualidade é uma das vozes mais pessoais, engajadas e carregadas de valores, uma vez que o
sexo está na encruzilhada da natureza, psique e cultura”. Assim, a atividade sexual não existe
isoladamente, sendo vivenciada a partir de uma teia social de significados na qual ela está
246
inserida.
O tema da vivência sexual feminina é muito desafiante. A história da mulher no
Ocidente é marcada por desconhecimento do próprio corpo, além da associação da sexualidade
apenas para fins reprodutivos, dificultando o seu acesso ao prazer, orgasmo e práticas como a
masturbação. Em seu livro O mito da beleza, Naomi Wolf (2020) discorre sobre o culto à
beleza e à juventude como estratégias de controle social da mulher, sendo a sexualidade
feminina um dos aspectos mais impactados por essa prática. A revolução sexual do século
passado, possibilitada pela popularização dos métodos contraceptivos, enfrentou o mito da
beleza que teve por objetivo refrear a emancipação feminina que pudesse surgir desse
movimento. Wolf (2020) cita o estudo de Kinsey, datado de 1953, em que uma parcela de 70%
a 77% das mulheres relatou já ter experimentado um orgasmo, seja por meio de uma relação
sexual ou pela masturbação. Porém, a satisfação sexual das mulheres parece não ter
acompanhado o progresso da revolução sexual: os dados de Shere Hite, de 1976, revelaram
que somente 30% das mulheres tinham orgasmo em relações sexuais sem o estímulo manual
do clitóris; 19% apenas com estimulação; 29% não tiveram orgasmos durante as relações
sexuais; 15% não se masturbavam; e 11,6% nunca tiveram orgasmos, de forma alguma
(WOOLF, 2020).
A partir de pesquisa realizada em 2008 pelo Mosaico Brasil, gerenciada por Carmita
Abdo - coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade (Prosex) da Universidade de
São Paulo (USP) -, constatou-se que cerca de 40% das mulheres brasileiras nunca se
masturbaram. Somente 30% confessaram que não ter orgasmo, 35% apresentam alguma
dificuldade em sentir desejo e 21% sentem dor durante a relação sexual. Para a autora, o contato
da mulher brasileira com o próprio corpo é dificultado, o que se mostra contraditório em nossa
sociedade machista, em que a mulher “deve dar livre acesso para o seu parceiro” (DINIZ, 2014,
online25). Assim, a ideia de que mulheres devam se “resguardar” é transmitida de forma difusa
e velada, contudo, gerando impactos significativos na forma em como essas mulheres
vivenciam o próprio corpo e prazer. Desde muito novas, o próprio corpo e sexualidade são
interpretados como algo sujo, pecaminoso ou imoral. Contudo, ao se perceberem dentro de
uma relação afetiva, essas mesmas mulheres devem permitir contatos íntimos e frequentes com
seus parceiros.
Neste cenário, o amor frequentemente surge como sinônimo de sexualidade. A
associação entre amor romântico e sexualidade, muito frequente dentro do universo feminino,
leva muitas mulheres à uma vivência sexual por vezes limitada e empobrecida. Um estudo
sobre a representação da sexualidade feminina em revistas femininas (ZUCCO; MINAYO,
2009) demonstra uma contínua associação entre “Amor e Sexo”, sendo o amor visto de forma
idealizada, apostando na superação de quaisquer conflitos na vida a dois; mas também realista,
apontando para os desafios dos relacionamentos contemporâneos. Além disso, boa parte dos
discursos presentes nestas revistas de grande circulação nacional reproduzem a compreensão

25
Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2014/08/01/masturbacao-feminina-ainda-e-
tabu-supere-isso.htm.
Estudos de Sexualidade 3

da sexualidade de forma engessada ao biológico, sendo ela entendida como natural e imutável.
Para as autoras:
Persiste nessa leitura o primado de condutas, atos e relacionamentos sociais determinados pelo
sexual, o que significa assinalar que homens e mulheres são providos de atributos diferentes
em virtude de suas características anatomofisiológicas. Essa lógica vincula a sexualidade ao
corpo e a reduz às funções biológicas, naturalizando-a e sugerindo que todos os sujeitos a
compartilham como condição universal (ZUCCO; MINAYO, 2009, p. 45).
Em seu livro Sem fraude nem favor, estudos sobre o amor romântico, Jurandir Freire
Costa (1998) define o amor romântico como uma crença emocional inventada, podendo ser 247
alterada e recriada. Ele questiona algumas das afirmações mais frequentes na crença do amor
romântico: o amor como sentimento universal e natural; o amor como um sentimento que vai
contra a racionalidade e o amor como condição para a felicidade.
Navarro Lins (2013), fala sobre o surgimento da crença no amor romântico, criado no
século XII a partir do amor cortês, voltando no século XIX e permanecendo até os dias de hoje
por meio de novelas, músicas, cinema e propaganda. Ela destaca que no amor romântico não
nos relacionamos com a pessoa real, mas sim, com o que inventamos em relação ao outro de
acordo com nossas necessidades. O parceiro torna-se fonte exclusiva de prazer e interesse,
regido sob a crença na “alma gêmea”, em que um só se completa na existência do outro.
Para a autora, a difusão de ideia de que só é possível a realização afetiva em uma relação
amorosa fixa e estável leva milhares de mulheres na busca incessante por um parceiro disposto
a alimentar esse sonho. A partir daí surgem as expectativas, mas também o desencanto e
frustração. O sexo também sofre impacto, muitas mulheres ainda se esforçam para o auto
convencimento de que sexo e amor têm que caminhar sempre juntos; a crença de que mulheres
não podem gostar de sexo permanece até os dias de hoje, quando muitas optam por ignorar os
próprios desejos, não reconhecendo o sexo como algo natural na vida da mulher.
Uma importante engrenagem desse sistema é a concepção de gênero bastante discutida
pelas vertentes feministas. A socióloga Heleieth Saffioti destaca a importância da historicidade
para entendimento das diversas definições existentes para gênero. Uma das mais importantes
é a da historiadora Joan Scott (1995, p. 86), que define gênero como “elemento constitutivo de
relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e o gênero é uma forma de
significar as relações de poder”. Para Saffioti (2015), o que une, mesmo que parcialmente,
todas as definições é o entendimento de gênero como a construção social do masculino e do
feminino.
Assim, às categorias sociais homem e mulher são atribuídos diferentes repertórios simbólicos,
que também estarão presentes no campo da sexualidade. Ao feminino é permitido o espaço
doméstico, emoções, fragilidade, irracionalidade, inocência, fraqueza e dependência; ao
masculino se direciona o controle das emoções, a racionalidade, força, agressividade,
independência e dominação (TRINDADE; FERREIRA, 2008, apud COLETIVO NÃO ME
KAHLO, 2016). Desta forma, percebe-se que a crença no amor romântico se torna um objeto
de grande impacto à sexualidade das pessoas, principalmente a da mulher.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Entender como a crença no amor romântico pode impactar a sexualidade feminina.
Objetivos específicos
-- Observar a influência da crença no amor romântico no engajamento de mulheres a
relacionamentos.
-- Analisar os impactos do amor romântico sobre o desejo sexual feminino e na
autonomia sexual feminina.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

3. METODOLOGIA
O subtipo de revisão utilizado neste artigo é a revisão narrativa de literatura, em que é
feita uma
Revisão tradicional ou exploratória, onde não há a definição de critérios explícitos e a seleção
dos artigos é feita de forma arbitrária, não seguindo uma sistemática, na qual o autor pode
incluir documentos de acordo como seu viés, sendo assim, não há preocupação em esgotar as
fontes de informação (CORDEIRO et al., 2007 apud FERENHOF; FERNANDES, 2016, p.
551).
248 Foi realizada uma busca bibliográfica abrangendo os termos “amor romântico”,
“sexualidade” e “sexualidade da mulher” nos sites Scielo e Periódicos Capes. Foram
selecionados os 100 primeiros artigos de cada busca no site Periódicos Capes e todos os artigos
presentes na busca no site Scielo. Posteriormente, os artigos foram escolhidos a partir de sua
relevância para o tema em questão. As buscas foram concentradas dentro de um período de dez
anos (2010 a 2019), sendo também necessário o acesso às leituras, artigos e livros anteriores a
esse período, que ajudassem na compreensão da temática escolhida.

4. DISCUSSÃO
As últimas décadas foram marcadas por grandes avanços na compreensão da
sexualidade humana; as investigações anatômicas e fisiológicas possibilitaram o entendimento
do corpo humano neste complexo universo que envolve fantasia e realidade. Longas disputas
político-religiosas nos últimos séculos interferiram, e interferem até hoje, nossas
compreensões. Desta forma, a sexualidade também precisa ser compreendida a partir de um
determinado tempo e lugar.
Fica cada vez mais claro, para aqueles que trabalham com sexualidade, o entendimento
de que ela é construída socialmente, sendo fundamental levar em consideração os aspectos
culturais aos quais o indivíduo está inserido.
O impulso sexual é formado pela sociedade. Até os animais têm de aprender o comportamento
sexual. Os antropólogos acreditam atualmente que é o aprendizado, mais do que o instinto, que
leva a um comportamento reprodutivo bem-sucedido. Macacos criados em laboratório são
ineptos no que diz respeito ao sexo, e os seres humanos também precisam aprender o
comportamento sexual a partir de sugestões externas. As sugestões externas da pornografia da
beleza e do sadomasoquismo remodelam a sexualidade feminina sob uma forma mais dócil do
que a que ela assumiria se fosse verdadeiramente liberada (WOOLF, 2020, p. 194).

Vieira, Arruda, Nóbrega e Veiga (2016), afirmam a relação da sexualidade com


necessidades psicológicas dos indivíduos, para além da necessidade biológica de perpetuação
da espécie. Apesar disso, frequentemente vemos associação entre sexualidade e biologia, como
se esta fosse a única relação possível. Isso fica ainda mais evidente quando se investiga
dificuldades no campo da sexualidade, como por exemplo, as disfunções sexuais, em que
muitos estudos apontam o problema como uma questão apenas biológica. Um estudo realizado
com mulheres com diferentes disfunções sexuais identificou a presença de compreensões
desiguais acerca da sexualidade, em que homens possuiriam “impulsos derivados de uma
necessidade sexual intensa”, assim a prática sexual permanece, até hoje, como algo feito mais
para os homens do que para as mulheres (VIEIRA; ZANUZI; AMARAL, 2016).
Contrapondo a esta compreensão da sexualidade, surgem os estudos de gênero como
um importante contribuinte para a compreensão da sexualidade, ofertando um olhar mais
crítico e amplo. O conceito de gênero está relacionado à “construção social que torna desigual
homens e mulheres” (SANTOS, 2010, online26). As desigualdades entre homens e mulheres

26
Disponível em: https://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo4a5.pdf
Estudos de Sexualidade 3

justificadas biologicamente se sustentaram até o desenvolvimento do capitalismo industrial,


que junto ao desenrolar da democracia, através das Revoluções Francesa e Americana,
começaram a enfatizar que as diferenças biológicas são, na verdade, imposições sociais e
políticas direcionadas às mulheres. A saída da obrigatoriedade da vida doméstica e a
necessidade de incorporação de novas forças de trabalho é somada ao surgimento dos primeiros
estudos sobre mulheres e, consequentemente, da categoria gênero (SANTOS, 2010).
A historiadora Joan Scott contribui de forma significativa para o entendimento da
compreensão de gênero. Scott (1995) destaca que para compreendermos adequadamente as
relações de gênero precisamos estar atentos aos “símbolos culturalmente disponíveis”, que 249

culminaram em representações de gênero; os “conceitos normativos” que limitam as


interpretações metafóricas sobre eles; a fixação destas representações, como se fossem
atemporais; e por fim, estes elementos levam a uma “identidade subjetiva” em que homens e
mulheres carregam em si uma enorme carga cultural e simbólica. Santos (2010, online27)
reforça “Scott propõe o estudo das relações de gênero com base nas identidades socialmente
construídas e suas relações com as organizações sociais e representações culturais
historicamente específicas”.
Somada à compreensão de gênero, a noção de “poder” torna-se de fundamental
importância, sendo ele algo que surge da vida em grupo, da vida social. Assim, o gênero é
“tanto propriedade das instituições, como parte de nossas identidades individuais” (SANTOS,
2010, online28), ou seja, é como uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo em que indivíduos e
suas compreensões de gênero são moldados pelas instituições, as instituições também são
moldadas pelos indivíduos. A família e o trabalho, por exemplo, criam roteiros que guiarão a
vida do indivíduo, mesmo que em muitas vezes de forma impercebível.
Alinhada à compreensão de gênero surge a de patriarcado como “regime da dominação-
exploração das mulheres pelos homens” (SAFFIOTI, 2015, p. 47), sendo um sistema político-
econômico, mas também psicológico-ideológico (DIMEN, 1997, p. 43).
O patriarcado é, em seu conjunto, um sistema de dominação. Mas difere de outros sistemas de
dominação, como o racismo, a estrutura de classes ou o colonialismo, porque vai direto na
jugular das relações sociais e da integração psicológica – o desejo. O patriarca ataca o desejo,
o anseio inconsciente que anima toda ação humana, reduzindo-o ao sexo e depois definindo
sexo nos termos politizados do gênero. Paradoxalmente, entretanto, a sexualidade, estruturada
dessa maneira, torna-se reciprocamente escultora do desejo, com o gênero organizando
simultaneamente parte do desejo dentro do ser. Não apenas a sexualidade, mas todas as
manifestações do desejo são assim influenciadas pelo gênero e, dessa forma, as raízes do
desejo, ele mesmo fonte da experiência pessoal, são escalonadas em hierarquias (DIMEN,
1997, p. 46).
A partir deste entendimento, percebe-se que o patriarcado atua de forma ativa, tanto no
entendimento da sexualidade das mulheres quanto em suas vivências. Ao afirmar o que é
sexualidade, reduzi-la à prática sexual heterossexual e genitalizada, onde mulheres são
colocadas como seres sexualmente menos potentes, o patriarcado atua minando o desejo
sexual feminino, seja refreando-o, seja ditando de que forma ele deve ser experimentado. Um
estudo realizado com enfermeiras da cidade de Barbacena – MG objetivou compreender
como os discursos de gênero poderiam se relacionar com sua construção identitária como
mulheres e enfermeiras. As participantes relatam uma organização familiar centrada na figura
do pai e do homem, pai ou marido, ocupando um lugar de tutela (COSTA; COELHO, 2013).
A sexualidade é vigiada e censurada dentro de um escopo de normalidade esperada por este

27
Disponível em: https://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo4a5.pdf
28
Disponível em: https://www.ufjf.br/virtu/files/2010/05/artigo4a5.pdf
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

patriarca. Ela é vista muitas vezes como perigosa, sendo necessária uma disciplina, deixando
marcas no exercício do cuidado destas mulheres com o outro.
Outro estudo realizado com mulheres adolescentes reforça que até hoje a figura do pai
é tradicionalmente atribuída à disciplina e provedor do sustento familiar, consequentemente,
menos empática e permissível que a da mãe. As adolescentes destacam diferenças entre a
educação sexual dos filhos e das filhas, perpetuando as diferenças de gênero historicamente
construídas. A autora afirma que os adolescentes homens se interessam mais precocemente
pela iniciação sexual, desinibidos e menos preocupados com possíveis consequências de um
250
sexo desprotegido, como gravidez e IST’s. Enquanto as adolescentes meninas são mais
controladas e menos encorajadas à iniciação sexual.
A crença no amor romântico é demarcada pela compreensão desigual dos gêneros. Vale
frisar que as compreensões sobre amor e relacionamentos amorosos também são frutos do lugar
e período histórico em que se vive, sendo o início do século XIX marcado pela valorização do
sentimento amoroso, rejeitado anteriormente pelo racionalismo do século XVIII. Navarro Lins
(2013) destaca a obra Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann Wolfgang Von Goethe,
como uma das obras literárias responsáveis pela difusão dos ideais românticas na Europa na
passagem do século XVIII para o XIX.
O livro conta a história de uma paixão entre um jovem burguês intelectual por
uma jovem já comprometida. Encerrando-se com o suicídio do protagonista, o livro tornou-se
referência para outras obras literárias e também para jovens da época que, inspirados no livro,
acabaram por dar fim à própria vida. Marcado por protestos, o romantismo “adorava aquilo
que era natural ao homem e aquilo que fosse singular em cada pessoa” (LINS, 2013, p. 102),
considerando sensações e emoções essenciais à vida. O discurso romântico tornou-se
onipresente à sociedade da época, com excessivo sentimentalismo e melancolia, o controle das
emoções foi sendo substituído por um espírito hiperemocional.
Com o passar dos anos o casamento burguês foi sendo instituído dentro de uma classe
social em ascensão, pela busca de segurança e estabilidade. À mulher (esposa) cabia zelar pela
ordem e segurança do lar, porém, as decisões importantes para a família continuaram sendo
tomadas exclusivamente pelos homens (LINS, 2013). Percebe-se que ao fixar a mulher como
não possuidora de desejo sexual, o amor romântico torna-se um instrumento de perpetuação
do patriarcado, limitando a vivência sexual feminina às fantasias e à idealização de relações
colocadas de forma desigual para homens e mulheres.
Acompanhando todas as mudanças do século XIX, as mulheres continuaram a ser vistas
como castas e submissas aos homens, e a ideia do relacionamento amoroso fixo, estável e
heterossexual tornou-se obrigatória para a felicidade. Esse ideal é visível nas histórias de
heroínas românticas e nos contos de fadas popularizados pelos irmãos Grimm, em que
mulheres só são salvas da miséria ou melhoram de vida devido a sua relação com um homem;
como consequência, as “meninas vão aprendendo, então, a ter fantasias de salvamento, em vez
de desenvolver suas próprias capacidades e talentos” (LINS, 2013, p, 171).
Essas histórias vão deixando marcas na vivência feminina, legitimando identidades
femininas e masculinas a partir das representações de gênero vigentes em determinado
momento. As narrativas difundidas pelos contos de fadas podem contribuir perpetuando essas
compreensões de gênero, como também podem ser um recurso para a mudança de perspectivas
e comportamentos.
Narrar está estreitamente conectado com a produção de nossas identidades. São nas narrativas,
entre outros processos, que variados poderes atuam para fixar as identidades dos grupos tanto
privilegiados como desprivilegiados, embora sejam também nas narrativas que esses grupos
podem afirmar identidades diferentes daquelas descritas pelas narrativas hegemônicas. Desse
modo, as narrativas também contribuem para constituir um mundo onde devemos nos alojar,
onde devemos encontrar um lugar (PIRES, 2009, p. 87).
Estudos de Sexualidade 3

As literaturas infantis representam um importante instrumento de aprendizagem e


socialização das crianças. A autora afirma que nos contos tradicionais as figuras femininas,
muitas vezes representadas por princesas, não costumam ter um papel atuante e decisivo,
cabendo a elas aguardar pela chegada do príncipe para poder ser “feliz para sempre”. Esse
estereótipo reforça a ideia de que só é possível ser feliz quando com alguém, sendo este outro
responsável pela sua felicidade.
A forma como os postulados sobre o amor romântico age na vida dos indivíduos parece
ter um peso maior dentro das experiências femininas. Neves (2007) destaca o fato do amor 251

romântico frequentemente aparecer como sendo uma preocupação mais feminina do que
masculina, sendo as qualidades e características do romântico frequentemente atribuídas à
figura da mulher, “o amor foi apontado à mulher como uma suprema vocação e, quando se
dedica a um homem vê nele um deus [...]” (BEAUVOIR, 1976 apud NEVES, 2007, p. 498).
Este entendimento também é visto em Menezes (2007):
Como se vê, a sensação da falta da parte faltoso em cada ser pertence tanto ao homem quanto
à mulher, mas por serem as mulheres mais ligadas ao afeto mais sensíveis (pelos menos
culturalmente), acreditam neste mito mais do que os homens. Estes mais ligados à razão (por
motivos também culturais) são menos vulneráveis do que as mulheres (MENEZES, 2007, p.
569).

A compreensão de que o amor é algo mais das mulheres é ainda muito frequente
atualmente, impactando na importância que mulheres dão ao amor. Brenneisen e Lopes (2016,
p. 126), ao falarem sobre as mudanças percebidas nas uniões conjugais ao longo da história,
principalmente após o surgimento da noção de casamento por amor, inaugurada pela burguesia
no século XVII, destacam que “embora o amor romântico suponha uma igualdade de
envolvimento emocional entre duas pessoas, durante muito tempo as mulheres foram mais
afetadas pelos seus ideais”. Esta dinâmica levou inúmeras mulheres à sujeição doméstica e
reprodução de práticas machistas e limitadoras, sendo um exemplo da atualidade o frequente
uso da internet e aplicativos de relacionamento, popularizados sob a promessa de encontro com
o par ideal.
Um estudo relacionado ao uso de aplicativos para relacionamentos identificou a
existência de um mercado especializado para o público feminino, incluindo cursos de
empoderamento feminino direcionado às mulheres que estão em busca de um grande amor
(JARDIM, 2019). Recheados de interpretações e estereótipos de gênero, o mercado de
aplicativos de relacionamentos e cursos de autoajuda reforçam, no imaginário feminino, o
entendimento de que só é possível ser feliz na existência de outro, em sua maioria homem,
sendo ela a responsável tanto pelo sucesso quanto pelo fracasso das relações. Tais
compreensões vão deixando marcas na vivência sexual feminina, que se vê cada vez menos
potente e presa à compulsividade por relacionamentos; a regra máxima é estar em um
relacionamento, independente das suas condições. Essa necessidade de relacionamentos leva
inúmeras mulheres a um alto engajamento às questões amorosas, não por perceberem os
relacionamentos como experiências, mas sim, por ser uma condição necessária para felicidade
e lugar na sociedade enquanto mulher.
Seguindo essa inspiração teórica, o amor romântico seria o produto social de uma cultura
androcêntrica, cujo poder está justamente em contar com cumplicidade do dominado, que está
sob o encantamento (illusio) dessa forma de dominação. Assim, o amor romântico seria uma
crença mágica capaz de criar contentamento nas mulheres que possuem um par e frustração
naquelas que ainda esperam por essa realização (JARDIM, 2019, p. 71).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Outra importante reflexão relacionada à influência da crença no amor romântico e sua


sustentação a partir dos papéis de gênero está na forma em como as mulheres experimentam
um afastamento de sua autonomia sexual, mais especificamente, o desejo. Neves (2007),
também destaca a relação de estereótipos de gênero com a compreensão de homens como
sujeitos ativos na iniciação das relações e mulheres no papel reativo, em que sua função é
apenas aceitar ou recusar as investidas masculinas. Ao investigar as disfunções sexuais
femininas, perceberam a forte influência das crenças de gênero, em que um controle gerado
por uma moralidade intenciona bloquear uma série de experiências sexuais a que essa mulher
252
pode experimentar. O homem é visto como mais auto centrado em sua satisfação sexual,
possuindo mais desejo sexual.
Vieira, Vanuzi e Amaral (2016, p. 76), citando Seixas (1998), reforçam que quando se
trata da sexualidade feminina, “a passividade é a prescrição”, homens são incentivados a
investir e explorar sua sexualidade, enquanto a mulher deve continuar oculta e subordinada.
Esta compreensão abre brecha para o entendimento da sexualidade feminina como algo
naturalmente menos potente do que o masculino. Saffioti (2015, p. 28), concorda com essa
percepção, quando afirma: “a mulher foi socializada para conduzir-se como caça, que espera o
‘ataque’ do caçador”.
Segundo Coletivo Não me Kahlo (2017), os estudos relacionados ao prazer da mulher
só foram ser verdadeiros temas da sexologia a partir do século XX; até este período, a mulher
fora colocada no lugar de frígida, impassível de desejo sexual.
Em seu livro A Mulher e o Desejo (2001), a psicanalista Polly Young-Eisendrath
disserta sobre o culto à perfeição imposto às mulheres e à própria dificuldade que elas
experimentam ao terem seus desejos capturados pelas expectativas de gênero impostas pelo
patriarcado, consequências da crença no amor romântico. A autora destaca que a busca por ser
desejada leva as mulheres à perda do autocontrole, da autoconfiança e da autodeterminação,
onde a imagem que passa se torna mais relevante do que os atos. Restringir à mulher apenas o
lugar de objeto desejado e não de ser desejante; ao corpo feminino cabe apenas a admiração e
uso do outro; aos desejos cabe apenas aquilo que um outro determinou.
A ignorância das mulheres acerca dos seus próprios prazeres sexuais, o fato de serem forçadas
a se limitar a cuidar da casa e dos filhos e suas preocupações posteriores com a aparência física,
tudo isto contribui para sufocar o desejo sexual feminino nos dois últimos séculos (YOUNG-
EISENDRATH, 2001, p. 69).
Como consequência, mulheres se tornam reféns das expectativas e valores elaborados
por outros, fazendo emergir sentimentos de frustração e dependência. Esse desconhecimento
do próprio desejo faz muitas mulheres, até hoje, acreditarem que o sexo é algo que pertence
mais aos homens; cabendo à sua satisfação sexual a dependência das ações de outra pessoa,
que irá determinar o que é ou não prazeroso a essa mulher e de que forma ela deve vivenciar
isso. Trabalhar com mulheres questões relacionadas à sexualidade exige questionar sua
compreensão sobre a temática e entender todas as forças atuantes em seu dia a dia. O desejo
sexual, necessita ser reconhecido enquanto algo pertencente também às mulheres, e, a partir
daí, criar espaço interno para que essa mulher comece a compreender o que realmente lhe
impulsiona e agrada.
Neste tipo de acordo consciente ou inconsciente, são os outros que nos devem proporcionar as
nossas sensações de poder, valor ou vitalidade, à custa de nosso próprio desenvolvimento.
Então nos sentimos ressentidas, frustradas e dependentes porque sacrificamos nossas reais
necessidades e desejos em favor dos acordos que fizemos com os outros (YOUNG-
EISENDRATH, 2001, p. 16).
A partir das discussões apresentadas, percebe-se que a crença no amor romântico é um
importante influenciador da sexualidade feminina. Construído sob demarcações sólidas e
Estudos de Sexualidade 3

consistentes de gênero, este tipo de crença impacta a forma como mulheres se engajam em
questões afetivas e em como vivenciam seus desejos no campo da sexualidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dois últimos séculos foram marcantes para o campo da sexualidade humana. Com o
início de estudos sobre sexologia, tornou-se mais clara a influência de aspectos psicológicos e
sociais na vivência sexual. Apesar de, historicamente, as noções de que as diferenças entre
homens e mulheres estariam pautadas exclusivamente no sexo biológico terem predominado
durante séculos, hoje percebe-se que muitas dessas diferenças estiveram mais relacionadas às 253

questões sociais elaboradas a partir das diferenças biológicas do que ao destino biológico destes
seres.
Nas últimas décadas temos percebido uma ampliação sobre a compreensão dos fatores
de influência a sexualidade humana, em que as diferenças de gênero aparecem de forma
frequente, encontrando na crença do amor romântico um lugar para a perpetuação dos papeis
e estereótipos de gênero colocados pela nossa sociedade.
Reconhecendo o outro indivíduo e um relacionamento amoroso como objetivos finais
da existência humana e condições para a realização pessoal e felicidade, mulheres tem se
desprendido em uma busca implacável por alguém que as proporcione a sensação de
completude e auto realização imposta pelo amor romântico. Percebe-se também a interferência
da crença no amor romântico no desejo sexual feminino; até hoje mulheres se percebem reféns
da inciativa de homens, quando também não conhecedoras de seus próprios desejos e vontades.
As expectativas relacionadas ao amor romântico levam mulheres à frustração quando
enfrentadas as dificuldades em não conseguir alcançar esse ideal (AMORIM; STENGEL,
2014). As discussões destas compreensões sobre amor romântico são importantes para a
desconstrução de alguns pressupostos e abertura ao verdadeiro conhecimento do outro, com
todas as suas potencialidades e limitações.
De acordo com o trabalho apresentado e com a revisão de literatura existente, percebe-se a
necessidade de uma maior produção a respeito da temática do amor romântico e seus impactos
na sexualidade feminina. Assim como a importância de uma maior discussão acerca da
perspectiva de gênero que possibilite a vivência de uma sexualidade mais rica e potente.

6. REFERÊNCIAS
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supere-isso.htm. Acesso em 05 de out 2020.
FERENHOF, H. A.; FERNANDES, R. F. Desmistificando a revisão de literatura como base para redação
científica: método SSF. Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina, Florianópolis, SC: v. 21, n.
3, pp. 550-563, ago/nov., 2016.
JARDIM, M. C. Para além da fórmula do amor: amor romântico como elemento central na construção do mercado
do afeto via aplicativos. Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 18 - Nº 43 - Set./Dez., 2019.
LINS, R. N. O livro do amor. Rio de Janeiro: BestSeller, 2013.
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Estudos de Sexualidade 3

Sexualidade na Conjugalidade
Conflitos entre o tradicional e o novo no fluir do ciclo de vida a dois

Lara Cunha Sales Rizerio

255

RESUMO
A conjugalidade é tradicionalmente considerada a única maneira lícita de experienciar o ato
sexual com ênfase na sua finalidade reprodutiva perpetuando papéis tradicionais de gênero
com a submissão da sexualidade feminina à masculina. Os ideais modernos estimulam a
ampliação de vivências sexuais além do matrimônio, valorizam o prazer, igualdade e
reciprocidade. Tanto os ideais tradicionais quanto os modernos se fazem presentes no contexto
sócio-histórico vigente, o objetivo do presente artigo é estudar os casais contemporâneos sob
a influência desses dois paradigmas durante seu ciclo de vida e as transformações que ele
proporciona, especialmente a parentalidade e o envelhecimento. O método utilizado foi a
revisão narrativa da literatura. Foram explicitados como os dois ideais podem aproximar ou
afastar os sujeitos de uma vivência saudável da sexualidade: a visão tradicional pode limitar a
criatividade dos casais a fluírem com as mudanças do ciclo de vida e a visão moderna ao
priorizar o prazer também traz sofrimento quando essa busca se torna uma norma. As mudanças
do ciclo de vida se mostram como oportunidades de ressignificar e aprofundar a sexualidade
conjugal.
Palavras-chave: Sexualidade, conjugalidade, casal.

ABSTRACT
Conjugality is traditionally considered the only right way to experience the sexual act with an
emphasis on its reproductive purpose perpetuating traditional gender roles with the submission
of female to male sexuality. Modern ideals stimulate the expansion of sexual experiences
beyond marriage, they value pleasure, equality and reciprocity. Both traditional and modern
ideals are present in the current socio-historical context, the aim of this article is to study
contemporary couples under the influence of these two paradigms during their life cycle and
the transformations it provides, especially parenting and aging. The method used was the
narrative review of the literature. It was explained how the two ideals can bring subjects closer
to or away from a healthy experience of sexuality: the traditional view can limit the creativity
of couples to flow with changes in the life cycle and the modern view by prioritizing pleasure
also bringing suffering when it search becomes a norm. The changes in the life cycle are shown
as opportunities to reframe and deepen conjugal sexuality.
Keywords: sexuality, conjugality, couple.

1. INTRODUÇÃO
O interesse no tema da conjugalidade no panorama atual surgiu a partir dos
atendimentos clínicos individuais da autora ao se deparar com as demandas de jovens adultos
heterossexuais em sofrimento no início da vida conjugal buscando conciliar sua busca de prazer
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

e realização individual, ressignificação da identidade a partir da nova relação e negociação da


influência dos papéis sociais e responsabilidades com sua parceria.
A conjugalidade, pela etimologia da palavra, é a qualidade do que é conjugal. Féres-
Carneiro (2010) afirma que a relação conjugal ocorre dentro de um contexto sócio-histórico e
envolve a construção de uma realidade comum a partir da reconstrução da realidade individual.
Segundo a autora, o imaginário social vê o casal como “um par associado por vínculos afetivos
e sexuais de base estável, com um forte compromisso de apoio recíproco, com o objetivo de
formar uma nova família incluindo, se possível, filhos” (p. 270).
256
A partir deste olhar, a sexualidade, para o senso comum, mostra-se intimamente
vinculada ao conceito de conjugalidade; a sexualidade é o que faz o casal ser considerado um
casal, amor sem sexo é considerado amizade ou irmandade. Figueiredo (2005), ao analisar
fatores que podem comprometer a satisfação conjugal, destaca a importância de uma
comunicação efetiva e relação sexual satisfatória para a construção e manutenção da
conjugalidade. Os indivíduos têm interesse em manter uma vida sexual ativa e plenamente
prazerosa, a sexualidade é um parâmetro de análise da conjugalidade e a afinidade sexual
contribui para a manutenção da relação conjugal (FIGUEIREDO, 2005; DINIZ, 2013;
HERNANDEZ, 2003). Mas o que seria uma sexualidade saudável e satisfatória?
O Caderno de Atenção Básica – Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva do Ministério da
Saúde (2013), que utiliza a definição de saúde sexual do grupo internacional HERA (Health,
Empowerment, Rights and Accountability), considera que:
A saúde sexual é a habilidade de mulheres e homens para desfrutar e expressar sua sexualidade, sem
riscos de doenças sexualmente transmissíveis, gestações não desejadas, coerção, violência e
discriminação. A saúde sexual possibilita experimentar uma vida sexual informada, agradável e segura,
baseada na autoestima, que implica abordagem positiva da sexualidade humana e respeito mútuo nas
relações sexuais. A saúde sexual valoriza a vida, as relações pessoais e a expressão da identidade própria
da pessoa. Ela é enriquecedora, inclui o prazer e estimula a determinação pessoal, a comunicação e as
relações (p. 15).

Simões e Both (2013), afirmam que, quando o casal está aberto para novas descobertas,
as vivências de afetividade e sexualidade podem ocorrer durante todo o ciclo de vida; a relação
conjugal se fortalece e amadurece com as mudanças e valoriza práticas além da genitalidade.
Porém, introjetos culturais que culpabilizam o prazer, restringem o sexo e a beleza a juventude,
a jogo de poder ou a procriação podem fazer com que os indivíduos não se permitam explorar
e expandir sexualmente.
Considerando o contexto sócio-histórico brasileiro, é importante analisar a influência
dos valores religiosos na sexualidade. Esses valores determinam o matrimônio heterossexual
como a única maneira aceitável de experienciar a sexualidade, enfatizando o significado
reprodutivo das relações sexuais e caracterizando o sexo fora deste sacramento como uma
desordem grave (HOFFMANN E COSTA, 2019). Ao estudar associações entre religiosidade-
espiritualidade e relações conjugais, Hoffmann e Costa (2019), explicitam que os indivíduos
atualmente estão sob a influência de duas forças aparentemente divergentes. Uma delas
apresenta aspectos doutrinários religiosos que podem trazer angústia ao proibir o
autoconhecimento e exploração do próprio corpo antes do casamento e, depois dele, torna o
sexo uma obrigação. Por outro lado, ao considerar o ato sexual como um ato sagrado, oferece
ao casal a possibilidade de investir tempo, energia e recursos para construir intimidade e
satisfação conjugal e sexual. A outra força provém dos meios de comunicação,
comportamentos coletivos, grupos e instituições; está ligada à “Modernidade Líquida” de
Bauman (como citado em Féres-Carneiro, 2011), em que as relações afetivas se configuram de
forma efêmera, individualistas, o sexo não está restrito ao matrimônio e a busca pelo prazer é
Estudos de Sexualidade 3

incentivada para homens e mulheres (COSTA E MOSMANN, 2015; FÉRES-CARNEIRO,


2011).
É importante ressaltar que a vivência sexual e conjugal dentro de um mesmo par
heterossexual promove experiências diferenciadas a cada um de seus membros de acordo com
seu gênero. Segundo Jablonski (1991/1998), citado por Diniz (2013), foi só a partir da primeira
metade do século XX que mudanças começaram a surgir a respeito do direito concedido apenas
aos homens de viver sua sexualidade mais livremente e sua satisfação sexual era a única que
importava. A realidade das mulheres era, e ainda é marcada pelo controle sobre seus corpos e
a associação entre sexo e maternidade. O exercício da sexualidade feminina sofreu mudanças 257

significativas a partir dos movimentos de emancipação das mulheres e do surgimento de


métodos contraceptivos seguros, que possibilitaram às mulheres o exercício da vida sexual sem
o casamento. O autor aponta que passaram a ser admitidos com maior naturalidade a
participação ativa da mulher na vida sexual do casal, o prazer feminino e a preocupação dos
homens com a satisfação sexual de suas esposas.
Figueiredo e Diniz (2018), apontam que a ampliação dos espaços ocupados pela mulher
para além do âmbito privado, permitindo a elas a entrada no mercado de trabalho, criou nos
lares a configuração da dupla-carreira, em que ambos os cônjuges se dedicam às suas carreiras.
Essa nova configuração promoveu mudanças na divisão de tarefas; porém, no lugar de uma
divisão igualitária, é observada uma sobrecarga das mulheres, que acumulam as
responsabilidades domésticas e profissionais. Assim, a conjugalidade promove um aumento da
qualidade de vida dos homens enquanto diminui a das mulheres, o que influencia na expressão,
percepção e lugar da sexualidade na vida dos indivíduos. As responsabilidades crescem com a
parentalidade, que também é vivenciada de maneira distinta pelos membros do par conjugal,
especialmente pelas exigências da maternidade idealizada, que incentivam as mulheres a
realizarem sacrifícios pessoais para a dedicação à família (ALBERTUNI e STENGEL, 2016).
Dessa forma, podemos delinear duas perspectivas que influenciam os indivíduos na
atualidade: uma, com aspectos tradicionais e religiosos que restringe o sexo ao matrimônio,
reprodução e possui papéis definidos e desiguais de gênero; e outra, de caráter tido como
moderno, que prioriza o prazer em detrimento das relações duradouras e possibilita às mulheres
mais igualdade de direitos e prazer (COSTA E MOSMANN, 2015; DINIZ, 2013; FÉRES-
CARNEIRO, 2011; HOFFMANN E COSTA, 2019).

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Estudar a sexualidade na conjugalidade diante dos conflitos entre as concepções tradicionais e
modernas.
Objetivos específicos
-- analisar os aspectos da saúde sexual na conjugalidade vigente;
-- discutir a influência das transformações do ciclo de vida na vivência sexual dos
casais.

3. METODOLOGIA
Foi realizada uma revisão narrativa de literatura em que a busca é exploratória, não é
exigida uma sistematização de critérios rigorosos para a seleção dos documentos e o viés do
pesquisador guia sua triagem (FARENHOF, 2016). A busca dos artigos foi realizada nas
plataformas Google Acadêmico, Pepsic e Scielo, considerando o período de 2014 a 2019 e
utilizando as palavras-chave: “conjugalidade” e “sexualidade”.
A partir dessa busca foram selecionados 15 artigos científicos escritos em língua
portuguesa que abordavam a vivência da sexulidade na conjugalidade heterossexual.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

4. DISCUSSÃO
Nos artigos estudados foram explicitados desafios que os casais da atualidade
enfrentam ligados à sexualidade, alguns envolvendo os valores modernos, outros os
tradicionais, influências das duas forças concomitantemente ou desafios considerados naturais
do ciclo de vida humano.
Lenzi e Lenzi (2018), abordam como os indivíduos estão cercados de informações
superficiais sobre sexo que estabelecem a intensificação do prazer como meta, determinando
258
o que é normal e anormal e esses padrões introjetados podem criar um discurso de fracasso
pelos casais quando não atingem o que é considerado como norma de frequência sexual ou
prazer. Tal fenômeno impede o experienciar, empobrece a presença dos indivíduos no contato
e a sua autonomia, aspectos que foram incentivados e desenvolvidos a partir do processo
terapêutico de casal nesse estudo de caso (LENZI E LENZI, 2018). Os autores explicitam
desvantagens da valorização hedonista moderna quando os indivíduos criam expectativas e
normas de comportamento tendo o prazer como principal finalidade e assim corroboram com
o defendido por Hoffmann e Costa (2019): a importância da dedicação de tempo e energia para
construir intimidade e satisfação conjugal e sexual.
Já Fleury e Abdo (2017), denunciam sequelas dos valores tradicionais quando
identificam como um dos principais desafios na terapia de casal para tratar disfunções sexuais
trabalhar a dinâmica de poder entre os membros e questões de gênero. Nesses casos, a terapia
busca estabelecer um contexto de segurança para desenvolver mais igualdade, sintonia e
responsabilização sobre a relação.
Thorstensen (2017), explicita atritos entre os ideais tradicionais e modernos da
sexualidade ao abordar a disparidade de frequência do desejo sexual entre os membros do par
conjugal. Afirma que as mulheres acreditam no discurso atual de igualdade de papéis, desejos
e necessidades, estão satisfeitas com a frequência sexual e não conseguem conceber que seus
companheiros não estão, o que gera nestes um sentimento de rejeição expresso por meio de
comportamentos irritadiços. A autora defende, citando a lacaniana Colette Soler (1998), que o
desejo do homem é “soberano”, já que sem ereção não há cópula, que esse fato organiza as
posições masculinas e femininas sexualmente desde sempre até a atualidade e as mulheres
precisam lidar com isso. Assim, a autora também denuncia sofrimentos provocados pelos
papéis de gênero; entretanto, ao contrário de Fleury e Abdo (2017), que procuram promover
relações mais igualitárias, ela confirma a submissão do desejo feminino ao masculino e
responsabiliza apenas a mulher e não o casal ou o paradigma tradicional pelo desconforto.
Silvério (2014), ao estudar casais swingers, explicita o paradoxo dos casais
contemporâneos frente a valores novos e antigos. Para a autora, na prática de troca de casais
predomina o que ela nomeia de “heteronormatividade liberal”: as mulheres podem expressar
sua sexualidade mais livremente do que os homens, uma vez que práticas homossexuais
femininas são aceitas, enquanto as masculinas põem em xeque a masculinidade de todos os
homens envolvidos. Entretanto, muitas mulheres iniciam as práticas não por vontade ou desejo,
mas sim por pressão do companheiro. No universo swinger há casais orientados por “ideais
contemporâneos de sexualidade, gênero e conjugalidade: igualdade, respeito, reciprocidade,
sinceridade, confiança, comunicação aberta e uma sexualidade voltada para o prazer” (p. 136),
que conseguem se aproximar desses ideais em seu discurso e práticas e há casais orientados
por valores hierárquicos de gênero que performam esses valores mesmo com o swing. É
possível afirmar que a definição da autora dos ideais contemporâneos de sexualidade, gênero
e conjugalidade se aproxima da definição de saúde sexual utilizada no Caderno de Atenção
Básica – Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva do Ministério da Saúde (2013), ambos valorizam
Estudos de Sexualidade 3

os aspectos de comunicação, respeito, igualdade e prazer na sexualidade, enquanto os valores


tradicionais trazem submissão e coerção das mulheres.
Rôsier e Alcântara (2014), discutem os papéis de gênero da conjugalidade a partir das
queixas sexuais dos indivíduos. Segundo as autoras, os casais criariam um protocolo com uma
sequência de comportamentos sexuais que é seguido e repetido. Nas queixas femininas
perpassa o desejo de mais envolvimento emocional durante a relação e, para os homens, a
insatisfação vem da pouca frequência e variedade sexual.
Fontainhas (2019), relata resultados semelhantes ao descrever duas visões sobre a
sexualidade, uma envolvendo amor e intimidade e outra considerando-a uma necessidade 259

biológica que exige penetração. A primeira foi ligada aos sujeitos do sexo feminino e a segunda
do masculino. Em sua pesquisa, a autora encontra expressões dos valores que aqui chamamos
de modernos, como uma busca por igualdade de gênero, reciprocidade e prazer mútuo nos
discursos dos casais participantes; entretanto, de maneira semelhante ao que observou Silvério
(2014), tais valores muitas vezes estão presentes apenas do discurso de determinados casais.
Ao analisar as práticas sexuais adotadas, afirma que algumas delas refletiam valores
falocêntricos e submissão do desejo feminino pelo masculino. A autora ainda relata que a
frequência sexual dos casais é influenciada por aspectos como estresse, ansiedade e conflitos
profissionais e parece diminuir ou cessar frente a gravidez, devido à visão cultural da mulher
durante a gestação. Essas pesquisas corroboram a de Jablonski (1991/1998), como citado por
Diniz (2013), sobre a moral tradicional determinar a sexualidade feminina a partir do controle
dos corpos das mulheres e associação à maternidade.
Gravidez e a parentalidade são eventos do ciclo de vida que afetam a sexualidade
conjugal e foram desenvolvidos em cinco dos artigos encontrados. Há um consenso de que
rotina, responsabilidades, prioridades, personalidade e o corpo da mulher sofrem alterações e
um dos aspectos mais afetados na vida do casal com a chegada do primeiro filho é a
sexualidade. A frequência sexual diminui, é interrompida no puerpério e posteriormente muitas
vezes não ocorre com a mesma espontaneidade, tendo de ser programada. É descrita uma
percepção maior do marido quanto às mudanças na sexualidade com a parentalidade e seu
interesse de que as coisas voltem a ser como eram (MEDEIROS et al., 2016; DUARTE E
ZORDAM, 2016; JESUS E AZEVEDO, 2017; ROCHA et al., 2015).
Medeiros et al., (2016), estudam a sexualidade de casais com crianças e adolescentes
autistas, ao desenvolver sobre as queixas com relação a baixa frequência sexual provirem mais
dos membros do sexo masculino. Considera que a dedicação à maternidade pode fazer com
que a mulher deixe de dar atenção a outros papéis em sua vida e acabe não percebendo que sua
sexualidade está sendo negligenciada, especialmente quando um dos filhos tem um
desenvolvimento atípico. Tal observação também pode escancarar maiores cobranças sociais
com relação à maternidade do que à paternidade, evidenciando novamente o papel
regulamentador dos estereótipos de gênero e a visão da sexualidade e existência feminina
estritamente ligada a maternidade (ALBERTUNI e STENGEL, 2016).
Albertuni e Stengel (2016), explicam que o ideal de maternidade exige das mulheres
sacrifícios, amor e dedicação incondicionais aos filhos com um apagamento de si mesmas,
dessensibilização das suas próprias necessidades em prol do cuidar altruísta da prole, o que
contextualiza a baixa consciência ou queixa sobre a diminuição da frequência sexual por parte
das mães. As exigências sociais vigentes da paternidade incentivam um maior envolvimento
dos pais nos cuidados com os filhos, mas os discursos dos pais do estudo de Jager e Bottoli
(2011), revelam que estes ainda consideram o envolvimento no cuidado como uma
responsabilidade da mulher. Apesar da paternidade significar uma mudança estrutural para
esses sujeitos, sua vida acaba não sendo tão transformada com a chegada do primeiro filho
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

quanto a da esposa e suas preocupações estão mais voltadas a exercer o papel de provedor
(JAGER E BOTTOLI, 2011).
Segundo Vilar e Rabinovich (2014), na transição para a parentalidade, quando o casal
possui um vínculo significativo e boa comunicação, consegue explorar o prazer de maneiras
novas e há uma satisfação maior com a relação e a sexualidade a partir de uma sensação de
maior união, amadurecimento e admiração. Entretanto, quando a comunicação não é
desenvolvida, a parentalidade pode ser vivida como um momento de crise conjugal,
distanciamento sexual e afetivo. Tais observações vão ao encontro de Simões e Both (2013),
260
que afirmam que quando há abertura por parte do casal as mudanças do ciclo de vida podem
fortalecer e trazer mais satisfação a relação.
Azambuja e Jaeguer (2016) e Campos et al., (2017), descrevem a sexualidade em
casamentos de longa duração em que os indivíduos estão passando por mudanças em seus
papéis sociais como provedores e pais e percebendo mudanças em seus corpos e do
companheiro. Os dois artigos enfatizam a diminuição do ato sexual nessa etapa do ciclo de
vida sendo percebida como um acontecimento natural e é observada uma ampliação e
aprofundamento das trocas afetivas devido a aspectos como o conhecimento do parceiro, o
fortalecimento do vínculo conjugal com o tempo e as experiências vividas juntos.
Carvalho et al., (2018) encontram em sua pesquisa sobre casais no climatério que o ato
sexual frequentemente ocorre com o objetivo de satisfazer o marido e passivamente por parte
das mulheres, confirmando Jablonski (1991/1998), como citado por Diniz (2013) ao explicitar
a concepção patriarcal que reconhece apenas o prazer masculino. O climatério foi observado
como uma oportunidade de ressignificação do corpo e do prazer. Foram relatados diminuição
da quantidade de sexo e em alguns casos aumento da sua qualidade com mais do diálogo,
intimidade e trocas de afeto.
Lima et al., (2015), estudando a sexualidade de casais em que um cônjuge sofre de
demência, encontra resultados similares sobre a diminuição do coito com a progressão da
doença e a possibilidade de aumento do repertório de comportamentos afetivos e íntimos entre
o casal. Assim, Azambuja e Jaeguer (2016), Campos et al., (2017), Carvalho et al., (2018) e
Lima et al., (2015) também ratificam Simões e Both (2013), que apresentam a possibilidade
dos casais fluírem com as mudanças e ampliarem a sexualidade além da genitalidade ao
envelhecerem juntos quando há abertura, comunicação e não prevalecem visões morais que
condenam o prazer ou permitem o ato sexual apenas com fins procriativos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sexualidade na conjugalidade sofre alterações ao ter de fluir com os acontecimentos
do ciclo da vida de seus membros. Apesar do conceito de sexualidade estar se ampliando na
atualidade de forma a contemplar mais aspectos do que identificamos como saúde sexual
(como igualdade, respeito mútuo, comunicação e prazer), a literatura evidencia que as práticas
sexuais no matrimônio ainda estão pautadas nos valores patriarcais, fálicos e de papéis sociais
hierárquicos de gênero.
A sexualidade é ressignificada especialmente em momentos de “crise”, como a
gestação, parentalidade, adoecimento ou envelhecimento, quando o casal se percebe impedido
de seguir com a norma procriativa que valoriza especialmente o coito vaginal e tem a
oportunidade de ampliar a sexualidade para demonstrações de afeto, se comunicar, aprofundar
seu sentimento de união e companheirismo, apesar das mulheres já valorizarem e se queixarem
da falta desses aspectos.
A perspectiva moderna da sexualidade também pode trazer sofrimento aos indivíduos
quando a intensidade do prazer sexual se torna uma norma e principal finalidade e a liquidez
das relações não permite o desenvolvimento da intimidade e comunicação que possibilitam a
Estudos de Sexualidade 3

ampliação da sexualidade com a afetividade. A terapia de casal se mostrou uma estratégia para
que os casais possam perceber os introjetos modernos e tradicionais que estão tentando
reproduzir e devolver aos indivíduos sua criatividade, autonomia e permissão de explorar sua
sexualidade de maneira saudável.

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Estudos de Sexualidade 3

Homofobia no ambiente de trabalho formal

Lucas Matheus Da Silva Barba

263

RESUMO
A homofobia e a discriminação contra pessoas homossexuais no ambiente de trabalho tem sido
assunto muito abordado na atualidade devido à importância e gravidade do mesmo,
principalmente pelos danos emocionais e psicológicos que acontecem em decorrência dessa
discriminação. Diante disso, sendo o espaço de trabalho um lugar de desenvolvimento e
ascensão profissional, o que interfere diretamente na qualidade de vida das pessoas, esse estudo
tem a proposta de discutir sobre formas de combater essa violência por meio da educação
sexual, reflexão crítica sobre estereótipos e estigmas naturalizados socialmente e sobre a
importância das mudanças legais para garantir o direito de liberdade de pessoas homossexuais,
para que elas não sejam impedidas e prejudicadas no desenvolvimento de sua carreira
profissional.

Palavras-chave: Homossexualidade; homofobia; discriminação sexual no ambiente de


trabalho; educação sexual.

ABSTRACT
Homophobia and discrimination against homosexual people has been a subject that is very
much addressed today due to its importance and severity, mainly due to the emotional and
psychological damage that happens as a result of this discrimination. In view of this, since the
work space is a place of professional development and advancement, which directly interferes
in people's quality of life, this study aims to discuss and reflect on ways to combat this violence
through sex education, critical reflection on stereotypes and socially naturalized stigmas and
the importance of legal changes to guarantee the right of freedom for homosexual people, so
that they are not hindered and hampered in the development of their professional career.

Keywords: Homosexuality; homophobia; sexual discrimination in the workplace; sexual


education.

1. INTRODUÇÃO
Para Santos (2016), a homossexualidade pode ser definida de três formas: 1. Situação
pela qual uma pessoa sente desejo sexual por alguém do mesmo sexo, o que é considerado uma
possibilidade de manifestação da sexualidade humana; 2. Predominância das interpretações
científicas, desejos por pessoas do mesmo sexo biológico; 3. Homossexualidade como
orientação afetiva e não opção, de acordo com a psicologia moderna.
Anjos (2002) afirma que a homossexualidade é definida em outro nível, considerada
uma característica humana, na qual não existe um significado de superior ou inferior, bom ou
ruim, mas de diferente do que a sociedade considera normal, que são os relacionamentos
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

heterossexuais assim é algo que não se compara e que exige respeito tanto quanto qualquer
outra prática sexual.
Não é possível falar sobre homossexualidade sem pensar em afeto. Homoafetividade é
a relação afetiva entre pessoas do mesmo sexo que desejam o reconhecimento social e legal de
seus direitos pela formação de sua parceria. É o direito de pessoas homossexuais a realizar
procedimentos formais em nossa sociedade, como casar e construir uma família e serem
respeitadas por isso tanto quanto pessoas heterossexuais (DIAS, 2007).
De acordo com Santos e Bernardes (2008), o tema é de extrema relevância, pois as
264
manifestações de homossexualidade causam um visível incômodo em parte das pessoas
heterossexuais que olham excessivamente, pelas pessoas que evitam olhar e pelas pessoas que
olham e não veem. Há uma variação nesses olhares: alguns são hostis, preconceituosos,
curiosos, medrosos. Por medo do contágio, por acreditarem que é algo que pode ser contagioso,
perigoso, por preconceito gerado por meios de estigmas e estereótipos negativos contra pessoas
que se relacionam afetivo-sexualmente com outras pessoas do mesmo sexo. Isso se evidencia
nos olhares, gestos, palavras, contato físico ou não contato físico em relação as pessoas
denominadas homossexuais.
Os autores também nos dizem que:
[...] Em 1973, no DSM II (Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúrbios Mentais), a vivência
homossexual aparecia como uma categoria diagnóstica e as pesquisas clínicas enfocavam a
homossexualidade como patologia. Fazia-se sua avaliação, buscando-se as causas, para proceder-se a
uma reorientação de gays e de lésbicas no sentido de tornarem-se heterossexuais. Em 1975, Conger
enfatizava a necessidade de os psicólogos tomarem consciência e implementarem iniciativas para
remover o estigma de doença mental que vinha sendo associado há tanto tempo a gays e lésbicas (apud
Esther Rothblum, 1994a). Quando, em 1980, o DSM III retirou a homossexualidade da categoria de
doença mental, revistas de psicologia clínica interromperam a publicação de artigos sobre o tema e tem
sido dada pouca atenção à saúde mental de gays e de lésbicas.
[...] Este passado recente de patologização da homossexualidade ainda exerce forte influência no campo
da saúde mental de mulheres e de homens, principalmente sobre aqueles que a vivenciam (SANTOS E
BERNARDES, 2008, p. 292).

Ainda hoje a homossexualidade é estigmatizada nas sociedades ocidentais, em maior


ou menor grau, dependendo do país. Nas últimas décadas alguns países desenvolveram normas
para coibir a discriminação contra minorias, por exemplo: na maioria dos países o racismo é
fortemente proibido e manifestações racistas são desencorajadas. No caso das minorias sociais
sexuais os avanços não são os mesmos, pois nos últimos 20 anos, entre 86 nações, há uma
tendência à discriminação das relações afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Diante
disso constata-se uma grande variedade na forma de tratamento entre homossexuais, pois em
alguns países a Constituição assegura os direitos das pessoas homossexuais, enquanto outras
os punem severamente. Desta forma, apesar de a Constituição brasileira proclamar e assegurar
o bem-estar de todos, independentemente de raça, sexo e origem, podemos dizer que ser
homossexual ainda é uma questão mais preocupante do que ser negro, deficiente físico e
mulher, pois ser homossexual é ser estigmatizado (LACERDA, PEREIRA, CAMINO, 2002).
Embora o texto tenha sido escrito em 2002, a estigmatização é visível nas agressões
sofridas por homossexuais. Apenas como exemplo, a Folha de São Paulo, 2010, relata a história
de um rapaz homossexual que foi agredido por outros 5 rapazes com uma lâmpada flourescente
na Avenida Paulista. Em depoimento para a polícia, um dos rapazes disse que agrediu o outro
“porque ele é veado”.
Segundo Pereira e Ayrosa (2010), estigma é definido como uma atribuição depreciativa
baseada em características psicológicas e físicas e está sempre relacionada a algo com
significado negativo da identidade de um indivíduo ou determinado grupo e serve como um
rótulo para se estabelecer identidades desviantes. É uma marca depreciativa, que varia de
Estudos de Sexualidade 3

cultura para cultura, não é natural, mas sim aprendido no decorrer da vida e passado de geração
para geração, e indivíduos que fazem parte de um grupo estigmatizado estão mais suscetíveis
a serem alvos de preconceito e discriminação. Sendo assim, o indivíduo ou grupo que carrega
um estigma questiona a própria humanidade quando se sente inadequado aos olhos das outras
pessoas e, muitas vezes, não se sente pertencente ao contexto social em que está inserido.
O estigma, com o preconceito e a discriminação dele decorrentes, influenciam na forma
como a pessoa homossexual se constrói e se apresenta socialmente e, dependendo do grau de
aceitação que encontra ou não em determinado ambiente, define-se o grau de exposição ou
ocultamento, em espaços de aceitação ou hostilidade, onde a pessoa homossexual pode ou não 265

sofrer discriminação. Ou seja, o estigma afeta a construção e a expressão de identidade da


pessoa homossexual e isso varia em diversas fases da vida do indivíduo estigmatizado, pois
essa construção se dá pela própria aceitação e da aceitação do outro (PEREIRA E AYROSA ,
2010).
Hoje esse preconceito recebe o nome de homofobia e é compreendida:
[...] como “representando sentimentos emocionais de ansiedade, aversão, raiva, desconforto e medo que
heterossexuais podem experimentar em contato com pessoas homossexuais”. A discriminação do gay no
ambiente de trabalho faz com que o sujeito se mantenha no armário, in closeted, ocultando sua própria
identidade, acarretando prejuízos, inclusive para a sua saúde em todas as suas dimensões – física,
emocional e mental. Dessa forma, estudos que permitam compreender as dinâmicas sociais relacionadas
ao indivíduo gay nas organizações tornam-se necessários para se levantar propostas de medidas de
prevenção e de combate à violência e à estigmatização do gay na sociedade contemporânea, resgatando
antes de tudo, a sua cidadania. A não aceitação, em diferentes graus, e a discriminação contra pessoas
homossexuais e a rejeição do que em determinada cultura ou grupo se considera manifestações de
homossexualidade constituem a homofobia. Isso nem sempre acontece de forma explícita, muitas vezes
essas manifestações são silenciosas e sutis. Os estigmas e estereótipos relacionados à homossexualidade,
sempre ligados a condutas negativas, são as principais fontes do preconceito e discriminação (SANTOS,
2016; V Encontro De Estudos Organizacionais Da ANPAD, 2008, p. 2).

Apesar das transformações sociais e modificações de costumes culturais, os


homossexuais seguem sendo hostilizados socialmente quando suas relações homoafetivas e
orientações sexual tornam-se públicas. Decorrente de muita luta a sociedade tem aprendido a
respeitar homossexuais, mas por outro lado existem grupos que fazem com que as
manifestações homofóbicas continuem (SANTOS, 2016).
Pompeo e Souza (2019), afirmam que uma cultura heterossexual constrói uma lógica
heteronormativa que faz com que a sociedade e as organizações privilegiem heterossexuais e
consideram que suas práticas são naturais e fundamentais, como algo sendo normal dentro da
sociedade. Portanto, é a heteronormatividade que dita quais são as expressões de gênero e
sexualidade que são consideradas normais e quais não são, qualificando pessoas homossexuais
como anormais e falhas. Assim se cria uma hierarquia social entre heterossexuais e
homossexuais, o que mostra que a heteronormatividade serve para controlar o comportamento
de ambos os grupos. Diante disso percebe-se que homens com crenças e valores limitantes
sobre a sua própria masculinidade usam do humor sexista como forma de autoafirmação
masculina. Eles se divertem ao realizar piadas sexistas e homofóbicas porque essas piadas tem
a função de defesa em eventuais ameaças a sua masculinidade.
O espaço de trabalho não está isento de manifestações homofóbicas, segundo Santos
(2016, s/n):
[...] O direito humano à não discriminação é a defesa das pessoas segregadas, inclusive, devido à sua
orientação sexual. Quando a Constituição considera invioláveis a intimidade e a vida privada, há um
limite estabelecido ao poder empresarial de questionar sobre o modo como o empregado conduz sua vida
pessoal, exceto quando isso traga alguma repercussão negativa no resultado do seu trabalho. A orientação
sexual do subordinado não diz respeito ao empregador, nem pode servir de pretexto para justificar
perseguições.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

O trabalho é um aspecto cultural em nossa sociedade que ocupa um papel muito


importante na vida de um indivíduo, pois são nas organizações que as pessoas sonham e tentam
se realizar profissionalmente, o que também traz realização pessoal e perspectivas financeiras.
Nesse ambiente, o indivíduo passa por vivências positivas e negativas, no seu desenvolvimento
pessoal e profissional, e muitas dessas vivências podem ser responsáveis pelo adoecimento
físico e psíquico do profissional. Independentemente de ser uma organização pública ou
privada e da área de atuação, uma das grandes causas desse adoecimento é a discriminação do
que é considerado diferente da recusa do outro, e da intolerância à diversidade e um dos grupos
266
mais discriminados nas organizações são os dos homossexuais. O indivíduo homossexual que
se empenha em seu estudo e trabalho, muitas vezes, se sente desamparado diante de situações
de discriminação e homofobia (V Encontro De Estudos Organizacionais Da ANPAD, 2008, p. 2).
O ambiente de trabalho pode ser considerado uma extensão da vida pessoal e pública,
onde o indivíduo leva suas práticas cotidianas e seus valores e o comportamento discriminativo
mais comum nos ambientes de trabalho é a violência moral, que pode ser compreendida como
toda e qualquer conduta abusiva que pode ser feita por palavras, atos, gestos, e escritos que
pode trazer dano à personalidade e dignidade do indivíduo ou que coloque a integridade física
e psíquica do mesmo em risco ou até mesmo o seu emprego. Essa violência acontece de forma
contínua; o indivíduo passa por diversos abusos, e suas resistências psicológicas são esgotadas
pelo abusador ou abusadora a ponto do constrangimento e humilhação se tornarem
características do seu ambiente de trabalho. Desta forma, o indivíduo é invadido em sua
subjetividade pela desqualificação, pelo isolamento e pela falta de comunicação. Essa
desvalorização ocorre quando o grupo estigmatiza o sujeito e não respeita a diversidade e esse
tipo de violência, na grande maioria das vezes, não acontece de forma explícita (V Encontro De
Estudos Organizacionais Da ANPAD, 2008, p. 3).
Diante disso, Nunes (2017 p. 8), afirma que:
[...] A população LGBT têm conquistado direitos e se posicionado perante a sociedade, além de ter se
inserido no mercado. No entanto, o preconceito continua sendo uma realidade para essas pessoas em
todas as esferas da vida, inclusive a profissional. Esforços e ações voltadas para algumas minorias sociais
são relativamente comuns dentro das empresas, porém cabe investigar se a diversidade sexual é
contemplada da mesma forma.

Especificamente o indivíduo homossexual vive situações fragilizadas nas organizações


quando tem sua orientação sexual revelada. Nesse caso ele pode vivenciar situações
constrangedoras e humilhantes, como piadas homofóbicas, tratamento desigual com os demais
funcionários e problemas na ascensão de sua carreira. O medo da discriminação é uma das
principais preocupações de indivíduos homossexuais, além de toda sua história de vida de
sofrimento na aceitação da própria sexualidade, da repressão, por vezes familiar, e de
preconceito isso faz com que muitos optem por não revelar sua sexualidade em seu ambiente
de trabalho (V Encontro De Estudos Organizacionais Da ANPAD, 2008, p. 3).
[...] No contexto organizacional, o indivíduo gay é objeto de injustiças sociais e de situações que
degradam o seu ambiente de trabalho. Ele é muitas vezes desprezado e não tem os mesmos direitos que
os heterossexuais, além de vivenciarem práticas homofóbicas, de perseguição e de menosprezo. Dessa
forma, no contexto da diversidade cultural no ambiente de trabalho, pode-se dizer que um dos grupos
mais marginalizados nas empresas é o dos gays, porque, devido à homofobia e à discriminação, eles são
obrigados, muitas vezes, a não revelar a própria identidade (não que esta seja considerada como fixa, de
acordo com os pós modernos), a fim de não serem prejudicados em suas carreiras profissionais. Nesse
sentido, no âmbito dos estudos organizacionais, é mister analisar algumas dimensões da diversidade não
tão lembrados pela teoria, nem pelas empresas, que necessitam ser debatidos em toda a sociedade (V
Encontro De Estudos Organizacionais Da ANPAD, 2008, p. 4).
Estudos de Sexualidade 3

Segundo Conjur (2019), no dia 13 de junho de 2019 o Supremo Tribunal Federal


declara que, enquanto não houver uma lei específica para casos de homofobia e transfobia,
esses crimes serão igualados aos crimes de racismo.
[...] O colegiado também fixou tese no sentido de que a repressão penal à prática da homofobia "não
alcança nem restringe o exercício da liberdade religiosa", desde que as manifestações não configurem
discurso de ódio.
[...] Na prática, por 10 votos a 1, fica reconhecida a mora do Congresso em legislar sobre a homofobia e
a transfobia. Por 8 votos a 3, o colegiado entendeu que a homofobia e a transfobia enquadram-se no
artigo 20 da Lei 7.716/1989, que criminaliza o racismo.
267
Os ambientes de trabalho que são foco desse estudo são os considerados formais,
aqueles que se preocupam se a conduta e escolha do funcionário terá algum impacto com a
imagem de sua empresa e em seus clientes, que podem não saber bem como lidar com a
diversidade sexual de seus empregados.
2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Refletir sobre a homofobia no ambiente de trabalho.
Objetivos específicos
Apontar os impactos da discriminação e homofobia no ambiente de trabalho, como a
estagnação na carreira, o adoecimento físico e mental e formas de enfrentamento do mesmo.

3. METODOLOGIA
Este estudo é de ordem exploratória e refere-se a uma revisão narrativa de literatura,
foram utilizados livros acadêmicos e artigos científicos publicados nos últimos 18 anos. De
acordo com as consultas realizadas às bases de dados, foram encontrados 173 artigos na da
Scielo e 5 artigos no Lilacs artigos sobre homofobia, sendo reduzidos a 98 artigos a partir dos
critérios de exclusão aplicados; textos em língua portuguesa e temas não repetidos recentes e
com a leitura dos resumos foram descartados os artigos cujo as temáticas não correspondessem
aos objetivos da pesquisa, restando 15 artigos.

4. DISCUSSÃO
O ato de violência tem como função promover na pessoa agredida algum nível de
privação, ou seja, não precisa ser uma violência física, propriamente dita, mas sim a capacidade
de alguém de tirar algo importante da pessoa agredida. No caso de preconceito com as pessoas
homossexuais, essa privação pode estar relacionada a sua vida pessoal e aos seus direitos como
cidadão e essa violência não os impede apenas de ser o que eles gostariam, mas de se realizar
como indivíduo (SIQUEIRA, SARAIVA, CARRIERI, LIMA e ANDRADE, 2009).
Blume (2017), afirma que a homofobia tem muitas faces, mas que as formas mais
comuns de violência contra homossexuais são: agressão verbal e moral; violência psicológica;
agressão física (empurrões, espancamentos e afins); agressão sexual (estupro) e tentativa de
assassinato. O autor cita dados da Secretaria de Segurança Pública de São, que afirmam que
entre os crimes de ódio, a homofobia é uma das mais recorrentes, pois em um ano as
ocorrências de crimes de ódio estão relacionadas à discriminação sexual, superando as
ocorrências de intolerância racial.
Os espaços sociais onde os indivíduos desenvolvem a sua vida são nos ambientes
familiares, sociais e profissionais, porém é no espaço profissional que o indivíduo homossexual
é mais discriminado e onde a discriminação pode ser medida em termos judiciais. Os processos
judiciais que envolvem discriminação, 59% dos casos dizem respeito a situações e
acontecimentos em ambiente profissional, sendo eles acionados na Justiça ou não. 62% de
homens gays e 59% de mulheres lésbicas dizem que já sofreram algum tipo de discriminação
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

no trabalho, e a queixa mais frequente é sobre a discriminação implícita, o que mostra que essa
discriminação acontece de forma sutil (POMPEO E SOUZA, 2019).
As formas de discriminação identificadas são classificadas como forma/direta e
informal/indireta:
[...] A discriminação formal/direta manifesta-se nos normativos e procedimentos formais da organização,
seja pela ação ou pela omissão de normas e procedimentos que promovam justiça social e igualdade de
tratamento entre diferentes orientações sexuais. A discriminação informal/indireta ocorre por meio de
comentários inadequados, humilhações, ridicularizações e piadas manifestas no dia a dia nas interações
sociais entre pessoas, sendo que a discriminação informal afeta o ajustamento e satisfação no trabalho
268
de empregados gays, bissexuais e lésbicas (POMPEO E SOUZA, 2019, n. p.).

Nas empresas brasileiras a homofobia no ambiente de trabalho também é relatada feita


como forma de humor e piada. Comicidade, ironia, piadas e afins agem como instrumentos de
discriminação entre homens gays e mulheres lésbicas, naturalizando o desrespeito dentro do
espaço profissional, desrespeitando os profissionais homossexuais (POMPEO E SOUZA,
2019).
Além das dificuldades de ascensão profissional, as piadas e brincadeiras com
profissionais homossexuais os retratam sempre de forma caricata e pejorativa, relatadas como
causadores de constrangimento e incômodo dentre os homossexuais entrevistados pelos
autores. Os mesmos também dizem que a discriminação acontece, também, nas normas da
empresa ou na falta delas, quando falta clareza nas normas que regularizam a extensão do plano
de saúde para o parceiro do funcionário homossexual, assim como a extensão de outros
benefícios que são concedidos sem maiores problemas para funcionários heterossexuais
(POMPEO E SOUZA, 2019).
Viegas (2019), afirma que muitos líderes temem que a imagem do funcionário
homossexual seja vinculada à empresa, fazendo com que clientes percam a credibilidade em
sua marca e que isso os prejudique. Desta forma as empresas reproduzem o que é dito como
adequado na sociedade e a homofobia está presente na nossa população. Em contrapartida, as
empresas que se mostram preocupadas com a inclusão e respeito a diversidade sexual tendem
a ser mais produtivas, pois as pessoas são mais engajadas em um ambiente onde não há
discriminação, além de também virarem consumidoras.
Oliveira (2017), complementa, afirmando que é dever do empregador garantir um
ambiente de trabalho saudável e harmonioso, devendo inibir qualquer conduta que represente
discriminação sexual. E orienta que em caso de situações de constrangimento, comentários
maliciosos e situações vexatórias, satirizando a orientação sexual da pessoa homossexual, o
empregado deve ser advertido por escrito em sua conduta inadequada, a fim de que se possa
comprovar que a empresa tomou as medidas para combater a discriminação no ambiente de
trabalho.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos dados anteriormente apresentados, constata-se a urgência da sensibilização
e conscientização da sociedade sobre a importância do respeito a diversidade sexual como
forma de combate a homofobia e demais formas de discriminação sexual. É importante que as
pessoas entendam os impactos que a discriminação tem na vida e construção do indivíduo
homossexual, para que ele possa desenvolver e viver a sua sexualidade de forma livre.
Para isso é necessário refletirmos sobre como são destrutivas as ideias estigmatizadas
que são criadas e impostas socialmente sobre a representatividade do indivíduo homossexual
e que essas transformações sociais também precisam alcançar os espaços organizacionais para
que indivíduos homossexuais tenham qualidade de vida e psicológica para conseguir trabalho,
manter-se nele e, automaticamente, ter ascensão em suas carreiras.
Estudos de Sexualidade 3

Uma grande aliada nessa luta em combate a discriminação contra homossexuais seria a
educação sexual nas escolas, para que crianças e adolescentes aprendam desde cedo sobre
diversidade e respeito. Bem como devemos ser críticos a mídia que, em novelas, filmes e séries,
fazem a manutenção de estereótipos e estigmas que ridicularizam a figura de pessoas
homossexuais, muitas vezes os colocando em situações vexatórias. E a mudança na legislação
sobre crimes de homofobia, para que pessoas homossexuais se sintam acolhidas e amparadas
pela lei quando houver a necessidade de acionar a Justiça.

6. REFERÊNCIAS 269

ANJOS, G. Homossexualidade, direitos e cidadania. Sociologias. Porto Alegre. pp. 222-252, 2002. Disponível
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que-e/. Acesso em 13 nov 2020.
Conjur. Supremo aprova equiparação de homofobia a crime de racismo. Disponível em:
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LACERDA, M.; PEREIRA, C.; CAMINO, L. Um estudo sobre as formas de preconceito contra homossexuais
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NUNES, R.S. Homossexualidade e Ambiente de Trabalho: Contribuições da comunicação organizacional
para a gestão da diversidade sexual. 2017. Disponível em:
https://bdm.unb.br/bitstream/10483/18091/1/2017_RaulDaSilvaNunes_tcc.pdf . Acesso em 25 ago
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OLIVEIRA, Ludmilla. Discriminação sexual no ambiente de trabalho: Papel do empregador. JusBrasil,
2017. Disponível em: https://ludmillaoliveira.jusbrasil.com.br/artigos/521121604/discriminacao-sexual-
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PEREIRA, Severino Joaquim Nunes, AYROSA, Eduardo André Teixeira. Estigma, consumo e identidade de
gênero entre gays. In: IV Encontro de Marketing da ANPAD, 5, 2010. Florianópolis: ANPAD, 2010,
pp. 1-15. Disponível em: http://www.anpad.org.br/admin/pdf/ema299.pdf . Acesso em 03 ago 2020.
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VIEGAS, Claudia Mara de Almeida Rabelo. A discriminação e o preconceito do mercado de trabalho em função
da orientação sexual e identidade de gênero. The answer company – Thomson Reuters, 2019. Disponível
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de-trabalho-em-funcao-da-orientacao-sexual-e-identidade-de-genero.html. Acesso em 22 out 2020.
V ENCONTRO DE ESTUDOS ORGANIZACIONAIS DA ANPAD, 2008, Brasil: Eneo, p. 11. Tema:
Homofobia: Violência Moral e Constrangimentos no Ambiente de Trabalho. Disponível em:
http://www.anpad.org.br/admin/pdf/EnEO184.pdf . Acesso em 06 ago 2020.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

270

Aula virtual em 17 de outubro de 2020.


Estudos de Sexualidade 3

OBJETIFICAÇÃO FEMININA: EXTENSÕES E IMPACTOS

Luiza Pontes Vieira Carneiro

271

RESUMO
O presente artigo busca realizar uma conceituação e levantamento de estudos acerca de práticas
relacionadas à opressão da mulher, como a sexualização e objetificação do corpo feminino e o
male gaze. Para isto foi realizada uma revisão bibliográfica nas plataformas Scielo e BVS.
Pretende-se trazer à luz os múltiplos efeitos sofridos por mulheres diversas, prejuízos
psicossociais naquelas que lidam diariamente com estas realidades: da subjetividade e
construção de pensamento à própria forma de se comportar, autovigiar e enxergar-se.
Palavras chave: Gênero, sexualidade, comportamento psicossexual, objetificação,
sexualização.

ABSTRACT
The present article aims to conceptualize and raise data of practices related to women’s
opression like hipersexualization and objectification of the female body and also the male gaze.
In order to achieve that, a literature review was made in the platforms Scielo and BVS. The
goal is to enlighten the multiple effects suffered by diverse women: from subjectivity and
thought building to behavior, self-vigilance and self-image.
Keywords: Gender, sexuality, psychosexual behavior, objectification, sexualization.

1. INTRODUÇÃO
Desde os primórdios do que hoje chamamos de mídias, poderosos discursos são
veiculados por classes dominantes. Segundo Wolf (1992), os ideais da sociedade não surgem
do nada, eles provêm de algum lugar e servem a um projeto, geralmente de ordem financeira,
aumentando lucros de anunciantes que movimentam os meios de comunicação, mas também
servindo a um fim político. Mulvey (2001), trabalha que Hollywood não só criou uma
audiência para seus filmes que representasse uma identidade americana para seu próprio país,
mas também se tornou uma fonte fundamental da exportação do ideal americano para o restante
do mundo. Dentro deste contexto, ela aponta que a imagem criada das atrizes desde os
primórdios do cinema hollywoodiano é construída de forma que sua função é “serem olhadas”
(“to be looked at”). Com o enfraquecimento de instituições como a da dona de casa, à medida
que as mulheres se liberavam de obrigações como a maternidade, a domesticidade e a
passividade, o mito da beleza foi invadindo o espaço para assumir a tarefa de controle social
(WOLF, 1992).
Como apontado por Bordieu (apud BELMIRO et al., 2015), a dominação masculina
faz com que as mulheres existam primeiro pelo e para o olhar dos outros, enquanto objetos
receptivos, atraentes e disponíveis. Isto será trabalhado também por Fredrickson e Roberts
(1997), em sua teoria da objetificação, que será explorada na discussão deste artigo. Mulvey
(apud Sassatelli, 2015), afirma que, se o corpo feminino é uma zona de opressão, questões de
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

representação não podem ser ignoradas, tornando impossível conceber uma liberação do corpo
feminino sem analisar as representações opressivas do mesmo. Sendo assim, o tema segue
sendo extremamente relevante para o combate à opressão de gênero sofrida pelas mulheres.
Segundo Carr (2005), gênero é uma categoria demográfica com mensuráveis
repercussões sociais, culturais, políticas, econômicas e culturais para sujeitos individuais,
podendo também ser interseccionalizada com outros fatores contribuintes para nossa
identidade, como idade, classe e etnia. A objetificação sexual é uma forma de opressão de
gênero e consiste em fazer com que mulheres sejam mostradas ou vistas como apenas um corpo
272
ou uma coleção de partes do corpo separada de si e disponível para o uso por outros
(FREDRICKSON & ROBERTS, 1997). Ter desejo sexual pelos outros é um lugar comum, a
objetificação vai além do desejo até a desumanização (VASQUEZ et al., 2017). Heldman
(2012), desenvolveu um teste que busca identificar objetificação sexual em imagens, que
ocorre quando:
“A imagem só mostra parte ou partes do corpo da pessoa; quando é coberta a sua cabeça para aparecer
apenas partes do corpo; a pessoa é usada como apoio para objetos; uma imagem sensual de uma pessoa
é utilizada sem propósito (para vender um relógio, por exemplo); a imagem passa a ideia da violação da
integridade física de uma pessoa sem seu consentimento ou de outro tipo de violência, denotando alguém
vulnerável; a imagem sugere que a disponibilidade sexual é uma característica que define a pessoa; a
imagem mostra uma pessoa sendo exibida como mercadoria; o corpo da pessoa é usado como tela para
passar alguma mensagem” (HELDMAN, 2012 apud LOURENÇO, ARTEMENKO & BRAGAGLIA,
2014, p. 5).

A primeira consequência psicológica da objetificação sexual é o desenvolvimento de


uma perspectiva não natural de si mesma, denominada auto-objetificação: mulheres que
passam por este processo internalizam a perspectiva de observadores e monitoram-se,
antecipando como os outros vão julgar sua aparência e, subsequentemente, tratá-las
(CALOGERO, 2004). Além disso, o corpo feminino torna-se mais suscetível a desrespeito ou
até mesmo violência física sexual, sendo visto como “um objeto que se passa a mão ou usa
quando dá vontade” (LOURENÇO, ARTEMENKO & BRAGAGLIA, 2014, p. 4).
Para ilustrar também esta análise de como o corpo da mulher é representado e visto,
torna-se pertinente abordar o conceito do male gaze, cunhado por Laura Mulvey, teórica de
cinema feminista, se propondo a estabelecer uma discussão crítica e de gênero que investiga
os possíveis impactos de representações objetificadas e distantes das reais na subjetividade de
mulheres. Segundo Mulvey (1975), em uma sociedade baseada em desigualdade sexual, o
prazer em olhar foi dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino. Mulvey (apud
Sassatelli, 2015), indica ainda que a forma feminina cotidiana é muito diferente daquela
veiculada em imagens, filmes e propagandas, que não se refere à mulheres reais. Quanto a esta
última afirmação, O Instituto Patrícia Galvão aponta que 65% das mulheres brasileiras não se
identificam com a publicidade e nem com a forma que são retratadas pela mesma (apud
BELMIRO et al., 2015).
Esta problemática também favorece uma hipersexualização da figura feminina. Para
Bouchard e Boily (2005 apud Teixeira, 2015), a hipersexualização é um fenómeno que consiste
em atribuir caráter sexual a um comportamento ou a um produto que não o seja. Teixeira
(2015), aponta que devido à toda sua influência em diversas dimensões cotidianas da mídia
(moda, internet, música, etc.), este conceito tem impactos reais na sociedade. Estas dimensões
da mídia podem atuar como uma maquinaria pedagógica, que amplia as formas de educação
de corpos, produzindo uma generificação dos mesmos e um reforço do eixo binário entre
masculinidade e feminilidade (JOHANN E SCHWENGBER, 2013).
Estudos de Sexualidade 3

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Buscar na literatura científica fenômenos potencialmente prejudiciais à saúde de mulheres.
Objetivos específicos
-- Investigar como o processo de subjetivação das mulheres é influenciado por meio da
construção de um corpo fruto da sociedade patriarcal, marcado pela intervenção de fenômenos
como a objetificação, auto-objetificação, hipersexualização e male gaze. Sendo assim, algumas
investigações irão guiar a pesquisa:
-- O corpo feminino é retratado de forma objetificante de modo a retirar a condição de sujeito 273

pertencente à mulher
-- A condição de ter seu corpo sempre atrelado à um ideal cultural de apelo visual é um
potencial causador de desfechos negativos de saúde mental

3. METODOLOGIA
Para alcançar o objetivo proposto, foi conduzida uma revisão bibliográfica, através de
uma busca em portais acadêmicos durante o mês de julho de 2020. Inicialmente foram
buscados artigos em português nos portais SciElo e BVS com os seguintes termos:
“objetificação feminina” que gerou um resultado no Scielo (selecionado) e um no BVS
(retirado na fase de seleção - ver Figura 1). “Objetificação mulher” encontrou três artigos na
Scielo (todos selecionados) e um no BVS (não selecionado na identificação). “Male Gaze”
rendeu cinco resultados no Scielo (dentre os quais apenas um foi selecionado) e sete na BVS
(três retirados após análise dos resumos e outros três após leitura na íntegra por terem como
foco questões não abordadas em demais artigos, referentes alguma demografia muito
específica e diferente da brasileira). Após a obtenção de poucas fontes, a busca passou a ser
feita com os mesmos termos em inglês. “Female sexualization” gerou dez resultados no Scielo
(dois sendo selecionados após leitura de resumos) e vinte e sete na BVS, dentre os quais onze
resumos se demonstraram pertinentes, mas após leitura na íntegra, um a mais foi retirado.
“Sexualization” gerou nove resultados, dos quais três foram selecionados na Scielo.
Finalmente, foi feita uma procura por “objetificação sexual”, que não gerou resultados em
nenhum dos portais, mas sua versão em inglês (“sexual objectification”) encontrou quarenta e
seis artigos, sendo 21 selecionados (dois destes posteriormente excluídos por impossibilidade
de acesso). Foram retirados após a leitura na íntegra os artigos que se referiam a contextos
culturais muito específicos.
As buscas que encontraram resultados priorizaram artigos após 2014 devido ao baixo
número de publicações encontrado com exceção de “female sexualization” e “sexual
objectification”, únicas categorias nas quais foram selecionados artigos apenas a partir de 2018
pelo vasto número encontrado.
Os critérios de seleção levaram à escolha textos que trouxessem discussões acerca da
imagem do corpo feminino relacionado à mídia, sua representação, objetificação feminina,
auto-objetificação feminina, sexualização do corpo da mulher. Ao final, restaram vinte e nove
artigos.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

274

Figura 1. Metodologia.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao fim da pesquisa, seleção e leitura na íntegra de documentos pré-selecionados, vinte
e nove artigos se mostraram condizentes à temática deste trabalho. Todos eles estão presentes
na discussão abaixo, estando, portanto, também nas referências.
Na cultura ocidental, todas as mulheres estão imersas em sociedades heteronormativas
que seguem certos ideais de beleza e aparência, como o culto à magreza (MORENO-
DOMÍNGUEZ, RAPOSO & ELIPE, 2019). A sexualização neste cenário aumentou como
reação às conquistas de direitos e poder econômico das mulheres (BLAKE et al., 2017). Todos
os fatores elencados só são possíveis devido ao caráter histórico de controle do corpo feminino.
Witzel (2014), aponta para o fato de que este corpo foi tratado como “território de posse e
cultivo masculino”, por vezes ocupando o espaço de reprodutora, sagrada ou mundana,
misterioso, mas sempre vigiado.

Conceitualização
Teoria da objetificação
Fredrickson e Roberts (1997), desenvolveram uma teoria que almeja o entendimento
das consequências de ser mulher em uma cultura que objetifica sexualmente o corpo feminino.
De acordo com eles, a sexualização (seja ela explícita ou implícita) do corpo feminino na
cultura ocidental acarreta múltiplas consequências negativas para as mulheres. Essa teoria foi
corroborada através dos achados de diversos outros estudos (CALOGERO, 2004). Dentre as
consequências descritas encontram-se a auto-objetificação, que constitui no desenvolvimento
de uma perspectiva não natural de si mesma, internalizando o olhar do outro sobre seu corpo e
se monitorando em antecipação a como esse observador irá tratá-la e julgar sua aparência
(FREDRICKSON & ROBERTS, 1997).
A objetificação feminina é um processo que abrange inúmeros outros fatores de
opressão da mulher. Dentre eles, Barbosa, Romani-Dias e Veludo-de-Oliveira (2020),
Estudos de Sexualidade 3

trabalham a ideia de comodificação do corpo da mulher: O ato de transformar o corpo ou partes


do corpo de uma pessoa em uma commodity, que é um objeto comum, algo com pouca
diferenciação, mas com valor de uso, venda e troca, objetos de desejo econômico. Este
fenômeno ocorre não somente com o corpo, mas com a sexualidade, a moralidade e os
sentimentos da mulher. Quando um homem paga por pornografia ou uma prostituição, por
exemplo, ele está fazendo do corpo daquela mulher uma commodity sexual (BARBOSA,
ROMANI-DIAS E VELUDO-DE-OLIVEIRA, 2020).
Morris, Goldenberg e Boyd (2018), descrevem dois tipos de objetificação da mulher: a
objetificação pela sexualização e a objetificação focada na aparência. A primeira se refere à 275

quando as mulheres são objetificadas por características sexuais ou funções, como por exemplo
quando o corpo de uma mulher é utilizado em uma propaganda cujo produto anunciado nada
se relaciona (cerveja, hambúrguer). Estas mulheres são percebidas como possuidoras de menos
agência, habilidade de planejamento, autocontrole e atributos humanos únicos - que separam
humanos de outros animais, geralmente socialmente construídos - como moralidade (ou seja,
são animalisticamente desumanizadas). A objetificação por aparência, por sua vez, trata-se do
efeito da aparência destas mulheres estar sempre em pauta, mesmo quando não de forma
sexualizada. É como ocorre com as atrizes em eventos de red carpet, que recebem muito mais
perguntas sobre seu vestido ou cor de esmalte que sobre seus últimos trabalhos. Também é um
fenômeno recorrente com empresárias e mulheres na política. Mulheres objetificadas pelo foco
na aparência são associadas a objetos: elas são percebidas como tendo menos atributos de
natureza humana (como calor, vitalidade, etc.), ou seja, passam por uma desumanização
mecanística. Sendo assim, em vez do caso da objetificação sexual que passa por valores que
diferenciam humanos de outros animais, neste caso a associação é feita com robôs, máquinas
(MORRIS; GOLDENBERG; BOYD, 2018). Lameiras-Fernández et al., (2017), também
trabalham esta divisão em dois tipos, nomeando a objetificação focada na aparência de estética
ou decorativa, onde o corpo feminino tem a função de ser visto e admirado, como uma
escultura, inteiramente passiva.
Um exemplo ocorrido no Brasil de objetificação em mulheres de vida política foi o caso
das campanhas contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Carniel, Ruggi e Ruggi (2018),
apontam que em diversas peças de memes veiculados na internet, era notável a insistente
presença de esteriótipos de feminilidade (aparência, sensualidade), inclusive em fortes
comparações com Marcela Temer, a primeira-dama do vice-presidente e sucessor, mulher
jovem e dentro do padrão de beleza. Ocorria também tentativas de a deslegitimar como ser
autônomo tornando-a invisível e até mesmo menções a estupro, via adesivos de automóvel que
colocavam a figura de Dilma de pernas abertas colada ao tanque do carro.
As imagens sexualizadas tão banalizadas na mídia são amplamente consideradas
resultantes de culturas desiguais e de opressão feminina, no entanto, até mesmo em culturas
mais progressistas a sexualização vem sofrendo um notável aumento (BLAKE et al., 2017).
Em ascensão vemos também um dito empoderamento por meio da sexualização, onde
mulheres modernas se colocam de forma poderosa e sexual, e, ao passo que isto é amplamente
aceito no feminismo liberal por se tratar de uma provável escolha da própria mulher, muito se
debate sobre o quanto realmente sexualizar-se é empoderador, visto que o gosto pela
sexualização (enjoyment of sexualization) é uma pauta estudada e ligada a consequências
negativas para a saúde mental feminina (LAMEIRAS-FERNÁNDEZ et al., 2017).

Experimentos
Um estudo conduzido mostrou que o ato de experimentar um maiô já é um gatilho para
o sentimento de ter o corpo em estado de exibição, mesmo sem qualquer observador presente.
Mulheres nesta situação proposta experienciam mais body shame (que consiste em
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

envergonhar-se do próprio corpo), obtiveram pior performance em testes de matemática


aplicados e consumiram menos comida que mulheres usando suéter ou homens em qualquer
uma das duas condições (FREDRICKSON et al., 1998).
Em experimentos mais recentes, investigou-se como corpos hipersexualizados são
visualmente processados e descobriu-se que eles são interpretados e também analisados
cognitivamente como objetos. Por meio de testes que examinaram o N170, componente do
potencial relacionado ao evento (ERP) que reflete o processamento neural de rostos, objetos
familiares ou palavras, descobriram que mulheres exibidas em roupas de banho ou lingerie são
276
animalisticamente desumanizadas, têm status moral e mental negados, são percebidas como
menos ativas (“ativas” como no sentido contrário à passividade, ou seja, vistas como passivas)
e vistas de forma similar à objetos cotidianos (BERNARD et al., 2018). Descobriu-se também
que a vestimenta não é o fator mais relevante para a ocorrência da objetificação cognitiva, mas
sim, que a maior influência para que a mesma ocorra seria de posições corporais sugestivas
sexualmente, uma vez que ela representaria uma linguagem corporal convidativa e aberta à
atividade sexual. Ou seja, a objetificação cognitiva não seria evocada apenas pela exibição de
nudez ou o foco nos atributos físicos, mas sim, também, pela postura corporal sugestiva.
Zogmaister et al., (2020) por sua vez, indicou que imagens de mulheres - mas não de homens
- tem atenção de observadores aumentada para partes do corpo em detrimento do corpo todo.
Entretanto, é importante ressaltar que esta objetificação não parte somente dos homens
para com as mulheres. Elas também carregam fortes atitudes negativas em relação a outras
mulheres objetificadas sexualmente, e as vêem como não totalmente humanas (VASQUEZ et
al., 2017). Em outro estudo de análise ERP, Xiao et al., (2019), apontou que as relações de
poder facilitam objetificação e a objetificação sexual. Os participantes do grupo de amostra
com mais poder eram mais prováveis de objetificar sexualmente as mulheres, e não somente
os masculinos, mas como também outras mulheres de posição elevada, denotando a
propagação da objetificação nas culturas - visto que seu estudo foi realizado na China e a teoria
da objetificação tem como base original culturas ocidentais.

Contexto da objetificação
Esta forma de retratar homens e mulheres de forma a desumanizá-las é mostrada de
forma exaustiva na literatura, cinema, TV e notícias. Em veículos esportivos, por exemplo,
atletas masculinos são descritos e fotografados como poderosos e atuantes, ao passo que às
atletas mulheres restam comentários sobre feminilidade, corpo, comparações com o
desempenho masculino aliados a quase nenhuma veiculação de notícias, sendo colocadas em
um papel cuja proposta é decorativa. Estes autores analisaram matérias esportivas portuguesas
de um período de vinte anos e apontaram que durante todo este tempo não houve mudanças no
tipo de cobertura, mesmo que o número de atletas mulheres tenha aumentado de forma
significativa. Enquanto para elas sobram comentários objetificantes, com expressões textuais
exaltando um corpo feminino idealizado (“musa”, “bela”), não há qualquer referência de algum
fenômeno semelhante acontecendo com os jogadores, que seguem sendo avaliados pelo seu
desempenho (SARAIVA, FERREIRA & SILVEIRINHA, 2016).
Em peças de publicidade não é incomum que sejam aplicadas diversas destas técnicas.
É como no caso de marcas de cerveja, que comumente usam o corpo da mulher despida, sem
voz e como simples objeto cenográfico (BELMIRO et al., 2015). Até mesmo obras de arte
podem vir a ser alteradas de forma mercadológica e objetificada. Johann e Schwengber (2013),
apontam para como este processo aconteceu com a Monalisa de Da Vinci, em diversos
anúncios publicitários, tendo sido produzido um corpo contemporâneo: modificado, artificial,
sem pelos e sem cheiros naturais. Desta forma, todas as mulheres são recipientes potenciais de
Estudos de Sexualidade 3

objetificação sexual por possuírem um corpo feminino (Watson et al., 2015 apud LAMEIRAS-
FERNÁNDEZ et al., 2017).
No caso da indústria de videogames, a sexualização é algo normativo. Grande parte das
representações femininas em jogos é retratada o perfil de seios grandes, cintura extremamente
fina e roupas reveladoras (BURNAY, BUSHMAN e LARøI, 2019). Comparadas aos
personagens masculinos, as mulheres são significantes mais suscetíveis a aparecerem nuas
(BECK & ROSE, 2018). A maioria dos personagens principais é do sexo masculino e a maior
parte dos videogames é criado por homens, visando atrair este mesmo público, de homens
heterossexuais (BURNAY, BUSHMAN e LARøI, 2019). Para Beck e Rose (2018), todo este 277

imaginário leva à um reforço de mitos de estupro, como por exemplo, que algumas mulheres
secretamente desejam ser estupradas.

Male gaze
Não é incomum esquecer-se de que as imagens, seus ângulos e disposições que vemos
não são naturais, mas sim produto de alguém e de uma cultura - que como já foi comentado, é
patriarcal e oprime mulheres. Pace (2014), chama atenção para o fato de que fotografias podem
ser analisadas para compreensão de seu significado e dos significados que elas criam: o
enquadramento, a distância do foco e o ponto de vista (se ela é de cima, à altura dos olhos ou
de baixo) são técnicas que criam sentidos e ditam o que filmar e como filmar. Seguindo esta
linha de raciocínio, podemos então afirmar que todo o material midiático que consumimos
parte da visão escolhida por outra pessoa e o que ela deseja mostrar ao público.
WITZEL (2014), aponta que a descoberta do funcionamento dos ovários e do ciclo
menstrual auxiliou a criação do pensamento de que não havia razão para a mulher ser
considerada um ser sexualmente ativo, mas apenas um receptáculo. Este raciocínio é mais um
dos produtos de culturas e sociedades que dividem masculino e feminino em uma dicotomia
masculino/ativo, feminino/passivo e que basicamente é um dos pilares da crítica de Mulvey ao
predomínio do olhar masculino.
Para que o fenômeno do male gaze seja produzido, as mulheres não precisam estar em
situações explicitamente focadas no corpo. A própria antecipação de ser objeto do olhar de um
observador já é um potencial gerador desfechos negativos de saúde mental associados à auto-
objetificação. O simples fato de imaginar-se nestas situações já ativa os mecanismos que
envolvem ser olhada (gazed) e avaliada (CALOGERO, 2004), fazendo com que as mulheres
estejam em constante preocupação com a forma que seus corpos habitam a sociedade e o dia a
dia.

Prejuízos socioculturais e interpessoais


A violência contra a mulher é um problema de saúde pública e tem o caráter específico
de que não só é acompanhada por atitudes que não a condenam, mas que a encorajam,
tornando-a ainda mais perigosa (ANROWS, 2018 apud COGONI, 2020). Certas atitudes que
atualmente são identificadas como assédio, anteriormente eram apenas mais acontecimentos
cotidianos e toleráveis, como é o caso de cantadas de rua. Para Quinn (2002 apud LAMEIRAS-
FERNÁNDEZ et al., 2017), o “girl watching”, algo como “olhar as garotas” sempre foi uma
atividade naturalmente aceita e de lugar-comum.
Além disso, no campo relacional, as relações de poder em uniões íntimas fazem com
que mulheres sejam alvo de objetificação e, consequentemente, violência, ao passo que os
homens são mais prováveis de serem os autores destas ações. Mulheres podem engajar,
especialmente em relacionamentos heterossexuais marcados por estes fatores, em situações de
auto-silenciamento e são potenciais vítimas de violência física e psicológica (SÁEZ et al.,
2020).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Mais do que prejuízos individuais, o male gaze e a objetificação sexual também podem
originar perdas à inteiras categorias profissionais. É o caso da ocupação de enfermeira, que
conforme apontado por Gill e Baker (2019), que sofreu graves impactos pela sua representação
na indústria midiática dominada por homens, sendo mostrada inúmeras vezes como objeto
sexual, sempre disponíveis para o sexo devido à sua condição profissional de tocar o corpo de
estranhos e inesgotáveis vezes representada na pornografia como aquela que serve às
necessidades dos médicos e dos pacientes homens (GILL & BAKER, 2019). As autoras trazem
ainda o dado de que 54% dos homens britânicos têm fantasias sexuais com enfermeiras e que
278
todo este cenário pode fazer com que aspirantes a esta carreira reconsiderem sua possível
escolha.
Burnay, Bushman e Larøi (2019), avaliaram em estudo que dentro de um ambiente de
exposição em jogo com personagens femininas hipersexualizadas o número de piadas sexistas
recebido por jogadoras foi maior do que em um jogo sem este tipo de representação, indicando
que o assédio no ambiente online é influenciado pela simples presença desta sexualização. Isto
pode afastar jogadoras por lazer como também garotas que almejam uma carreira mais
profissional no mundo dos esportes virtuais.
A agressividade e a própria violência física são também fatores influenciados pela
desumanização feminina. Vasquez et al., (2017), trabalharam em cima do fato de que filósofos,
escritoras feministas e psicólogos (como os próprios Fredrickson e Roberts) apontaram que a
objetificação sexual leva a maiores níveis de agressão às mulheres objetificadas, no entanto
isso nunca havia sido empiricamente testado. Seu estudo encontrou que a tendência a
objetificar sexualmente está ligada ao sexismo hostil, aceitação do mito do estupro e uma
predisposição a assediar sexualmente ou estuprar. Em situações em que o agressor acredita ter
sido provocado pela vítima, observa-se isto como um fator facilitador de agressão e os autores
especulam que situações envolvendo prostituição ou exploração sexual são sensíveis a induzir
extremos níveis de agressão e violência como tortura e homicídio (VASQUEZ et al., 2017).
A exposição a propagandas de bebidas alcoólicas com mulheres sexualizadas também
é algo cotidiano. As marcas de cerveja brasileiras, por exemplo, usam “garotas-propaganda”,
personagens desprovidas de inteligência ou de falas, que se tornam objetos cenográficos
(BELMIRO et al., 2015). Estudos estrangeiros reportam que adolescentes em contato com
anúncios deste tipo são levados a interpretação de que o álcool facilita o sexo, aumentando o
risco de coerção sexual, usando a bebida para diminuir as inibições de potenciais parceiros
sexuais. Em muitos casos a (o) parceira (o) está embriagada, não tem condições de consentir,
mas isto não é reconhecido como algo preocupante e muitos adolescentes do sexo masculino
irão levar essas crenças para a vida adulta (RODGERS et al., 2019). Vemos então, que com a
normatização da visão do corpo feminino como algo público, certas práticas são tidas como
inofensivas ou naturalizadas. Isso pode prejudicar alguns estudos, como o de Zogmaister et al.,
(2020), que trabalhou com uma escala de medição da objetificação sexual (Interpersonal
Sexual Objectification Perpetration Scale), porém apontou que ela tem problemas, pois requer
que certos comportamentos como assédio sexual sejam percebidos como tal pelo respondente,
que muitas vezes não reconhece ou identifica suas atitudes como tal.

Prejuízo de saúde mental e biológico


A auto-objetificação é uma das consequências comuns, com diversos desdobramentos.
Como já vimos, a internalização de ideais de corpo magro contribuiu para que as mulheres
desenvolvessem problemas de auto estima corporal. Mulheres com níveis elevados de auto-
objetificação valorizam sua aparência física acima de outras qualidades. Pela questão de se
verem em terceira pessoa pela teoria da auto objetificação, mulheres apresentam maior nível
de vigilância sobre seu corpo e maiores níveis de vergonha e ansiedade em relação a sua
Estudos de Sexualidade 3

aparência do que homens (SLATTER & TIGGERMAN, 2010 apud LAMEIRAS-


FERNÁNDEZ et al., 2017).
Também podemos observar prejuízos quanto à auto-confiança em diversas esferas da
vida. Baldissari et al., (2019, realizou um estudo onde identificou que mulheres que são
objetificadas diariamente consequentemente são levadas a auto-objetificar-se e sentem-se
menos capazes de fazer escolhas conscientes e rebelar-se contra a redução de si apenas à um
corpo por parte de outros. Os autores apontaram também que mulheres nesta condição falam
menos quando em interação com um interlocutor do sexo masculino.
De acordo com Moreno-Domínguez, Raposo e Elipe (2019), mulheres lésbicas sofrem 279

menos com padrões de beleza pré-estabelecidos e apresentam menos insatisfação com o


próprio corpo que as heterossexuais. Mulheres lésbicas mais “femininas”, no entanto, possuem
maior chance de apresentarem sentimentos de desgosto em relação à própria aparência quando
comparadas às de expressão mais masculina, indicando que uma expressão de gênero feminina
pode implicar em maior risco de insatisfação com a imagem e uma incessante busca por
magreza (MEYER et al., 2001 apud MORENO-DOMÍNGUEZ, RAPOSO e ELIPE, 2019).
Segundo Erchull e Liss (2014), estudos mostram que algumas mulheres heterossexuais
engajam em comportamento auto sexualizante e reportam gostar de receber atenção
sexualizada de homens. As lésbicas, portanto, têm escores menores em testes de auto-
objetificação.
O male gaze se encontra bem próximo da objetificação e da auto-objetificação quando
analisamos seus impactos na saúde mental e física de mulheres. Em níveis sociais e
psicológicos, a opressão de gênero cria culturas onde mulheres são tratadas e tratam a si
mesmas como objetos sexuais, com o valor predominantemente ligado à sua atratividade e
usabilidade pelos outros (BLAKE et al., 2017, p. 1). Erchull e Liss (2014), apontam como o
fato de assumir uma visão em terceira pessoa do próprio corpo, ou seja, a auto-objetificação, é
essencialmente como uma internalização do male gaze.
Para além da pressão estética por magreza, as questões raciais também são
extremamente afetadas. Segundo Dunn, Hood e Owens (2019), mulheres afro-americanas são
socializadas para se avaliarem baseadas em sua aparência física de acordo com padrões
eurocentricos - magras, pele branca e cabelo louro ou ideais de corpo negro: tom mais claro de
pele, cabelo longo e liso e corpo curvilíneo porém magro. A busca por estes ideais irreais e
inalcançáveis acarreta micro-agressões geradoras de estresse e dificultando a apreciação do
próprio corpo. Além disso, aos olhos de interlocutores, mulheres negras são julgadas como
mais prováveis de serem promíscuas, terem mais parceiros sexuais, engajarem em sexo
desprotegido e serem mães solteiras (DUNN; HOOD; OWENS, 2019).
Os danos têm um vasto campo de atuação, atingindo até mesmo em processos
biológicos e fisiológicos. Segundo Toledo e Cianelli (2018), estudos sobre as conexões da
objetificação chegaram em temas como menstruação, sexo desconectando o corpo de suas
funções, como é o caso da amamentação. Mesmo sabendo dos benefícios desta prática,
mulheres deixam de fazê-la por motivos relacionados a auto-objetificação: elas separam as
funções sexual dos seios e a de amamentação, tendo uma tensão interna por as considerarem
incompatíveis. Preocupações sobre como a amamentação pode impactar o corpo, se os
parceiros perderão interesse e como os outros perceberão seu corpo em público são constantes
(TOLEDO; CIANELLI, 2018). Em suma, prioriza-se a aparência física e seus traços em
detrimento da saúde.
Ser tratada como objeto sexual torna mulheres mais vulneráveis à sintomatologia de
transtornos alimentares (MORENO-DOMÍNGUEZ, RAPOSO e ELIPE, 2019), visto que a
objetificação leva à internalização de ideais de magreza (FREDRICKSON & ROBERTS,
1997). Além disso, mulheres também apresentam mais conversas sobre aparência, tópicos
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

específicos de aspectos negativos de seu corpo, apresentam mais sensitividade quando são
rejeitadas pela aparência e reportam serem mais importunadas sobre seus corpos que os
homens. Consequentemente engajam em mais dietas, cirurgias plásticas e consomem produtos
anti-envelhecimento e a autovigilância as desconecta de seus próprios pensamentos,
sentimentos e desejos (LAMEIRAS-FERNÁNDEZ et al., 2017).
É de comum acordo que o assédio sexual por estranhos é uma experiência cotidiana na
vida de mulheres. Cantadas de rua, assovios e olhares sexuais que também podem ser
consideradas umas formas de objetificação sexual e tem graves consequências para a auto-
280
objetificação feminina (MOYA-GARÓFANO et al., 2018). Foi analisado que a objetificação
sexual é um gatilho para a vulnerabilidade, caracterizada como um estado psicológico no qual
as pessoas se sentem em risco e tem medo de algo ruim acontecer. Isto ocorre pois a
objetificação é uma ameaça à humanidade e ao livre arbítrio, tendo impactos em níveis de
ansiedade, medo e raiva (POON; JIANG, 2019). De forma relacionada, Moya-Garófano et al.,
(2018) mostra que, dentre outros efeitos, o assédio por estranhos aumenta o medo de sofrer um
estupro, faz com que mulheres limitem sua liberdade de movimento e reforça a auto-
objetificação (FAIRCHILD & RUDMAN, 2008 apud. MOYA-GARÓFANO et al., 2018).
Entretanto, apesar dos inúmeros efeitos negativos abordados, nem todas as mulheres
estão inclinadas a vivenciar os mesmos efeitos. Estudos apontam que aquelas que aceitam ou
não vêem prejuízo em formas de machismo (que estão subjetivamente imersas na ideologia
sexista) estão propensas a experienciarem menores níveis de ansiedade quando expostas a
situações de avaliação corporal, bem como mulheres que desfrutam da sexualização
(enjoyment of sexualization) reportam ter a auto-estima elevada neste tipo de situação. Este
cenário faz parte da ideologia de que mulheres estão para serem admiradas e desejadas por
homens e isto as dá satisfação (SÁEZ; VALOR-SEGURA; EXPÓSITO, 2016) e Erchull e Liss
(2014), apontam que um alto enjoyment of sexualization está relacionado a conservadores e
tradicionais valores acerca de mulheres e gênero. Apesar disto, Moya-Garófano et al., (2018),
indica que o efeito que estas mulheres reportam ter é um tipo de falso empoderamento de curto
prazo, visto que encontraram evidências de que mesmo aquelas que dizem se sentir poderosas
ao receber comentários acerca do corpo também se sentem envergonhadas do próprio corpo ao
mesmo tempo.

5. CONCLUSÃO
Todo este cenário contribuiu para séculos de homens - brancos e privilegiados - ditando
a toda forma de como fazer as coisas: como retratar personagens, quais personagens retratar,
qual a função da mulher em uma história, quem precisa ser salvo e quem é o salvador. As
histórias foram sendo repassadas e continuam enraizadas em nossa sociedade até os dias atuais,
perpetuando seus efeitos e mitos. É preciso que tomemos consciência dos malefícios que a
opressão feminina gera para que possamos pensar em formas de combatê-la. Ela transformou-
se ao longo dos anos, assumindo novas formas e sendo adaptada às tecnologias e continua
exercendo sua força. Mais estudos são necessários, em especial no contexto latino-americano,
visto que a exorbitante maioria dos artigos foi de fora do país e também com mulheres de
variadas etnias, visto que no Brasil, por exemplo, o corpo da mulher negra é fetichizado e visto
como exótico.

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Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

284

Aula virtual com o prof. Daniel Sócrates (emoldurado em amarelo) em 20 de junho e 2020.
Estudos de Sexualidade 3

A INFLUÊNCIA DO CONSUMO DE PORNOGRAFIA


NA FORMAÇÃO DOS COMPORTAMENTOS SEXUAIS

Marcella Ormastroni Maretti

285

RESUMO
Passando pela história da pornografia, desde sua até os dias atuais e através de revisões
bibliográficas, o presente trabalho levantou e analisou dados que mostram como a pornografia
influencia nossa relação com a sexualidade, seu papel social e as possíveis consequências em
nossos comportamentos. O levantamento bibliográfico focou em artigos com menos de 20
anos, ocidentais e priorizando principalmente estudos brasileiros, uma vez que a sexualidade é
bastante plural e sofre mudanças ao redor do mundo.

Palavras-chave: Pornografia, história da pornografia, sexualidade, educação sexual.

ABSTRACT
Going through the history of pornography, from its origin to the present day and through
bibliographic reviews, the present work has collected and analyzed data that show how
pornography has influenced our relationship with sexuality, its social role and the possible
consequences on our behaviors. The bibliographic survey focused on articles less than 20 years
old, Western and prioritizing mainly Brazilian studies, since sexuality is quite plural and
undergoes changes around the world.

Key words: Pornography, history of pornography, sexuality, sexual education.

1. INTRODUÇÃO
Por meio de estudos no âmbito da Psicologia Comportamental, aprendemos que
comportamentos são construídos pela relação do indivíduo com o ambiente (Skinner, 1984).
Esse ambiente pode ser tanto nossos pais, amigos, familiares, como também os meios de
comunicação – livros, televisão, revistas, internet, etc. Sendo assim, é interessante pensarmos
em como esses meios de comunicações e novas tecnologias influenciam nossos
comportamentos. Dessa forma, a questão principal não seria se há ou não influência, pois
sabemos que sim, mas como é essa influência.
Segundo Brêtas et al., (2008), na ausência de ampla e efetiva educação sexual em casa
ou nas escolas, a televisão e outros meios de comunicação tornaram-se, atualmente, a fonte
principal de educação sexual nos Estados Unidos. Mas no Brasil não é diferente, pois segundo
o Pornhub Insights – 2019 Reviews, o Brasil ocupa o 11º lugar no ranking dos 20 países que
mais acessaram o site no ano de 2019. Neste ano, a proporção de visitantes femininas cresceu
para 32%, um aumento de 3 pontos percentuais em relação a 2018. Entre os 20 principais países
de tráfego do Pornhub, o Brasil continua a ter as maiores proporções femininas em 39%
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

(Pornhub Insights, 2019). É importante salientar também que o Brasil é o principal país da
América do Sul a acessar o Pornhub desde 2016.
Levando isso em consideração, juntamente com a evolução da internet e o surgimento
de novas tecnologias (smartphones, por exemplo) e o aumento do consumo de material
pornográfico online, surge o seguinte questionamento: como o consumo de pornografia pode
influenciar no comportamento sexual das pessoas? Considerando que esse tipo de conteúdo
está sendo acessado por indivíduos cada vez mais jovens e que nem ao menos foram iniciados
na vida sexual.
286

.1. Pornografia
Em muitos estudos, várias definições já foram formuladas, e o que se percebe é que não
se trata de uma definição simples, uma vez que cada pessoa compreende de forma muito
particular. Segundo Guerra et. al (2004), a definição deste termo e as crenças associadas a ele
são construídas histórica e culturalmente, além de serem perpassadas pelos filtros morais, pelos
valores intrínsecos ao indivíduo e, consequentemente, suas ideologias.
Porém, de maneira geral, a pornografia almeja produzir uma excitação sexual imediata,
sendo o ato sexual e a exibição genital, suas principais características. Se analisarmos a
etimologia da palavra, Pornografia, deriva do grego “pornographos”, formada pela junção de
“porne”, que significa prostituta, com a palavra “graphein”, que designa escrita. Ou seja,
“aquele que escreve sobre prostitutas”. Segundo o Dicionário de Língua Portuguesa Michaelis
(2020), Pornografia tem como significado 1. qualquer coisa (arte, literatura etc.) que vise
explorar o sexo de maneira vulgar e obscena; 2. tratado acerca da prostituição; 3. coleção de
pinturas ou gravuras obscenas; 4. caráter obsceno de uma publicação e 5. atentado ou violação
ao pudor, ao recato; devassidão, imoralidade, libertinagem.
Podemos perceber que a palavra obsceno aparece diversas vezes quando procuramos o
significado de pornografia. Obsceno, que no caso significa colocar o privado (no caso, o sexo)
no espaço público, sendo isso visto como um ato transgressor, ilegítimo; algo que não deveria
ser visto. Colocar em cena algo que não era esperado, gerando incômodo e desconforto. E no
caso da pornografia, o prazer estaria relacionado justamente ao fato de ser algo proibido e
transgressor.
Sendo assim, quando entendemos o significado de obsceno, conseguimos compreender
o porquê ele aparece tantas vezes nas definições de pornografia. Como se aquilo que é
pornográfico só existisse por conta do obsceno, porém, isso não significa que elas não tenham
suas diferenças.
Normalmente a pornografia é percebida como vulgar, e nela a afetividade é secundária – tão
secundária que quase não a notamos. O objetivo principal é a excitação e o descarrego da tensão sexual.
(BRÊTAS et al., 2008) A pornografia tem em suas entrelinhas algo que desafia, ofende e choca.
Geralmente distorcendo a realidade, frequentemente reduz a sexualidade ao ato sexual (Brêtas et
al.,2008). De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2006), ela faz parte de um interesse
geral relacionado à sexualidade, como se fosse “um aspecto central do ser humano ao longo da vida
que engloba sexo, identidades e papéis de gênero, orientação sexual, erotismo, prazer, intimidade e
reprodução. A sexualidade é vivida e expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes,
valores, comportamentos, práticas, papéis e relacionamentos” (Baumel et al., 2019).

1.2. História da Pornografia


Segundo Jorge Leite Jr. (autor de “Das Maravilhas e Prodígios Sexuais – A Pornografia
‘Bizarra’ como Entretenimento”; 2006), a pornografia visando a excitação sexual de seu
público como única motivação e um fim em si mesma é um conceito recente, datando apenas
no final do século XIX. Além de fatores iniciais como as novas tecnologias de impressão que
surgiram no século XVI que culminou para o aumento de produção de livros eróticos e gravuras
Estudos de Sexualidade 3

obscenas, resultando no seu barateamento e aumentando seu público consumidor. É importante


saber que neste período surgiram representações como descrições e ilustrações de cunho sexual
e altamente realistas. Que tinham como principal objetivo a crítica social e política, utilizando-
se de corpos, desejos e atos sexuais minuciosamente detalhados.
Segundo Leite Jr. (2006), nesse período já é possível perceber que o obsceno estava
intimamente associado ao universo popular, à tecnologia e ao comércio. Ou seja, a obscenidade
na representação sexual aproveita o incremento da editoração, desenvolvendo-se como o ramo
de um próspero mercado – legalizado ou não – gerador de lucros e possuidor de um público
fiel. 287

Um marco na história da pornografia foi o italiano Pietro Aretino, do século XVI. Seus
livros Sonetos Luxuriosos (1527) e Ragionamenti (1534 – 1536) representam os antecedentes
da pornografia moderna. Não apenas como uma referência histórica, mas também como
modelo para as produções obscenas até os dias de hoje. Em suas obras, Aretino relatava
diálogos licenciosos entre mulheres, sexo como divertimento, a sabedoria filosófica das
prostitutas, o não envolvimento da afetividade e a nomeação popular e explícita dos órgãos
genitais. Elementos esses, encontrados até hoje nos materiais pornográficos, sejam eles qual
for.
Já no início da modernidade, o sexo encontrou uma das suas grandes vertentes
representativas: a ilustração realista. Tendo um caráter extremamente anticlerical e corrosivo
contra a suposta devassidão dos inimigos políticos, a incompetência dos nobres, a corrupção
dos juízes e a hipocrisia daqueles que detinham qualquer forma de poder, estes elementos que
irão formar mais tarde a chamada pornografia, vão unir-se cedo à filosofia e ao racionalismo.
Por toda a Europa de cultura humanista, até meados do século XIX, a produção obscena terá
adeptos entre os grandes pensadores de cada época. Sua meta será o abalo das estruturas sociais
através do prazer sexual. Não era apenas o gozo dos sentidos que o material “erótico”
reclamava, mas também uma outra organização social, subvertendo e ridicularizando as
relações de poder existente (LEITE JR., 2006: 47).
É importante frisar que por mais que a Holanda não tenha ajudado na criação de
materiais obscenos, ela foi fundamental para esse mercado entre os séculos XVII e XVIII, uma
vez que lá era onde muitos livros banidos do restante da Europa eram impressos e publicados
clandestinamente (LEITE JR., 2006: 48).
Segundo Leite Jr. (2006), outro fator histórico que influencia a futura pornografia é a
mecanização dos corpos que ocorre entre os séculos XVII e XVIII. A divisão propagada pelo
método de Descartes associa-se à concepção de que a fonte primeira do saber se encontra na
matéria física. Ao eliminar a predominância do espírito, toda a “verdade” do homem deve ser
encontrada em sua expressão orgânica, que funciona como uma máquina qualquer, dentro de
um sistema mecânico maior, a natureza.
Dessa forma, o isolamento conceitual e material do objeto visando a eliminação de
interferências externas torna-se um ideal a ser alcançado tanto nos trabalhos científicos quanto
filosóficos ou obscenos. As ilustrações do corpo humano visando estudos médicos ou o
despertar do desejo sexual mostram unicamente as partes fisiológicas intencionalmente
focadas, desprezando qualquer intromissão do “meio ambiente”. Todos estes fatores poderão,
no final do século XX, ser encontrados em um dos mais constantes argumentos utilizados
contra a pornografia: corpos fragmentados, impessoalidade das trocas, completa ruptura entre
sentimentos e sensações, importância da técnica sobre a subjetividade e a incapacidade de
apreensão da pessoa como um todo (LEITE JR., 2006: 49). Segundo a citação de Baudrillard
(1992: 39) em Leite Jr. (2006: 49): “no pornô reina a alucinação do detalhe. A ciência já nos
fez habituar a essa microscopia, a esse excesso de real em seu detalhe microscópico, a esse
voyeurismo da exatidão, do grande plano sobre as estruturas invisíveis das células, a essa noção
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

de uma verdade inexorável não mais mensurável pelo jogo das aparências e que apenas a
sofisticação de um aparelho técnico pode revelar.”. Sendo assim, podemos dizer que tanto a
medicina quanto a pornografia focam apenas na parte do corpo que lhes convém e nas funções
que lhes interessam, sendo empiricamente demonstrável.
Surge em 1740 na França, um escritor de origem nobre e que trazia em suas obras a
crítica social, política e religiosa, o racionalismo iluminista, a fragmentação dos corpos e o
prazer sexual egoísta e absoluto: Donatien-Alphonse-François, o Marquês de Sade.
Considerado um libertino, acabou ficando preso por 27 anos. E foi dentro das prisões que ele
288
criou uma vasta obra repleta de horrores e regada com muito sangue e esperma. (LEITE JR.,
2006: 50)
Segundo Leite Jr. (2006), esse autor pode ser considerado o expoente máximo da
filosofia libertina. Surgida no século XVI, tendo como característica inicial a rebeldia contra a
Igreja, na época de Sade o libertinismo estava associado também à liberação dos costumes e
práticas sexuais, além ainda da contestação religiosa. Ele vai intensificar estes fatores ao
máximo e ainda acrescentar novas características, fundamentais em suas obras como a
crueldade, o crime, o suplício, a tortura, a dor relacionados ao erotismo. Fazendo uma crítica
aos suplícios que ocorriam no século XVIII, que nada mais eram eventos de coerção que faziam
parte da rotina de quase toda a Europa, no qual a tortura era pública e não perdia o tom de
espetáculo.
O Marquês de Sade une de maneira exemplar as principais correntes que caracterizam
e formam os antecedentes da chamada “pornografia”, do Renascimento ao século XVIII. Por
seus excessos sexuais, culto à violência e uma agressiva ironia, aliado à diversidade formal de
seus trabalhos, Sade também é paradoxalmente considerado por muitos hoje em dia, como um
precursor da pornografia, filha dos séculos XIX e XX (LEITE JR., 2006: 52).
No final do século XIX e início do século XX, Max Weber estudava as origens do
capitalismo moderno. Enquanto ele afirmava que um dos fatores que influenciariam a
mentalidade burguesa e o capitalismo como sistema econômico, seria a eliminação dos gozos
terrenos e dos prazeres da mente e os ideais vindos da austeridade da religião protestante; Havia
o sociólogo Werner Sombart que defendia outros elementos que faziam parte dos pilares da
estrutura capitalista, como: a cultura do prazer, do luxo e do refinamento dos sentidos, tendo
como figura central deste processo, a mulher, mais especificamente na figura da cortesã. Em
uma de suas obras, Sombart tem como foco não a burguesia trabalhadora e seu dever religioso
e moral de ganhar dinheiro, mas o universo da corte e seu dever social de gastar em ostentação,
supérfluos e excessos. Analisando assim, a importância do erotismo como sociabilidade e
elemento gerador de status, mercados e, consequentemente, riquezas. E vale ressaltar que na
Veneza renascentista, pelo menos um entre dez de seus habitantes ganhava a vida com a
prostituição. (LEITE JR., 2006: 54)
Pensando na influência da Igreja nas regras sociais da época e em como ela reforçava
a ideia de que sexo era, antes de qualquer coisa, um fardo a ser rancorosamente tolerado, o
casamento sendo visto como um contrato e a esposa como uma serva e santa do marido, faz
com que o mundo dos prazeres carnais não tenha espaço no mundo do matrimônio. Assim,
pode-se dizer que, segundo Leite Jr. (2006), no ideal de família da Idade Média até o final do
século XIX, havia uma sexualidade própria e específica, mas esta não permitia o “erotismo”
dentro de sua estrutura. Justificando a importância dos bordéis, que eram vistos como templos
da vivência erótica e o papel fundamental das prostitutas como aquelas que irão encarnar as
delícias do gozo carnal e, principalmente, das cortesãs no que diz respeito ao refinamento dos
sentidos, dos gostos e do luxo (LEITE JR., 2006: 54).
Desta maneira, podemos compreender que o sexo visto como produto e o prazer como
mercadoria não é algo de agora e nem do final do século XIX, uma vez que a prostituição
Estudos de Sexualidade 3

sempre existiu. O que mudou durante os anos, é a forma como se ampliou a produção e o
consumo, tento total influência dos interesses políticos. E em cada época havia o objeto
“fetichista” da vez, desde espartilhos e sapatos, vibradores elétricos e até o surgimento do
primeiro sex shop. (LEITE JR., 2006: 59).
Em 1962, na Alemanha, surgia o primeiro sex shop que levava o nome de sua dona:
Beate Uhse. Eram comercializados vários acessórios sexuais desde pênis, seios e vaginas
artificiais, até roupas, revistas e vídeos. Em 1989, com a queda do muro de Berlim, a empresa
chegou a faturar mais de 100 milhões de marcos e em 1998, foi a primeira empresa de produtos
eróticos no mundo a ter seus negócios ligados à bolsa de valores da Alemanha. (LEITE JR., 289

2006: 59).

1.3. A pornografia como negócio


A pornografia é um grande negócio, disse um político norte-americano em 1952 no
resultado informe governamental sobre materiais pornográficos (LEITE JR., 2006). Porém, é
muito difícil afirmar com precisão as cifras relacionadas a esse tipo de mercado, uma vez que
envolve ganhos moralmente controversos e as fontes frequentemente se contradizem. O ideal
nesse contexto, não seria comparar números em fontes distintas, mas compará-las entre si
mesmas de um ano para outro.
Ao longo dos anos, a forma de analisar o mercado erótico foi mudando e evoluindo,
principalmente com o surgimento da internet. Mas ainda assim, é um terreno um pouco
nebuloso, uma vez que muitas fontes não especificam se o lucro veio de fotos, vídeos, objetos,
etc. Porém, é interessante nos atentarmos para alguns números.
Segundo uma reportagem do Correio Braziliense em 2012, o mercado erótico no Brasil
cresceu 18,5% de acordo com a Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico
(Abeme) e o faturamento chegou a R$ 26 bilhões, incluindo filmes, lingeries sensuais e uma
imensa gama de produtos para despertar o prazer sexual. Em 2011, segundo a Abeme, as
vendas on-line subiram 57% na comparação com 2010. Em 2009, a revista Veja trouxe a
matéria que mostrava o crescimento anual do mercado em 15% e movimentando certa de 1
bilhão de reais por ano também segundo a Abeme.
Segundo a empresária Alessandra Seitz em entrevista para IstoÉ Dinheiro (2016),
depois de um ano de pesquisa e descobrir que o mercado faturou cerca de R$ 1,7 bilhão, no
Brasil, só no ano de 2015, de acordo com a Abeme, ela decidiu abrir sua própria marca de
cosméticos eróticos sendo hoje uma das principais fornecedoras nacionais de cremes, géis,
vibradores líquidos, perfumes e excitantes femininos e masculinos do País.
E mesmo com a crise econômica que o Brasil vem passando nos últimos anos, não é
difícil encontrar artigos e reportagens dizendo que o mercado erótico está caminhando para o
lado oposto e registrando crescimento e um maior faturamento. Segundo a reportagem no
jornal O Dia, em 2019, o mercado sensual segue superaquecido, movimentando cerca de R$ 1
bilhão por ano, de acordo com a Associação Brasileira das Empresas do Mercado Erótico
(Abeme), apesar das dificuldades econômicas e do alto índice de desemprego. Segundo o
presidente da associação, estima-se que mais de 80 mil pessoas mudaram de profissão nos
últimos 5 anos e passaram a se dedicar a vários ramos do segmento.
Dessa forma e de acordo com os dados apresentados, o que podemos perceber é que,
mesmo passando por crises econômicas, localizadas ou globais, a indústria da pornografia – os
números referem-se ao comércio legalizado – possui um enorme vigor, com um mercado
consolidado e crescente, movimentando um volume de dinheiro considerável dentro da
economia capitalista (LEITE JR., 2006).
Olhando para a história, percebemos que o erótico sempre esteve presente, porém a
pornografia como conhecemos hoje, ou seja, a representação sexual visando em especial a
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

excitação erótica de seu público e estando intimamente relacionada com a produção


padronizada para um mercado estabelecido, nasce apenas no fim do século XIX, com a
aceleração e mobilidade da vida cotidiana fazendo com que a produção não só aumentasse,
como o consumo vira um espetáculo em si (LEITE JR., 2006). Também é nessa época que
nascem as primeiras agências publicitárias e com elas o nascimento da pornografia como
gênero literário.
Com o surgimento desta nova categoria classificatória na produção cultural, também
ressurgem meios para censurá-la e torná-la ilegal, considerando-a prejudicial ao indivíduo e à
290
sociedade. A perseguição à recém-nascida pornografia, que se afastou da crítica social e
política de seus elementos formadores, passa a se justificar então pela causa moral de base
higienista. Agora, a obscenidade deve ser controlada e punida não mais por atacar o poder real
ou a autoridade religiosa, mas principalmente por transgredir a ordem social e as leis “naturais”
da psique dos indivíduos (HUNT apud LEITE JR., 2006: 63).
Desta forma, segundo Leite Jr. (2006), a luta da pornografia não era mais para contestar
o sistema sócio econômico, mas sim para ser melhor aceita por ele. Os terríveis “pervertidos”
produtores de obras obscenas do XIX, se tornarão prósperos homens de negócios no XX,
conhecidos como “pornógrafos”. Se os materiais que antecederam este novo universo pornô,
como livros e gravuras já possuíam um mercado próprio, mas restrito, agora nasce uma
indústria com objetivo explícito de gerar lucro e ampliar o número de consumidores. Desta
forma, a crítica dos produtores de imagens obscenas passa a ser contra os argumentos e valores
que os impedem de entrar no circuito da produtividade capitalista. Nestas novas mercadorias,
o sexo perde sua intenção de transgressão contra as estruturas sociais vigentes e torna-se
expressão da uniformização dos desejos e padronização dos prazeres.
Em relação à produção obscena anterior, a recém-surgida “pornografia” não é mais
transgressiva e questionadora, pois agora ela quer se firmar nas atuais bases econômicas e
sociais. Mas como o conceito de obscenidade não se extingue, apenas se reorganiza nesta nova
forma de sociedade, a pornografia, enquanto e quando considerada obscena, passa a ser então
transgressiva aos valores sexuais tais como a virgindade, o pudor, o sexo visando a procriação,
os pressupostos de “amor” e ou “espiritualidade” ligados a vivência erótica, a norma
heterossexual, a hora e o lugar certo para tal prática (de noite, na cama em um quarto com
portas fechadas) ou a “seriedade” do ato venéreo (LEITE JR., 2006: 64).

▪ OBJETIVOS
Objetivo geral
Analisar, por meio do levantamento bibliográfico como a pornografia pode influenciar
no comportamento sexual dos indivíduos.
Objetivo específico
-- Analisar, consideração sua história, origem e mudanças, como se consolidou o
mercado erótico nos dias atuais pensando nos diversos movimentos históricos.

3. METODOLOGIA
O presente trabalho foi feito por meio de uma revisão bibliográfica. Inclui textos que
trouxessem uma visão ocidental sobre o assunto e dando prioridade para artigos brasileiros e
recentes (a partir do ano 2000), podendo ser tanto artigos qualitativos quanto quantitativos. Em
relação aos participantes dos estudos, não foi definida uma faixa etária ou contexto
socioeconômico específico, pois o objetivo foi ter uma visão geral sobre o tema. Ao todo foram
selecionados 20 trabalhos acadêmicos, além de matérias jornalísticas e documentários. Então,
critérios inclusivos foram: artigos mais recentes, brasileiros e que apresentassem semelhança
nos temas, principalmente em relação ao impacto da pornografia na vida dos sujeitos. E
Estudos de Sexualidade 3

critérios para exclusão foram: artigos mais antigos, estrangeiros e que se distanciasse do tema
em questão.
A busca foi realizada nos meses de março e abril de 2020, por meio do o Google
Acadêmico a partir das seguintes palavras-chaves: Pornografia; Comportamento Sexual;
Influência; Educação Sexual; Relacionamentos; Sexualidade; História da Pornografia;
Influências Sociais; Formação do Comportamento Sexual; Teoria King Kong. Como noções
estatísticas de consumo de pornografia, tanto mundial como nacional, utilizei as “Revisões
Anuais” (Reviews) de um dos maiores sites de conteúdo adulto do mundo, o Pornhub. Nesses
reviews é possível obter dados como: países que mais consomem pornografia, quando 291

consomem, o que consomem e fazer comparativos.


Primeiramente, foram buscados apenas artigos nacionais que falassem sobre
Pornografia. Essa busca foi importante para entender o quanto se pesquisa sobre esse assunto
no Brasil, em quais áreas e que tipo de estudos são esses. Depois, artigos que fugissem ou
pouco se relacionassem com o tema de pesquisa foram excluídos. Como por exemplo, artigos
que tratavam da relação Pornografia e Mulheres, especificamente. Artigos das áreas de
Psicologia, Medicina, Sociologia, História, Antropologia e Educação e que não tivessem mais
de 20 anos de publicação foram priorizados. Com base nos critérios, foram selecionados
quantos artigos?

4. DISCUSSÃO E RESULTADO
Dos levantamentos feitos, não houve dificuldade em relação ao ano de publicação, pois
o material mais antigo utilizado foi o livro de Jorge Leite Jr., “Das Maravilhas e Prodígios
Sexuais - a pornografia “bizarra” como entretenimento” do ano de 2006. A grande maioria dos
artigos científicos são datados após 2013, algo bastante positivo uma vez que são trabalhos
relativamente recentes. Há também a variável de que o assunto “pornografia” vem sendo
estudado e chamando atenção dos acadêmicos recentemente, uma vez que ela se tornou cada
vez mais acessível em consumida nos últimos anos. A maioria dos artigos são da área de
Medicina e Psicologia. Áreas que lidam diretamente com questões sexuais. Apesar dos
trabalhos brasileiros terem prioridade, uma dissertação de mestrado da Universidade
Autónoma de Lisboa foi utilizada. Quantos trabalhos foram selecionados? E seus respectivos
anos de publicação.
Levando em consideração a evolução tecnológica dos últimos anos e o surgimento de
novos meios de comunicação e mídia – podemos ressaltar aqui o nascimento da internet e das
redes sociais – muito vêm se discutindo o quanto esses meios exercem influência e quais suas
consequências. Sabendo disso e com o espaço que a sexualidade em geral tem ocupado na
mídia, surgem inúmeros questionamentos acerca da influência que os materiais pornográficos
podem exercer nos indivíduos. Segundo Guerra et al., (2004), essa influência é frequentemente
vista pelo lado negativo e seria expressa em atitudes e comportamentos socialmente
indesejados, como a busca do sexo pelo sexo, comportamentos sexistas e agressivos, além de
parafilias e toda uma gama de crimes sexuais. Tendo isso em mente, a autora conduziu um
estudo em 2004 pela Universidade Federal da Paraíba, que teve como objetivo identificar e
analisar as atitudes dos estudantes universitários frente a pornografia, levantando os efeitos
positivos e nocivos dela.
Participaram da pesquisa, na primeira fase, um grupo de 34 indivíduos, adultos,
estudantes universitários, sendo 22 de universidade pública e 12 de universidade particular. Na
qual 18 eram do sexo feminino (53%), com idade variando entre 18 e 25 anos e 16 eram do
sexo masculino (47%), cuja variação de idade foi de 18 a 25 anos. Na primeira fase do estudo,
os indivíduos responderam a um questionário que levantou as vantagens e desvantagens do
consumo de material pornográfico, obtendo os seguintes resultados: Desvantagens: 1)
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Banalização do sexo (27,85%); 2) Má informação sobre o sexo (21, 5%); 3) Prejuízos a


relacionamentos (20,25%); 4) Alienação ou isolamento (19%); 5) Vício (11,4%). Já em relação
às vantagens, o estudo obteve: 1) Obtenção de informações (24%); 2) Melhorar a relação com
o parceiro (24%); 3) Aumento do prazer (22%); 4) Aumento das fantasias (16%); 5) Satisfação
(14%).
Apenas com esses dados, podemos perceber que a pornografia não só gera contradições,
mas também dicotomias. Como se um mesmo aspecto tivesse seus prós e contras. Por exemplo,
ao mesmo tempo que temos como desvantagem a “Má informação sobre sexo (21,5%)”, temos
292
“Obtenção de informações (24%) vista como uma vantagem. O mesmo acontece quando temos
“Prejuízo a relacionamentos (20,25%)” em desvantagens e “Melhorar a relação com o parceiro
(24%)” em vantagens. O que pode nos sugerir que o consumo de pornografia não é de todo
mal, como se é pensado pela maioria. Porém a discussão muda quando analisamos por uma
óptica de gênero.
Na segunda fase dessa pesquisa, participaram 336 estudantes universitários, com idade
variando de 17 a 52 anos, de ambos os sexos, sendo 51% do sexo feminino e 49% do sexo
masculino. E temos os seguintes dados: 97,6% dos homens e 71,3% das mulheres afirmaram
já ter entrado em contato com algum tipo de material pornográfico. O grupo de não
consumidores é, em sua maioria (69%), composto por mulheres, enquanto o grupo de
consumidores é majoritariamente (77,8%) composto por homens. Parece haver, então, um
importante componente sociocultural que influencia a escolha de usar ou não esse tipo de
material. Isso pode ser explicado em parte pela socialização feminina que é mais restritiva nas
experimentações de sua sexualidade se comparada com a socialização masculina.
A segunda fase do estudo trouxe o recorte de gênero aos resultados. Nela os
participantes deveriam listar as finalidades da utilização do material pornográfico, obtendo os
seguintes resultados: Homens: 1) Obter informações reais sobre sexualidade (55,8%); 2) Ter
mais fantasias sexuais (50%); 3) Obter prazer (39%); 4) Ter mais satisfação sexual (37,2%);
5) Procurar novas posições e técnicas sexuais para sair da rotina (37,2%); 6) Melhorar a relação
sexual com a parceria (32,3%); 7) Outros (11,7%). Enquanto as Mulheres: 1) Obter
informações reais sobre sexualidade (72,4%); 2) Ter mais fantasias sexuais (41,4%); 3)
Melhorar a relação sexual com a parceria (27,6%); 4) Procurar novas posições e técnicas
sexuais para sair da rotina (24,1%); 5) Outros (17,2%); 6) Obter prazer (13,8%); 7) Ter mais
satisfação sexual (13,8%). O que essa segunda fase do estudo de Guerra et. al (2004) nos mostra
é exatamente a influência do machismo, do patriarcado e da falta de educação sexual que temos
hoje em nossa sociedade. Podemos perceber que os motivos pelo qual as mulheres consomem
a pornografia está muito mais relacionado a um terceiro do que a ela própria, enquanto os
homens se preocupam muito mais com seu próprio prazer. É só compararmos as diferenças
percentuais nos itens “Melhorar a relação com a parceria”, “Procurar novas posições e técnicas
sexuais para sair da rotina”, “Ter mais satisfação sexual” e “Obter prazer” para percebemos o
quanto a submissão da mulher em relação ao homem e que a mulher no sexo está ali para servir
e dar prazer ao parceiro se perpetuam até nos dias de hoje.
Conseguimos perceber essa problemática de maneira bem clara quando, no estudo de
Guerra et al., (2004), o grupo de consumidores (formado por homens solteiros, com média de
idade igual a 22 anos) diz que utilizam a pornografia regularmente, com o objetivo de obter
informações acerca da sexualidade e ter mais fantasias sexuais. Este grupo percebe o consumo
como favorável à sua formação sexual e à obtenção de prazer e satisfação, discordando da
associação da pornografia com a banalização do sexo e com o vício. Já o grupo não-consumidor
é formado, basicamente, de mulheres solteiras, com média de idade igual a 24,2 anos, que já
tiveram algum contato com materiais pornográficos, mas não o utilizam atualmente,
Estudos de Sexualidade 3

percebendo-o como prejudicial. Essa divergência pode ser analisada à luz da diferença da
educação dada a homens e mulheres na nossa sociedade, ou seja, à diferença de gênero.
Em uma metanálise realizada por Petersen e Hyde (2010), a respeito das diferenças de
gênero nas pesquisas sobre sexualidade, homens relataram levemente uma maior experiência
sexual e atitudes mais permissivas que as mulheres na maioria das variáveis; entretanto, a maior
parte das diferenças nas atitudes e comportamentos sexuais é pequena. As exceções são para
comportamentos autoeróticos, como masturbação e uso de pornografia, e para sexo casual e
atitudes a respeito dele, nos quais homens e mulheres diferem significativamente.
Porém, um item bastante crítico que é “obter informações reais sobre sexualidade”, 293

sendo a mais votada em ambos os gêneros, nos remete a ideia de que as pessoas, independente
do gênero, estão utilizando da pornografia para aprenderem sobre sexo. Isso é bastante
problemático, uma vez que a indústria pornográfica, em sua maioria, é extremamente machista,
performática e falsa em relação aos seus conteúdos, o que pode gerar em seus consumidores
uma visão totalmente distorcida do que é sexo e como eu ou a minha parceria deve, ou não, se
comportar na hora da relação sexual. De acordo com Lopes (2013), um bom exemplo é a
frequência com que o sexo anal é representado nas relações heterossexuais, embora alguns
estudos de prevalência sugiram que esta é uma prática minoritária.
Guerra et al., (2004), explica que uma teoria, ligada ao desenvolvimento cognitivo,
afirma que a exposição prolongada a determinados estímulos – nesse caso, à pornografia –
pode levar a mudanças cognitivas nos observadores, que afetarão suas atitudes e
comportamentos, pois aqueles temas ou conceitos que foram ativados recentemente, estando
mais acessíveis cognitivamente, serão usados para organizar as informações e guiar os
julgamentos e as ações do indivíduo. Ou seja, se a pornografia consumida é associada à
violência e essa experiência for considerada prazerosa para o sujeito, ele irá basear suas atitudes
e comportamentos nos conceitos que foram apreendidos do material observado.
Donnerstein e Linz (1986), afirmam que o problema mais importante na mídia não é a
apresentação de relações sexuais de forma explícita, mas sim a violência associada ao sexo;
Eysenck (1976) acredita que a questão está na associação do sexo com emoções que nem
sempre são desejáveis, como agressividade, hostilidade, crueldade, medo, ansiedade e
desprezo.
Já um estudo mais recente conduzido por Baumel et al., (2019), na Universidade
Federal do Espírito Santo, teve como objetivo verificar as vantagens e desvantagens percebidas
do consumo desse tipo de material no comportamento sexual e nos relacionamentos amorosos.
Nesse estudo, os participantes deram uma definição do que é pornografia, e mais uma vez
podemos observar algumas diferenças nas respostas entre homens e mulheres. Para os homens
a pornografia pode ser definida como diversificação, por ser um material que permite explorar
outras dimensões da sexualidade. Já para as mulheres aparece como “alguma coisa mais suja”,
como um material que representa algo ruim, sujo, que “não deveria mexer”; algo “fora dos
limites”.
Em Baumel et al., (2019), o “aprendizado” também aparece como uma das finalidades
para o consumo da pornografia, em ambos os gêneros. Sendo considerado pelas mulheres o
principal motivo para o início do consumo e para ambos os sexos, um dos pontos positivos
dele. O que nos mostra que assim como no estudo de Guerra (2004), os jovens utilizavam a
pornografia para aprenderem sobre sexo, em Baumel et al., (2019), nos mostra que isso
permanece.
Outro aspecto que também não mudou, foi a submissão da mulher em relação ao
homem no contexto sexual. Segundo Baumel et al., (2019), entre as mulheres a subcategoria
com maior frequência é benefícios ao relacionamento: usam por incentivo do companheiro;
pelo tipo ou qualidade da relação, que traz confiança para esse uso e permite liberdade para
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

explorar a sexualidade; ou ainda como forma de agradar o parceiro, além de servir de estímulo
à diversificação na vida sexual do casal. Em compensação, isso pouco aparece nos dados
coletados dos homens, o que reforça o estigma de que a mulher deve dar prazer ao homem,
deixando de lado seu próprio prazer.
Porém, o estudo de Baumel et al., (2019), traz algo diferente e bastante relevante, um
dos aspectos negativos levantado por ambos os gêneros foi a idealização na comparação do
próprio corpo com o corpo dos atores e suas performances, que pode alimentar a insegurança,
abalar a autoestima, gerar cobranças na relação e instigar uma forma e um desempenho
294
artificial ao perceber que “a vida real não é assim”. Outra preocupação é que o uso de
pornografia pode mudar a forma de se relacionar com as mulheres, colocando-lhes em
condições objetais, de submissão e, assim, estimular a violência contra elas, ou ainda pode
contribuir com situações de desrespeito ao outro, quando um dos envolvidos se sente
estimulado e busca forçar o outro a fazer algo que não deseja.
Esse dado é muito importante, pois apesar de vivermos em uma sociedade machista e
patriarcal, o que nos influencia completamente, podemos perceber, pelo menos na pesquisa de
Baumel et al., (2019), um movimento contrário e de questionamento a essas regras sociais. O
que é de extrema seriedade, porque como discutimos diversas vezes neste trabalho é como as
mídias têm o poder de nos influenciar positiva e negativamente. E Baumel et al., (2019), nos
traz dados que nos mostram que essa objetificação parte também das próprias mulheres que
aprendem, através da pornografia “o que pode ou não fazer e o que é ser mulher” (BAUMEL
et al., 2019). Já em relação a idealização de corpos, temos “para as mulheres o uso no início
apresenta-se como ambíguo; se por um lado é um meio de aprendizado, motivado pela
curiosidade, que aumenta o conhecimento sobre o próprio corpo e o corpo do outro, sobre
prazer e liberdade, por outro desperta sensações como timidez, vergonha, arrependimento e
culpa. Algumas mulheres contam que usaram para conhecer o que é sexo e como se faz, antes
de fazer sexo ‘de verdade’” (BAUMEL et al., 2019).
Outros estudos conduzidos na última década também trazem o consumo de pornografia
como uma forma de aprendizado. No estudo de Silva et al., (2019), foi possível identificar uma
ausência de familiaridade com a educação sexual entre os jovens participantes da pesquisa e
as instituições sociais primárias e secundárias, bem como, a pornografia como ferramenta que
corrobora com a formação e permanência dos estereótipos sociais que caracterizam, sobretudo,
uma masculinidade excedente? O que é masculinidade excedente nas relações entre gêneros
da modernidade? Observou-se que, em relação a importância das orientações prévias de
instituições sociais na iniciação sexual dos jovens e adultos, o consumo de representações
sexuais fictícias tem tanto ou mais influência que algumas das instituições tradicionais de
formação do sujeito. Com exceção do agrupamento “amigos”, categoria que teve mais
influência, o material erótico foi apontado como um nível aproximado de influência que as
categorias “colegas de escola”, “profissionais da escola” e “família” (SILVA et al., 2019).
Uma consequência do consumo de pornografia na formação do comportamento sexual,
segundo Silva et al., (2019), é que esse consumo está relacionado com as chances dos sujeitos
de ambos os sexos sentirem dificuldades relacionadas à prática sexual, projetando expectativas
para além da realidade em que vive, o que pode expressar que subjetividades espelhadas em
representações fictícias podem ser frustrantes.
No estudo de Lopes (2013), a autora traz algumas teorias que explicam algumas das
principais consequências do consumo de material pornográfico. Entre elas, Lopes cita a Teoria
da Aprendizagem Social, ao falar sobre as consequências do consumo, que prevê que a
exposição ao comportamento dos outros pode afetar o comportamento do próprio indivíduo.
Nesse caso, os indivíduos que utilizam da pornografia para aprendizado, tomariam as atitudes
Estudos de Sexualidade 3

dos atores nos vídeos pornôs como exemplo e reproduziriam os mesmos atos ou atitudes
parecidas, uma vez que eles entendem que é o normal e o aceitável.
Lopes (2013), também traz a Hipótese do Cultivo, que defende que a exposição
contínua a determinadas representações pode levar o consumidor a adotar crenças e atitudes
que refletem essas mesmas representações. Aplicada à pornografia, a hipótese sugere que a
exposição contínua a materiais pornográficos conduz à aceitação de crenças e atitudes sobre as
mulheres e homens, relacionadas com a sexualidade, e papeis de gênero presentes nesse tipo
de material. Outra teoria é da Transferência de Excitação que considera que a exposição a
estímulos fisiologicamente excitantes, tais como visualização de pornografia, interfere na 295

excitação residual, ao prolongá-la por mais tempo, bem como na intensificação das reações
emocionais e comportamentais aos estímulos subsequentes.
Segundo Russell (2011), citado por Lopes (2013), a pornografia é vista como promotora
da violência sexual, na medida em que predispõem em alguns sujeitos o desejo de agredir
sexualmente, através da desinibição de mecanismos internos e restrições sociais aprendidas,
que não permitiam a atuação de tais desejos. A autora critica o modelo de válvula de segurança
(KUTCHINSKY, 1991), e sugere que o consumo frequente de pornografia, mesmo da mais
“leve” encontrada na internet, tida como não violenta, cria uma certa tolerância levando o
consumidor a procurar por um material mais extremo, com práticas sexuais menos comuns,
como forma de encontrar os mesmos níveis de excitação. Nessa procura, os utilizadores podem
desenvolver um gosto aprendido por associação e reforçado pela condição masturbatória, de
práticas sexuais incomuns e por vezes agressivas que, pela frequência do consumo, podem
provocar a desinibição de mecanismos internos, permitindo a atuação das fantasias.
Por fim, segundo um estudo feito por Morrison et al., (2006), citado por Lopes (2013),
investigou a associação entre a pornografia e três formas de autoestima: corporal, genital e
sexual. Os resultados sugeriram que o nível de exposição à pornografia se relacionava
inversamente com a autoestima genital. Os participantes que relataram uma maior exposição
ao material pornográfico na internet evidenciaram níveis mais baixos de autoestima sexual.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como podemos ver, encontramos na literatura vários estudos que investigam as
consequêcias do consumo de pornografia tanto em seus espectadores, quanto em seus
comportamentos sexuais, propagando modelos de comportamentos e ideologias.
Porém, o ponto central é a utilização da pornografia como fonte de informações sobre
sexualidade. Analisando a mídia como instituição mercadológica, percebemos que ela, tanto
artística, teatral, comunicativa ou dramática, acaba por exaltar a realidade para que essa possa
ser consumida. No entanto, a pornografia não seria tão diferente das demais categorias
cinematográficas se não envolvesse temáticas, cenários e atuações tão carregadas de tabus na
sociedade. A discussão de determinados temas induz os indivíduos a contrastarem a realidade
cotidiana com as representações artísticas orientadas para o consumo, o que os permite melhor
orientar o comportamento entre as situações ocorridas, na falta de discussões, porém, como no
caso do pornô, ocorre o oposto. Os sujeitos em fase de iniciação da vida sexual dificilmente
contrastarão as representações pornográficas com as noções de práticas sexuais antes do ato
sexual, podendo ocorrer frustrações. E a problemática central que trago como reflexão neste
trabalho, é exatamente essa: a carência de educação sexual.
Com a falta de informação correta e ambientes para discussões de temas como
sexualidade, corpo e relacionamentos, as pessoas se vêm na necessidade de procurar
informações por outros meios não confiáveis, no caso, a pornografia. É importante ressaltar
também que a pornografia, de maneira geral, não tem como objetivo instruir ou ensinar
ninguém, o que deixa tudo mais problemático e sério, uma vez que seus consumidores, sem
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

acesso à informações de qualidade e corretas, tomam aquilo que assistem como verdade, como
certo e como habitual. O que, em termos finalidades da pornografia, vimos que é justamente o
oposto: a pornografia quer chocar, incomodar e ser transgressora. Importante dizer que existem
sim pornografias que têm uma proposta mais realista e menos escrachada, porém não é esse
tipo de conteúdo que toma conta das redes e não são de fácil acesso.
A Educação Sexual é uma forma de viabilizar o autoconhecimento e o exercício da
cidadania. Através da apresentação de dados reais e do debate, é possível que ocorra a
incorporação de noções democráticas da liberdade sexual, substituindo a percepção
296
individualista estimulada pelo consumo de pornografia, sem falar do conhecimento do corpo e
suas funcionalidades, meios de prevenções, trabalhando questões de relacionamentos e
desmistificando tabus e estigmas tão reforçados pela nossa sociedade. Diferente do que muitos
pensam, a Educação Sexual é muito mais que falar sobre sexo em si, é falar sobre vida e sobre
saúde.
A pornografia em si não causaria tantos danos se as pessoas que a consumissem
tivessem o mínimo de instrução. Dando assim, a liberdade aos consumidores de
compreenderem e interpretarem o quanto o que está sendo mostrado é performático ou não,
assim como nos outros tipos de entretenimento.

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defining_sexual_health.pdf.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

298

Aula virtual em 18 de julho de 2020, Oswaldo Martins Rodrigues Junior fazendo uma selfie
com a turma de alunos!
Estudos de Sexualidade 3

USO DESREGULADO DE PORNOGRAFIA


Conceitos, definições, modelos teóricos e características dos usuários

Pedro Henrique De Souza Herrera

299

RESUMO
O presente trabalho partiu das primeiras produções pornográficas, suas modificações históricas
acompanhadas de mudanças nos perfis de usuários, até o modelo de pornografia atual, online,
gratuita e de fácil acesso. Apresenta os resultados de uma revisão bibliográfica sobre o tema,
com o objetivo de fornecer diferentes definições sobre uso/ consumo problemático de
pornografia, modelos teóricos os quais permitam a compreensão desse fenômeno e
características clínicas dessa população. Foram utilizadas as plataformas Periódicos Capes,
BvSaúde (Biblioteca Virtual de Saúde), BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações) e DOAJ (Directory of Open Access Journals). Quatro definições principais são
utilizadas nas pesquisas: Comportamento Sexual Compulsivo, Transtornos de
Hipersexualidade, Adição Comportamental e Problemas com Pornografia devido à
Incongruência Moral. Também são apresentados os principais mecanismos de funcionamento
envolvidos no desenvolvimento e manutenção de um possível uso desregulado de pornografia,
a partir dos referenciais do modelo I-PACE, Teoria da Sensibilização do Incentivo, Teoria
Metacognitiva do Pensamento Desejoso, Teoria dos Processos Irônicos de Controle Mental e
outras variáveis importantes relacionadas. Conclui-se com as limitações dos resultados
encontrados e recomendações de reprodução dessas pesquisas em outros contextos, como o
brasileiro.

Palavras-chave: Sexualidade; pornografia; uso desregulado; uso problemático; incongruência


moral.

ABSTRACT
This work began introducing the first pornographic productions, its historical changes followed
by its users profile modifications, until nowadays online, free and accessible pornography.
Then presents the results of this literature review aiming to provide distinct definitions of
problematic pornography consumption/use, theoretical models that allows comprehension of
this phenomenon and clinical characteristics of this population. The following research
platforms were used: Periódicos Capes, BvSaúde (Biblioteca Virtual de Saúde), BDTD
(Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações) e DOAJ (Directory of Open Access
Journals). Consistent with the objetives, concepts, definitions, theoretical models of
functioning and users characteristics were presented. It was found that four main definitions
are used in researches: Compulsive Sexual Behaviors, Hipersexuality Disorder, Behavioral
Addiction and Pornography Problems due to Moral Incongruence. It were also shown the major
operating mechanisms envolved in the develompent and maintenance of a possible
dysregulated pornography use, referenced by the I-PACE model, the Incentive Sensitization
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

theory, the Metacognitive Model of Desire Thinking, the Ironic Proccesses of Mental Control
theory and other important associated variables. It concludes with the limitations of the found
results and recommendations are made in order to replicate these researches in other contexts,
like the brazilian one.
Keywords: Sexuality; pornography; dysregulated use; problematic use; moral incongruence.

1. INTRODUÇÃO
A pornografia de fácil acesso, barata ou, até mesmo, gratuita é um fenômeno
300
relativamente recente. A pornografia como conhecemos hoje data do início dos anos 2000,
possibilitada pelo crescimento da Internet e pela popularização dos smartfones (DINES, 2011;
EDELMAN, 2009 apud HALD; SEAMAN; LINZ, 2014). Uma mudança tão profunda quanto
essa foi acompanhada de relatos sobre efeitos negativos relacionados ao seu uso, como:
disfunções sexuais, ânsia, perda de controle, isolamento, perda de interesse em
relacionamentos, término de relacionamentos. Todas essas situações são acompanhadas de
sofrimento intenso e frustração devido à dificuldade em cessar o uso da pornografia, mesmo
quando o sujeito tem ciência de todas essas consequências. Isso leva a crer que possivelmente
exista um quadro de uso compulsivo ou problemático de pornografia, porém uma busca nos
principais mecanismos de pesquisa revela um baixo volume de artigos científicos nessa
temática. Isso está de acordo com as queixas de muitos profissionais da área de saúde que
dizem sentir-se perdidos e despreparados para atender tal demanda, e de usuários que não
entendem o que está acontecendo e buscam elaborar suas próprias teorias sem embasamento
científico. Portanto, existe uma necessidade e demanda por modelos teóricos que permitam a
compreensão desse quadro, seu funcionamento e de seus efeitos. A fim de entendermos tais
queixas é importante compreendermos a história da pornografia o modo como o consumidor
se relaciona com a pornografia mudou ao longo dos séculos.
As origens da pornografia moderna situam-se entre os séculos XVI e XVIII nas
primeiras produções obscenas, as quais eram compostas por representações sexuais realistas
na forma de livros e gravuras (LEITE JR, 2006). A sua principal função era a crítica social e
política, com o seguinte objetivo: “o abalo das estruturas sociais através do prazer sexual, [...]
subvertendo e ridicularizando as relações de poder existentes” (LEITE JR, 2006, p. 37). E
devido ao fato de grande parte da população europeia ser iletrada, estes desenhos possuíam
grande aceitação popular e um mercado próprio.
Ao mesmo tempo a classe burguesa enriquecida através de relações comerciais
estabelecidas com a nobreza, começa a imitar seus hábitos e estilos de gastos supérfluos e de
ostentação. Buscando diferenciar-se da burguesia e manter-se dentro dos círculos da corte, os
membros da nobreza aumentam os seus gastos. Cria-se, então, uma tensão social, a qual
culminará de forma gradativa em um “consumismo, estimulando o comércio de luxo e o
surgimento do próprio capitalismo” (LEITE JR, 2006, p. 45).
Esse universo consumista da Idade Média está diretamente ligado aos prazeres
corporais, decorrentes da associação entre os sentidos e esses gastos (SOMBART, 1958 apud
LEITE JR, 2006). É nessa mesma época que o mercado do erotismo surge, intimamente ligado
ao capitalismo, possuindo o ato sexual "como um produto e o prazer como uma finalidade em
si" (LEITE JR, 2006).
Outro ponto relevante para a compreensão em torno da sexualidade da época é a grande
influência da Igreja Católica, a qual operou no sentido de criar um ideal de família dentro da
qual não existia espaço para manifestações do erótico. Inversamente, os bordéis tornaram-se o
espaço destinado ao erotismo dentro dos quais as prostitutas desempenhavam papel
fundamental na vivência do prazer. Nesse sentido, cortesãs e prostitutas serviam de incentivo
Estudos de Sexualidade 3

tanto ao comércio de luxo quanto de inspiração para produções pornográficas da época (LEITE
JR, 2006).
Até o final do século XIX, pornógrafos alhearam-se às questões políticas e o principal
objetivo da pornografia tornou-se a excitação sexual do seu público. Esse deixou de ser
constituído apenas pela classe operária, conquistando membros da aristocracia, profissionais
liberais e empregados de escritórios do gênero masculino (LEITE JR, 2006).
O surgimento da fotografia e do cinema ao longo do século XIX revolucionou o mundo
pornográfico, permitindo uma produção padronizada para um mercado estabelecido e o sexo
tornou-se expressão da uniformização dos desejos e padronização dos prazeres. Isso culminará 301

numa pornografia enquanto indústria lucrativa com efeitos de produção de subjetividade em


seus consumidores, no século XX (LEITE JR, 2006).
Na virada do século XIX e ao longo do século XX vemos a pornografia surgir como
entretenimento de massa, cuja única motivação é a excitação de seu público (LEITE JR, 2006).
Isto é, "a pornografia passou a oferecer a si mesma como objeto de desejo" (MALTZ; MALTZ,
2008).
Com essa mudança gradual, em 1959 a pornografia havia se tornado um negócio tão
lucrativo que havia atingido a cifra de US$1 bilhão anuais (LEITE JR, 2006). Durante essa era
pré-internet as principais formas pelas quais a pornografia foi comercializada e distribuída
incluíam revistas, vídeos, DVDs e televisão (HALD; SEAMAN; LINZ, 2014). Essa
pornografia à qual os jovens estiveram expostos continham “sorrisos tímidos, poses
provocativas e o vislumbre de genitálias femininas parcialmente depiladas” (DINES, 2011,
p.13).
A partir dos anos 2000 a facilidade de acesso e a abundância de conteúdo pornográfico
disponibilizado gradativamente por meio da internet acabou saturando o mercado. Isso teve
como consequência consumidores cada vez mais entediados e dessensibilizados, necessitando
de estímulos cada vez mais intensos para se excitar. Em resposta a essa demanda, pornógrafos
passaram a buscar novas formas de diferenciar os seus produtos (DINES, 2011).
Nesse sentido, essa disputa tornou a pornografia cada vez mais extrema ao ponto em
que as imagens encontradas hoje em dia, em qualquer site de pornografia convencional, seriam
classificadas como hardcore há algumas décadas atrás. O que a juventude atual encontra nos
sites pornô online inclui um “universo interminável de ânus destruídos, vaginas distendidas e
faces cobertas de sêmen” (DINES, 2011, p. 13).
Estima-se que, atualmente, 12% de todos os websites, aproximadamente 4,2 milhões
de sites, contenham pornografia (ROSSER et al., 2012 apud HALD; SEAMAN; LINZ, 2014)
e, que 25% de toda a demanda em sites de busca sejam relacionadas à pornografia (MARKEY;
MARKEY, 2010 apud HALD; SEAMAN; LINZ, 2014). No que diz respeito ao consumo de
pornografia pelo público masculino, resultados de pesquisas internacionais apontam que cerca
de 50% a 99% dos homens possivelmente consomem pornografia e que a idade média de
exposição ocorre, majoritariamente, entre os 11 e 15 anos de idade (DINES, 2011; GUNTHER,
1995, HALD, 2006, MORGAN, 2011, SABINA et al., 2011 apud HALD; SEAMAN; LINZ,
2014). Além disso, em estudo conduzido por Wosnitzer e Bridges (2007 apud DINES, 2011),
descobriu-se que 50 vídeos mais acessados na época continham tanto agressão física, em 88%
das cenas, e abuso verbal, em 48%. Tal mudança quantitativa e qualitativa desses conteúdos
impactou a forma que meninos e homens experienciam a pornografia (DINES, 2011).
No que diz respeito aos impactos gerados pelo consumo da pornografia observamos
que ao longo do século XIX foram tecidos argumentos relativos à degradação moral e
perversidade dos pornógrafos e de seus consumidores (LEITE JR, 2006). No século XX,
principalmente durante a década de 90 nos Estados Unidos, podemos observar a organização
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

desses estudos em três perspectivas ideológicas29: a Liberal; a Moralista-Conservadora; a


Radical-Feminista (LINZ; MALAMUTH, 1993 apud HALD; SEAMAN; LINZ, 2014).
Ainda que não haja consenso entre essas perspectivas, todas concordam quanto a
possibilidade de desenvolvimento de efeitos adversos, tanto individualmente quanto
socialmente, em maior ou menor grau (HALD; SEAMAN; LINZ, 2014).
Entretanto, em todas as perspectivas citadas acima falta tanto uma descrição mais
completa dos mecanismos e processos relacionados a esses efeitos adversos, quanto uma visão
sistemática e integrativa empiricamente validada a qual permita a sua compreensão. Com a
302
virada para o século XXI vemos surgir perspectivas científicas30, resultado de pesquisas nas
áreas da sexualidade e da comunicação, alegando que certos indivíduos do sexo masculino, a
partir de certas condições e história de vida, apresentam risco elevado de cometer violência
sexual, atração por violência sexual, probabilidade de coagir sexualmente outras pessoas,
promiscuidade social e de possuir atitudes favoráveis à violência contra mulheres, devido ao
consumo de pornografia (HALD; SEAMAN; LINZ, 2014).
Essas pesquisas começaram a chamar atenção da comunidade científica indicando que
parcela da população enfrenta dificuldades no consumo da pornografia e que esse tema merece
ser estudado. Porém, resultados inconsistentes, devido a questões metodológicas, trazem
inúmeras dúvidas, incertezas e reservas quanto a validade e generalização dos mesmos
(HALD; SEAMAN; LINZ, 2014).
Conforme demonstrado anteriormente esses estudos visaram, majoritariamente,
responder questões ligadas ao fenômeno da violência sexual, mas como a questão de a
pornografia levar ao estupro é um assunto complexo que envolve outros fatores
[...]os setores progressistas se recusam a analisar criticamente os efeitos culturais da pornografia [...]
Deixando de lado a questão mais sutil de como a pornografia molda a cultura e os homens que fazem
seu uso (DINES, 2011, p. 109).

A autora reconhece a importância da pornografia na sociedade por representar ideais


misóginos, mas argumenta que não se relaciona de forma causal e simplista ao estupro. E que
ao se pensar de tal maneira ignora-se o contexto amplo da sociedade permeada por imagens e
ideologias sexistas (DINES, 2011).
Como o foco das pesquisas se deteve nas questões mencionadas acima, pouca ou
nenhuma atenção foi dada a outro tema que passou a despertar o interesse e preocupação de
alguns profissionais de saúde mental. Através de sua prática clínica e em conversas com
colegas de profissão observaram um aumento significativo de pacientes apresentando
dificuldades ou alguma queixa relacionada tanto ao consumo regular quanto compulsivo/
problemático de pornografia. Esses pacientes relatam uma série de prejuízos, pessoais e
interpessoais, em suas vidas e uma incapacidade em se abster do uso (MALTZ; MALTZ,
2008).
A partir de 2010, surgiram uma série de relatos de homens, nascidos na década de 90
e que estiveram expostos à pornografia desde a infância, em fóruns de discussão online, como
o NoFap31, afirmando que estavam enfrentando dificuldades em manter ereções em suas
relações sexuais. Devido à falta de produções acadêmicas e de profissionais de saúde que
estudassem o assunto, essa população viu-se desamparada diante de um fenômeno novo o qual
não entendiam, o que é confirmado por alguns poucos especialistas na época alegando não
encontrarem produções científicas sobre o tema (MALTZ; MALTZ, 2008).

29 Hald, Seaman e Linz (2014)


30 Idem
31 Subfórum de discussão do Reddit.
Estudos de Sexualidade 3

Diante disso, esses usuários passaram a especular à cerca da situação e elaborar


possíveis explicações. O principal argumento resultante dessas discussões é que o consumo
regular de pornografia poderia induzir o desenvolvimento de um quadro de disfunção erétil e
que, possivelmente, poderia desenvolver um tipo de “adição/ vício” em pornografia, uma vez
que, majoritariamente, esse grupo era composto por jovens, no ápice da juventude e em estado
de saúde física adequada. Para esses indivíduos não fazia sentido isso estar relacionado a
problemas hormonais como baixos níveis de testosterona, ou à obesidade, por exemplo
(LUSCOMBE, 2016).
A adição em pornografia, que costumava ser um caso isolado representando um 303

problema pequeno para poucas pessoas, tornou-se uma questão social crescente e causando
problemas nas vidas das pessoas (MALTZ; MATLZ, 2008 apud DINES, 2011).
Vale ressaltar que quando se fala sobre pornografia não existe consenso quanto à o que
constitui pornografia e suas definições são variáveis, ainda que existam classificações
existentes envolvendo categorias e o tipo de conteúdo encontrado em cada tipo de
pornografia32, como hardcore, softcore, gonzo, etc. O presente trabalho traz uma definição
utilizada por Maltz e Maltz (2008, p.23) por acreditar que se adeque àquilo que o usuário
compreenda enquanto tal:
[...] qualquer material sexualmente explícito cuja intenção é ou utiliza-se com uma finalidade sexual.
Essa definição baseia-se mais no tipo de relacionamento que a pessoa desenvolve com o material sexual,
ao invés do quanto o material é sexualmente gráfico ou da natureza do seu tema.

Também não parece existir consenso quanto ao que configuraria um uso regular ou
compulsivo/ problemático de pornografia, exceto prejuízos percebidos que são relatados pelos
usuários em diversas áreas de suas vidas, como profissional, acadêmica, amorosa. Além disso,
são relatadas sensações incômodas quando não estão fazendo uso, como ânsia, preocupações
e sensação de não ter controle sobre o desejo de assistir pornografia. Quando tenta abster-se
por período prolongado, relatam sentir agitação, sintomas depressivos e insônia (MALTZ;
MATLZ, 2008).
Compreende-se que o desenvolvimento de um consumo problemático pode estar
relacionado ao tipo de relação que o usuário estabelece com a pornografia (MALTZ; MALTZ,
2008), uma vez que se sabe que diferentes usuários utilizam diferentes tipos de pornografia e
por diferentes razões. Ainda assim, existe uma predominância no consumo de tema
relacionados a sexo vaginal, anal, oral e grupal. No que diz respeito às razões para consumir
usuários de pornografia relatam:
exposição involuntária (spam, pop-ups), entretenimento ou diversão, curiosidade, aprendizado sexual,
apimentar fantasias sexuais ou a vida a sexual, para excitação durante a masturbação ou durante a
atividade sexual (HALD; SMOLENSKI; ROSSER, 2013, LAM; CHAN, 2007, LAWRENCE;
HEROLD, 1989, MALAMUTH; BILLINGS, 1986, MORGAN, 2011, SABINA et al., 2008,
SØRENSEN; KJØRHOLT, 2007, SVENDIN; AKERMAN; PRIEBE, 2011 apud HALD, SEAMAN,
LINZ, 2014).

Entretanto, o que começou como um hábito inofensivo, divertido, que se tratava de


uma fantasia para algumas pessoas, como um substituto para a falta de contato com outras
pessoas, acaba trazendo consequências para as suas vidas (MALTZ; MALTZ, 2008). O
consumo habitual acabou por acostumar essas pessoas a um sexo focado na estimulação visual,
seguindo um roteiro pronto como aquele apresentado na pornografia. Isso cria nesses usuários
a expectativa de que o sexo com outras pessoas siga a mesma fórmula, evitando aspectos
importantes da sexualidade humana, como sentimentos de conexão, empatia, ternura, cuidado

32 Ver Leite Jr (2006) para sobre as classificações de pornografia.


Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

e afeto, assim como a comunicação, preliminares, pós-sexo, preocupação quanto à segurança


e às consequências da atividade sexual (MALTZ; MALTZ, 2008; DINES, 2011).
Pela maneira como a pornografia convencional é produzida e apresentada numa época
em que a maioria dos consumidores já tem roteiros sexuais e de gênero internalizados, ensina
outros sentimentos próximos ao ódio, como medo, nojo, raiva, repugnância e desprezo,
profundamente motivadas por ideologias sociais misóginas (DINES, 2011).
Além disso, quando consome pornografia o usuário também está protegido de possíveis
rejeições o que aumenta a sensação de poder e controle enquanto consome pornografia
304
(MALTZ; MALTZ, 2008)
Essas mudanças ocorrem de forma gradual conforme o usuário se expõe repetidamente
à pornografia, devido a um sistema de rápida recompensa quando o usuário se masturba
assistindo pornografia, culminando no orgasmo o qual serve de reforço para tal
comportamento. Também existe um esquema de reforço intermitente descrito pelos usuários
que funciona durante a busca de material sexualmente excitante, ele nunca sabe quando
encontrará algum que corresponda ao seu desejo no momento o que pode levar a uma busca
mais curta ou mais demorada (MALTZ; MALTZ, 2008).
Além disso, o consumo de pornografia está associado a liberação de uma série de
neurotransmissores e hormônios como dopamina, adrenalina, serotonina, endorfinas. Às quais,
quando liberadas no organismo, possuem o potencial para gerar sensações de prazer e de bem-
estar, entorpecer sensações dolorosas e produzir um estado profundo de relaxamento. Ou seja,
disponibiliza uma combinação de excitação, relaxamento e fuga do sofrimento a curto prazo
(MALTZ; MALTZ, 2008).
Porém um possível uso problemático de pornografia não se restringe unicamente a
fatores biológicos e individuais. Deve-se ter em mente que existe um apelo por parte da
indústria pornográfica multibilionária, a qual investe financeiramente para produzir conteúdo
cada vez mais extremos, seguindo um roteiro programado e cuidadosamente planejado por
profissionais, para estimular o consumo desses produtos (DINES, 2008).
Como nossos organismos se tornam habituados aos estímulos pornográficos aos quais
somos frequentemente expostos, ocorre um processo de dessensibilização com o tempo e o que
antes era excitante torna-se tedioso, monótono e previsível. Portanto, essa mesma indústria se
adapta às demandas apresentadas a fim de mantê-los interessados e consumindo os seus
produtos, constantemente ultrapassando limites. Isso resulta em vídeos e filmes pornográficos
cada vez mais extremos contendo, por exemplo, violência física e verbal, simulação de estupro,
para fornecer estímulos intensos que estimulem quem está assistindo (MALTZ; MALTZ,
2008; DINES, 2011).
Dentre as consequências negativas relacionadas à dificuldades sexuais, esses usuários
relatam dificuldades quando vão se relacionar com um parceiro real, como: falta de interesse
em atividades sexuais; falta de excitação sexual; não conseguem ter ou manter ereções; não
conseguem chegar ao orgasmo; experimentam pensamentos intrusivos com imagens
pornográficas durante o sexo; serem exigentes ou violentos com seus parceiros no sexo;
sentem-se emocionalmente distantes e desligados no sexo; insatisfação com relações sexuais;
não conseguir estabelecer ou manter relacionamentos íntimos; engajam-se em comportamentos
sexuais de risco (MALTZ; MALTZ, 2008).
Além disso, existem outras consequências comuns também relatadas, às quais
incluem: humor irritadiço, depressivo, isolamento social, incômodo com a constante
objetificação sexual que fazem dos outros, negligenciar áreas importantes de suas vidas,
incômodos e insatisfação de seus parceiros, sentem-se mal consigo mesmos, expõem-se em
comportamentos perigosos e de risco, por fim, tornam-se "viciados" em pornografia (MALTZ;
MALTZ, 2008).
Estudos de Sexualidade 3

A partir do que foi exposto acima compreende-se que existe um fenômeno ainda em
grandemente inexplorado e incompreendido, tanto pela sociedade quanto pela comunidade
científica, especificamente. E este fenômeno está produzindo sofrimento para esse grupo de
pessoas mencionado. Portanto, merece ser estudado a fim de entendermos o seu
funcionamento, suas características e para que se possam elaborar estratégias de intervenção
junto a esses indivíduos, para além de relatos informais de usuários na internet e de produções
resultantes da experiência clínica na prática privada de alguns profissionais específicos.
Produções essas vindas de um contexto cultural diferente do brasileiro, uma vez que as
referem-se majoritariamente à população estadunidense e, consequentemente, podem não se 305

adequar à prática de profissionais de saúde mental no âmbito nacional.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Buscar embasamento teórico e científico sobre os efeitos adversos relatados por indivíduos que
relatam fazer um uso/ consumo problemático de pornografia.
Objetivos específicos
Fornecer diferentes definições sobre uso/ consumo problemático de pornografia, modelos
teóricos os quais permitam a compreensão desse fenômeno e características clínicas dessa
população.

3. METODOLOGIA
Este trabalho é produto de uma revisão sistemática de quinze artigos publicados entre
os anos de 2015 e 2020, consultando as bases de dado Periódicos Capes, BvSaúde (Biblioteca
Virtual de Saúde), BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações) e DOAJ
(Directory of Open Access Journals).
Após uma série de tentativas mal sucedidas para encontrar resultados utilizando as
seguintes combinações de palavras-chave: “pornografia” e “uso abusivo”; “pornografia” e
“consumo abusivo”; “pornografia” e “uso compulsivo”; optou-se pela utilização da palavra-
chave “pornografia” acompanhada da leitura do resumo de cada um dos artigos encontrados.
Nessa leitura deviam constar alguma menção sobre uso problemático, uso compulsivo,
comportamento aditivo ou vício em pornografia. Essa escolha justifica-se a partir da leitura
prévia da bibliografia disponível.
Ao total foram encontrados 63 artigos, dos quais 59 escritos em inglês, 3 em português
e 1 em espanhol. Desses 2, 52, 1 e 8 artigos correspondiam, respectivamente, às bases de dado
mencionadas anteriormente.

4. RESULTADOS
Os artigos escolhidos constituem-se majoritariamente de estudos transversais (8),
seguido de estudos experimentais (2), revisões bibliográficas (2), análises críticas (2), estudo
de caso (1) e estudo longitudinal (1). Esses estudos foram realizados utilizando amostras
predominantemente dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália e Polônia.
Buscou-se analisar os resultados encontrados a partir de três conjuntos de dados:
definições e classificações; modelos teóricos, características e variáveis associadas.

5. DISCUSSÃO
A leitura dos artigos apontou que os autores utilizam suas próprias definições, devido
à falta de consenso em torno de uma definição operacional sobre o que seria um uso
problemático de pornografia. Geralmente, essas definições costumam divergir no foco dado a
comportamentos objetivos (definição quantitativa), como tempo de pornografia consumida por
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

semana, ou na experiência subjetiva do usuário (definição qualitativa), papel desempenhado


pelo consumo e suas consequências para o usuário (DUFFY et al., 2016; GOLA et al., 2016).
Consequentemente, existe a possibilidade de que cada pesquisador esteja falando sobre
diferentes fenômenos.
Essas classificações costumam ser utilizadas de forma intercambiável, o que pode gerar
resultados inconsistentes nas pesquisas sobre o tema e confusão na sua interpretação (DUFFY
et al, 2016; VAILLANCOURT-MOREL; BERGERON, 2018). Portanto, os quadros
analisados serão expostos e agrupados, contendo suas definições e características.
306
Dentre os nomes utilizados para descrever a situação em que o uso de pornografia vem
acompanhado de consequências negativas pelos seus usuários encontram-se: uso desregulado
de pornografia, uso problemático de pornografia, uso excessivo de pornografia, uso aditivo de
pornografia, transtorno de uso de pornografia, adição autodiagnosticada em pornografia.
Apesar da diversidade de nomes utilizados, preferiu-se utilizar como base as
características e descrições compatíveis com quadros diagnósticos já conhecidos no DSM-V
ou CID-11, ou a partir da semelhança com esses quadros. A análise dos artigos indicou que as
classificações se encaixam em quatro possíveis diagnósticos: Comportamento Sexual
Compulsivo, Adição Comportamental, Transtorno de Hipersexualidade e Problemas com
Pornografia devido a Incongruência Moral.
O único autor que fez menção ao comportamento sexual compulsivo como um possível
diagnóstico, assim como adição comportamental, para uso problemático de pornografia foi
Wéry et al., (2018), através de um estudo de caso. Foi descrita a situação de Simon, um homem
solteiro de 37 anos, cuja demanda girava em torno de suas dificuldades com uso de pornografia,
masturbação e tabaco.
A definição de Comportamento Sexual Compulsivo utilizada, inclui semelhanças com
o modelo obsessivo-compulsivo onde os comportamentos são motivados pela redução de
ansiedade. Nesse caso, tais comportamentos compulsivos, como masturbação e consumo de
pornografia, servem para aliviar ansiedade gerada por pensamento intrusivos e estados
emocionais adversos causados por um histórico de traumas infantis e de um estilo de apego
inseguro. Como consequência da sua história de vida, testemunhando tanto abuso físico da mãe
quanto abuso de sexual da irmã, Simon aprendeu a passar despercebido para evitar a raiva de
seu pai instável. Esse estilo de enfrentamento evitativo ajudou a sobreviver nesse contexto,
mas tornou-se uma resposta generalizada sobre como se relacionar com outras pessoas. Logo,
Simon também aprendeu a se distanciar de amizades e possíveis relações de intimidade. Para
lidar com a dor emocional resultante do abuso e de suas dificuldades interpessoais,
acompanhados de sentimentos de solidão, isolamento social, crenças negativas sobre si e sobre
os outros, voltou-se para comportamentos compulsivos como forma de mitigar e compensar
esse sofrimento (WÉRY et al., 2018).
É curioso notar que esses comportamentos surgem apenas quando Simon não está
trabalhando, o que fazia na maior parte de seu tempo. Portanto o paciente tentava evitar esses
sentimentos mantendo-se constantemente ocupado. No seu tempo livre, quando estava em casa
e por não ter relacionamentos próximos, íntimos ou duradouros, envolvia-se nesse ciclo
compulsivo para evitar pensamentos intrusivos acompanhados de estado emocional negativo
(WÉRY et al., 2018).
Vale ressaltar que recentemente a categoria Comportamentos Sexuais Compulsivo foi
incluída na 11a edição do Código Internacional de Doenças (WHO, 2020),
caracterizado pelo padrão persistente de fracasso na tentativa de controlar impulsos sexuais intensos e
repetitivos resultando em um comportamento sexual repetitivo. Sintomas podem incluir: atividades
sexuais repetitivas como foco central da vida da pessoa ao ponto de negligenciar a sua saúde, cuidados
pessoais ou outros interesses, atividades e responsabilidades; inúmeras tentativas fracassadas de reduzir
significativamente o comportamento sexual repetitivo; comportamentos sexuais repetitivos apesar de
Estudos de Sexualidade 3
consequências adversas, pouca ou nenhuma satisfação resultante. O padrão de falha de controle de
impulsos sexuais intensos e, consequentemente, o padrão repetitivo desse comportamento deve se
manifestar durante um período de tempo (6 meses ou mais), causando uma angústia profunda e prejuízo
pessoal, familiar, social, educacional e ocupacional significativos ou em alguma outra área importante
da vida. Sofrimento resultante estritamente de julgamentos morais ou desaprovação de impulsos sexuais
ou comportamentos não é o suficiente para preencher esses requisitos.

Apesar do padrão apresentado pelo paciente ter semelhanças com a descrição


apresentada, não foram apontadas tentativas de controlar ou diminuir o uso de pornografia a
qual parece uma característica fundamental segundo os critérios acima. Além disso, como o 307
quadro do paciente ocorria há muitos anos, a sua vida já estava organizada em torno desses
hábitos, portanto, também não foi possível observar prejuízos nas demais áreas de sua vida.
Segundo observação do autor o paciente também não considerava o seu padrão de consumo
como problemático, muito menos relatava incômodo. Pelo contrário, a busca de tratamento foi
decorrente de comorbidades como sintomas de ansiedade e de depressão. Portanto, a definição
de Comportamento Sexual Compulsivo não corresponde ao diagnóstico que existe atualmente.
É provável que se encaixe na definição de Adição Comportamental, será demonstrada a seguir.
As adições comportamentais são mencionadas desde o DSM-V (APA, 2014, p. 481),
na seção de Transtornos Relacionados a Substâncias e Transtornos Aditivos, quando são
mencionados padrões de comportamentos excessivos, como "[...] grupos de comportamentos
repetitivos, por vezes denominados adições comportamentais, com subcategorias como
"adição sexual". Porém, as mesmas não foram incluídas na presente edição devido à falta de
"[...] evidências suficientes revisadas por pares para estabelecer os critérios diagnósticos e
descrições de curso necessários para identificar tais comportamentos como transtornos
mentais".
O exemplo de adição comportamental citado pelo DSM-V é o transtorno do jogo, onde
o comportamento de jogo apresenta evidências de ativação dos sistemas de recompensas
semelhantes aos ativados por drogas e geram sintomas comportamentais comparáveis àqueles
produzidos pelos transtornos de abuso de substâncias (APA, 2014).
Esse argumento também é utilizado por diversos autores para classificar o uso
problemático de pornografia como uma adição comportamental, condição marcada por um
envolvimento comportamental excessivo, caracterizado pela impulsividade e por uma perda de
controle, acompanhada de sensação de ânsia disparada por gatilhos relacionados a pistas
condicionadas, isto é, informações relacionadas ao estímulo aditivo. Esse comportamento
costuma ser mantido apesar de causar prejuízos pessoais, sociais ou ocupacionais (ALLEN et
al., 2017, ANTONS; BRAND, 2018; ANTONS et al., 2019; GOLA et al., 2016; PEKAL et al.,
2018; WÉRY et al., 2018).
Portanto a definição de adição comportamental apresentada acima parece estar de
acordo com a definição do DSM-5, mencionada anteriormente. Também possui semelhanças
com aquela fornecida pelo CID-11 para os Transtornos Relacionados a Comportamentos
Aditivos, os quais
[...] são síndromes reconhecíveis e clinicamente significativas associadas com sofrimento e interferência
em funções pessoais, que se desenvolvem em decorrência de comportamentos repetitivos e
recompensadores que não sejam resultantes do uso de substâncias geradoras de dependência (WHO,
2020).

Por sua vez, o Transtorno de Hipersexualidade foi proposto para ser incluído no DSM-
5 mas foi rejeitado na edição final por falta de evidências experimentais (DUFFY et al., 2016;
GOLA et al., 2016; LEWCZUK et al., 2017). Esse quadro seria um transtorno do desejo sexual
marcado pela impulsividade e pela ausência de comportamento parafílico, como uma adição
sexual (ANTONS; BRAND, 2018; PYLE; BRIDGES, 2012 apud DUFFY et al., 2016), em
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

que indivíduos frequentemente se envolvem em comportamentos sexuais por um período


excessivo sem levar em consideração o risco de dano físico ou emocional para si ou para outros
(APA, 2010 apud DUFFY et al., 2016). Um sintoma específico desse transtorno é o uso
excessivo de pornografia (ALLEN et al., 2017; KAFKA, 2010 apud GOLA, 2016; KRAUS et
al., 2016; VAILLANCOURT-MOREL et al., 2017 apud VAILLANCOURT-MOREL;
BERGERON, 2018).
Esses indivíduos se envolvem nesses comportamentos em resposta ao estresse ou ao
humor disfórico, a tentativas falhas de controlar pensamentos intrusivos, impulsos e
308
comportamentos sexuais, acompanhadas de ânsia para utilizar pornografia, causando um
prejuízo funcional na sua vida (ALLEN et al., 2017; KAFKA, 2010 apud WÉRY, 2018; REID
et al., 2011 apud KRAUS et al., 2016).
A partir da leitura das definições de Transtorno de Hipersexualidade e de Adição
Comportamental, é possível observar uma superposição dos critérios e características desses
transtornos. Logo, pode-se pensar que sejam nomenclaturas diferentes para o mesmo
fenômeno. Uma evidência nesse sentido foi a abordagem sintomatológica utilizada por Wéry
et al., (2018), quando utilizou critérios de ambos por meio de uma escala única para
diagnosticar Simon. Também é possível perceber que os dois transtornos mencionados
compartilham de certas características com Comportamento Sexual Compulsivo. Portanto
essas três condições serão utilizadas como referências um único e mesmo fenômeno chamado
de uso desregulado de pornografia, em alusão à primeira via do modelo de Grubbs et al.,
(2018), exposto mais adiante.
Existem diversos modelos que possibilitam a compreensão do desenvolvimento e
manutenção de um uso desregulado de pornografia, como o modelo I-PACE (ANTONS et al.,
2019; ANTONS; BRAND, 2018); Teoria da Sensibilização do Incentivo33 (PEKAL et al.,
2018); Teoria Metacognitiva do Pensamento Desejoso (ALLEN et al., 2017); Teoria dos
Processos Irônicos de Controle Mental (LEWCZUK et al., 2017).
Em sua maioria esses modelos compartilham das mesmas características que os
transtornos relacionados a substância e ao uso problemático de internet, tais como influência
de estados e traços de impulsividade, desequilíbrio no controle executivo entre processos
reflexivos e automáticos, vieses atencionais, respostas de ânsia, hiperatividade do sistema de
recompensas.
Impulsividade como traço de personalidade é reconhecida como um fator de
predisposição para desenvolver um uso desregulado de pornografia, mas altos níveis desse
traço estão apenas levemente relacionados com uso desregulado e não servem como critério
para distinguir de um uso recreativo. Ainda assim, é possível que tenha correlação com uma
maior frequência de uso de pornografia devido a uma preferência por recompensas pequenas
e imediatas em detrimento de recompensas maiores que demandam maior tempo de espera
(ANTONS et al., 2019). E maior tempo de consumo de pornografia já foi apontado como
preditor de menor satisfação sexual, manifesto por sintomas relacionados com prejuízo no
funcionamento sexual, como disfunções sexuais, compulsão e evitação. Também é possível
observar o desenvolvimento de expectativas irrealistas, ansiedade de performance e menor
controle sobre a sexualidade (BLAIS-LECOURS et al., 2016).
Quando pistas relacionadas ao estímulo aditivo são apresentadas para indivíduos que
fazem uso desregulado de pornografia, ocorrem respostas cognitivas e afetivas que levam a um
estado impulsivo. A interação desse estado com traços de impulsividade leva a um efeito
acumulativo, o qual contribui para maior quantidade de comportamentos sexuais compulsivos
assim como uma maior severidade de sintomas relacionados (ANTONS; BRAND, 2018).

33 Robinson e Berridge (1993).


Estudos de Sexualidade 3

Esses resultados indicam um possível desequilíbrio do processamento dual a nível


neurobiológico, entre sistemas impulsivo-automático e reflexivo-controlado. Isso ocorre por
uma falha do segundo sistema, o qual desempenharia a função de inibir a tendência de agir
impulsivamente. Essa hipótese é resultante de experimentos nos quais não foi possível
mensurar a habilidade de controle inibitório diante de pistas relacionadas a pornografia 34, na
ausência de sinais indicando hiperatividade do sistema impulsivo (ANTONS; BRAND, 2018).
O desequilíbrio entre sistemas impulsivo e reflexivo leva à formação de vieses
atencionais, um processo cognitivo de percepção individual afetado por pistas relacionadas
(FIELD; COX, 2008 apud PEKAL et al., 2018). Por sua vez, esses vieses levam a rápidas 309

mudanças de atenção para essas pistas, devido a um processo de condicionamento que torna as
mesmas salientes. Consequentemente, o viés atencional interfere no processo de tomada de
decisão para adiantar a gratificação na forma de excitação sexual. Tanto excitação sexual
quanto necessidade de se masturbar são indicadores e mediadores parciais de viés atencional
em sujeitos que fazem uso desregulado de pornografia. O viés atencional também é um forte
preditor para o desenvolvimento de sintomas em homens e de desenvolvimento de um quadro
de uso problemático de pornografia. (PEKAL et al., 2018).
Indivíduos que fazem uso desregulado de pornografia também desenvolvem gatilhos
internos e externos, por meio de um condicionamento decorrente da exposição repetitiva a
pistas relacionadas (ANTONS et al., 2019; BRAND et al., 2019; PEKAL et al., 2018). Esses
gatilhos provocam respostas afetivas e cognitivas, às quais geram sensação de ânsia no usuário.
Ânsia é compreendida como a necessidade irresistível de consumir uma determinada
substância (ANTONS; BRAND, 2018), e representa uma resposta fisiológica, emocional e
motivacional a pistas relacionadas, resultando em comportamento de aproximação dessas
pistas (BRAND et al., 2019; PEKAL et al., 2018).
Descobriu-se que níveis extremamente elevados são específicos de usuários
desregulados e servem de critério de diferenciação de usuários recreativos, apesar de níveis
elevados de impulsividade (ANTONS et al., 2019). A presença de resposta de ânsia também
indica um processo bottom-up aumentando, o que reforça a importância dos estímulos
sensoriais e um baixo nível de autocontrole. Além disso, está ligada a uma hiperatividade do
sistema de recompensas (BRAND et al., 2019).
Estudos também apontam para a relação entre estados impulsivos e ânsia, às quais
combinadas com traços de impulsividade, aumentam a severidade de sintomas relacionados ao
uso desregulado de pornografia (ANTONS; BRAND, 2018).
Quando se leva em consideração excitação sexual como um dos principais inibidores
do funcionamento executivo e, consequentemente, do controle do comportamento, combinada
com níveis elevados de ânsia, percebe-se que são os principais preditores do uso desregulado
de pornografia (ANTONS; BRAND, 2018; PEKAL et al., 2018).
A literatura também aponta para a importância das reações cognitivas que levam à
ânsia, em especial no que diz respeito ao envolvimento de voluntário em pensamentos
desejosos35 (ALLEN et al., 2017).
O pensamento desejoso divide-se em dois tipos: perseveração verbal e prefiguração
imaginal. O primeiro envolve diálogos internos que justificam as razões do comportamento. O
segundo envolve o foco em informações relacionadas ao comportamento, como imaginar ou
relembrar situações em que se consumiu pornografia. Esse processo se torna desadaptativo
quando é perseverante e desregulado, onde a metacognição desempenha o papel central nessa
desregulação. Isso ocorre dentro de uma condição chamada Síndrome Cognitiva Atencional,

34 Estímulo relacionado ao comportamento aditivo.


35 Tradução própria do termo em inglês Desire Thinking.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

que preserva cognições e afetos negativos contribuindo para a manutenção de crenças


negativas sobre si.
Entretanto, as metacognições afetam o pensamento desejoso refletindo tanto
informações negativas quanto positivas. As metacognições positivas ajudam a distrair o
indivíduo de seus pensamentos e sentimentos negativos, funcionando como um estilo de
enfrentamento evitativo que aumenta o controle sobre decisões e comportamentos. Por outro
lado, as metacognições negativas refletem a falta de controle sobre pensamentos relacionados
ao comportamento e a perda de controle sobre o pensamento desejoso.
310
Quando o pensamento desejoso é ativado, através de uma associação de metacognições
positivas com as duas formas de pensamento desejoso, ocorre a mudança de foco de atenção
para informações relacionadas a pornografia. A partir de então, a imaginação prefigural por si
só é capaz de influenciar diretamente a perseveração verbal que, por sua vez, afeta diretamente
os níveis de ânsia do indivíduo. Também existem indícios de relação significativa entre
metacognições positivas e ansiedade, o que pode ser explicado pela relação já explorada entre
excitação sexual e ansiedade antecipatória (ALLEN et al., 2017).
Por outro lado, metacognições negativas parecem contribuir com a sensação de falta de
controle sobre os pensamentos (ALLEN et al., 2017). Essa afirmação é corroborada por
evidências à cerca da Teoria de Processos Irônicos de Controle Mental (LEWCZUK et al.,
2017), segundo a qual tentativas de inibição de pensamentos costuma ter um efeito paradoxal
que leva a um aumento na frequência de comportamentos relacionados ao pensamento inibido.
Esse processo leva a um reforço mútuo tanto do pensamento quanto do comportamento
desviante, da mesma forma que ocorre nos transtornos obsessivo-compulsivo. Além disso,
profissionais apontam para a participação desse processo nos comportamentos sexuais
compulsivos.
Portanto, o pensamento desejoso e as metacognições associadas parecem desempenhar
papel central na experiência da ânsia e da psicopatologia relacionada ao uso desregulado de
pornografia (ALLEN et al., 2017).
Outras variáveis não mencionadas pelos modelos devem ser apontadas, como o papel
de atitudes em relação à pornografia, permissividade sexual, excitação sexual, religião, gênero,
aceitação do parceiro e idade de primeira exposição à pornografia.
Estudos apontam que uma atitude mais positiva em relação à pornografia está
acompanhada de comportamentos de aproximação. Porém, Antons et al., (2019), indicou
resultados contraditórios, em que pessoas que usuários-recreativos de pornografia apresentam
atitudes mais positivas em relação a pornografia enquanto usuários ocasionais apresentaram as
atitudes mais negativas. Por sua vez, usuários desregulados de pornografia apresentaram
atitudes mais negativas que usuários recreacionais, porém não tão negativas quanto ocasionais.
Segundo o autor isso pode acontece porque esses usuários desregulados vivenciam
consequências negativas relacionadas a esse uso.
As atitudes dos parceiros de usuários também desempenham papel importante, dado
que sintomas de uso desregulado de pornografia costumam ser piores quando o parceiro
apresenta baixa aceitação do uso de pornografia. Isso aponta para uma variável interpessoal
importante a ser levada em consideração (DUFFY et al., 2016; WILLOUGHBY et al., 2016
apud VAILLANCOURT-MOREL et al., 2018).
Estudos apresentam evidências contraditórias e fracas relacionadas a atitudes mais
permissivas em relação a sexualidade (ANTONS et al., 2019). Alguns apontam para melhoras
na vida sexual e aumento de conhecimento pelo uso da pornografia, assim como uma tendência
a fazerem maior uso de pornografia, enquanto outros apontam para efeitos associados a
comportamentos sexuais compulsivos, comportamentos sexuais de risco e impactos na
satisfação sexual (BLAIS-LECOURS et al., 2016).
Estudos de Sexualidade 3

Por sua vez, maiores níveis excitação sexual contribuem em parte com o processo de
inibição do funcionamento executivo, diminuindo a preocupação com o controle do
comportamento e levando a estados de impulsividade (ALLEN et al., 2017).
O gênero do usuário parece desempenhar papel importante na percepção do uso
problemático, uma vez que mulheres tendem a perceber o seu consumo como uma atitude
desviante e, portanto, mais problemático que homens, cujo consumo de pornografia é visto
como normativo. Essa correlação foi apontada por um padrão intercalado feito por mulheres
de períodos de consumo ininterrupto de pornografia e de masturbação acompanhados de
períodos de inibição. Tal padrão parece ser influenciado pela religiosidade dessas mulheres, 311

que desempenha o papel de regular emoções negativas através do envolvimento com práticas
espirituais ou religiosas durante os períodos de inibição (LEWCZUK et al., 2017).
Indivíduos que fazem uso de pornografia estando solteiros costumam apresentar
sintomas mais severos de uso desregulado (GOLA et al., 2016), uma maior frequência de
consumo e de masturbação em comparação com indivíduos em relacionamento amoroso
(DWULIT; RZYMSKI, 2019; KRAUS et al, 2016). A possível explicação é que o uso
desregulado de pornografia e dificuldades de relacionamentos possuam uma causalidade
bidirecional e acabem se reforçando mutuamente (GOLA et al., 2016).
Indivíduos que foram expostos mais cedo à pornografia e que mantiveram uso
continuado de pornografia ao longo do tempo costumam apresentar maior severidade de
sintomas relacionados ao uso desregulado de pornografia. Vale ressaltar que a idade do
indivíduo também é um fator importante a ser levado em consideração uma vez que o
envelhecimento é acompanhado por uma diminuição no desejo sexual e no comportamento
sexual a dois, o que poderia vir a ser compensado por um aumento na frequência de uso de
pornografia (DWULIT; RZYMSKI, 2019; GOLA et al., 2016; LEWCZUK et al., 2017).
Agora a discussão progride para mencionar a última definição e classificação de uso
problemático de pornografia. Essa categoria diz respeito à segunda via segundo o modelo de
Grubbs et al., (2018), como um fenômeno distinto dos mencionados anteriormente. É o que
alguns autores chamam de Adição Autodiagnosticada em Pornografia (DWULIT; RZYMSKI,
2019; DUFFY et al., 2016; GRUBBS et al., 2015; VAILLANCOURT-MOREL; BERGERON,
2018) ou de Problemas com Pornografia devido à Incongruência Moral – PPIM - (BRAND et
al., 2019; GRUBBS et al., 2018). A segunda nomenclatura foi proposta como substituição a
primeira por deixar explícito o foco da condição na incongruência moral.
Tal modelo foi proposto por Grubbs et al., (2015), após notar que para certos indivíduos
uso de pornografia era percebido como problemático, apesar de pouco frequente. Ainda assim
esses usuários apresentavam efeitos adversos decorrentes do padrão de interpretação negativo
sobre o seu comportamento, levando a um padrão de pensamentos negativos sobre si similares
a indicadores de depressão, ansiedade e estresse percebido. A existências de duas vias também
é evidenciada pelos estudos de Kraus et al., (2016) e Vaillancourt-Morel et al., (2017 apud
GRUBBS et al, 2018), em que, respectivamente, 17% dos usuários, dentre os 71% que
pontuaram o suficiente para o transtorno de hipersexualidade, relataram não usar pornografia
toda semana, e 25% dos usuários que relataram fazer uso problemático faziam uso pouco
frequente, sem sinais de compulsividade, mas apresentando grande sofrimento relacionado ao
comportamento.
Nessa situação o sofrimento não é consequência de um uso desregulado, mas de um
conflito entre o uso de pornografia e valores morais individuais desses consumidores (DUFFY
et al., 2016). Indivíduos com fortes proibições morais, especialmente de cunho religioso,
percebem qualquer consumo de pornografia como contrário a seus valores e crenças.
Consequentemente, quando se percebem utilizando pornografia experimentam esse conflito e
isso explicaria o quadro de incongruência moral (GRUBBS et al., 2018).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Além do foco na experiência subjetiva, mencionado anteriormente, para descrever essa


condição, suas características dizem respeito ao critério de exclusão para Comportamento
Sexual Compulsivo, uma vez que o "[...] sofrimento é gerado por julgamentos morais e
desaprovação sobre impulsos, desejos e comportamentos sexuais" (WHO, 2020). Portanto, é
possível que o modelo de duas vias para o uso problemático de pornografia esteja correto.
A angústia sentida pelos indivíduos com PPIM é decorrente tanto da incongruência
quanto dos problemas resultantes da incongruência, como vergonha, desânimo, depressão e
ansiedade (GRUBBS et al., 2018).
312
Nesses casos a religião mostrou-se um forte preditor tanto de incongruência assim
quanto da crença de que se está vivendo problemas relacionados ao consumo de pornografia
(GRUBBS et al., 2018).
Segundo os autores ainda não é clara a porcentagem de usuários que possuem um
quadro de PPMI e de pessoas que apresentam uma verdadeira desregulação no uso de
pornografia. Resultados preliminares indicam que aproximadamente 13% dos usuários relatam
muito sofrimento sem sinais de compulsividade, enquanto 12% indicam tanto sofrimento
quanto compulsividade (VAILLANCOURT-MOREL et al., 2017 apud GRUBBS et al., 2018).
Portanto, é importante mensurar tanto sinais objetivos de desregulação, por meio da frequência
e das consequências desse uso, quanto a percepção pessoal desse uso decorrente de
incongruência moral.
Também se especula a possibilidade de um indivíduo possuir ambas as condições,
porque se envolver em comportamentos que gerem angústia num nível moral pode ser
indicativo de problemas de autorregulação. Por sua vez, isso seria um indicativo de compulsão
ou de adição. Porém ainda não existem evidências de que isso de fato ocorra (GRUBBS et al.,
2018).
Entretanto, diversas críticas são tecidas quanto a essa via. A desaprovação moral seria
resultado da religiosidade do indivíduo, mas sistemas de valores são dinâmicos
(VAILLANCOURT-MOREL; BERGERON, 2018). Envolvem a interconexão de diferentes
conjuntos de valores, os quais variam em importância e servem de guia para nossos
comportamentos. Além disso, determinadas atitudes podem ser contrárias a determinados
valores, mas serem compatíveis com certos objetivos relacionados a outros valores
(SCHARTZ, 1996 apud VAILLANCOURT-MOREL; BERGERON, 2018). Portanto o que
leva uma pessoa a escolher agir segundo determinado valor em detrimento de outro, levando a
incongruência moral, é influenciado por uma variedade de fatores individuais e sociais.
Ainda que a religiosidade seja o preditor de incongruência moral com maior validação
empírica, não é o único. Deve-se levar em consideração mudanças estruturais e culturais, que
podem impactar o sistema de valores e crenças individual e possivelmente causar mudanças
de atitudes ao longo do tempo (HITLIN; PILIAVIN, 2004 apud VAILLANCOURT-MOREL;
BERGERON, 2018).
Um exemplo são questões culturais como gênero e suas construções sociais, como as
atitudes mais positivas de homens em relação a pornografia (EVANS-DECICCO; COWAN,
2001; JOHANSSON; HAMMARÉN, 2007 apud VAILLANCOURT-MOREL; BERGERON,
2018). Muito provavelmente isso ocorre pela maneira que a relação entre homens e mulheres
é retratada. Mulheres são reduzidas a objetos sexuais de forma degradante e violenta. Além
disso, entre 1975 e 2012 a oposição a pornografia diminuiu significativamente nos Estados
Unidos como consequência de mudanças culturais gerais, incluindo atitudes sociais sobre
gênero e liberação sexual (LYKKE; COHEN, 2015 apud VAILLANCOURT-MOREL;
BERGERON, 2018).
Atitudes relativas à pornografia variam de acordo com os países e suas diferentes
práticas legais, assim como valores conservadores. A maneira como a mídia retrata a
Estudos de Sexualidade 3

pornografia também influencia a aceitação individual (VAILLANCOURT-MOREL;


BERGERON, 2018).
Portanto, atitudes em relação ao uso de pornografia são produto de uma dinâmica
complexa de interações entre valores familiares, normas de gênero, crenças morais
determinadas por contextos culturais e religiosos. Além disso, podem sofrer mudanças ao
longo do tempo devido a mudanças sociais ou culturais, assim como por mudanças no contexto
de relações do indivíduo, seja ele estando solteiro ou em um relacionamento amoroso pois a
opinião de um parceiro também impacta na percepção de uso problemático
(VAILLANCOURT-MOREL; BERGERON, 2018). Então, um modelo integrativo deveria 313

levar em consideração esses fatores para distinguir entre um Uso Desregulado de Pornografia
de Problemas com Pornografia devido à Incongruência Moral.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio desse trabalho foi possível expor evidências de que o uso de pornografia de
fato pode vir acompanhado por consequências negativas, como em um possível transtorno de
uso desregulado de pornografia. Existem também evidências de um outro quadro relacionado
à incongruência moral que, apesar de resultados inconsistentes e contraditórios, merece ser
estudado uma vez que pode constituir-se como possível critério de exclusão para o primeiro
caso. Ainda assim, ambas as situações trazem sofrimento para aqueles que convivem com os
seus efeitos e devem ser validadas dentro da prática clínica.
Entretanto, vale ressaltar que maior parte das evidências existentes atualmente sobre o
uso desregulado de pornografia são resultado de pesquisas transversais. Portanto, relações de
causalidade não podem ser traçadas, apenas pode-se suspeitar sobre a coexistência de diversas
variáveis que contribuem para o desenvolvimento e manutenção desse quadro.
Importante notar também que esses estudos foram feitos majoritariamente com homens
heterossexuais, ou seja, amostras relativamente homogêneas que não correspondem a
diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero existentes na população em geral.
Diante disso, sugere-se a replicação desses estudos a partir de uma perspectiva interseccional,
incluindo os fatores acima e questões relacionadas a raça e etnia, a fim de obter resultados que
de fato representem de forma significativamente a diversidade com a qual convivemos
diariamente.
Além disso, essas amostras foram retiradas de um número restrito de países, incluindo:
Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Austrália e Polônia. Logo, é necessário replicar esses
mesmos estudos em outros países, com diferentes contextos culturais além do ocidental,
judaico-cristão. Devido a falta de estudos sobre o tema em português no contexto brasileiro,
sugere-se que futuros estudos procurem replicar esses modelos e resultados no Brasil.

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315
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

316

Aula virtual em 19 de junho de 2020.


Estudos de Sexualidade 3

UM ESTUDO SOBRE ANORGASMIA FEMININA E SUA RELAÇÃO


COM A MASTURBAÇÃO E O CONHECIMENTO DO PRÓPRIO CORPO

Priscylla Antonelli Borges

317

RESUMO
Este trabalho consiste em uma revisão bibliográfica narrativa que buscou relacionar a
anorgasmia feminina ao autoconhecimento do corpo, a partir da pesquisa das relações
histórico-sociais que influenciam na sexualidade feminina, da anorgasmia em mulheres e
também dos aspectos da masturbação que influenciam no autoconhecimento do corpo. A busca
pela bibliografia a ser revisada priorizou trabalhos mais recentes, com menos de 5 anos de
publicação. O estudo explorou achados teóricos que definem e forneçem uma compreensão do
orgasmo, tanto pelas suas definições como resposta corporal, como pelas definições subjetivas
e complexas que envolvem esse fenômeno, passando pelas construções sociais e culturais que
permeiam a sexualidade feminina, investigando a ausência de experiências orgásticas pelas
mulheres, possíveis causas e fatores relacionados à anorgasmia. Também foram abordados
aspectos da atual obrigação ao orgasmo, chamada orgasmocracia, em contradição às
dificuldades vividas pelas mulheres em praticarem a masturbação, assim como a importância
do autoconhecimento corporal e a maneira como os dois últimos se relacionam, propiciando
mais satisfação sexual para as mulheres.
Palavras-chave: Anorgasmia, autoconhecimento corporal, orgasmo, sexualidade feminina,
masturbação.

ABSTRACT
This work consists of a narrative bibliographic review that sought to relate female anorgasmia
to self-knowledge of the body, based on the research of historical-social relations that influence
female sexuality, anorgasmia in women and also the aspects of masturbation that influence
self-knowledge of the body. The search for the bibliography to be reviewed prioritized more
recent works, with less than 5 years of publication. The study explored theoretical findings that
define and provide an understanding of orgasm, both by its definitions as a body response and
by the subjective and complex definitions that involve this phenomenon, passing through the
social and cultural constructions that permeate female sexuality, investigating the absence of
orgasmic experiences by women, possible causes and factors related to anorgasmia. Aspects
of the current obligation to orgasm, called orgasmocracy, in contradiction to the difficulties
experienced by women in practicing masturbation, as well as the importance of body self-
knowledge and the way the last two relate, providing more sexual satisfaction for women, were
also discussed.
Keywords: Anorgasm, body self-knowledge, orgasm, female sexuality, masturbation.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

1. INTRODUÇÃO
O orgasmo feminino se mostra um tema cada vez mais relevante na
contemporaneidade, ganhando notoriedade com o tempo e avanço, mesmo recente, dos estudos
sobre a sexualidade feminina. Os estudos do orgasmo ao longo das últimas décadas
consideravam-no como resposta fisiológica e deram pouca atenção aos aspectos subjetivos e
outros fatores associados a ele (PEREIRA e SOUZA, 2019).
Ele vem sendo estudado de diferentes perspectivas ao longo do tempo; entretanto ainda
não existe consenso entre os teóricos sobre sua definição ou propósito (CARNEIRO, 2017).
318
Para Carvalho (2018), existe uma carência de definição satisfatória do orgasmo, atribuindo
essa limitação ao fato de sua investigação ser dependente de aspectos subjetivos, aspectos que
envolvem a avaliação pertinente à própria experiência vivida do orgasmo.
Pereira e Souza (2019, p. 33) ,citando Arcila, Tobón e Gómez (2015), descrevem o
orgasmo como "um pico sensorial de imenso prazer, variável e transitório, que cria um estado
alterado de consciência e provoca contrações musculares rítmicas na região pélvica, resultando
em uma sensação interna de bem-estar e contentamento". Diversas variáveis e perspectivas
afetam a experiência orgástica, seja única ou múltipla, podendo se destacar aspectos
biológicos, psicoemocionais, pessoais, interpessoais, comportamentais e socioculturais
(PEREIRA e SOUZA, 2019).
O orgasmo, de acordo com Dias et al., (2015, p.2), citando Simões (2010) é:
[...] a resposta sexual normal na mulher é constituída por um conjunto complexo de fatores psicológicos,
ambientais e fisiológicos. A primeira fase da resposta sexual é a do desejo, acompanhada por quatro
fases consecutivas que compreendem a excitação, platô, orgasmo e resolução.

Os autores supracitados também afirmam que ao se deparar com uma situação excitante
a mulher pode desencadear um desejo sexual. Ao se estender o desejo sexual, ele pode ser
gratificante e tornar-se excitação sexual. A continuidade da excitação sexual pode resultar em
resposta orgástica. Os estímulos sexuais podem ser internos, provocados por pensamentos e
fantasias, e externos, desencadeados por tato, olfato, audição, gustação e visão. Os estímulos
se tornam resposta sexual e fazem com que gere a excitação (DIAS et al., 2015).
A continuidade do estímulo sexual provoca um aumento do nível de tensão sexual,
levando à fase de platô. Em seguida, caso haja a continuidade do estímulo, o orgasmo será
alcançado (DIAS et al., 2015). De acordo com Dias et al., (2015, p. 2), citando Aguiar Jr.
(2011), "o orgasmo feminino pode ser dividido em cinco tipos: clitoridiano, vaginal,
abdominal, contínuo e múltiplo". São descritos por serem compreendidos pelas contrações
musculares de diferentes partes do corpo, assim como pelo seu ritmo e distância entre elas. Os
fatores ambientais também estão ligados à resposta sexual, dentre eles estão os aspectos
relacionados aos relacionamentos interpessoais e às influências culturais (ANDRADE;
CAVALCANTI e SILVA, 2015).
A sexualidade é reconhecida como importante fator na saúde global e no bem-estar das
mulheres (ANDRADE; CAVALCANTI e SILVA, 2015). É uma dimensão complexa do ser
humano e possui determinações diversas, como fatores biológicos, psicológicos e sociais que
influenciam sua manifestação, vivência e expressão (VIEIRA; ZANUZZI e AMARAL, 2016).
Pode ser caracterizada pela forma de sentir e perceber o próprio corpo, de se relacionar com o
outro, por apresentar afetos, emoções e sentimentos experimentados durante a vida, variando
de pessoa para pessoa a medida das situações e peculiaridades de cada indivíduo (DIAS et al.,
2015).
Para Louro (2008), as construções da sexualidade também se dão por meio de
incontáveis formas de aprendizagens e práticas, de forma explícita, ou não, por várias
instâncias sociais e culturais, sendo esse processo de construção, em constante continuação,
também minucioso e sutil. Aliado a esse aprendizado estão os padrões sociais,
Estudos de Sexualidade 3

comportamentais e sexuais, que refletem na história da sexualidade feminina e que se


transformou muito ao longo dos anos (OLIVEIRA; REZENDE e GONÇALVES, 2018).
Os padrões sociais da sexualidade se mostram de incontáveis formas, dentre eles estão
os estereótipos e preconceitos, como, por exemplo, a ideia de que a sexualidade das mulheres
é essencialmente passiva e assim foi considerada por muito tempo (VIEIRA; ZANUZZI E
AMARAL, 2016). A isso também podemos relacionar a discussão de Vieira; Zanuzzi e Amaral
(2016) sobre a desigualdade entre as vivências masculinas e femininas de sexualidade,
estritamente relacionadas às relações de gênero construídas histórica e culturalmente na nossa
sociedade. 319

Há uma expectativa social em relação aos primeiros envolvimentos sexuais da jovem


mulher de que aconteçam em relacionamentos sérios e com envolvimento amoroso. O que
constitui, para as jovens e seus familiares, o amor como papel fundamental para que haja
aceitação e naturalização das experiências sexuais em relacionamentos anteriores ao casamento
(REIS e KOBAYASHI, 2015). Outro fator, elencado por Reis e Kobayashi (2015),
referenciando Helborn (1999) e Trindade e Ferreira (2008), que permeia as primeiras
experiências de relacionamentos sexuais femininos, é o medo do abandono por parte do
parceiro pela falta de atividade sexual, o que, muitas vezes, faz com que as jovens mulheres se
sintam forçadas a render-se à atividade sexual sem ainda se sentirem prontas ou desejarem que
aconteça.
Podemos ver também como a história da repressão social da sexualidade participa da
construção da sexualidade feminina. Para Louro (2008), a sexualidade é alvo de regulação nos
tempos atuais, assim como antigamente. As formas de controle e vigilância se multiplicam e
se ampliam por diferentes instâncias e instituições que estão autorizadas a ditar normas. Para
Vieira; Zanuzzi e Amaral (2016), apesar das mudanças, ainda vivemos em um sistema
patriarcal social de opressão às mulheres, onde pode-se compreender essa opressão como a
soma da exploração e dominação sobre elas.
A “mulher contida” foi considerada, segundo Vieira; Zanuzzi e Amaral (2016), um tipo
sociológico naturalizado na sociedade patriarcal, onde seu desejo sexual seria passível de
controle. Essa naturalização do controle sexual é perceptível também nas diferenças vividas
pela mulher em comparação ao homem, que recebe, em geral, muito mais incentivo para
explorar sua sexualidade, em oposição a mulher, que recebe incentivo de ocultamento e
subordinação da sua sexualidade (VIEIRA; ZANUZZI E AMARAL, 2016).
Para Colling (2015), a designação dos papéis sexuais e sociais de gênero partem dos
discursos históricos religiosos, filosóficos e médicos, que se relacionam entre si, bem como
para a construção das representações femininas na sociedade. Assim como o discurso
filosófico, apresentado pela autora, o discurso religioso, como visto na simbologia da Eva
pecadora e a Virgem Maria assexuada, traz em sua leitura essas representações femininas
questionadas. Discursos, na sua maioria, feitos por homens, que representam, por meio de uma
relação de poder, o gênero feminino. Entende-se que a definição de normas, padrões
comportamentais, assim como normas jurídicas e preceitos morais, foram definidos pela
imagem da mulher e sua representação produzida ao longo dos tempos, tanto por teóricos como
por religiosos.
Colling (2015), também pontua como a medicina, advinda da revolução científica, não
serviu para invalidar a inferioridade da mulher. A autora, em seu texto, também relaciona parte
dos discursos psiquiátricos, já no final do século XVIII, quando a histeria se destaca como
doença mental feminina. Doença que, de acordo com a autora, teve como uma das causas da
sua origem a “falta de homem”, tornando teorizada essa incompletude da mulher em relação
ao homem. Pode-se perceber, no trecho: “A concepção do corpo feminino é a de um corpo
saturado de sexualidade, mas no qual se renova a sociedade - a sua função social -, sendo, pois,
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

necessário, através de dispositivos médicos, educativos, familiares, torná-lo capaz dessa tarefa”
(COLLING, 2015, p. 194), a visão da sexualidade feminina como adoecida, e a histeria como
inerente ao feminino. Em contrapartida, há de se perceber que existe uma preocupação médica
com essa sexualidade, voltada para a necessidade de procriação designada ao feminino.
As reflexões históricas do corpo feminino, trazidas por Colling (2015), ressaltam que a
psicanálise - desenvolvida por Sigmund Freud em uma época repleta de diagnósticos de
histeria, considerada doença das mulheres - foi outra forte influência teórica contribuidora para
os valores patriarcais culturais e falocráticos da época. O ideal freudiano que então coloca em
320
evidência a sexualidade na constituição da personalidade feminina, mesmo sendo uma
novidade em matéria de conhecimento humano no meio científico, não se distanciava do
mesmo ideal de um feminino inferior, visto por séculos.
Colling (2015), traz também uma aproximação entre as ideias de Freud e Aristóteles,
citando Sylviane Agacinski. Para Aristóteles, a mulher seria mutilada por falta de calor, não
podendo assim ser fecunda, como apenas o homem seria. Para Freud, essa mutilação estaria
presente na castração ocorrida quando a menina descobre a ausência do falo e,
consequentemente, desenvolvia inveja dele. Em ambas as visões o feminino é definido pela
ausência de características masculinas, ou seja, é um homem incompleto.
Nos estudos de Silveira (2019), que refletem a sexualidade feminina trazendo uma
crítica feita por Hite (1980), na qual se provoca o leitor afirmando que as mulheres nunca foram
questionadas acerca de como se sentem em relação ao sexo. Para ela, a sexualidade feminina
era vista de forma essencial como uma resposta à sexualidade masculina (SILVEIRA, 2019).
Pode-se perceber que as construções históricas e reflexões sobre a sexualidade feminina
apresentadas acima se relacionam com a falta de informação sobre a sexualidade, envolvendo
crenças distorcidas, repressões por normas sociais e preconceitos religiosos, levando a mulher
ao não conhecimento sobre o orgasmo (ANDRADE; CAVALCANTI e SILVA, 2015).
Diante do exposto, este estudo questiona se os impactos históricos-sociais na vivência
da sexualidade feminina estão presentes na dificuldade de obtenção do orgasmo e no
conhecimento do próprio corpo, inclusive por meio da masturbação.
2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Relacionar anorgasmia feminina com a falta de masturbação e o conhecimento do próprio
corpo.
Objetivos específicos
-- Pesquisar relações histórico-sociais que influenciam na sexualidade feminina.
-- Investigar a anorgasmia na sexualidade feminina.
-- Indagar aspectos da masturbação e do autoconhecimento do corpo feminino.

3. METODOLOGIA
Este estudo utiliza como metodologia a revisão narrativa de literatura. Trata-se de uma
base para a escrita científica, sendo um meio de escrita que propicia a quem realiza o contato
e exploração de textos, produções científicas e pesquisas relacionadas ao tema estudado
(FERENHOF e FERNANDES, 2016). Optou-se pela revisão narrativa, por ser vista, de acordo
com Ferenhof e Fernandes (2016), citando Cordeiro et al., (2007), como uma revisão mais
tradicional e exploratória, por não apresentar uma definição de critérios explícitos, em que as
escolhas dos artigos podem ser feitas de maneira arbitrária, permitindo que o autor inclua
documentos de acordo com o seu viés. A forma de serem coletados os artigos é denominada,
usualmente, como busca exploratória.
Após uma pesquisa bibliográfica de artigos em plataformas como o Google Acadêmico,
o Portal da Biblioteca Virtual da Saúde (BVS) e também acessando as referências utilizadas
Estudos de Sexualidade 3

pelos autores dos primeiros artigos encontrados com tema relevante para este estudo, foram
selecionados, inicialmente, cerca de 20 artigos com datas de publicação entre 2015 e 2020, por
meio de busca por palavras-chave como “anorgasmia feminina”, “sexualidade feminina”,
“autoconhecimento corporal orgasmo feminino” e “masturbação feminina”. Contudo existem
poucos estudos e artigos sobre o tema aqui abordado. Após a leitura e a seleção de partes desses
artigos que se relacionavam com os objetivos do estudo, foram utilizados 15 artigos ao final.

4. DESENVOLVIMENTO
Existem muitas falsas informações e superstições que cercam o aspecto da sexualidade, 321

formando uma rede de mitos e crendices e gerando muitas desinformações no campo da


sexualidade, como resultado também da ignorância e omissão dos responsáveis pela educação
da sociedade (ANDRADE; CAVALCANTI e SILVA, 2015).
Em seu estudo, Andrade, Cavalcanti e Silva (2015), concluem, com base nos dados
apresentados, que há um baixo nível de conhecimento sobre os aspectos fisiológicos do
orgasmo em universitários, o que reforça a reflexão de que crenças errôneas não estão
diretamente ligadas ao nível socioeducacional, sendo que até mesmo profissionais qualificados
possuem falsas concepções sobre sexo e estão transmitindo informações errôneas às pessoas
educadas por eles.
De acordo com Dias et al., (2015, p. 2), citando Anjos; Oliveira (2007), "muitas
mulheres sofrem com disfunções sexuais, ao qual pode-se citar a anorgasmia que se caracteriza
como a falta do orgasmo". Dias et al., (2015), também trazem uma subdivisão, referenciando
Galvão, Albuchaim e Colaboradores (2011), da anorgasmia em primária e secundária. A
primeira como referência a mulheres que nunca vivenciaram um orgasmo, e a segunda a
mulheres que já vivenciaram, porém, de alguma forma, passaram a não mais vivenciá-los.
Para o DSM-V, o Transtorno do Orgasmo Feminino apresenta sintomas como a
presença de retardo acentuado, infrequência acentuada ou ausência de orgasmo, assim como
intensidade muito reduzida de sensações orgásticas. Os sintomas persistem com a prevalência
de no mínimo seis meses e causam sofrimento clinicamente significativo ao indivíduo. Nessa
definição, exclui-se o transtorno mental não sexual, a perturbação grave do relacionamento ou
de outros estressores importantes, assim como não é atribuível aos efeitos de
substâncias/medicamentos ou outras condições médicas.
Nos estudos, as causas determinantes da dificuldade de vivenciar orgasmos podem ser
consideradas, em geral, como multifatoriais, visto que, em muitos dos casos, não é possível
encontrar uma fonte de causa isolada justificável. Essa compreensão torna importante uma
avaliação biopsicossocial da dificuldade orgástica, quando é preciso levar em considerações
aspectos fisiológicos, médicos, contextuais e psicológicos (CARVALHO, 2018). Em
continuidade à ideia anterior, de acordo com Carvalho (2018), citando Basson e colaboradores
(2004), é sugerido que:
[...] na avaliação da dificuldade sexual se recolha informação que leve em conta, desde a
disfunção sexual do parceiro, até à estimulação inadequada ou ao contexto sexual
emocionalmente insatisfatório; fatores do passado, incluindo educação negativa, perdas ou
traumas (físicos, sexuais, emocionais), relações interpessoais e restrições religiosas ou culturais;
condições médicas, psiquiátricas, medicação e abuso de substâncias (CARVALHO, 2018, pp.
5-6)
Carvalho (2018) referencia alguns estudos epidemiológicos sobre as dificuldades do
orgasmo, os quais identificam-no como a segunda queixa mais comum entre as mulheres,
ficando atrás apenas para os problemas de baixo desejo/interesse sexual. De acordo com
Pereira e Souza (2019), citando Laumann e colaboradores (2005), dados mundiais acerca das
dificuldades das mulheres vivenciarem orgasmos apontam para a Europa como menor índice
de dificuldade, com apenas 17%. Em seguida a América do Sul e Central, com 22,4%. As
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

regiões asiáticas apresentaram maiores índices, com 41,2% no Sudoeste Asiático e 32,2% no
Leste Asiático.
É possível perceber grande variação dos dados sobre disfunções sexuais a depender da
localidade, aspectos culturais, sociais e educacionais, assim como pela forma de coleta dos
dados (PEREIRA e SOUZA, 2019). Ao citar as pesquisas de Abdo e colaboradores (2002),
que visavam coletar dados dos brasileiros acerca da prevalência de disfunções sexuais em
amostras não clínicas, Pereira e Souza (2019, p. 35) relata: “pesquisaram 2.835 indivíduos,
dentre os quais 1.474 eram mulheres. Seus resultados apontaram que a falta de desejo sexual e
322
a dificuldade de orgasmo atingiam 34,6 % e 29,3% das mulheres, respectivamente, indicando
possíveis disfunções”.
De acordo com a pesquisa de Silva e Damasceno (2018), com foco na satisfação sexual
de universitárias, foi possível observar dados relevantes, como 30% de mulheres, entre 18 e 35
anos, universitárias, que sofrem com disfunção sexual. Também foi possível observar, no
mesmo estudo, uma correspondência de 35% das participantes que apresentaram dificuldades
para se sentirem excitadas, baixo interesse/desejo sexual, assim como dificuldades para
atingirem o orgasmo. Os autores também elencam em sua discussão os estudos de Ribeiro e
colaboradores (2013), realizado em mulheres entre 18 e 58 anos, em que os dados de disfunção
sexual apontam para uma prevalência de 77,2%, sendo o distúrbio orgástico o mais prevalente,
com 55,8% (SILVA e DAMASCENO, 2018).
Nos resultados da pesquisa de Andrade, Cavalcanti e Silva (2015, p. 12) foi possível
observar os seguintes dados: “47,6% de pessoas que acreditam que ‘A mulher deve ter orgasmo
em todas as relações sexuais’ e 52,4% que ‘A relação sexual só é boa para mulher se ela chegar
ao orgasmo’”. A partir desses dados, Andrade, Cavalcanti e Silva (2015) discute o que
denominou orgasmocracia, tendo surgido, nas últimas décadas, com as mudanças culturais em
que uma obrigatoriedade do orgasmo em todas as relações sexuais é definida. Referenciando
Cavalcanti e Cavalcanti (2012), essa obrigatoriedade se mostra contrariando o aspecto da
vivência do sexo com prazer e das suas inúmeras experiências prazerosas, das quais o orgasmo
seria somente uma delas (ANDRADE; CAVALCANTI e SILVA, 2015).
Outro dado observado por Andrade, Cavalcanti e Silva (2015), também com teor
orgasmocrático, foi o que mostrou que 39,8% das pessoas responderam concordar que os
parceiros devem chegar ao orgasmo simultaneamente, o que vai contra a fisiologia sexual,
movimento corporal e subjetividade de cada indivíduo, que mostram que os orgasmos são
vivenciados de formas e em momentos distintos por cada indivíduo. Referenciando outros
autores, Andrade, Cavalcanti e Silva (2015) refletem que a “A ocorrência de orgasmos
simultâneos não deve ser uma obrigação ou necessidade para deixar o sexo mais prazeroso e
provar a harmonia do casal, sendo mais importante a cumplicidade do que a sincronia”
(ANDRADE; CAVALCANTI e SILVA, 2015, p. 12).
Outra crítica à orgasmocracia, fator que carece de mais estudos para maior ampliação,
foi vista nos apontamentos de Silveira (2019), que afirma ser possível perceber esse fenômeno,
desencadeado pelas pesquisas de Masters & Johnson, de uma pressão social urgente sobre as
mulheres, no sentido de elas atinjam o orgasmo, introduzindo assim uma preocupação a mais,
sob pena de, caso não o alcancem, sentirem-se inadequadas e deslocadas socialmente
(SILVEIRA, 2019).
A importância da educação sexual é abordada como forma de prevenção de várias
disfunções sexuais, não apenas como forma de prevenção de ISTs ou de eficácia dos métodos
contraceptivos, mas também, de forma mais ampla, para proporcionar à jovem
autoconhecimento corporal, desmistificação de crenças errôneas, quebras de tabus religiosos e
melhora das comunicações interpessoais (ANDRADE; CAVALCANTI e SILVA, 2015).
Estudos de Sexualidade 3

No que tange também ao autoconhecimento corporal, Carneiro (2017), relaciona a


masturbação como uma das variáveis que podem interferir ou facilitar o orgasmo, assim como
escolaridade, desejo sexual e ansiedade. A autora traz, a partir de outros estudos, a relação de
mulheres que se masturbam e/ou têm mais escolaridade como maior possibilidade de alcançar
orgasmos durante atividades sexuais (CARNEIRO, 2017).
Entende-se por masturbação como um comportamento sexual de autoexploração do
próprio corpo associado ao prazer, sendo também um componente da sexualidade (BRITO et
al., 2015). Em uma pesquisa apresentada por Brito et al (2015), realizada com 100 mulheres,
usuárias da Estratégia de Saúde da Família, desenvolvida no município de Sinop, situado no 323

norte do estado de Mato Grosso, em abril de 2011, foi possível observar os seguintes dados:
“67% mencionaram que nunca haviam se masturbado, 30% que se masturbam às vezes e 3%
se masturbam sempre” (BRITO et al., 2015, p. 69). Entretanto, como ressaltam Brito et al.
(2015), existem poucas pesquisas na área da masturbação feminina, fato esse que pode decorrer
de a masturbação ser uma prática direcionada ao gênero masculino, ao contrário do seu
potencial, o qual poderia ser adotada independentemente do sexo, de promover
autoconhecimento das áreas com potencial de prazer do próprio corpo.
Baumel (2014), em seu estudo demonstra como a masturbação foi considerada,
inclusive pela ciência médica, como extremamente prejudicial para a saúde, com propostas de
tratamento ou prevenção, até mesmo no início do século XX. Baumel (2014, p. 19) também
apresenta outros autores como Gibson. Gibson e Truitt (1914), que consideravam a
masturbação como a causa para diferentes sintomas, dentre eles “perda de memória,
insanidade, dores e fraquezas nas costas, palpitações, falta de ar e nervosismo, entre outros”.
Mesmo a psicanálise, que embora tenha apontado a masturbação como comportamento normal,
afirmava que no caso das mulheres seria uma forma mais imatura/infantil de prazer
(BAUMEL, 2014). Nos estudos de Kinsey e seus colaboradores, apontados por Baumel (2014),
foi constatada uma diferença da prevalência de prática de masturbação em 90% dos homens e
60% das mulheres que relatavam se masturbarem.
Pereira e Souza (2019), citando Carvalheira e Leal (2013), referem-se à masturbação
como sendo ato muito comum entre homens, mas pouco frequente entre as mulheres, em
virtude principalmente dos estigmas religiosos e intervenções culturais que resultam em
sentimentos de culpa e vergonha. Contudo as autoras afirmam que, quando praticada, a
masturbação desempenha um papel favorável para o desenvolvimento sexual, também
favorável no autoconhecimento do próprio corpo e na resposta sexual, sendo componente
fundamental da saúde sexual. A experiência do orgasmo, a satisfação sexual e a habilidade de
aproveitar a relação sexual com sua parceria também estaria conectada à masturbação
(PEREIRA e SOUZA, 2019).
Em Baumel (2014), citando as constatações de Kinsey et al., (1953), foi refletido como
metade das mulheres relataram algum problema psicológico por terem se masturbado, não
pelos efeitos da masturbação no corpo, mas pelos conflitos vivenciados entre seus códigos
morais e as práticas masturbatórias. Ainda Baumel (2014), citando as vastas experiências de
Kaplan (1978), afirma que
[...] para as mulheres alguns medos podiam existir em relação ao orgasmo em si, incluindo
perder o controle, ficar louca, machucar-se, desenvolver doenças – até câncer – e morrer. Outros
receios incluíam o de tornar-se promíscua e preconceitos como o de que é necessário estar
apaixonada antes de conseguir um orgasmo. A maior parte dessas fantasias negativas se
relacionava com proibições da infância relativas à sexualidade (BAUMEL, 2014, p. 24).

Foi possível observar em Baumel (2014), referenciando estudos de Hite (1976/2004),


que o autor encontrou uma proporção maior de mulheres que se masturbavam — cerca de 80%.
Foi possível observar que a maioria das mulheres desfrutavam fisicamente da masturbação,
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

contudo não gostavam dos efeitos psicológicos causados por ela. O estudo apresentou uma
amostra praticamente majoritária dessas mulheres que foram, na infância, ensinadas a não se
masturbar.
Carvalho (2018), afirma que os resultados encontrados em seus estudos são congruentes
com estudos de Griffit e Hatfield (1985) e Tavares, Laan e Nobre (2017a), concluindo que as
atividades sexuais que buscam a estimulação do clitóris podem aumentar a ocorrência de
orgasmos nas mulheres. Essa ideia pode se conectar ao que afirma Baumel (2014), sobre o
conhecimento do próprio corpo que pode ser adquirido com a masturbação, o que também
324
beneficia a sexualidade de maneira ampla. O autor, citando Goodman (1982), afirma que “a
masturbação age como um processo de aprendizagem que leva o indivíduo a conhecer a
resposta sexual e o orgasmo” (BAUMEL, 2014, p. 25).
Baumel (2014), em seu estudo apresenta vários argumentos favoráveis à masturbação,
dentre eles, citando Ellis (2003), várias vantagens da masturbação foram enumeradas:
Evitar que pessoas que não tenham a oportunidade de relações com parceiros fiquem em abstinência;
Diminuir ansiedade, depressão, raiva e baixa tolerância à frustração em pessoas privadas de sexo;
Promover fantasias sexuais e imaginação, que ajudam nas relações sexuais; Melhorar as relações em
casais em que um ou ambos os parceiros não recebem satisfação sexual suficiente com o outro; Promover
a invenção de novos modos satisfatórios de sexo; Aumentar o prazer sexual dos parceiros; Ser usada
como parte de preliminares ou como forma de chegar ao orgasmo em relações sexuais, sendo quase o
único meio que muitas mulheres têm para atingi-lo; Ser usada como maneira de explorar o próprio corpo
e aprender de modo saudável sobre a sexualidade; Pode ser utilizada como benefícios em qualquer idade,
incluindo crianças e idosos. (BAUMEL, pp. 21-22, 2014).

Outro autor relevante que apresenta dados favoráveis à masturbação, apresentado por
Baumel (2014), foi Hite (1976/2004), afirmando que 95% das mulheres que se masturbavam
atingiam o orgasmo com mais facilidade e regularidade, de forma voluntária, de modo que
muitas sinalizaram como quase sinônimos masturbação e orgasmo, acreditando que o orgasmo
está incluindo na masturbação. Em contra partida, “a porcentagem de mulheres que nunca
haviam tido orgasmo foi cinco vezes maior entre mulheres que nunca haviam se masturbado”
(BAUMEL, p. 22, 2014).
Baumel (2014), afirma que existe uma influência direta entre o conhecimento do
próprio corpo e de suas sensações e o desejo sexual. Além disso, também há influência direta
na obtenção de prazer, na capacidade de excitação, assim como na própria satisfação sexual.
Outro fator positivo abordado pelo autor visto nas mulheres que se masturbam e, portanto,
conhecem melhor o próprio corpo é que elas apresentam uma tendência a desvalorizar os
estigmas e tradicionais valores relacionados à ideia da promiscuidade, possibilitando, assim, a
vivência de uma maior quantidade de diferentes experiências sexuais (BAUMEL, 2014).
Outro fator positivo relacionado ao conhecimento do próprio corpo, aliado à saúde
sexual, é apresentado por Baumel (2014), ao referenciar estudos de Dekker, Everaerd e
Verhelst (1985), relatando que os indivíduos ficam mais excitados ao prestarem mais atenção
nas respostas sexuais do que em situações onde apenas os acontecimentos eróticos externos
são o foco da atenção.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da literatura que foi revisada neste estudo, pode-se perceber que existem muitos
aspectos que se relacionam à vivência do orgasmo para as mulheres, sendo ainda um tema
muito obscuro e carente de estudos mais amplos e holísticos. Sendo ainda um enigma, o
orgasmo é um fenômeno, complexo, multideterminado e importante da sexualidade feminina,
contudo ainda muito pouco estudado por métodos científicos que possam esclarecer seu
funcionamento.
Estudos de Sexualidade 3

As mudanças em relação às construções femininas vêm ocorrendo de formas intensas


e progressivas na nossa sociedade atual, onde, cada vez mais, os pressupostos históricos,
religiosos, filosóficos e médicos, que tratavam a mulher como ser inferior, dotado de
incompletude, vêm sendo questionados e descontruídos. Contudo esse é um movimento ainda
muito recente e prematuro se pensarmos na história como um todo. Sobretudo percebe-se que,
mesmo com o incentivo atual à liberdade sexual feminina e progressivas mudanças a respeito
da sexualidade, a vivência da sexualidade feminina ainda está muito influenciada aos
preconceitos, estigmas, obrigações e proibições que designaram a sexualidade feminina.
Pode-se concluir a partir da literatura estudada que há ainda muita interferência das 325

construções sociais do feminina e da sua sexualidade que permeiam as dificuldades enfrentadas


pelas mulheres de vivenciarem a masturbação sem culpa e estigmas. Pôde-se também concluir
que a masturbação é um comportamento sexual que pode permitir o autoconhecimento do
corpo e consequentemente possibilitar uma vivência mais orgástica da sexualidade, assim
como uma maior satisfação sexual feminina.
Entretanto, um achado importante neste estudo foi o fenômeno da orgasmocracia, visto
na atualidade como uma expetativa, vivenciada como obrigatória, de que a mulher tenha
orgasmo em uma relação sexual e até mesmo que o orgasmo ocorra em conjunto com o
parceiro. Fator esse bastante contraditório aos aspectos que se relacionam à sexualidade
feminina, sendo reprimida e podada por muito tempo, assim como à repressão da masturbação
feminina, que se mostra uma das maneiras que mais auxilia no processo de autoconhecimento
do próprio corpo. Essa contradição traz a reflexão de que mesmo que o movimento de repressão
mude, as formas de obrigar e ditar normas às mulheres são contínuas e reformuladas com o
tempo, podem ser vistas desde a proibição a obrigação ao prazer e orgasmo, de maneiras
diferentes, mas com uma base social similar de condução e imposição até mesmo das vivencias
sexuais femininas.
Este estudo conclui que o orgasmo feminino se mostra um campo importante de
estudos, necessitando que haja mais pesquisas sobre o tema, assim como o estudo do
autoconhecimento do próprio corpo feminino. Conclui-se, também, diante do que foi abordado
e da pouca existência de estudos na área que não foi possível descrever uma relação direta e
embasada em pesquisas da anorgasmia com o conhecimento do próprio corpo, entretanto foi
possível perceber as relações entre o conhecimento do próprio corpo e práticas de masturbação
com maior probabilidade de orgasmos e satisfação sexual.

6. REFERÊNCIAS
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Disponível em: http://www.seer.ufu.br/index.php/perspectivasempsicologia/article/view/37216. Acesso
em 30 out 2020.
Estudos de Sexualidade 3

INFLUÊNCIA DAS DIFERENÇAS DE GÊNERO NA ESTRUTURAÇÃO DA


IDENTIDADE E NA VIVÊNCIA DA SEXUALIDADE E DA CONJUGALIDADE

Sandra Rosemara Pereira da Silva

327

RESUMO
Este estudo, que utilizou a metodologia de revisão narrativa da literatura, considerou conceitos
como gênero, corpo, identidade e conjugalidade. Seu objetivo foi compreender a influência das
diferenças de gênero na estruturação da identidade e na vivência da sexualidade e da
conjugalidade. Apurou-se que as diferenças de gênero influenciam na vivência da sexualidade.
O social manifesta-se por meio dos corpos moldados ou reproduzidos pelos dispositivos sociais
atuantes na construção desses corpos, pela influência na estruturação da identidade dos sujeitos
e na manutenção da heteronormatividade. Essa influência do gênero tem consequência direta
na vivência da sexualidade dos casais e nos novos arranjos da conjugalidade, como escolher
não ter filhos ou ter apenas um filho valorizando o exercício da parentalidade.
Palavras-chave: Sexualidade; gênero; corpo; identidade; social; conjugalidade; parentalidade.
ABSTRACT
This study, which used the literature narrative review methodology, considered concepts such
as gender, body, identity and conjugality. Its objective was to understand the influence of
gender differences in the structuring of identity and in the experience of sexuality and
conjugality. It was found that gender differences influence the experience of sexuality. The
social is manifested through the bodies molded or reproduced by the social devices active in
the construction of these bodies, by the influence in the structuring of the subjects' identity and
in the maintenance of heteronormativity. This gender influence has a direct consequence on
the couples' sexuality experience and on the new conjugality arrangements, such as choosing
not to have children or having only one child, valuing the exercise of parenting.
Keywords: Sexuality; genre; body; identity; social; conjugality; parenting.

1. INTRODUÇÃO

A maioria dos casais, segundo minha experiência como psicoterapeuta, busca


atendimento psicoterápico por estarem apresentando alguma dificuldade na relação conjugal,
manifesta nas expectativas diferentes de homens e mulheres no que se refere à vivência da
sexualidade. Homens queixam-se em geral do que consideram baixa frequência de relações
sexuais, ao passo que as mulheres, embora admitam essa realidade, reclamam de que não são
tratadas com carinho ou atenção durante o dia e, à noite, não estão dispostas a se relacionar
sexualmente.
O dia a dia da clínica traz outras situações, como a da mulher que mantém relações
sexuais para agradar o parceiro, mesmo sem desejo, por acreditar que essa é sua obrigação.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Está implícita nessa crença que os homens têm mais necessidade de sexo do que as mulheres,
que devem se submeter.
Comumente, quem agenda a consulta e acaba trazendo o parceiro para o atendimento são as
mulheres, talvez porque elas tenham maior disponibilidade para cuidar de si e do outro. Uma
importante causa da busca é a descoberta da infidelidade do parceiro. A terapia de casais então
torna-se como uma ferramenta compulsória, imposta pela parceira, para evitar uma possível
separação. Os homens podem concordar com a terapia de casal não por culpa, mas sim por
buscar, na figura do (da) psicoterapeuta uma mediadora para “acalmar o ânimo” da mulher
328
que, diante da situação, encontra-se alterado, instável.
Qualquer aspecto da sexualidade que se deseje abordar passa pelo corpo. É por meio
do corpo que manifestamos nossos desejos, nossas expressões de satisfação ou insatisfação, ou
seja, é pelo corpo que nos comunicamos com o social e o sexual.
Percebe-se na prática clínica, que muitas mulheres sentem-se insatisfeitas ou
desconfortáveis com os seus corpos e, muitas vezes, essa dificuldade fica evidente na vivência
da sexualidade com os parceiros, surgindo a insegurança e recusa em manter relações sexuais,
como se para dar prazer ao parceiro, precisem ter um padrão de beleza semelhante ao de
modelos, atrizes ou prostitutas: lindas, loiras, jovens e magras; padrão esse, citado com
frequência nas sessões, como sendo a expectativa que os companheiros têm em relação às
mulheres, fato esse que se confirma quando elas descobrem que os parceiros buscam sites de
pornografia ou masturbam-se utilizando protótipos ou referências desse padrão de mulheres;
como se os corpos das prostitutas fossem para dar prazer e os corpos delas, as parceiras, fossem
corpos para dar à luz e amamentar a prole do casal. Essas queixas surgem como justificativa
para não realizarem sexo com tanta frequência, ora por sentirem-se acima do peso, outras vezes
porque não estão com a depilação em dia e ainda outras, por conta de estarem cansadas e sem
desejo, pois o cuidado com os filhos as deixam exaustas e sem nenhuma vontade para praticar
sexo.
A parentalidade também é um tema com bastante incidência na busca pelo atendimento
na clínica; com frequência, as mulheres decidem que gostariam de ter filhos e qual o melhor
momento, enquanto os homens ainda se sentem despreparados, surgindo aí um conflito que,
na maioria das vezes, define a manutenção da conjugalidade ou a busca pela separação.
Em psicoterapia, os homens, nesses casos, referem o desejo de ter filhos, mas em outro
momento, devido às preocupações com o sustento, educação e as futuras implicações dessa
responsabilidade; já as mulheres, por sua vez, focam-se no desejo da maternidade, nas
consequências das mudanças corporais, na relação conjugal, nos cuidados do bebê, com a
carreira profissional e as implicações da parentalidade no mercado de trabalho. Existem vários
aspectos que são pertinentes a essa organização diante da mudança na rotina diária.
Devido à essas divergências, quanto ao melhor momento para inserir a parentalidade
na relação do casal, surgem novas dinâmicas na vida conjugal desses, tais como: preferência
por ter somente um filho, abrir mão da parentalidade, ter somente animais de estimação e
considerá-los como filhos ou mesmo membros da família ou ainda, a separação.
Mas não só os casais heterossexuais apresentam questões relacionadas à sexualidade
na busca de ajuda profissional. Os homoafetivos do gênero masculino frequentemente trazem
queixas relacionadas a ciúme, insegurança e instabilidade, pois, nos casos que atendi, os pares
mantinham relacionamentos abertos mas, apesar das combinações contratadas, ainda assim,
um deles parecia não se sentir seguro quanto ao amor do outro e se preocupava com o que
poderia acontecer se o parceiro encontrasse alguém mais interessante; Nesse conflito, os
questionamentos levantados pelo casal, ocorriam por questões como: se relatavam as
experiências sexuais vivenciadas ao outro, como fizeram, o que fizeram, onde fizeram, muitas
vezes como uma busca de autorização ou aprovação do par tentando minimizar a insegurança
Estudos de Sexualidade 3

e o ciúmes, demonstrando que as práticas, eram meramente sexuais, não envolviam cuidado,
envolvimento emocional ou algum tipo de vínculo afetivo, servindo somente para satisfazer os
desejos e o prazer, como algo mais carnal, mais fisiológico.
As situações relatadas permitem observar que ainda há uma diferença na vivência da
sexualidade entre homens e mulheres, sejam hetero ou homossexuais.
Nesse contexto podemos pensar que há aspectos mais facilmente mutáveis, ao passo
que outros são bastante entranhados que se tornam difíceis de modificar.
Fry (1982) aponta para a influência que a medicina teve durante os anos de 30 e 40 e ainda tem sobre a
hom 329
ssexualidade. O primeiro feito dessa ciência foi tirar essa orientação sexual da condição de crime,
tornando-a doença. Nesse processo, médicos e cientistas criaram as mais diversas teorias. De acordo,
com esses estudos há dois tipos de homossexuais: os 'invertidos', considerados doentes sem culpa de seus
desejos sexuais; e os 'pervertidos', que apresentam desvios de caráter, escolhendo ter relações sexuais
com pessoas do mesmo sexo biológico. O indivíduo, que possui práticas sexuais com outro homem
considerado 'ativo' passa a ser classificado também como homossexual pela medicina. Sendo o
homossexual um doente oriundo de desvios psicológicos e hormonais, ganha a possibilidade de cura
mediante os diversos tratamentos oferecidos pelos cientistas.
Na década de 1980, os homossexuais são novamente atacados pelas normatizações médicas, agora com
o estigma de que são pertencentes a um grupo de risco que transmite uma doença fatal: a AIDS. O
advento da AIDS proporcionou, em larga medida, que a medicina reassumisse o poder de medicalizar
novamente esta prática sexual, que desde os anos 1960 – com a revolução sexual – vinha perdendo boa
parte de sua configuração negativa (Cf. Green, 2000 e Vogt, 1982). Isso possibilitou aos médicos de
certo modo retomarem as concepções médico-legais de homossexualismo dos anos 30 e 40 que definiam
a condição homossexual como doença. Neste sentido, os homossexuais dos anos de 1980 foram forçados
a re-estudar este paradigma e enfrentá-lo com novas soluções (Green, Barbosa, 1991 e Vogt, 1982). Para
isso, intensificou-se a organização de grupos de gays reunidos em torno da bandeira contra a
discriminação e criação de novos direitos sexuais. Na esteira dessas novas estratégias de lutas da década
de 1990, estabeleceram-se discussões transparentes sobre as questões de conjugalidade e parentalidade
entre homossexuais (Heilborn, 2004; Mello, 2005 e Uziel, 2002; SILVA, 2008, pp. 17-18).

Pode-se entender de acordo com Maia e Ribeiro (2011) a sexualidade como sendo um
conceito bastante amplo, que contempla não só a forma como nos relacionamos com o mundo,
com os nossos pares, mas também como expressamos por meio do nosso corpo essa forma de
nos relacionar, ou seja, a sexualidade não está restrita a visões sociais e modifica-se a todo
momento, conforme as visões dos sujeitos vão mudando, de acordo com essas mudanças e
novas concepções, como vem ocorrendo nesse momento imposto pelas restrições e privações
vivenciadas durante esses meses de pandemia.
Maia e Ribeiro (2011, pp. 75-76) afirmam que a sexualidade
[...] é um conceito amplo e histórico. Ela faz parte de todo o ser humano e é representada de forma diversa
dependendo da cultura e do momento histórico. A sexualidade tem componentes biológicos, psicológicos
e sociais e ela se expressa em cada ser humano de modo particular, em sua subjetividade e, em modo
coletivo, em padrões sociais que são aprendidos e apreendidos durante a socialização.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), “A sexualidade é uma energia que nos
motiva para encontrar o amor, contato, ternura e intimidade; ela integra-se no modo como
sentimos, movemos, tocamos e somos tocados, é ser-se sensual e ao mesmo tempo ser-se
sexual” (2001: 8).
Para Heilborn (1999) a vivência da sexualidade não tem o mesmo grau de relevância
para cada indivíduo. A sexualidade, a energia sexual, é um meio usado para descrever ou
explicar a forma que cada sujeito se relaciona com as convenções do social, seus processos e
qual o valor que a sexualidade tem para cada sujeito inserido num determinado segmento
social.
Ainda sobre o conceito de sexualidade podemos pensar que:
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
A sexualidade não é um conceito estático e imutável. Pelo contrário, sofre influências do tempo, do
espaço e do movimento da sociedade; assim, podemos dizer que a concepção de sexualidade é histórica.
A sexualidade é constituída de múltiplos significados e envolve mitos, crenças, tabus, preconceitos,
comportamentos e concepções religiosas. Assim, a sexualidade é construída e descontruída nas relações
sociais já que não é cristalizada e fixa e sim vivenciada na transitoriedade e no movimento entre o
tradicional e o moderno (ARGENTI, 2018, p. 19).

Pensando sobre o conceito de sexualidade de acordo com a sua relevância é importante


problematizar as suas particularidades para melhor compreender tamanha interferência na vida
330 de homens e mulheres.
Muitos consideram que a sexualidade é algo que todos nós, mulheres e homens, possuímos naturalmente.
Aceitando essa ideia, fica sem sentido argumentar a respeito de sua dimensão social e política ou a
respeito de seu caráter construído. A sexualidade seria algo "dado" pela natureza, inerente ao ser humano.
Tal concepção usualmente se ancora no corpo e na suposição de que todos vivemos nossos corpos,
universalmente, da mesma forma. A sexualidade, afirma Foucault, é um dispositivo histórico. Em outras
palavras, ela é uma invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de múltiplos
discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem
verdades. Sua definição de dispositivo sugere a direção e a abrangência de nosso olhar: um conjunto
decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas [...] o dito e o não-dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode
estabelecer entre esses elementos (LOURO, 2000, p. 6).

De acordo com o que referem os autores Maia e Ribeiro, Heilborn e a Organização


Mundial de Saúde (OMS), o conceito de sexualidade é algo do natural, que todo ser humano
possui, já que é a forma como nos relacionamos com o mundo, não estando restrita às visões
sociais e modifica-se a todo momento conforme os sujeitos vão se modificando, ou seja, a
sexualidade acompanha as mudanças, as relações estabelecidas por esses sujeitos e qual o valor
que a sexualidade tem para cada um deles num determinado segmento social. Por outro lado,
Louro e Argenti, discordam dessa concepção e defendem que a sexualidade é um conceito
amplo, histórico, que vai muito além do biológico, do natural, é algo da dimensão do social e
político, tem o seu caráter construído, é uma invenção social, ou seja, a sexualidade é histórica,
é construída e desconstruída nas relações sociais, é ainda constituída de diferentes significados
que envolvem crenças, mitos, preconceitos, tabus, concepções religiosas e comportamentos.
Para esses autores, é a partir dos múltiplos discursos sobre o sexo, discursos esses que regulam,
normatizam e instauram os saberes que produzem as verdades a serem seguidas.

2.OBJETIVOS
Objetivo geral
Compreender a influência das diferenças de gênero na estruturação da identidade e na vivência
da sexualidade e da conjugalidade.
Objetivos específicos
-- Entender a vivência da sexualidade no processo de conjugalidade e parentalidade.
-- Estudar a manifestação do social na sexualidade dos casais.
-- Compreender a influência do gênero na estruturação da identidade.

3. METODOLOGIA
A metodologia utilizada tem como modelo o método de revisão bibliográfica narrativa. A
“revisão narrativa” não utiliza critérios específicos e sistemáticos para a busca e análise crítica
da literatura. A busca pelos estudos não precisa esgotar as fontes de informações. Não aplica
estratégias de busca sofisticadas e exaustivas. A seleção dos estudos e a interpretação das
informações podem estar sujeitas à subjetividade dos autores. É adequada para a
Estudos de Sexualidade 3

fundamentação teórica de artigos, dissertações, teses, trabalhos de conclusão de cursos. (USP


Biblioteca Dante Moreira Lima).
Nesse tipo de estudo, são analisadas as produções bibliográficas em “determinada área
[...] fornecendo o estado de arte sobre um tópico específico, evidenciando nas ideias, métodos,
subtemas que têm recebido maior ou menor ênfase na literatura selecionada” (NORONHA,
FERREIRA, 2000, p. 191).
Foi pesquisado o tema sexualidade combinado com as outras palavras-chaves citadas
de forma mais ampla em sites de universidades e no Scielo (Scientific Electronic Library
Online) - biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos 331

brasileiros. Selecionou-se mais de 50 artigos pelas palavras-chave, que foram as seguintes:


sexualidade, gênero, corpo, identidade, social, conjugalidade e parentalidade. A partir dessa
seleção, 30 artigos foram selecionados para leitura, servindo de base para a fundamentação
teórica.
O tema pesquisado aparece em uma ampla gama de artigos científicos, priorizou-se os
dos últimos 5 anos, ampliando até 10 a 15 anos de acordo com a importância do artigo para o
referido tema. Foi realizada a leitura de 30 desses, evitando a repetição das publicações de
autores referência para o tema, já que um tema como sexualidade recebe muitas publicações
fazendo com que as descobertas possam ser reavaliadas muito rapidamente. Porém, as fontes
com mais de 5 anos foram mantidas, por serem de muita relevância no referido tema.

4. DISCUSSÃO
Sobre as expectativas diferentes entre homens e mulheres com relação à vivência da
sexualidade podemos inferir que as mulheres, ainda nos dias atuais, seguem vivendo com a
máxima de que os homens precisam fazer mais sexo, pois há uma necessidade maior, algo
instintivo, enquanto que elas mulheres, não sentem tanta necessidade, sentem-se muitas vezes
desestimuladas a fazer sexo, valorizando as suas experiências anteriores, não tão satisfatórias
ou mesmo o sexo focado nas expectativas da sociedade que as coloca no papel maternal,
reprodutivo e não na obtenção de prazer ou satisfação.
De acordo com Vieira, Zanuzzi et al., (2016), é inegável que as relações de gênero
construídas cultural e historicamente surgem como condição predisponente a reforçar a
desigualdade entre as vivências da sexualidade feminina e masculina. As mulheres descrevem
obstáculos, dificuldades que enfrentam na vida sexual, criando explicações através das queixas
oriundas das vivências familiar, pessoal e social, para justificar essas dificuldades sexuais,
construindo assim diferentes significados para a sexualidade. “A diferença na orientação sexual
masculina e feminina tem íntima ligação com a ideia de que o homem tem impulsos derivados
de uma necessidade sexual intensa, que deve ser satisfeita urgentemente”. (HITE, 1976 Citado
por VIERA, ZANUZZI E AMARAL, 2016, p. 76).
Seguindo na perspectiva da sexualidade feminina podemos entender que:
Para as mulheres adultas, os dilemas sexuais estão interligados às questões sócio-históricas, nas quais se
percebe que foi imposto ao homem o papel ativo na relação sexual e social. Com esse domínio
econômico, se explicaria a dependência financeira da mulher e sua aceitação dos “deveres conjugais”,
em que constava o “serviço sexual” (BERGER & GIFFIN, 2005, CITADOS POR VIEIRA, K F.L.;
NÓBREGA, R.P.M ET AL, 2016, p. 331).

As mulheres se colocam nas relações como mais dependentes afetivamente dos


companheiros e menos sexuais, ainda que correspondam às investidas sexuais dos mesmos,
demonstram ambivalência quanto ao seu desejo e prazer nas vivências sexuais.
Para Vieira e Stengel, (2012) “os conflitos são intensos, envolvendo os costumes
tradicionais de repressão da sexualidade por um lado, e os ideais contemporâneos que
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

valorizam a liberdade. E as vivências de sensações prazerosas, por outro” (VIEIRA, ZANUZZI


E AMARAL, 2016, p. 79).
Na sociedade brasileira, a definição de sexualidade feminina é, ainda tradicionalmente referida à
condição biológica e associada à esfera familiar de reprodução e, portanto, à maternidade, a da
sexualidade masculina tem sua identidade assentada nas atividades de esfera pública, concentradora de
valores culturais e materiais, o que faz do homem o provedor e o protetor da família, legitimada, pois,
no binômio reprodutor-trabalho (GALVÃO L., DÍAZ J., 1999, pp. 180-197, Citado em MORAES,
VASCONCELOS et al., 2011).

332 Sobre as diferenças na vivência da sexualidade de homens e mulheres:


Concluímos que há a reenfatização das diferenças de gênero a partir da sexualidade. Enquanto a
sexualidade masculina é definida pela lógica do desempenho, medido pela ereção e tratado com
medicamentos e técnicas que resolvam o problema específico da disfunção erétil, a sexualidade feminina
é apresentada como um fenômeno complexo e intrigante, não redutível a uma função orgânica específica.
A atual medicalização da sexualidade, representada pelo sucesso dos medicamentos para a disfunção
erétil, parece atingir sobretudo a sexualidade masculina. Esta seria “naturalmente” mais objetivável e
mais evidentemente orgânica, na medida em que o homem é mais facilmente separado da díade conjugal.
A sexualidade masculina é “naturalmente” pensada como independente da relação com parceiras, um
impulso autônomo, incontrolável, independente de relações ou afetos. A mulher continua sendo vista
como um ser eminentemente “relacional”. Sua sexualidade não existe como impulso autônomo, separado
da conjugalidade (ou das relações). Desse modo é possível dizer que a “fisicalização” da sexualidade
masculina corrobora a velha dualidade de gênero, que aponta a mulher como esteio da conjugalidade e
vetor dos afetos (ROHDEN, J. R, 2011, p. 728).

Joan Scott, Guacira Louro, Nicholson e Meyer vêm desenvolvendo estudos sobre
gênero e, embora o significado desse conceito possa ser bem conhecido para a maioria de nós,
muitas vezes existem algumas confusões ou distorções acerca da conceituação.
Essas relações de gênero desde muito cedo pautaram e delimitaram as diferenças e
desigualdades nas vivências sexuais masculinas e femininas. Ao homem, desde menino, foi
lhe dado o poder e a obrigação de ser viril, de provar a sua masculinidade, de ser forte,
reafirmando assim a sua identidade de gênero e também a sua identidade sexual, mostrando os
seus músculos, o seu corpo forte. Mas para a mulher, de que forma essa sexualidade feminina
pôde ser vivida? De que forma lhe foi autorizado usufruir desse corpo determinado a dar prazer
e servir ao outro? Em que momento foi lhe dada autonomia de vir a descobrir e obter prazer?
Pensando nas perspectivas de gênero, é impossível não atrelar a elas as relações de poder aí
implícitas ou implicadas, pois se temos um gênero dominante e um gênero dominado, já se
delineiam as relações hierárquicas estabelecidas. Porém, ser homem ou ser mulher é
confundido com ser feminino ou ser masculino, estabelecendo-se uma confusão entre o sexo
de nascimento, aquele biológico, com o gênero, que é algo construído pelo social, pois quando
uma menina nasce, seu nome feminino é escolhido, seu quarto rosa é decorado, seu enxoval
com flores, fitas e laços e ainda, bonecas e flores por todos os lados, estando determinado o
que o gênero feminino é e como deve ser estabelecido esse papel no âmbito familiar/social. O
mesmo ocorre no nascimento do menino, que antes mesmo de chegar no seu quarto todo azul,
com carrinhos, bolas ou super-heróis, já carregando desde o ventre de sua mãe o dever e a
obrigação de ser forte, macho e crescer forte para ocupar o lugar do pai, ser responsável pela
mãe e suas irmãs na ausência do mesmo, já que será o “Júnior”, o futuro homem da família,
com “o seu membro” que o diferencia das meninas.
Tendo em vista a relevância de conceituar de forma consistente gênero, por conta dos pontos
contraditórios e até mesmo confusos nos entendimentos acerca das definições, outra concepção
sobre o tema:
Gênero classifica os organismos de acordo com suas características definidas pelos três níveis de seleção
em masculino e feminino. A identidade de gênero é a convicção íntima de uma pessoa de ser do gênero
masculino (homem) ou do gênero feminino (mulher), diferentemente do papel de gênero, representado
Estudos de Sexualidade 3
pelos padrões de comportamento definidos pela prática cultural em que as pessoas vivem papéis
estereotipadamente masculinos e femininos. O ambiente familiar e as práticas culturais irão modelar o
papel de gênero por meio do reforço social (PEDROSA, 2009, p. 58, citado em TOREJANI & BATISTA,
2010, p. 55).

No convívio social esses papéis aparecem bem definidos, ainda que se acredite que
atualmente a mulher seja independente e tenha poder de escolha, percebe-se que ela ainda se
submete ao homem no que diz respeito às questões econômicas da família, na tomada de
decisões e no planejamento futuro, já que na maioria das vezes a sua contribuição financeira é 333
inferior à dos homens, evidenciando assim, uma diferença entre os gêneros masculino e
feminino.
Para Cabral e Diaz (1999), “gênero refere-se às relações sociais desiguais de poder entre homens e
mulheres que são o resultado de uma construção “social do papel do homem e da mulher a partir das
diferenças sexuais”. (p. 142). O homem geralmente é incentivado a investir e a explorar sua sexualidade,
ao contrário da mulher que deve se manter em uma situação de ocultamento e subordinação”. (SEIXAS,
1998). A sexualidade feminina permanece como invisível, fato que se reflete nas práticas sexuais
(Giddens, 1993). A passividade é a prescrição. Há a preservação de uma moral que envolve a
“purificação” do corpo, sendo este algo que deve ser preservado. Há ordenamentos sociais para que a
mulher evite a expressão do desejo sexual e de sua satisfação, restringindo a diversidade de experiências
sexuais” (VIEIRA, ZANUZZI E AMARAL, 2016, p. 75)

Ainda pensando aspectos acerca do gênero:


De acordo com Louro (2014), o conceito de gênero está diretamente ligado à história das lutas do
movimento feminista. Na primeira onda do feminismo as mulheres conseguiram o direito ao voto, na
segunda onda por volta dos anos 60 começa-se a ter construções teóricas e em 1968 surgem os estudos
da mulher. Com a mulher conquistando e construindo seu lugar social surgem discussões sobre a
distinção das funções de homens e mulheres dentro de uma sociedade. Falar que homens e mulheres se
diferenciam na forma biológica se torna inviável, para isso é preciso demonstrar inclusive nas escolas
que essa não é a origem da diferenciação, mas é a “forma como essas características são representadas
ou valorizadas [desvalorizadas], aquilo que se diz ou se pensa sobre elas que vai construir efetivamente,
o que é feminino ou masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico (LOURO,
2014, p. 25 IN: ARGENTI, 2018, p. 38)

Esses dados históricos precisam ser considerados para que se visualize o cenário em
que essas mudanças foram ocorrendo, como foram influenciando os papéis desempenhados
por cada gênero, e de que forma esse contexto interferiu na transformação do ambiente
familiar, do mercado de trabalho e inclusive da educação nas escolas.
Essa relação de gênero vai sendo construída pelo social, e o menino e a menina vão
crescendo e vivenciando essas relações todos os dias, na família, na escola e na igreja. O
menino vai passear e acompanhar o pai nos jogos de futebol, na barbearia, no sapateiro,
compromissos esses onde menina “não entra” e a mesma, por sua vez, fica em casa com a mãe
aprendendo os afazeres domésticos, aprendendo a se comportar de forma doce, meiga e
delicada, a sentar-se de pernas fechadas e cruzadas, ainda que esteja de saia ou vestido rodado.
O seu corpo é então moldado, adaptado a essa exigência do social, ela veste o seu vestido de
babados, com os seus laços nos cabelos e o típico sapato de bonecas. Porém, essa delicadeza,
essa fragilidade instituída aparece futuramente na violência dos homens contra as mulheres, na
discriminação no mercado de trabalho, por conta da idade reprodutiva, recebendo menores
salários e ocupando cargos menos expressivos que os homens.
Ainda no aspecto da discriminação profissional, muitas vezes assediadas por seus
superiores “homens” e submetidas a se manterem caladas, padrão esse repetido na sociedade
em geral, seja nos cargos políticos, nos de destaques sócio econômicos. Reproduzindo dessa
forma, mulheres reprimidas, sem expressão dos seus desejos, servindo facilmente de máquina
de manobra, pois onde sobra submissão, sobra manipulação.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
É fácil concluir que nesses processos de reconhecimento de identidades inscreve-se, ao mesmo tempo, a
atribuição de diferenças. Tudo isso implica a instituição de desigualdades, de ordenamentos, de
hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente imbricado com as redes de poder que circulam numa
sociedade. O reconhecimento do "outro", daquele ou daquela que não partilha dos atributos que
possuímos, é feito a partir do lugar social que ocupamos. De modo mais amplo, as sociedades realizam
esses processos e, então, constroem os contornos demarcadores das fronteiras entre aqueles que
representam a norma (que estão em consonância com seus padrões culturais e aqueles que ficam fora
dela, às suas margens. Em nossa sociedade, a norma que se estabelece, historicamente, remete ao homem
branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão e essa passa a ser a referência que não precisa
334
mais ser nomeada. Serão os "outros" sujeitos sociais que se tornarão "marcados", que se definirão e serão
denominados a partir dessa referência. Desta forma, a mulher é representada como "o segundo sexo" e
gays e lésbicas são descritos como desviantes da norma heterossexual (LOURO, 2000, p. 9).

Esses dados todos nos remetem a pensar o papel da mulher, dos transexuais, dos
travestis, dos assexuados e tantos outros mais que ao se diferenciarem do “gênero dominante”
passam a ser vistos como excluídos, marginalizados ou ocupando um papel que não merece
ser reconhecido na sociedade, precisando lutar constantemente para obter e defender os seus
direitos como também humanos.
Nesse texto datado de 1990, Scott define o conceito de forma a incorporar a assimetria
atribuída aos sexos e ao gênero, e, portanto, a noção de que as relações de gênero são relações
de poder. Analisa, ainda, as principais tradições teóricas que trabalhavam com o conceito,
mostrando seus limites e possibilidades. Pode-se afirmar que, na época, o próprio conceito de
gênero mantinha alguns binarismos que criticava como o de natureza–cultura, uma vez que o
gênero seria socialmente construído e o sexo corresponderia ao que é biologicamente dado
(TONELI, 2012, pp. 148-149).
Considerando que no mundo da contemporaneidade, não cabe mais a feminilidade e a
masculinidade dos tempos patriarcais, já que o indivíduo vem se transformando e buscando
novas formas de se manifestar e com diferentes estímulos, se apropriando de si, assumindo os
seus saberes, desejos, preferências, fantasias, fazendo com que a área da sexualidade se torne
cada vez mais um campo a ser amplamente explorado e pesquisado.
Há diferentes visões sobre o corpo, uma delas é a de Weeks onde o corpo torna-se
referência central:
Num mundo de fluxo aparentemente constante, onde os pontos fixos estão se movendo ou se dissolvendo,
seguramos o que nos parece mais tangível, a verdade de nossas necessidades e desejos corporais [...] o
corpo é visto como a corte de julgamento final sobre o que somos ou o que podemos nos tornar. Por que
outra razão estamos tão preocupados em saber se os desejos sexuais, sejam hetero ou homossexuais são
inatos ou adquiridos? Por que outra razão estamos tão preocupados em saber se o comportamento
generificado corresponde aos atributos físicos? Apenas porque tudo o mais é tão incerto que precisamos
do julgamento que, aparentemente, nossos corpos pronunciam (WEEKS, 1995, pp. 90-91).

O autor ainda refere que o corpo não é algo constante, que as suas necessidades, os seus
desejos vão se alterando com a passagem do tempo, com as mudanças dos hábitos alimentares,
com a mudança no estilo de vida, com a aquisição de alguma doença, com as diferentes
maneiras de se obter prazer e ainda com as inovadoras formas de intervenção médica que
surgiram em decorrência do advento da AIDS, que fez com que os indivíduos tivessem que
pensar nas maneiras de praticar “sexo seguro”, pois agora existe uma doença que assombra o
prazer, é preciso levar isso em consideração e a partir daí, tudo se modificou.
No livro Sociologia do corpo, David Le Breton faz uma afirmação bastante significativa
para entendermos o corpo como o local de construção de nossa identidade, quando expressa:
“a existência é corporal” (LE BRETON, 2006, p. 24, em GOELLNER, 2010, p. 72).
A outra visão sobre o corpo é a de Louro, que diz que a sexualidade seria algo “dado”
pela natureza, inerente ao ser humano.
Estudos de Sexualidade 3
Tal concepção usualmente se ancora no corpo e na suposição de que todos vivemos nossos corpos
universalmente, da mesma forma. No entanto, podemos entender que a sexualidade envolve rituais,
linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções [...] processos profundamente culturais e
plurais. [...] Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino –
nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa
cultura. As possibilidades da sexualidade – das formas de expressar os desejos e prazeres também são
sempre socialmente estabelecidas e codificadas (LOURO, 2000, p. 6).

Pode-se pensar de acordo com os autores, que nas duas perspectivas não há uma
valorização somente do biológico, mesmo que esses corpos sejam dados pela natureza no 335
nascimento, ambos afirmam que esse corpo é subjetivado, atravessado pelo social, pelos
aspectos culturais que vão sendo inscritos nele e o moldando, logo, o corpo está carregado das
expressões culturais e sociais, determinando o que o indivíduo é ou pode vir a ser.
De acordo com Louro (2000), é no âmbito da cultura e da história que se definem as
identidades sociais, todas elas e não somente as identidades sexuais e de gênero, incluindo-se
aí as identidades de raça, classe, nacionalidade, etc. Essas distintas e múltiplas identidades
constituem os sujeitos, a partir da interpelação por diferentes situações, agrupamentos e
instituições sociais. Para reconhecer-se numa determinada identidade, supõe-se responder de
forma afirmativa a essa interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a determinado
grupo social como sendo de referência. Não há nada de estável ou de simples nessa situação
toda, pois essa multiplicidade de identidades, pode por vezes ser cobradoras de lealdades
divergentes, distintas ou até mesmo contraditórias. Nós somos sujeitos de várias identidades,
essas muitas identidades sociais podem ser abandonadas, rejeitadas, pois somos sujeitos de
identidades transitórias e contingentes. Logo, podemos pensar que as identidades sexuais e de
gênero, bem como todas as identidades sociais, possuem caráter instável, fragmentado, plural
e histórico, afirmado pelos teóricos e teóricas culturais. Frequentemente, os sujeitos
apresentam-se a partir da sua identidade de gênero e da sua identidade sexual, sendo essa talvez
a forma mais autêntica ou legítima de se representarem.
Podemos reconhecer teoricamente, que nossos desejos e interesses individuais e nossos múltiplos
pertencimentos sociais possam nos “empurrar” em várias direções; no entanto, nós “tememos a incerteza,
o desconhecido, a ameaça de dissolução que implica não ter uma identidade fixa”; por isso, tentamos
fixar uma identidade, afirmando que o que somos agora é o que, na verdade, sempre fomos. Precisamos
de algo que dê um fundamento para nossas ações e, então, construímos nossas “narrativas pessoais”,
nossas biografias de uma forma que lhes garanta ocorrência (WEEKS, 1995, p. 89).

Vieira, Zanuzzi e Amaral (2016) levam-nos a entender que as mulheres reprimem as


expressões da sua sexualidade, pois sentem necessidade de controlar e manterem-se vigilantes
quanto ao seu comportamento por temerem a interpretação errônea da sociedade, taxando as
suas vivências sexuais de inadequadas. Ainda de acordo com os autores, fica evidente que essas
práticas sexuais femininas, vistas como inadequadas socialmente, são aceitas se praticadas por
homens. Ressaltam assim a crença social ainda vigente de que as necessidades sexuais de
homens e mulheres são diferentes e, como os homens foram criados dessa forma, mais livres,
podem tudo, ao passo que as mulheres, por terem sido mais “podadas”, não podem nada.
Assim, as mulheres, precisam preservar o papel de recatadas e do lar, ao mesmo tempo que
eles precisam se adequar ao papel oposto: quanto mais sexo fizerem, quanto mais desejo
tiverem, mais viris eles são. A partir dessa educação, entende-se que:
As mulheres são mais centradas na teia das relações pessoais entregues ao cuidado da vida. Nas relações
sexuais a mulher procura antes a fusão que o prazer, mais carinho que o intercurso sexual. Na sua grande
maioria precisa amar para fazer sexo, por não dissociar amor de sexo. “O homem, por sua vez, dissocia
facilmente amor de sexo, busca antes o prazer que o encontro profundo (MORAES, VASCONCELOS
et al., 2011, p. 796).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Ainda sobre a sexualidade das mulheres, pode-se afirmar: outro aspecto que vem de
muito tempo, a respeito da sexualidade feminina, é o da passividade. Dessa forma:
A sexualidade das mulheres há muito tempo foi considerada essencialmente passiva, fato que influencia
muitos estereótipos e preconceitos atuais (Giddens,1993). Além disso, percebe-se que a vida sexual de
homens e mulheres se apresenta de maneira diversa: a sexualidade reduzida à genitalidade se apresenta
para as mulheres como algo sujo vergonhoso, proibido. Os homens, ao contrário das mulheres, recebem
mensagens e são preparados para viver o prazer da sexualidade através do seu corpo, já que socialmente
o exercício da sexualidade no homem é sinal de masculinidade (VIEIRA, ZANUZZI E AMARAL, 2016,
pp. 67-68).
336
De um modo geral podemos dizer que “as mulheres desde que nascem são educadas para serem
mães, para cuidar dos outros, para dar prazer ao outro” (CABRAL & DIAZ, 1999, p. 143 IN: VIERA,
ZANUZZI et al., 2016).
Pensando na sexualidade como expressão da identidade de cada sujeito, temos que considerar
que:
O ser humano é resultado do contexto social onde está inserido. Os indivíduos aprendem – ou
reproduzem – desde muito cedo, pode-se dizer, a partir do útero, a ocupar e a reconhecer seus lugares
sociais, por meio de situações e estratégias até mesmo sutis, que, passam a ser encaradas como
“naturalizadas”, e, consequentemente, “por vezes, muito difíceis de reconhecer” (MEYER, 2003). O
gênero está profundamente arraigado ao existir do ser humano, ele já é intrínseco à sua personalidade,
pois desde o ventre materno já lhe são repassados conceitos distintos de masculino ou feminino. Não há
como desvincular o gênero do social (TOREJANI & BATISTA, 2010, p. 55).

Levando em consideração que, já ao nascer, corpos de homens e mulheres são


diferentes, precisamos pensar que o gênero e as sexualidades também o são.
Entende-se por gênero a condição social por meio da qual nos identificamos como masculinos e
femininos. É diferente de sexo, termo usado para identificar as características anatômicas que
diferenciam os homens das mulheres e vice-versa. O gênero, portanto, não é algo que está dado é
construído social e culturalmente e envolve um conjunto de processos que vão marcando os corpos, a
partir daquilo que se identifica ser masculino e/ou feminino. Em outras palavras, o corpo é generificado,
o que implica dizer que as marcas de gênero se inscrevem nele (GOELLNER, 2010, p. 75).

De acordo com Lima, Moreira e Melo (2019), a contar desse momento, o sexo passou
a compor a identidade dos sujeitos, dessa forma, entende-se o sujeito como, não só tendo um
sexo, mas como “sendo” seu próprio sexo. Sendo assim, quando se descreve que um corpo é
de um ou de outro sexo, não estamos somente falando da massa corpórea desse sujeito, mas
sim de um discurso que está impregnado de mecanismos e normas que regulamentam e
produzem os corpos dentro de um modelo heterossexual obrigatório. Essa maneira de
classificar os corpos de forma binária, macho-fêmea, homem-mulher, serve para dar sequência
a esse modelo estabelecido dentro dos princípios de integridade e coerência ao padrão
heteronormativo, evitando assim, a sua descontinuidade.
Considerando o exposto anteriormente, Goellner (2010) nos leva a entender que
baseado no que os nossos corpos pronunciam, acaba sendo inevitável não olhar para esse corpo
vislumbrando um conjunto do biológico, do que vem do natural, mas ao mesmo tempo, a nossa
cultura também está impressa ali, seja na forma de vestir, nos adornos que usamos, nas cores,
não só esse corpo está ali para saciar a nossa fome, mas também os nossos desejos e satisfações
de outras necessidades, sejam elas sexuais ou somente de contato físico, do cuidado.
O nosso corpo, então é uma mistura daquilo que introjetamos do nosso convívio
familiar, da forma como fomos educados nas escolas por onde passamos e também nos cultos
ou igrejas que frequentamos.
Logo, os nossos corpos podem ser diferentes, mas ao mesmo tempo bastante parecidos
na forma em que foram “educados” ou “moldados”.
Estudos de Sexualidade 3

Considerando as questões de identidade, de como os sujeitos se apresentam, se


representam, de que forma constituem essas identidades, os papéis que exercem no ambiente
social ao qual pertencem, na concepção de família e de conjugalidade, é de suma importância
falar sobre a percepção da parentalidade em casamentos de longa duração, onde nota-se que a
presença de filhos nesse contexto é bastante valorizada e presente, representando até mesmo a
legitimação de uma relação. Em contraponto, Rios e Gomes (2009, citado em GRIZÓLIO &
SCORSOLINI-COMIN, 2015), trazem a ideia de que os casais atuais constroem seu espaço
conjugal pautando-se na aliança e na sexualidade e, posteriormente, casamentos de longa
duração pensam na parentalidade, mas não como uma condição necessária, o que nos leva a 337

perceber que, na contemporaneidade, o papel conjugal se sobressai ao papel parental.


Os filhos, muitas vezes, encarnam o projeto de continuidade de uma família e a complementação da
relação conjugal. Entretanto, na contemporaneidade, as relações estão cada vez mais fluidas, e o “eu”
está sendo muito mais valorizado do que o “nós” (FÉRES-CARNEIRO & MAGALHÃES, 2009: IN
CECILIO & SCORSOLINI-COMIN, 2013, pp. 664-665). No que concerne ao “nós”, podemos também
incluir a relação parental, além da conjugal e, nesse sentido, está havendo uma transição progressiva para
o aumento do número de divórcios e diminuição do número de filhos (CECILIO & SCORSOLINI-
COMIN, 2013, p. 665).

De acordo com Cecilio & Scorsolini-Comin (2013), ainda se percebe que é de grande
importância a valorização de filhos inseridos no contexto do casamento, demonstrando assim
uma visão bastante conservadora de cuidado na relação estabelecida com os filhos, em
detrimento de uma vida conjugal dedicada ao trabalho.
Pensando nessa relação da conjugalidade e da parentalidade na contemporaneidade,
podemos evidenciar diferentes arranjos que merecem maior atenção para melhor compreender
tais transformações e configurações, como adiar a parentalidade, ter somente um filho,
valorizando a vivência da conjugalidade em detrimento da parentalidade, visando evitar uma
possível separação ou divórcio; já que na contemporaneidade os apelos das redes sociais, do
uso da pornografia, da masturbação e a facilidade dos encontros virtuais vêm ameaçando de
certa forma as relações conjugais.
Os relacionamentos amorosos passam por uma ressignificação de modelos e pela subjetivação do
indivíduo por padrões diferentes de individualidade. Esse processo sofre também com a velocidade que
as “relações cibernéticas” implicam à vida dos indivíduos, interferindo na construção da intimidade entre
os parceiros conjugais e provocando instabilidade e volubilidade nas relações amorosas que, fragilizadas,
tendem a sucumbir. Trata-se de um período de mudanças sociais, econômicas e culturais que se refletem
no indivíduo e nas relações conjugais e familiares (Guedes & Assunção, 2006). É um momento de
transição desafiador que, na esfera conjugal, Giddens (1993) denominou de amor fluído, que se nutre da
satisfação mútua que determinará sua duração (COSTA & MOSSMANN, 2015, p. 18).

Ainda sobre a conjugalidade, é importante considerar alguns dados levantados sobre o


tema, que nos apresentam:
Outros estudos sobre conjugalidade (Scorsolini-Comin, Santos, & Souza, 2012; Scorsolini-Comin &
Santos, 2012) indicam que parceiros próximos e unidos serão capazes de compartilhar ideias e projetos
de vida e concordar sobre condutas, valores e decisões que tomadas em conjunto alcançam maiores níveis
de satisfação conjugal. Estes resultados corroboram pesquisa que encontrou, em casamentos de longa
duração, o aumento da satisfação associado à proximidade entre os parceiros, à coesão e à utilização de
estratégias de resolução de conflito construtiva (Norgren et al., 2004), (COSTA & MOSMANN, 2015,
p. 19).

Percebe-se que essas transformações na conjugalidade e na parentalidade seguem


ocorrendo não só no universo heterossexual, mas também no homossexual e:
Nesse contexto notamos que surge uma nova ênfase em um dos aspectos das relações homossexuais: a
conjugalidade [...]. A idéia de conjugalidade, a partir da modernidade, passa a pressupor a constituição
da intimidade entre os parceiros, destacando-a como condição para uma relação baseada na
complementaridade entre os homossexuais e instrumentalizando a legitimação do "eu" a partir do
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
"nós"[8]. Essa categoria é acompanhada por uma discussão sobre o casamento entre pessoas do mesmo
sexo que ganhou força com a luta dos movimentos gays pela legalização da parceria civil desde 1995[9]
(Mello, 2005). [..] Assim, pensar em casamento e/ou parceria civil entre homossexuais significa pensar
também nos arranjos dessas relações (SILVA, 2008, p. 18).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se fala de gênero como forma de controle, já que os corpos são moldados e
essa construção social dos estereótipos do feminino e do masculino estão diretamente
338
relacionados às influências que esse social vai ter na construção da identidade do sujeito, e por
existir uma expectativa e uma pressão do sistema hierárquico e de poder, visando não haver
uma diferenciação no âmbito social e familiar. Corpos moldados, gêneros controlados, sujeitos
subjetivados a partir das convenções sociais impostas ou reproduzidas, que aprisionam esses
corpos e esses sujeitos a se expressarem de forma reprimida, facilitando o controle e a
manipulação de comportamentos e expressões.
De acordo com o exposto anteriormente, tem-se que levar em consideração que ainda
nos dias atuais, com a crescente manifestação da sexualidade de tantas formas diferentes,
seguem-se criando rótulos e estereótipos que ainda servem para normatizar ou moldar esses
corpos a seguirem uma padronização dos “gêneros”, logo, mesmo que o homossexual, o
transexual, gays, lésbicas ou mesmo o “+” da sigla LGBTQI+, seja uma forma de “aceitar” ou
“reconhecer” a expressão dessas novas identidades, tende-se novamente na sociedade, no
social, a normatizar, catalogar.
As questões levantadas em relação a influência das diferenças de gênero na vivência da
sexualidade foram contempladas, onde evidenciou-se que os casais e os demais sujeitos
vivenciam a sua sexualidade influenciados pelo social, pelas questões de gênero, e vão
construindo e estruturando a sua identidade com essa interferência desde o nascimento. Fato
esse que decorre da caracterização genital, que acaba por determinar por meio cultural como
esse sujeito do gênero masculino ou feminino precisa se comportar ou se adequar às
convenções sociais e ao que é esperado dele, de acordo com o gênero a ele atribuído. Desde
cedo na escola, as meninas precisam ser gentis, aprendem boas maneiras para sentar, se
comportar diante dos meninos, a responder de forma doce; já os meninos são ensinados a serem
viris, agressivos e demonstrar força nas práticas esportivas, os diferenciando desde a educação
escolar, passando pelo aspecto familiar, onde a menina se compromete com as tarefas
domésticas e os meninos são mais direcionados a aprender um ofício, seguir os passos do pai.
Pode-se entender que a respeito da influência do gênero na estruturação da identidade,
observou-se que esse menino e essa menina vão crescendo, que a menina vai reprimindo a sua
sexualidade e o menino vai sendo estimulado a ser o mais viril e sexual o quanto puder, o
resultado disso se vê nas dificuldades da mulher em viver de forma mais satisfatória a sua
sexualidade, já que essas crenças em relação ao proibido vindas do social, do cunho religioso
ou familiar a acompanham por todo o seu desenvolvimento, e quando a mulher inicia a sua
vida sexual essas crenças, preconceitos ou tabus aparecem como impedidores ou obstáculos
para uma vida sexual saudável e prazerosa; ao passo que o homem, com a sua necessidade
mais instintiva, biológica de fazer sexo, acaba muitas vezes por não facilitar nem favorecer que
esse processo sexual da mulher, da sua parceira, seja vivido de forma menos opressora ou
estressante.
Com relação a vivência da sexualidade no processo da conjugalidade e da
parentalidade, pode-se dizer que as mulheres ressignificam as suas experiências sexuais através
da maternidade e valorizam muito mais o aspecto da parentalidade do que a própria
conjugalidade, ou seja, a sexualidade está atrelada ao matrimônio com o intuito de ter filhos e
manter o casamento, constituir uma família vivenciando de forma mais afetiva do que sexual
essa relação, o que de certa forma, repete o padrão normativo, enfatizando que estar num
Estudos de Sexualidade 3

casamento e vivenciar a conjugalidade se sobrepõe às questões da sexualidade voltadas ao


prazer, ao sexo. Os homens vivenciam a conjugalidade de forma mais voltada ao sexual, ao ter
prazer, visando o contato mais sexual do que afetivo com a parceira; a parentalidade também
aparece no gênero masculino como algo importante, mas o desejo de ser pai está mais
relacionado ao papel de provedor, de chefe de família do que relacionado ao fator emocional
propriamente dito.
Analisando os estudos levantados para realizar esse artigo, bem como a experiência
clínica do autor, pode-se considerar que a Psicoterapia tem um papel de muita relevância no
processo da vivência da sexualidade, visando ampliar os espaços de fala, possibilitando aos 339

casais, tanto heterossexuais como homossexuais a conversar abertamente sobre sexo, sobre as
dificuldades para vivenciar tanto as questões da sexualidade como da conjugalidade, e também
as que envolvam a parentalidade. Espaço esse, que ao construir um diálogo mais direto com
esses pacientes acerca das disfunções sexuais, das infecções sexualmente transmissíveis (IST),
de gravidez e maternidade, paternidade, parentalidade, tende a modificar o dia a dia desses
homens e mulheres, bem como a forma como transmitirão essas novas experiências aos seus
filhos, facilitando o processo futuro da vivência da sexualidade dos mesmos, de forma mais
satisfatória, mais fluida, menos traumática, minimizando tabus, crenças e obstáculos que em
nada ajudam no processo das descobertas da sexualidade.
Diante do exposto a partir da revisão realizada e da experiência prática aqui atribuída,
se faz necessário que novos estudos surjam para vislumbrar melhor a compreensão dessa
subjetividade, do desejo e de que forma esses sujeitos vivem a sua sexualidade, apesar da
influência das convenções do social, objetivando um cenário mais livre, sem tantos tabus, sem
tanta luta para aceitação, reconhecimento e valorização dos corpos não tão bonitos, não tão
jovens, não tão fortes, não tão esculturais, nem tão magros ou atraentes. De poder também
valorizar os corpos gays, trans, flácidos, obesos, velhos, doentes, não simétricos, como sendo
uma expressão legítima desse sujeito, da forma como escolheu viver ou realizar os seus desejos
e que está tudo bem, que se isso o faz feliz, íntegro e pleno, é o que importa e o que está em
questão, que é o relevante.
É fácil concluir que nesses processos de reconhecimento de identidades inscreve-se, ao mesmo tempo, a
atribuição de diferenças. Tudo isso implica a instituição de diferenças. Tudo isso implica a instituição de
desigualdades, de ordenamentos, de hierarquias, e está, sem dúvida, estreitamente imbricado com as
redes de poder que circulam numa sociedade. O reconhecimento do “outro”, daquele ou daquela que não
partilha dos atributos que possuímos, é feito a partir do lugar do social que ocupamos. De modo mais
amplo, as sociedades realizem esses processos e, então, constroem os contornos demarcadores das
fronteiras entre aqueles que ficam fora dela, às suas margens. [...] Ao classificar os sujeitos, toda
sociedade estabelece divisões e atribui rótulos que pretendem fixar as identidades. Ela define, separa e,
de formas sutis ou violentas, também distingue e discrimina (LOURO, 2000, p. 9).

Não se pretende chegar a uma resposta, mas pelo contrário, levantar uma discussão
fundamental por si só, e que se torna cada vez mais relevante, considerando o atual momento
sócio-econômico-político, onde “a diversidade” está em pauta em todas as políticas públicas,
onde vivenciamos um momento histórico com um governo federal representado por um
governante que incita o ódio, a discriminação e o preconceito, valorizando e enaltecendo o
modelo de gênero heteronormativo.

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Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

342

Aula virtual de 20 de junho de 2020.


Estudos de Sexualidade 3

“CONSOME, SÓ COME E SOME”:


OS CORPOS ABJETOS E AS SEXUALIDADES DAS TRAVESTIS E MULHERES
TRANS

Tayná Nunes Garcia

343

RESUMO
Este trabalho consiste em uma busca na literatura que direcione para os motivos pelos quais os
corpos das mulheres trans e travestis são desejados e consumidos no mercado do sexo e
pornografia, na mesma proporção em que são violentados e mortos no Brasil. Foram
empregados os conceitos de “performatividade” e “abjeção” de Judith Butler e o de
“masculinidade hegemônica” de Connell. Além disso, se utilizou as teorias queer a partir de
Butler e Miskolci e o transfeminismo através de Jaqueline de Jesus como dispositivos
contracultura, com o objetivo de fazer uma crítica ao sistema cis-sexista e transfóbico, bem
como dados do DSM-V, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, do Transgender
Europe e do site Pornhub. Concluiu-se que o desejo que opera nesses corpos não é contrário
aos números de transfeminicídio, mas agem da mesma maneira, por se manifestar mediante
uma sociedade cisheterocentrada, onde sexualidades e corpos não hegemônicos são
objetificados e tidos como abjetos.

Palavras-chave: Mulheres trans e travestis, sexualidade, direitos humanos, transfeminicídio,


transfeminismo.

ABSTRACT
This work consists of a literature search that directs to the reasons why the bodies of trans
women and transvestite are desired and consumed on the sex and pornography market, in the
same proportion that they are raped and killed in Brazil. Judith Butler's concepts of
“performativity” and “abjection” and Connell's “hegemonic masculinity” were used.
Moreover, queer theories from Butler and Miskolci and transfeminism through Jaqueline de
Jesus were used as counterculture devices, with the aim of criticizing the cis-sexist and
transphobic system, as well as data from the DSM-V, from “Associação Nacional de Travestis
e Transexuais”, from Transgender Europe and Pornhub website. It was concluded that the
desire that operates in these bodies is not contrary to the numbers of transfeminicide, but act
in the same way, as it manifests itself through a cis-heterocentred society, where sexualities
and non-hegemonic bodies are objectified and considered as abject.

Keywords: Trans women and travestites, sexuality, human rights, transfeminicide,


transfeminism.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

1. INTRODUÇÃO
A sexualidade e os corpos de travestis e mulheres trans no Brasil são em sua maioria
violentados e mortos, porém altamente consumidos por meio da indústria pornô e da
prostituição (HÍBRIDA, 2020). Nesse sentido, esses corpos são colocados à margem da
sociedade e suas vivências são postas no âmbito clandestino, secreto e proibido. Sendo o Brasil
o país que lidera o ranking de maior número de assassinatos de pessoas trans no mundo,
verifica-se que essas sexualidades não são vistas como dignas de serem vivenciadas em sua
amplitude e seus corpos são colocados como objetos a serem consumidos e por vezes
344
desprezados (TGEU, 2016; ANTRA, 2019).
Desse modo, a abjeção é a impossibilidade de um corpo estar no mundo de maneira
plena, pois a sociedade exclui a autonomia de viver deste enquanto sujeito social, o
abandonando e o colocando em espaços hostis (SILVA, 2018). Nesse sentido, a abjeção dos
corpos travestis e trans se inicia a partir de uma sociedade com valores culturais e religiosos
acentuados, assim tornando esses corpos defeituosos e inaceitáveis (BUTLER, 1993). Portanto,
essa minoria social muitas vezes é punida através de violência desde a infância por escolherem
os brinquedos “errados” para o seu gênero e se comportarem de maneira inadequada aos olhos
de uma sociedade cisheteronormativa. Logo, com a consequente exclusão de casa pela família
e a ida para as ruas, estas são encaminhadas, quase que obrigatoriamente, para o trabalho
informal da prostituição. Sendo assim, 90% das pessoas trans no Brasil estão no mercado do
sexo (ANTRA, 2020).
O grupo social no qual estamos inseridos é repleto de valores morais que se contradizem
e se sobrevém ao Estado laico, ou seja, o Brasil não legisla para pessoas trans, tampouco luta
contra sua estigmatização. Importante ressaltar a existência de uma bancada religiosa forte e
imersa no conservadorismo dentro do Congresso Nacional, que opera a favor da manutenção
da cisheteronorma. Desse modo, não há garantia de que pessoas trans sejam guarnecidas por
Princípios Constitucionais básicos, como o de inserção no mercado de trabalho. Portanto, as
decisões a favor dos direitos das travestis e transexuais não possuem legislação específica, por
este motivo, direitos referentes ao mercado de trabalho não são adquiridos, mas tomados por
incertezas, uma vez que necessitam de empatia e sensibilidade do nosso judiciário (PRADO,
2017).
Perante o tema proposto, será trazido o entendimento de Butler (1990) acerca de gênero,
o conceito de “performatividade”. Nesse sentido gênero não é compreendido nem a partir do
biológico, nem a partir de uma construção social, mas de atos repetitivos que se faz todos os
dias. Além disso, é importante explicitar o que significam as transgeneridades, travestilidades
e as identidades cisgêneras as quais são as “esperadas” como a única identidade possível
apresentada no meio social dentro do padrão da cisheteronorma. Nesse sentido, cisgênera é a
pessoa que se identifica com aquele gênero pelo qual foi designada, enquanto a pessoa
transgênera não se identifica com o gênero o qual foi atribuída (DE JESUS, 2012). Assim, o
termo travestilidade advém da identidade feminina travesti – construída no Brasil a partir de
lugares e momentos como o carnaval e do contato com o mundo da prostituição, por ser quando
e onde essas identidades eram “aceitáveis” e permitidas (DAVI & BRUNS, 2015). Portanto, é
uma identidade territorializada, usualmente ligada à pobreza, criminalidade, prostituição,
evasão escolar e abandono afetivo por parte da família. Porém, atualmente essas identidades e
termos são entendidos de modo mais fluido e estão reiteradamente se mesclando. Deste modo,
alguém que se considere como travesti em outro momento pode se afirmar enquanto mulher
trans e vice-versa (LEITE JR, 2014).
A teoria queer surgiu na década de 80 impulsionada pelos movimentos sociais, como o
feminista, homossexual e o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. Sendo esses
movimentos questionados pelas feministas negras e por aquelas e aqueles que virão a se
Estudos de Sexualidade 3

nomear queer. A concepção queer busca repensar a sociedade com o propósito de reverter
desigualdades, a fim de promover uma transformação social. Ademais, visa uma mudança
política, educacional, social a partir dos grupos que foram historicamente desprezados e
subalternizados. Além disso, entende que as identidades socialmente ordenadas são
dispositivos normalizadores, de controle e disciplinamento social (MISKOLCI, 2012).
Assim como o pensamento queer se origina da discordância entre os “diferentes”, por
não quer ser integrado e ir contra a normatização presente nas lutas das identidades minoritárias
(MISKOLCI, 2012), o transfeminismo além de reconhecer todas as identidades de gênero
como igualmente legítimas, se opõe a quaisquer hierarquizações de opressões a corpos que não 345

estão de acordo com a lógica binária homem/pênis e mulher/vulva. Nesse sentido, o


transfeminismo assegura a intersecção entre as diversas identidades, expressões sexuais e de
gênero e formas de opressão sobre os corpos fora dos ditames e regras sociais racistas,
machistas e cissexistas. Além disso, objetiva fortalecer e valorizar os corpos das pessoas da
forma que eles são (DE JESUS, 2019).
Em relação à divisão das categorias transexual e travesti, a primeira foi assimilada como
a “boa desviante”, a qual era e é patologizada e comumente uma identidade ligada a pessoas
que buscam se parecerem com pessoas cisgêneras, como fazer a cirurgia de “reafirmação de
gênero”, e a segunda como a “má desviante”, a marginal, àquela com um feminino “mal
sucedido” (LEITE JR, 2011). Dessa maneira, é necessário diferenciar essa identidade do termo
travestismo, que por vezes é tomado como sinônimo, contudo é um conceito que anteriormente
estava em classificações diagnósticas médico-psiquiátricas. Logo, “Travestismo” é entendido
como a pessoa que se transveste por prazer no gênero oposto, normalmente um homem que se
veste de mulher (DAVI & BRUNS, 2015). No DSM-5, o travestismo é tomado como um
transtorno, por existir sofrimento e prejuízo, e, por isso, é chamado de “Transtorno Travéstico”
(2014).
Diante o exposto até aqui, o mercado de trabalho para as travestis e mulheres trans se
resume à prostituição, ou seja, esta população dificilmente existe em outros espaços como em
trabalhos formais. Nesse sentido, na maioria das vezes esta é a única opção para suas
sobrevivências, pois é na prostituição onde encontram pessoas como elas, uma comunidade na
qual estas se sentem pertencentes. Desta forma, aprendem os mecanismos para se defenderem
de violência e se manterem vivas. Assim, desenvolvem truques e também sua expressão de
gênero, isto é, sua aparência física e modos de ser e estar nesse contexto. Todavia, apesar de
sofrerem diversas formas de violência, são corpos e sexualidades desejados por deterem
características do feminino e do masculino, o que as torna mais atraentes e por vezes
“feitichizadas” sexualmente (RAMALHO & VAZ, 2016). Ademais, a construção das regras e
território dentro dos espaços de prostituição, denunciam a alta vulnerabilidade e exclusão
social em que essas pessoas vivem no Brasil, o que torna esses corpos ilegítimos, indignos e
merecedores de violência. Desta maneira, acabam por criar as próprias regras e formas de se
proteger, já que o Estado e o sistema como um todo não as protegem (PINHEIRO & SERRA,
2019).
Já em relação à indústria pornô, de acordo com a plataforma do Pornhub, 2018 foi
marcado como “o” ano das categorias travestis e mulheres trans, ficando entre os vídeos mais
pesquisados e assistidos. Além do mais, os dados da plataforma confirmam que o Brasil é o
país onde a pornografia com travestis é a mais procurada, com 57% acima em relação à média
global (SANTOS, 2019). Ademais, os consumidores da pornografia trans e travesti se colocam
num jogo erótico fálico, diante à presença de uma mulher portadora de um pênis; todavia, a
adoração fantasiosa em que o sujeito se satisfaz, isto é, dentro da concepção da mulher que não
é “castrada”, gera dúvidas em relação a sua orientação sexual. Portanto, a presença do falo
intimida e apavora estes consumidores, diante de uma sociedade que ainda questiona a
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

sexualidade por conta da genitália daquela/e que deseja. O preconceito velado, apesar de
perpassar, não é o ponto central do presente artigo, pois importante aqui analisar o conflito
existente entre o desejo sentido do sujeito ao procurar e sentir prazer assistindo à pornografia
trans e travesti, com a repulsa e o medo de que se esse desejo fosse explicitado em via pública,
estes não seriam aceitos e se sentiriam destruídos por cobiçar e se excitar com estes corpos
(BALDIM, 2017).
Nesse sentido, o conceito de “Masculinidade Hegemônica” (CONNELL, 2010) surge
para explicar a hierarquia dos homens sobre as mulheres, a partir de uma construção histórico-
346
social de que o homem tem mais poder e assim está em uma posição de liderança dentro do
âmbito social. Sendo assim, esse conceito cria uma estrutura de poder entre identidades e
sexualidades, ou seja, entre as identidades de gênero, orientações sexuais, práticas sexuais e
expressões de gênero. Dentro disso, se produz uma relação de privilégio inato e de dominação
– que coloca o homem heterossexual como sexo/gênero forte - sobre as identidades e
sexualidades consideradas periféricas como a travesti. Dessa forma, os homens entre eles
também são categorizados, ou seja, uns são vistos como superiores aos outros (BENFATTI,
2017).
A partir disso, a heterossexualidade passa a ser obrigatória e são criadas regras de como
esses homens podem se portar para manter sua masculinidade intocada. Nessa perspectiva, o
homem que procura por sexo ou afetividade com travestis e mulheres trans, principalmente as
que portam um pênis são vistos com olhar punitivo e sua masculinidade passa a ser questionada
(ANDREO, 2016). É importante salientar a existência do termo “t-lovers”, que são homens
que se relacionam e são admiradores de travestis, trans e crossdressers. Em sua maioria, os “t-
lovers” mantém um relacionamento estável com mulheres cisgênero, por sentirem medo de
viverem sua sexualidade e por consequência de assumir seus relacionamentos com travestis.
Dessa maneira, acabam por ficar no âmbito clandestino, reforçam a cisheteronorma, a
masculinidade hegemônica e, consequentemente, a violência contra essa população (DE
FREITAS et al., 2015).
Posto isto, pretende-se desenvolver por meio de uma revisão bibliográfica, discussões
e reflexões acerca do lugar social onde a população trans e travesti é colocada. Em vista disso,
esse trabalho tem como objetivo realizar uma busca na literatura que nos direcione para os
motivos pelos quais esses corpos são desejados e consumidos, na mesma proporção em que
são negligenciados, violados e mortos em uma sociedade tomada por papéis rígidos e pré-
definidos, baseados na masculinidade hegemônica e na cis-heteronorma.

2. METODOLOGIA
O presente artigo se propôs em realizar pesquisa de revisão bibliográfica, com a
finalidade de atingir ao objetivo proposto, ou seja, buscar compreender os mecanismos que
levam a nossa sociedade desejar e consumir os corpos trans e travestis ao mesmo tempo em
que violentam e matam.
Desse modo, a busca foi elaborada durante os meses de março a outubro do ano de
2020, foram utilizados trabalhos de autoras e autores referência no tema que será abordado e
discutido, como Jaqueline Gomes de Jesus, Judith Butler, Michel Foucault, Jorge Junior Leite
e Richard Miskolci. Alguns textos como o de Tatiana Lionço publicado no livro Psicologia,
Travestilidades e Transexualidades do Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina e
do Ângelo Brandelli Costa e Henrique Caetano Nardi sobre o preconceito contra a diversidade
sexual e de gênero. Ademais, foram utilizados os dados do DSM-V, da Associação Nacional
de Travestis e Transexuais, os relatórios produzidos pelo site Pornhub e o mapeamento
realizado anualmente pela organização europeia Transgender Europe.
Estudos de Sexualidade 3

Além disso, foram buscados artigos nos bancos de dados dos sites Google Acadêmico,
Scielo e Periódicos Capes. Inicialmente, pesquisados por artigos no Google Acadêmico, a
busca do termo “travestilidade” teve o intuito de encontrar artigos que auxiliassem no
entendimento da vivência travesti, percepções sobre esse mundo e conceitos. Com isso, se
chegou a 1.490 mil resultados e destes foi incluído neste trabalho um dos artigos. Após a
pesquisa sobre a vivência travesti, fora investigado o termo “transgênero”, com o objetivo de
encontrar trabalhos que fossem relevantes e pudessem contribuir com o presente trabalho.
Assim, foram localizados 16.700 resultados e dentre eles, foi escolhido um artigo. Em seguida,
se buscou as palavras “sexualidade travesti” com o propósito de encontrar mais embasamento 347

em relação a sexualidade da população, a qual temos por objetivo entender e refletir. Dessa
forma, foram achados 15 mil artigos, sendo um deles separado para alicerce no
desenvolvimento da pesquisa.
Posteriormente, foi necessária a busca do conjunto de termos – “profissional do sexo
travesti” – por saber, através da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA,
2020), dos altos números dessa população dentro do mercado do sexo. Nesse sentido, surgiram
10.900 mil resultados e foram selecionados cinco artigos que melhor iam ao encontro com os
objetivos da pesquisa. Depois, se buscou com o grupo de palavras – “trans e mercado de
trabalho” – onde resultou em 16.800 mil artigos, portanto, foi escolhido um que tinha maior
relação com o proposto no trabalho.
Por conseguinte, do encontro de artigos para tratar sobre o mercado de trabalho, onde
essa população está mais inserida, se buscou artigos que embasassem os motivos pelos quais a
pornografia trans e travesti é tão procurada no Brasil, bem como entender um pouco do
funcionamento desse meio. Assim, se investigou na mesma base de dados os termos em
conjunto – “pornografia trans e travesti” – na qual apareceram 1.440 mil resultados e dentre
eles foram eleitos dois artigos. Ademais, se pesquisou os seguintes termos unidos “travesti na
pornografia” que resultou 1.050 mil artigos, porém utilizou-se apenas um deles. Em seguida,
a procura se baseou em artigos para entender o grande número de assassinatos dessa população
no país, portanto, a partir do conceito “transfeminicídio”, a pesquisa obteve 61 resultados e
apurado apenas um dos artigos.
Logo depois das experiências pesquisadas e dos resultados obtidos, se pesquisou o
conceito “t-lovers” para que pudéssemos entender um pouco sobre quem deseja e como
funciona o desejo dessas corporalidades e sexualidades de travestis e trans. Desse modo,
resultou em 171 artigos, dentre eles foram selecionados dois artigos. Ainda, buscou-se artigos
referentes ao termo “masculinidade hegemônica”, o que resultou em 12.300 trabalhos e foram
utilizados dois deles, com o propósito de potencializar o trabalho com o entendimento da norma
proposta para os corpos e gêneros. A base de dados Scielo, foi utilizada com a pesquisa das
palavras “profissionais do sexo Brasil” e com isso, se encontrou 124 resultados, na qual foram
selecionados dois artigos, uma vez que eram os únicos que tratavam sobre as profissionais do
sexo trans e travesti, bem como uns dos únicos que aduzia sobre o tema do mercado de trabalho
da prostituição.
Com base no Periódicos Capes, investigou-se a partir dos termos chave “transexual
travesti Brasil” o que resultou em 61 artigos, contudo foi selecionado apenas um artigo. Além
do mais, se buscou “masculinidade hegemônica” que obteve 119 resultados, porém se utilizou
dois artigos dentre todos. Desta forma, as buscas nos três sites basearam-se em artigos dos
últimos cinco anos, cruzando por vezes algumas palavras e termos ou utilizando de um só
termo. Os critérios utilizados para a inclusão e exclusão de artigos foram artigos publicados
nos últimos cinco anos, foram colhidos os primeiros artigos que apareciam que mais se
encaixavam no que era pretendido na pesquisa. O Google Acadêmico foi a base de dados mais
utilizada, pois na maioria das vezes ele mostrou mais artigos do que os outros sites, inclusive
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

os que foram achados neles. Os artigos previamente selecionados entre outros encontrados
aleatoriamente e por meio de indicação de colegas foram resultado de uma incessante busca de
conceitos, discussões sobre os conceitos relacionados a esta pesquisa. A tabela com os artigos
selecionados se encontra em anexo I.

3. RESULTADOS
Primeiramente, insta salientar dentro dos resultados sobre diferenciações e conceitos
sobre travestis e mulheres trans, Barbosa (2015) em sua tese discutiu sobre as variações dentro
348
do termo “trans” e suas ligações com as categorias transexual, travesti entre outras. A categoria
travesti adveio de uma identidade cultural brasileira, que se constituiu na leitura social como
um distúrbio do desejo sexual, como as perversões e parafilias. Já o termo transexual emergiu
nos Estados Unidos, que na época chamava-se “transexualismo”, que seria a pessoa que se
sente internamente e intimamente identificada com o “gênero oposto” e por isso possuía um
transtorno mental. No ano de 1984 com o nu de Roberta Close na revista Playboy, esta escondia
a genitália performando uma vulva, isto é, uma “mulher de verdade”, surpreendeu os leitores
e a população, que ao olhar Close e seu corpo, foi despertado o desejo e a curiosidade e não
mais medo e nojo como o que era despertado por outras travestis e transexuais.
O aparecimento da modelo Close na mídia foi um marco histórico social em nosso país por
quebrar os estigmas da travesti perigosa, marginal, tornando esse corpo agora desejável e
humanizado. Porém, ao tirar esse corpo desse lugar do “sujo”, da criminalidade, foi inserido
na esfera do patológico, assim sendo colocado no Manual Diagnostico e Estatístico de
Transtornos Mentais como “transexualismo” na década de 80 (BARBOSA, 2015; VERAS,
2016; DSM-III, 1989). Contudo, atualmente são identidades que se mesclam, pois as
identidades travestis se tornaram a representação do orgulho e resistência contra o controle e a
vigilância de seus corpos (LEITE JR, 2014; BITENCOURT, 2017). Nesse sentido, essas
identidades postas em categorias patologizantes e marginalizantes, além de serem excluídas da
sociedade, também eram da sua própria comunidade, pois o movimento LGBTQIA+ teve
origem em 1970 no Brasil com os gays e só em 1990 há a entrada das travestis e trans
(ESTEVES, 2017). Esse processo ininterrupto de afastamento e invisibilização da população
“T” leva à altos índices de violência, ideação suicida, infecção pelo HIV e outras IST’S entre
outros (FERREIRA, 2018).
Discursos de diversas áreas e instituições sociais vêm repetindo e instalando o que é normal
e saudável versus anormal e patológico, como as relações, as religiões, a família, a escola, a
medicina e até mesmo a psicologia. Ainda há a patologização das transexualidades e
travestilidades, mesmo que estejam acontecendo alguns avanços na saúde e algumas
facilitações em âmbito jurídico, como a retificação do nome e sexo no registro civil. Assim,
Prado (2018), em seu livro Ambulare apresenta uma mudança de pensamento e de fazer em
prol da despatologização dessas identidades e corpos, relatando a sua experiência em um
ambulatório trans. O autor compreende o despatologizar, como verbo, como ação e como um
fazer constante, o que implica em não diagnosticar, pois o diagnóstico adquire materialidade e
ocasiona em abjeção e, portanto, violência. O autor salienta que o ato despatologizando
descrito por ele não é por si só eficaz, mas se dá um conjunto de interações entre relações,
conhecimento, ações e contextos (PRADO, 2018).
A prática de despatologizar não é descuidar e sim desclassificar e desconstruir lógicas
patologizantes quanto à identidade de gênero e sexualidade. Nesse ponto, não é parar de usar
diagnóstico e métodos para prevenção, promoção e tratamento em saúde, mas utilizar quando
se faz importante e traz benefícios a pessoa, e não um diagnóstico que visa à marginalização e
normalização desses corpos. Nesse sentido, não patologizar identidades e existências, é
garantir que essas pessoas sejam dignas, respeitadas e cuidadas. Além disto, despatologizar é
Estudos de Sexualidade 3

realocar o cuidado para uma concepção mais horizontalizada, colaborativa, corresponsável e


ética. Posto isto, despatologizar é tirar desses corpos a busca incessante por uma coerência
imposta e construída para se manter uma norma social, mas olhá-los a partir de uma visão
despida de pré-conceitos, julgamentos e de uma verdade absoluta disposta a priori. Pois, o que
se produz hoje na maioria das instituições de saúde são práticas patologizantes, que tiram a
autonomia e decisão dessas pessoas sobre os próprios corpos e colocam o poder na mão dos
técnicos, o que toma um caráter opressor e objetificante (PRADO, 2018).
Posto isto, o diagnóstico ao invés de ser um instrumento de saúde, assume materialidade e,
assim mais uma vez a abjeção, objetificação e violência. Pois, esses corpos são colocados na 349

esfera do danificado, que precisa ser consertado como um objeto, não tem voz, visto que quem
possui o saber é o médico. Nesse ponto de vista, por mais que os movimentos sociais consigam
fazer alguma pressão para despatologizar as identidades, existe uma força ainda maior dessa
cultura normatizadora e normalizadora de existências (PRADO, 2018; LIONÇO, 2019).
Desde muito cedo as mulheres trans e travestis sofrem de discriminação e exclusão social,
inicialmente em suas famílias, pois a criança LGBTQIA+ muitas vezes já apresenta
comportamentos fora do esperado para o seu gênero que é designado a partir da sua genitália.
Desse modo, se for pênis se espera que a criança goste de azul, goste de brincar com carrinhos,
esportes e namore menina. Contudo, a escola, a família e sociedade como um todo se utilizam
de diversos métodos para forçar essas crianças a entrarem dentro desses moldes, estimulando
e enrijecendo o “normal” e o “anormal”, uma vez que, estas não se encaixam nesse binarismo
cisheterocentrado (SANTANA, 2016).
Em relação à instituição religião o Brasil é considerado um país cristão, constituído por
crentes católicos e evangélicos. A dificuldade de compreensão da estruturação dos sujeitos
diante a diversidade que se apresenta dentro de contextos sociais, naturalizou-se a opressão de
corpos que fogem de padrões da cisheteronorma. Ocorre que, para tanto, a igreja como
instituição de poder impacta de forma negativa vidas que são vistas não só como pecadoras,
mas como malditas. Esse eficiente poder que regula corpos desde primórdios, mais
precisamente seguidores da bíblia, acreditam que assim como há a “cura gay”, há a
possibilidade de conversão do corpo trans ao corpo cis, uma vez que ser cisgênero é a única
maneira de se chegar a Deus. As concepções trazidas por estes, que definem sujeitos, traz a
tona as mais diversas agressões para corpos trans e travestis, pois acabam por indagar
agressões, tendo em vista que é dever da igreja participar dessas correções e conduzir ao
caminho de Jesus. Há de se ressaltar que não são todas crenças que trazem consigo esses
moldes baseados em discriminar e insultar o desconforme da norma, além de todas as
represálias sofridas, estas não têm nem o direito de ir ao encontro com práticas espirituais e,
muito menos, frequentar igrejas (MARTINS, 2017; MARANHÃO FILHO, 2016).
No caso do Brasil, a falta de uma Lei Penal que possa criminalizar e punir autonomamente
a homotransfobia legitima as mais diversas violências diárias sofridas, pois não há uma
estrutura que suporte atender tamanhas práticas violentas que se vê todos os dias. Diante o
descaso do Congresso Nacional em se propor a legislar para a população LGBTQIA+, o STF
se posicionou ao incluir na Lei que trata os crimes de racismo, os atos de discriminação sofridos
por pessoas da sigla por conta de suas identidades de gênero ou orientação sexual. Ocorre que
na prática ao analisar a Lei, ela se mostra extremamente insuficiente frente ao número de
crimes bárbaros que ocorrem nestas populações. A discussão no sentido da busca por
estratégias de inserção e expansão dessas minorias vão no sentido de combater estruturalmente
os atos reforçados pela cisheteronorma, na qual se vive. Ademais, um modelo ideal para poder
criminalizar e tutelar essas minorias vai ao encontro com a confecção de uma norma autônoma,
isto é, que através do legislativo possa se ter o amparo necessário para que haja menos vítimas
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

diárias, bem como possa se educar desde cedo de forma preventiva sobre os direitos
LGBTQIA+ (THOMAS, 2017).
As mulheres trans e travestis são em sua maioria renegadas socialmente, o que muitas vezes
faz com que se tornem difíceis e precárias as oportunidades de serem empregadas em meios
formais, e quando conseguem se introduzir nesses espaços, sofrem com um ambiente
transfóbico, agressivo e, por vezes, cruel. Nesse sentido, estas acabam por “parar” ou optar
pelo mundo da prostituição (ASSIS, 2018; LICCIARDI et al., 2015). Assim, a prostituição se
revela tanto o único modo para sobreviver, como também é reconhecido como um trabalho
350
legítimo. Isto é, algumas das pessoas que vivem do mercado do sexo, entendem a prática como
comercial e em alguns grupos de militantes reivindicam direitos para a proteção e fiscalização
desse trabalho (ZUCCHI et al., 2019).
Nesse seguimento, a prostituição apesar de estar associada apenas com uma atividade com
fins de subsistência e uso do corpo, não é exclusivamente um trabalho, mas um ambiente onde
se formam comunidades e se produzem feminilidades, formas de pertencimento e valorização
dentro desse grupo. Ademais, se faz fundamental a desconstrução de que toda a travesti ou
mulher trans é profissional do sexo ou constrói sua identidade nesse meio, há também quem
esteja fora desse contexto. Importante salientar este ponto, pois além de restringir e reduzir
suas múltiplas vivências, estigmatiza e produz mais uma vez exclusão por suas existências só
serem assimiladas pelo imaginário social dentro dessas zonas (LONGARAY, 2016).
Diferente de outros exercícios dentro da prostituição, como de mulheres cis, que vivem
outras formas de relações sexuais que não apenas no trabalho, as travestis não costumam estar
em outros lugares e relações. Pois, a mistura do feminino e masculino origina outro modo de
excitação sexual, por vezes feitichista. Por esse viés, nota-se que os t-lovers não buscam figuras
binárias, mas aquelas que performatizam o transgressivo, o contra hegemônico e enigmático.
Dessa forma, os t-lovers colocam em xeque as questões do desejo cisheteronormativo. Porém,
apesar de gostarem das feminilidades e corporeidades femininas, como peitos, bunda e coxas
grandes, cabelos longos, assim como no padrão de mulheres cis desejáveis, procuram exercer
o papel passivo nas relações e tem o pênis como desejo sexual central. Na pesquisa do autor,
é demonstrado que entre os t-lovers iniciantes existia um medo intenso de serem homossexuais,
portanto, os mais experientes tranquilizam relatando que no início essa dúvida é frequente, mas
que por desejarem feminilidades não eram homossexuais. Nesse ponto, os t-lovers não se
enxergam em nenhuma dessas categorias de orientações sexuais e por isso a criação de uma
nomenclatura própria (DE FREITAS et al., 2015; RAMALHO, 2016).
No trabalho de Ramalho (2016) os t-lovers por terem tesão e ao mesmo tempo medo e
culpa, eles têm vergonha de se assumirem ou serem descobertos pelos amigos e familiares, e
por isso culminam por saciar seus desejos em terreno oculto, para que suas masculinidades não
sejam questionadas e não corram perigo. Nesse sentido, 95,8% dos homens da amostra
comumente mantinham relações afetivas com mulheres cisgênero. Dessa maneira, estes
homens têm requisitos a serem cumpridos para que esses corpos sejam desejados, como ter
características bastante “femininas”, do contrário são corpos considerados geradores de
repulsa. Em vista disso, os seus desejos e relações com as travestis invocam angústia e diversos
questionamentos internos. Além disso, reforçam estereótipos e simultaneamente fogem ao
padrão de desejo hegemônico (DE FREITAS et al., 2015; RAMALHO, 2016).
Deste modo, as pessoas que declaram sentirem atração por esses corpos não hegemônicos,
se relacionam com elas principalmente escondidos, mantendo suas relações estáveis com
mulheres cis, além de poderem desejar apenas aquelas que possuem corpos extremamente
feminilizados. Nesse ponto, vemos a norma sendo imposta mesmo na fuga dela, pois os padrões
de certo e errado relacionados ao desejo são introjetados e sofrem reforço e punição
constantemente pela própria pessoa e pelo grupo social. Assim, gera-se a objetificação e
Estudos de Sexualidade 3

desumanização das mulheres trans e travestis que ficam restringidas ao campo do marginal e
do risco iminente de perigo e violência (RAMALHO, 2016).
A masculinidade hegemônica (CONNELL, 2010), é fabricada a partir do padrão ocidental
do que é ser homem, ou seja, o gênero masculino é estereotipado pelo ser másculo, dominador
e vigoroso. Ao mesmo tempo em que é criada a partir da oposição do que é ser feminino. Esse
estado de predominância de um só gênero passou a ser estudado e problematizado a partir de
movimentos feministas, pois o masculino carrega uma supremacia tão firme e estabelecida que
não se era pensado nas formas divergentes e distintas do que significa ser um homem. Ocorre
que com o passar dos tempos houve a percepção de que essa hegemonia não impunha regras 351

tão somente ao gênero feminino de comportamento e inferioridade, mas também se atentou às


hierarquias e vantagens que há dentro do masculino e, portanto, a simultaneidade de
masculinos (ECCEL; SARAIVA; CARRIERI, 2015). Contudo, o falocentrismo é vivenciado
por homens desde o útero de suas mães e com seu crescimento começam a serem postos e
encaixados em ideais de masculino. O ambiente hostil em que vivem, acarreta problemas sérios
a níveis psíquicos de represálias, uma vez que quando são agredidos, aprendem a agredir. Desse
modo, se permitem estar nessa matriz circundante de atitudes, falas, sentimentos, toxidade de
que ser do gênero masculino modelou para se obter privilégios dentro da sociedade (ANDRÊO,
2016).
Dessa forma, a maneira em que foram construídas as relações de poder e hierarquização
dos sexos, gêneros, orientações sexuais, raças e classes sociais sob os corpos, levaram a
diversas violências como a de gênero, por meio de agressões simbólicas, veladas, psicológicas,
morais, sexuais e físicas. Com isso, demonstra a subordinação, subalternização e opressão de
uns sobre os outros, concernente a violações dos direitos humanos (DE CARVALHO, 2019).
A população trans é morta a cada 48 horas no Brasil e dentre todas 80% são pessoas negras.
Há uma intersecção de opressões, a negritude e a transgeneridade, que juntos aumentam as
ações preconceituosas e discriminatórias da biopolítica. A violência e a precarização em que
esses corpos estão submetidos são resultado das grotescas desigualdades sociais e relações de
poder impostas desde a criação do Estado, como a colonização europeia. Nesse sentido, o
genocídio apontado para esse grupo tem a colaboração de instituições, representantes e agentes
sociais onde estão inseridas a dominação branca, cis e heterossexual (OLIVEIRA, 2020).

1.1. Anexo I

Nº Título Autor Ano


1 Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia Jorge Leite Junior 2006
“bizarra” como entretenimento
2 Nossos corpos também mudam. A invenção das Jorge Leite Junior 2011
categorias “travesti” e “transexual” no discurso
científico
3 Travestis brasileiras e exotismo sexual Jorge Leite Junior 2014
4 Brasil lidera consumo de pornografia trans no mundo Bruna Benevides 2020
(e de assassinatos)
5 Travestis de baixa renda poderão receber auxílio de R$ Bruna Benevides 2020
200,00
6 Caio Andrêo Homofobia na construção das 2016
masculinidades hegemônicas:
queerizando as hierarquias
entre gêneros
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
7 O vício em pornografia: relações com a adicção na Fernanda Alves Baldim 2017
atualidade
8 Imaginando trans: saberes e ativismos em torno das Bruno César Barbosa 2015
regulações das transformações corporais do sexo
9 Identidade de gênero: a masculinidade hegemônica em Flávia Andréa Rodrigues 2015
Tropic of Capricorn Benfatti
10 Hegemonic masculinity: Rethinking the concept Robert W. Connell e James W. 2005
Messerschmidt
352
11 Banalidade do mal, anestesia cultural, comunidades Rafael da Silva Noleto 2018
sexualizadas e transfeminismos

12 Mundo-vida travesti: abordagem fenomenológica das Edmar Henrique Dairell Davi e 2015
travestilidades Maria Alves de Toledo Bruns
13 O Universo Dos T-Lovers Natália Oliveira de Freitas; 2015
Josueida Carvalho de Souza e
Ednaldo Cavalcante de Araújo
14 Masculinidade, autoimagem e preconceito em Claudia Sirangelo Eccel; Luiz 2015
representações sociais de homossexuais Alex Silva Saraiva e Luiz
Alexandre Silva de Pádua
Carrieri
15 O protagonismo dos movimentos sociais LGBTs no Ana Carolina Xavier Esteves 2017
Brasil: dados de suicídio e violência homofóbica
16 Vivendo na pele travesti: revisão documental e Aline Dias Ferreira 2018
bibliográfica do movimento LGBT no Brasil
17 A discriminação de mulheres travestis e transexuais no Norma Licciardi; Gabriel 2015
mercado de trabalho Waitmann e Matheus
Henrique Marques de Oliveira
18 TRANSterritorializações–O espaço (im) preciso da Kueyla Andrade Bitencourt 2017
travestilidade
19 Masculinidade, autoimagem e preconceito em Claudia Sirangelo Eccel, Luiz 2015
representações sociais de homossexuais Alex Silva Saraiva e
Alexandre de Pádua Carrieri
20 Sai desse corpo que esse caminho não te pertence! Eduardo Meinberg de 2016
Pessoas trans* e ex-trans* em (re/des) caminhos de Albuquerque Maranhão Filho
gênero, corpo e alma
21 Uma análise sociojurídica dos ministérios de “cura e Paulo Adroir Magalhães 2017
libertação” de identidades trans: violações de direitos Martins
humanos e discursos religiosos discriminatórios
22 Declaração Internacional Dos Direitos Humanos: PINHEIRO, Carlos Vinícius 2019
Movimentos Sociais Internacionais E A Silva Pinheiro e Victor
Marginalização E Criminalização De Travestis Em Siqueira Serra
São Paulo
23 A inclusão no mercado de trabalho da pessoa Anna Priscylla Lima Prado e 2017
transgênero e a “dolorosa” arte de ser normal. IB de M. D’Angelo
24 Quem são os Clientes das Travestis Trabalhadoras do Nélson Ramalho et al. 2016
Sexo em Portugal? Breve Caracterização dos T-Lovers
25 A vivência dos travestis em escolas e no ensino Ana Larissa Alencar Santana 2016
superior brasileiro: uma análise bibliográfica do
período 2011-2015
Estudos de Sexualidade 3
26 As travestis no cinema da boca do lixo e na pornografia Dionys Melo dos Santos et al. 2019
digital
27 Bem-estar psicológico entre travestis e mulheres Eliana Miura Zucchi et al. 2019
transexuais no Estado de São Paulo, Brasil
28 Seriam os direitos dos transgêneros direitos Inumanos Kendall Thomas 2017
29 O fenômeno Roberta Close” e as “sexualidades Elias Ferreira Veras 2016
periféricas
30 O extermínio das pessoas trans: a violência de gênero Elis Silva de Carvalho 2019
como enredo na literatura e na realidade. Direitos 353
humanos de grupos diferenciados: mulheres,
transmulheres e travestis em foco

4. DISCUSSÃO
Haja vista os altos índices de consumo da pornografia e prostituição trans e travesti e
de assassinatos contra essa mesma população, se buscou compreender em que lugar esses
corpos estão sendo postos dentro da nossa sociedade (TGEU, 2016; ANTRA, 2020; SANTOS,
2019). Nesse sentido, há uma política em nosso país sobre quais corpos são vivíveis e quais
não são, onde as pessoas são colocadas em uma hierarquia social de quem vale mais e quem
vale menos, tendo em vista que nem os direitos humanos são alcançados. Assim, sendo criado
e discutido no livro Corpos que importam de Butler (1993) o conceito de abjeção, isto é, um
corpo desprezível, desprovido de valor e de uma existência plena dentro do grupo social. Dessa
forma, essas vidas vivenciam desde muito cedo a rejeição, a exclusão social e a violência de
maneira ampla por todas as instituições sociais e de poder, como a família, a escola, a igreja, a
medicina, o legislativo, a polícia, o mercado de trabalho e o Estado (SANTANA, 2016).
Conforme Leite (2006) discorre em seu trabalho, as instituições como a polícia, agem
com as mulheres trans e travestis que estão nas ruas como se tivessem ligação direta com o
mundo do crime, imputando a esses corpos marginalidade, mesmo não existindo no Brasil uma
lei que criminalize a prática da prostituição. Outros discursos, como os que acontecem dentro
dos poderes executivo e legislativo, legitimam a violência e negligenciam a necessidade de leis
específicas para uma população que se encontra sem acesso a direitos básicos como cidadã
(THOMAS, 2017). Ademais, o nosso país que é tido como laico valida e reforça os enunciados
feitos por cristãos e igrejas, onde as vidas não brancas, não cisgêneras e não heterossexuais não
ganham legitimidade e pelo contrário, sofrem exclusão e retaliação, pois são colocadas como
pecadoras, malditas e que necessitam de uma cura que as convertam em sujeitos cisgêneros e
heterossexuais. Além do mais, essa população na maioria das vezes acaba por ser banida de
exercer o seu direito fundamental à crença e a frequentar uma instituição religiosa (MARTINS,
2017; MARANHÃO FILHO, 2016).
Pode-se notar alguns avanços no caminho da despatologização das identidades trans e
travestis, como a futura mudança que ocorrerá no CID-11 que passará de um transtorno mental
para “questões relativas à saúde sexual”, entretanto, ainda haverá a manutenção dessas
identidades que fazem parte da pluralidade e multiplicidade humana dentro de manuais
classificatórios (BRASIL, 2018). Autoras/es pós estruturalistas e pós identitários como a
filósofa Butler trouxeram questionamentos sobre as categorizações e normas impostas e
colocadas como naturais. Assim, Butler demonstrou que na verdade gênero não era do campo
do biológico, nem do campo de uma construção social, mas de um “fazer”, ou seja, o gênero é
fabricado pelas pessoas todos os dias para darem uma falsa segurança de fixidez, não só por
pessoas trans, mas também para as cisgêneras (1990). Nessa perspectiva, podemos pensar na
masculinidade hegêmonica, chamada por vezes de masculinidade frágil, onde os homens e as
masculinidades tem que ficar o tempo todo reforçando ideias e comportamentos que de alguma
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

forma mantenham a sua virilidade entre outras características em um lugar “intocável”


(CONNEL, 2018; ECCEL; SARAIVA; CARRIERI, 2015).
Dessa forma, as pessoas que fogem dessa matriz de inteligibilidade que coloca o sexo,
gênero, expressão de gênero, desejo e práticas sexuais como lineares e naturais, como as
mulheres trans e travestis, que então escapam do controle sobre os corpos e denunciam uma
falha no sistema. E nessa perspectiva, estes sujeitos não coerentes com a norma ou precisam
ser colocados nela de alguma forma para serem menos rejeitados e sobreviver ou são
violentados e tem suas vidas aniquiladas (BUTLER, 1990 e 1993). Nessa linha, o movimento
354
queer se recusa a entrar e continuar colaborando para esse sistema binário, pelo contrário, surge
da revolta, vem denunciar que a inclusão e a tolerância não bastam. A teoria queer tem a
intenção de desconstruir o que é tomado como verdade para os sujeitos sociais e que as suas
diferenças sejam reconhecidas e validadas (MISKOLCI, 2012).
Contudo, esses mesmos corpos e sexualidades tão desprezados socialmente, são
altamente procurados e consumidos para a satisfação sexual, por meio das ruas na prostituição
e através da pornografia. Isso demonstra que há o desejo por esses corpos, pois existem muitas
pessoas que consomem e que buscam. Assim, há nesse meio uma interrogação, esses corpos
têm legitimidade e podem existir no clandestino, no obscuro, mas na luz do dia são olhados
com repulsa e medo. Nessa linha, mesmo quando alguns corpos e sexualidades podem ser
desejáveis durante o dia, como no caso da modelo Roberta Close, este corpo é branco e muito
próximo ao de uma mulher cisgênera ou ao que se espera de um “corpo feminino”. Esse meio
entre o desejo e o desprezo talvez acuse que a norma está a favor da manutenção de poder nas
mãos de pessoas que possuem mais privilégios e que ocupam os cargos superiores em todas as
instâncias e isso se faz a custa dos corpos que são escolhidos para serem abjetos,
marginalizados e dignos do precário e da morte (SANTOS, 2019; BUTLER, 1990).
Os t-lovers, que na maioria são homens cisgêneros e autodeclarados heterossexuais são
uma categoria de pessoas que sentem atração por mulheres trans e travestis, normalmente
gostam de uma expressão de gênero bastante “feminina” e o seu maior desejo e/ou feitiche é o
fato de elas terem o “algo a mais” – o pênis. Além disso, as travestis e trans que não tinham o
corpo ou uma expressão tão feminina eram vistas como repugnantes e os homens que as
desejavam sofriam retaliação e não eram considerados t-lovers pelos outros. Nesse ponto, se
demonstra a matriz se impondo, quando também existem corpos que são desejáveis e corpos
que não são e não devem ser (DE FREITAS et al., 2015; RAMALHO, 2016). Por meio do
prisma do “homem hegemônico” o másculo, dominador, que gosta de fazer muito sexo com
mulheres cisgêneras e femininas, os t-lovers por desejarem outros corpos, sentem medo de
assumirem relações com as mulheres trans e travestis. Assim, procuram elas para se satisfizer
sexualmente, mas não levam para os seus relacionamentos sociais por medo de retaliação e de
perder os seus privilégios (ECCEL; SARAIVA; CARRIERI, 2015; CONNELL, 2010). Com
isso, as relações sexuais e sociais com mulheres trans e travestis originam mal estar naqueles
que as desejam por conta dos padrões de masculinidade e desejo hegemônico, o que contribui
para que essas sejam violentadas (DE FREITAS et al., 2015; RAMALHO, 2016).
As identidades trans e travesti tem diferenças em suas construções políticas, históricas,
sociais, culturais e territoriais, porém são termos que se mesclam e se misturam. Isto é, hoje
pessoas que se consideravam até então travestis, começaram a se nomearam como mulheres
trans, por diversos motivos, sendo um deles uma estratégia de se sentir mais pertencente a
norma e padrões socialmente aceitáveis, já que se autoidentificar “mulher” trans traz uma
sensação mais higienista e binária (LEITE JR, 2014; BITENCOURT, 2017; BUTLER, 1990).
Enquanto outras passaram a se colocar nos espaços como travestis, por entender que esse é um
nome de luta, desconstrução e não aceitação delas dessa matriz de inteligibilidade, como forma
de resistir a essas imposições e controles (BUTLER, 1990). Ainda, os corpos e sexualidades
Estudos de Sexualidade 3

travestis estão intimamente ligadas ao sujo e desprezível - mundo das ruas e da pornografia -
no imaginário social. Assim, o mercado do sexo tanto colocado como única opção ou como
uma escolha reforça o estigma, fazendo com que a população geral normalize só enxergar essas
pessoas nesses espaços e não nos lugares frequentados por ela (LEITE, 2006; ASSIS, 2018;
LUCCIARDI et al., 2015).
Como apresentado por Costa e Nardi (2015), os maiores índices de sofrimento psíquico
em pessoas LGBTQIA+ e no caso, em mulheres trans e travestis, são gerados pela cultura que
não os tolera e não os aceita, refutando teorias de que essa população teria problemas mentais
pela sua própria natureza. Nesse seguimento, a violência e o transfeminicío continuam com 355

altos índices em nosso país, uma vez que está no primeiro lugar de países mais perigosos de se
viver sendo LGBTQIA+, o que piora se pensarmos nas intersecções de raça, classe social e
gênero, por ser um país estruturado no racismo e nas desigualdades (ANTRA, 2020). Nesse
seguimento, de acordo com Jaqueline Gomes de Jesus (2015) através dos movimentos sociais
o transfeminismo pretende uma reformulação da subordinação morfológica do gênero sobre o
sexo, que coloca os corpos trans como disfórmicos, o que patologiza e oprime a população
trans. Isto é, o transfeminismo surge da não conformação com essas normas binárias rígidas
sobre as identidades e corpos e com o consequente erro do feminismo ao não reconhecer as
intersecções e não criticar o determinismo biológico. Com isso, esse movimento busca separar
os conceitos de sexo e gênero, no sentido de reconhecer essas outras feminilidades e
“mulheridades” e retirar esses corpos do lugar de abjeto. Assim desconstruir as hierarquias
sobre quais corpos são vivíveis e quais não são (JESUS, 2015; BUTLER, 1993).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicialmente, importante se faz localizar a minha fala e do lugar de onde parto, sendo
uma mulher branca, cisgênera, lésbica, de classe média, não deficiente e cursando uma pós-
graduação, visto que, as ideias e pontos de vistas que trago nesse artigo possivelmente não
seriam os mesmos da população abordada ou de outros grupos. Nesse ponto, falo aqui do
prisma de quem compartilha de alguns pontos de luta com as mulheres trans e travestis, mas
que se distancia na maioria das pautas, ou seja, me encontro no campo da opressão, da
hegemonia, apesar de ser lésbica. Assim, exponho e me posiciono a partir de um número vasto
de limitações.
Conclui-se que esses corpos são colocados nesses lugares, por meio da criação de uma
norma muito bem pensada e elaborada para não ser questionada e ser tratada por todos como
verdade absoluta e como natureza, muitas vezes entendida como o desejo de algo maior, de
uma entidade. Nesse seguimento, os gêneros e sexualidades aqui são entendidos como plurais
e múltiplos, assim não existe só um modo de ser travesti e/ou de ser mulher trans, assim como
existem inúmeras identidades, formas de ser e de se expressar dentro das cisgeneridades.
Isto posto, pode-se compreender a partir da existência da matriz de inteligibilidade que
diz que há uma coerência natural entre sexo-gênero-expressão de gênero-desejo-práticas
sexuais, que o desejo também sofre a imposição e naturalização de normas sociais e ao não as
seguir a pessoa também se torna alvo de opressões, discriminações e violência de diversas
ordens. Como por exemplo, ter atração ou um relacionamento afetivo/sexual com uma mulher
trans ou travesti, onde a sua sexualidade pode ser colocada em xeque. Nessa lógica, se uma
pessoa é vista ou se relaciona com uma mulher que porta um pênis, sofre interpelações se essa
mulher é verdadeira, se quem está com ela é gay, se suas práticas sexuais envolvem ser
penetrado – se interseccionando práticas sexuais e entendimentos sobre gênero e desejo. Desse
modo, provoca mal-estar e por vezes raiva na população geral que está mergulhada em pré-
conceitos, normatizações e normalizações, desencadeando em retaliações e violência.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Pode-se perceber que há o desejo, mas este não é permitido pela comunidade, assim
esses corpos e sexualidades se mantem nos espaços em que podem existir da forma que são,
nas periferias, à noite ou se submetem a cirurgias e comportamentos socialmente aceitos para
se tornarem mais incluídas. Contudo, a falta de ambientes adequados e acolhedores como
instituições de saúde, educação e trabalho as afastam e não as permitem existir nesses e em
outros locais, além dos números de violência e assassinatos em nosso país só aumentarem ou
se manterem em índices altíssimos. Isso demonstra, que o nosso país além de ser perigoso,
preconceituoso, não desenvolvido e que sofre retrocessos constantes, se verifica a necessidade
356
de mais estudos questionando os poderes, as opressões e violações que acontecem no Brasil
com naturalidade. Por isto, utilizei uma frase musical da cantora e compositora Linn da
quebrada – “consome, só come e some” – que expressa uma crítica ao povo conservador
brasileiro, em maioria homens, que consomem esses corpos trans, gozam, mas não tem um
relacionamento com as mesmas, violentando de todas as formas.
Ademais, é preciso abrir os olhos da nossa população para a construção de novas
políticas de educação, de saúde, bem como de escolhas mais conscientes de quem irá nos
representar politicamente. Nesse sentido, é essencial fortalecer as minorias sociais, para que
resistam e ocupem os cargos políticos, com o objetivo de que possam ter maior visibilidade e
representatividade, o que irá refletir naquelas e naqueles que não se veem representados. Nessa
lógica, a teoria queer se mostra importante, pois não busca a “tolerância à diversidade”, mas
quer destruir essa norma violenta estabelecida, construir uma sociedade que reconheça a
diferença e tem o desejo de transformação social, onde todas as identidades e corpos tenham o
mesmo valor e direitos. O queer desmente a verdade criada e reiterada pela sociedade de que
alguns corpos e identidades são os corretos, saudáveis e legítimos acima de outros que são
considerados sem valor e desviantes. Além disso, essencial se faz fortalecer os transfeminismos
que protestam contra esse sistema sexo-gênero e reconhecem a intersecção entre opressões,
desmantelando a hierarquização de corpos sobre outros. Nessa perspectiva, tem a finalidade de
tirar as sexualidades e corpos trans e travestis desse lugar objetificante e inferiorizado, e assim
construir novos lugares e possibilidades de existência dignas. Termino este trabalho com um
recorte da música “Mulher” da rapper Linn da Quebrada (2016) para uma reflexão sobre os
binarismos, normatizações e controle sobre os corpos:
[...] De noite pelas calçadas
Andando de esquina em esquina
Não é homem nem mulher
É uma trava feminina
Parou entre uns edifícios, mostrou todos os seus orifícios
Ela é diva da sarjeta, o seu corpo é uma ocupação
É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto
Está sempre em desconstrução [...]

6. REFERÊNCIAS
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Estudos de Sexualidade 3

UM PANORAMA SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O CONSUMO DE PORNOGAFIA E


OS SEUS POSSÍVEIS IMPACTOS CAUSADOS À SEXUALIDADE DO INDIVÍDUO

Thais Desiderá Raposo

359

RESUMO
Segundo Popovic (2011), a palavra pornografia foi usada pela primeira vez em sua origem para
descrever a vida, costumes, hábitos e maneiras de se portar das mulheres que tinham relações
sexuais por dinheiro e seus clientes (apud BAUMEL et al., 2020). Para Baumel et al., (2020),
material sexualmente explícito é a definição mais cabível para o termo. Enxergamos hoje, a
pornográfica como uma categoria de classificação da sexualidade. (BATAILLE 1981, apud
LEITE JR., 2006). Temos como propósito deste trabalho entender se podemos afirmar que há
influência do consumo de conteúdo pornográfico no desenvolvimento sexual dos indivíduos,
traçando um panorama sobre esta relação. Para isso, será apresentada uma revisão narrativa, a
partir da qual entende-se que precisamos de mais estudos com embasamento científico e
pesquisas a respeito deste amplo campo dentro da sexualidade, pois ainda hoje temos opiniões
adversas e respostas pouco concretas. Apesar disso, pode-se dizer que há, possivelmente,
diversos prejuízos, para profissionais do ramo e audiência, na forma como a pornografia padrão
é apresentada, surgindo como possibilidades novas formas de explorar esta área.
Palavras-chave: pornografia, impactos, comportamento.

ABSTRACT
According to Popovic (2011), the word pornography was used for the first time in its origin to
describe the life, customs, habits and behaviors of women who had sex for Money, and their
clients (apud BAUMEL et al., 2020) For Baumel et al. (2020), sexually explicit material is the
most appropriate definition for the term. Today, we see pornography as a category for
classifying sexuality. (BATAILLE 1981, apud LEITE JR., 2006). The purpose of this work is
to understand if we can affirm that there is an influence of the consumption of pornographic
content in the sexual development of individuals, tracing a panorama about this relationship.
It is understood that we need more studies with a scientific basis and research on this broad
field within sexuality, because even today we have adverse opinions and little concrete
answers. Despite this, it can be said that there are possibly several losses, for professionals
branch and audience, in the way standard pornography is presented, emerging as possibilities
ways to explore this area.
Keywords: pornography, impacts, behavior.

1. INTRODUÇÃO
Pornografia é definida pelo dicionário Michaelis nos dias de hoje como: (1) “Qualquer
coisa (arte, literatura etc.) que vise explorar o sexo de maneira vulgar e obscena; (2) Tratado
acerca da prostituição; (3) Coleção de pinturas ou gravuras obscenas; (4) Caráter obsceno de
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

uma publicação; (5) “Atentado ou violação ao pudor, ao recato; devassidão, imoralidade,


libertinagem” (Michaelis. Moderno dicionário da língua portuguesa, 1998). Vemos então que
há, ainda hoje, uma visão possivelmente problemática sobre o conceito de pornografia, uma
vez que em sua definição consta por exemplo, imoralidade e violação ao pudor. Em nossa
cultura costumamos diferenciar o bom/saudável, do que é visto como anormal/impróprio.
Segundo Popovic (2011), a palavra pornografia vem do grego pornógrafos, e foi usada
pela primeira vez em sua origem para descrever a vida, costumes, hábitos e maneiras de se
portar das mulheres que tinham relações sexuais por dinheiro e seus clientes (apud BAUMEL
360
et al., 2020). Porém, segundo Baumel et al., (2020), material sexualmente explícito é a
definição mais cabível para o termo. Enxergamos hoje, a pornográfica como uma categoria de
classificação da sexualidade. (BATAILLE 1981, apud LEITE JR., 2006).
Segundo Foucault 1998 (apud LEITE JR., 2006), a chamada “revolução sexual” inicia-
se com o surgimento de uma indústria de “representação do obsceno e sua gradual legalização”
no Ocidente. Entende-se como obsceno o que estava fora de cena, ou seja, colocar o que estava
no espaço privado para o público.
A partir da legalização do pornô passa-se a notar então uma padronização da expressão
da sexualidade. BATAILLE 1981, apud LEITE JR., 2006) afirma que a característica
fundamental do erotismo é justamente ser transgressivo. Erotismo como a própria transgressão,
ou seja, questionar os pressupostos de humanidade do próprio ser. Ainda segundo o autor, é
fundamental para o ser humano que ao criar o universo do erotismo, ele seja baseado em
normas (regras). Porque este campo está justamente ligado a esse transgredir as normas, ou
seja, fazer aquilo que não se pode fazer.
Surge no século XIX na Europa o termo pornografia. Tendo como objetivo mostrar
imagens de nudez e práticas sexuais que tenham como objetivo a excitação do seu público
consumidor, criando assim um mercado em torno disso. Sejam elas imagéticas ou literárias.
Ou seja, nesse século é que a pornografia torna-se um “negócio” em si, lucrativo e visando o
prazer do consumidor. Antes suas funções eram apenas, por exemplo, crítica à religião ou
outras instâncias sociais. A ciência passa então a olhar o sexo como também fonte importante
de prazer dos seres humanos (LEITE JR., 2006).
Nos dias de hoje, é evidente a presença e aumento do consumo de pornografia. Isso se
torna possível com o auxílio da internet, através dos avanços na tecnologia. Estes conteúdos
hoje são muito mais acessíveis, por meio de computadores, tablets ou smartphones (Grov,
Gillespie, Royce & Lever, 2011; Popovic, 2011 apud Baumel et al., 2020). Além disso, há uma
variedade muito maior de conteúdo para ser acessado.
Segundo o SimilarWeb, consultado no dia 10 de junho de 2020, dentre os dez websites
mais acessados no mundo neste dia, três são sobre conteúdos de pornografia, sendo eles
Xvideos (8º lugar), Pornhub (9º lugar) e Xnxx (10º lugar). O primeiro e o terceiro são acessados
principalmente por americanos, brasileiros e japoneses, nesta ordem. Enquanto o segundo, tem
Estados Unidos, Japão e Alemanha com os maiores números de usuários. A mesma consulta
foi feita no dia 29 de outubro de 2020 e os resultados foram: Xvideos (8º lugar), Pornhub (10º
lugar) e Xnxx (11º lugar).
Acredita-se, a partir da análise do comportamento, que cada indivíduo possui sua
sexualidade não só baseada na fisiologia, mas também através de seu histórico de vida. Ou
seja, construída a partir do contexto social, econômico, histórico e cultural daquele indivíduo.
Para isso então, precisaremos falar brevemente sobre os três níveis de seleção descritos por
Skinner (1999).
Segundo o autor, os nossos comportamentos são produtos de três tipos de seleção,
sendo elas: filogenética, ontogenética e cultural. A primeira entende-se, como um efeito da
seleção natural sobre os organismos, e trata do que é comum a aqueles membros da mesma
Estudos de Sexualidade 3

espécie, por exemplo, a partir de sua genética e parte biológica. Já a seleção ontogenética
compreende como o repertório comportamental de cada pessoa se molda a partir de suas
experiências de aprendizagem ao longo da vida (o chamado comportamento operante, no viés
da Análise do Comportamento). Enquanto a seleção cultural, entende como o indivíduo é
influenciado pelo ambiente social e cultural em que vive (Skinner, 1999).
Nossos valores estão de alguma forma relacionados a maneira pela qual expressamos
nossa sexualidade. (Vieira ÉD, Lima TRZ, Amaral GA, 2016). Ainda segundo os mesmos
autores anteriores, a construção social vivenciada por determinado sujeito possibilita uma visão
mais ampla dos determinantes históricos e coletivos que determinam obstáculos para a vivência 361

da sexualidade. A partir disso, entende-se que dependendo de como foi essa vivência, um
indivíduo vai avaliar certa manifestação como pornográfica ou não, e também sua percepção
dos impactos do consumo desta em sua vivência sexual. Que acaba por se relacionar aos dois
níveis de seleção de comportamento: ontogenético e cultural.
Ao falar dos possíveis efeitos causados pela pornografia, algumas pesquisas sugerem
que eles são em sua maioria negativos. Há, por exemplo, uma associação entre o consumo
desta e atitudes de apoio à violência contra a mulher, atitudes agressivas, objetificação do corpo
feminino e até maior aceitação ao estupro (BONOMI et al., 2014).
Além disso, segundo PYLE & BRIDGES et al., (2012), outra possível consequência é
a redução da satisfação sexual dos sujeitos com os seus possíveis relacionamentos (apud
BAUMEL et al., 2020), ao serem comparados com o conteúdo fictício assistido. O conteúdo
pornográfico pode, muitas vezes, ser distante das possibilidades reais da vida sexual. Ainda
segundo os autores, o uso excessivo pode ser associado à dependência.
Há também aqueles que levantam argumentos positivos em relação ao consumo de
pornografia, como por exemplo, o uso dela como forma de ampliar o repertório sexual dos
sujeitos, potencializando assim, segundo eles, uma maior satisfação sexuais em alguns
contextos (BAUMEL et al., 2020).

1.1 Análise do Comportamento


Para explicar como isso ocorre precisamos falar sobre Análise do Comportamento e do
processo de aprendizagem para Skinner (1953), que envolve os comportamentos de
modelagem e modelação. Ambos estão relacionados ao aprendizado de novos
comportamentos. Na modelagem o processo do condicionamento operante (pode-se dizer que
comportamentos operantes são emitidos pelo organismo e eventos ambientais anteriores à
resposta podem controlar este comportamento) é aplicado diretamente nas respostas emitidas
por ele, enquanto na modelação, o sujeito aprende ao observar o outro se comportar de
determinada maneira (Skinner, 1953).
O comportamento operante se refere ao processo em que, uma resposta do organismo
é modelada através de um reforço diferencial e aproximações sucessivas a este reforço
mencionado. Ou seja, é quando uma resposta consequência algo que modifica a probabilidade
de aquilo ocorrer novamente. Caso essa consequência seja reforçadora suficientemente esta
probabilidade aumenta, caso seja punitiva, diminuem essas chances. É chamado de
Comportamento Operante aquele em que tem como consequência um estímulo que afete sua
frequência (aumentando ou diminuindo).
Levando em conta que a construção social e cultural é um determinante fundamental
para o indivíduo, como dito anteriormente, aprendemos a partir desses contatos. Por exemplo,
uma criança aprende a se vestir ao sair de casa após ver seus familiares fazerem o mesmo
repetidas vezes, ou seja, por modelação - contato com o modelo. Dessa forma, podemos dizer
que ao assistir um conteúdo pornográfico, o indivíduo passa a aprender a se comportar
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

sexualmente também através dessa modelação, sendo esse saudável ou não, como mencionado
anteriormente.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Traçar um panorama sobre a relação entre o consumo de pornografia e os possíveis impactos
causados à vivência da sexualidade de quem a assiste.
362
3. METODOLOGIA
Utilizaremos a revisão narrativa, a qual tem sido apontada como uma ferramenta muito
importante no campo da saúde. Essa importância ocorre, pois, organiza as pesquisas
disponíveis sobre determinada temática e direciona a prática fundamentando-se em
conhecimento científico. Apesar disso não é necessário, neste formato, esgotar as fontes de
pesquisa. Desta forma, torna-se possível uma compreensão mais abrangente de um fenômeno
específico, como por exemplo, neste caso, compreender os possíveis impactos na vivência da
sexualidade do indivíduo que consome pornografia.
Inicialmente, para atingir o objetivo do presente trabalho, foi realizada uma pesquisa
bibliográfica exploratória com o objetivo de afinar as variedades dos termos de busca atrelado
aos objetivos desta investigação. A revisão integrativa, feita a partir da pesquisa bibliográfica,
contemplou artigos até fevereiro de 2020. Incluindo portais como SciELO, BVS.
A busca foi feita primeiramente no site da SciELO, utilizando os termos “pornografia” e
“impactos”. Para que os dois termos fossem contemplados na busca, foi inserido a palavra
“AND” entre eles. Nenhum filtro foi adicionado e foi encontrado um total de quatro artigos.
A mesma pesquisa foi feita no Portal BVS, utilizando os termos da mesma forma e sem
filtro. Nesta busca foi encontrado um total de 25 artigos.
Com a decisão de expandir as buscas, nos mesmos portais foram buscados artigos através
dos termos “pornografia” AND “comportamento”. Na SciELO o resultado foi de cinco artigos,
enquanto na BVS foram encontrados 1.034 artigos, no qual a maioria deles tinham a temática
muito distinta da qual pretende-se investigar.
Foi adicionado nos dois portais também os termos “pornografia” atrelado a “análise”. No
site da SciELO nenhum resultado foi encontrado, enquanto na BVS, 220. Posteriormente a
busca por "pornografia" AND "análise do comportamento", que não gerou nenhum resultado
em ambos portais.
Sequencialmente "pornografia" AND "influência" AND "comportamento", encontrando
um total de 1 artigo na SciELO e 5 no BVS. Para "pornografia" AND "impacto" AND
"comportamento" na SciELO não foi obtido nenhum resultado, enquanto na BVS 14. Por
último, a busca foi por "pornografia" AND "definição". Emergiu 1 resultado no SciELO e 3
no BVS.
Sendo assim, após todas as buscas, o número de trabalhos encontrados foi
consideravelmente alto. Devido a este alto volume, a primeira análise foi realizada a partir de
suas palavras-chave, título e resumo, para que então fossem selecionados. Chegando ao total
de 15 artigos que cumpriram os critérios de inclusão. Estes critérios de inclusão foram feitos a
partir de: (I) idiomas de publicação, sendo selecionados apenas aqueles em inglês ou português;
(II) data de publicação, selecionados entre janeiro de 2000 e fevereiro de 2020; (III) apenas
trabalhos que se relacionassem a pornografia e vivência da sexualidade; (IV) veículo de
publicação, selecionados aqueles nos quais os pesquisadores tiveram acesso a todo artigo.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Estudos de Sexualidade 3

Ao entender que a prática de consumir pornografia passa a ocorrer cada vez com mais
frequência na vida dos indivíduos, surge a necessidade de questionar possíveis consequências
a esse consumo. Apesar do número crescente de consumidores, ainda é difícil buscar dados
científicos que respondam a essa questão. É possível isso ocorra pois, dificilmente
conseguiríamos o controle necessário dos dados e informações dos possíveis participantes das
pesquisas, além de toda questão ética envolvida.
Segundo Leite JR (2006), um aspecto importante a ser considerado em relação a
questão corporal na atualidade. Ao nos depararmos com revistas, filmes, propagandas, entre
outros, o que nos é apresentado são os “corpos que estão na moda (ou não)”. Observamos 363

padrões a serem seguidos e ditos como “correto”, “belo”, reforçando a cobrança em relação a
este tipo de padrão corporal. O mesmo ocorre na pornografia mainstream, sendo esta a mais
comum. Além disso, nota-se, nesta classificação, a inferiorização da mulher em detrimento do
homem. Desde roupas a serem usadas nestes filmes, por exemplo, até a agressividade
demonstrada em relação ao sexo feminino também no âmbito sexual. Um exemplo é o filme
Garganta Profunda de 1972, dirigido por Gerard Damiano.
Pátaro (2015), afirma que na indústria mainstream de pornografia nos dias de hoje
possui uma espécie de “Oscar”, no qual leva os atores, atrizes, diretores e diretoras a uma
grande noite de gala com premiações nos Estados Unidos, Las Vegas, chamado AVN Awards.
Segundo a autora, existem 142 categorias, sendo 37 voltadas a premiação de performance ou
corpo feminino. Há categorias como “melhores seios grandes e melhor bumbum grande”.
Outra é a premiação para o "corpo preferido", sendo normalmente premiados corpos femininos,
enquanto para os homens não há, por exemplo, categoria de “melhor peitoral ou melhor pênis”,
o que premia os homens, segundo Pátaro, são mais relacionadas a suas performances do que
aos corpos em si.
“Além disso, não há uma categoria para premiar o melhor pornô gay, ou sexo entre
homens, nem tampouco, uma categoria sobre pornô lésbico, mas sim categoria girl-on-girl
(garota-com-garota), que vai dar um significado diferente às cenas, não será um olhar
homossexual que deseja, mas sim um olhar heterossexual de fetiche e fantasia” (PÁTARO, R.
C., 2015, p. 113). Como há também categorias por etnias, por exemplo “asiáticas”, “latinas”,
“pretas”, entre outras, mas não há uma categoria para mulheres “brancas”, muito possivelmente
pois as mesmas estão na maioria das vezes entre as concorrentes para “melhor atriz”, podendo
presumir esse padrão apresentados nesta classificação de pornô, onde é considerado como
norma pessoas brancas, dessa forma, novamente reforçando o padrão problemático
apresentado anteriormente.
Anos após o lançamento do filme Garganta Profunda e outros diversos, também dentro
da classificação pornô, a atriz relatou ter sofrido abusos não só durante as gravações, mas
também por seu marido. Segundo Linda Lovelance, a atriz de Garganta Profunda, o mesmo a
teria obrigado a participar da gravação do filme. Com essas declarações, Lovelace passou a se
colocar frente a indústria pornô e participou de inúmeros debates políticos nos Estados Unidos
a respeito do assunto. A mesma então, se tornou o rosto que simbolizava o movimento
feminista antipornô, além de grande porta voz (PÁTARO, R. C., 2015).
Segundo Leite JR. (2006), temos, por exemplo, as seguintes classificações:
“Sadomasoquismo: práticas sexuais que envolvem humilhação e/ou dor física entre os
parceiros” e o “Fetichismo: sexo envolvendo a erotização e adoração de partes do corpo, roupas
ou objetos” (LEITE JR, 2006, p. 10). A partir desta definição e do que foi apresentado
anteriormente a respeito do que envolve o processo de aprendizagem, evidencia-se a relação
do consumo de pornografia com o possível aprendizado que este conteúdo irá gerar.
A partir dos movimentos mencionados, surgem novas classificações do que
entendemos como pornografia, com a proposta de repolitizar este campo, visando incluir novas
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

identificações de gênero, gordos, inclusões de forma geral, e eliminando misoginia e


machismo. “Refletir sobre as performances e expressões de gênero são também formas de
buscar saídas para problemas como esse que são aparentemente intransponíveis” (PÁTARO,
R.C., 2015, p. 119).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que precisamos de mais estudos com embasamento científico e pesquisas a
respeito deste amplo campo dentro da sexualidade, pois ainda hoje temos opiniões adversas e
364
respostas pouco concretas. Apesar disso, entende-se que há, possivelmente, diversos prejuízos
para profissionais do ramo e audiência, na forma como a pornografia padrão é apresentada,
surgindo como possibilidades novas formas de explorar esta área.
Ao ignoramos a existências de algumas questões sociais como objetos de estudo, estamos
abrindo espaço para diversas novas outras problemáticas. Não permitir que estes fenômenos
sejam foco de estudos não elimina a temática complexa, apenas deixamos de compreendê-la.

6. REFERÊNCIAS
BONOMI F., MILITO R., NATARAJAN P., ZHU J. (2014) Fog Computing: A Platform for Internet of Things
and Analytics. In: Bessis N., Dobre C. (eds) Big Data and Internet of Things: A Roadmap for Smart
Environments. Studies in Computational Intelligence, vol 546. Springer, Cham.
https://doi.org/10.1007/978-3-319-05029-4_7.
CATANIA, A. C. (1999). Aprendizagem: comportamento, linguagem e cognição. Deisy das Graças de Souza.
Porto Alegre: ArtMed.
BAUMEL, Cynthia Perovano Camargo et al. Consumo de Pornografia e Relacionamento Amoroso: uma Revisão
Sistemática do Período 2006-2015. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., Belo Horizonte, v. 13, n. 1, pp. 1-
19, jan. 2020. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-
82202020000100004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 10 mai 2020.
http://dx.doi.org/10.36298/gerais2020130103.
LEITE JR, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia “bizarra” como entretenimento. São
Paulo: Ed. Annablume, 2006.
PÁTARO, R. C., “Os homens atuam e as mulheres aparecem. Marcos pornográficos e pornografia
mainstream.” Disponível em https://revistas.ufpr.br/sclplr/article/view/64757. Acesso em 03 ago 2020.
SKINNER, B. F. (1999). Can psychology be a science of mind? Cumulative Record – Definitive Edition. Acton,
Mass.: Copley Publishing Group. Publicado originalmente em 1990, na American Psychologist, 45
(11): 1206-1210. Tradução disponível em
http://www.itcrcampinas.com.br/pdf/skinner/A_Psicologia_pode_ser_uma_ciencia_da_mente.pdf
SKINNER, B. F. Ciência e Comportamento Humano. Brasília: Ed. UnB/ FUNBEC, (1953), 1970.
SKINNER, B. F. Sobre o behaviorismo. Maria da Penha Villalobos. São Paulo, Ed. Cultrix.
SOUZA, Marcela Tavares de; SILVA, Michelly Dias da; CARVALHO, Rachel de. Revisão integrativa: o que
é e como fazer. Einstein (São Paulo), São Paulo, v. 8, n. 1, pp. 102-106, março 2010.
VIEIRA Éd, LIMA TRZ, AMARAL Ga. As relações sociais de gênero como obstáculos para a vivência da
sexualidade feminina. Perspectivas em Psicologia, 2016; 20(2): 65-85.
Estudos de Sexualidade 3

MULHER GORDA E SEXUALIDADE

Thaís Salomão Yacote

365

RESUMO
O presente estudo teve como objetivo realizar uma revisão bibliográfica sobre como a mulher
gorda vivencia sua sexualidade. O estigma da obesidade está presente nos discursos da
sociedade e na produção de conteúdo de entretenimento, o preconceito que, principalmente
mulheres gordas sofrem vai além de relações pessoais, sexuais e profissionais, é um corpo
julgado dentro do consultório médico, em restaurantes, na praia, na academia, em lojas etc. É
um corpo que não tem lugar dentro da sociedade, que não consegue, muitas vezes, realizar
atividades básicas e diárias. Conclui-se que há uma necessidade de psicoeducação social e de
políticas públicas que assegurem o direito do corpo gordo de conviver em sociedade, além de
práticas, publicações e conteúdo midiático que reafirme a mulher gorda que seu corpo tem
direito ao cuidado e ao prazer.

Palavras-chave: mulheres gordas, sexualidade, imagem corporal.

ABSTRACT
The present study aimed to make a literature review regarding how fat women live sexuality.
The obesity stigma can be found in social discourses and entertainment production. The
prejudice that especially fat women endure goes beyond personal, sexual and professional
relationships, it is a body that is judged inside the doctor’s office, in restaurants, on the beach,
in the gym, in stores etc. It is a body that has no place inside society, that many times cannot
even run ordinary and daily tasks. In conclusion there is a need for social psychoeducation and
public politics that assure the fat body’s right to live in society, aside from practices,
publications and media content that states to fat women that their bodies are entitled to care
and pleasure.
Keywords: Fat women, sexuality, body image.

1. INTRODUÇÃO
A maneira como vivenciamos nossa sexualidade é um reflexo da nossa história de vida,
o meio em que crescemos e vivemos e a maneira como experienciamos as interações com
aquilo que nos cerca. É através do corpo que as pessoas se apresentam e manifestam no mundo,
portanto estar fora do padrão normativo de beleza significa ser inferior e perder acesso ao que
está disponível na sociedade (JIMENEZ; ABONISIO, 2018).
Dentro deste contexto, ter um corpo gordo é particularmente repudiável. A pessoa gorda
é simultaneamente colocada “fora dos padrões de beleza, de saúde e de moralidade. Assim, o
indivíduo gordo é, ao mesmo tempo, feio, doente, desleixado e sem amor-próprio” (JIMENEZ;
ABONISIO, 2018, p. 2).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Os corpos gordos, apesar de serem identificados culturalmente como desviantes,


doentes e não aceitáveis, são público-alvo, construídos e desconstruídos por uma indústria
interessada em lucrar com esses corpos e com o medo da sociedade conquistar corpos maiores.
Pessoas gordas sofrem do estigma social associado a ideia de que seus corpos são a
representação de uma falha moral e social. É comum a associação da gordura com atributos
como a preguiça, o desleixo, o descontrole e a incapacidade, repousando sobre essa
corporalidade a discriminação e o preconceito em muitos contextos ocidentais. (JIMENEZ;
ABONISIO, 2018; FIGUEROA, 2014).
366 Pessoas gordas são oficialmente impedidas de adotar crianças na China. Na Grã-Bretanha,
clínicas de saúde podem recusar-se a realizar fertilizações in vitro para mulheres gordas (BBC
News, 2006). Nos Estados Unidos, o departamento de saúde pública adverte que parentes devem
prevenir a obesidade infantil. Eles até encorajam a amamentação, com seus muitos benefícios,
como para acabar com isto. Garotas de cinco anos tem medo de ganhar peso (Davison e Birch,
2001; Irvine, 2001; Richardson, 1971). Com dez anos, crianças gordas são escolhidas por último
como amigas por seus pares (Latner e Stunkard, 2003)” (WANN, 2009, p. 25, tradução da autora).
(FIGUEIROA, 2014, p. 133)

Antes de iniciar o debate sobre o preconceito sofrido pelo corpo gordo, é preciso
diferenciar gordofobia e pressão estética. Essa diferenciação, segundo Rangel (2018), diz
respeito
ao entendimento que a pressão estética é sofrida por todos que convivem em sociedade, tratando-
se da pressão sofrida para que se encaixe no padrão de beleza determinado pelos aspectos socio-
político-culturais de cada sociedade. Já a gordofobia diz respeito à opressão específica sofrida
pelas pessoas gordas, em que há exclusão de espaços públicos por conta da acessibilidade limitada
(como não caber em assentos de ônibus ou avião e a falta de roupas) e a patologização sofrida
pelas pessoas gordas além da condenação moral de seus corpos e estilos de vida. Conceitos como
pressão estética e gordofobia podem ser entendidos como categorias nativa, elaboradas pelo
próprio grupo (RANGEL, 2018, p. 60).

A gordofobia, vai muito além do preconceito social, já que é uma questão de perda de
direitos. A pessoa gorda perde direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988, como
podemos ver em seu artigo 5º, sobre o princípio constitucional de igualdade, perante a lei:
“Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988).

O corpo gordo, por ser dissidente, torna-se público e todos podem opinar sobre ele, ou
melhor, sobre como ele deve diminuir. Não é só um problema de ter a roupa para a pessoa
gorda, mas de como esses corpos são tratados pela sociedade, justificados por um discurso
midiático-científico naturalizado pela preocupação com a saúde. O desconhecimento acerca
dos direitos da pessoa gorda reforça o preconceito e dificuldades que essas pessoas sofrem
diariamente, elas têm direito a assentos e auxílio especial, porém o constrangimento público e
a falta de conhecimento fazem com que esses direitos deixem de ser exigidos e exercidos
(JIMENEZ; ABONISIO, 2018).
A gordofobia tem especificidades que a diferenciam da pressão estética generalizada sobre as
mulheres: pessoas gordas sofrem com o impedimento da acessibilidade (em ônibus, aviões,
restaurantes, cinemas, etc.), sofrem para encontrar roupas de seu tamanho nas lojas, sofrem de
olhares de valor de juízo quando se alimentam publicamente, dentre diversas outras violências.
Sendo assim, é constante no cotidiano das pessoas gordas a não aceitação e encontram
frequentemente dificuldade de ocupação e de acesso a espaços públicos (RANGEL, 2018, p. 52).

A teoria da objetificação alega que devido a sexualização consistente e persistente do


corpo feminino, as mulheres aprendem desde muito cedo a enxergarem seus próprios corpos
Estudos de Sexualidade 3

da perspectiva de outras pessoas, pessoas essas que estão avaliando suas aparências como
indicadores de seu valor como ser humano. Essa maneira de lidar com corpos femininos como
algo a ser consumido pode fazer com que monitorar corpos se torno um hábito, e isso tem um
impacto na forma como as mulheres experienciam e expressam sua sexualidade (SATINSKY
et al., 2012).
O corpo normativo e os padrões corporais estão diretamente ligados a racionalização
da conduta alimentar e controle da forma física. Assim, a mulher gorda é julgada por romper
com aquilo que é qualificado como belo no mundo contemporâneo e ocidental, tendo que lutar
incessantemente pelo seu lugar no mundo (VIGARELLO, 2012). 367

Para lutar contra a gordofobia, iniciaram-se movimentos chamados ativismo gordo, que
segundo Rangel (2018),
os/as ativistas gordos/as buscam desafiar as ideias negativas e estigmatizadoras voltadas às
pessoas como a associação de gordura com feiura e doença, bem como melhorar a acessibilidade
a espaços físicos para pessoas gordas buscando melhorar a qualidade de vida dessas pessoas,
acabar com o preconceito e incentivar a convivência com as diferenças das pessoas (RANGEL,
2018, p. 48).

Há uma diferença entre movimentos de aceitação corporal e do ativismo gordo, como explica
Rangel (2018),
o movimento body positivity, sendo usado o termo em inglês no Brasil (mais conhecido como
body positive, é de influência estadunidense e diz respeito à aceitação das pessoas em relação aos
seus corpos, se referindo principalmente à melhora de autoestima das pessoas de todas as formas,
incluindo todos os tipos de corpos, principalmente aqueles fora do padrão. Diferencia-se do
ativismo gordo na medida em que o ativismo gordo é um movimento pelos direitos específicos
das pessoas gordas como acessibilidade, emprego, saúde etc. enquanto o movimento body
positivity envolve principalmente questões subjetivas como o amor-próprio e a autoestima
elevada (RANGEL, 2018, p. 123).

O movimento de aceitação corporal ressalta que a psicologia não é apenas o estudo de


patologias, fraquezas e danos, mas também é o estudo de traços positivos de personalidades
que contribuem e mantem a saúde mental das pessoas. A apreciação corporal engloba diversos
componentes além da satisfação corporal como: respeito e proteção ao corpo, oferecer opiniões
favoráveis sobre o corpo, aceitar o corpo independentemente do tamanho ou forma e a rejeição
explícita de padrões de corpos irreais (SATINSKY et al., 2012).
Dentro do contexto de saúde, a autoridade médica, muitas vezes, negligência a pessoa
gorda por produzir diagnósticos superficiais, que erroneamente, levam a ideia de que para um
corpo ser saudável, ele deve ser magro, dando ao paciente gordo como primeira alternativa de
tratamento o emagrecimento (RANGEL, 2018).
Além da normatização e patologização dos corpos gordos permitida também pelo discurso
médico dominante, há a “gordofobia médica”, entendida pelas/os ativistas gordas/os como um
conjunto de práticas médicas que envolvem emagrecer a qualquer custo, independentemente de
uma perspectiva mais ampla de saúde, envolvendo constrangimento do/a paciente gordo/a e
prescrição compulsória de dietas e/ou da cirurgia bariátrica como meios de emagrecimento
(RANGEL, 2018, p. 80).

A pessoa gorda evita procurar auxílio médico pela experiência recorrente de ser
diagnosticada como obesa e como tratamento ser oferecido o emagrecimento, não importando
quais dores ou sintomas levaram essa pessoa a procurar ajuda. Há um número significativo de
pessoas gordas que possuem doenças fatais e não são diagnosticadas a tempo dentro do sistema
de saúde (WARKEN, 2017; JIMENEZ; ABONISIO, 2018). Entretanto, essa pessoa, por ser
gorda, ainda será culpabilizada e responsabilizada pelo que aconteceu, uma vez que que
vivemos em uma cultura que julga o corpo gordo como doente (JIMENEZ; ABONISIO, 2018).
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
A inquietude com a padronização de magreza dos corpos, sob a justificativa da saúde, resulta
quase sempre em intolerância, culpabilidade e gordofobia. Sendo assim, corpos gordos não estão
aptos a viverem nessa sociedade que prega magreza como condição de felicidade, beleza e saúde
(JIMENEZ; ABONISIO, 2018, p. 7).

Não há espaço social para ser gordo, o mundo é planejado para pessoas magras, a pessoa
gorda perde acesso a serviços básicos, como fazer compras, utilizar cadeiras, andar de
transporte público. A mídia reforça ainda de que ser gordo é ser rejeitado, engraçado,
368
preguiçoso e desajeitado (JIMENEZ; ABONISIO, 2018). Isso reforça a ideia de que o
protagonismo gordo não existe, que seu peso irá ditar a maneira como a pessoa vivenciará suas
relações sociais, pessoais, amorosas e sexuais.
Assim, passa-se a questionar o olhar que as mulheres gordas têm sobre si mesmas, o
quanto elas acreditam que tem direito ao cuidado e ao prazer, a qualidade de vida, a cuidar da
própria saúde. Em uma sociedade onde ser gordo é condenado, tentar existir e viver em um
corpo gorda torna-se uma luta. Aceitar que o seu corpo merece respeito, uma ousadia.

2. OBJETIVOS
O objetivo deste trabalho é realizar uma revisão bibliográfica sobre como a mulher
gorda vivencia sua sexualidade. Tal revisão se faz necessário devido a escassez de artigos que
abordem o tema, especialmente quando se fala em sexualidade. Portanto, selecionou-se apenas
artigos em que o tema sexualidade era explícito em seus objetivos.

3. METODOLOGIA
Foi realizado um levantamento bibliográfico nas bases de dados Sage Publications,
Periódicos CAPES, Portal BVS e Scielo de artigos que contribuíssem nos estudos de como
mulheres gordas vivenciam sua sexualidade e compreendem sua imagem corporal. Os temas e
as palavras-chave foram descritos na Tabela 1.
Tabela 1. Descrição da busca bibliográfica
Tema Palavras-chave buscadas
Mulheres gordas Fat women
Sexualidade Sexuality
Imagem corporal Body Image

A pesquisa foi realizada nas bases de dados SAGE Publications, Periódicos CAPES,
Portal BVS e Scielo buscando artigos que datassem até o ano 2010 e nas línguas português,
inglês e espanhol. A pesquisa foi realizada entre os meses de julho e setembro de 2020. Foram
excluídos da busca, artigos que não abordassem os temas descritos anteriormente (mulheres
gordas, sexualidade, imagem corporal), e que abordassem obesidade como doença, transtornos
alimentares e outras doenças relacionados ou não a obesidade pela comunidade médica.
Também foram excluídos artigos sem abstract.
Na base de dados SAGE Publications foram encontrados 22 artigos, Scielo nenhum
artigo, Periódicos CAPES 44 artigos e Portal BVS sete artigos. Após a leitura dos abstracts, e
exclusão dos estudos repetidos em mais de uma base de dados, foram selecionados 20 artigos
para leitura completa dos textos. Destes foram incluídos nove artigos nesta revisão. Sendo, três
da base SAGE Publications, cinco dos Periódicos CAPES e um do Portal BVS.
A Tabela 2 traz a compilação dos nove artigos selecionados, apresentando seu título,
autores e ano, país, revista de publicação, objetivos, conclusões dos autores e bases de dados
Estudos de Sexualidade 3

onde foram encontrados. Dos nove estudos encontrados, cinco foram realizados nos Estados
Unidos, dois no Reino Unido, um na Polônia e um na Finlândia.
Tabela 2. Resultados

Título Autores País Revista Objetivos Conclusões Base de


dados
My ‘Fat Satinsky, Estados Culture, Avaliar se O valor pessoal e Port
Girl Dennis, Unidos Health e mulheres com social dado ao al
Complex’: Reece, Sexuality: corpos fora do tamanho dos corpos BV
369
a Sanders e An padrão está diretamente S
preliminary Bardzell Internation vivenciam atrelado com a
investigatio (2013) al Journal experiências em saúde sexual.
n of sexual for relação imagem Quando esse valor
health and Research, corporal, independe do
body image Interventio sexualidade e tamanho dos
in women n and Care saúde sexual corpos, conexões
of size diferentemente com a qualidade da
de mulheres saúde sexual não
com corpos são articuladas.
dentro do Entretanto, quando
padrão. a busca de
validação é externa
apresenta-se
dificuldade de
aceitação corporal o
que interfere na
vivência da
sexualidade dessas
mulheres.

“Feel in Hynnä e Finlândi Social Investigar Com afeto é SAGE


Your Kyrölä a Media + como os blogs possível apresentar
Body”: Fat (2019) Society More to Love, a positividade em
Activist PlusMimmi e relação ao corpo
Affects in Queer Fat gordo como um
Blogs Femme Guide espaço para sentir
to Life as contradições que
Fucking White Reino Sexualities Analisar os De acordo com os SAGE
failures: (2016) Unido discursos discursos médicos,
The future médicos sobre pessoas gordas não
of fat sex obesidade e fazem sexo com a
sexo para frequência nem da
discorrer como maneira correta
“sexo gordo” é para atingir os
construído objetivos
como um tipo desejados. O autor
de fracasso. frisa que não se
deve aceitar as
coisas como elas
estão, é necessário
estabelecer todas as
medidas do que é
sucesso e fracasso.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)
‘I just think Winch Reino Sexualities Discutir como O controle é SAGE
it’s dirty (2016) Unido ser gordo desenvolvido
and lazy’: significa ser a através de
Fat classe fracassada sistemas de redes
surveillanc do de conexões da
e and erotic neoliberalismo. política da
capital Aspiração de observação. A
classe, mídia delimita e
empreendedoris monitora as
370
mo e o mito da possibilidades de
competitividade re-
individual são individualização e
pivotais para a paixões de libido
política das mulheres.
econômica
neoliberal, ser
gordo é
difamado como
abjeto nas
plataformas
midiáticas.

The Fahs Estados Journal of Verificar como Pesquisadores de Periódico


dreaded (2015) Unidos gender mulheres imagem corporal, s CAPES
body: studies identificam o as vezes
disgust and que é um corpo desvalorizam as
the pavoroso ou qualidades afetivas,
production nojento e como emocionais e
of isso produz uma viscerais da
“appropriat feminilidade maneira como as
e” “apropriada”. mulheres pensam
femininity sobre os corpos de
outras e delas
próprias,
principalmente em
relação a corpos
que elas querem
evitar.
Narrating Yost e Estados Journal Explorar como A maioria das Periódico
Rural Chmielews Unidos of mulheres mulheres lésbicas s CAPES
Lesbian ki Lesbian lésbicas da área experienciam um
Lives: (2011) Studies rural sendo de coragem e
Body experenciam positividade em
Image and seus corpos e relação a como
Lesbian como as sentem seus
Community comunidades corpos, e ao mesmo
in Central lésbicas tempo expressam
Pennsylvan contribuem para descontentamento
ia construção de em relação a
sua imagem maneiro como seus
corporal. corpos se parecem.

Fat Shame Gailey Estados Fat Estudar o déficit A maior parte das Periódico
to Fat (2012) Unidos Studies presente entre participantes s CAPES
Pride: Fat experiencias de experenciaram
Women’s namoro de intensa vergonha
Sexual and mulheres gordas em relação a seus
Dating e histórias corpos e tinham
sexuais. vidas sexuais
Estudos de Sexualidade 3
Experience insatisfatórias até
s que elas
começaram a
incorporar o
orgulho gordo.
Fat Girl’s Kurowicka Polônia Fat Examinar narrativas A série faz uma Periódico
Wet e Studies alternativas de uma análise s CAPES
Dream: Girl Usiekniewi garota gorda, uma interseccional entre
Sexuality, cz garota com deficiência,
Fatness, (2019) deficiência e a obesidade e 371
and Mental identidade da gorda infância, focando
Disability através da em como essas
in My Mad sexualidade e identificações são
Fat Diary crescimento para transitórias e rejeita
mostrar as a noção de colocar
complexidades da esses aspectos
mulher gorda jovem como permanentes
como mostrado no na identidade da
seriado britânico My protagonista e
Mad Fat Diary. normaliza o
entendimento deles
como sendo
problemas.
Is Fat a Fikkan e Estados Sex Roles Realizar uma A revisão concluiu Periódico
Feminist Rothblum Unidos revisão de literatura que existem s CAPES
Issue? (2011) sobre as evidências
Exploring experiências das consistentes e
the mulheres na substanciais que
Gendered América do Norte mulheres sofrem
Nature of que sofrem com o desproporcionalme
Weight estigma associado nte devido ao
Bias ao peso corporal em estigma
diversas áreas relacionado ao
como: emprego, preconceito com o
educação, relações peso corporal em
amorosas, saúde, diversas áreas.
saúde mental e
retratos na mídia.

4. DISCUSSÃO
O objetivo dessa revisão de literatura foi realizar um levantamento de artigos e estudos
que discutissem como a mulher gorda vivencia sua sexualidade. Esse tema tem se tornado
relevante no que tange qualidade de vida dessas mulheres, tanto no aspecto social quanto
político, entretanto as publicações ainda são escassas. Em meio a uma sociedade gordofóbica,
em que o corpo gordo é visto e julgado como doente, sujo e errado, movimentos que visam
empoderar essas mulheres e ajudá-las a reconhecer que o corpo gordo também merece prazer
e cuidado são imprescindíveis.
Algumas limitações devem ser consideradas nessa revisão. A princípio as palavras-
chave escolhidas para realizar esse levantamento bibliográfico foram: mulher gorda,
sexualidade, corpo, nas bases de dados Sage Publications, Periódicos CAPES, Portal BVS e
Scielo. Entretanto, essa busca não trouxe os resultados esperado, aparecendo artigos sobre
emagrecimento, as consequências negativas da obesidade na saúde e as comorbidades
associadas a obesidade, portanto foi necessário redefini-las.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Foram utilizadas alternativas e inclusões como: gordura ou obesidade, imagem


corporal, tamanho corporal, mulheres grandes ou obesas, o que ainda trouxe automaticamente
a correção da palavra fatness (gordura do inglês) para fitness (corpo em forma, em uma
tradução livre do inglês). E ainda assim, após a aplicação os critérios de inclusão e exclusão, o
número de artigos restantes para leitura completa foi muito baixo.
Foram selecionados nove artigos que abordam temas sobre pressão estética, direito da
mulher gorda ao prazer, gordofobia, movimentos de aceitação corporal, vivência sexual do
corpo da mulher gorda.
372
O estudo realizado por Satinsky, Dennis, Reece, Sanders e Bardzell (2013) tinha como
objetivo avaliar se mulheres com corpos fora do padrão vivenciam experiências em relação
imagem corporal, sexualidade e saúde sexual diferentemente de mulheres com corpos dentro
do padrão. Foram entrevistadas quatro mulheres de diferentes contextos sociais.
Essa pesquisa mostrou que as experiências sociais negativas e o processo de auto
objetificação conduzem mulheres gordas e de tamanho não normativo a serem dessexualizadas,
o que gera implicações significativas para suas experiências sexuais. O movimento social de
aceitação do tamanho corporal conhecido como International Size Acceptance Association
criado em 2011 visa aumentar a consideração corporal e a aceitação do corpo como ele
realmente é, e não apenas na perda de peso. Esse processo permite que a mulher tenha uma
percepção diferente de sua aparência e uma reação diferente à atração que uma parceria sente
por ela e, assim, ter experiências sexuais mais saudáveis, completas e satisfatórias.
Nas entrevistas conduzidas na pesquisa de Satinsky et al., (2013), as quatro
participantes reconhecem a expectativa cultural para os corpos femininos e observaram
explicitamente que viviam em corpos não normativos. Duas das entrevistadas declararam que
adjetivos como gordinha, grande, pesada, fofa, curvilínea, fofa ou ossuda não descrevem como
elas se identificam e não sou compatível com os princípios de aceitação do tamanho; “Eu sou
gorda”, ambas afirmaram.
Todas as participantes viviam em corpos maiores e sabiam que estes não atendiam
aos padrões de beleza. Elas afirmaram que o que realmente tornava um indivíduo atraente ou
sexy não era sua aparência, mas sim sua atitude em relação a si mesmas. No entanto, ao aplicar
essas reivindicações a seus próprios corpos, as participantes diferiram. O que distinguia um par
do outro era a fonte de onde as participantes recebiam a validação de sua própria atratividade
sexual.
Aderir a esse movimento de aceitação do próprio corpo não é fácil e requer uma
reestruturação de tudo aquilo que foi vivenciado e ensinado para essa mulher durante sua
história de vida, como exemplo segue a fala de uma das participantes.
Eu fico tipo, “Woo hoo! Pessoas gordas comandam e poder do corpo gordo!” E posso dizer isso
até ficar com o rosto azul, mas... Eu ainda tenho - eu chamo isso de meu ‘Complexo de garota
gorda’- onde simplesmente eu, não importa o que seja, eu sou gorda e o resto do mundo me vê de
forma diferente, e eu sou alimentada com todas essas imagens e todas essas, mensagens dizendo
por que sou gorda, não valho nada...” (DeeDee, SATINSKY et al., 2013, p. 717).

As participantes inclusive relatam questionar quanto suas parcerias realmente a


amavam e se sentiam atraídas por elas. Com relação à própria saúde sexual e vida sexual, todas
as quatro mulheres foram explícitas sobre sentir desejo sexual. Quando questionadas sobre o
que pode tornar suas vidas sexuais melhores, todas responderam com alguma variação de
"fazer sexo com mais frequência".
Outro tópico abordado foi como elas se sentiam desconectadas de seu corpo sexual.
Ao discutir a masturbação, uma das participantes disse que usava vibradores em parte porque
não gostava de se tocar, pois isso a fazia se sentir negativamente sobre seu corpo. Ela afirmou
que enquanto se masturbava não olhava para baixo – “Eu olho para o teto e tento - é quase
Estudos de Sexualidade 3

como se eu estivesse tentando imaginar que eu era mais magra. Tipo, imaginando que meu
estômago era mais reto ou algo assim, o que parece bizarro, mas acho que é o que estou
tentando fazer” (DeeDee, SATINSKY et al., 2013).
Essas narrativas sobre suas experiências sexuais são os resultados de uma cultura
gordofóbica e estigmatizante de peso infiltrando-se nos reinos social e sexual da vida das
mulheres. Enquanto duas das participantes estavam igualmente imersas nessa mesma cultura,
sua resistência à objetificação sexual parece permitir que experimentem uma sexualidade
corporificada e centrada no prazer que historicamente escapou das demais.
No estudo de Satinsky et al., (2013) é discutido como a autoconfiança constituía o 373

principal componente da sensualidade. O estado da saúde sexual auxilia no reconhecimento de


que o próprio corpo merece prazer sexual, seja sozinha ou com parceiros e isso permite com
que essas mulheres se sentissem capazes de dizer "sim" ou "não" às experiências sexuais.
Por outro lado, baseando-se pelo relato de uma das participantes é percebido como
sentimentos corporais negativos podem infringir ao direito ao prazer, afetando a capacidade da
pessoa tocar o próprio corpo e se masturbar. A desconexão com o próprio corpo em momentos
em que o prazer deveria ser central destaca as implicações para a saúde sexual de mulheres
gordas que vivem em uma cultura de vergonha de gordura.
A dependência externa por aprovação e aceitação, faz com que essas mulheres
depositem sua confiança em terceiros para determinar seus sentimentos sobre sua sexualidade
e isso as mantém dependentes e tornam sua felicidade sexual e saúde externamente
contingentes. Essa ambivalência e dependência pode oferecer um espaço de intervenção para
melhorar as experiências sexuais das mulheres. Especificamente, encorajar a apreciação do
corpo pode melhorar a função sexual positiva (SATINSKY et al., 2012), bem como impactar
a assertividade sexual das mulheres em situações de parceria.
É notável que nenhum participante mencionou a perda de peso como forma de
melhorar sua vida sexual. Em vez disso, elas falaram da necessidade de se sentir melhor. Porém
os autores colocam que a análise realizada durante o estudo indica, que mesmo não estando
presente na literatura, há uma diferença significativa entre mulheres de tamanho que têm
experiências positivas de saúde sexual e aquelas que não tem. Relatam também como as
mensagens externas são percebidas ou internalizadas e podem ser reconstituídas
interpessoalmente. Isso pode oferecer um meio de interceder nos ciclos de feedback entre as
mensagens da mídia, as interações interpessoais e as expectativas dos indivíduos quanto ao seu
valor, o que pode ser especialmente importante para mulheres gordas (SATINSKY et al.,
2013).
Na pesquisa de Fahs (2015) fica claro o medo das mulheres de que seus corpos se
modifiquem e elas passem a fazer parte do grupo de pessoas rejeitadas da sociedade, e ignoram
as consequências afetivas, emocionais de como essas mulheres pensam sobre elas mesmas. O
medo de ter um corpo repulsivo mostra como esses processos estão ligados a racismo,
preconceito de classe, homofobia, machismo e gordofobia, dessa maneira, as mulheres se
sujeitam ao controle social de como seus corpos deveriam ser e isso reforça a ideia
culturalmente validada do que é um corpo apropriado e uma feminilidade apropriada.
O movimento de aceitação corporal tem um papel ativo nas redes sociais, Hynnä e
Kyrölä (2019) realizaram um estudo para investigar como os blogs More to Love, PlusMimmi
e Queer Fat Femme Guide to Life convidam seu público a se ver de maneira positiva e se sentir
confortável com seus corpos. Estudos têm criticado a positividade corporal por fazer com que
pareça uma simples questão de escolha, sem levar em consideração a questão emocional
envolvida nesse processo de aceitação.
Os blogs citados no artigo (HYNNÄ; KYRÖLÄ, 2019), não olham para a ideia de
“sentir-se no seu corpo” ou “viver dentro do seu próprio corpo” como uma escolha pessoal,
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

trata-se de criar e pressionar por espaço para que corpos não normativos, possam se mover,
sentir e existir sem as pressões e barreiras das expectativas de gênero heteronormativas e do
tamanho "normal".
Os posts mais comentados em MTL / PM e QFF abordam práticas de exercícios, moda
e sexo, discutindo não apenas seu potencial de empoderamento, mas também os sentimentos
de marginalização e alienação que sujeitos gordos enfrentam ao participar ou ocupar espaço
em relação a essas atividades. Em outras palavras, exercícios, moda e sexo são discutidos como
atividades orientadas para corpos magros.
374
Os exemplos discutem maneiras pelas quais os corpos gordos podem e fazem coisas
das quais muitas vezes foram excluídos, como dançar e desfrutar do sexo, embora essas
atividades não envolvam apenas sentimentos de orgulho, amor e prazer. Na verdade,
sentimentos de constrangimento, vergonha e insegurança são bem-vindos como formas de
sentir o corpo nessa jornada em direção a uma maior liberdade para habitar o corpo como ele
é (HYNNÄ; KYRÖLÄ, 2019).
Nesse estudo, as autoras Hynnä e Kyrölä (2019), apontam que a sexualidade do corpo
gordo também aparece como um ponto importante. O sexo coloca o sujeito gordo em um
espaço íntimo com outra pessoa e não dá ao corpo gordo outra opção senão aparecer como ele
mesmo diante do parceiro. A forte intensidade afetiva do sexo, no entanto, também tem o
potencial de fazer a pessoa esquecer de ver o corpo como um objeto, mas apenas de sentir seus
sentimentos e prazer. Em janeiro de 2011, no blog de Peppi e Mimmi um post abordou a
pressão e a vergonha que as pessoas gordas sentem em relação a seus corpos e quais
comportamentos têm para esconder-se de seus parceiros, experiências como desligar luzes ou
afastar parceiros em potencial para não permitir que ninguém os visse nus. Há uma forte
identificação dos seguidores em relação a lutar com a autoestima e sentir vergonha de seus
corpos.
O prazer sexual e o desejo tornam-se forças afetivas que não só têm o potencial de
reorganizar as formas como a pessoa habita seu corpo e se relaciona com os corpos de suas
parcerias, mas também como se relaciona com o mundo. Nesse sentido, sentir-se sexual
também passa a ser “sentir-se em seu corpo” - e através do corpo em relação aos outros
(HYNNÄ; KYRÖLÄ, 2019).
Hynnä e Kyrölä (2019), concluem que apesar de seus problemas e paradoxos,
positividade corporal online tem o potencial de reimaginar a corporeidade como complexa e
repleta de ansiedades e alegrias. Em vez de felicidade ou orgulho ininterrupto, ela pode
oferecer maneiras de "sentir-se no seu corpo", abrir espaços de conforto para o corpo se
esquecer de si mesmo e apenas sentir, e assim aumentar as conexões afetivas do corpo com
outros corpos mundo.
Outro tema abordado nos resultados desse levantamento bibliográfico foi como o
discurso médico aponta a pessoa gorda como um fracasso em sua vida sexual. White (2016)
aponta que a mídia se baseia em discursos médicos e coloca pessoas gordas numa posição
negativa relação a um modelo hegemônico de 'sucesso' sexual que assume certos padrões
heteronormativos de desejo sexual, função e reprodução.
De longe, a maior atenção na literatura médica sobre obesidade tem sido nas tentativas
de estabelecer ligações claras entre obesidade e várias comorbidades (câncer, diabetes tipo II,
doenças cardiovasculares), cujo resultado tem sido a patologização crescente de pessoas gordas
e uma intensificação da estigmatização na busca de 'curas' para o problema da obesidade. É
neste contexto que a pesquisa sobre os supostos efeitos do IMC elevado no comportamento
sexual, funcionamento sexual e reprodução / fertilidade humana tornou-se um subcampo
significativo e persistente da ciência da obesidade.
Estudos de Sexualidade 3

White (2016), analisou 25 artigos de revistas médicas publicadas entre 2004 e 2014 e
concluiu que a pesquisa relatada nesses estudos é inconclusiva e sujeita a inúmeras limitações
metodológicas e interpretativas, ela enfatiza a negligência relacionada principalmente a fatores
sociais. A gordofobia médica também aparece na pesquisa realizada, alguns dos artigos
revisados não reconhece a gordofobia que muitas mulheres e homens gordos experimentam
diretamente de profissionais de saúde que pode impedi-los de buscar aconselhamento de saúde
sexual.
Como Figueiroa (2014), ressalta o fato de que pessoas gordas ou muito gordas sempre
existiram. Como toda doença, a obesidade precisou ser construída através de uma rede de 375

atores, coisas e procedimentos que possibilitaram a medicalização destes corpos, que foram se
tornando dissonantes.
Por outro lado, um dos estudos citados na revisão de White (2016), é de Jeannine
Gailey (2012), que também apareceu como resultado do levantamento bibliográfico dessa
revisão, sobre as experiências sexuais e de namoro de mulheres gordas. Gailey (2012),
entrevistou 36 mulheres que tiveram algum envolvimento no movimento de aceitação de
corpos de tamanhos não normativos dos EUA e descobriu que sua confiança sexual e satisfação
aumentaram como resultado. A autora argumenta: "mulheres que aceitam seus corpos, ou estão
começando a, não apenas experimentam a liberdade da pressão para fazer dieta ou mudar seus
corpos, mas também a liberdade de serem sexuais" (GAILEY, 2012, p. 124).
No entanto, talvez o que é mais impressionante sobre o estudo de Gailey (2012) são
os relatos dados pelas mulheres de relacionamentos desrespeitosos ou abusivos, ridicularização
sexual, fetichização, desumanização, falta de autoestima que caracterizava suas vidas sexuais
antes de qualquer envolvimento em movimentos políticos de aceitação de tamanho. Esses são
aspectos do sexo gordo relacionados à estigmatização e à gordofobia.
White (2016), ainda aponta que existe uma incorporação heteronormativa do que seria
“adequado” no quesito de reprodução humana que embasa os discursos médicos, a ausência
dessa normatividade pode explicar essa ansiedade que a ameaça que corpos não
normativamente sexuados representam para a possibilidade de um futuro. Entretanto é de
extrema irresponsabilidade "comemorar o fracasso" do corpo gordo se isso envolver tolerar a
frustração sexual, sexo ruim ou abusivo, vergonha do corpo ou a incapacidade de conceber um
filho. A questão não é aceitar o fracasso, mas reimaginá-lo, não significa aceitar as coisas como
estão, mas forjar alternativas que não reproduzam as medidas de "sucesso" ou "fracasso" que
caracterizam o passado e o presente do sexo gordo (White, 2016).
Nessa mesma linha a pesquisa realizada por Winch (2016) que discute como ser gorda
significa ser a classe fracassada do neoliberalismo, ela descreve que não é apenas no aspecto
reprodutivo e amoroso que ser gorda é considerado um fracasso, ser gorda é visto como
sinônimo de preguiça e desleixo.
Ser gorda é enquadrado como um objeto de medo, é construído como um estado de
impotência e ligado às emoções de nojo, vergonha e fracasso. E ser visto em processo de
combater e controlar a gordura é ovacionado, como um elemento essencial do trabalho de uma
mulher em uma economia neoliberal. O corpo feminino normativamente cultivado é admirado
por seu capital erótico, ou seja, mulheres que aproveitaram sua sexualidade para
empoderamento dentro de um paradigma normativo são privilegiadas. Mulheres gordas são
consideradas fracassadas em aderir aos valores neoliberais (WINCH, 2016).
Winch (2016) escreve ainda que a gordura também é estigmatizada como um
sinônimo de desperdício e, por meio de sua estigmatização, os corpos são controlados. Foram
estabelecidas ligações entre sujeira, gordura e uma ética de trabalho pobre; mulheres que
comem por prazer "não se esforçam o suficiente".
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

A autora também fala sobre a associação feita entre mulheres gordas e uma
performance baixa de trabalho, como se mulheres gordas não se esforçassem suficientemente.
O controle é representado no corpo dessas mulheres, e o corpo gordo é considerado um corpo
fora de controle. Como a aspiração de classe, o empreendedorismo e o indivíduo competitivo
são tão essenciais para a economia política contemporânea, a gordura é cada vez mais
desprezada nas plataformas da mídia (WINCH, 2016).
Existe um controle masculino baseado em valores patriarcais (WINCH, 2016), que
estão internalizados nas redes sociais e por meio da cultura visual, que promovem um ideal de
376
uma mulher que tem desejo sexual menor que o sua parceria masculina, mas que está em
vantagem devido a seu corpo normativo, que cumpre todos os critérios de padronização da
beleza, e a sexualidade, que é vendida como sensualidade, desse corpo fica sob controle da
aprovação de outras mulheres, desnecessário pontuar que a mulher gorda é considerada como
um fracasso perante esse controle.
Principalmente quando se leva em consideração a ideia propagada em alguns blogs
de que se você deseja um tipo de corpo, você consegue alcançá-lo, ignorando todas as outras
variáveis genéticas, físicas, comportamentais, sociais e ambientais, reforçando assim a ideia de
que essa mulher é incapaz. Essas publicações ainda criticam e rejeitam qualquer movimentação
que não vise eliminar o corpo gordo da mídia, como se esses movimentos de aceitação corporal
fizessem apologia à obesidade e a gordura (WINCH, 2016).
Para mulheres lésbicas, Yost e Chmielewski (2011), relatam que elas expressam uma
ambivalência em relação a suas vivencias sexuais e relações com seus corpos, conseguem
perceber esses corpos de maneira positiva, mesmo que expressem algum descontentamento
com suas formas físicas. Então, apesar das autoras apresentarem uma conclusão esperançosa
de que mulheres lésbicas podem escapar da objetificação sofridas por corpos femininos, fica
claro que, independente da relação sexual dessas mulheres, elas estão sujeitas a pressões sociais
a magreza e ao padrão de beleza estabelecido.
Winch (2016), discute como o corpo é "um instrumento de trabalho em tempo
integral", onde a libido é reprimida, para muitas mulheres estar dentro dos padrões normativos
é ser invísivel, é deixar de ser foco de críticas, vergonha e julgamentos.
Fikkan e Rothblum (2011), realizaram uma revisão de literatura sobre as experiências
das mulheres na América do Norte que sofrem com o estigma associado ao peso corporal em
diversas áreas como: emprego, educação, relações amorosas, saúde, saúde mental e retratos na
mídia. E como resultados elas encontraram que o estigma da gordura aparece muito cedo na
vida das mulheres, foi levantado que meninas gordas tem menos probabilidade de se envolver
em atividades sexuais, há uma relação inversamente proporcional entre o peso do corpo dessas
meninas e a probabilidade de estar em um relacionamento amoroso, quanto mais gordas, menor
é essa probabilidade. E esse padrão se mantém até a vida adulta dessas mulheres.
A imagem da sexualidade feminina gorda na cultura tende a ser limitada “a um objeto
sexual fetichista ou a uma pessoa sem apelo sexual ou sexualidade, ou seja, hiper (in)visível”
(GAILEY, 2014). Assim, as meninas gordas raramente são vistas como objetos de desejo e
isso prejudica o desenvolvimento da qualidade da vida sexual dessas meninas. Afinal, elas não
são apenas objetos passivos do olhar masculino desejante, mas também sujeitos desejantes
(FIKKAN; ROTHBLUM, 2011).
Fikkan e Rothblum (2011), constataram também que o feedback negativo que as
mulheres recebem sobre seu peso podem determinar a probabilidade de estar em um
relacionamento e a qualidade dos relacionamentos. E a diferença de como isso impacta a vida
de homens e mulheres. As autoras citam o estudo de Regan (1996), que fez uma pesquisa com
estudantes universitários sobre experiências sexuais e nível de desejo sexual, e descobriu que
quando o alvo era um homem gordo os resultados eram virtualmente idênticos ao homem com
Estudos de Sexualidade 3

corpo padrão, já quando o alvo era uma mulher, o seu peso provocava uma diferença
significativa em como os participantes a viam. O corpo feminino gordo não foi apenas
classificado como menos desejável e experiente sexualmente, mas também como menos
habilidoso, afetuoso e responsivo como parceiro sexual e menos propenso a sentir desejo
sexual pelos outros.
As mulheres que têm pensamento negativo sobre seus corpos possuem menores níveis
de desejo sexual e excitabilidade, elas também relatam tomar com menos frequência iniciativa
para iniciar relações sexuais e até mesmo evitam as relações como um todo. Há também
descrição de menor prazer, orgasmos e satisfação sexual (SATINSKY et al., 2012). 377

Assim, novamente é reforçada a ideia de que os valores de beleza normativos


patriarcais impostos pela sociedade afetam a maneira como as mulheres gordas irão se
relacionar, principalmente em relacionamentos românticos heterossexuais. São vistas não
apenas como menos desejáveis, mas também, são muitas vezes considerados alvos mais fáceis
para conquista sexual devido à desvalorização de seus corpos (GAILEY; PROHASKA, 2006;
PROHASKA; GAILEY, 2009).
Outro artigo resultante dessa revisão foi o das autoras Kurowicka e Usiekniewicz que
em 2019 examinaram narrativas do seriado britânico My Mad Fat Diary sobre uma garota
gorda e com deficiência. O seriado conta a história de Rae e percorre toda a complexidade do
que é ser uma adolescente gorda, se descobrir sexualmente e vivenciar sua sexualidade.
O seriado mostra o quanto as meninas gordas estão sob controle da opinião alheia e
isso afeta sua confiança, faz com que seus sentimentos e desejos sejam negados, dentro de uma
sociedade gordo fobica, uma garota gorda vivenciar sua sexualidade provoca mais julgamento.
Outro ponto importante abordado, é o quanto o corpo gordo não é merecedor de desejo e
atração, como se desejar e querer estar em contato com esse corpo fosse um favor que a outra
pessoa está fazendo para a mulher gorda, e isso pode resultar em relacionamento abusivos, e
em situações de abuso e violência (KUROWICKA; USIEKNIEWICZ, 2019).
Para mulheres e meninas gordas, ser sexual - incluindo ser um objeto sexual,
sexualmente desejável para os outros - muitas vezes é uma experiência fortalecedora, em vez
de humilhante, pois combate a dessexualização a que muitas vezes estão sujeitas em uma
cultura com fobia de gordura (KUROWICKAUSIEKNIEWICZ, 2019).
Isso vai contra as noções sociais de que o corpo gordo é capaz de desejar e ser
desejado, a gordofobia presente na sociedade não aceita que o corpo gordo seja merecedor de
prazer.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A quantidade de publicações sobre a sexualidade da mulher gorda é baixa, há poucas
intervenções com mulheres gordas sendo entrevistadas ou participando efetivamente da
pesquisa, foram encontrados mais levantamento de dados, análises de publicações na internet
ou produtos midáticos.
É notório o quanto o estigma da obesidade está presente nos discursos dessas mulheres
e na produção de conteúdo de entretenimento. O discurso de ódio pelo corpo gordo e o
preconceito sofrido, principalmente por mulheres, vai além de relações pessoais, sexuais e
amorosas, é um corpo julgado dentro do consultório médico, do trabalho, em restaurantes, em
lojas, na praia, na academia, dentre outros lugares. É um corpo que não tem lugar dentro da
sociedade, que não consegue muitas vezes, realizar atividades básicas e diárias.
Os movimentos de aceitação corporal são de extrema importância para que essas
mulheres percebam que o corpo delas não é errado, que elas sofrem preconceito sim, e que
estão sendo impedidas de viver suas vidas com qualidade. Outro aspecto importante é de
reeducar a sociedade sobre o olhar que elas têm para esses corpos, entender que as pessoas são
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

muito mais do que sua forma física, que o corpo é fluído e que todos temos direito a saúde,
educação, transporte, vestimenta, lazer e prazer. É preciso repensar através de políticas
públicas, a maneira estrutural como a sociedade oferece as pessoas gordas acesso a todos os
serviços.
Crescer ouvindo que o seu corpo é errado, doente, feio e indesejável, traz
consequências abomináveis para uma mulher. Há uma necessidade de estudos, publicações e
intervenções que mostrem para essas mulheres que são as estruturas sociais que tem que se
adaptar a elas, e não o contrário. O corpo delas também têm direito de ir e vir, de fazer o que
378
tem vontade, mais do que isso, o corpo da mulher gorda tem direito ao cuidado e ao prazer.

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YOST, M. R.; CHMIELEWSKI, J. F. Narrating Rural Lesbian Lives: Body Image and Lesbian Community in
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Yacote, T. S. Fat women and Sexuality. Trabalho de Conclusão de Curso em Sexologia Aplicada - Instituto
Paulista de Sexologia, São Paulo, 2020.
Estudos de Sexualidade 3

CINEMA E PATRIARCADO
A INFLUÊNCIA DO ARQUÉTIPO DA FADA MANÍACA SONHADORA NA
SOCIEDADE PATRIARCAL

Tomás Pereira Monteiro Machado

379

RESUMO
Este trabalho trata-se de um estudo da influência do cinema na estrutura patriarcal da sociedade
ocidental contemporânea, tomando como base o arquétipo cinematográfico da Fada Maníaca
Sonhadora. Sendo assim, o projeto possuiu como objetivo a compreensão da relação entre o
cinema moderno e o conceito social de patriarcado, assim como a verificação da influência do
arquétipo mencionado na manutenção da estrutura patriarcal. Para a realização de tal estudo,
foi realizada uma pesquisa de Revisão Bibliográfica, identificando quinze artigos científicos,
relevantes e relacionados ao tema, para então utilizá-los como base para a discussão. Ao final,
apesar de verificada a necessidade de estudos posteriores para o aprofundamento do tema e por
conseguinte sua compreensão, foi possível concluir que o cinema, como recurso da mídia e
dotado de alto poder de influência perante a sociedade, por meio de arquétipos
cinematográficos como a Fada Maníaca Sonhadora, é capaz de afetar a compreensão social
sobre temas como patriarcado e machismo, tendo assim sucesso na manutenção da estrutura
vigente.
Palavras-chave: cinema, patriarcado, Fada Maníaca Sonhadora, influência.

ABSTRACT
This piece refers to a study about the influence of cinema upon the contemporary western
society’s patriarchal structure, based on the Manic Pixie Dream Girl cinematic archetype.
Thus, the project aims at comprehending the relation between modern cinema and the
patriarchal social concept, as well as at verifying the influence of the mentioned archetype
upon the patriarchal structure’s maintenance. In order to accomplish this study, a literature
review was made, which identified fifteen scientific articles, relevant and related to the theme
so they could be used as the basis for the discussion. At the end, besides the verified need of
further studies for a bigger and more profound comprehension of the theme, it was possible to
conclude that cinema, as a media resource that has a big power of influence upon the society,
making use of cinematic archetypes as the Manic Pixie Dream Girl, is able to a affect the social
comprehension upon issues such as patriarchy and chauvinism, by so being successful on the
maintenance of the current structure.
Keywords: cinema, patriarchy, Manic Pixie Dream Girl, influence

1. INTRODUÇÃO
Desde sua criação, ao final do século XIX, o cinema influencia o modo de vida do ser
humano, tanto positiva quanto negativamente. Se por um lado, os filmes são capazes de
inspirar, entreter, divertir e proporcionar reflexões à população, a conhecida sétima arte pode
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

ser utilizada de maneira a retardar o progresso, reforçando o status quo e alimentando


preconceitos e práticas danosas à própria humanidade, sendo a contribuição para a manutenção
do patriarcado um forte exemplo de efeito colateral nefasto da produção cinematográfica.
Ao produzir um filme, tratando-se especialmente de cinema mainstream ocidental,
roteiristas e diretores partem de uma ideia específica e baseiam-se em modelos previamente
utilizados para construir a estrutura de sua história de maneira a ser bem recebida pelo público.
Tais modelos são conhecidos como "arquétipos cinematográficos". Segundo Feijó (2017),
arquétipos são exemplos de personalidades ou situações cotidianas capazes de gerar
380
identificação com o público. Sendo assim, quanto mais um arquétipo é utilizado no cinema,
mais as pessoas se identificam com ele, introjetando as mensagens que esse arquétipo
comunica, mesmo que a comunicação de algumas dessas mensagens não tenha sido a original
intenção dos idealizadores do filme no qual o arquétipo é apresentado.
Apesar da utilização de tais modelos na produção cinematográfica ser frequente, os
realizadores da obra podem, muitas vezes, inserir o arquétipo sem ter o conhecimento de sua
existência, considerando-o apenas inspiração proveniente de outras películas, cabendo a
estudiosos, neste caso, a identificação de arquétipos utilizados, bem como das consequências
sociais de seu uso. Em meados dos anos 2000, o crítico de cinema Nathan Rabin identificou
um desses arquétipos, cunhando assim o termo Manic Pixie Dream Girl, ou Fada Maníaca
Sonhadora em tradução livre.
Segundo Dutra e Herzog (2016), o arquétipo da Manic Pixie Dream Girl representa
uma personagem feminina rasa, sem conteúdo ou problemática própria, cuja função dramática
resume-se em auxiliar o personagem principal masculino em sua jornada de desenvolvimento
pessoal. Tal personagem pode ser identificada em uma série de filmes, especialmente do estilo
Comédia Romântica. Um exemplo de Manic Pixie Dream Girl pode ser identificado no filme
Tudo acontece em Elizabethtown (2005), cuja personagem foi a primeira a ser reconhecida
como pertencente ao arquétipo.
Tendo em vista a incidência de filmes que se utilizam de tal personagem, surge o
questionamento quanto ao impacto de tais películas nas relações sociais em uma sociedade
patriarcal moderna cuja desigualdade de gênero é expressa nos mais diferentes âmbitos.
Segundo Pinto e Midlej (2012), no ambiente profissional, apenas a título de exemplo, a
desigualdade entre homens e mulheres pode ser verificada em aspectos como salário e
oportunidades de promoção. Sendo assim, refletir quanto à capacidade de influência de filmes
com personagens alinhadas ao ideal do patriarcado, como é o caso da Manic Pixie Dream Girl,
torna-se, não apenas relevante, mas essencial na busca por uma sociedade moderna com maior
equidade de gênero.

2. OBJETIVOS
Objetivo geral
Compreender como o arquétipo cinematográfico da Manic Pixie Dream Girl pode contribuir
com o patriarcado.
Objetivos específicos
-- Estudar o patriarcado na sociedade ocidental moderna.
-- Compreender a relação entre patriarcado e cinema.

3. METODOLOGIA
Para a produção deste artigo, optou-se pelo método da Revisão Bibliográfica do tipo
Narrativa. Segundo Ferenhof e Fernandes (2016), tal formato baseia-se em uma análise não
sistemática de artigos acadêmicos escolhidos pelo autor do artigo a ser produzido, de acordo
com sua relevância e com base em critérios escolhidos previamente.
Estudos de Sexualidade 3

Esta Revisão Bibliográfica Narrativa partiu de uma seleção de 30 artigos encontrados


em diferentes fontes, por meio de uma pesquisa na internet que utilizou como base as seguintes
palavras-chave: Patriarcado; Equidade de Gênero; Gênero; Arquétipo; Cinema; Manic Pixie
Dream Girl. Em seguida, tais artigos foram avaliados a partir dos seguintes critérios:
Relevância, levando em consideração a capacidade do artigo em acrescentar conteúdo
relevante à produção acadêmica; e Contemporaneidade, levando em consideração que artigos
produzidos nos últimos anos têm caráter mais atual e melhor capacidade em refletir o cotidiano.
Ao final da avaliação, 15 artigos acadêmicos foram escolhidos para servir de base a
esta produção, os quais estão listados ao final do artigo na seção "Referências Bibliográficas". 381

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
De acordo com os critérios citados na Metodologia, foram encontrados 15 artigos para
a realização desta Revisão Bibliográfica Narrativa, sendo que estes foram separados em 3
segmentos diferentes: Artigos sobre Patriarcado e Equidade de gênero; Artigos sobre cinema;
e Artigos sobre metodologia.
O primeiro segmento foi classificado como Artigos sobre Patriarcado e Equidade de
Gênero, ao qual foram submetidos 11 artigos. Desta forma, é possível verificar a grande
quantidade de textos anteriormente produzidos com foco na discussão sobre o patriarcado,
dada à importância e relevância do assunto na sociedade atual.
O segundo segmento foi classificado como Artigos sobre cinema, ao qual foram
submetidos 3 artigos, sendo que um deles apresentava o arquétipo da Manic Pixie Dream Girl
como tema principal. A quantidade limitada de artigos que relacionam o cinema com temas
como gênero, sexualidade e patriarcado revela a necessidade de um maior aprofundamento no
assunto, dado o impacto de tal forma de comunicação nas relações sociais da atualidade.
O terceiro e último segmento foi classificado como Artigos sobre metodologia, ao qual
foi submetido apenas um artigo, usado como referência para a construção metodológica desta
produção.
Um olhar sobre o Patriarcado
Ao observar a sociedade moderna ocidental, é possível perceber a influência de uma
ideologia dominante, na qual o indivíduo do sexo masculino é colocado acima em grau de
importância frente aos demais. Tal ideologia é denominada Patriarcado, na qual a ideia de que
homens seriam superiores a mulheres (conceito denominado de machismo) fundamenta a
premissa de que os homens devem estar e permanecer no poder, seja este referente a relações
sociais simples, seja referente ao governo de grandes massas.
Apesar de influenciar a sociedade como um todo, visto tratar-se de um sistema de
opressão nas mais diversas camadas da sociedade, o patriarcado estrutura-se a partir do núcleo
familiar para apenas em seguida desenvolver-se nos demais seguimentos sociais. Segundo
Narvaz e Koller (2006), a origem do patriarcado estaria ligado à criação do conceito de família
que, já na Roma Antiga, o patriarca estaria acima das demais pessoas que habitavam a casa,
podendo decidir até mesmo por encerrar a vida de uma delas.
Essa relação desigual de poder permanece nos dias atuais, uma vez que a violência
contra mulheres não veio a extinguir-se na civilização romana, mas pode ser contemplada ainda
no século XXI, sob a terminologia de "violência de gênero" que, ainda segundo Narvaz e Koller
(2006), pode ser descrita como qualquer violação dos direitos básicos das mulheres decorrente
da manutenção da cultura machista patriarcal.
Mesmo que tal regime baseado em gênero seja milenar, a luta contra essa forma de
opressão tem início, de forma mais expressiva, apenas no século XIX. Segundo Pombo (2018),
as primeiras revoluções contra o sistema patriarcal teriam surgido na França, país notoriamente
conhecido por manifestar-se contra o poder vigente, porém teriam apenas ganhado força a
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

partir do século XX. Tal luta, contudo, encontra-se longe de atingir o objetivo de uma
sociedade livre do patriarcado, dado não somente às permanentes ocorrências de violência
contra as mulheres, mas também a influência do patriarcado em diferentes âmbitos da
sociedade, como é o caso do cinema.
A influência social do cinema e o arquétipo da Fada
A arte de fazer cinema originou-se na produção dos primeiros filmes, ao final do século
XIX. Desde então, influenciada pelo avanço da tecnologia, redução de custos de produção e
disseminação das salas de cinema pelo mundo, tal arte veio a aprimorar-se ao longo das
382
décadas, seja em sua capacidade de impressionar com efeitos especiais cada vez mais realistas,
seja no âmbito da diversidade, ao abordar os mais variados assuntos, reais ou ficcionais, dando
origem aos mais diversos gêneros cinematográficos.
Apesar da diversidade de histórias e gêneros, o cinema, tal qual outras formas de artes
como escrita e pintura, tem por base a utilização de arquétipos em suas narrativas. Segundo
Feijó (2017), a utilização de referências do imaginário comum aos seres humanos possibilita
uma espécie de conexão simbólica do indivíduo com a arte na qual tal arquétipo é representado.
Além disso, ainda segundo a autora, a utilização de arquétipos propicia a assimilação e
aceitação de conceitos pelo público em geral.
Embora muitos desses personagens arquetípicos possam ter uma influência positiva no
imaginário popular, outros possuem efeitos colaterais adversos, incitando ideais de machismo
provenientes do patriarcado. Um exemplo de tal personagem é a Manic Pixie Dream Girl, ou
Fada Maníaca Sonhadora.
A Fada Maníaca Sonhadora seria descrita como
[...] uma personagem feminina, plana, rasa, sem background story, definida como meiga, feliz, divertida,
infantil, espontânea, peculiar, nunca tem grandes conflitos, com poucos e superficiais defeitos, sem
trabalho ou família presentes na narrativa (DUTRA e HERZOG, 2016, p. 4).

Segundo Rabin (2014), o termo foi criado no ano de 2007 para descrever uma
personagem do imaginário masculino que representaria uma jovem mulher que surge na vida
de um homem unicamente para tirá-lo do momento de vida ruim no qual ele mesmo se colocou,
para, em seguida, deixá-lo da mesma forma inesperada que utilizou para introduzir-se na vida
dele. O autor também descreve que, apesar de tal personagem sempre ter existido, ao nomear
o arquétipo, ele ganha mais visibilidade.
Sendo assim, outros filmes começaram a se utilizar do arquétipo da Fada,
disseminando, mesmo que de maneira despretensiosa, a mensagem passada pelo arquétipo de
que o papel da mulher seria, unicamente, auxiliar homens brancos tristes a alcançarem a
realização em suas empreitadas, ao invés de tornarem-se indivíduos independentes e com os
próprios problemas e desafios, ainda segundo Rabin (2014).
Desta forma, torna-se evidente o desserviço do arquétipo da Manic Pixie Dream Girl
na luta pela equidade de gênero e pelo fim do poder patriarcal, visto que filmes que se utilizam
da personagem refletem o ideal machista de posição secundária da mulher frente ao homem,
contribuindo para que estes preceitos permaneçam enraizados no inconsciente coletivo,
considerando que, por meio da utilização de arquétipos, torna-se "possível espalhar, convencer
e criar narrativas" (Feijó, p. 3, 2017).

Elizabethtown e a primeira fada


Apesar do arquétipo da Fada Maníaca Sonhadora poder ser identificado em
personagens de filmes, livros e séries de sucesso ao longo das últimas décadas, foi apenas no
ano de 2005 que uma personagem se destacou ao ponto de gerar tal reflexão, fazendo assim
com que o crítico de cinema Nathan Rabin, ao assistir ao filme, cunhasse o termo Manic Pixie
Estudos de Sexualidade 3

Dream Girl, dando início à reflexão quanto à incidência de tal arquétipo no cinema, assim
como sua influência social.
No filme, o personagem Drew Baylor (interpretado pelo ator Orlando Bloom) passa por
uma séria crise profissional após causar um prejuízo enorme para a empresa à qual trabalha.
No momento em que decide tirar a própria vida, Drew recebe a notícia do falecimento do pai,
tendo então que pegar um voo para a pequena cidade de Elizabethtown, na qual viviam a
maioria de seus parentes, para buscar o corpo do pai. Neste voo, Drew conhece a comissária
de bordo Claire Colburn (interpretada pela atriz Kirsten Dunst), personagem que daria início
ao arquétipo da Fada. 383

Ao longo da trama, Claire se mostra uma personagem vazia e superficial, sem grandes
problemas de vida a serem solucionados, sem história prévia, apenas mostrando-se disposta a
ajudar Drew em sua luta para superar suas atuais crises existenciais, abrindo mão de qualquer
possível consequência de tal ajuda, visto que a personagem, em certo momento da trama, abre
mão de trabalhar para permanecer ao lado do personagem principal.
Conforme a história avança, a relação de Drew e Claire se aprofunda, com horas
passadas ao telefone, um nascer do sol assistido de última hora e um evento familiar que não
sai como esperado, seria possível supor que nada poderia diferenciar o filme de qualquer outra
comédia romântica da época. Porém, ao prestar atenção na sequência de cenas, torna-se cada
vez mais evidente que Drew é o centro das atenções, enquanto Claire está lá apenas para apoiá-
lo. O papel da mocinha não exige profundidade, ou sequer individualidade, uma vez que ela
apenas aparece em cena ao lado do “herói”, ou, no melhor dos casos, interagindo com outra
pessoa de forma a acentuar sua personalidade jovial e despretensiosa. Desta forma, é inevitável
perceber que Claire está no filme apenas para ajudar Drew, uma vez que a personagem, por
meio de suas ações, palavras, atitudes e escolhas, deixa cada vez mais claro que a vida dela só
faz sentido se a dele também o fizer.
Portanto, o filme, ao mesmo tempo em que estabelece padrões irreais de beleza
feminina, com uma personagem loira, magra (magreza não justificada ao longo da trama, sendo
que a personagem não se exercita e apresenta hábitos alimentares que iriam contra o padrão
estético mantido por ela) e constantemente maquiada, é capaz de apresentar uma personalidade
do ideal feminino de completa subserviência frente ao homem, tendo apenas como objetivo
apoiá-lo, sem qualquer sinal de problemas, interesses, conflitos ou metas próprias.
Ao final da película, é possível compreender a extensão do prejuízo causado pelo
arquétipo no imaginário social, uma vez que a personagem de Claire, por detrás de uma
aparência e um sorriso atraentes e um charme e disposição capazes de encantar o grande
público, apresenta uma personagem feminina sem conteúdo e completamente dependente do
personagem masculino para que possa dispor de qualquer significado e sentido na vida. Logo,
a mensagem passada ao público não há de ser outra que não os papéis estabelecidos de ênfase
e destaque do masculino em detrimento de um papel feminino de mera coadjuvante.
A banalização como ferramenta de propagação
Se é possível dizer que o sucesso de um arquétipo cinematográfico provém de sua
influência perante o público, então qualquer ação que aumente a aceitação deste para com tal
arquétipo pode e deve ser encarada como ferramenta de propagação. Neste sentido, cabe a
discussão quanto à banalização do arquétipo.
Segundo o dicionário Michaelis, banalizar significa tornar algo banal ou medíocre.
Sendo assim, ao banalizar um arquétipo cinematográfico, este vem a se tornar comum ao
público, que muitas vezes pode desconhecer os efeitos deste arquétipo nas relações sociais e
no senso comum. E, atualmente, o meio pelo qual o arquétipo da Fada tem se propagado de
maneira banalizada é a internet.
Rodrigues Jr., Zeglio, Vaccari, Levatti (orgs.)

Apesar das discussões contemporâneas sobre patriarcado e machismo, ao tratar de


assuntos como cinema, o entretenimento acaba por superar a crítica, e ao pesquisar em sites de
busca sobre Fada Maníaca Sonhadora ou Manic Pixie Dream Girl, mesmo que alguns sites
explicitem o real significado de tal arquétipo e seus impactos na sociedade, muitos deles
buscam chamar a atenção com matérias de revista sobre filmes da cultura pop com personagens
que se encaixam no arquétipo sem uma discussão aprofundada.
Além disso, a banalização do arquétipo permite que visitantes de sites com foco no
público jovem feminino realizem "testes virtuais" cujo objetivo seria declarar, sem
384
embasamento científico, se a usuária encaixa-se no "perfil de Manic Pixie Dream Girl",
levando o público jovem não apenas a tomar a ideia da fada como algo aceitável, mas indo
além e transformando um determinado posicionamento frente às relações de gênero, fruto de
um patriarcado enraizado, em algo desejável e que supostamente deveria ser tido como objetivo
a ser alcançado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme o cinema torna-se um meio de comunicação cada vez mais acessível ao
grande público, sua influência nas relações sociais cresce de maneira significativa, tanto de
forma positiva, levando em consideração o caráter crítico e de arte de certas películas, quanto
de maneira negativa, conforme abordado ao longo deste texto.
Apesar disso, por tratar-se de um tema de estudos recente, uma vez que o próprio
cinema como é conhecido atualmente existe por não mais do que algumas décadas, faz-se
necessário um aprofundamento na temática referente aos impactos desta forma de
comunicação na vida em sociedade, principalmente quando relacionada a temas de maior
sensibilidade, como é o caso do patriarcado e do machismo estrutural.
Por fim, os objetivos deste texto foram alcançados, uma vez que a discussão evidenciou
as iniquidades provenientes de uma sociedade patriarcal e relacionou tal forma de
relacionamento social com o arquétipo cinematográfico da Manic Pixie Dream Girl.
Futuramente, outros trabalhos mostrar-se-ão necessários não apenas para evidenciar a resposta
social de tal arquétipo ao longo do tempo, como também para abordar outros arquétipos
utilizados na produção cinematográfica.

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